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2017 - 02 - 23 Revista de Direito Administrativo Contemporâneo 2015 ReDAC vol.19 (Julho-Agosto 2015) Direito Municipal e Urbanístico Direito Municipal e Urbanístico 1. Definição e concretização do direito à cidade: entre direitos e deveres fundamentais Definition and realization of the right to the city: between fundamental rights and duties GUILHERME F. DIAS REISDORFER Mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo. Advogado em Curitiba. guilherme@justen.com.br Sumário: 1. Introdução 2. O direito constitucional urbanístico: a imposição de funções e deveres para a coexistência no ambiente urbano 3. O conteúdo do direito à cidade sustentável: a juridicidade em rede 4. O direito à cidade como diretriz 5. O direito à cidade como resultado de determinada organização urbanística – os vetores para sua concepção e realização 5.1 O dever estatal de conceber, dirigir e executar uma política de desenvolvimento urbano: a dinâmica do direito à cidade 5.2 O urbanismo solidarista: a observância de deveres e encargos urbanísticos como pressuposto para a realização do direito à cidade 6. Considerações finais 7. Referências bibliográficas Área do Direito: Constitucional Resumo: A expressão direito à cidade foi inserida no direito positivo pela Lei Federal 10.257/2001. O texto tem por objetivo examinar a conexão entre tal noção e a disciplina constitucional do direito urbanístico, assim como se propõe a analisar o seu conteúdo, a sua natureza jurídica e a sua concepção no âmbito municipal. Abstract: The expression right to the city has been incorporated into positive law by Federal Law 10.257/2001. This paper aims to examine the connection between this notion and the constitutional discipline of urban law, as well it aims to analyze its contents, its legal nature and its conception at the municipal level. Palavra Chave: Direito urbanístico - Direito à cidade - Desenvolvimento Urbano sustentável - Direitos fundamentais - Deveres fundamentais. Keywords: Urban planning law - Right to the city - Sustainable urban development - Fundamental rights - Fundamental duties. 1. Introdução O ordenamento consagra a noção de direito à cidade sustentável no art. 2.º, I, da Lei 10.257/2001. O conceito, conquanto não expresso na Constituição, tem posição destacada no direito urbanístico brasileiro. Assim como o Estatuto da Cidade exerce função sistematizadora do ordenamento urbanístico, a noção de direito à cidade sustentável desempenha papel inspirador dos contornos concretos da política urbana municipal. O objetivo deste texto é examinar o conteúdo e alguns aspectos relacionados à aplicação concreta dessa expressão. Para tanto, o direito à cidade será considerado a partir de uma dupla perspectiva: enquanto diretriz (premissa) de definição da política urbana e como síntese (resultado) dessa mesma política. Parte-se da premissa de que a noção “direito à cidade sustentável” não apresenta conteúdo unívoco, de modo que a tarefa aqui proposta pressupõe abordar não apenas a substância propriamente dita da expressão, mas também o processo de definição dos elementos (notadamente os direitos e deveres) que o compõem. 2. O direito constitucional urbanístico: a imposição de funções e deveres para a coexistência no ambiente urbano A Constituição Federal de 1988 foi a primeira Constituição da República a consagrar um capítulo próprio para a política urbana, com a previsão do conjunto de disposições fundamentais do ordenamento urbanístico brasileiro. Assim, se antes já era possível afirmar a autonomia do direito urbanístico na experiência brasileira, 1 com a Constituição essa compreensão veio a se consolidar. O capítulo específico previsto na Constituição alude à política urbana como meio para atingir determinados fins. Dentre esses fins não está, ao menos não expressamente, a realização de um “direito a cidades sustentáveis”. Também não se alude à realização de algum direito específico por intermédio da política urbana. Em vez disso, o art. 182 da Constituição prevê que a política urbana “tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. Daí se extrai que o texto constitucional dispôs sobre uma disciplina objetiva da função pública urbanística, não fundada em direito ou direitos subjetivos. Conquanto se aluda ao bem-estar dos habitantes das cidades, não há a delimitação de posições jurídicas exigíveis. O art. 182 da CF ocupa-se de dois temas que poderiam ser associados a um possível direito à cidade, mas que são com ele inconfundíveis. O primeiro tema corresponde à forma pela qual a política urbana será concretizada e ao seu principal instrumento de desenvolvimento, que é o plano diretor municipal. Nos termos do § 1.º do art. 182, o plano diretor constitui o “instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”, a ser aprovado pela Câmara Municipal com a finalidade de promover a realização das funções sociais da cidade e o bem-estar dos seus habitantes. O segundo tema diz respeito a encargos (novamente, não se trata de direitos) que recairão sobre os habitantes da cidade, particularmente quando sejam titulares de um direito específico – o da propriedade. Os §§ 2.º, 3.º e 4.º do art. 182 ocupam-se de definir que a fruição da propriedade urbana passa pela observância da função social desse direito. Isso significa a consagração de um modelo normativo que assegura direitos individuais, mas que também determina limites para o seu exercício e parâmetros para a coexistência em face de posições jurídicas titularizadas por terceiros. De acordo com o art. 182, o descumprimento desses limites e parâmetros autoriza a imposição de deveres específicos ao proprietário urbano (parcelamento ou edificação compulsórios e obrigações tributárias mais intensas), até a solução final e drástica de desapropriação. Pode-se, então, sintetizar o programa constitucional urbanístico a partir da consagração de três vetores: planejamento urbano, gestão democrática e solidarismo. 2 De acordo com os dois primeiros vetores, atribui-se ao Poder Público o dever de desenvolver e conceber política urbana concatenada e processada em instâncias democráticas, tendo o objetivo de promover o bem-estar da população urbana. Conforme o terceiro vetor, prevê-se que a realização do bem-estar passa pela disciplina da atuação dos próprios habitantes e usuários do meio urbano, sobre os quais incidem deveres destinados a assegurar a compatibilidade das iniciativas privadas com as diretrizes de desenvolvimento urbano que venham a ser consagradas. Ou seja: a Constituição não esclarece qual seria o conteúdo de um direito à cidade sustentável. Antes disso, distribui funções e responsabilidades. Atribuem-se funções diversas à cidade (e, por extensão, ao próprio Poder Público, gestor do ambiente urbano em sentido amplo) e aos que nela habitam ou exercem atividades. Vê-se aqui certa influência da concepção funcional-racionalista do urbanismo, desenvolvida no início do século XX, que visualizava a cidade “como um grande ser com diferentes funções” 3 – funções estas que, por sua vez, seriam delimitadas a partir de técnicas como o zoneamento e viabilizadas a partir de um corpo específico de regras jurídicas, disciplinadoras do uso e da ocupação do espaço urbano. Essa concepção encontra-se consagrada de modo emblemático na Carta de Atenas, elaborada no Congresso Internacional de Arquitetura Moderna realizado em 1933. Desse documento extrai-se que o ordenamento das cidades deveria realizar aquilo que corresponderia às quatro funções elementares do ambiente urbano, consistentesna promoção da habitação, do trabalho, da circulação e da recreação da população. Por essa concepção, a cidade é vista como ambiente a ser racionalizado e funcionalizado para atender as necessidades humanas básicas. Em outras palavras, “o urbanismo é visto como uma arquitetura em grande escala”. 4 Essas referências permitem apreender o lastro histórico e cultural que acompanha a ideia de função social (ou, mais precisamente, de funções sociais) da cidade. Mas qual é o conteúdo dessas funções, tal como consagradas na Constituição de 1988? Embora não exista uma determinação normativa, parece forçoso concluir que tais funções não constituem fins em si mesmos. Como se extrai da ideia de função, elas constituem conceitos instrumentais – encontram-se dirigidas à realização de objetivos determinados pela Constituição. No tocante ao direito urbanístico, tem-se um objetivo constitucional amplo e aberto, que corresponde à realização do bem-estar dos indivíduos. É essa a finalidade que deve inspirar a política urbana. Portanto, as funções sociais da cidade vinculam-se ao atendimento do bem-estar e, como consequência, do conjunto de direitos e interesses juridicamente relevantes que podem ser relacionados a esta última noção. Conforme a síntese de Thiago Marrara, “a realização da função social da cidade envolve a concretização de direitos fundamentais, civis e sociais e baliza-se pelos princípios fundadores do Estado Brasileiro (arts. 1.º e 3.º da Constituição da República)”. 5 Tal compreensão permite estabelecer uma conexão entre o caput do art. 182 e a noção de direito à cidade sustentável. Se as funções sociais instrumentalizam-se à realização de necessidades humanas no ambiente urbano, é necessário definir quais são essas necessidades e como observá-las e atendê-las. Coube à legislação ordinária essa tarefa, consistente em delimitar a perspectiva dos direitos que devem nortear a disciplina urbanística. 3. O conteúdo do direito à cidade sustentável: a juridicidade em rede A positivação do direito à cidade sustentável consagra um conjunto de necessidades humanas relacionadas à estruturação do ambiente urbano. Segundo dispõe o art. 2.º, I, da Lei 10.257/2001, o direito à cidade é “entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”. Trata-se, como se vê, de um plexo de posições jurídicas que, em medidas variáveis, relacionam-se com o bem-estar dos habitantes da cidade. Como é possível inferir das normas acima mencionadas, o bem-estar e o “direito à cidade” não se restringem à satisfação dos direitos individuais. É bem verdade que o direito à cidade, tal como positivado, revela um ângulo próximo da individualidade dos habitantes. Nesse sentido, o art. 2.º, I, do Estatuto da Cidade alude à realização do direito à terra e à moradia, à possibilidade de trabalho e de lazer e à disponibilidade de serviços públicos uti singuli, de fruição individual por usuários determinados. Mas há ainda outra dimensão, complementar e mais ampla, relativa à existência de condições urbanas gerais sadias, atinentes à organização e ordenação do território, à disponibilização de infraestrutura urbana de fruição coletiva, à preservação do patrimônio histórico-cultural e do meio ambiente. Todos esses elementos surgem associados à perspectiva de desenvolvimento não apenas de curto prazo, mas como via de concretização dos mesmos direitos de forma sustentável, para as presentes e futuras gerações. O conteúdo do chamado “direito à cidade” compreende ambas as dimensões, relativas a posições jurídicas de caráter individual e coletivo, mas não se limita a uma dicotomia entre esses polos – antes, verificam-se relações de rivalidade relativa e de complementaridade entre eles. Em primeiro lugar, os diversos elementos que integram a noção de direito à cidade podem ser considerados rivais quando se considera, em um contexto de escassez de recursos, a divisão de verbas orçamentárias para a realização dos vários interesses existentes. A realização dos vários direitos envolve não apenas um juízo jurídico, mas juízo de cunho político atinente à eleição de prioridades e à alocação de recursos em cada momento. O tema ainda será retomado no decorrer deste texto. Em segundo lugar, é de se constatar que a rivalidade é, a rigor, relativa. Em princípio, verifica-se também uma relação de complementaridade entre os elementos que disputam recursos para a sua consecução. Assim, mesmo as posições jurídicas tipicamente individuais relacionam-se com o atendimento de interesses de caráter coletivo. A garantia do bem-estar urbano, ainda quando analisada a partir de um prisma individual, não se restringe à consagração de direitos individuais, pois a observância destes não prescinde do acesso a bens e serviços públicos. Veja-se o exemplo do direito à moradia. Conforme disposto no art. 2.º, I, do Estatuto da Cidade, o acesso à moradia integra o direito à cidade. Ocorre que a realização desse direito começa pela existência de habitação, mas não se limita a esse aspecto. Tão relevante quanto garantir a moradia propriamente dita é assegurá-la em condições dignas, o que pressupõe o atendimento de condições mais amplas e não relacionadas a posições jurídicas individuais específicas. Dentre outros elementos, a realização desse direito passa pela disponibilidade de acesso à infraestrutura urbana e a serviços essenciais, bem como ao meio ambiente sadio. Tal é necessário não apenas para realizar o direito individual do morador, mas também para propiciar ambiente urbano sadio para a coletividade. Pense-se na situação das ocupações precárias. Há interesses individuais (dos moradores da ocupação) e da coletividade envolvidos no propósito de regularizar referido espaço e integrá-lo ao seu entorno. Ou seja, a concretização do referido direito pressupõe um plexo de circunstâncias e elementos que, conquanto não intrínsecos à habitação em si, sejam aptos a qualificá-la a partir da existência de condições sadias e harmônicas de convivência. Daí se segue a impossibilidade de enquadrar a noção de bem-estar dos habitantes da cidade como conceito subjetivo, individualista, o que remete tal noção à consagração de um direito à própria cidade. Assim se dá porque a concretização de certos direitos, mesmo individuais, demanda a consideração de aspectos relacionados à estruturação do ambiente urbano como um todo. Tal como essas várias posições jurídicas compõem a noção mais ampla de direito à cidade, é igualmente correto afirmar que a realização da própria noção de direito à cidade, em seus multifacetados aspectos, é necessária para viabilizar a plena concretização de cada um dos diversos elementos que o compõem. O exemplo do direito à moradia bem ilustra a necessidade de condições coletivas e estruturais para a plena efetividade dos direitos individuais. Pode-se afirmar, então, que o direito à cidade revela-se como produto jurídico complexo, estruturado em um esquema de juridicidade em rede. 6 Nele estão envolvidas diversas situações jurídicas integradas, que revelam um “carácter poligonal ou multifuncional (quanto aos seus titulares activos, aos seus titulares passivos ou destinatários e ao seu conteúdo)”. 7 O esquema de juridicidade em rede produz via de mão dupla: o direito à cidade é não apenas integrado por determinados direitos e prestações, mas em alguma medida também concorre para realizá-los. Trata-se de situação em queo conjunto (o direito à cidade) concorre para a plena fruição dos seus elementos, correspondentes aos direitos e interesses jurídicos que o integram. Nesse modelo, coexistem relações de rivalidade relativa e de complementaridade entre os vários componentes. A realização das diversas posições jurídicas implica uma espécie de “externalidade positiva” recíproca, que resulta na realização dos demais direitos e interesses tidos como “concorrentes”. 4. O direito à cidade como diretriz As características acima descritas afastam o direito à cidade, tal como positivado, da noção tradicional de direito subjetivo. Assim se dá inclusive porque o conceito de direito à cidade sustentável, embora definido de forma analítica no texto legal, é meramente abstrato. A realização conjunta e ótima dos diversos elementos referidos no art. 2.º, I, da Lei 10.257/2001 retrata uma certa situação ideal. Na prática, que nem sempre se caracteriza pela realização plena de todas as posições jurídicas (individuais e coletivas) envolvidas, a consagração do direito à cidade passa pelo enfrentamento de contextos, necessidades e desafios diversos, em regra marcados pela escassez de recursos, o que impõe a consagração de prioridades de atuação. Tal “direito”, portanto, é definido concretamente e segundo arranjos diversos, conforme cada política urbana específica. Por esse prisma, o direito à cidade assemelha-se mais a um mandado de otimização complexo e variável, cuja efetivação ao mesmo tempo pressupõe e concorre para a realização das diversas posições jurídicas que se relacionam com o meio urbano. Essas peculiaridades podem justificar críticas à utilização da palavra direito para a noção ora tratada. Até que ponto existiria um direito à cidade com posições jurídicas consolidadas e que apresente conteúdo estável e juridicamente exigível em relação ao conjunto de elementos que o compõem? O próprio Estatuto da Cidade subsidia a possível crítica, ao positivar a garantia do direito à cidade sustentável como diretriz das políticas urbanas que terão os contornos definidos no âmbito de cada Município. A despeito do crescente recurso às diretrizes como técnica legislativa, o conceito jurídico de diretriz não tem recebido maiores aprofundamentos. A utilização da noção reflete a juridificação de programas e políticas públicas de ação estatal e evidencia a evolução, verificada ao longo do século XX, da forma de atuação do Estado em face dos modelos liberais tradicionais. Tem-se a emergência de um modelo de governement by policies, representativo da intervenção ativa do Estado Social na economia e nas relações sociais. O novo modelo de atuação envolve o exercício mais intenso e constante da função normativa, aliado à utilização contínua de técnicas de diagnóstico e de previsão da realidade, para a formulação jurídica de objetivos factíveis que orientarão a execução das políticas públicas ao longo do tempo. 8 A ideia de lei estável cede lugar a uma postura regulatória contínua e prospectiva da realidade em constante evolução. É nesse contexto que as diretrizes surgem como instrumento normativo, com o propósito de orientar a intervenção estatal em direção ao atendimento de objetivos sociais, econômicos ou políticos. Notadamente os planos estatais (incluído aí o planejamento urbano) revelam-se como “normas-objetivo”, 9 não pautados exclusivamente por regras, mas também por princípios, diretrizes e objetivos gerais. Nas palavras de Fernando Alves Correia, isso significa que “a lei não programa condicionalmente a planificação (...) (de acordo com o esquema ‘Se A, então B’), mas apenas finalmente (Finalprogramme), no sentido de que a lei indica apenas os fins ou os objectivos da planificação na forma de directivas (Richtpunkten), remetendo a escolha dos meios e do momento mais adequados para atingir os referidos fins ou objectivos para a própria Administração”. 10 Daí se extrai que as diretrizes operam como instrumentos inspiradores e conformadores da política e do planejamento urbanos, sem determinar, em termos definitivos e absolutos, as formas de atuação estatal que serão adotadas. Dito de outro modo, as diretrizes confirmam a existência de certa autonomia do Poder Público no tocante à definição dos meios a serem aplicados para atender os fins consagrados no plano normativo. Nesse sentido, no direito português, António Francisco Sousa descreve as “directivas” enquanto linhas orientadoras do planejamento, como “normas de conduta que, em cada momento, perante as circunstâncias concretas, têm um significado próprio. As directivas da planificação não são fins, mas visam os fins”. 11 Desse modo, é possível afirmar que a consagração da garantia do direito à cidade como diretriz confirma que a descrição do seu conteúdo, feita pela Lei 10.257/2001, é meramente aproximativa. Não é viável considerar a noção de direito à cidade como feixe de direitos e garantias estáveis e com conteúdo predeterminado. É a eleição concreta de prioridades e o equilíbrio dinâmico 12 entre os diversos componentes (direitos individuais e sociais, a par do desenvolvimento econômico e da proteção ambiental) que permitem precisar o conteúdo do direito à cidade em cada caso. Nessa condição, a noção complexa de direito à cidade constitui diretriz (premissa) para a estruturação da organização ou da ordem urbanística local e apresenta conteúdo relativamente aberto. 13 5. O direito à cidade como resultado de determinada organização urbanística –– os vetores para sua concepção e realização Como a Lei 10.257/2001 não permite aferir com exatidão o conteúdo concreto do direito à cidade, cabe examinar como se dá a concretização dessa diretriz e do plexo de posições jurídicas que a compõem. Para tanto, considera-se que o processo de definição e realização do direito à cidade desenvolve-se basicamente pela concepção e execução do planejamento urbano, com a consagração de determinada política urbana que realize e assegure certo conjunto de direitos aos habitantes e usuários do meio urbano em geral, ao tempo em que estipula a observância de deveres fundamentais dos sujeitos privados, a partir do modelo constitucional de urbanismo solidarista. 5.1. O dever estatal de conceber, dirigir e executar uma política de desenvolvimento urbano: a dinâmica do direito à cidade Acima se afirmou que a noção do direito à cidade revela-se a partir de certo estado de equilíbrio no tocante à realização dos diversos elementos que o compõem. A questão fundamental reside em determinar no que exatamente consiste tal equilíbrio, qual o seu conteúdo concreto. A indeterminabilidade do equilíbrio não se resolve mediante a simples aplicação de critérios jurídicos de interpretação. A dificuldade em termos concretos decorre em grande medida porque, dada a escassez de recursos, encontra-se subjacente uma questão (deliberação) política, atinente à necessidade de compor a série de interesses e finalidades públicas que, embora legítimos, são concorrentes entre si, e sob tal condição disputam os recursos para a sua plena realização. A disputa se põe de forma mais evidente no tocante aos custos necessários à efetivação dos direitos sociais, “que, enquanto direitos a bens rivais ou altamente rivais, colocam o melindroso problema das opções políticas a realizar”. 14 Se se reconhece a existência de deveres a serem assumidos pelo Estado no meio urbano, não são exatamente claras as posições jurídicas efetivamente exigíveis que daí se extraem, isto é, quais são as pretensões concretas, individuais e coletivas, asseguradas aos cidadãos ou poreles exigíveis. Nesta seara, até é possível e viável reconhecer a ilegitimidade de uma omissão absoluta do Estado. Porém, é problemático definir qual deve ser o conteúdo das ações estatais a serem promovidas e até que ponto é possível demandar do Estado uma ou outra direção. Essa é uma resposta que, em regra, depende da conjuntura local. Daí se afirmar que, para realizar o fim de promover o desenvolvimento sustentável da cidade, o Poder Público assume a tarefa de estabelecer e concretizar política urbana específica, que abrange o planejamento e a ordenação urbana aptos a identificar e consagrar os direitos a serem observados. O dever de planejamento pressupõe o encargo de diagnosticar a realidade urbana e definir soluções para os problemas verificados, ante os recursos disponíveis e as necessidades existentes. Dentre as alternativas que se põem, o planejamento consagra opções políticas, técnicas e jurídicas para superar as carências existentes e prevenir problemas futuros, de acordo com a eleição de prioridades e diretrizes de atuação em vista dos recursos escassos. Trata- se de função prospectiva e contínua, de caráter político-jurídico e que, sendo voltada à promoção do desenvolvimento urbano, encontra-se intrinsecamente relacionada à realidade à qual será aplicada. Segue-se daí que é a política urbana instituída num dado local, veiculada por meio do planejamento urbano, que define o conteúdo exato do direito à cidade. Em outras palavras, o direito à cidade positivado no Estatuto da Cidade depende de uma intermediação legislativa e burocrática 15 no âmbito local para que o seu conteúdo e as posições jurídicas a ele relacionados possam ser identificados de forma integrada. Caberá à disciplina local concretizar as diretrizes de política urbana (dentre aquelas referidas no art. 2.º do Estatuto da Cidade), para, a partir delas, consolidar um conjunto básico de orientação a partir do qual serão definidas, de acordo com a realidade local, as formas e as prioridades de atuação do Poder Público e, a par disso, os direitos e deveres dos particulares. Em outras palavras, tal como a política e o planejamento urbano, o próprio direito à cidade possui conteúdo dinâmico. Isso se dá tanto em razão da sua estreita relação com a realidade local à qual se aplica quanto porque os seus elementos (muitos deles direitos fundamentais) são igualmente evolutivos, admitem vários arranjos possíveis de realização e se encontram em constante colisão. A dinâmica exige, afinal, ponderações constantes na concepção, na execução e na constante revisão da política urbana. A partir dessas considerações, além de diretriz (premissa), o direito à cidade pode ser visto por outro ângulo, na medida em que também corresponde à síntese (resultado) de determinada organização urbanística, que abrange o conjunto de relações jurídicas que os vários sujeitos desenvolvem no meio urbano. A essa organização urbanística vinculam-se direitos de liberdade (relacionados, em particular, às faculdades de dispor da propriedade e desenvolver atividades no meio urbano), direitos sociais e transindividuais, atinentes à configuração do ambiente urbano em sua acepção ampla, e direitos de participação política, que propiciam o envolvimento dos cidadãos na própria definição do que consistirá a ideia de “direito à cidade” em cada localidade. O direito à cidade, concretamente considerado, pode ser considerado como o produto desse conjunto normativo. 5.2. O urbanismo solidarista: a observância de deveres e encargos urbanísticos como pressuposto para a realização do direito à cidade A efetiva realização do direito à cidade não depende apenas das providências relacionadas à consagração da política e do planejamento urbanos. É a execução da política urbana que propiciará a efetiva realização do direito à cidade, a partir da atuação dos vários atores urbanos segundo a organização urbanística estabelecida. A compreensão desse processo passa pela consideração dos direitos e interesses tutelados, tal como já acima referido, mas também e de igual modo pressupõe a consideração dos deveres estabelecidos para possibilitar a realização da política urbana. A reflexão sobre a tutela dos direitos e interesses existentes no âmbito urbano tem-se consolidado ao longo do tempo e é marcada por um discurso tendencialmente voltado à expansão de direitos. Com efeito, grande parte do discurso contemporâneo, notadamente no que se refere aos direitos fundamentais, baseia-se no propósito de universalização e tem como perspectiva a ideia do “quanto mais melhor”, que se traduz na afirmação de que são “boas todas as estratégias que conduzem à máxima efectividade possível” 16 desses direitos. Trata-se do que se tem denominado como inflação de direitos, que, segundo Luis María Bandieri, caracteriza “el plexo de derechos fundamentales como una suerte de masa en expansión, de donde inducir principios que permitan una constante y acumulativa irradiación de aquellos derechos, a partir de un ejercicio de sopesamiento y ponderación”. 17 Por essa perspectiva, em vista de razões históricas e culturais, os direitos (e o discurso subjacente à sua consagração) encontrar-se-iam em constante “expansão horizontal”. O tema é especialmente relevante para os debates sobre o conteúdo do direito à cidade, ante a pluralidade de demandas existentes e a escassez de recursos para concretizá-las. A proclamação da universalização de direitos pressupõe a definição sobre como arcar com os custos pressupostos na realização desses direitos, alocar recursos e partilhar as responsabilidades correspondentes. Trata-se da discussão sobre como estruturar determinada política urbana cuja execução se revele viável em termos práticos. Esse ângulo de exame da questão aponta para um aspecto relevante: a estruturação do direito à cidade envolve não apenas direitos e faculdades, mas se dá também a partir da determinação de deveres fundamentais. Essa afirmação baseia-se em mais de uma razão. Em primeiro lugar, ela decorre da premissa constitucional de que não compete apenas ao Estado atuar em conformidade com a política urbana, pois são atribuídas funções (encargos) também aos próprios cidadãos (art. 182, § 2.º). Em segundo lugar, ela se relaciona com a experiência que demonstra que a centralização de decisões e providências na esfera estatal em regra não superou, por si só, os impasses e as carências estruturais nas cidades. 18 Em terceiro lugar, tem- se que, mesmo se fosse factível tal centralização, essa solução não prescindiria da necessidade de financiar toda a atividade que seria então realizada pelo aparato estatal. Daí se dizer que a concretização do direito à cidade passa não apenas pela estipulação de posições jurídicas ativas, para reivindicação de posturas, ações e prestações estatais, mas envolve também posições jurídicas passivas. Os direitos (como os vários que compõem a noção de direito à cidade) constituem posições jurídicas que não podem “ser dissociadas da correspondente responsabilidade”. 19 A imposição de deveres justifica-se porque não é possível separar de forma absoluta as esferas individual e coletiva no âmbito urbano: para realizar o direito à cidade, é necessário financiá-lo e observar certas condições (inclusive dentro das iniciativas privadas de atuação no ambiente urbano) consentâneas com a política urbana que se dirige ao atendimento do art. 2.º, I, da Lei 10.257/2001. 20 Assim, os ordenamentos urbanísticos em geral – e essa característica está presente no direito brasileiro – tendem a consagrar um “dever de os particularescolaborarem na execução dos planos urbanísticos”. 21 Trata- se de implementar, como via de concretização do direito à cidade, compromisso a ser definido em termos concretos no âmbito municipal, refletindo o objetivo fundamental de construção de uma sociedade solidária previsto no art. 3.º, I, da CF. 22 Enquanto a teoria sobre os direitos dispõe de larga produção (e se encontra, como acima referido, em expansão), a doutrina sobre os deveres é ainda incipiente. Costuma-se classificá-los como autônomos ou conexos a algum direito. 23 A diferença reside na existência de relação direta entre o dever e a conformação de dado direito subjetivo. Os deveres autônomos não apresentam tal relação (i.e., são deveres exigíveis de determinado sujeito independentemente de este dispor de algum direito correspondente), enquanto os deveres conexos “tomam forma a partir do direito fundamental ao qual estão atrelados materialmente”. 24 A diferença fica muito clara no exame de alguns dos deveres urbanísticos instrumentais à realização do direito à cidade. Um primeiro exemplo significativo de dever autônomo, que vincula a sociedade como um todo, mesmo que mediante imposição de encargos individualizados, corresponde ao compromisso de recolhimento de impostos, que opera como via de participação no financiamento do processo de urbanificação, independentemente da configuração de algum direito subjetivo específico a favor do sujeito passivo da relação tributária. Um segundo exemplo poderia ser referido como o dever de participação política, ao menos no tocante à eleição dos representantes políticos. 25 Outro exemplo de dever – que surge conexo ou correlato a um direito – decorre da função social da propriedade. O proprietário, como tal, dispõe de um direito-dever, ou de um direito funcionalizado, que compatibiliza a autonomia privada com a atribuição de destinação adequada à propriedade, dentro dos limites estabelecidos pelo planejamento urbano. Assim determina o art. 182, § 2.º, da Constituição, que relaciona o exercício desse direito ao atendimento das “exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” municipal. Como resta evidente, o atendimento de “exigências fundamentais” estabelecidas na política urbana corresponde ao cumprimento de deveres específicos, derivados (portanto, conexos) do conteúdo concreto de cada propriedade. Do direito de propriedade ainda decorrem deveres específicos de participação no financiamento da atividade de urbanização. Isso se dá quando o proprietário é beneficiado por medidas externas decorrentes da atuação estatal. Assim, por exemplo, a urbanização e a oferta de infraestrutura propiciam e favorecem o uso da propriedade e a valorização imobiliária, na medida em que o Estado se encarrega de proporcionar as condições urbanas necessárias para viabilizar e potencializar o exercício das faculdades atribuídas à propriedade, a partir da disponibilização de sistema viário, de equipamentos comunitários e assim por diante. Conforme aponta Eros Grau, o valor econômico da propriedade do solo urbano pressupõe e decorre de providências, normativas e materiais, assumidas pelo Estado para viabilizar o aproveitamento desse domínio. 26 Para tais casos, as diretrizes da justa distribuição dos benefícios e dos ônus urbanísticos e de recuperação dos investimentos do Poder Público que tenham propiciado a valorização de imóveis urbanos (art. 2.º, IX e XI, da Lei 10.257/2001) determinam a participação de sujeitos privados no financiamento dos investimentos públicos. 27 Essas circunstâncias podem resultar na aplicação de instrumentos como a contribuição de melhoria (novamente, um instrumento tributário) ou a desapropriação por zona. Trata-se de institutos que visam a promover o equilíbrio entre a apropriação individual e coletiva dos benefícios urbanísticos decorrentes da atuação estatal. Daí se origina um dever de financiamento exercido de forma conexa à propriedade, na proporção dos benefícios advindos ao particular. Ocorre que a contribuição dos sujeitos privados ao processo de urbanização não se dá apenas a partir da imposição de deveres. O Estado não determina com exatidão e à exaustão as formas e as opções de atuação dos agentes privados. Apesar de o planejamento urbano ser, em sua essência, impositivo, ele não se confunde com uma perspectiva totalizante do urbanismo, no sentido de impor soluções e esquemas preestabelecidos e invariáveis de conduta. Há situações em que a imposição de deveres é inviável, em razão da observância da autonomia privada. O Estado não está habilitado a dirigir o exercício das faculdades privadas de modo a suprimir a autonomia dos seus titulares. A regulação urbanística não pode chegar a ponto de esvaziar os direitos individuais. Em outros casos, a imposição de deveres pode até ser possível, mas dá lugar à utilização de mecanismos jurídicos diversos, destinados a fomentar a atuação privada de acordo com determinados fins. Assim, o caráter impositivo do planejamento urbano não exclui mecanismos flexíveis de relação entre Poder Público e particulares, por meio dos quais se admite certa autonomia por parte destes para exercer determinadas faculdades admitidas pela ordem urbanística. 28 Nesses casos, a par da fixação de deveres impositivos, pode-se aludir à assunção espontânea, por sujeitos privados, de obrigações de interesse público. Trata-se de encargos que constituem a contraface do exercício de certas faculdades pelos particulares. Não se trata do exercício de encargos mandatórios, como os deveres: em regra, a definição sobre a assunção desses ônus compete aos sujeitos privados, dentro dos espaços de autonomia determinados pelo ordenamento urbanístico. Em consonância com essa compreensão, o Estatuto da Cidade prevê normas que justificam a imposição de deveres cogentes, mas também estabelece um modelo de cooperação entre o Estado e a iniciativa social, por meio do qual esta assume, muitas vezes de forma espontânea, tarefas e encargos de interesse público, tendo como contrapartida a autorização estatal para exercer certas faculdades. Nesse sentido, preveem-se como diretrizes a “cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social” (art. 2.º, III), assim como a “isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social” (art. 2.º, XVI). As diretrizes evidenciam o reconhecimento legislativo da insuficiência da atuação estatal isolada em si para implementar as tarefas de urbanização. No âmbito desse paradigma o particular já não é mais o mero súdito do Estado-polícia, nem o cidadão socialmente descomprometido do Estado liberal, assim como tampouco é mais um simples usuário dos serviços do Estado social: “Ele assume ou é convocado a assumir um novo papel de actor que partilha com o Estado a missão de realizar o interesse público”. 29 Vários institutos previstos no Estatuto da Cidade refletem a lógica de cooperação público-privada, envolvendo interações relacionadas à assunção de encargos urbanísticos. A outorga onerosa e a transferência do direito de construir, bem como o consórcio imobiliário, são alguns exemplos de institutos manejados por iniciativa de sujeitos privados, em consenso com o Poder Público e dentro dos limites por este estabelecidos. Mas o exemplo mais completo e significativo de disciplina da participação socialna execução da política urbana está previsto no art. 32 da Lei 10.257/2001. Trata-se da operação urbana consorciada. Nos termos do dispositivo legal, tal instituto consiste em um “conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental”. Para viabilizar a consecução desses fins, a lei específica que aprova o desenvolvimento da operação urbana consorciada promove a flexibilização do planejamento urbano vigente para a área específica abrangida pela operação, de modo a admitir e estimular arranjos consensuais com sujeitos interessados em participar da operação. A flexibilização concretiza-se em três hipóteses gerais, identificadas no art. 32, § 2.º, do Estatuto da Cidade. Pela primeira via, prevê-se que o Estado e o sujeito privado podem acordar a modificação de índices e características de parcelamento, uso e ocupação do solo e subsolo, bem como alterações das normas edilícias, considerados o impacto ambiental delas decorrente (art. 32, § 2.º, I) e os limites previstos na lei (art. 34, § 2.º). Pela segunda via, admite-se a regularização de construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo com a legislação vigente (art. 32, § 2.º, II). A terceira hipótese envolve a atribuição de incentivos a particulares que desenvolvam iniciativas pautadas por exigências previamente estabelecidas pelo Poder Público para a área que é objeto da operação: trata-se de projetos que comprovem a utilização de tecnologias que impliquem a redução de impactos ambientais e a economia de recursos naturais (art. 32, § 2.º, III, da Lei 10.257/2001). Produz-se, portanto, disciplina que admite espaços de consenso para determinação do estatuto jurídico das propriedades envolvidas na região em que se promove a intervenção urbanística. As diversas formas de flexibilização da disciplina vigente podem ser aproveitadas por moradores, proprietários ou investidores privados em geral. Pressupõem, da mesma forma que os demais institutos analisados neste tópico, disposição de contrapartidas a favor do Poder Público, a serem definidas pela lei e destinadas à própria operação (art. 33, VI e § 1.º). Essas contrapartidas podem constituir a paga de valores pecuniários, a disponibilização de áreas cujo valor seja equivalente ao direito de construir adquirido pelo particular, ou até mesmo a construção de equipamentos públicos pelo particular interessado na operação. Por meio dessa sistemática, o sujeito privado assume livremente deveres que têm em determinado ato estatal a contrapartida por ele pretendida. 30 Em todos os casos, a assunção desses deveres destina-se à realização de encargos de interesse público determinados pelo Estado e que integram o processo de concretização do direito à cidade em seus múltiplos aspectos. A cooperação propicia a contribuição dos particulares no desenvolvimento urbanístico não apenas pelas vias tributárias ou pelo cumprimento da função social da propriedade, ou, ainda, no âmbito político e no controle das atividades desempenhadas, mas também pela realização direta e em nome próprio de tarefas de interesse público. 6. Considerações finais A partir das reflexões postas, primeiramente é possível afirmar que o conceito de direito à cidade sustentável apresenta conteúdo flexível. Tal como se propôs, a noção pode ser enquadrada ao mesmo tempo como diretriz e como produto de uma determinada organização (ordem) urbanística. Esta, por sua vez, é variável conforme a realidade local que se analise. Portanto, notadamente a partir deste último prisma pode-se afirmar que o conteúdo do direito à cidade é variável, dinâmico e evolutivo. Em segundo lugar, conclui-se que a concepção e a concretização do direito à cidade não constituem tarefas exclusivamente estatais. O direito à cidade não se resume a uma situação em que à sociedade é dado “exigir” prestações estatais. Antes, o seu processo de concepção é aberto às iniciativas sociais e pressupõe a definição do envolvimento da sociedade na configuração da realidade urbana. Isso significa que tanto a concepção quanto a efetivação do direito à cidade dependem da realização de esforços conjuntos entre Estado e sociedade, o que envolve a consagração de direitos, mas também ora a imposição de deveres, ora a estipulação de mecanismos aptos a estimular a assunção de tarefas de interesse público por parte dos sujeitos privados. Enfim, quando se indaga sobre o direito à cidade sustentável, não se tem uma resposta unívoca: referido conceito representa o desafio de compor e executar, em cada caso e momento histórico, um esquema de distribuição equilibrada de direitos e de deveres no âmbito urbano. 7. Referências bibliográficas BANDIERI, Luis María. Derechos fundamentales ¿Y deberes fundamentales? In: LEITE, George Salomão et al. (coord.). Direitos, deveres e garantias fundamentais. Salvador: JusPodivm, 2011. COMPARATO, Fábio Konder. Para viver a democracia. São Paulo: Brasiliense, 1989. CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo. 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