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Hume - Da superstição e do entusiasmo

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Da Superstição e do Entusiasmo 
Que a corrupção do melhor gera o pior tornou-se uma máxima comumente 
demonstrada, entre outros exemplos, pelos efeitos perniciosos da superstição e do 
entusiasmo, as corrupções da religião verdadeira. 
Estas duas espécies de falsa religião, apesar de serem ambas perniciosas, são bastante 
distintas e mesmo de natureza contrária. A mente humana está sujeita a certos temores e 
apreensões inumeráveis, procedentes ou de uma situação infeliz em assuntos públicos e 
privados, ou de problemas de saúde, ou de uma disposição sombria e melancólica, ou do 
concurso de todas essas circunstâncias. Em tal estado de espírito a mente é tomada por 
uma infinidade de males e temores desconhecidos, derivados de agentes desconhecidos. 
Quando os objetos reais de temor são escassos, a alma, ativa em prejuízo próprio e 
alimentando sua inclinação predominante, cria objetos imaginários, para cujo poder e 
malevolência não encontra limites. Como estes inimigos são inteiramente invisíveis e 
desconhecidos, os métodos empregados para apaziguá-los são igualmente 
incompreensíveis e consistem em cerimônias, observâncias, mortificações, sacrifícios, 
presentes, ou em qualquer prática, ainda que absurda ou frívola, em que o desatino ou a 
malícia recomenda uma credulidade cega e amedrontada. A fraqueza, o medo, a 
melancolia, juntamente com a ignorância, são, pois, as verdadeiras fontes da 
superstição. 
Mas a mente humana sujeita-se também a uma incompreensível exaltação e presunção, 
oriunda da prosperidade, da saúde luxuriante, de espíritos fortes, ou de uma disposição 
ousada e confiante. Neste estado de espírito, a imaginação se inflama com concepções 
grandiosas, mas confusas, às quais nenhuma beleza sublunar ou alegrias podem 
corresponder. Tudo que é mortal e perecível desaparece, como pouco digno de atenção. 
Segue-se uma série completa de fantasias de regiões invisíveis ou do mundo dos 
espíritos, onde a alma é livre para satisfazer-se com tudo que imagina, e que possa 
melhor se adequar ao gosto e à disposição atual. Assim, eleva-se em êxtase, transportes 
e vôos surpreendentes de fantasia. A confiança e a presunção aumentam estes 
arrebatamentos incompreensíveis, que parecem estar além do alcance de nossas 
faculdades ordinárias e são atribuídos à inspiração imediata do Ser Divino, objeto de 
devoção. Em pouco tempo, a pessoa inspirada chega a considerar-se um favorito ilustre 
da Divindade e, quando tomada por este frenesi, o ápice do entusiasmo, todo capricho é 
consagrado: a razão humana, e mesmo a moralidade, são rejeitadas como guias 
falaciosos. A loucura fanática se entrega, cegamente e sem reserva, ao suposto 
arrebatamento do espírito e à inspiração derivada do mundo superior. A esperança, o 
orgulho, a presunção, uma calorosa imaginação, juntamente com a ignorância, são, 
portanto, as verdadeiras fontes do entusiasmo. 
Estas duas espécies de falsa religião podem dar ensejo a muitas especulações, mas eu 
devo me restringir, no momento, a poucas reflexões concernentes à sua influência 
distinta no governo e na sociedade. 
Minha primeira reflexão é que a superstição é favorável ao poder sacerdotal, e o 
entusiasmo não é menos contrário a ele, ou melhor, mais contrário que a boa razão e a 
filosofia. Como a superstição se assenta no medo, no sofrimento e em um abatimento do 
espírito, ela representa o homem para si mesmo em cores tão desprezíveis que ele se 
julga indigno da presença divina, e naturalmente tem de recorrer a alguma outra pessoa, 
cuja santidade ou vida, ou talvez imprudência e astúcia, o tornaram supostamente mais 
favorecido pela Divindade. A ele se dirigem as devoções das superstições: a seu cuidado 
recomendam-se orações, petições e sacrifícios. Por seu intermédio, têm-se esperança de 
oferecer súplicas aceitáveis às divindades honradas com incenso. Eis a origem dos 
Sacerdotes,[1] a quem se pode com justiça granjear a invenção de uma superstição 
medrosa e abjeta que, mesmo envergonhada de si mesma, não ousa oferecer suas 
próprias devoções, mas de forma ignorante pensa em recomendar a si mesma ao Divino, 
pela mediação de seus supostos amigos e servos. Como a superstição é um ingrediente 
considerável em quase todas as religiões, mesmo as mais fanáticas, não havendo nada 
exceto a filosofia que seja inteiramente capaz de vencer estes incontáveis temores, 
segue-se que em quase toda seita religiosa pode-se encontrar sacerdotes. Quanto mais 
forte for a mistura de superstição, mais alta é a autoridade sacerdotal.[2] 
Por outro lado, observa-se que os entusiastas têm sido livres de jugo de eclesiásticos, 
manifestando grande independência em sua devoção, com o desprezo pela formalidade, 
pelas cerimônias e pelas tradições. Os quakers são os mais notáveis. Em contrapartida, 
são também os mais inocentes entusiastas de que já se ouviu falar e, talvez, os 
representantes da única seita que nunca admitiu sacerdotes em seu meio. Os 
independentes, entre todas as seitas inglesas, se aproximam dos quakers em fanatismo e 
em sua independência da opressão sacerdotal. Os presbiterianos vêm logo em seguida, 
em igual distância em ambos os casos. Esta observação deriva da experiência, mas 
parecerá ser fundada na razão se considerarmos que, à medida que os entusiastas 
surgem de uma presunção orgulhosa e confiante, julgam-se suficientemente qualificados 
para se aproximarem do Divino, sem qualquer mediador humano. Suas devoções 
arrebatadoras são tão fervorosas que chegam a imaginar-se próximos ao Divino pela via 
da contemplação e do diálogo interior, o que os leva a negligenciar as cerimônias e 
observâncias externas, às quais a assistência de sacerdotes parece tão necessária aos 
olhos de seus devotos supersticiosos. O fanático consagra a si mesmo e se outorga um 
caráter sagrado, muito superior àqueles que as instituições formais e cerimoniais podem 
conferir a qualquer outro. 
Minha segunda reflexão com relação a estas espécies de falsa religião é que as religiões 
que partilham do entusiasmo são, em um primeiro momento, mais furiosas e violentas 
que aquelas que partilham de superstições; mas em pouco tempo se tornam mais gentis 
e moderadas. A violência desta espécie de religião, quando excitada pela novidade e 
animada pela oposição, prova-se com incontáveis exemplos: os anabatistas da 
Alemanha, os camisars da França, os levellers e outros fanáticos na Inglaterra e os 
covenanters na Escócia. Apoiando-se o entusiasmo em disposições ferrenhas e em um 
presunçoso atrevimento de caráter, ele promove naturalmente as resoluções mais 
extremadas, especialmente depois de se elevar àquela altura, a fim de inspirar o fanático 
iludido com a convicção de ser iluminado pelo Divino e com o desprezo pelas regras 
comuns da razão, da moralidade e da prudência. 
É assim que o entusiasmo produz as mais cruéis desordens na sociedade humana; mas 
sua fúria é semelhante à do trovão e da tempestade, que se esgotam em pouco tempo, e 
deixam o ar mais calmo e puro que antes. Quando o primeiro fogo do entusiasmo 
arrefece, os homens, em todas as seitas fanáticas, entregam-se à indolência e indiferença 
em assuntos sagrados. Não há um grupo entre eles que seja dotado de suficiente 
autoridade e cujo interesse esteja voltado para o apoio ao espírito religioso. Não há 
rituais, cerimônias ou observâncias sagradas que possam ser inseridos na trilha da vida 
comum, a fim de serem preservados do esquecimento. A superstição, pelo contrário, 
infiltra-se gradual e insensivelmente, fazendo com que os homens se tornem dóceis e 
submissos. A princípio, parece aceitável aos magistrados e inofensiva ao povo, até que 
finalmente o sacerdote, tendo estabelecido firmemente sua autoridade, se torne um 
tirano e perturbador da sociedade humana, por suas contendas sem fim, perseguições e 
guerras religiosas. Foi com suavidade que a igreja Romish avançou na aquisição de 
poder?Em que funestas convulsões ela lançou toda a Europa, a fim de mantê-lo? Por 
outro lado, nossos sectários, que haviam sido antes fanáticos perigosos, agora se 
tornaram livres pensadores, e os quakers parecem ter-se aproximado do único grupo 
regular de deístas do universo, os literati, ou discípulos de Confúcio na China.[3] 
Minha terceira observação sobre este assunto é que a superstição é um inimigo da 
liberdade civil, e o entusiasmo é seu amigo. Porque a superstição ruge sob o domínio 
dos sacerdotes e o entusiasmo destrói o poder eclesiástico, isto já é suficiente para 
justificar a presente observação. Para não mencionar que o entusiasmo, enfermidade de 
temperamentos ambiciosos e ousados, é naturalmente acompanhado de um espírito de 
liberdade, enquanto a superstição, ao contrário, torna os homens dóceis e abjetos, e os 
habilita à servidão. A história da Inglaterra nos ensina que, durante as guerras civis, os 
independentes e os deístas, apesar de grandes opositores em seus princípios religiosos, 
aproximavam-se em seus princípios políticos, e eram ambos apaixonados pelo bem 
comum. Desde a origem dos whig e tory, os líderes dos whigs têm sido deístas ou 
tolerantes professos em seus princípios; isto é, amigos da tolerância, e indiferentes a 
qualquer seita particular de cristãos. Por outro lado, os sectários, todos com uma forte 
tintura de entusiasmo, têm sempre, sem exceção, concorrido por aquele partido, em 
defesa da liberdade civil. Uma semelhança em suas superstições há muito tempo vem 
unindo o alto clero dos tories e os católicos romanos, em apoio de prerrogativas e poder 
real, embora a experiência do espírito tolerante dos whigs pareça ter tardiamente 
reconciliado os católicos com aquele partido. 
Os molinistas e os jansenistas na França participam de mil disputas ininteligíveis, que 
não valem a reflexão de um homem de senso: mas o que principalmente distingue estas 
duas seitas e merece atenção por si só, é o espírito único desta religião. Os 
molinistas,conduzidos pelos jesuítas,são grandes amigos da superstição, observadores 
rígidos de formalidades e cerimônias e devotos à autoridade dos sacerdotes e à tradição. 
Os jansenistas são entusiastas e promotores zelosos da devoção apaixonada e da vida 
interior, tendo sido pouco influenciados pela autoridade. Numa palavra, meio católicos. 
As conseqüências são exatamente conformáveis ao raciocínio precedente. Os jesuítas 
são os tiranos dos povos, e os escravos da corte: e os jansenistas preservam vivas 
pequenas centelhas do amor à liberdade, que se encontra na nação francesa. 
 
Tradução para português do Brasil de Eliana Curado 
Universidade Católica de Goiás, Brasil. 
Professora de Filosofia Antiga, Filosofia da Arte e Lógica. 
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás. 
 
[1] Por Sacerdotes, eu me refiro aqui somente àqueles que fingem poder e domínio, e 
santidade superior de caráter, distintos da virtude e da boa moral. Estes são muito 
diferentes dos clérigos, que são destinados por lei ao cuidado de questões sagradas e à 
condução de nossas devoções públicas com decência e ordem. Não há homens mais 
respeitáveis que os últimos. 
[2] O judaísmo moderno e o papado (especialmente o último), as mais absurdas e não-
filosóficas superstições que já se conheceu no mundo, são os mais escravizados por seus 
sacerdotes. Enquanto pode-se dizer com justiça que a igreja da Inglaterra conserva 
alguma mistura de superstição papista, ela partilha também, em sua constituição 
original, de uma propensão ao poder e ao domínio sacerdotal, particularmente no que 
diz respeito à exata personagem sacerdotal. Apesar disso, de acordo com os sentimentos 
desta igreja, as orações do sacerdote devem ser acompanhadas com as da laicidade; 
ainda assim ele é a voz da congregação. Sua pessoa é sagrada e sem sua presença 
poucos pensariam em devoções públicas, ou em sacramentos e em outros rituais que 
sejam aceitáveis para a divindade. 
[3] Os Literati Chineses não têm sacerdotes ou instituição eclesiástica. 
 
David Hume, Ensaios Morais e Políticos, 1741

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