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Celina-Marcia-de-Souza-Abbade_2003

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ANAIS DA XX JORNADA – GELNE – JOÃO PESSOA-PB 
 
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OS CAMPOS LEXICAIS DO 
 LIVRO DE COZINHA DA INFANTA D. MARIA 
 
 
Celina Márcia de Souza Abbade* 
 
 
 
 A tese em doutoramento, defendida em novembro de 2003 na Universidade Federal da 
Bahia sob a orientação da Profª. Drª. Célia Marques Telles, visa um estudo do vocabulário 
quinhentista relativo à cozinha a partir do levantamento de seiscentas e quarenta e sete lexias 
e estruturação das mesmas em campos lexicais, encontradas no primeiro livro de cozinha 
portuguesa conhecido até o momento: o Manuscrito I-E 33 da Biblioteca Nacional de 
Nápoles, através da edição crítica mais completa: O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria 
de Portugal (G. MANUPPELLA, 1967). Um códice, que apesar dos problemas paleográficos 
e cronológicos que levanta, é valioso, contribuindo não só para o vocabulário histórico da 
língua portuguesa, como também mostrando um lado importante da vida social que é a arte de 
cozinhar e bem comer, numa época da história portuguesa de que muito pouco se conhece e 
cujo mais antigo documento impresso de receitas culinárias, não é anterior a 1680, que é A 
Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues(RODRIGUES, 1987). 
A tese traz uma análise das lexias existentes nessas receitas, observando seus conceitos 
à época, a etimologia das mesmas, assim como a utilização dessas lexias naquele período. 
O léxico de cozinha levantado no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, é dividido em 
campos lexicais, tomando como base teórica para tal proposta, os estudos realizados e 
propostos por Stephen Ullmann e, principalmente a teoria dos campos lexicais proposta por 
Eugenio Coseriu. Essa teoria propõe uma análise estrutural do vocabulário, determinando o 
campo lexical dentro de estruturas lexemáticas no qual os lexemas integram um sistema de 
oposições. 
Nessa perspectiva, o campo lexical seria um paradigma lexical, surgido a partir da 
subdivisão de um conteúdo léxico entre unidades diversas que têm oposição entre si em 
função de traços simples de distinção de conteúdo. 
 Partindo-se desse princípio, faz-se a estruturação dos campos lexicais propostos. É 
evidente que a análise de um vocabulário articulado em campos lexicais, difere daquele 
classificado em campos semânticos. 
Metodologicamente, o estudo desenvolvido, percorreu as seguintes etapas: 
• Levantamento dos campos lexicais, a partir do fichamento das lexias das sessenta e 
uma receitas do Livro de cozinha; 
• Consulta a alguns dicionários sincrônicos de língua portuguesa, estendida aos 
dicionários etimológicos; 
• Separação das lexias em campos lexicais; 
• Organização do corpus em macrocampos: manjares, processos e métodos, utensílios, 
ingredientes, unidades de peso e medida, qualificadores; 
• Divisão desses macrocampos em seus respectivos microcampos; 
• Classificação gramatical da lexia seguida do conceito; 
• Ao final, fornecimento de um Índice das lexias, dispostas em ordem alfabética, 
registrando-se todas as formas utilizadas, com remissão para o texto da tese. 
Na organização das entradas lexicais, registram-se as lexias na grafia moderna apenas 
quando esta for documentada no texto de base, caso contrário, faz-se opção pela forma gráfica 
mais freqüente no texto. As entradas lexicais são organizadas em seus respectivos 
 
* Profª. Drª. UNEB- Universidade do Estado da Bahia/ UCSAL- Universidade Católica do Salvador. 
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macrocampos e microcampos, seguindo, na medida do possível uma hierarquia alimentar, 
partindo-se sempre das lexias mais genéricas para as mais específicas. Colocam-se entre 
colchetes as formas não documentadas no texto (no masculino para os adjetivos e no 
infinitivo para os verbos). A seguir, vem a classificação gramatical e, por fim, o conceito. A 
etimologia e a datação são indicadas em notas de rodapé. Os exemplos são citados na ordem 
em que aparecem no texto de base, seguindo-se, entre parênteses, o número da receita (em 
algarismos romanos) e a página e as linhas (em algarismos arábicos), do exemplo na edição 
de G. Manuppella. 
A tese foi organizada em quatro capítulos, precedidos da Introdução e seguida das 
Considerações Finais e das Referências Bibliográficas. 
1. LIVRO DE COZINHA E A ALIMENTAÇÃO MEDIEVAL 
2. ESTRUTURAÇÃO DOS CAMPOS LEXICAIS: O ESTUDO FUNCIONAL DO 
LÉXICO 
3. OS CAMPOS LEXICAIS DO VOCABULÁRIO DE COZINHA 
4. OS CAMPOS LEXICAIS DO LIVRO DE COZINHA DA INFANTA D. MARIA 
 
 O primeiro capítulo, O LIVRO DE COZINHA E A ALIMENTAÇÃO MEDIEVAL, 
trata de dois aspectos: 
1. O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria e a edição crítica de Giacinto Manuppella e 
Salvador Dias Arnaut. 
2. Algumas observações de caráter histórico e social sobre o léxico de cozinha, 
oferecendo-se uma abordagem histórica dos campos lexicais selecionados, unindo-se dessa 
forma, a língua e a história do povo que a fala. 
 
 
I- O LIVRO DE COZINHA E A ALIMENTAÇÃO MEDIEVAL 
 
O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria teria pertencido a uma infanta portuguesa de 
cultura notável: a infanta D. Maria de Portugal, filha de D. Duarte, duque de Guimarães, neta 
do rei D. Manuel e sobrinha de D. João III. Foi uma moça letrada e culta, tendo 
conhecimentos de grego e latim, que, ao casar-se com Alexandre Farnésio (duque de Parma, 
Placêncio e Castro), viaja em 1565 para morar em Parma. O manuscrito que teria sido levado 
para a Itália pela infanta, faz parte de um grupo de cinco tomos de origem farnesiana. Consta 
de setenta e três fólios dos quais quarenta e um foram aproveitados pelos copistas, ficando 
brancas as folhas sem identificação. Os fólios compõem quatro cadernos com sessenta e uma 
receitas: Caderno dos Magares de Carne, Caderno dos Mamgares de Ovoos; Caderno dos 
Mamgares de leyte; Caderno das Cousas de Comseruas. Provavelmente esses cadernos 
tiveram origem independente, sendo mais tarde reunidos e encadernados em um só volume. 
Além desses quatro cadernos, encontram-se seis receitas avulsas de utilidades caseiras. Essas 
receitas são colocadas anteriormente ao primeiro caderno (três receitas) e posteriormente ao 
quarto caderno (três receitas). 
 Em 1967, Giacinto Manuppella e Salvador Dias Arnaut, publicaram em Portugal a 
edição crítica do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria (ARNAUT, MANUPPELLA, 1967). 
Essa edição seria a mais completa e a quarta realizada até então. São editadas as sessenta e 
sete receitas distribuídas nos quatro cadernos e mais as seis receitas avulsas: as receitas de 
número 1 à 3 (Este he o modo q) se tem pera enguordar framguoos, Pera se fazer sesemta 
varas de veludo de pello miudo, vynho dacuquar q) se bebe no brasyl q e muito saõ e pera o 
figado e marauylhoso) e as de número 65 à 67 (Receita de dom luis de moura pera os demtes, 
Reçeita pera squinecia, Reçeita pera ffogo ou escaldamento) que não integram os quatro 
cadernos em que se divide o livro; são receitas diversas de uso doméstico e por isso não foram 
incluídas no presente estudo. 
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1.1. Considerações sobre o léxico de cozinha 
 
 As classes dominantes, com seus modelos alimentares, deixam na Idade Média, através 
de receitas culinárias, sua perfeita expressão gastronômica. Esse novo gênero, surgido na 
Europa entre os séculos XIII e XIV, eram destinados aos cozinheiros das côrtes ou às famílias 
ricas urbanas. 
 O contraste e a dosagem, sabiamente elaborados, conferiam à cozinha medieval sabor 
forte e picante, sendo notório o sabor agridoce, através das misturas e modos de preparar os 
seus ingredientes. De modo geral, todo tempero e cozimento exerciam uma dupla função: 
tornar os alimentos mais apetitosos e mais fáceis de serem ingeridos. 
 O contraste social foi nitidamente traçado a partir desse receituários culinários poiscomer bem era para bem poucos privilegiados da época, o que não difere muito da sociedade 
atual. 
 Denomina-se alimento ou manjar toda substância que possa ser ingerida por um ser 
vivo e seja capaz de nutri-lo. Ingrediente é aquilo que entra no preparo dos alimentos. Para 
fazer uso desses ingredientes, é necessário utilizar-se de peso ou medida para dosagem dos 
mesmos. Após serem pesados ou medidos, são necessárias determinados processos e métodos 
‘atuações, atos, feitos’, para a execução de tais misturas na busca da feitura da receita. Tudo 
isso levará a sabores, cheiros, consistência, cores, ou melhor qualidades que são identificadas 
com os qualificadores. Juntando tudo isso, chegam-se aos manjares, finalidade das receitas. 
Tentou-se, assim, organizar as seiscentas e quarenta e sete lexias levantadas nas sessenta e 
uma receitas do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria. Essas lexias estão distribuídas em 
campos lexicais, e cada um desses macrocampos subdivide-se em campos menores, os 
microcampos, provando-se que é possível e lógico fazer-se uma estruturação lexical da 
culinária quinhentista portuguesa com base em um dos livros de cozinha existentes à época. 
 Fica difícil, ou melhor, impossível falar do léxico de uma língua sem enveredar pela 
história de seu povo. Por isso, antes de iniciar o trabalho de levantamento lexical 
propriamente dito, faz-se aqui uma abordagem da sociedade medieval portuguesa no período 
em que viveu a Infanta D. Maria de Portugal e foram preparadas tais receitas. 
 A alimentação de um povo diz muito mais do que se imagina a respeito do mesmo. O 
permitido, o proibido, o que faz bem, o que faz mal, todos esses fatores gastronômicos estão 
ligados à cultura e sociedade de cada povo. Saber qual o alimento certo ou errado, nutritivo ou 
não, vai depender muito da época em que se encontre, da sociedade em que se esteja, da 
cultura a que o povo pertença e dos hábitos alimentares aprendidos na comunidade de cada 
um. 
 A alimentação medieval, assegurava a sobrevivência das pessoas pelo consumo de 
vinho, pão e todas as outras coisas que se comiam com o pão. Portanto, pão e vinho (tão 
importantes na cultura cristã) alimentavam o homem medieval. O pão, vai distinguir também 
as classes sociais da época, pois a farinha utilizada no seu preparo ia depender da condição 
econômica de cada um, havendo assim uma relação entre o consumo do pão e a relação 
social: quanto mais baixa fosse a posição social de uma pessoa, maior seria a percentagem de 
sua renda para o consumo do pão. 
 Mas a relação prato / nível social, não era definida apenas pelo consumo do pão. Outros 
alimentos também fizeram parte dessa distinção. 
 As carnes também eram consumidas distintamente: as “boas” eram para as classes 
elevadas e as de “pior qualidade” bastavam para satisfazer a população mais modesta da 
sociedade. 
 Essas distinções alimentares, tão evidentes nesse período, eram tão fortes a ponto de se 
acreditar àquele tempo que os alimentos superiores (aves, carnes delicadas), davam 
inteligência e maior sensibilidade às pessoas do que àquelas que se alimentavam de boi e de 
porco, definindo assim os alimentos em nobres e vulgares. 
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 Na alimentação medieval, a caça, a pesca e a criação selvagem, eram grandes fontes de 
alimentação. Os alimentos vegetais (cereais e legumes) desempenhavam papel secundário. De 
qualquer sorte, no regime alimentar desse período, predominava o modelo misto onde cereais 
e legumes coexistiam com a carne e o peixe. Sobrevivência ou prazer evidenciavam a 
discriminação social da época. 
 E nesse conjunto de manjares com seus processos e métodos de preparo, ingredientes, 
utensílios, pesos e medidas e qualificadores, os alimentos são elaborados das mais diversas 
maneiras, acrescentando-se aqui e ali, um ingrediente novo, uma quantidade diferente, um 
modo de cozer especial, além é claro, da mão de todo preparador do alimento, que não foi 
citado aqui, mas que, sem a mesma, nada disso teria sentido. 
 O segundo capítulo, ESTRUTURAÇÃO DOS CAMPOS LEXICAIS: O ESTUDO 
FUNCIONAL DO LÉXICO, traz a fundamentação teórica da tese, mostrando a possibilidade 
de um estudo diacrônico estrutural do léxico, através da teoria dos campos lexicais proposta 
por Eugenio Coseriu. A partir desse estudo teórico, mostra-se como se fez a estruturação dos 
campos lexicais do vocabulário de cozinha. Assim, apresenta-se a estruturação dos 
macrocampos lexicais e os seus microcampos. 
 Eugenio Coseriu nos mostra que é possível um estudo diacrônico estrutural das 
significações das palavras, desde que se entenda a forma ou substância semântica como 
substância lingüísticamente formada. Ele deixa isso muito claro em Para una semántica 
diacrónica estructural (COSERIU, 1967), através de exemplos latinos e de línguas 
românicas, onde Coseriu vem mostrar a necessidade e a possibilidade de um estudo 
diacrônico estrutural da significação das palavras. Para um estudo estrutural, é necessário 
analisar a língua funcional, entendida como língua enquanto sistema, ou seja, uma língua até 
certo ponto unitária dentro de uma língua histórica e não aquilo que se refere a uma língua 
histórica tomada em seu conjunto que geralmente compreende uma série de línguas 
funcionais que às vezes são bastante diferentes. As unidades funcionais de uma língua devem 
estabelecer-se ali onde funcionaram, e mediante as oposições em que funcionam. 
Sendo o léxico o domínio menos estruturado de uma língua, estabelecer estruturas 
básicas, tal como se faz na Gramática, não é tarefa fácil, mas também não é impossível. É 
muito difícil fazer-se uma descrição coerente do conjunto do léxico, na medida em que se 
considera o mesmo como um sistema. Pode haver limites nos sistemas fonológicos ou 
gramaticais. Mas estabelecer um sistema lexical, devido ao seu caráter empírico, é algo que 
pode parecer sempre impreciso e inconcluso. Mas, se não se pode estabelecer todo o léxico de 
uma língua, pode-se começar modestamente por estabelecer sistemas parciais que poderão ser 
organizados posteriormente em outros sistemas mais complexos. 
 Essa estruturação de sistema não pode ser arbitrária. Não faria sentido querer organizar 
elementos de sistemas diferentes em um sistema mais amplo. Assim, oposições do tipo arroz 
e cadeira tornam-se impossível pois não existe qualquer sentido lógico para essas lexias 
serem organizadas em um único sistema. Porém arroz, açucar, leite, ovos estariam unidos em 
um campo único que poderia ser o campo dos alimentos ou o dos ingredientes, por exemplo. 
 Se as unidades funcionais do léxico podem ser analisadas e organizadas em campos ou 
sistemas distintivos, pode-se falar então em estruturas lexicais. 
 Essa proposta para uma análise estrutural do léxico, tem como maior dificuldade o 
grande número de unidades léxicas comparadas aos números limitados de unidades tanto na 
Fonologia, quanto na Gramática, porém, como E. Coseriu explica, essa enorme extensão do 
vocabulário não chega a ser um problema, mas uma dificuldade prática que, baseado em uma 
série de distinções, propõe e recomenda uma redução do material a ser analisado. 
 Assim, o presente estudo, por exemplo, visa a uma estruturação do léxico da cozinha 
portuguesa quinhentista, não tentando abarcar todo o vocabulário da culinária quinhentista 
encontrado até então em inúmeros livros e documentos. Com o material reduzido, é 
totalmente possível se fazer um estudo desse tipo. 
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 Enfim, é muito difícil apresentar uma teoria concisa sobre a estruturação dos campos 
lexicais, uma vez que existem problemas difíceis de se resolver ou até mesmo sem solução. 
Mas o estudo histórico de uma língua necessita de lingüistas interessados na estruturação do 
seu léxico. 
 No terceiro capítulo, OS CAMPOSLEXICAIS DO VOCABULÁRIO DE COZINHA, faz 
a argumentação a propósito da teoria dos campos lexicais. Mostra-se a estruturação desses 
campos em macrocampos e microcampos, mostrando-se, então, a proposta de organização 
dessas lexias. Ainda neste capítulo, abordam-se, brevemente, algumas relações de sentido 
encontradas dentro dos campos analisados. 
Fundamentado na teoria dos campos lexicais proposta por Eugenio Coseriu, faz-se a 
classificação dos campos lexicais existentes no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria. O 
Quadro 1 oferece uma idéia da organização dos macrocampos estruturados na tese. As 
seiscentas e quarenta e sete lexias levantadas, são estruturadas em seis macrocampos, e, cada 
um desses macrocampos, se divide em microcampos mais específicos. 
 
CAMPO 
LEXICAL 
EXEMPLOS TOTAL 
MANJARES Biscoutos, bolo, carmelo, morcela, pilouro, 
manjar.... 
87 
PROCESSOS E 
MÉTODOS 
cobrjr, coar, clarificar, assar, 
alimpar, ajuntar, afogar, abafar... 
210 
UTENSÍLIOS tacho, prato, alfinete, sertã, algujdar, tauoleyro, 
fogareiro, tauoa ... 
72 
INGREDIENTES Acuquar, arroz, farinha, galinha, 
 Laranja, noz, porco, trigo ... 
137 
UNIDADES DE 
PESO E MEDIDA 
arratel, duzia, omça, arroba, 
canada, palmo ... 
68 
QUALIFICADORES Atochado, brando, bom, rroy, 
 igual, dereyto, fermoso, folgado ... 
73 
 647 
Quadro 1 – Macrocampos lexicais do Livro de cozinha 
 
 
 
O MACROCAMPO DOS MANJARES 
 
 A designação genérica para ‘alimento preparado’ é manjar, forma lexical utilizada para 
intitular três dos cadernos do livro de receitas. Daí, ter-se escolhido para a estruturação dos 
campos lexicais da culinária quinhentista, começar-se pelo macrocampo dos manjares que se 
divide em cinco microcampos: genérico, carnes, leite, ovos, conservas. Esse macrocampo foi, 
assim, estruturado seguindo a lógica de preparação dos alimentos, ou seja, os alimentos que 
são feitos com carne integram o microcampo das carnes, e assim sucessivamente. Esse 
critério partiu da própria divisão dos cadernos do Livro de cozinha da Infanta D. Maria2: 
manjares de carne, manjares de ovos, manjares de leite e cousas de conserva. Assim, tem-se 
a respectiva estrutura para as oitenta e sete lexias que integram o macrocampo dos manjares. 
Exemplo: 
 
2 Ressalte-se que a receita XVI Receyta dos canudos dos ovos meixidos, transcrita pelo copista no Cadernno dos 
magares de carnne, integra, na verdade, o microcampo dos manjares de ovos. Por outro lado, a receita de 
Mamjar bramquo (XXIV) – feito de galinha – integra o Caderno dos mamgares de leyte, acha-se classificado, 
entretanto, no microcampo dos manjares de carne. 
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Desfeito3 ‘Iguaria feita de bacalhau, galinha, carneiro etc desfiados previamente e 
acrescido de outros condimentos.’ 
(nome da receita “Receita do desfeito da galinha”, r. XIX, p.34, L.1) 
 
 
O MACROCAMPO DOS PROCESSOS E MÉTODOS 
 
No vocabulário de cozinha, entende-se processos e métodos como as maneiras de fazer 
as receitas realizando ações que geram mudanças de estado nos ingredientes até se chegar à 
confecção das iguarias propostas. 
O macrocampo dos processos e métodos é composto de duzentos e dez lexias que estão 
estruturadas nos seguintes microcampos lexicais: 
• Generalidades: quando indicam os resultados das ações praticadas. São as ações mais 
genéricas, que levam a determinados resultados. 
• Processo: quando implicam procedimentos, sucessões de estado ou mudanças; 
• Método: quando demonstram a maneira de agir durante o processo de preparação dos 
alimentos; 
• Movimento: quando indicam movimento, deslocamento em relação aos ingredientes que 
estão sendo utilizados na preparação das receitas; 
• Mudança de estado: quando indicam a ‘metamorfose’ dos ingredientes, na modificação do 
seu estado na elaboração das receitas. 
Exemplo: 
Candilar4- Ação de cobrir o alimento com açúcar cande, ou seja, cristalizado em 
calda. 
...E amde se)pre cuberta da cõserua que 
nã seja grosa q ) candille ne) delgada 
q) e)cruem...(r. XLI, p.90, L. 59-60) 
 
 
O MACROCAMPO DOS UTENSÍLIOS 
 
Para o macrocampo dos utensílios, o Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, registra 
sessenta e oito designações, estruturadas em sete microcampos: instrumentos de trabalho, 
para colocar alimentos, para líquidos, que vão ao fogo, tapadores, para cortar, para 
perfurar. 
Exemplo: 
Escudela5 s.f. ‘Espécie de tigela. Vasilha grande ou média, pouco funda, de madeira, 
usada para servir alimentos’. 
...E depois de tiradas deitalas- 
haõ e) huu )a escudela dagoa frya... (r. XXXIV, p.66, L.7). 
 
 
O MACROCAMPO DOS INGREDIENTES 
 
As cento e trinta e sete lexias relativas ao macrocampo dos ingredientes encontrados, 
foram organizadas em dez microcampos, seguindo-se a hierarquia alimentar existente no 
período quinhentista, onde as “coisas do ar” estão sobre as “coisas da terra” (FLANDRIN, 
 
3 A forma dicionarizada é o fem. desfeita. 
4 Deriv. de cande e este do ár. vulgar qándi (ar. qandî), de quand ‘açúcar’. Séc. XIV. 
5 Do lat. SCU (TE(LLA ‘tacinha, pratinho, pires’. Em lat. SCU(TE(LLA era diminutivo de Scu(T(R)A, mas todos os 
romances apresentam uma base *SCUTELLA, por influência de SCUTUM ‘escudo’. 
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MONTANARI, 1998 : 466-477). Dessa maneira, o microcampo das aves é superior ao 
microcampo das carnes que é superior ao dos peixes, e assim por diante. Tenta-se aqui, pelo 
menos com as carnes, respeitar essa hierarquia medieval. Os dez microcampos são: genéricos, 
aves, carnes, peixes, vegetais, frutas, cereais, adubos, gorduras, líquidos 
Exemplo: 
Adubo6, s.m. ‘Ingredientes usados para enriquecer o sabor dos alimentos’. 
...e) huu)a tigella de 
ffoguo cõ seu adubo/ . crauo /. pime)ta /... (r. V, p.12, L.9). 
 
 
O MACROCAMPO DAS UNIDADES DE PESO E MEDIDA 
 
No Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, encontram-se sessenta e oito designações 
referentes às unidades de peso e medida que se subdividem basicamente nas oposições de 
grandeza de valor absoluto e grandeza de valor relativo. Observe-se que, as grandezas de 
valor relativo são, na verdade, formas polissêmicas, tomadas a partir do seu sentido principal, 
transferido para o campo das unidades de peso e medida. A partir destes dois campos, o 
macrocampo das unidades de pesos e medidas, ainda subdivide-se nos seguintes 
microcampos: genéricos, para sólidos, para líquidos, para dimensão, para distância e para 
medir tempo. 
Exemplo: 
Escudela, s.f. ‘A porção contida em uma escudela’7. 
Pera huu )a duzia de gemas dovoos 
tomaraõ huu )a escudella de acuquar 
e deitalloão e) huu) tacho/ ... (r. XXX, p.56, L.3). 
 
 
O MACROCAMPO DOS QUALIFICADORES 
 
No que diz respeito aos qualificadores, se compararem as receitas quinhentistas com as 
do século atual, não restará dúvidas de que tais receitas eram abundantes em gorduras e bem 
variável em condimentos. Esse macrocampo está composto de setentas e três designações, 
distribuídas em nove microcampos, partindo-se dos qualificadores genéricos, para os que 
indicam dimensão, forma, textura, cor, sabor, temperatura, distância e tempo. 
Exemplo: 
Asynha8, adv. Com brevidade, depressa. 
...pelemnos asynha e como fore) 
tirados a limpo de todo deitalosão em 
quatro ou cimquo aguoas...(r. XLII, p. 92, L. 14) 
 
No quarto capítulo, OS CAMPOS LEXICAIS DO LIVRO DE COZINHA DA INFANTA 
D. MARIA, estão estruturados os campos lexicais propostos: manjares, processos e métodos, 
utensílios, ingredientes, unidades de peso e medida e qualificadores, nos quais se encontram a 
estruturação, vendo-se cada macrocampo estruturado em seus microcampos e os exemplosdessas lexias. A classificação em campos lexicais é, necessariamente, acompanhada de um 
 
6 Deverbal de adubar (de origem germânica: a forma do fr. deriva-se do franc. dubban mantendo o mesmo 
significado; no it. passou a addobare ‘enfeitar’ e o cast. adobar tomou, como o port., a significação de 
‘temperar’, ‘condimentar’. Com base no franc. dubban, é possível admitir-se a existência de uma forma latina 
*ADDUBARE. Séc. XIII. 
7 Cf. a definição de escudela à n.5 . 
8 Do lat. agina, lat. vulgar agina ‘pressa, rapidez’. Séc. XIV. 
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Índice das lexias, dispostas em ordem alfabética, registrando-se todas as formas utilizadas, 
com remissão para o texto da tese. 
 Registre-se, ainda, que são colocadas entre a tese algumas ilustrações referentes à 
infanta D. Maria e à alimentação medieval. 
 
 
Considerações Finais 
 
A tentativa de proceder ao estudo estrutural do léxico de cozinha levou à organização 
deste em seis macrocampos lexemáticos. Traz-se, desse modo, alguma contribuição para o 
conhecimento do léxico da língua portuguesa no final dos anos quinhentos e no século XVI. 
 Fundamentada no estudo da obra de Eugenio Coseriu, oferece-se uma amostragem da 
possibilidade real de se fazer um estudo estrutural da língua na perspectiva da lingüística 
diacrônica estrutural. Prova-se que a estruturação do léxico oferece uma visão de conjunto 
com muito mais coerência do que a simples organização alfabética das lexias. 
 
 
 
 
 
REFERÊNCIAS 
 
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Nacional / Casa da Moeda, 1986. Intr. a “O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de 
Portugal”. 
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PAIS, Cidmar Teodoro et al. Manual de lingüística. Petrópolis: Vozes, 1978. p.81-
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gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. p. 385-90. 
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COSERIU, Eugenio. Princípios de semántica estructural. Vers. esp. de Marcos Martinez 
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FLANDRIN, Jean-Louis, MONTANARI, Massimo. História da alimentação. Trad. de 
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GAMA, Nilton Vasco da. Uma contribuição ao estudo do “Tratado de cozinha portuguesa” 
(ms. I -E -33 da B.N.N.). Salvador: UFBA / IL/ DLR, 1973. 
GECKELER, Horst. Semántica estructural y teoria do campo léxico. Vers. esp. de Marcos 
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GOMES FILHO, Antônio (edit.). Um tratado da cozinha portuguesa do século XV. 2. ed. 
Rio de Janeiro. MEC INL, 1994. Leitura diplomática e modernizada. 
LIVRO DE COZINHA DA INFANTA D. MARIA: CÓDICE PORTUGUÊS I. E. 33 DA 
BIBLIOTECA NACIONAL DE NÁPOLES. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 
1986. Prólogo, leitura, notas ao texto, glossário e índices de Giacinto Manupella. 
MARQUES, Oliveira. A Sociedade medieval portuguesa: aspectos da vida cotidiana. 5. ed. 
Lisboa: Sá da Costa, 1987. 
QUEIROZ, Maria José de. A Comida e a cozinha ou iniciação à arte de comer. Rio de 
Janeiro: Forense-Universitária, 1988. 
ULMANN, Stephen. Semântica: uma introdução à ciência do significado. Trad. de J. A. 
Osorio Mateus. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1970.

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