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1==============- _ Martin Heidegger (1889-1976) foi 0 teorico da existencia entendida com.o um "viver para a morte" e da angustia como sentido da amear;a radlcal e da presenr;a do nada. MARTIN HEIDEGGER: DAFENOMENOLOGIAAO EXISTENCIALISMO o expoente principal da filosofia da existencia e Martin Heidegger. Nascido em Messkirch em 1889, ele estudou teologia e filosofia. Aluno de H. Rickert, laureou-se em filosofia em 1914 com uma tese sobre A doutrina do juizo no psicologismo. Em 1916, como tese de habilita-rao ao ensino universitario, publicouA doutrina das categorias e do significado em Duns Escoto. Mais tarde descobrir- se-ia que a obra de Escoto considerada pOl' Heidegger, isto e, a Gramtitica especulativa, nao era de Duns Escoto. Mas isso nao tinha muita relevancia no desenvolvimento do pensamento de Heidegger, ja que 0 seu trabalho, com os interesses metafisicos e teo16gicos que 0 dominam, e mais teorico do que hist6rico. Nesse sentido, pode ser significativa a expressao de Novalis com que Heidegger conclui 0 livro: "Procuramos 0 incondicionado pOl' toda .parte e sempre encontramos apenas coisas". Nesse meio tempo, Husserl foi chamado a ensinar em Friburgo e Heidegger 0 seguiu como assistente. Professor pOl' alguns anos na Universidade de Marburgo, em 1929 Heidegger sucedeu a Hussed na catedra de filosofia em Friburgo, dando sua aula inaugural sobre 0 que e a metafisica? Desse mesmo ana e 0 ensaio Sobre a essencia do fun- damento (escrito para 0 volume miscelaneo publicado em come- mora-rao aos setenta anos de Husserl), bem como 0 livro Kant e 0 problema da metafisica. Em 1927, porem, saira 0 trabalho funda- mental de Heidegger, Ser e tempo. A obra deveria ser seguida de segunda parte, 4ue, no entanto, nao apareceu mais, ja que os resultados alcan-rados na primeira parte impediam 0 seu desen- volvimento. Ser e tempo e dedicado a Husserl: Heidegger afirma que trabalha com 0 metodo fenomeno16gico, ainda que a sua filosofia seja bem diferente da de Husserl, como constataremos em breve. Em 1933, Heidegger, que aderira ao nazismo, torna-se reitor da Universidade de Friburgo, pronunciando 0 discurso A auto- afirmaqiio da universidade alemii. Mas pouco depois se demitiu do cargo de reitor. Os seus escritos posteriores a esse periodo sao: Holderlin e a essencia da poesia (1937), A doutrina de Platao sobre a verdade (1942), republicado em 1947,juntamente com a Carta sobre 0 humanismo; A essencia da verdade (1943); Caminhos in- terrompidos (1950); Introduqiio it metafisica (1953); 0 que e isso- a filosofia? (1956),A caminho rumo it linguagem (1959); Nietzsche (1961, 2 vols.). Heidegger morreu em 1976. o objetivo declarado de Ser e tempo e 0 de ontologia capaz de determinar adequadamente 0 sentido do ser. Mas, para alcan~ar esse objetivo, e preciso analisar quem e que se propoe a pe~'gunta sabre 0 sentido do ser. Enquanto 0 Ser e tempo se resume em uma analitica existencial daquele ente (0 homem) que se propoe a pergunta sobre 0 sentido do ser, os escritos de 1930 em diante abandonam a proposi~ao originaria: nao se trata mais de analisar aquele ente que procura caminhos de aces so ao ser, mas sim 0 ser mesmo e sua auto-revela~ao. E aqui, precisamente, reside a "re- viravolta" do pensamento de Heidegger, que, no segundo periodo de sua filosofia, prescinde da existencia, que se torna uma determi- na~ao nao essencial do ser. Como escreve ele: "Ahistoria do ser rege e determina toda condi~ao e situa~ao humana". o tornar-se transparente de um ente, 0 que busca colocando-se no seu ser". E nisso consiste a analitica existencial. o homem, portanto, e 0 ente que se propoe a pergunta sobre a sentido do ser. Por isso, a proposi~ao correta do problema do sentido do ser requer explicita~ao preliminar daquele ente que se propoe a pergunta sobre 0 sentido do ser: e "esse ente, que nos mesmosja somos sempre e que tern, entre as outras possibilidades de ser, a de buscar, nos 0 indicamos com 0 termo Ser-ai (Dasein)". Considerado no seu modo de ser, 0homem e precisamente Da-sein, au seja, ser-ai. E 0 "se" (at) indica 0 fato de que 0homem esta sempre em uma situa~ao, lan~ado nela e em rela~ao ativa com ela. 0 ser- ai, isto e, 0 homem, nao e somente aquele ente que propoe a pergunta sobre 0 sentido do ser, mas e tambem aquele ente que nao se deixa reduzir a no~ao de ser aceita pela filosofia ocidental, que identifica 0 ser com a objetividade, ou seja, como diz Heidegger, com a simples-presenqa. As coisas sac certamente divers as uma da outra, mas todas sac objetos (ob-jecta) colocados diante de mim: e nesse seuestar presente a filosofia ocidental viu 0 ser. Mas 0 hornem pode se reduzir a objeto puro e simples no mundo: 0 ser-ai nao e nunc a uma simples-presen~a,ja que ele e precisamente aquele ente para 0 qual as coisas estiio presentes. omodo de ser do Ser-ai e a existencia: "A 'natureza', a 'essen- cia' do ser-ai consiste em sua existencia". E "as caracteristicas que se revelam pr6prias desse ente nao tern nada a ver com as 'proprie- dades' de um,ente simplesmente-presente'. Para Heidegger, a rea- lidade e que "0 ser-ai nao e simples presen~a que, acessoriamente, tenha 0 requisito de poder alguma coisa, mas, ao contrario, e pri- meiramente urn ser-possive!. 0 ser-ai e sempre aquilo que pode ser C..). 0 essencial ser-possivel do ser-ai envolve as modalidades ja caracterizadas pelo cuidar do 'mundo', pelo cuidar dos Ou~r?~ (... )". A essencia da existencia, portanto, e dada pela possl~)lh~ad~, que nao e possibilidade logica vazia nem s~m:p~escontmgencla empirica. 0 ser do homem e sempre a poss£b£h~ade ? atuar e, ·,conseqiientemente, 0 homem pode se escolher, ISto e, pode, ~e conquistar ou se perder. Nesse sentido, 0 ser-ai ~o,?,homem) e. 0 ente que redunda do seu ser" e "a existencia e .?ecl~l~a, n~,sentldo da posse ou da ruina, somente por cada ser-al mdIVldual . Escreve Heidegger: "A inten~ao do presente tratado (Ser e tempo) e (... )a elabora~ao concreta do problema do sentido do'ser' ". Entretanto, 0 problema do sentido do ser propoe imediatamente est a interroga~ao: "Junto a que ente deve ser captado 0 sentido do ser?" Pros segue Heidegger, "se 0problema do ser deve ser proposto explicitamente em toda a sua transparencia, entao (... ) torna-se necessaria evidenciar as maneiras de penetra~ao no ser, de com- preensao e de posse conceitual do seu sentido, bem como a solu~ao da possibilidade de escolha correta do ente exemplar e a indica~ao do caminho autentico de acesso a esse ente. Penetra~ao, compre- ensao, solu~ao, escolha, acesso - esses sac momentos constitutivos da busca e, ao mesmo tempo, modos de ser de determinado ente, mais precisamentedaquele ente queja somos, n6s, que 0buscamos". Por tudo isso, "a elabora~ao do problema do ser significa, portanto, o homem eaquele ente que se interroga ~obr~0 senti do .doser. o homem nao pode se reduzir a simples o?Jeto, .1St,?e~a sImples estar-presente. 0 modo de ser do home~ e a eX1~tenc1a.A.expe- riencia e poder-ser. Mas poder ser quer dizer proJetar. Par ISS0,a existencia e essencialmente transcendencia, identificada por Heidegger com a supera~ao. Desse modo, para ele, a transcendencia nao e urn entre os muitos possiveis comportamentos do homem, mas sim a sua constitui~ao fundamental: 0 hom~m e projeto e as coisas do "mundo" sac originariamente utensilios em fun~ao do projetar humano. Tudo isso nos introduz na consideracao daquela caracteristica fundamental do hornem que Heidegger chama de ser-no-mundo. o homem esta-no-mundo. Mas, como 0 homem e consti- tutivamente projeto, 0 mundo - diferentemente do que pensava Husserl- nao e originariamente realidade a contemplar, e sim muito mais conjunto de instrumentos "para" 0 homem, conjunto de utensilios, ou seja, de coisas a utilizar, estando it milo, enao de coisas a contemPAlar.como presentes. A existencia e poder ser, prpjeto, tr~n~cendencla para com 0mundo: estar-no-mundo,pois, significa ongmariamente fazer do mund9 0projeto das a~oes e dos possiveis comportamentos do homem. E a transcendencia que institui 0 projeto ou esbot;:ode urn mundo: esse e ato de liberdade - alias para Heidegger, e a propria liberdade. Entretanto, se everdade qu~ qualquer projeto se radica em ato de liberdade, tambem e verdade que todo projeto limita imediatamente 0 homem que se encontra dependente das necessidades e limitado pelo conjunto daqueles utensilios que e 0 mundo. Estar-no-mundo, pois, significa para 0 homem cuidar das coisas que acontecem aos seus projetos e ter a uer com uma realidade-utensilio, meio para a sua vida e para as suas a~oes. Sendo 0 Ser-ai constitutivamente projeto, 0 mundo existe como conjunto de coisas utilizaueis: 0 mundo vem a ser grat;:as ao seu ser utilizavel. 0 ser das coisas equiuale ao seu ser utilizadas pelo homem. 0 homem, portanto, nao e espectador do grande teatro do mundo: 0 homem esta no mundo, envolvido nele e em suas peripecias. E, transformando 0 mundo, ele forma e se transforma a s~ mesmo. A atitude teorica e contemplativa do espectador desmteressado (na qual Husserl tanto insistira, bem como a tra~it;:ao filosofica ocidental em geral) e somente urn aspecto da :na1s ampla e geral utilizabilidade das coisas. As coisas sac sempre mstrumentos: se for conveniente, poderao ser vistas como instru- ~~ntos que satisfazem um prazer estetico; mas, se 0 consideramos utIl, poderao ser vistas "objetivamente", isto e, cientificamente, te~do como fundo urn projeto total. 0 homem compreende uma COIsaquando sabe 0 que fazer dela, do mesmo modo como compre- ende a si mesmo quando sabe 0 que pode fazer consigo, isto e, quando sabe 0 que pode ser. _ Com base em tais considera~oes, Heidegger dissolve a ques- tao gnosiol6gica tipica da filosofia modema, que prop6e 0 conhecer dentro do cognoscente e depois nao consegue sair do teatro inte- rior da mente. Na opiniao de. H,~idegger, esse e urn pseudopro- blema, qu~ se f~nda~enta na.l~ela errada de que 0 conhecer seja ~ma quahdade mterwr do sUJelto e no pressuposto inteiramente mfundado de que esse conhecer seja 0 modo originario de 0 ho- me~ ~e r~lacionar com 0 mundo. A realidade, ao contrario, e que o~UJ~ltOe abert~r.a I?a.ra0 mundo e nao monad a e que 0 conhecer nao e 0 modo ongmano da relat;:ao do homem com 0 mundo. Por tudo isso, "0 problema de se existe urn mundo e se 0 seu ser pode ser demonstrado, como problema proposto pelo homem como ser no mundo (e quem mais poderia propo-Io?), e desprovido de sentido". Se 0 ser-no-mundo (in der- Welt-sein) e urn existencial tam- bem 0 ser-com-os-outros (Mit-sein) e um existencial. Nao h~ "urn sujeito sem mundo" e, ao mesmo tempo, nao existe "urn eu isolado sem os outros". Na quinta das Meditar;6es cartesianas, Husserl propusera a fenomenologia da intersubjetividade nos mesmos termos em que a propoe Heidegger: os outros nao sac inferidos como outros "eus"; eles sac dados, precisamente comooutros "eus", desde a origem. Sendo a existencia constitutivamente abertura, desde a origem os outros "eus", como tais, participam do mesmo mundo no qual eu vivo. Por essa razao, assim como 0 problema da demons- tracao do mundo externo e pseudoproblema, tambem e pseudo- problema 0 do solipsismo. Por outro lade, assim como 0 ser-no- mundo dohomem se expressa pelo cuidar das coisas, domesmo modo oseu ser-com-os-outros se expressa pelo cuidar dos outros, coisa que constitui a estrutura basilar de toda possivel relat;:ao entre os homens. E 0 cuidar dos outros pode tomar duas diret;:oes: na primeira, procura -se subtrair os outros de seus cuidados; na segunda, procura-se ajuda-Ios a conquistar a liberdade de assumir seus pr6prios cuidados. No primeiro caso, temos urn simples "estar junto" e estamos diante de forma inautentica de coexistencia; no segundo caso, ao contrario, temos autentico "coexistir". 4.0 ser-para-a-morte, existencia inautentica e existencia autentica o ser-ai e e deue ser: isto e, 0 homem se encontra sempre em uma situacao e enfrenta essa situat;:ao com 0 seu projetar. Mas, quando volta seus "cuidados" para 0 plano "ontico" ou "existentivo", isto e, ao plano dos entes em sua factualidade, 0homem permanece na existencia inautentica. Nesta, 0 homem manipula as coisas, utiliza-as e estabelece, relacoes sociais com outros homens. Todos esses projetos, porem, em uma especie de vertigem, atiram 0 homem para 0nivel dos {atos. Autiliza~ao das coisas se transforma em fun em simesmo. A linguagem se transforma entao nopalavrorio da existencia anonima subjacente ao axioma "as coisas SaDassim porque assim se diz". Essa existencia anonima procura encher 0 vazio que a caracteriza recorrendo continuamente ao novo: ela se afoga na curiosidade. E, pOl"fim, aMm do palavr6rio e da curiosi- dade, a terceira caracterfstica da existencia inautentica e 0 equi- voco: a individualidade das situa~6es, em uma existencia devorada pelo palavr6rio e pela curiosidade, desvanece na neblina do equi- voco.A existencia inautentica e existencia anonima: e a exisWncia do "se diz" e do "se faz". A analise existencial revela que a existencia anonima e urn poder ser constitutivo do homem. E, segundo Heidegger, 0 que se encontra na base desse poder ser e a dejer;iio, ou seja, a queda do homem no plano das coisas do mundo. Entretanto, existe a voz da consciencia, que chama a existencia, quando entao nos colocamos nao mais no plano "ontico" ou "existentivo", e sim no plano "ontoI6gico" ou "existencial", procurando 0 senti do do ser dos entes, isto e, 0 sentido do seu existir. A voz da consciencia pega 0 homem envolvido pelos cuidados eo rep6e diante de si mesmo, remeten- do-o a questao do que ele e no mais profundo do seu ser e que nao pode ocultar. Comoja sabemos, a existencia e poder-ser. E e nesse poder-ser que se baseia 0 projetar ou transcender do homem. Mas todo projetar leva 0 homem ao nivel das coisas e do mundo. Tudo isso quer dizer os projetos e as escolhas do homem, no fundo, SaDtodos equivalentes: eu posso dedicar a minha vida ao trabalho, ao estudo, a riqueza ou a qualquer outra coisa, mas posso ser hqmem seja escolhendo uma possibilidade, seja escolhendo outra. E pOl"essa razao que, considerando como ultima e decisiva uma dessas esco- lhas ou possibilidades, 0 homem se decide por e se dispersa em uma existencia inautentica. Entretanto, entre as varias possibilidades, uma ha diferente das outras, a qual 0 homem nao pode escapar: trata-se da morte. Com efeito, eu posso decidir dedicar a minha vida a urn objetivo ou a outro, posso escolher uma profissao ou outra, mas nao posso deixar de morrer. E entao, quando a morte torna-se realidade, nao ha mais existencia. Isso nos faz entender que, enquanto ha 0 existente, a morte e possibilidade permanente e essa e a possi- bilidade de que todas as outras possibilidades tofnem-se impossi- veis. Diz Heidegger: "Enquanto possibilidade, a morte nao da ao homem nada a realizar". Ela e a possibilidade da impossibilidade de todo projeto e, com isso, de toda existencia: com efeito, com a morte, nao hli outras possibilidades a escolher nero novas projetos a realizar. A voz da consciencia, pOl"conseguinte, nos remete ao sentido da morte e revel a a nulidade de todo projeto: na perspectiva da morte, todas as situa~5es singulares aparecem como possibilidades que podem se tornar impossiveis. Desse modo, a morte impede que alguem se fixe em uma situa~ao, mostra a nulidade de todo projeto e alicer~a a historicidade da existencia. A existencia autentica, portanto, e urn ser-para-a-morte. Somente compreendo a possibi- lidade da morte como possibilidade da existencia e somente assu- mindo essa possibilidade com decisao antecipadora e que 0 homem encontra 0 seu ser autentico: "0 antecipar fazer-se livre para a pr6pria morte liberta da dispersao nas possibilidades que se entrela~am casualmente, de modo que as potencialidades efetivas, istoe, situadas alem da possibilidade insuperavel (a morte), podem ser compreendidas e escolhidas autenticamente". Escreve ainda Heidegger: "Amorte e uma possibilidade de ser que 0 Ser-ai deve assumir sempre pOl"si mesmo c. .. ). Essa possi- bilidade decorre para 0 Ser-ai pura e simplesmente do ser-no- mundo. E a sua morte e a possibilidade de nao-poder-mais-ser-ai c. .. ). Voltando-se assim sobre si mesmo, dissipam-se todas as rela~oes com os outros Ser-ai. Essa possibilidade absolutamente pr6pria e incondicionada, no entanto, e ao mesmo tempo extrema. Enquanto poder-ser, 0 Ser-ai nao pode ultrapassar a possibilidade da morte. A morte e a possibilidade da pura e simples impossibi- lidade do Ser-ai. Assim, a morte se revela como apossibilidade mais propria, incondicionada e insuperavel". A morte e a possibilidade mais pr6pria, ja que diz respeit,o a essencia da existencia, vale dizer, 0 poder-ser do homem. E a possibilidade intransponivel, no sentido de que a morte e a ultima possibilidade da existencia, mas que aniquila a pr6pria existencia. It uma ·possibilidade incondicionada, enquanto pertence exclusi- -vamente ao individuo. Escreve Heidegger: "Ninguem pode assumir o morrer de outro (... ). Cada Ser-ai deve assumir a sua pr6pria morte. Enquanto a morte 'e', ela e sempre radicalmente a minha morte". o "viver para a morte", portanto, constitui 0 autentico sentido da existencia. 0 "viver para a morte" nos afasta do estar submerso nos fatos e nas circunstancias. A antecipa~ao da morte (que nao significa de modo algum realiza-la pelo suicidio) da sentido ao ser dos entes, mediante a experiencia do seu nada I;>0ssivel:Essa ~x- periencia no entanto nao se tern pOl"obra de ato mtelectIvo, e Slm, muito mais pOl"meio do sentimento especifico que e a angustia: "0 Dado que a existencia e possibilidade e projeto, escreve Heidegger em Ser e tempo, dentre as determina~oes do tempo (passado, presente e futuro) a fundamental e 0futuro: "0 projetar- se-adiante para 0 'em-vista-de-si-mesmo', projetar-se que se baseia no futuro, e caracteristica essencial da existencialidade. 0 seu sentido primario e 0 futuro". Entretanto, 0 cuidado, que antecipa as possibilidades, surge do passado e 0 implica. E entre 0 passado e 0 futuro esta aquele ocupar-se com as coisas que e 0 presente. Essas tres determina~oes do tempo encontram seu significado em seu ser "fora de si": 0 futuro e urn pretender-se, 0 presente e estar presQas coisas e 0 passado e retornar a situa~ao de fato para aceita-la. Essa o tempo 589 e a razao por que Heidegger chama os tres moment os do tempo de extase (entendido em seu sentido etimo16gico de "estar fora"); "Futuro, ter-sido e presente revelam 0 carater do 'ad-per', do 'atras- reverso' e do 'ir ao encontro de'. Os fenomenos do 'rumo a', do 'retro' e do 'junto' revel am a temporalidade como 0 singelo ekstatikon. A temporalidade e 0 originario 'fora de si', em si epara si. Assim, n6s chamamos os fenomenos definidos comofuturo, ter-sido e presente de extases da temporalidade". Em todo caso, as tres determina~oes do tempo mudam com base no fato de se tratar de tempo autentico ou de tempo inautentico, sendo 0 tempo autentico 0 da existencia autentica e 0 tempo inautentico tipificado pela preocupa~ao com 0 sucesso, a aten<;ao para com 0 exito, ao passe que na existencia autentica, que assume a morte como possibilidade qualificante da existencia, 0 futuro e urn viver para a morte que nao permite ao homem ser envolvido pelas possibilidades mundanas. E, se 0 passado autentico e 0 nao aceitar passivamente a tradi~ao, mas confiar nas possibilidades que a tradi~ao nos oferece e reviver a possibilidade do homem que ja foi, 0 presente autentico e 0 instante, no qual 0 homem repudia o presente inautentico (onde 0 homem e absorvido sem descanso pelas coisas a fazer) e decide 0 seu destino. Dessa analise do tempo, entre outras coisas, derivam algumas conseqiiencias relevantes para 0 pensamento de Heidegger: 1)Os significados do tempo usados no pensamento comum e na ciencia (a databilidade e a medida cientifica do tempo) constituem tempo inautentico,ja que remetem a existencia lan~ada entre as coisas do mundo. 2)A existencia autentica e a existencia angustiada, que ve a insignificancia de todos os projetos e fins do homem. Essa insignificancia torna todos osprojetos equivalentes. Pondo 0homem diante da equivalente nulidade dos fins, a anglistia da ao indivfduo a possibilidade de aceitar como pr6prio 0 seu pr6prio tempo e a ele permanecer fiel, vale dizer, assumir como pr6pri? 0 destino d~ comunidade human a a que pertence, em uma especle de amor fatL . .Em outros termos, 0 homem que vive autenticamente continua a viver a vida (por assim dizer) banal do seu tempo do seu povo, mas a vive com todo aquele afastamento de que, com a experi~ncia antecipadora da marte, teve a revela~ao do nada dos pro]etos humanos e da existencia humana. 3) A historiografia pressupoe a historicidade do ser-ai: "Nao apenas 0 conhecer historiografico e hist6rico enquanto comportamento historicizante do ser-ai, mas tambem a abertura historiografica da historia ( ... ) esta em si mes- ma radicada na historicidade do ser-af e isso em conformidade com a sua estrutura ontologica. E e a essa conexao que se refere a questao da origem existencial da historiografia a partir da historicidade do ser-ai". ser-para-a-morte e essencialmente anglistia". A angustia p6e 0 homem diante do nada, do nada de sentido, isto e, 0 contra-senso dos projetos humanos e da propria existencia: "a situa<;ao afetiua que pode manter aberta a constante e radical amea<;a em torno de si mesmo, amea<;a nascente do mais proprio e isolado ser do Ser-ai, e a angustia. Nela, 0 Ser-ai se encontra diante do nada da possivel impossibilidade da pr6pria existencia". Existir autenticamente implica ter a coragem de olhar de frente a possibilidade do proprio nao-ser, de sentir a anglistia do ser-para-a-morte. A existencia autentica, pOl'conseguinte, signi- fica a aceita<;ao da propria finitude. E e a essa aceita<;ao que nos conclama a voz da consciencia: a aceita<;aoda nossa propria finitude e negatiuidade. A existencia inautentica e anonima, ao contrario, tern medo da anglistia diante da morte, de modo que, para escapar a anglistia, a existencia anonima se ocupa muito com as coisas e aprofunda no reino do se (man): "a existencia anonima e banal nao tem a coragem da angustia diante da morte". E isso pode ser visto no fato de que a existencia anonima banaliza a angustia no medo: "0 medo e anglistia que decaiu ao nivel do mundo, inautentica e oculta para si mesma como anglistia". Sempre se tern medo de alguma coisa, ao passo que nos angustiamos por nada: na angustia, esta presente 0 nada, com 0 seu poder de aniquilamento. "Na anglistia em rela<;ao a morte, 0 ser-ai e levado a ficar diante de si mesmo, como que entregue a sua possibilidade insuperavel. A existencia banal se encarrega de transformar essa anglistia em medo diante de evento que vira. Banalizada equivocamente em medo, a angustia e apresentada como fraqueza que urn ser-ai segura de si nao deve conhecer. Aquilo que se acrescenta, segundo a tacito decreta da existencia banalizada, e a tranqiiilidade indi- ferente diante do 'fato' de que se morre". 590 Heidegger 7. A metafisica ocidental como esquecimento do ser e a linguagem da poesia como linguagem do ser o objetivo deelarado de Ser e tempo e 0 da determina~ao do sentido do ser. Entretanto, essa interroga~ao - que se desdobrou na analitica existencial, ou seja, na analise das estruturas da existencia - teve pOl'resultado 0 de que 0 sentido do ser nao pode ser obtido pel a interroga~ao de urn ente. A analise da existencia mostra que a existencia autentica e 0 nada de todo projeto e 0 nada da pr6pria existencia. A analise do Ser-a1, isto e, daquele ente privilegiado que se prop6e a pergunta sobre 0 sentido do ser, nao revela 0 sentidodo ser, e sim 0 nada da existencia. Essas considera~6es sac explicitadas pOl' Heidegger em sua Introdur;ao a metafisica (1956), que se apresenta como critica ra- dical a metafisica elassica. De Arist6teles a Hegel e ao proprio Nietzsche, a metafisica elassica fez 0 que a analitica existencial mostrou ser impossivel: procurou 0 sentido do ser indagando os entes. A metafisica identificou 0 ser com a objetividade, isto e, com a simples-presen~a dos entes. Desse modo, ele nao e metafisica, senao "fisica" absorvida pelas coisas, que esqueceu 0 ser e que, alias, leva ao esquecimento desse esquecimento. Diz Heidegger que Platao foi 0 primeiro responsavel pela degrada~ao da metafisica a fisica. Os primeiros filosofos (Anaxi- mandro, Parmenides, Heraclito) concebiam a verda de como urn des-velar-se do ser, como provaria 0 sentido etimologico de aletheia, onde lanthano (velar) e precedido do a privativo. Entretanto, Platao rejeitou a verdade como "nao ocultamento" do ser e subverleu a rela~ao entre ser e verdade, baseando 0 ser na verdade, no sentido de que a verdade estaria no pensamento que julga e estabelece rela~6es entre os proprios "contetidos" ou "ideias", e nao no ser que se desvela ao pensamento. E, desse modo, 0 ser deveria se finalizar e rela,tivizar para a mente humana, alias, para a sua linguagem. E bem verdade que somos nos que "falamos a linguagem". Entretanto, aquele patrim6nio de palavras e de regras logicas, gramaticais e sintaticas que e a linguagem estabelece limites intransponiveis ao que podemos dizer. A linguagem do homem pode falar dos entes, mas nao do ser. POl'isso, a revela~ao do ser nao pode ser obra de urn ente, ainda que privilegiado como 0 ser-ai, mas so pode se dar atraves da iniciativa do proprio ser. Ai reside a "reviravolta" do pensamento de Heidegger: 0 hornem nao pode desvelar 0 sentido do ser. Ele deve ser 0pastor do ser e nao 0 senhor do ente. E a sua dignidade "consiste em ser chamado pelo proprio ser para ser 0 guarda de sua verdade". POI'isso, e precise eleva l' a filosofia de sua deforma~ao "humanista" ate 0 "misterio" do ser, ao seu desvelar-se originario. Mas on de oC0I!e esse desvelar-se do ser? Diz Heidegger que 0 ser se desvela na lmguagem, nao na linguagem eientifica propria dos entes ou na linguagem inautentica do palavrorio e sim na linguagem autentica da poesia. Escreve ele na Carta sobre 0 humanismo: "A linguagem e cas a do ser. E nessa morada habita 0 homem. Os pensadores sac os guardiaes dessa morada". Na forma autor~l da poesia, a p.alav~a tinha carateI' "sacral": lingua originaria, a poeSla deu nomes as COlsas e fundou 0 ser. Essa funda~ao do ser porem, especificada pOl' Heidegger em Holderlin e a essencia dd. poesia (1937), nao e obra do hornem, mas sim dom do ser. Na l~nguagem do poeta, nao e 0 homem que fala, e sim a pr6pria hnguagem - e, nela, 0 ser. Conseqiientemente, a justa atitude do homem em rela~ao ao ser e a do silencio para ouvi-Io: 0 abandono (Gelassenheit) ao ser e 0 tinieo comportamento correto. Assim 0 homem deve tornar-se livre para a verdade, concebida como desvelamento do ser. E, assim, liberdade e verdade se identificam. E, como a verdade, tambem a liberdade e dom do ser ao homem, uma iniciativa do ser. Assim, sao os "pensadores essenciais" (como Anaximandro, Parmenides, Heraelito e Holderlin) as testemunhas ou os ouvintes da voz do ser e nao a metafisica ocidental. 0 senhor do ente nao e o senhor do ser. Mas 0 homem ocidental, precisamente pOl' for~a daquela "fisica" que pretendia ser "metafisica", transformou-se em senhor do ente. A reviravolta operada pOl' Platao no coneeito de verdade e, com isso, no destino da metafisica explica 0 destino do Ocidente e 0 prima do da tecnica no mundo modemo.A tecnica nao e instrumento neutro nas maos do homem, que pode usa-l a para 0 bem ou para 0 mal, nem constitui acontecimento acidental no Ocidente. Para Heidegger, a realidade e que a Mcnica e 0 resultado natural daquele desenvolvimento pelo qual, esquecendo 0 Ser, 0 homem se deixou arrastar pelas coisas, tornando a realidade puro objeto a dominar e explorar. E esse comportamento, que nao se deteria sequel' quando chega, como acontece hoje, a amea~ar as bases da pr6pria vida, e comportamento que se tornou onivoro: trata-se de uma fe, a fe na tecnica como dominio sobre tudo. o tom inspirado a que se entrega Heidegger, especialmente 0 Ultimo Heidegger, provocou grande reserva em muitos de seus criticos. Entretanto, deixando isso de lade, e oportuno notal' logo que, ernbora parlindo do pensamento de Husserl, a filosofia de Heidegger e bem diferente da de seu mestre. Como observa Sofia Vanni -Rovighi, "Husserl vem da matematica e tem escasso interes- se pela hist6ria, ao pas so que Heidegger vem da teologia e possui notavel cultura hist6rica e literaria. Para HusserI, a filosofia deve ser cH~nciarigorosa, ao passe que para Heidegger os sentimentos revelam muito mais 0 ser do que 0 intelecto: os poetas 0 revel am mais do que os filosofos". Entre as critic as mais frequentes a Heidegger estao a tortura a que ele submete a linguagem, a arbitrariedade de suas etimologias "revelativas" e a sua obscuridade. Entretanto, como conta Hans Georg Gadamer, com as li~oes de Heidegger, "os olhos se nos abriam (. ..).Quando Heidegger ensinava, viam-se as coisas diante de nos, quase como se pudessem ser pegas fisicamente". Quem podera esquecer, pergunta Gadamer, "a frenetic a voragem de perguntas que ele desenvolvia nas aulas introdutorias do semes- tre, para depois enredar-se completamente na segunda ou na terceira dessas perguntas, enquanto somente nas ultimas aulas do semestre e que se adensavam as escurissimas nuvens das quais partiam os relampagos que nos deixariam meio estupefatos',? A realidade, diz ainda Gadamer, e que "nao se pode passar diante do pensamento sem se dar conta". A interpreta~ao da existencia como ser-no-mundo, a polemica contra 0 psicologismo, 0 ataque as abstra\;oes idealistas, as refinadas investiga~oes sobre a existencia anonima que se dissipa no palavr6rio, enche-se de curiosidade e se alimenta do equivoco, a analise da conexao entre a historicidade do ser-ai e a atividade historiografica - todos esses pontos sac exemplos, dentre as ideias de Heidegger, que mais influiram sobre 0 pensamento contemporaneo. o EXISTENCIALISMO 1. Linhas gerais o existencialismo ou filosofia da existencia eEuma v~sta fi t anea que se afirma na uropa ogo corre.nte filo?6 l~a con emp~ dial se impoe no periodo entre as depOlsda Pnmelr~ Guerr~ e~da ~ais e se expande ate tornar- ~~~o~~:X::e~:~o :::~:~;decadas roste:J~~~~ ~~~~::~~~1: Mundial., AS~~, ~ef~~rrs~~:~:~~Sq~ee:~istencia1ismo e~pressade seu creSClme, . - h' t" d aEuropadilacera a levaaconscientiza~aOaSltUa~O IS onc~ eum humanidade euro- fisica e moralmente por duas guerras~ e u:n~ em muitas de suas peia que, entre as duas g~erras, expenm:~ ~mes totalitarios que, popula~oes a perda da hberdade, com gdosUrais ao Atlantico embora de sinais trocados, atravessam-na e do Baltico a Sicilia. ., , , de crise' a crise daquele . A epoca do existenclahsmo e epoca , l XIX e a primeira . . At' e durante todo 0 secu 0ot£m£smo r0';7'an £co CJ,!'" ' ." tido da hist6ria em nome da decada do seculo XX, garc:.ntw dOsJF manidade, "fundamentava" .Razdo, do~bs~lut~, da [dew o~ a ~o resso certo e inconUvel. a valores estave£s ~ . a.ssegurava ~n:p 0~ao todas filosofias otimis- idealismo, 0 posltlvlsmo e 0 ~alxls~ 'pio da realidade e 0 sentido tas, que J?resumem ter cap~a ,O? p~n~~stencialismo, porem, con- progresslvo absoluto da hl~t~na'''l ado no mundo" e continua- sidera 0 homem como s~r fm!.to, r:iematicas ou absurdas. E e mente dilacerado por sltua\;~S P m sua singularidade, que 0 precisamente pelo hornem, 0 OOhme~~do existencialismo nao e 0 existencialismo se interessa. om 594 objeto que exemplifica uma teoria, urn membro de uma classe ou urn exemplar deg€mero substituivel por outro exemp~ar qualquer do mesmo genero. Da mesma forma, 0 homem conslderado pela filosofia da existencia tambem nao e simples momento do processo de uma Razao oniabrangente ou uma dedu~ao do Sistema. A existencia e indedutivel e a realidade nao se identifica com nem se reduz a racionalidade. A nao identificaqao da realidade com a racionalidade e acompanhada, como elemento caracteristico, por tres outros pon- tos basicos do pensamento existencialista, que sac: 1)acentralidade da existencia como modo de ser daquele ente finito que e 0 homem; 2) a transcendencia do ser (0 mundo e/ou Deus) com 0 qual a existencia se relaciona; 3) a possibilidade como modo de ser constitutivo da existencia e, pois, como categoria insubstituivel na analise da propria existencia. Mas de que modo se qualifica 0 conceito de existencia no in- terior do existencialismo? A primeira coisa que se deve destacar e que a existencia e constitutiva do sujeito que filosofa e 0 linico sujeito que filosofa e 0hornem: por isso, ela e exclusivamente tipica do homem, ja que 0 homem e 0 unico sujeito a filosofar. Ademais, a existencia e modo de ser finito e e possibilidade, isto e, urn poder- ser. A existencia, precisamente, nao e essencia, coisa dada por natureza, realidade predeterminada e nao modificavel. As coisas e os animais sac 0 que sac e permanecem 0 que sao. Mas 0 homem sera 0 que ele decidiu ser. 0 seu modo de ser, a existencia, e urn poder-ser, urn sair para fora em dire~ao a decisao e a automoldagem, como escreveu Pedro Chiodi, urn ex-sistir. Assim, a existencia e urn poder-sere, portanto, e "incerteza, problematicidad~, risco, decisao, impulso adiante". Mas impulso em dire~ao a que? E precisamente ai, diz ainda Chiodi, que come~am a se dividir as correntes do existencialismo, conforme as respostas, que sac: Deus, 0 mundo, 0 proprio homem, a liberdade, 0 nada. Precis ados esses tra~os conceituais, ainda que brevemente, e preciso fixar mais alguns pontos: 1)Na perspectiva da historia das ideias, 0 existencialismo se apresenta como uma das manifesta~oes da grande crise do hegelianismo, manifesta~6es que se expressaram no pessimismo de Schopenhauer, no humanismo de Feuerbach e na filosofia de Nietzsche e que, por outro lado, encontram sua correspondencia na obra literaria de Dostojewskij e de Kafka, obra permeada de tao profunda problematicidade humana. 2) Nas raizes do existencialismo encontra-se 0pensamento de Kierkegaard. E 0 existencialismo se apresentou como explicita Kierkegaard-Renaissance. 0 Comentario a epistola aos Romanos, do te610goKarl Barth (1886-1968) e de 1919. E foi exatamente esse escrito que difundiu na Alemanha algumas das tematicas kierkegaardianas, com 0 seu tremendo sentido tragico da existencia e a lucida consciencia da radicalidade do mal e do nada. Escreveu Barth: "Se eu tenho urn sistema, ele consiste em ter constantemente presente, em seu significado positivo e negativo, aquilo que Kierkegaard chamou de infinita diferen~a qualitativa.'entre tempo e eternidade. Deus esta no ceu e tu estas na terra. A rela~ao entre esse Deus e esse homem e a rela~ao entre esse homem e esse Deus constituem para mim 0 tema unico da Biblia e da filosofia". 3) Se Kierkegaard e a raiz remota do existencialismo, a Fenomenologia e a sua pr6xima. Com efeito, 0 existencialismo se articula em continuo exercicio de analise da existencia e das rela~oes da exisMncia humana com 0mundo das coisas e 0 m~do dos homens. A existencia humana nao pode e nao deve ser deduZlda a priori; ao contrario, ela deve ser escrupulosamente descrita aBsim como se manifestam suas variadas formas da experiencia humana efetiva. 4) A analise da existencia nao foi objeto somente de obras filos6ficas como e 0 caso da analitica existencial realizada com 0 metodo fe~omenol6gico por Heidegger em Ser e tempo, mas tam- bem de vasta obra literaria (teatro, romances) que, sobretudo com Sartre e Simone de Beauvoir, sublinhou os tra~os menos nobres, mais tristes e dolorosos das vicissitudes humanas e, com Gabriel Marcel destacou os tra~os mais positivos da experiencia da pessoa, que se donstitui na disponibilidade a transcendencia e na comunhao com os outros. 5) Os representantes mais prestigiosos do existencialismo sac Martin Heidegger (cujo pensamento foi tratado no capitulo an~e- rior) e Karl Jaspers na Alemanha; Jean-Paul Sartre, Ga?nel Marcel, Maurice Merleau-Ponty eAlbert Camus na Fran~a; NIcola Abbagnano na Italia. 6) No panorama do existencialismo frances, nao se deve esquecer que viveram exilados em Paris os dois maior~s repre- sentantes do existencialismo russo, isto e, Chestov e ~erdJaev. !'ev Chestov (1866-1938), polemizando contra as pret~nsoes da ;azao e da ciencia defendeu a ideia de uma fe incondiclOnada. Nlkolaev (1874-1948), contra 0 coletivismo comunista e con~ra.o hedonismo individualista burgues procurou fazer valer a ldela da pessoa humana como intersec~ao de um "cristianismo autentico" e de urn "socialismo autentico". . 7) Ainda na Fran~a, houve uma especie de "renasclm~nto existencialista" de Hegel, daquele Heg~l que, na Fen.omenologw do espirito, enfrenta os temas da existencla, como a fimtude humana, a morte, a rela98.0 com os outros etc. Fo~am expoentes desse "existencialismo hegeliano" Jean Wahl (nascldo em 1888), autor da ob~~A infelic.idade da consciencia na filosofia de Hegel; Alexander KOJeve(nascldo em 1902), que, em Introdw;ao it leitura de Hegel (1947), identificou 0 absoluto de Hegel com 0 homem-no-mundo; Jean Hyppolite (nascido em 1907), que, por seu turno, sustentou (em L6gica e existencia, 1953) que "0 homem existe como 0 ser-ai natural no qual aparece a consci€mcia de si universal do ser" . . 8) 0 absurdo da exisUmcia humana se express a de modo apalxonante e envolvente noMito de Sisifo (1943) de Albert Camus (1913-1960). Ademais, com0 homem em revolta, 'de 1951, projetou a revolta metafisica do homem, que "se ergue contra a pr6pria condi~ao e contra toda a cria~ao". Trata-se de defesa daquela dignidade humana que "nao posso deixar se aviltar em mim mesmo e tampouco nos outros". Karl Jaspers (1883 -1969) teorizou a situar;ao existencial do "fracas- so" (0 naufragio total das possibilidades do homem) como 0 "sinal" supremo em que se revelam a ser e a transcendencia. oes desse tipo que Jaspers s totalitarios (como 0marxista o livre. Os sistemas totalitarios hist6ria e "fundamentam a sua 3. Jean-Paul Sartre: da liberdade absoluta e inutil it liberdade hist6rica 3.1. Escrever para se compreender :r~stemun~a atenta e aguda do nosso tempo, Jean-Paul Sartre, nascldo em Pans em 1905, realizou seus estudos na Escola Normal Superior e ensinou filosofia nos liceus de Le Havre e Paris ate 0 inicio da ultima guerra, a exce~ao de um periodo que transcorreu em Berlim (1933-1934») onde estudou a fenomenologia e escreveu A transcendencia do Ego. . onvocado para 0 Exercito, foi aprisio- nado pelos alemaes e leva do para a Alemanha. Voltando logo depois para a Fran~a, fundou 0 grupo de resistencia intelectual "Socialismo e Liberdade", juntamente com Merleau-Ponty. No imediato ap6s-guerra, 0 seu pensamento se impos ao publico mundial durante cerca de duas decadas (gra~as sobretudo ao seu "teatro de situa~5es"), influindo amplamente na sociedade e nos costumes. Nas ultimas duas decadas, a atividade de Sartre nao teve descanso: suas viagens politicas (como a viagem a Cuba, onde encontrou Fidel Castro e Che Guevara, e a viagem a Moscou, onde foi recebido pOl' Kruschev) nao the impediram 0 frenetico trabalho de fil6sofo, romancista, ensaista, dramaturgo, conferen- cista e roteirista cinematografico. Sartre morreu em 1980. Simone de Beauvoir, que seria sua companheira de toda a vida, desde 0 inicio ficou impressionada pela "paixao tranquila e insensata" com que Sartre olhava 0 seu destino de pensador e escritor. Recorda eia emA idade forte: "Claro,ele nao se propunha levar vida de homem de estudo; detestava as rotinas e as hierar- quias, as carreiras, os lares, os direitos e os deveres, todo 0 Iado serio da vida. Nao se adaptava a ideia de tel' uma profissao, colegas, superiores, normas a observar e a impor; nunca se teria tornado chefe de familia e muito menos homem casado ( ... ). Nao teria lan~ado raizes em lugar nenhum enunca teria 0onus de propriedade alguma, nao para conservar-se ociosamente disponivel, mas para experimentar tudo. Todas as suas experiencias se canalizariam em beneficio de sua obra e teria descartado categoricamente todas aquelas que teriam podido reduzi-Ia ( ... ). Sartre sustentava que, quando se tem algo a dizer, qualquer desperdicio e criminoso. A obra de arte, a obra literaria, era para ele fim absoluto: levava em si a sua razao de ser, a de seu criador e, tal vez, tambem (... ) a de todo o uni verso".o destino e a tarefa de Sartre foram os do escritor. No fim de As palavras (1964), livro em que evoca a sua infancia, Sartre confessa: "Escrevo sempre. 0 que ha de diferente para fazer? Nulla dies sine linea. Eo meu habito e, ademais, e 0meu oficio. Durante muito tempo, tomei a pena pOl'uma espada; agora, conhe~o a nossa impotencia. Nao importa: fa~o e farei livros - isso e necessario. E, apesar de tudo, serve. A cultura nao salva nada nem ninguem, nao justifica. Mas e um produto do homem: nela ele se projeta e se reconhece; esse espelho critico eo linico a oferecer-Ihe a sua imagem". Sartre registrou 0 seu pensamento seja em romances (A nau- sea, 1938; A idade da raziio, 1945; 0 adiamento, 1945; A morte na alma, 1949), seja em escritos para 0 teatro (As moscas, 1943;A portas fechadas; 1945; A prostituta respeitosa, 1946;Maos sujas, 1948; 0 diabo eo bom Deus, 1951; Nekrassou, 1956; Os seqiiestrados de Altona, 1960), seja no panfleto politico (0 anti-semitismo, 1946; Os comunistas e a paz, 1952), aMm de obras de pura natureza filosofica (das quais a mais importante e 0 ser e 0 nada. Ensaio de uma ontologia fenomenol6gica, 1943, e dentre as quais nao podemos esquecer: A transcendencia do Ego, 1936; A imaginaqao, 1936; Ensaio de uma teoria das emoqi5es, 1939; 0 imaginario. Psicologia fenomenol6gica da imaginaqao, 1940).0 ensaio 0 existencialismo e um humanismo e de 1946, ao passe que em 1960 apareceu a Critica da razao dialetica. "Assim, ha pouco eu estava no jardim publico. A raiz da castanheira afunda va na terra, precisamente sob 0meu banco. Nao me recordava mais que era raiz. As palavras haviam desaparecido. E, com elas, 0 significado das coisas, as formas do seu uso, os tenues sinais de reconhecimento que os homens tra~aram sobre a sua superficie (... ). A raiz, as grades do jardim, 0 banco, a rala grama do prado, tudo havia desaparecido: a diversidade das coisas e sua individualidade nada mais eram que aparencia, urn verniz. Como esse verniz se havia dissolvido, restavam manchas monstruosas e mass as ,em desordem, nuas, de uma impressionante e obscena nudez. Eramos um monte de existentes amontoados, obstaculizados por nos mesmos: nao tinhamos a minima razao para estar ali, nem uns nem outros; cada existente, confuso e vagamente inquieto, sentia-se demais em rela~ao aos outros. Demais: essa era a linica rela~ao que eu poderia estabelecer entre aquelas arvores, aquelas grades, aqueles seixos". Roquentin sente, portanto, que a realidade e ele mesmo estavam demais. E esse e urn sentimento iluminante, que the "tira a respira~ao": "Esse momento foi extraordinario. Eu estava ali, imovel e gelado, imerso em extase horrivel. Mas no seio mesmo desse extase nascera algo de novo e eu compreendia a Nausea- agora, eu a possuia". E Roquentin poe essa descoberta nas seguin- tes palavras: "0 essencial e a conting€mcia. Quero dizer que, por defini~ao, a existencia nao e a necessidade. Existir e estar ali, simplesmente: os seres aparecem, se deixam encontrar, mas nunca se pode deduzi-los (. .. ). Nao ha nenhum ser necessario que possa explicar a existencia: a contingencianao e falsa fisionomia, aparencia que pode se dissipar; e 0 absoluto e, por conseqiiencia, a perfeita gratuidade". E ai que Sartre queria chegar: "Tudo e gratuito: este jardim, est a cidade, eu proprio. E, quando acontece de nos darmos co.nta disso, revolta-se-nos 0 estomago e tudo se poe a flutuar ... elS a Nausea". A vida de Roquentin e desprovida de sentido; nenhum objetivo consegue mais orienta-Io; ele existe como uma coisa, como to~as as coisas que emergem, na experiencia da nausea, em sua gratUld~de e em seu absurdo: urn sujeito sem sentido cancela de golpe 0 sentIdo de todas as coisas e passam a faltar instru~oes para 0 seu uso. A nausea de Sartre nao esta longe da angustia de Heidegger. 3.2. A nausea diante da gratuidade das coisas Sartre iniciou a sua atividade de pensador com analises de psicologia fenomenologica relativas ao eu, a imaginaqao e as emoqoes. Ele retoma de Hussed a ideia de intencionalidade da consciencia, censurando-o, porem, por ter caido no idealismo e no solipsismo com 0 seu sujeito transcendental. EmA transcendencia do Ego, Sal'tre afirma que "0 eu nao e habitante da consciencia", pois ele "nao esta na consciencia, mas fora dela, no mundo: e urn ente do mundo como 0 eu de outro". E se compraz por "ter lan~ado novamente 0 homem ao mundo (. ..), restituindo as suas anglistias e aos seus sofrimentos, bem como as suas revoltas, todo 0 seu peso". Para Husserl, 0 eu porta consigo a imagem das coisas, 0 fantasma idealista domundo. Mas, em 0 ser e 0nada, Sartre objeta que "urna mesa nao esta na consciencia, nem mesmo a titulo -de- representa~ao. Uma mesa esta no espa~o, proxima a janela etc. (. .. ). 0 primeiro passe que a filosofia tern a dar e precisamente 0 de expelir as coisas da consciencia e restabelecer a verdadeira rela~ao dela com 0 mundo, isto e, de que a consciencia e consciencia posicional do mundo". 0 homem, diz Sartre, e 0 ser cujo apareci- mento faz com que exista urn mundo. 0 mundo nao e a consciencia. A consciencia e abertura para 0 mundo; a consciencia esta encar- nada na densa realidade do universe; 0mundo pode ser visto como urn conjunto de utensilios. Mas 0 mundo nao e a existencia. E, quando 0 homem nao tem mais objetivos, 0mundo fica desprovido de sentido. Essa e a tese expressa por Sartre emA nausea, na qual 0 autor opoe 0 absurdo aos valores positivos da filosofia'classica. 0 heroi do romance e Antoine Roquentin, que, refletindo sobre as razoes de sua propria existencia e domundo que 0circunda, tern a experiencia reveladora da nausea. A nausea e 0 sentimento que nos invade quando descobrimos a contingencia essencial e 0 absurdo do real. 3.3. 0 "em-si" e 0 "para-si", 0 "ser" e 0 "nada" Se a experiencia da nausea revel a a gratuidade das coisas e do homem reduzido a coisa e submerso nas coisas, a analise desen- volvida em 0 ser e 0 nada revela, antes de mais nada, que a consciencia e sempre consciencia de algo, de algo que nao e cons- ciencia. Em outras palavras, 0 exame da experiencia nos mostra que desde 0 inicio 0 ser-em-si, isto e, os objetos que transcendem a consciencia, nao saDa consciencia. Eu tenho consciencia dos objetos do mundo, mas nenhum desses objetos e a minha consciencia: a consciencia "e urn nada de ser e, ao mesmo tempo, urn poder nulificante, 0 nada". o mundo e 0 "em-si", e 0 dado "misturado de si mesmo", "opaco a si mesmo porque cheio de si mesnio", absolutamente contingente e gratuito (como precisamente revela a nausea). Diante do "em si" esta a consciencia, que Sartre chama 0 "para -si". A consciencia esta no mundo, no ser-em-si, mas e radical mente diferente dele, nao esta ligada a ele. A consciencia, que vem a ser a existencia ou 0 homem, e, portanto, absolutamente livre. 0 "em si" e "0 ser que e o que e"; a consciencia nao e objeto. 0 ser e pleno e completo; a consciencia e vazia de ser, e possibilidade - e a possibilidade nao e realidade.A consciencia e liberdade. . Escreve Sartre em 0 ser e °nada: "A liberdade nao e um ser: ela e 0 ser do hornem, isto e, 0 seu nada de ser". A liberdade e constitutiva da consciencia: "Eu estou condenado a existir para sempre alem dos moventes e dos motivos do meu ato: eu estou condenado a ser livre. Isso significa que nao se pode encontrar limites para a minha liberdade alem da propria liberdade ou, se assim se preferir, que nao somos livres de deixar de ser livres". Uma vez lan~ado a vida, 0 homem e responsavel por tudo 0 que faz do projeto fundamental, isto e, da sua vida. E ninguem tern desculpas: se falimos, falimos porque escolhemos a falencia. Procurar desculpas significa estar de ma fe: a ma fe apresenta 0 desejado como ne- cessidade inevitavel. Sartre analisou com firmeza as astutas in- ven{:6es da ma fe. o homem e 0 que projeta ser. Se eu sou mobilizado em urna guerra, ela e a minha guerra: eu a mereci, porque podia deixar de me alistar, pelo suicidio ou pel a deser~ao; se, por urn motivo ou por outro, eu me alisto, no fundo fui eu que escolhi aquela guerra. Em As moscas (trata-se de obra que se ref ere a ocupa~ao nazista e ao colaboracionismo), vemos que, enquanto 0 amor pela ordem em- purra toda uma classe de horn ens a trair e espalhar 0medo, Orestes convoca os outros a ter dignidade e os exorta a resistencia: "Se a liberdade explodiu no espirito de urn homem, os deuses nao tern m~is nenhum poder sobre ele". E e ainda Orestes que grita: "Its 0 reI dos deuses, Jupiter, 0 rei das pedras e das estrelas, 0 rei das ondal'! do mar, mas nao es 0 rei dos homens". . E .o. homem, portanto, que se escolhe; a sua liberdade e mcondIcIonal e ele pode mudar 0 seu projeto fundamental a qualquer momento. E, assim como a nausea constitui aquela ex- periencia metafisica que revela a gratuidade e 0 absurdo das coisas, da mesma forma a angustia e a experiencia metafisica do nada isto e, da liberdade incondicional. Com efeito, 0 homem e s6 0 hom~m e "0 ser para 0 qual todos os valores existem". Mas estabelecido isso.....,; . . " nao e precIso mUlto para ver que, entao, "todas as atividades humanas saD equivalentes ( ... ) e que todas estao destinadas em pri~c!pio a falenc~a. No fundo, e a mesma coisa embriagar-se na sohdao ou conduzIr os povos. Se urna dessas atividades e superior aoutra, nao e por causa do seu objetivo real, e sim por causa da cons- ciencia que possui do seu objetivo ideal. E, nesse caso 0 quietismo do ebrio s~litario e superi~r a va a~ta~ao do condutdr de povos". As COlsas do mundo saD gratUltas e urn valor nao e superior a outro. As cois~s sao desp:ovidas de sentido e fundamento e as a~6es dos homens saD desprovIdas de valor. Em suma, a vida e aventura absurda, onde 0 homem se projeta continuamente alem de si mesmo, como que para poder tornar-se deus. Escreve Sartre: "0 homem e 0 ser que projeta ser Deus", mas, na realidade, ele se mostra como aquilo que e, "uma paixao inutil". E podemos ler ainda em 0 ser eo nada: "A liberdade consiste na escolha do pr6prio ser. E essa escolha e absurda". 3.4. 0 "ser-para-outros" o homem ou ser-para-si e tambemser-para-outros (etre-pour- autrui). 0outro nao tern necessidade de ser inferido analogicamente a partir de mim mesmo. 0 outro se revela como outro naquelas experiencias em que ele invade 0 campo da minha subjetividade e, de sujeito, me transforma em objeto do seu mundo. Em surna, 0 outro nao e aquele que e visto por mim, mas muito mais aquele que me ve, aquele que se me torna presente, para alem de qualquer duvida, mantendo-me sob a opressao do seu olhar. Sartre analisa com magistral habilidade aquelas experiencias tipicas do olhar- alheio, que geralmente saD as experiencias da inferioridade, como a vergonha, 0 pudor, a timidez. Quando outro entra subitamente no mundo da minha consciencia, a minha experiencia se modifica: nao tern mais 0 seu centro em mim e eu me vejo como elemento de urn projeto que nao e meu e nao me pertence. 0 olhar alheio me fixa e me paralisa, ao passo que, quando 0 outro estava ausente, eu era livre, isto e, era sujeito e nao objeto. Quando aparece 0 outro, portanto, nasce 0 conflito: "0 conflito e 0 sentido original do ser- para-outros". Diz ainda Sartre: "A minha queda original e a existencia do outro". E tambem faz uma das personagens deA portas fechadas pronunciar a famosa expressao: "0 inferno saD os outros". Apenas para explicitar 0 pensamento de Sartre 80bre esse ponto, vejamos brevemente a sua analise sobre a vergonha. Se eu estou so, nao me envergonho. So me envergonho quando aparece outro que, com sua presenc;:a, me reduz a objeto, a urn "em-si". Nesse sentido, "a vergonha pura nao e 0 sentimento de ser este ou aquele objeto repreensivel, mas de ser urn objeto em geral, isto e, de reconhecer-me nesse objeto degradado, dependente e fixo que eu sou para os outros. A vergonha e 0 sentimento de queda original, nao porque eu tenha cometido esta ou aquela culpa, mas somente porque eu cai no mundo, em meio as coisas". E caio no mundo pOl' obra do olhar alheio. POl' isso, 0 conflito e 0 sentido original do ser-para-outros: os horn ens tendem a subjugar para nao serem subjugados. E 0 mesmo que acontece no amor: "em sua essencia, amar e 0 projeto de fazer-se amar", e vinganya sobre quem quer fazer de nos instrumento, e procurar fazer prisioneira a vontade alheia, que tenta nos paralisar. E, se 0 am or e projeto cheio de egoismo, volta do para negar a liberdade do outro, no odio eu reconhec;:o a liberdade do outro, mas a reconhec;:o como oposta a minha e procuro nega-Ia. E, assim, como no amor, 0 outro se faz carne para quem se torna carne para ele, razao pOl'que a minha posse do outro, pOl'seu turno, me faz tornar-me posse dele, da mesma forma 0 odio homicida me degrada para sempre como assassino. 0 arnor e 0 odio representam os dois tipos de relayao fundamental com os outros. E ambos estao destinados ao insucesso. 0 homem e uma paixao, mas paixao imitil. E "cad a urn de nos e carnifice para os outros". 3.5. 0 existencialismo e um humanismo Nos anos seguintes a 0 ser e °nada, Sartre atenuou sempre mais 0 tom desesperado de sua filosofia inicial, como veremos a seguir. Apossibilidade de urn sentido menos negativo da coexisrencia humanaja aparece no ensaio 0 existenciaZismo e um humanismo, publicado em 1946 para responder sobretudo aos marxistas que haviam acusado a doutrina de Sartre sobre a liberdade de "gratuidade gideana". Nesse escrito, Sartre tambem identifica 0 homem com a sua liberdade: 0 homem nao esta de modo algum sujeito ao determinismo; a sua vida nao se assemelha a da planta, cujo futuroja esta "escrito" na semente; 0 homem e 0 demiurgo do seu futuro. Em suma, 0 homem nao e uma essencia fixa: ele e muito mais o que projeta ser. Nele, a exisrencia precede a essencia. Ora, "se, na realidade, a exisrencia precede a essencia, nunc a sera possivel explica-Ia em referencia a uma natureza humana dada e nao modificavel; em outras palavras, nao ha determinismo, 0 homem e livre, 0hornem e liberdade". POI'outro lade, "se (. .. )Deus nao existe, nos nao encontramos diante de nos valores e or dens em condic;:oes de legitimar a nossa conduta. Assim, nem atras nern diante de nos, em urn dominio lurninoso de valores, nao Femos justificac;:oes nern desculpas. Estamos sos, sem desculpas. E isso 0 que eu expresso com a afirmayao de que 0 homem esta condenado a ser livre. Condenado porque nao se criou de si mesmo e no entanto livre, "porque, uma vez lanc;:ado ao mundo, e responsavel pOl' tudo aquilo que faz". A liberdade defendida pOl' Sartre e uma liberdade absoluta e a responsabilidade que, consequenternente, ele atribui ao hornern e total. Com efeito, 0 existencialista "nunca pensara que uma bela paixao e uma torrente devastadora, que leva fatalrnente 0 hornem a certos atos e que, consequentemente, vale como desculpa. Ele pensa que 0 homem e responsavel pOl'sua paixao.0 existencialista tarnbem nao pensara que 0 homem pode encontrar socorro em urn sinal que the seja dado sobre a terra, a titulo de orientac;:ao; com efeito, ele pens a que 0 hornem decifra pOl' si mesmo 0 sinal como rnelhor the parece. Assim, ele pensa que 0 hornern, sem ajuda nern apoio algum, esta condenado a todo instante a inventar 0 hornem Coo.). 0 homem inventa 0 homem". A liberdade e absoluta e a responsabilidade e total. Mas ja estamos em 1946: Sartre tern atras de si uma guerra terrivel e a experiencia da Resistencia; mas, diante dele, esta a grande questao da reconstruc;:ao. Todas essas coisas nao pass am em vao, deixando urn trac;:o no seu pensamento, onde se delineia uma moral social com base no nexo entre a liberdade de cada urn e a liberdade dos outros: "N6s queremos a liberdade pela liberdade e atraves de cada circunstancia particular. E, querendo a liberdade, descobrimos que ela depende da liberdade dos outros e que a liberdade dos outros depende da nossa. N aturalrnente, a liberdade como defini~ao do homem nao depende de outros; mas, enquanto ha urn cornpromisso, eu sou obrigado a querer ao mesmo tempo a minha liberdade e a liberdade dos outros, nem posso tamar a minhe liberdade como fim se nao tomar igualrnente como fim a liberdade dOBoutros." 3.6. Critica da razao diaIetica A minha liberdade, porem, nao depende somente da liberdade dos outros. Ela tambem e condicionada pOI'situayoesprecisas, com as q~ais os projetos fundamentais dos homens tern que se defron- tar. E com base nisso que Sartre enfrenta a questao das relayoes entre 0 seu existencialismo e 0 marxismo, como mostram varios ensaios escritos para a revista "Tempos Modernos" Crevista diri- gida pelo proprio Sartre) e, sobretudo, a obra Critica da razao dia- Zetica Cdaqual so apareceu a primeira parte, Teoria dos conjuntos praticos). Na realidade, afirma Sartre, "dizer de urn homem 0 que ele e significa dizer a que ele pode e, reciprocamente: as condifoes materiais de sua existencia circunscrevem 0 campo de suas pos- sibilidades (. ..), de modo que 0 campo do possivel e 0 objetivo em direfao ao qual 0 agente ultrapassa a sua situa~ao objetiva. E esse campo, por seu turno, depende estritamente da realidade social e historica" . Com base nisso, pode-se compreender por que Sartre afirma firmemente aderir sem reservas a teoria domaterialismo hist6rico, para a qual, como diz Marx, "0 modo de produfaO da vida material domina em geral 0 desenvolvimento da vida social, politica e intelectual". Mas, se Sartre adere aomaterialismo historico, rejeita, porem, 0materialismo dialetico. Em surna, para Sartre, 0marxismo nao e de modo algum "0 materialismo dialetico, se por isso se entende a ilusao metafisica de descobrir urna dialetica na natureza. Essa dialetica pode efeti vamente existir, mas e preciso reconhecer que nao temos disso a minima prova que seja. Por isso, 0materia- lismo dialetico se reduz a discurso ocioso e presun~oso sobre as ciencias fisico-quimicas e bio16gicas, servindo somente para dissi- mular, pelo menos na Franfa, 0mais estrito mecanicismo analitico". Em suma, Sartre nao aceita as tres leis da dialetica propostas por Engels como regras que guiariam 0 desenvolvimento da na- tureza, da historia e do pensamento. A admissao dessas leis gerais do devir implicaria urn ingenuo otimismo que proclamasse urn finalismo de tipo hegeliano e, 0 que e ainda mais inadmis- sivel, reduziria 0 homem a simples instrumento passivo da gran- de maquina dialetica, incapaz de se subtrair ao mais rigido determinismo. A doutrina da dialetica e "urn Saber puro e enrijecido, incapaz de se autocorrigir, porque ja se transformou em dogma". Escreve Sartre: "Durante anos, 0 intelectual marxista acreditou estar servindo ao seu proprio partido ao violar a experiencia, ao prescindir dos particulares embarafantes, ao simplificar grosseiramente os dados e, sobretudo, ao conceitualizar 0 acontecimento antes de te- 19estudado". A dialetica e dogma - e a dogma nao teme os fatos. E essa a razao por que, diante de toda possivel experiencia, 0 marxista nao muda de opiniaa. Assim, enquanto "0 marxismo vivo e heuristico", 0 marxismo oficial, 0 dialetico, e somente uma cerimonia: "Os conceitos abertos do marxismo se fecharam; nao san mais chaves ou esquemas de interpretaf8.o; colocam-se para si mesmos como saberja totalizado". o marxista transformou 0 marxismo em "saber eterno" e, desse modo, "a busca totalizadora deu lugar a uma escolastica da tota- lidade". 0 principia heuristico "procuraro todo atraves das partes" transformou-se em pratica terrorista: "liquidar a particularidade". Com base nessas premissas, pode-se bem compreender, diz Sartre, por que 0marxismo "nao sabe mais nada: os seus conceitos san diktat; 0 seu fim nao emais 0 de adquirir conhecimentos, senao de se constituir a priori como Saber absoluto". E como 0marxismo, com a teoria dialetica, dissolveu os homens "em urn banho de acido sulfUrico", "0 existencialismo pode renascer e se manter porque afirma va a realidade dos homens, como Kierkegaard afirmava sua propria realidade contra Hegel". 4. Maurice Merleau-P y: entre existenc· alismo e fe omenologia
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