Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
/ 4. Arthur Schopenhauer e 0mundo como "vontade" e "representa~ao" 4.1. Contra Hegel, "sicario da verdade" Schopenhauer mostra-se firme contra Hegel: "Depois de ter sido honrada por Kant, a filosofia tornou-se instrumento de inte- resses estranhos, interesses de Estado por cima e interesses pessoais por baixo (. ..); os interesses para os quais se tende sao interesses pessoais, profissionais, eclesiais e estatais, ou seja, em breve, interesses materiais". As nurnerosas penas dos sabios uni- versais, nada mais do que vociferadores, nao estao a servi<;:ode motivos ideais. E a verda de e a ultima coisa em que se pensa. E prossegue Schopenhauer: "Ousaria dizer que nenhumaepoca pode ser mais desfavoravel a filosofia do que a epoca'na qual, por urn lado, a filosofia e explorada ignobilmente comomeio de governo e, por outro lado, comomeio de lucro (. ..). A verdade nao e meretriz, que se lan<;:aao pesco<;:ode quem nao a quer: ela possui beleza tao altiva que ate quem a ela tudo sacrifica nao pode ainda estar certo de obter os seus favores." :It com horror que Schopenhauer constata 0 fato' de que "hoje os govemos fazem da filosofia urn meio para os seus fins de Estado e os doutos veem nas catedras filos6ficas apenas urn 'oficio,que, a exemplo de outros, esta em condi<;:6esde alimentar quem,o exerce". E, sendo assim ele se pergunta: "Como e possivel evitar .c.~'..)que a filosofia, degradada a instrumento de lucro, degenere em sofistica? Precisamente por ser isso inevitavel, e porque a norma 'cantarei os louvores de quem me da 0 pao' sempre esteve em vigor, para os antigos, ganhar dinheiro com filosofia era a marca'distintiva dos sofistas". E Schopenhauer ve como 0 maior sofista de seusdias preci- samente Hegel, "0 academico mercenmo". Para ele, Hegel e "uma especie de Caliban intelectual". Diz ele: "Instalado no alto, pelas for<;:asdo poder, Hegel foi charlatao de mente obtusa, insipido, nauseabundo e iletrado, que alcan<;:ou0 cUmulo da audacia gara- tujando e difundindo osmais loucos emistificadores contra-sensos. E esses contra-sensos foram barulhentamente celebrados como sabedoria imortal por seguidores mercenarios, sendo prontamente aceitos como tais por todos os tolos, que assi:tn se' uniram para entoar urn cora de admira<;:aotao perfeito como minca:,se ouvira antes. 0 ime:r'lsocampo de influencia espiritual posta a'disposi<;:ao de Hegel pelos que estavam no poder permitiu-lhe perpretar a corrup<;:aointelectual de urna gera<;:aointeira." , Fichte e Schelling representam para Schopemhauer "a enfatuada vacuidade", ao passo que Hegel "0 meTo charlatanismo". E a sonora eloqiiencia dos catedraticos, confessa amargarriente Schopenhauer, urdiu a conjura do silencio em tomo de sua (de Schopenhauer) filosofia, "para a qual a linica estrela polar em cuja dire<;:aovolta sempre 0 seu timao, sem olhar a direita nem a esquerda, e a simples, a crua, a nao remunerada"a desprovida de amigos e a freqiientemente perseguida verdade". Em surna, para Schopenhauer, 0 pensamento de Hegel e "palha<;:adafilos6fica", reduzindo-se unicamente "a mais vazia e insignificante conversa fiada com que jamais se contentou algum pateta". Hegel e "charlatao pesado e mofino", que se expressa no Igor Realce Igor Realce A. Schopenhauer (1788-1860): contra 0 otimismo de Hegel,.conside- rado "academicQ mercenario" e "sicario da uerdade", sustenta que a vida e dor, a hiBt6ria e cego acaso e 0 progresso e ilusCio. 222 ''jargao mais repugnante e ao mesmo tempo insensato, que lembra odelirio dos loucos".Hegel, esse siccirio da verdade, torna a filosofia serva do Estado e golpeia no corar;:aoa liberdade de pensamento: "Que melhor preparar;:ao para as futuros empregados do governo e chefes de ser;:aodo que essa, que ensinava a dar toda ,a vida ao Estado, a pertencer-lhe de corpo e alma comoas abelhas ilcolmeia, a nao ter outro objetivo do que a de se tornar urna engrenagem ca- paz de ajudar a manter em pe a grande maquina doEstado? 0chefe de ser;:aoe a homem, assim, eram uma unica e mesma coisa (... )" 4.2. Defesa da "verdade nao remunerada" A filosofia servil dos charlatoes, para as quais a remunerar;:ao eo lucro sao as coisas mais importantes, Schopenhauer opoe sua propria "verda de nao remunerada", verdade que registra em sua obra maior, 0 mundo como vontade e representar;ao, publicada em 1819, quando tinha apenas trinta e tres anos. Com efeito, Arthur Schopenhauer nascera em Dantzig, em 22 de fevereiro de 1788, filho do abastado comerciante Heinrich Floris Schopenhauer e de Johanna Henriette Trosenier. Encaminhado ao comercio pelo pai, Schopenhauer, porem, decide se dedicar aos estudos depois do desaparecimento do pai, que se suicidou (foi encontrad0 em urn canal atras do celeiro) em 1805. Matriculou-se na Universidade de Gotinga, onde teve par professor a cetico G. E. Schulze, autor de Enesidemo (cf. p. 53). Foi par conselho de Schulze que ele estudou "0 surpreendente Kant" e "0 divino Platao". No outono de 1811, foi para Berlim, onde ouviu as lir;:oesde Fichte, mostrando-se decep- cionado. Em 1813, recebeu a laurea em filosofia na Universidade de Jena, com a dissertar;:ao Sobre a qucidrupla. raiz do principio de razao suficiente. EmWeimar, amae Johanna (escritora de romances e mulher ciasociedade) criara urn salao que Schopenhauer visitou algumas vezes, encontrando la personagens como Goethe au a orientalista Friedrich Mayer, que a introduziu no pensamEmto hindu, aconselhando a leitura dos Upanixadas. Em 1814, porem, Johanna abrigou estavelmente em sua casa urn admirador, in- terrompendo-se entao as relar;:6esja turbulentas entre maee filho. Assim, Arthur transferiu-se para Dresda, onde em 1818 concluiu a obra 0 mundo como vontade e representar;ao, que, publicada no ana segtiinte, teria misera repercussao, tanto que a maior parte dessa primei:ra..edir;:aoacabou inutilizada. 'Em 1820,Schopenhauer troca Dresda por Berlim, com a objetivo de empreender aqui a carreira academica. Em 23 de abril, realiza as lir;:6esde prova e, com toda a faculdade reunida, a discussao deSobre quatro diferentes especies de causa. Durante essa discussao, entra em conflito com Hegel. De 1820 a 1831, durante Igor Realce Igor Nota s.m. Assassino contratado para cometer qualquer espécie de crime: assalariar sicários.nullMalfeitor, facínora.nullAdj. Cruel, sanguinolento. Igor Realce nada menos que vinte e quatro semestres, tentaria ter aulas em concorrencia com Hegel. Mas so alcanc;ou 0 seu intento no primeiro desses semestres, ja que, depois, nao teve mais estudantes. Homemdemuitaculturaegrandeviajante, em 1831, parafugir a epidemia de peste que grassava em Berlim, Schopenhauer se estabeleceu em Francoforte, onde ficou ate a sua morte, ocorrida em 21 de setembro de 1860. Nesse meio tempo, publicaraA vontade da natureza, em 1836, e as dois problemas fundamentais da etica, em 1841. Sua Ultima obra, Parerga eParalipomena, de 1851, e urn con- junto de ensaios (entre os quaisAfilosofia das universidades eAfo- rismos sobre a sabedoria da vida) escritos de modo brilhante e popular, que, precisamente por isso, contribuiram para difundir 0 pensamento de Schopenhauer. Desse modo, nos ultimos anos de sua vida, Schopenhauer teve a satisfac;ao do reconhecimento publico. Foi grande a influencia de Schopenhauer sobre a cultura posterior a ele: j a se falou do schopenha uerismo de filosofos contem- poraneos como Wittgenstein e Horkheimer e 0 seu pensamento, de alguma forma, marcou 0 romance europeu de Tolstoi, Maupassant, Zola, Anatole France, Kafka e T:p.omas Mann. Deve-se recordar ainda que, em 1858, na "Revista Contemporanea", De Sanctis publicou seu famoso artigo intitulado Schopenhauer e Leopardi. 4.3. "0 mundo e representa~ao minha" Escreve Schopenhauer no inicio de sua obra maior: "'0mundo e representac;ao minha': eis uma verda de valida para todo ser vivo e pensante, ainda que 0 homemso possa alcanc;a-la por consciencia abstrata e reflexa. Quando 0 homem adquire essa consciencia, 0 espirito filosofico entrou nele. Entao, sabe com clara certeza que nao conhece 0 sol nem a terra, mas somente que tern urn olho que ve 0 sol e uma mao que sente 0 contato de terra: sabe que 0 mundo circunstante so existe como representac;ao, isto e, sempre e somente em relac;ao com outro ser, com 0 ser que 0 percebe, com ele mesmo". Para Schopenhauer, nenhuma verdade e mais certa, mais absoluta emais flagrante do que essa: "Tudo 0que existe para 0 conhecimento, isto e, 0mundo inteiro, nada mais e do que 0 objeto em relac;ao com o sujeito, a percepc;ao que se da pelo espirito que percebe, em suma, representac;ao (. .. ). Tudo 0 que 0 mundo inclui ou pode incluir e inevitavelmente dependente do sujeito, nao existindo senao para 0 sujeito. 0 mundo e representac;ao". A concepc;ao segundo a qual 0 mundo e representac;ao nossa, segundo a qual nenhum de nos pode sair de si mesmo para ver as coisas como elas san e de que tudo aquilo de que temos conhecimento certo se encontra dentro da nossa consciencia constitui uma "ver- dade" da filosofia moderna, de Descartes a Berkeley. E e verdade Igor Realce -antiga, como se pode constatar pela fllosofia vedanta, segundo a qual a materia nao tern existencia independente da perceps:ao mental e a existencia e a perceptibilidade sao termos conversiveis entre si. . omundo erepresentas:ao. E a representas:ao tern duas metades essenciais, necessarias e inseparaveis, que sao 0 objeto e 0 sujeito. o sujeito da representas:ao e "0 que conhece, sem ser conhecido por nada ouninguem (... ).0 sujeito, portanto, e 0sustentaculo domundo, a condis:aouniversal, sempre subentendida, de todo fen6meno e de todo objeto: com efeito, tudo 0 que existe so existe em funs:ao do sujeito". 0 objeto da representas:ao, aquilo que e conhecido, e condicionado pelas formas a priori do espas:o e do tempo, atraves das quais se tern a pluralidade, pois toda coisa existe no espaco e no tempo. Ja 0 sujeito esta fora do espaco e do tempo, e inteiro e individual em cada ser capaz de representas:ao, razao por que "ate urn so desses seres, juntamente com 0 objeto, basta para constituir o mundo como representas:ao, tao completo comomilhoes de seres existentes; ao contrario, 0 desvanecimento desse Unico sujeito levaria ao desvanecimento do mundo como representas:ao". o sujeito e 0 objeto, portanto, sao inseparaveis, tambem para o pensamento: cada uma das duas metades "nao tern sentido nem existencia senao por meio da outra e em funs:ao da outra, ou seja, cada urna existe com a outra e comela se dissipa". Segue-se dai que o materialismo esta errado por negar 0 sujeito, reduzindo-o a materia, eo idealismo - 0 de Fichte, por exemplo - esta errado tambem porque nega 0 objeto, reduzindo-o ao sujeito. No entanto, o idealismo, depurado dos absurdos elaborados pelos "filosofos de universidade", e irrefutavel: 0 mundo e representa9ao minha e "e preciso ser abandonado por todos os deuses para imaginar que 0 mundo intuitivo, Eosto fora de nos, tal como preenche 0 espas:oem suas tres dimensoes, movendo-se no inexoravel curso do tempo, regido a cada passo pela indeclinavellei da causalidade (. ..), existe fora de nos comabsoluta realidade objetiva, sem qualquer concurso de nossa parte e que, depois, por meio das sensas:oes, entre em nosso cerebro, onde comes:aria a existir segunda vez, como existe fora de nos". Em surna, Scho'penhauer e contrario tanto ao materialismo, que nega 0 sujeito, reduzindo-o a materia, coi:po ao realismo, segundo 0 qual a realidade externa se refletiria poraquilo que esta em nossa mente. A verdade e que "nao pode haver de modo algum uma existencia absoluta e, em si mesma, objetiva - isso e impensavel. Tudo 0 que e objetivo tern sempre e essencialmente, como tal, sua existencia na consciencia de urn sujeito, sendo, portanto, sua representas:ao e sendo condicionado pelo sujeito e por suas formas representativas, que, como tais, sao inerentes ao Igor Realce sujeito e nao ao objeto". Em outros termos, 0 mundo, como nos aparece em sua imediaticidade considerado comoa realidade em si, e na verdade urn conjunto de representa¥oes condicionadas pelas formas a priori da consciencia, que, para Schopenhauer, SaD0 tempo e espa¥o e a causalidade. 4.4. A categoria da causalidade Comoja mostrava Kant, espa¥o e tempo SaDformas a priori da representa¥ao: toda a nossa sensa¥ao e percep¥ao de objetos e espacializada e temporalizada. E e sobre essas sensa¥oes· e per- cep¥oes espacializadas e temporalizadas que, depois, 0 intelecto entra em a¥ao, ordenando-as em cosmos cognoscitivo mediante a categoria da causalidade (Schopenhauer redu~ as doze categorias kantianas a unica categoria da causalidade): "E somente quando 0 intelecto entra em atividade e aplica a sua forma unica, a lei da causalidade, que se realiza importante transforma¥ao e a sensa¥ao subjetiva torna-se intui¥ao objetiva. Coni efeito, em virtude da forma que the e propria e, portanto, apriori (... )ele toma a sensa¥ao organica dada comoefeito (. ..),que, comotal, deve necessariamente ter causa." E atraves da categoria da causalidade que os objetos deter- minados espacial e temporalmente, que acontecem aqui ou alhu- res, neste ou naquele momenta, SaDpostos urn comodeterminante (ou causa) e outro comodeterminado (ou efeito), de modo que "toda a existencia de todos os objetos, Emquantoobjetos, representa¥oes e nada mais, em tudo e por tudo se vincule aquela sua necessaria e insubstituivel rela¥ao". Isso significa que a a¥ao causal do objeto sobre outros objetos e toda a realidade doobjeto.Conseqiientemente, a realidade da materia se exaure em sua causalidade, como tes- temunh~ inclusive 0 termo alemao Wirklichkeit, que significa ai realidade e que deriva do verbo wirken, isto e, agir. Aquilo que e determinado pelo principio de causalidade, afirma Schopenhauer, nao e simples sucessao no tempo, mas muito mais sucessao no tempo em rela¥ao a espa¥o determinado, nem e a presen¥a em "lugar puro", mas muito mais a presen¥a em lugar em rela¥ao a determinado tempo. Em suma, "amudan¥a que ocorre em virtude da lei causal diz respeito (. ..)vez por vez a determinada parte do espa¥o e a determinada parte do tempo, simultanea e juntamente: por isso, a causalidade conjuga 0 espa¥o com 0 tempo". o mundo e representa¥ao minha e a a¥ao ca~sal do objeto sobre os outros objetos e toda a realidade do objeto. E compreensi- vel, portanto,desde 0 escrito Sobre a quddrupla raiz do principio da raztio suficiente, a importancia que Schopenhauer atribui ao principio da .causalidade, cujas divers as formas determinam as _.''!!t:l _~. :~~~:l!_ ~--...• ~~- G\ Igor Realce Igor Realce Igor Realce categorias dos objetos cognosciveis: 1) 0 principio de razao suficien- te do devir representa a causalidade entre os objetos naturais; 2) 0 principio de razao do conhecer regula as rela<;:oesentre os juizos pelos quais a veracidade das premissas.determina a das conclusoes; 3) 0 principio de razao suficiente do ser regula as rela<;:oesentre as partes do tempo e do espa<;:oe determlna a concatena<;:aodos entes aritmeticos e geometricos; 4) 0 principio de razao suficiente do agir regula as rela<;:oesentre as a<;:oese seus motivos. Para Schopenhauer, sac essas as quatro formas do principio da causalidade, quatro formas de necessidade que estruturam ri- gidamente todo 0 mundo da representa<;:ao: necessidade fisica, ile- cessidade logica, necessidade matematica, necessidade moral. Esta Ultima necessidade, pela qual 0 homem, como 0 animal, age neces- sariamente com base em motivos exclui a liberdade da vontade: como fen6meno, 0 homem submete-se a lei dos outros fen6menos, ainda que, comoveremos, nao se reduza ao fen6meno, tendo a pos- sibilidade, ligada a sua essencia numenica, de ?e reconhecer livre. o mundo, portanto,e representa<;:ao minha ordenada pelas categorias doespa<;:o,do tempo e da causalidade. 0 intelecto ordena e sistematiza, atraves da categoria da causalidade, os da~os das intui<;:oesespacio-temporais, captando assim os nexos entre os objetos e as leis do seu comportamento. Mas, ainda que sEmdoesse o modo como as coisas se pass am, 0 intelecto nao nos levaalem do mundo sensivel. Como representa<;:ao,portanto, 0mundo e fenomeno e, porisso, nao e possivel distin<;:aoreal e clara entre 0 sonho e 13-vigilia: 0 sonho tern somente menos continuidade e coerencia do que a vigJ.1ia.Ha estreito parentesco entre a vida e 0 sonho e, diz Schopenhauer, "nos nao nos envergonhamos de proclama-Ia, tantos foram os grandes espiritos que a reconheceram eproclamaram". OsVeda e osPurana chamam a consciencia domundo de "0 veu de Maia"; Platao afirma ami ude que os homens vivem no sonho; Pindaro diz que "0 homem eo sonho de uma sombra"; Sofocles compara os,homens a simulacros e sombras leves; Shakespeare sentencia que "nos somos da mesma materia de que sac feitos os sonhos. e:a nossa breve vida e circun- dada por sono"; e, para Calderon, "a vida e sonho". . Seguindo as pegadas desses pensadores e pela precis a razao de que "0 mundo e representa<;:ao minha", Schopenhauer escreve que "a vida e os sonhos sac paginas do mesmo livro. A leitura corrida e a vida real. Mas, quando a hora habitual da leitura (0 dia) ja passou, chegando 0 momento do repouso, continuamos amiude a folhear ociosamente 0 livro, abrindo ao acaso esta ou aquela Igor Realce Igor Nota importante Igor Realce pagina, sem ordem e sem seqiiencia, defrontando-nos ora comuma paginaja lida, ora com urna nova; mas 0 livro que lemos e sempre o mesmo". o mundo como representa~ao nao e a coisa em si, e fenomeno, "e objeto para 0 sujeito". Mas Schopenhauer nao fala, como Kant, do fenomeno comode representa~ao que nao diz respeito e nao pode captar 0 mimeno, isto e, a coisa em si. Para Schopenhauer, 0 fenomeno, aquilo de que fala a representa~ao, e ilusao e aparencia, e aquilo que, na filosofia hindu, chama-se 0 "veu deMaia" que cobre a face das coisas. Para Kant, em surna, 0 fenomeno e a unica realidade cognoscivel, mas, para Schopenhauer, 0 fenomeno e a ilusao que envolve a realidade das coisas em sua essencia primigenia e autentica. Pois bern, na opiniao de Schopenhauer, pode-se alcanyar essa essenci'a da realidade, 0 mimeno que, para Kant, permanece incognoscivel. Ele compara 0 caminho que leva a essencia da realidade a urna especie de passagem subterranea que, de surpresa, leva precisamente ao interior daquela fortaleza considerada inexpugnavel por fora. Com efeito, 0 hornem e representa~ao e fenomeno, mas nao e somente isso, ja que tambem e sujeito cognoscente. Ademais, 0 homem tambem, e "corpo". Entretanto, 0 corpo e dado ao sujeito cognoscente de dois modos inteiramente diversos: por urn lado, como representa~ao, e como objeto entre objetos, submetidos as suas leis; por outro lado, "e dado como algo de imediatamente conhecido de cada urn e que e designado pelo nome de vontade. Todo ato real da sua vontade, infalivelmente, e sempre e tambem movimento do seu corpo; 0 sujeito nao pode querer efetivamente urn ato sem constatar aomesmo tempo que ele aparece como movimento do seu corpo. 0 ato volitivo e a a~ao do corpo (.. ,..)sao (... ) urna so e mesma coisa, que nos e dada de dois modos essencialmente diversos: por urn lado, imediatamente; por outro lado, como intui~ao pelo intelecto". Claro, podemos olhar 0 nosso corpoe falar dele como de qualquer outro objeto - e, nesse caso, ele e fenomeno. Mas e atraves donosso corpo que sentimos que vivemos, experimentamos prazer e dor e percebemos 0 anseio de viver e 0 impulso a conser- va~ao. E e atraves do proprio corpo que cada urn de nos sente que "a essencia intima do proprio fenomeno (manifestimdo-se para ele comorepresenta~ao, tanto por meio de suas a~6escomopor meio do seu substrato permanente, 0 corpo) nada mais e do que a sua vontade, que constitui 0 objeto imediato de sua propria consciencia. E essa vontade nao se enquadra no modo de conhecimento em que sujeito e objeto se contrap6em urn ao outro, "mas se nos apresenta por via imediata, na qua1 nao se pode mais distinguir claramente o sujeito do objeto". _. , ::I ; < ) ,~,. ~W Igor Realce Igor Realce A essencia do nosso ser, portanto, e a vontade: a imersao no profundo de n6s mesmos faz com que descubramos que somos vontade. Mas, ao mesmo tempo, essa imersao rompe 0 "veu de Maia" e faz com que nos vejamos como partes daquela von~ade linica, daquele "cego e irresistivel impeto" que permeia, se'aiJ:ta e esquadrinha por todo 0 universo. Em outros termos, a consciencia eo sentimento donosso corpo comovontade levam-nos a reconhecer que toda a universalidade dos fenomenos, embora tao diversos em suas manifesta~6es, tern urna s6 e identic a essencia: aquela que conhecemos mais diretamente, mais intimamente emelhor do que qualquer outra, aquela que, em fulgida manifestayao, toma 0 nome de "vontade". E, afirma Schopenhauer, quem compreender isso "vera von- tade (. ..) na for~a que faz crescer e vegetar a planta; na forya que da forma ao cristal; na forya que dirige a agulha magnetica para 0 norte; na comoyaoque se experimenta no contato entre dois metais heterogeneos; na forya que se manifesta nas afinidades eletivas da materia, em forma de atra~ao e repulsao, de combinayao e de- composi~ao; e ate na gravidade, que age com toda potencia em toda materia e atrai a pedra para a terra como a terra para 0 ceu". :It essa, portanto, a reflexao que torn a possivel ultrapassar 0 fenomeno e chegar a coisa em si. 0 fen6meno e representayao e nada mais: "coisa em si e somente a vontade, que, nesse titulo, nao edemodo algum representa~ao; ao contrario, dela difere toto genere". Os fenomenos, ligados ao principio de identifica~ao que e 0 espayo- tempo, sao mrutiplos, aopasso que a vontade e unica. E ecega, livre, sem objetivo e irracional. A insaciabilidade e a eterna insatisfa~ao darao lugar a urna cadeia ascensional de seres nas for~as' d'a natureza, no reino vegetal, no reino animal e no reino huinano, seres que, premidos por impulso cego e irresistivel, lutam urn contra 0 outro para se imporem e dominarem 0 real. Essa dilacera~ao, essa luta sem tregua e sem fun, agus:a-se na a~ao consciente do homem subjugando e explorando a natureza, por urn lado, e no cruel conflito entre os diversos egoismos indo- maveis, por outro lado. Em poucas palavras, "a vontade e a substancia intima, 0 nucleo de toda coisa particular e do todo; e aquela que aparece na for~anatural cega e aquela que se manifesta na conduta racional do homem. A enorme diferen~a que separa os dois casos nao diz respeito senao ao grau da manifesta~ao: a essencia do que se manifesta permanece absolutamente intacta". Aessencia domundo e vontade insaciavel. Avontade e conflito e dilacera~ao e, portanto, dor. E, "a medida que 0 conhecimento Igor Realce Igor Realce torna-se mais distinto e que a consciEmciase eleva, cresce tambem o tormento, que alcah9a no homem 0 grau mais alto, tanto mais elevado quanto mais inteligente e 0 homem: 0 homem de genio e 0 que sofre mais". Comodiz oEclesiastes, "Qui auget scientiam, auget et dolorem". A vontade e tensao continua e, "enquanto todo tender nasce de descontentamento com 0 pr6prio estado, e, portanto, um sofrer enquanto nao esatisfeito; mas nenhuma satisfa9ao e duravel, alias, nada mais e do que 0 ponto de partida de novo tender. 0 tender se ve sempre impelido, esta sempre em luta, sendo, portanto, sempre um sofrer. Nao ha nenhum fim Ultimo para 0 tender; portanto, nenhuma medida e nenhum fim para 0 sofrer". A essencia da natureza inconsciente e aspira9ao constante, sem objetivo e sem repouso. E, ao mesmo tempo, a essencia do animal e do homem e querer e aspirar: sede inextinguivel. E "0 homem,sendo a objetiva9ao mais perfeita da vontade de viver, e tambem 0mais necessitado dos seres: nada mais e do que vontade e necessidade, de modo que se poderia defini-lo ate como uma concretude de necessidades". 0 homem yive abandonado a si mesmo, incerto de tudo, imerso na indigencia e no anseio, amea- 9adopor perigos sempre renovados. Arealidade, diz Schopenhauer, e que, "as mais das vezes, a vida nada mais e do que luta continua pela existEmcia, com a certeza da derrota final". A vida emar semeado de escolhos e sorvedouros. E ate aquele que consegue sobreviver nada mais faz do que "aproximar-se pouco a pouco do grande, fatal, inevitavel e irremediavel naufragio, sabendo que. sua vida e velejar em dire9ao ao naufragio, rumo a morte, ultimo passo da penosa viagem, meta mais terrivel do que os escolhos evitados". A vida e necessidade e dor. Se a necessidade e satisfeita, entao mergulha na saciedade e·no tedio: "0 fim, em substancia ..•e ilus6rio: com a posse, desvanece todo atrativo; 0 desejo, porem, renasce de nova forma e, comele, a necessidade; caso contrario, eis a tristeza, 0 vazio, 0 tedio, inimigos ainda mais terriveis do que a necessidade". Segue-se dai que a vida humana oscila, comopendulo, entre a dor e 0 tedio. Dos sete dias da semana, seis sao de dor e necessidade, urn de tedio. EmParerga eParalipomena, Schopenhauersustenta que, no fundo, 0 homem e animal selvagem e feroz. Conhecemos 0 homem somente naquele estado de mansidao e domesticidade chama do civiliza9ao, mas basta um pouco de anarquia. para que nele se manifeste a verdadeira natureza humana: "0 homem e 0 linico animal que faz sofrer os outros pelo unico objetivo de fazer sofrer"; 0 homem se compraz no mal alheio e, para ele, como diz Romero, a ira e mais doce que 0 mel; "0 homem e animal de ca9a, que, nem bem ve surgir ao seu lado urn ser mais frac0ique ele, cai- lhe em cima". -- -' i:s .. < CD :s Igor Realce Igor Realce Igor Realce A realidade e que "0 mundo e qs hornens sao, por urn lado, as almas danadas e, por outro, os demoriios".J~orisso, ninguem e para ser invejado, mas infinitos homens sao digrloSde compaixao pois sao condenados a vida: "0 trabalho, a clor,0 cansa~o e a necessidade sao certamente 0 destino de quase todos os homenf;lpor toda a sua vida" e "a infelicidade C .. ) e a norma". 'Essimcialmente, 0 que e positivo, ou seja, real, e a dor, ao passo que 0 que e negafivo, ou seja, ilusorio, e a felicidade: "Nenhum objeto da vontade, uma vez alcan~ado, pode dar satisfa~ao duravel, que' nao mude mais: as- semelha-se a esmola que, jogada ao mendigo, prolonga hoje a sua vida para continuar amanha 0 seu tormento". '" A dor e a tragedia nao sao somente a essencia da vida dos individuos, mas tambem a essencia da historia detoda a humani- dade: "A historia nos fala da vid8. dos povos e so sabe nos contar guerras e revolt as C .. ). Assim, a vida de todo individuo e continua 1uta, nao apenas a luta metafisica coma necessidade ou com0 tedio, mas tambem, a luta real com os outros individuos. A cada passo, encontra ele 0 seu adversario, vive em guerra contInua e morre de armas nas maos".A vida edor ea hist6ria eacaso cego.-6progresso e ilusiio. A historia nao e, como pretende Hegel, racionalidade e progresso: sao injustificaveis todo fmalismo e qualquer otimismo. Ahistoria e"destino", e a tragic a repeti~ao domesmo acontecimento em formas diversas. Como bem disse Calderon, "0 maior delito do homem foi 0 de ter nascido". 4.7. A liberta9ao atraves da arte Como fenomeno, 0 mundo e representa~ao. Mas, em sua essencia, e vontade cega e irrefreavel, perenemente insatisfeita, dilacerando-se entre for~as contrastantes. Mas quando, aprofun- dando-se em seu proprio intimo, 0 homem consegue compreender isso, ou seja, que a realidade e vontade e que ele proprio e vontade, entao esta"pronto para a sua reden~ao - e ela so pode se dar "com o deixar de querer". Em suma, na opiniao de Schopenhauer, sopodemos nos libertar da dor ,e do tedio e nos subtrair a cadeia infinita das necessidades mediante,aarte ea ascese. Comefeito,na experiencia estetica, oindivi- duo se separa das cadeias da vontade, afasta-se dosseus desejos, anula as suas necessidades, deixando de olhar osobjetos em fun~ao de eles lhe poderem ser uteis ou nocivos. Na experiencia estetica, 0 homem se aniquila como vontade e se transforma em puro olho do mundo, mergulha no objeto e esquece-se de simesmo ede sua dor. E esse puro olho domundonao ve mais objetos que tern relayoes comoutras coi- sas, nem mais objetos uteis ounocivos,mas percebe ideias, essencias, modelos das coisas, fora do espa~o, do tempo e da causalidade. Igor Realce Igor Realce A arte expressa e objetiva a essencia das coisas. E, precis a- mente por isso, ajuda-nos a nos afastannos da vontade. 0 genio capta as Ideias eternas e a contempla~ao estetica mergulha nelas, anulando aquela vontade que, tendo optado pela vida e pelo tempo, e somente pecado e dor. Escreve Schopenhauer: "0 prazer estetico consiste em grande parte no fato de que, mergulhando no estado de contempla~ao pura, libertamo-nos por urn instante de todo desejo e preocupa~ao; despojamo-nos, em certo sen,tido, de nos mesmos; nao somos mais 0 individuo que p6e a inteligencia a servi~o do querer, 0 sujeito'correlato a sua coisa particular, pela qual todos os objetos tornam-se motivo de voli~ao;mas sim, purificados de toda vontade, somos 0 sujeito eterno do conhecimento, 0 correlato da Ideia". Em surna, na experiencia estetica nao somosmais conscientes de nos mesmos, mas somente objetos intuidos. A experiencia estetica e a anula~ao temporaria da vontade e, portanto, da dor. Na intui~ao estetica, 0 intelecto rompe a sua servidao a vontade, deixando de ser 0 instrumento que procura osmeios para satisfaze- la e tornando-se puro olho contemplativo. E, "enquanto para 0 homem comum 0 seu patrimonio cognoscitivo e a lanterna que ilumina 0 caminho, para 0 homem genial e 0 sol que revel a 0 mundo". A arte - que, da arquitetura (que expressa a ideia das for~as naturais) a escultura, da pintura a poesia, chega a tragedia, a mais elevada forma de arte - objetiva a vontade. E quem a contempla esta, de certo modo, fora dela. Assim, "a tragedia express a e obje- tiva a dor sem nome, 0 am da hurnanidade, 0 triunfo da perfidia, a escarnecedora senhoria do acaso e 0 fatal precipicio dos justos e inocentes" -e e desse modoque ela nos permite contemplar a natu- reza do :mundo. E, dentre as artes, a musica nao e aquela que expressa as ideias, isto e, os graus de objetiva~ao da vontade, mas expressa a propria vontade. Por isso, ela e a arte mais universal e profunda: a musica e capaz de narrar "a hist6ria mais secreta da vontade". A arte, portanto, e libertadora. Ela destaca 0 conhecimento da von- tade e, portanto, nos liberta da necessidade e da dor. Ela faz de nos puros sujeitos contemplativos que, enquanto contemplam, nao desejam e, portanto, nao sofrem. Entretanto, esses momentos felizes da conternpla~ao estetica, nos quais nos sentimos libertados da tirania furiosa da vontade, sac instantes breves eraros. Naturalmente, eles nos indicam "como deveser feliz a vida dohomem cuja vontade nao se aquietou por urn s6 momento, como no extase estetico, mas foi satisfeita para sempre, alias, reduzida completamente ao nada, fora daquela pequena centelha que ainda anima 0 corpoe desvanece com avida". Igor Realce Igor Realce Conseqiientemente, a liberta9ao da dor da vida e a reden9ao total do homem devem ocorrer por outro caminho. E esse caminho e 0 da ascese. 4.8. Ascese e reden~ao A ascese significa que a liberta9ao do homem em rela9ao ao altemar-se fatal da dor e do tedio s6pode se realizar suprimindo em n6s mesmos a raiz do mal, isto e, a vontade de viver. E 0 primeiro passo para tal supressao se verifica pela realiza9ao dajustiqa, vale dizer, mediante 0 reconhecimento dos outroscomo iguais a n6s mesmos. Entretanto, a justi9a golpeia 0 egoismo, mas nos faz considerar os outros como distintos de n6s, comodiferentes de n6s. E, por isso, nao acaba com 0 principium indiuiduationis que fun- damep.ta 0 nosso egoismo e nos op5e aos outros. E preciso entao ultrapassar a justi9a e ter a coragem de eliminar toda distin9ao entre a nossa individualidade e ados outros, abrindo os olhos para 0 fato de que todos n6s estamos envolvidos na mesma aventura. Esse novopasso e a.bondad~, 0 amor desinteressado para com seres que carregam a nossa mesma cruz e vivem 0 nosso meSrno destino tnigico. Bondade, portanto, que e compaixao, sentir a dor do outro por meio da compreensao da nossa pr6pria dor: "Todo amor (agape, charitas) e compaixao." E e precisamente a compaixao que Schopenhauer insere como fundamento da etica, de modo que, "em contraposi9ao a (...) forma do principio moral kantiano, eu gostaria de estabelecer a seguinte lei: nao se deve apreciar objetivamente os hornens com os quais entramos em contato segundo 0 seu valor e a sua dignidade; deve- se sobrevoar sobre a maldade de sua vontade e sobre a limita9ao do seu intelecto e de sua razao, ja que a primeira poderia provocar 0 nosso 6dio e a segunda 0 nosso desprezo; nossos olhos devem ver . neles somente suas dores, suas miserias, suas anglistias, seu sofrimento; entao sentiremos a afinidade que nos liga a eles, experimentaremos simpatia por eles e, ao inves de 6dio e desprezo, sentiremos por eles aquela piedade que e a linica agape a qual nos chama 0 Evangelho. 0 caminho mais oportuno para reprimir 0 6dio eo desprezo que os homens despertam em n6s nao e a considera9ao de sua pretensa 'dignidade', e sim a considera9ao de sua infelicidade, de onde nasce a piedade". Como quer que seja, porem, tambem a piedade, isto e, 0 compadecer, ainda epadecer. Eo caminho para erradicar de modo decisivo a vontade de viver e, portanto, a dor e 0 caminho da ascese, aquela ascese que faz Schopenhauer sentir-se pr6ximo dos sabios hindus e dos santos ascetas do cristianismo. A ascese e 0 horror que experimentamos pela essencia domun<;locheio de dor. E "0 primeiro Igor Nota A ascese (do grego ἄσκησις, derivado de ἀσκέω, “exercitar”) consiste na prática da renúncia do prazer ou mesmo a não satisfação de algumas necessidades primárias, com o fim de atingir determinados fins espirituais. Igor Realce Igor Realce Igor Realce passe na ascese ou na negat;:ao da vontade e a castidade livre e perfeita". A castidade perfeita liberta da realizat;:ao fundamental da vontade no seu impulso de gerat;:ao. A pobreza voluntaria e intencional, 0 conformismo e 0 sacrificio tambem somam para 0 mesmo objetivo, isto e, a anulas:ao da vontade. Enquanto fenomeno, 0 homem e urn elo da cadeia causal do mundo fenomenico. Mas, reconhecendo a vontade comocoisa em si, esse conhecimento age sobre ele como aquietante do seu desejo. E e assim que 0 homem se torna livre, se redime e entra naquilo que os cristaos chamam de "estado de grat;:a".Aascese arranca 0homem da vontade de vida, do vinculo com os objetos - e e assim que lhe permite aquietar-se. Quando a voluntas torna-se noluntas, 0 hornem esta redimido. 5. Soren Kierkegaard: 0 "Individuo" e a "causa do cristianismo" 5.1. Vma vida que levou a serio 0 cristianismo "Algum dia, nao somente os meus escritos, mas ate a minha vida e todo 0 complicado segredo do seu mecanismo serao minu- ciosamente estudados". Isso foi 0 que Kierkegaard disse de si mesmo. E a profecia tornou-se verdadeira com 0 existencialismo contemporaneo, que se propos explicitamente como uma Kier- kegaard-Renaissance, trazendo novamente ao primeiro plano, no palco da filosofia, 0 pensamento daquele filosofo solitario que foi Soren Aabye Kiekegaard, nascido e crescido no restrito ambiente cultural da Dinamarca de entao. Kierkegaard veio ao mundo em 5 de maio de 1813, em Copenhaga. Seu pai, comerciante, desposara em segundas mipcias sua propna domestica. Ao contrario do primeiro casamento, que fOra infertil, 0 segundo foi fecundo de nada menos que sete filhos. Soren foi 0 ultimo dos sete filhos, tendo nascido quando 0 pai ja tinha cinquenta e seis anos e amae quarenta e quatro. Por isso, ele se definiu "filho da velhice". Cinco irmaos de Kierkegaard morre- ram antes dele. Somente Pedro, que depois tornou-se bispo luterano, lhe sobreviveu. Em sua familia, sobretudo no pai, Kierkegaard viu a marca de tragi co destino misterioso. Falando de obscura culpa do pai, ele afirma que a revelat;:aodessa culpa constituiu para ele 0 "grande terremoto" de sua vida. Em 1844, no seu Diario, fala de "relat;:ao entre pai e filho, na qual 0 filho descobre involuntariamente tudo o que esta por detras dos bastidores, mas sem ter a coragem de ir ate 0 fundo. 0 pai e homem estimado, piedoso e austero. Somente Igor Realce uma vez, em estado de embriaguez, escapam-lhe algumas palavras que fazem suspeitar de coisa mais horrenda. 0 filho nao consegue sabe-lo por outra via. E nao ousa nunca perguntar sobre 0 assunto ao pai ou a outras pessoas". Talvez a culpa secreta do pai tenha sido a "maldi~ao" que lan~ara, quando menino, contra Deus na deserta charneca de Jutland e que ainda nao esquecera com a idade de oitenta e dois anos. Ou entao 0 "pecado com Betsabeia", cometido com a domes- tica poucos meses depois da morte da primeira mulher. Seja como for, a imprevista revelas:ao da culpa do pai representaria para Kierkegaard uma como que lfunpada no escuro, que Ihe permitiria a compreensao profunda do misterio de sua vida. Escreveu ele: "Foi entao que tive a suspeita de que a avan~ada idade do meu pai nao fosse urna bens:ao divina, mas muito mais urna maldis:ao, e que os eminentes dons de inteligencia de nossa familia nos houvessem sido dados s6 para que se extirpassem urn ao outro. Entao senti 0 silencio da morte crescer em torno de mim: meu pai apareceu-me como condenado a sobreviver a todos n6s, como cruz funerea plantada sobre 0 t1irnulo de todas as suas pr6prias esperan~as. Alguma culpa devia pesar sobre a familia inteira, pois urn castigo de Deus pendia sobre ela: ela devia desaparecer, derrubada ao solo pela divina onipotencia, cancelada como tentativa malograda C •.. )." A rela~ao de Kierkegaard com 0 pai e com a familia e uma "cruz", urna dolorosa rela~ao religiosa vivida sob amarc a docastigo de Deus. E rela~ao volt ada para algo de culpado epecaminoso,que a divina onipotencia cancelaria como tentativa malograda. E tambem de natureza religiosa era aquele "espinho na carne" que bloqueou a tentativa de,Kierkegaard de se re-alizar no ideal etico e impediu-o,de casar com Regina Olsen ou de se tornar pastor. Regina Olsen, filha de alto funciomirio, tinha dezoito anos quando, em 1840, comvinte e sete anos, Kierkegaard pediu-a em casamento. Adoze anos de distancia do seu primeiro encontro comRegina, eis 0 que Kierkegaard ainda escreve dela: "Erajovem deliciosa, de natureza amavel, como que feita de prop6sito para que urna me- lancolia comoaminha pudesse encontrar no encanta-la a sua (mica alegria. Ela estava verdadeiramente graciosa na primeira vez em que a vi: graciosa no seu abandono, era comovente em sentido nobre, nao sem certa sublimidade no Ultimo momento da separa~ao. In- fantil do principio ao fim, malgrado a sua cabecinha esperta, uma coisa sempre encontrei nela, algo que, para mim, vale como elogio eterno: silencio e interioridade. E ela tinha urn poder: olhar adoravel, quando pedia, que teria podido comover ate as pedras. Teria sido uma bem-aventurans:a poder encantar-lhe a vida e uma bem- aventuran~a poder ver a sua bem-aventuran~a indescritivel." Igor Realce 236 Soren Kierkegaard (1813-1855) foi 0 "poeta cristiio" que declarou "ridiculo" 0 sistema hegeliano epara quem a existencia do individuo s6 se torna autentica diante da "transcendenCia" de Deus. Essa atormentada recorda~ao que 0 apaixonadotern de sua jovem amada testemunha 0 profundo significado da presen~a de Regina na vida de Kierkegaard. Sua rela~ao coni Regina foi a sua "grande rela~ao". E, no entanto, ele nao conseguiu conduir 0 noivado: "Pedi uma conversa comela, que aconteceu na tarde de 10 de setembro. Nao disse uma palavra sequer para iludi-la: consenti (... ). Mas, no dia seguinte, no meu fntimo, vi que me tinha enga- nado. Urn penitente comoeu, coma minha vida ante acta e a minha melancolia ... ja devia ser 0 bastante. Naquele momenta, sofri penas indescritiveis (... ).0 rompimento definitivo ocorreu cerca de dois meses depois. Ela se desesperou (. ..)" Mais tarde, Regina casou-se com certo Schlegel e teve ma- trimonio tranquilo. Mas Kierkegaard nao a esqueceu: no fundo, continuou esperando que a oposi~aodomundo de que ele era vftima talvez the conferisse "novo valor" aos olhos de Regina. Alem disso, confess a ele, "a lei de toda a minha vida e que ela retorna em todos os pontos decisivos. Como aquele general que comandou pessoal- mente os que 0 fuzilavam, eu tambem sempre comandei quando devia ser ferido (... )0 pensamento (e isso era amor) era: eu serei teu ou te sera permitido ferir-me tao profundamente, no mais intimo da minha melancolia e na minha rela~ao comDeus que, ainda que de ti separado, continuo sendo teu". o contelido daquele ana de noivado, observa Kierkegaard, '~no fundo, nada mais foipara mim doque sequela de p~nosas reflexoes de consciencia angustiada. Perguntava-me: ousarias noivar, ou- sarias te casar? Que estranho! S6crates fala sempre do que havia aprendido comurrla mulher. Tambem eu posso dizer que devo tudo oque tenho demelhor a umamo~a: nao 0 aprendi dela, propriamente, mas por causa dela". Na opiniao deKierkegaard, umpenitente, alguem que abra~ou o ideal cristao daVida, com toda aquela tremenda seriedade que 0 cristianismo comporta, nao pode viver a tranquil a existencia de homem casado. Ele nao pode aceitar 0 compromisso-mundano e a gratificante inser~ao na ordem constituida. Regina nao podia tornar-se sua esposa "porque Deus tinha a precedencia". E essa tambem e a razao por que Kierkegaard renunciou a tomar-se pastor· E ainda ai, na fe que relativiza todas as coisas humanas e que nao pode ser reduzida a cultura, que Kierkegaard se lan~a a rufna, em violenta polemica contra a cristandade de sua pr6pria epoca. 0 bispo luterano Mynster - que, a renova~ao da vida crista, como Kierkegaard a entendia, op6s a defesa da "ordem constituida" - morreu tranquilamente em fins dejaneiro de 1854 e, homenageado por seu povo, foi celebrado por seu sucessor, Martensen, como"um elo da cadeia sagrada que liga entre si as testemunhas da verdade". Mas, em polemica com Martensen, Kierkegaard se pergunta: "0 bispo Mynster era testemunha da uerdade, uma daquelas uerdadei- ras testemunhas: sera issa uerdade?" Averdade, para Kierkegaard, era que nao poderia ser celebrado como"testemunha da verdade quem viveu desfrutando a vida, ao abrigo dos sofrimentos, da luta interior, do medo e do temor, dos escrlipulos, das anglistias da alma e das penas do espirito (. ..). A verdadeira testemunha da verdade e 0 homem que, na humildade e no rebaixamento, e desprezado, odiado, rejeitado, desconhecido, ironizado, que tern a persegui~ao como 0 seu pao cotidiano e e tratado como residuo. Sera que foi essa a vida do bispo Mynster?" A polemica de Kierkegaard desenvolveu-se nos nove fasclcu- los de "0 Momento", de maio a setembro de 1855. Foi nela que ele consumiu suas liltimas energias antes de ceder de repente e mor- rer em 11 de novembro desse mesmo ano. Alguns anos antes, Kierkegaard escrevera: "Mynster pensa provavelmente (e, habi- tualmente, isso e a modernidade) que cristianismo e cultura. Mas esse conceito de cultura e pelo menos inadequado e talvez ate diametralmente oposto ao cristianismo quando se torna desfrutamento, refinamento e pura cultura humana". Na opiniao de Kierkegaard, 0 contraste entre cristianismo e cristandade estabelecida e claro: "0 cristianismo edeuma seriedade tremenda: e nesta vida que,se decide a tua eternidade (... ). Ser cristao e se-lo como espirito, e a inquietude mais elevada do espirito, e a impaciencia da eternidade, e temor e tremor continuo, agu~ados pelo fato de encontrar-se neste mundo perverso que crucifica 0 amor e abalado de estremecimento pela presta~ao de contas final, quando 0 Senhor e Mestre retornara parajulgar se os cristaos foram fieis". Entre.tanto, depois de mil e oitocentos anos de cristianismo, "tudo se tornou superficialidade na cristandade atual". E isso porque 0 cristianismo e visto comoinstrumento capaz de "facilitar sempre mais a vida, a temporalidade no sentido mais trivial". 0 que se quer e "viver tranqiiilo e atravessar 0mundo em felicidade": essa e a razao por que "toda a cristandade e disfarce, mas 0 cristianismo nao existe em absoluto". E Kierkegaard se escandaliza diante da realidade - para ele, terrivel - de que, entre as heresias e os cismas, nao se encontra nunca a heresia mais sutil e mais cheia de perigos: a heresia que consiste em "brincar de cristianismo". 5.2. Kierkegaard: 0 "poeta cristao" Escreve Kierkegaard: "Na especie animal, vale sempre 0 principio: 0 individuo e inferior ao genero. Ja no genero humano prevalece a caracteristica, precisamente porque cada individuo e criado a imagem de Deus, de que 0 Individuo emais elevado do que o genero". E, uma vez assumido com toda a seriedade que merece aquele acontecimento fundamental da historia que e 0 cristianis- mo, e na defesa do Individuo que se concretiza e desenvolve toda a obra deKierkegaard, cujo primeiro trabalho filosoficofoi0 Conceito de ironia (1841), no qual ele contrap5e 0 empenho etico da ironia socratica a ironia romantica (que, em nome do Eu absoluto, nao leva a realidade a serio). Sao de 1843 os dois volumes de Aut-Aut, dos quais emerge a ideia de que a existencia finita do Individuo existente nao e caracterizada pelo et-et, isto e, pela supera9ao hegeliana, mas sim pela escolha, isto e, pelo aut-aut. NoDicirio de um sedutor- com o qual termina 0 primeiro volume -, Kierkegaard delineia 0 ideal estetico da vida dosedutor, que vivesegundo a segundo, dispersando- se na multiplicidade sem autentico empenho etico e dissipando-se no prazer. E dessa forma de vida, que e precisamenteo ideal estetico, sai-se comurn salto (eis 0 aut-aut), que leva a vida etica e, depois a vida da fe. E, segundo Kierkegaard, e exatamente a vida da fe que constitui a forma verdadeiramente autentica da existencia finita, vista como 0 encontro do Individuo com a singu- laridade de Deus. Kierkegaard dedica a questao do significado da fe a obra Temor e tremor (1843). A fe vai alem do proprio ideal etico da vida. o simbolo da fe e Abraao, que, em nome da fe em Deus, levarita 0 punhal sobre 0 seu proprio filho. Mas como fez Abraao para estar certo de que era realmente Deus que the ordenava matar 0 filho Isaac? Se aceitamos a fe, como Abraao, entao a autentica vida religiosa aparece em toda a sua paradoxalidade, ja que a fe em Deus, que ordena matar 0 proprio filho, e 0 p:r:incipiomoral que imp5e amar 0 proprio filho entram em conflito e levam 0 crente a ser posta diarite de escolha tragica. A fe e paradoxa e angustia diante de Deus comopossibilidade infinita. E e ao problema da anglistia como modo de ser da existencia do Individuo que Kierkegaard dedica 0 conceito da angustia, que e de 1844. "Aangustia e a possibilidade da liberdade: somente essa angustia, atraves da fe, tern a capacidade de formal' absolutamente, enquanto destroi todas as finitudes, descobrindo todas as suas ilus5es". A anglistia forma "0 discipulo da possibili- dade" e prepara "0 cavaleiro da fe". Ainda em 1844, Kierkegaard publicou a importante obra Migalhas filos6ficas, na qual 0 autor examina a ideia da maieutica religiosa eanalisa 0 significado da categoria dopossivel. Entretanto, urn ana antes,em 1843, dera a luz A repetiqfio, onde, ao ideal es- tetico da vida, e contraposta a reconquista de si, vale dizer, a autentica existencia atraves da fe. E os Estcigios no caminho da vida (1845) tambem examinam 0 mesmo tema. E, em A doem;a mortal (1849), explorando os resultados das analises realizadas nas obras anteriores, Kierkegaard contrap6e ao desespero, que e a verdadeira doenr;amortal, a salva-;ao da fe, sustentando que, fora da fe, s6 existe 0 desespero. No Ultimo ana de sua vida, como dissemos, Kierkegaard publicou nove fasciculos doperi6dico "0 Momento", atraves doqual pretendia rest aurar 0 sentido genuino do cristianismo. Em forte polemica comosmeios religiosos, Kierkegaard teve 0Ultimoperiodo de sua vida ainda mais amargurado em virtude de urna serie de ataques quase cotidianos de urnjornal hurnoristico "0 Corsario". Alem disso, tern fundamental importancia 0 seu Diario. Ele ocupa quase cincomil paginas dosvinte volumes de que se constitui a edi-;aop6sturna de suas "Cartas". 0 Diario foiobra queKierkegaard iniciou em 1833, quando tinha pouco mais de vinte anos, chegando ate os liltimos dias de setembro de 1855,menos de doismeses antes de sua morte. Comonotou Cornelio Fabro, oDiario revel a 0 espirito e 0 pensamento de Kierkegaard melhor do que qualquer outro escrito seu, "pela intimidade e sinceridade, pela vastidao de di- mens6es que 0 seu espirito alcan-;a, pela profundidade de analise do homem interior e pela como-;aode estilo que 0 aproximam das Confissoes de santo Agostinho". Com base nesses rapidos acenos a obra de Kierkegaard, nao e dificil perceber que 0 seu pensamento epensamento essencialmente religioso: e a defesa da existencia do Individuo, existencia que s6 se toma autentica diante da transcendencia de Deus. 0 Individuo e Deus e a rela~ao do Individuo com Deus, eis os temas de fundo da fIlosofia de Kierkegaard, que, desse modo, se configura como verdadeira autobiografia teol6gica. . Comoobs~rva Kierkegaard em seuDiario, "0 cristianismo nao existe mais aqui, mas, para que se possa falar em reve-lo, era preciso despeda-;ar 0 corayao de urn poeta - e esse poeta sou eu". Eo poeta cristiio, que "nao ere em simesmo, mas somente emDeus", afirma em "0 Momento" que morria tranqiiilo: a luta acabou e ele se declara infinitamente grato a Providencia, que Ihe concedeu de sofrer para prop agar a ideia do cristianismo como "verdade sofre- dora". E a verdade crista, por meio da escola do sofrimento, 0 tornara livre: "Humilhado atraves de tremenda escola, tambem adquiri a franqueza." 5.3. 0 "fundamento ridiculo" do sistema hegeliano E e comcorajosa franqueza que, em nome daquela indedutivel realidade que e 0 Indiv£duo, Kierkegaard ataca a filosofia especulativa, espeeialmente 0 sistema hegeliano. Diz ele: "A exis- tencia corresponde a realidade singular, ao Individuo (0 que Arist6teles ja ensinou): ela permanece de fora e de qualquer forma nao coincide com 0 conceito (. ..). Urn homem singular certamente nao tern existencia conceitual." Mas a filosofia, reafirma Kierkegaard, pareceu interessada somente nos conceitos: ela nao se preocupa com0 existente concreto que podemos ser eu e tu, em nossa irrepetivel e insubstituivel singularidade; ao contrario, ela se preocupa com 0 homem em ge- ral, com 0 conceito de homem. Mas a nossa existencia nao e em absoluto urn conceito. Substancialmente, 0 Individuo e o.ponto que Kierkegaard enfatiza para invalidar as pretens6es do sistema. Confessa ele: "Se eu devesse encomendar urn epitafio para 0meu tUmulo, nao pediria mais do que 'aquele Individuo', ainda que, agora, essa categoria nao seja compreendida. Mas 0 sera mais tarde. Com essa categoria, '0 Individuo', quando aqui tudo era sistema em cima de sistema, eu tomei polemicamente 0 sistema como alvo e, agora, nao se fala mais de sistema". Kierkegaard ligava a sua pr6pria importancia hist6rica a categoria de "Individuo", vinculando-a tambem ao desmascara- mento da mentira contida nos sistemas filos6ficos que, precisa- mente, se interessam pelos conceitos e nao pela existencia. "Isso acontece com a maioria dos fi16sofosem rela~ao aos seus sistemas, como se alguem construisse um enorme castelo e depois, por sua pr6pria conta, fossemorar em celeiro. Eles nao vivem pessoalmente em seus enormes edificios sistematicos. Essa e e permanece (. ..) acusa~ao decisiva." E a acusa~ao decisiva e dirigida sobretudo a Hegel, cujo sis- tema e a encarna~ao da pretensao de "explicar tudo" e demonstrar a "necessidade" de todo acontecimento. Mas 0 sistema nao conse- gue engaiolar a existencia, revelando-se unicamente uma contra- fa~aoe urna caricatura do que existe de singular, irrepetivel, quali- . tativo e hurnano na existencia. Na opiniao de Kierkegaard, a figura dofil6sofosistematica, em suma, a figura deHegel, e figura camica. :It c6mica a situa~ao do "espirito sistematico, que acredita poder dizer tudo e esta persuadido de que 0 incompreensivel seja algo falso e secundario". Por isso, diz Kierkegaard, "brandi a brincadei- ra da ironia (... ) contra a horrorosa solenidade dos especuladores". E Kierkegaard mostra-se mais duro contra Hegel do que Schopenhauer. Com efeito, ele chega a dizer que 0 hegelianismo, "esse brilhante espirito de podridao", e "amais repugnante de todas as formas de libertinagem". Kierkegaard fala da "murcha pompa do hegelianismo" e de sua "abominavel pompa corruptora". Afirma ele: "Antes de Hegel, (... ) houve fil6sofos que tentaram explicar a hist6ria. E a Providencia s6 podia sorrir ao ver essas tentativas. Mas nao se entregou ao riso desenfreado, porque neles havia sinceridade humana e honestidade. Mas Hegel! Aqui, necessito da linguagem de Homero. A que explosao de risos nao devem ter-se entregado osdeuses! Urn professorzinho tao semgra~a, que pretende simplesmente ter descoberto a necessidade de toda coisa (. .. ) e ei- 10 agora dedicado a tocar toda a sua musica no seu organum-zinho: escutai, portanto, 6 deuses do Olimpo!" Hegel pretende ver as coisas com os olhos de Deus, de saber tudo, mas cai no ridiculo, ja que 0 seu sistema se esquece da existencia, isto e, do Individuo. E essa e a razao por que a fllosofia sistematica nao se ap6ia tanto em pressuposto equivocado, mas muito mais em "fundamento ridiculo": presume falar do Absoluto e nao compreende a existencia humana. "0 corvo que perde 0 queijo por culpa da eloquencia - eis uma imagem da doutrina idealista, que, depois que tudo se perdeu, nada mais mantem senao a si mesma". NaApostila conclusiva, Kierkegaard escreve que a figura do fll6sofo tornou-se figura tao fabulosa que .sequer a fantasia mais extravagante teria podido encontrar algo similar. Por ai, ja se pode ver que 0 ataque desferido por Kierkegaard contra Hegel e ataque de natureza ret6rica. Ele nao entra no merito do sistema hegeliano: para ele, todo 0 sistema e ridiculo, nao valendo a pena discutir os princfpios do sistema hegeliano, pois e o sistema em sua totalidade que nao interessa, que nao tern importancia. Esse sistema nao e importante para compreender a existencia: "0 Individuo, etica e religiosamente acentuado ou existencialmente acentuado", esta sempre e de qualquer modo fora do sistema. Kierkegaard nao discute os princfpios de Hegel. Ele procura muito mais deslocar os interesses da filosofia: para ele, a fllosofia nao e sistema especulativo, e sim 0 did-rio intima de existencia irrepetivel. Em seu Did-rio, de 1844, perguntava-se Kierkegaard: "Por que, em nossos dias, a filosofia assumiu andamento ~ao enganoso e nao diz palavra sobre 0modo comoosautores individuais se comportam? Nao se consegue compreende-Ios, porque nao sabem como e que eles pr6prios existem. Assim, ate as obras de primeira ordem escondem frequentemente a mentira: 0 autor nao compreen- deu a si mesmo, mas sim esta ou aquela ciencia, coisa bem mais facil do que compreender-se a si mesmo". "0 'Individuo' e a categoria atravesda qual devem passar, do ponto de vista religioso, 0 tempo, a hist6ria, a humanidade". SegundoKierkegaard, e 0 Individuo que constitui a Unicaalternativa valida ao hegelianismo. Para Hegel, 0 que conta, como na especie bio16gica, nao e 0 Individuo, e sim a· humanidade. Mas, para • -•..oo.r..-~." _J,:~t. ~~ + "0., I Kierkegaard, 0 Individuo conta mais do que a especie: 0 Individuo e a contesta~ao e a rejei~ao dosistema. E, aomesmo tempo, tambem eo Individuo - original, irredutivel, insubstituivel:- que poe em xeque todas as formas de imanentismo e de panteismo, com as quais se tenta reduzir, isto e, reabsorver 0 individual no universo. Dessemodo,0 Individuo toma -se 0baluarte da Transcendencia, como afrrma Kierkegaard: "'0 Individuo': e comessa categoria que se mantem ou cai a causa do cristianismo (oo.). 0 Individuo e e permanece sendo a ancora que detem a confusao panteista, e e permanece sendo 0 peso com 0 qual se pode comprimi-Ia (. ..). Para cada homem que eu posso atrair sob essa categoria de 'Individuo', esfors;o-mepor faze-Io tomar-se cristao, ou melhor, comoum nao pode fazer isso pelo outro, garanto-Ihe que 0 sera". o "Individuo" e a "fe", portanto, sao correlatos. E, para Kierkegaard, a fe, isto e, "0 fato de ser cristao" constitui 0 dado central da pr6pria existencia. Mas, uma vez assumido esse dado, logose ve que "a filosofia eo cristianismo nunca se deixam conciliar. E isso porque, se eu devo manter uma das coisas essenciais do cristianismo, vale dizer, a Redens;ao, ela deve necessariamente ser estendida ao homem todo. Ou sera que deverei supor as suas qualidades morais como defeituosas e 0 seu conhecimento, ao contrario, comointacto? Dessemodo,eu possoadmitir apossibilidade de uma filosofia depois do cristianismo ou depois que 0 homem se tornou cristao, mas essa filosofia seria crista". Em outros termos, 0 crente nao pode fIJ.osofarcomo se a Re- velas;aonao houvesse ocorrido. Com Cristo, tivemos a irrups;ao do eterno no tempo. E, para 0 conhecimento cristfio, esse e rato abso- luto, que, enquanto tal, nao precisa ser demonstrado, pela simples razao de que os fatos nao sao para serem demonstrados, e sim para serem aceitos ou rejeitados, bem como pelo outro motivo de que, quanto ao absoluto, "nao podemos dar razoes: nomaximo, podemos dar razoes de que nao existem raz6es". . Para Kierkegaard, a verdade crista nao e verdade para ser demonstrada: ela e muito mais verdade para ser testemunhada, "reproduzindo" a Revelas;aona pr6pria vida, "sem reservar, para 0 caso de necessidade, urn esconderijo para si mesmo e urn beijo de Judas para as conseqiiencias". E essa reduplicaqfio implica em testemunho total, porque, no que se refere a Deus, e impossivel assumi-lo "ate certo ponto", pelo fato de que Deus e a negas;ao de tudo 0 que e "ate certo ponto". Lessing sustentara que nao se pode passar de fato hist6rico a consciencia etema. Mas Lessing, segundo Kierkegaard, esta en- ganado, porque nao se trata de "acomodar as verda des do cristia- nismo em paragrafos". A questao e outra: "para mim, tanto para a simples domestica comopara 0professor, ha em expectativa 0 sumo bem, que se chama 'bem-aventuranc;a eterna'. Eu ouvi dizer que 0 cristianismo e a condic;aopara obter esse bem. E agora me pergunto: como posso eu reportar-me a essa doutrina?" Aquilo que Kierkegaard contesta e a "considerac;aoespeculativa do cristianismo", vale dizer, a tentativa de justifica-lo com a filosofia. Nao se trata de justificar, mas de crer. E, para crer, nao e necessario ser contemporaneo de Jesus. A verdade e que ver urn homeIIl;nao e suficiente para fazer-me crer que aquele homem e Deus. E a fe que me faz ver em fato hist6rico algo de eterno: e, no que se refere ao eterno, "qualquer epoca esta igualmente pr6xima". A fe e sempre saIto, tanto para quem e contemporaneo de Cristo como para quem nao e. Por isso, e compreensi vel a expressao deKierkegaard, segundo a qual "a verda de e subjetividade": ninguem pode se par em meu lugar diante de Deus. "A lei da existencia (que, por seu turno, e grac;a) que Cristo instituiu para ser homem e: p6e-te como Indivi- duo em relac;ao com Deus". 0 "cavaleiro da fe" "nao disp6e em tudo e por tudo senao de si mesmo, em isolamento absoluto". Mas esse fato de isolamento diante de Deus e, "para 0 pobre homem, algo de imensamente angustiante". E, conseqiientemente, ele fica com medo, nao ousa se por em relac;ao com Deus e considera mais prudente ser ((comoas outros". Naturalmente, afrrma Kierkegaard, os milh6es de homens que tem comolei da existencia 0 "antes ser comoos outros" constitui uma massa de macacos que da a impressao de ser alguma coisa, muito, urna forc;aimensa. E, aparentemente, as coisas parecem ser assim, "mas idealmente toda essa massa, esses milh6es, nao conta nada: trata-se de existencias desperdic;adas e perdidas". Deus teve tal miseric6rdia dos homens a ponto de conceder a gra~a de querer se por em contato com cada Individuo. Por isso, "quando os homens preferem ser'como os outros, isso e delito de lesa-majestade contra Deus. A massa dos macaquinhos e culpada de lesa-majestade! E a punic;ao sera que Deus os ignorara!" 5.5. 0 principio do cristianismo Portanto, 0 homem deve ter a coragem de, como Individuo, p6r-se em rela~ao com Deus: "antes em rela~ao com Deus e nao antes 'com os outros'''. E a essencia dessa relac;ao e que "ha infinita e abissal diferenc;a qualitativa entre Deus e 0 homem. Isso significa ou se expressa dizendo que 0 homem nao pode absolutamente nada, que eDeus quem da tudo, que e ele quem possibilita ao homem crer etc. Isso e a Grac;a, e ai temos 0 principio do cristianismo". Mas e precisamente esse principio que torna autentica a existencia, ja que, quando nos pomos diante de Deus, nao ha mais espac;oalgum para os fingimentos, os disfarces e as ilus6es: "Para nadar, e preciso ficar nu; para aspirar a verdade, e preciso ficar nu em sentido muito mais intimo, e preciso desfazer-se de vestimentas muito mais inte- riores de pensamentos, de ideias, do egoismo e de coisas similares, antes de poder ficar nu 0 quanto e necessario". Em suma, para Kirkegaard, 0 cristianismo e a verdade "por parte de Deus" e nao "por parte do homem". Por isso, "profess ores" e "pastores" sao unicamente canalhas: sua fun98.0 seria a de sa- tisfazer a eternidade, mas eles pretendem satisfazer 0 tempo; trata- se de "velhacos", que consideram que "e mais comodo adular os contemporaneos". E "eis por fim, comtanta bravura, esses canalhas, como Goethe, Hegel e, entre nos, Mynster, pregando ou pelo menos levando a efeito 0 principio de que a verdadeira seriedade.e satisfazer 0 tempo". Erguendo-se contra eles, Kierkegaard quis posicionar-se ao lado da verdade crista, mas nao para demonstra-la ou falar inutil- mente sobre ela - coisa que, precisamente, fazem os "prdfessores" e os "pastores" - mas, muito mais experienciando~a em sua propria existencia: "Eu me consagrei a esclarecer 0 que'e 0 cris- tianismo, impelido por necessidade pessoal e tambem porque compreendi que era disso que 0nosso tempo tinha necessidade (... ) o cristianismo e 0 devir cristao constituiram a tarefa da minha vida, porque, com piedade profunda, compreendia que ate a mais longa vida nao seria demais para essa tarefa". Nesse contexto, pode-se compreender entao por que, no Ponto de vista explicativo da minha obra (1848), Kierkegaard insiste em dizer que "sempre fui e sou escritor religioso". A filosofia existencial de Kierkegaard e verdadeira teologia experimental ou, ainda mais exatamente, autobiografia teol6gica. 5.6. Possibilidade, angu.stia e desespero Segundo Kierkegaard, como ja observamos, a caraeteristica do homem enquanto espirito e a de que, diversamente das especies animais, 0 Individuo e superior a especie. 0 animal tern uma essencia, sendo, portanto, determinado,ja que a essencia eo reino donecessario, cujas leis a ciencia procura.Aexistencia, ao contrario, eo reino do devir, do contigente e, portanto, da historia. Em suma, a existencia e 0 reino da liberdade: 0 homem e 0 que ele escolhe ser, e 0 que se torna. Isso quer dizer que 0modo de ser da existencia nao e a realidade ou a necessidade, e sim a possibilidade. Mas, escreve Kierkegaard em 0 conceito da angustia, "a possibilidade e a mais pesada das categorias". Ebem verdade que se ouve dizer 0 contrario, isto e, que a possibilidade e muito leve e que a realidade, ao inverso, e muito pesada. Mas esses discursos provem de "homens miseraveis", que confundem a possibilidade com aquela "inven~ao falaz que os homens, em sua corrup~ao, brandem para terem menos um pretexto para lamentarem-se da vida e da Providencia e para terem uma oportunidade de se tornarem importantes aos seus pr6prios olhos". Diz Kierkegaard que, na possibilidade, tudo e igualmente possivel. E que quem foi realmente educado mediante a possibilidade, compreendeu tam- bem 0 seu lado terrivel e sabe "que nao pode pretender absoluta- mente nada da vida eque 0 lado terrivel, a perdi~ao,0 aniquilamento, mora ao lado do homem, porta a porta". A existencia e liberdade, e poder-ser, isto e, possibilidade: possibilidade de nao escolher, de ficar paralisado, de escolher e de se perder- possibilidade como"amea~a donada". Arealidade eque a existencia epossibilidade e, portan to,angustia. Aanglistia e0puro sentimento dopossivel, eo sentido daquilo que pode acontecer e que pode ser muito mais terrivel do que a realidade. Porque, se alguem sai da escola da possibilidade e "soube tirar proveito da experiencia da angustia", entao "dara a realidade outra explica~ao: exaltara a realidade e, ate quando ela pesar duramente sobre ele, recordar- se-a de que ela e muito mais leve do que era a possibilidade". o possivel, afirma Kierkegaard, corresponde perfeitamente ao futuro. Para a liberdade, 0 possivel e 0 futuro. E, para 0 tempo, o futuro e 0 possivel. Por isso, anglistia e futuro estao conjugados. A anglistia caracteriza a condi~ao humana: quem vive no pecado, se angustia pela possibilidade do arrependimento; quem vive, tendo-se libertado do pecado, vive na anglistia de nele recair. Mas o importante e compreender que a angustia forma: com efeito, ela "destr6i todas as fmitudes, descobrindo todas as suas ilus6es. E nenhum grande inquisidor tern prontas tantas torturas tao terri- veis quanto a angustia; nenhum espiao sabe atacar com tanta astucia a pessoa suspeita, precisamente no momento em que esta mais fraca, nem sabe preparar tao bem os la~os para agarra-Ia, como sabe a anglistia; por mais sutil que seja, nenhum juiz sabe examinar tao a fundo 0 acusado como a anglistia, que nao 0 deixa escapar nunca, nem na diversao, nem na algazarra, nem no trabalho, nem de dia ou de noite". Claro, a anglistia pode levar a tenta~ao do suicidio, mas isso significaria subentender a angustia, nao aprender em sua escola. o que verdadeiramente importa, ao contrario, e dar as boas-vindas a angustia, faze-Ia entrar no espirito, deixar que 0 perquira e permitir-lhe esmagar "todos ospensamentos fmitos emesquinhos". E e desse modo que "Deus, que quer ser amado, desce, com a ajuda da inquietude, a ca~a do homem". E, enquanto a anglistia e tipica do homem na sua rela~ao com omundo, 0 desespero e pr6prio do homem na sua rela~ao consigo mesmo. Para Kierkegaard, 0 desespero e a culpa dohomem que nao sabe se aceitar a si mesmo em sua profundidade. Porvezes, odiando a existencia, 0 homem queI' ser tao plenamente ele mesmo a ponto de transformar-se em horrivel deus, ao passo que outras vezes sai de si mesmo e se dissipa na distra~ao. Mas tanto em urn como em outro caso ha urn mal-entendido consigomesmo. E, tanto buscando- se como fugindo, ele nao se possui. E dai 0 desespero. Para Kierkegaard, 0 desespero e doenc;a mortal: "eterno mor- reI' sem no entanto morrer", "autodestrui~ao impotente". Do ponto de vista cristao, "sequel' a morte e 'doen~a mortal', muito menos qualquer sofrimento terre no e temporal, pobreza, doeiwa, miseria, tribula~6es, adversidades, tormentos, penas espirituais, luto, fadi- gas". A morte pode ser 0 fim de doen~a, mas, no sentido cristao, a morte nao e 0 fim. "Se se quisesse falar de doen~amortal no sentido mais estrito, dever-se-ia tratar de doen~a cujo fim fosse a morte e em que a morte fosse fim. E ai esta precisamente 0 desespero". o desesperado esta mortalmente doente. 0 desespero, escreve Kierkegaard, e "0 viver a morte do eu". Assim, todo homem e desesperado. E, talvez mais do que qualquer outro, 0 seja aquele que nao sente em si nenhurn desespero. Entretanto, precisa ele, todo homem e desesperado exceto quando, "orientando-se.em sua propria dire~ao, querendo ser ele mesma, 0 seu eu emerge, atraves de sua propria transparencia, na potencia que 0 colocou".0 desespero brota no nao querer se aceitar como estando nas maos de Deus. Mas, negando Deus, 0 homem aniquila-se a si mesmo, pois separar- se de Deus equivale a arrancar suas proprias raizes e afastar-se do "unico po~odo qual pode se obter agua". Mas, se a raiz do desespero esta em nao querer se aceitar nas maos de Deus, entao esta claro que a autentica'existencia e aquela que esta dis:Qonivelpara 0 amor de Deus, a existencia daquele que nao cre mais em si mesmo, mas em Deus somente. E essa fe em Deus, esse testemunho da "verda de que esta do lado de Deus", leva o cristao a "entrar em serio e direto conflito com este mundo" e, ao mesmo tempo, 0 faz compreender que, do ponto de vista cristao, 0 "objetivo desta vida e ser leva do aomais alto grau de tedio da vida". E, quando se chegou a esse ponto, entao passamos de modo cristao pela prova da vida e estamos maduros para a eternidade: "Assim como0 homem que houvesse empreendido a volta aomundo para encontrar 0 cantor ou cantora do timbre mais perfeito, da mesma forma, no ceu, Deus tambem esta a escuta. E, toda vez que escuta 0 louvor de homem que ele levou ao ponto extremo do tedio pela vida, Deus diz de si para consigo: eis ai 0 tom certo. E diz 'eis ai' como se fosse urna descoberta que ele faz. Mas Deus ja sabia disso, porque ele proprioja estava presentejunto aquele homem e o ajudava, porquanto Deus pode ajudar naquilo qu;e,no entanto, so a liberdade pode fazer. S6 a liberdade pode faze-lo, mas que surpresa para 0 homem poder se expressar agradecendo a Deus, como se Deus 0 houvesse feito! E, em sua alegria de poder Ihe agradecer, ele esta tao feliz que nao quer ouvir nada mais, em absoluto a nao ser 0 pr6prio Deus. Cheio de reconhecimento, ele tudo refere a Deus e ora a Deus para que as coisas permanet;am assim, pois e Deus que faz tudo, porque ele nao ere mais em si mesmo, mas somente em Deus". 5.7. Kierkegaard: a ciEmcia e 0 cientificismo Para Kierkegaard, portanto, "e Deus que tern a precedencia". Consequentemente, a ciencia deste mundo nao tern muita impor- tancia, ja que, para 0 cristao, a exist encia autentica estabelece-se noplano da fe:comoforma devida, a ciencia e existencia inautentica. Diz ele: "Considerar a descoberta ao microsc6pio como pequeno passatempo ou uma pequena perda de tempo, tudo bern, mas con- sidera -la comocoisa seria e tolice (... ).SeDeus se pus esse a vaguear, combastao nas maos, verieis como0 buscariam, especialmente tais observadores tao empertigados com seus microsc6pios! E, com seu bastao, Deus acabaria comtoda hipocrisia deles e dosnaturalistas." E a "hipocrisia" consiste em dizer que as ciencias levam aDeus. o que Kierkegaard combate e a apologetica "cientifica". Ele se revolt a contra os que - comohomens superiores! - gostariam de "fazer de Deus uma beleza grave, urn artista fenomenal que nem todos estao em condit;oesde compreender". Mas "alto la!Aexigencia religiosa e humana e que ninguem, absolutamente ninguem, pode compreender Deus: 0 mais sabio deve se ater humildemente a 'mesma coisa' que 0 ingenuo. Ai esta a profundidadeda ignorancia socratica: '-,:enunciar com toda a forqa da paixao' a todo saber curioso para ser simplesmente ignorante diante de Deus". . Se 0 naturalista que quer compreender Deus coma sua ciencia e hip6crita, tambem e verda de que e funesto e perigoso levar tal cientificidade para a esfera doespirito: "Que se trate desse modo as plantas, as estrelas e as pedras; mas tratar desse modo 0 espirito humano e blasfemia que serve somente para enfraquecer a paixao pela etica e pela religiosidade". Existe abismo infinito entre 0 homem e Deus. Os problemas eticos e religiosos nao se deixam tratar com os metodos das ciencias naturais e nao podem ser resolvidos pela obserVa9aOao microsc6pio. o naturalista que presuma de alguma forma conhecer Deus e hip6crita. 0 cientista que quer tratar osproblemas eticos ereligiosos com0metodo da ciencia e perigoso e funesto. E arrogante e a classe dos naturalistas, que, sentindo-se forte com seus sucessos e seus experimentos, escreve ainda Kierkegaard no Diario, "quer liqui- dar Deus completamente, comosuperfluo, substituindo-o pelas leis naturais" e presumindo que, "no fundo 0 homem se transforma em Deus". A presUllyaodos cientistas se express a em luta contra Deus e tende a criar "toda uma multidao de homens que fara.das cieneias naturais a sua religiao". Isso, porem, e pura loucura. As cienCias naturais nao podem dar mais do que a si pr6prias - ~nao saC?nem etica nem religiao. 0 espirito exige certeza moral e esperanyR que nao deve esperar as ultimas noticias do correio. Isso, porem,' a ciencia nao pode dar. E, quando se fala de etica, entao, "e perfei- tamente indiferente se os homens acreditam que a terra esteja parada e 0 sol se mova". E sentencia Kierkegaard: "Nao, s6 a etica deve ser acentuada; e, no campo da etica, nao me parece que as ciencias naturais tenham feito alguma descoberta". Por outro lado, lembra Kierkegaard, "as ciencias naturais nao pretendem C .. ) ter descoberto tudo, nem que, em mil anos, nao se possa descobrir que muitos dos nossos modos de viver e pensar eram uma ilusao". Entretanto, ate quando se admite que as ciencias naturais tern razao contra varias expressoes das Escrituras (sobre a idade do universo, sobre a astronomia etc.), aquilo que "permanece completamente imutado e a etica crista, suas exigencias de mortificayao etc. A respeito disso, parece-me que a ciencia natural nao fez nenhuma descoberta que implique em qualquer modificayao. Mas 0 que nao se quer e precisamente essa iIJ1uta- bilidade da etica, pois quer-se gozar a vida de forma paga. E com esse fim que se pretende desembara~ar-se do cristianismo, mas ainda com certo medo do cristianismo, quer-se faze-lo hipocrita- mente ... isto e, por razao cientifica". oMestre (Deus), porem, e a pr6pria seriedade. E, por isso, fara de tudo para que 0 seu discipulo nao se distraia: "Por isso, ele nao chama a aten~ao de modo algum para qualquer outra coisa senao para a etica; quanto a todo 0 resto, fala completamente comofalam oshomens a quem esta falando". Deus nao se preocupou em revelar aos homens a maquina a vapor ou a arte da impressao. "Sim, Deus esta tao longe de querer informar os homens sobre essas coisas com a revela~ao que, ao contrario, precisamente para tentar os homens, se compraz em introduzir aqui ou ali algumas confusoes, 0 que e feito de prop6sito para servir de escandalo para todos os naturalis- tas, para todo0 distinto publico cientifico, para todas as sociedades pela difusao das ciencias naturais, para todos juntos - Cumpor todos, todos por urn!' " 5.8. Kierkegaard e a "teologia cientifica" Sendo assim, entao e evidente a situayao comica (e tragica) em que se encontra a teologia: "A ciencia teo16gica tambem deseja 250 'Kierkegaard muito ser ciencia, mas tambem nisso devera perder a aposta. Se a coisa nao fosse tao seria, seria muito comico pensar a penosa situa~ao da ciencia teo16gica; entretanto, ela 0 merece, pois isso e a nemesis de sua cobi~a em querer se arvorar em ciencia". Para Kierkegaard, a realidade e que "a teologia e incredula, carece de franqueza diante de Deus e age de ma fe em rela~ao a Sagrada Escritura. Ela nao pode respirar - como teria feito, por exemplo, Lutero - com urn decreto do seguinte teor: 'Nosso Senhor pouco se importa com as ciencias naturais!' " E insensato prop or uma "teologia cientifica", da mesma forma comoe insensato fazer uma "teologia sistematica (isto e, hegeliana)". Faz-se isso s6 porque se tern medo e nao se tern fe. Diz Kierkegaard: "Em si mesmos, os protestos da ciencia nao tern muita importancia: mas uma opiniao forte e uma cultura mundana podem tomar os te6logos assustados, de modo que eles nada mais ousam doque dar- nos a aparencia de que tambem possuem vernizes de ciencia etc. Na verdade, eles teriam medo de ficar frente a frente com 0 homem da ciencia, como aconteceu outrora em rela~ao ao 'sistema'. 0 que precisariamos seria de "vis comica" e coragem pessoal: "vis comica" para mostrar quanto 0 protesto e ridiculo, ja que, por mais que as ciencias naturais tenham razao do ponto de vista da ciencia, erram o 'alvo' da religiao; coragem pessoal para ousar temer a Deus mais do que aos homens." A pesquisa cientifica nao tern fun, nao se conclui nunca. E, "se o naturalista nao sente esse tormento, significa que ele nao epen- sador. Esse e 0 suplicio de Tantalo da intelectualidade. 0 pensador experimentaaspenasdoinfemoenquantonaoconseguirexperimen- tar a certeza do espirito: 'Hie Rhodus, hie salta'. A esfera da fe esta onde se trata de que 'tu deves crer' (ainda q}letodo 0mundo ardesse em chamas e todos os elementos se fundissem). Aqui, nao se deve ficar esperando pelas Ultimas noticias do correio ou pelas novida- des dos navegantes. Essa sabedoria do espirito, a mais humilde de todas, a mais mortificante para a alma vaidosa (porque observar ao microsc6pio e tao aristocratico!), e no entanto a linica ..certeza". Para concluir, a obje~ao principal que Kierkegaard esgrima contra as ciencias naturais (na realidade, contra 0 eientifieismo positivista) e a seguinte: "Nao se pode absolutamente pensar que 0 homem que tenha refletido sobre si mesmo como espirito possa ter a ideia de escolher as ciencias naturais (com materia empiiica) como tarefa das suas aspira~6es". Quando se trata de homem de talento, 0naturalista tern faro e e engenhoso,-mas nCiose eompreende a si mesmo. Se a ciencia torna-se modo de viver, entao esse "e 0 modomais terrivel de viver:o de encantartodo mundo e se extasiar. com as descobertas e a genialidade, sem no entanto conseguir compreender-se a si mesmo". F.Nietzsche (1844-1900) foi profeta da «mortede Deus" eo fundador de uma moral «alem do bem e do mal". NIETZSCHE: FIDELIDADE A TERRA E TRANSMUTAQAO DE TOnOS OS'VALORES Critico impiedoso do passado e "inatual" profeta do futuro, dessacrador dos valores tradicionais e propugnador dohomem que esta por vir, Friedrich Nietzsche (1844-1900) possuia forte cons- ciencia do seu destino: "Eu conhe90 a minha sorte. urn dia, meu nome ira ligado a recorda9ao de uma crise comonunca houve outra semelhante na terra, ao mais profundo conflito de consciencia, a decisao proclamada contra tudo 0que ate entao fOracriado, exigido e cohsagrado. Nao sou homem, sou dinamite (;..). Contradigo como nunca foi contradito e, apesar disso, sou & antltese 4~_'espirito negador (. ..). E, malgrado tudo, sou tambem, necessariamente, homem do destino. Com efeito, se a verdade entra em luta eom a mentira de milenios, teremos tais abalos e tais convulsoes de terremoto que nunca antes haviam sido sequer sonhados. 0 concei- to de politica entrou agora completamente em guerra entre espi- ritos, todas as formas de dominio da velha sociedade saltaram pelos ares; como elas repousam todas na mentira, havera guerras como nunca houve sobre a terra. Somente comigo come9a sobre a terra a grande poUtica. " . . Nietzsche se considera como homem
Compartilhar