Buscar

Digitalizar0002

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 49 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 49 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 49 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

/
4. Arthur Schopenhauer
e 0mundo como "vontade" e "representa~ao"
4.1. Contra Hegel, "sicario da verdade"
Schopenhauer mostra-se firme contra Hegel: "Depois de ter
sido honrada por Kant, a filosofia tornou-se instrumento de inte-
resses estranhos, interesses de Estado por cima e interesses
pessoais por baixo (. ..); os interesses para os quais se tende sao
interesses pessoais, profissionais, eclesiais e estatais, ou seja, em
breve, interesses materiais". As nurnerosas penas dos sabios uni-
versais, nada mais do que vociferadores, nao estao a servi<;:ode
motivos ideais. E a verda de e a ultima coisa em que se pensa. E
prossegue Schopenhauer: "Ousaria dizer que nenhumaepoca pode
ser mais desfavoravel a filosofia do que a epoca'na qual, por urn
lado, a filosofia e explorada ignobilmente comomeio de governo e,
por outro lado, comomeio de lucro (. ..). A verdade nao e meretriz,
que se lan<;:aao pesco<;:ode quem nao a quer: ela possui beleza tao
altiva que ate quem a ela tudo sacrifica nao pode ainda estar certo
de obter os seus favores."
:It com horror que Schopenhauer constata 0 fato' de que "hoje
os govemos fazem da filosofia urn meio para os seus fins de Estado
e os doutos veem nas catedras filos6ficas apenas urn 'oficio,que, a
exemplo de outros, esta em condi<;:6esde alimentar quem,o exerce".
E, sendo assim ele se pergunta: "Como e possivel evitar .c.~'..)que a
filosofia, degradada a instrumento de lucro, degenere em sofistica?
Precisamente por ser isso inevitavel, e porque a norma 'cantarei os
louvores de quem me da 0 pao' sempre esteve em vigor, para os
antigos, ganhar dinheiro com filosofia era a marca'distintiva dos
sofistas".
E Schopenhauer ve como 0 maior sofista de seusdias preci-
samente Hegel, "0 academico mercenmo". Para ele, Hegel e "uma
especie de Caliban intelectual". Diz ele: "Instalado no alto, pelas
for<;:asdo poder, Hegel foi charlatao de mente obtusa, insipido,
nauseabundo e iletrado, que alcan<;:ou0 cUmulo da audacia gara-
tujando e difundindo osmais loucos emistificadores contra-sensos.
E esses contra-sensos foram barulhentamente celebrados como
sabedoria imortal por seguidores mercenarios, sendo prontamente
aceitos como tais por todos os tolos, que assi:tn se' uniram para
entoar urn cora de admira<;:aotao perfeito como minca:,se ouvira
antes. 0 ime:r'lsocampo de influencia espiritual posta a'disposi<;:ao
de Hegel pelos que estavam no poder permitiu-lhe perpretar a
corrup<;:aointelectual de urna gera<;:aointeira." ,
Fichte e Schelling representam para Schopemhauer "a
enfatuada vacuidade", ao passo que Hegel "0 meTo charlatanismo".
E a sonora eloqiiencia dos catedraticos, confessa amargarriente
Schopenhauer, urdiu a conjura do silencio em tomo de sua (de
Schopenhauer) filosofia, "para a qual a linica estrela polar em cuja
dire<;:aovolta sempre 0 seu timao, sem olhar a direita nem a
esquerda, e a simples, a crua, a nao remunerada"a desprovida de
amigos e a freqiientemente perseguida verdade".
Em surna, para Schopenhauer, 0 pensamento de Hegel e
"palha<;:adafilos6fica", reduzindo-se unicamente "a mais vazia e
insignificante conversa fiada com que jamais se contentou algum
pateta". Hegel e "charlatao pesado e mofino", que se expressa no
Igor
Realce
Igor
Realce
A. Schopenhauer (1788-1860): contra 0 otimismo de Hegel,.conside-
rado "academicQ mercenario" e "sicario da uerdade", sustenta que
a vida e dor, a hiBt6ria e cego acaso e 0 progresso e ilusCio.
222
''jargao mais repugnante e ao mesmo tempo insensato, que lembra
odelirio dos loucos".Hegel, esse siccirio da verdade, torna a filosofia
serva do Estado e golpeia no corar;:aoa liberdade de pensamento:
"Que melhor preparar;:ao para as futuros empregados do governo e
chefes de ser;:aodo que essa, que ensinava a dar toda ,a vida ao
Estado, a pertencer-lhe de corpo e alma comoas abelhas ilcolmeia,
a nao ter outro objetivo do que a de se tornar urna engrenagem ca-
paz de ajudar a manter em pe a grande maquina doEstado? 0chefe
de ser;:aoe a homem, assim, eram uma unica e mesma coisa (... )"
4.2. Defesa da "verdade nao remunerada"
A filosofia servil dos charlatoes, para as quais a remunerar;:ao
eo lucro sao as coisas mais importantes, Schopenhauer opoe sua
propria "verda de nao remunerada", verdade que registra em sua
obra maior, 0 mundo como vontade e representar;ao, publicada em
1819, quando tinha apenas trinta e tres anos. Com efeito, Arthur
Schopenhauer nascera em Dantzig, em 22 de fevereiro de 1788,
filho do abastado comerciante Heinrich Floris Schopenhauer e de
Johanna Henriette Trosenier. Encaminhado ao comercio pelo pai,
Schopenhauer, porem, decide se dedicar aos estudos depois do
desaparecimento do pai, que se suicidou (foi encontrad0 em urn
canal atras do celeiro) em 1805. Matriculou-se na Universidade de
Gotinga, onde teve par professor a cetico G. E. Schulze, autor de
Enesidemo (cf. p. 53). Foi par conselho de Schulze que ele estudou
"0 surpreendente Kant" e "0 divino Platao". No outono de 1811, foi
para Berlim, onde ouviu as lir;:oesde Fichte, mostrando-se decep-
cionado. Em 1813, recebeu a laurea em filosofia na Universidade de
Jena, com a dissertar;:ao Sobre a qucidrupla. raiz do principio de
razao suficiente. EmWeimar, amae Johanna (escritora de romances
e mulher ciasociedade) criara urn salao que Schopenhauer visitou
algumas vezes, encontrando la personagens como Goethe au a
orientalista Friedrich Mayer, que a introduziu no pensamEmto
hindu, aconselhando a leitura dos Upanixadas. Em 1814, porem,
Johanna abrigou estavelmente em sua casa urn admirador, in-
terrompendo-se entao as relar;:6esja turbulentas entre maee filho.
Assim, Arthur transferiu-se para Dresda, onde em 1818 concluiu
a obra 0 mundo como vontade e representar;ao, que, publicada no
ana segtiinte, teria misera repercussao, tanto que a maior parte
dessa primei:ra..edir;:aoacabou inutilizada.
'Em 1820,Schopenhauer troca Dresda por Berlim, com a
objetivo de empreender aqui a carreira academica. Em 23 de abril,
realiza as lir;:6esde prova e, com toda a faculdade reunida, a
discussao deSobre quatro diferentes especies de causa. Durante essa
discussao, entra em conflito com Hegel. De 1820 a 1831, durante
Igor
Realce
Igor
Nota
s.m. Assassino contratado para cometer qualquer espécie de crime: assalariar sicários.nullMalfeitor, facínora.nullAdj. Cruel, sanguinolento.
Igor
Realce
nada menos que vinte e quatro semestres, tentaria ter aulas em
concorrencia com Hegel. Mas so alcanc;ou 0 seu intento no primeiro
desses semestres, ja que, depois, nao teve mais estudantes.
Homemdemuitaculturaegrandeviajante, em 1831, parafugir
a epidemia de peste que grassava em Berlim, Schopenhauer se
estabeleceu em Francoforte, onde ficou ate a sua morte, ocorrida em
21 de setembro de 1860. Nesse meio tempo, publicaraA vontade da
natureza, em 1836, e as dois problemas fundamentais da etica, em
1841. Sua Ultima obra, Parerga eParalipomena, de 1851, e urn con-
junto de ensaios (entre os quaisAfilosofia das universidades eAfo-
rismos sobre a sabedoria da vida) escritos de modo brilhante e
popular, que, precisamente por isso, contribuiram para difundir 0
pensamento de Schopenhauer. Desse modo, nos ultimos anos de sua
vida, Schopenhauer teve a satisfac;ao do reconhecimento publico.
Foi grande a influencia de Schopenhauer sobre a cultura
posterior a ele: j a se falou do schopenha uerismo de filosofos contem-
poraneos como Wittgenstein e Horkheimer e 0 seu pensamento, de
alguma forma, marcou 0 romance europeu de Tolstoi, Maupassant,
Zola, Anatole France, Kafka e T:p.omas Mann. Deve-se recordar
ainda que, em 1858, na "Revista Contemporanea", De Sanctis
publicou seu famoso artigo intitulado Schopenhauer e Leopardi.
4.3. "0 mundo e representa~ao minha"
Escreve Schopenhauer no inicio de sua obra maior: "'0mundo
e representac;ao minha': eis uma verda de valida para todo ser vivo
e pensante, ainda que 0 homemso possa alcanc;a-la por consciencia
abstrata e reflexa. Quando 0 homem adquire essa consciencia, 0
espirito filosofico entrou nele. Entao, sabe com clara certeza que
nao conhece 0 sol nem a terra, mas somente que tern urn olho que
ve 0 sol e uma mao que sente 0 contato de terra: sabe que 0 mundo
circunstante so existe como representac;ao, isto e, sempre e somente
em relac;ao com outro ser, com 0 ser que 0 percebe, com ele mesmo".
Para Schopenhauer, nenhuma verdade e mais certa, mais absoluta
emais flagrante do que essa: "Tudo 0que existe para 0 conhecimento,
isto e, 0mundo inteiro, nada mais e do que 0 objeto em relac;ao com
o sujeito, a percepc;ao que se da pelo espirito que percebe, em suma,
representac;ao (. .. ). Tudo 0 que 0 mundo inclui ou pode incluir e
inevitavelmente dependente do sujeito, nao existindo senao para 0
sujeito. 0 mundo e representac;ao".
A concepc;ao segundo a qual 0 mundo e representac;ao nossa,
segundo a qual nenhum de nos pode sair de si mesmo para ver as
coisas como elas san e de que tudo aquilo de que temos conhecimento
certo se encontra dentro da nossa consciencia constitui uma "ver-
dade" da filosofia moderna, de Descartes a Berkeley. E e verdade
Igor
Realce
-antiga, como se pode constatar pela fllosofia vedanta, segundo a
qual a materia nao tern existencia independente da perceps:ao
mental e a existencia e a perceptibilidade sao termos conversiveis
entre si. .
omundo erepresentas:ao. E a representas:ao tern duas metades
essenciais, necessarias e inseparaveis, que sao 0 objeto e 0 sujeito.
o sujeito da representas:ao e "0 que conhece, sem ser conhecido por
nada ouninguem (... ).0 sujeito, portanto, e 0sustentaculo domundo,
a condis:aouniversal, sempre subentendida, de todo fen6meno e de
todo objeto: com efeito, tudo 0 que existe so existe em funs:ao do
sujeito". 0 objeto da representas:ao, aquilo que e conhecido, e
condicionado pelas formas a priori do espas:o e do tempo, atraves
das quais se tern a pluralidade, pois toda coisa existe no espaco e no
tempo. Ja 0 sujeito esta fora do espaco e do tempo, e inteiro e
individual em cada ser capaz de representas:ao, razao por que "ate
urn so desses seres, juntamente com 0 objeto, basta para constituir
o mundo como representas:ao, tao completo comomilhoes de seres
existentes; ao contrario, 0 desvanecimento desse Unico sujeito
levaria ao desvanecimento do mundo como representas:ao".
o sujeito e 0 objeto, portanto, sao inseparaveis, tambem para
o pensamento: cada uma das duas metades "nao tern sentido nem
existencia senao por meio da outra e em funs:ao da outra, ou seja,
cada urna existe com a outra e comela se dissipa". Segue-se dai que
o materialismo esta errado por negar 0 sujeito, reduzindo-o a
materia, eo idealismo - 0 de Fichte, por exemplo - esta errado
tambem porque nega 0 objeto, reduzindo-o ao sujeito. No entanto,
o idealismo, depurado dos absurdos elaborados pelos "filosofos de
universidade", e irrefutavel: 0 mundo e representa9ao minha e "e
preciso ser abandonado por todos os deuses para imaginar que 0
mundo intuitivo, Eosto fora de nos, tal como preenche 0 espas:oem
suas tres dimensoes, movendo-se no inexoravel curso do tempo,
regido a cada passo pela indeclinavellei da causalidade (. ..), existe
fora de nos comabsoluta realidade objetiva, sem qualquer concurso
de nossa parte e que, depois, por meio das sensas:oes, entre em
nosso cerebro, onde comes:aria a existir segunda vez, como existe
fora de nos".
Em surna, Scho'penhauer e contrario tanto ao materialismo,
que nega 0 sujeito, reduzindo-o a materia, coi:po ao realismo,
segundo 0 qual a realidade externa se refletiria poraquilo que esta
em nossa mente. A verdade e que "nao pode haver de modo algum
uma existencia absoluta e, em si mesma, objetiva - isso e
impensavel. Tudo 0 que e objetivo tern sempre e essencialmente,
como tal, sua existencia na consciencia de urn sujeito, sendo,
portanto, sua representas:ao e sendo condicionado pelo sujeito e por
suas formas representativas, que, como tais, sao inerentes ao
Igor
Realce
sujeito e nao ao objeto". Em outros termos, 0 mundo, como nos
aparece em sua imediaticidade considerado comoa realidade em si,
e na verdade urn conjunto de representa¥oes condicionadas pelas
formas a priori da consciencia, que, para Schopenhauer, SaD0
tempo e espa¥o e a causalidade.
4.4. A categoria da causalidade
Comoja mostrava Kant, espa¥o e tempo SaDformas a priori da
representa¥ao: toda a nossa sensa¥ao e percep¥ao de objetos e
espacializada e temporalizada. E e sobre essas sensa¥oes· e per-
cep¥oes espacializadas e temporalizadas que, depois, 0 intelecto
entra em a¥ao, ordenando-as em cosmos cognoscitivo mediante a
categoria da causalidade (Schopenhauer redu~ as doze categorias
kantianas a unica categoria da causalidade): "E somente quando 0
intelecto entra em atividade e aplica a sua forma unica, a lei da
causalidade, que se realiza importante transforma¥ao e a sensa¥ao
subjetiva torna-se intui¥ao objetiva. Coni efeito, em virtude da
forma que the e propria e, portanto, apriori (... )ele toma a sensa¥ao
organica dada comoefeito (. ..),que, comotal, deve necessariamente
ter causa."
E atraves da categoria da causalidade que os objetos deter-
minados espacial e temporalmente, que acontecem aqui ou alhu-
res, neste ou naquele momenta, SaDpostos urn comodeterminante
(ou causa) e outro comodeterminado (ou efeito), de modo que "toda
a existencia de todos os objetos, Emquantoobjetos, representa¥oes
e nada mais, em tudo e por tudo se vincule aquela sua necessaria
e insubstituivel rela¥ao". Isso significa que a a¥ao causal do objeto
sobre outros objetos e toda a realidade doobjeto.Conseqiientemente,
a realidade da materia se exaure em sua causalidade, como tes-
temunh~ inclusive 0 termo alemao Wirklichkeit, que significa ai
realidade e que deriva do verbo wirken, isto e, agir.
Aquilo que e determinado pelo principio de causalidade,
afirma Schopenhauer, nao e simples sucessao no tempo, mas muito
mais sucessao no tempo em rela¥ao a espa¥o determinado, nem e
a presen¥a em "lugar puro", mas muito mais a presen¥a em lugar
em rela¥ao a determinado tempo. Em suma, "amudan¥a que ocorre
em virtude da lei causal diz respeito (. ..)vez por vez a determinada
parte do espa¥o e a determinada parte do tempo, simultanea e
juntamente: por isso, a causalidade conjuga 0 espa¥o com 0 tempo".
o mundo e representa¥ao minha e a a¥ao ca~sal do objeto
sobre os outros objetos e toda a realidade do objeto. E compreensi-
vel, portanto,desde 0 escrito Sobre a quddrupla raiz do principio
da raztio suficiente, a importancia que Schopenhauer atribui ao
principio da .causalidade, cujas divers as formas determinam as
_.''!!t:l _~.
:~~~:l!_
~--...• ~~-
G\
Igor
Realce
Igor
Realce
Igor
Realce
categorias dos objetos cognosciveis: 1) 0 principio de razao suficien-
te do devir representa a causalidade entre os objetos naturais; 2) 0
principio de razao do conhecer regula as rela<;:oesentre os juizos
pelos quais a veracidade das premissas.determina a das conclusoes;
3) 0 principio de razao suficiente do ser regula as rela<;:oesentre as
partes do tempo e do espa<;:oe determlna a concatena<;:aodos entes
aritmeticos e geometricos; 4) 0 principio de razao suficiente do agir
regula as rela<;:oesentre as a<;:oese seus motivos.
Para Schopenhauer, sac essas as quatro formas do principio
da causalidade, quatro formas de necessidade que estruturam ri-
gidamente todo 0 mundo da representa<;:ao: necessidade fisica, ile-
cessidade logica, necessidade matematica, necessidade moral. Esta
Ultima necessidade, pela qual 0 homem, como 0 animal, age neces-
sariamente com base em motivos exclui a liberdade da vontade:
como fen6meno, 0 homem submete-se a lei dos outros fen6menos,
ainda que, comoveremos, nao se reduza ao fen6meno, tendo a pos-
sibilidade, ligada a sua essencia numenica, de ?e reconhecer livre.
o mundo, portanto,e representa<;:ao minha ordenada pelas
categorias doespa<;:o,do tempo e da causalidade. 0 intelecto ordena
e sistematiza, atraves da categoria da causalidade, os da~os das
intui<;:oesespacio-temporais, captando assim os nexos entre os
objetos e as leis do seu comportamento. Mas, ainda que sEmdoesse
o modo como as coisas se pass am, 0 intelecto nao nos levaalem do
mundo sensivel.
Como representa<;:ao,portanto, 0mundo e fenomeno e, porisso,
nao e possivel distin<;:aoreal e clara entre 0 sonho e 13-vigilia: 0 sonho
tern somente menos continuidade e coerencia do que a vigJ.1ia.Ha
estreito parentesco entre a vida e 0 sonho e, diz Schopenhauer, "nos
nao nos envergonhamos de proclama-Ia, tantos foram os grandes
espiritos que a reconheceram eproclamaram". OsVeda e osPurana
chamam a consciencia domundo de "0 veu de Maia"; Platao afirma
ami ude que os homens vivem no sonho; Pindaro diz que "0 homem
eo sonho de uma sombra"; Sofocles compara os,homens a simulacros
e sombras leves; Shakespeare sentencia que "nos somos da mesma
materia de que sac feitos os sonhos. e:a nossa breve vida e circun-
dada por sono"; e, para Calderon, "a vida e sonho". .
Seguindo as pegadas desses pensadores e pela precis a razao
de que "0 mundo e representa<;:ao minha", Schopenhauer escreve
que "a vida e os sonhos sac paginas do mesmo livro. A leitura
corrida e a vida real. Mas, quando a hora habitual da leitura (0 dia)
ja passou, chegando 0 momento do repouso, continuamos amiude
a folhear ociosamente 0 livro, abrindo ao acaso esta ou aquela
Igor
Realce
Igor
Nota
importante
Igor
Realce
pagina, sem ordem e sem seqiiencia, defrontando-nos ora comuma
paginaja lida, ora com urna nova; mas 0 livro que lemos e sempre
o mesmo".
o mundo como representa~ao nao e a coisa em si, e fenomeno,
"e objeto para 0 sujeito". Mas Schopenhauer nao fala, como Kant,
do fenomeno comode representa~ao que nao diz respeito e nao pode
captar 0 mimeno, isto e, a coisa em si. Para Schopenhauer, 0
fenomeno, aquilo de que fala a representa~ao, e ilusao e aparencia,
e aquilo que, na filosofia hindu, chama-se 0 "veu deMaia" que cobre
a face das coisas. Para Kant, em surna, 0 fenomeno e a unica
realidade cognoscivel, mas, para Schopenhauer, 0 fenomeno e a
ilusao que envolve a realidade das coisas em sua essencia primigenia
e autentica.
Pois bern, na opiniao de Schopenhauer, pode-se alcanyar essa
essenci'a da realidade, 0 mimeno que, para Kant, permanece
incognoscivel. Ele compara 0 caminho que leva a essencia da
realidade a urna especie de passagem subterranea que, de surpresa,
leva precisamente ao interior daquela fortaleza considerada
inexpugnavel por fora. Com efeito, 0 hornem e representa~ao e
fenomeno, mas nao e somente isso, ja que tambem e sujeito
cognoscente. Ademais, 0 homem tambem, e "corpo". Entretanto, 0
corpo e dado ao sujeito cognoscente de dois modos inteiramente
diversos: por urn lado, como representa~ao, e como objeto entre
objetos, submetidos as suas leis; por outro lado, "e dado como algo
de imediatamente conhecido de cada urn e que e designado pelo
nome de vontade. Todo ato real da sua vontade, infalivelmente, e
sempre e tambem movimento do seu corpo; 0 sujeito nao pode
querer efetivamente urn ato sem constatar aomesmo tempo que ele
aparece como movimento do seu corpo. 0 ato volitivo e a a~ao do
corpo (.. ,..)sao (... ) urna so e mesma coisa, que nos e dada de dois
modos essencialmente diversos: por urn lado, imediatamente; por
outro lado, como intui~ao pelo intelecto".
Claro, podemos olhar 0 nosso corpoe falar dele como de
qualquer outro objeto - e, nesse caso, ele e fenomeno. Mas e
atraves donosso corpo que sentimos que vivemos, experimentamos
prazer e dor e percebemos 0 anseio de viver e 0 impulso a conser-
va~ao. E e atraves do proprio corpo que cada urn de nos sente que
"a essencia intima do proprio fenomeno (manifestimdo-se para ele
comorepresenta~ao, tanto por meio de suas a~6escomopor meio do
seu substrato permanente, 0 corpo) nada mais e do que a sua
vontade, que constitui 0 objeto imediato de sua propria consciencia.
E essa vontade nao se enquadra no modo de conhecimento em que
sujeito e objeto se contrap6em urn ao outro, "mas se nos apresenta
por via imediata, na qua1 nao se pode mais distinguir claramente
o sujeito do objeto".
_. ,
::I ;
< ) ,~,.
~W
Igor
Realce
Igor
Realce
A essencia do nosso ser, portanto, e a vontade: a imersao no
profundo de n6s mesmos faz com que descubramos que somos
vontade. Mas, ao mesmo tempo, essa imersao rompe 0 "veu de
Maia" e faz com que nos vejamos como partes daquela von~ade
linica, daquele "cego e irresistivel impeto" que permeia, se'aiJ:ta e
esquadrinha por todo 0 universo. Em outros termos, a consciencia
eo sentimento donosso corpo comovontade levam-nos a reconhecer
que toda a universalidade dos fenomenos, embora tao diversos em
suas manifesta~6es, tern urna s6 e identic a essencia: aquela que
conhecemos mais diretamente, mais intimamente emelhor do que
qualquer outra, aquela que, em fulgida manifestayao, toma 0 nome
de "vontade".
E, afirma Schopenhauer, quem compreender isso "vera von-
tade (. ..) na for~a que faz crescer e vegetar a planta; na forya que
da forma ao cristal; na forya que dirige a agulha magnetica para 0
norte; na comoyaoque se experimenta no contato entre dois metais
heterogeneos; na forya que se manifesta nas afinidades eletivas da
materia, em forma de atra~ao e repulsao, de combinayao e de-
composi~ao; e ate na gravidade, que age com toda potencia em toda
materia e atrai a pedra para a terra como a terra para 0 ceu".
:It essa, portanto, a reflexao que torn a possivel ultrapassar 0
fenomeno e chegar a coisa em si. 0 fen6meno e representayao e
nada mais: "coisa em si e somente a vontade, que, nesse titulo, nao
edemodo algum representa~ao; ao contrario, dela difere toto genere".
Os fenomenos, ligados ao principio de identifica~ao que e 0 espayo-
tempo, sao mrutiplos, aopasso que a vontade e unica. E ecega, livre,
sem objetivo e irracional. A insaciabilidade e a eterna insatisfa~ao
darao lugar a urna cadeia ascensional de seres nas for~as' d'a
natureza, no reino vegetal, no reino animal e no reino huinano,
seres que, premidos por impulso cego e irresistivel, lutam urn
contra 0 outro para se imporem e dominarem 0 real.
Essa dilacera~ao, essa luta sem tregua e sem fun, agus:a-se na
a~ao consciente do homem subjugando e explorando a natureza,
por urn lado, e no cruel conflito entre os diversos egoismos indo-
maveis, por outro lado. Em poucas palavras, "a vontade e a
substancia intima, 0 nucleo de toda coisa particular e do todo; e
aquela que aparece na for~anatural cega e aquela que se manifesta
na conduta racional do homem. A enorme diferen~a que separa os
dois casos nao diz respeito senao ao grau da manifesta~ao: a
essencia do que se manifesta permanece absolutamente intacta".
Aessencia domundo e vontade insaciavel. Avontade e conflito
e dilacera~ao e, portanto, dor. E, "a medida que 0 conhecimento
Igor
Realce
Igor
Realce
torna-se mais distinto e que a consciEmciase eleva, cresce tambem
o tormento, que alcah9a no homem 0 grau mais alto, tanto mais
elevado quanto mais inteligente e 0 homem: 0 homem de genio e 0
que sofre mais". Comodiz oEclesiastes, "Qui auget scientiam, auget
et dolorem". A vontade e tensao continua e, "enquanto todo tender
nasce de descontentamento com 0 pr6prio estado, e, portanto, um
sofrer enquanto nao esatisfeito; mas nenhuma satisfa9ao e duravel,
alias, nada mais e do que 0 ponto de partida de novo tender. 0
tender se ve sempre impelido, esta sempre em luta, sendo, portanto,
sempre um sofrer. Nao ha nenhum fim Ultimo para 0 tender;
portanto, nenhuma medida e nenhum fim para 0 sofrer".
A essencia da natureza inconsciente e aspira9ao constante,
sem objetivo e sem repouso. E, ao mesmo tempo, a essencia do
animal e do homem e querer e aspirar: sede inextinguivel. E "0
homem,sendo a objetiva9ao mais perfeita da vontade de viver, e
tambem 0mais necessitado dos seres: nada mais e do que vontade
e necessidade, de modo que se poderia defini-lo ate como uma
concretude de necessidades". 0 homem yive abandonado a si
mesmo, incerto de tudo, imerso na indigencia e no anseio, amea-
9adopor perigos sempre renovados. Arealidade, diz Schopenhauer,
e que, "as mais das vezes, a vida nada mais e do que luta continua
pela existEmcia, com a certeza da derrota final".
A vida emar semeado de escolhos e sorvedouros. E ate aquele
que consegue sobreviver nada mais faz do que "aproximar-se pouco
a pouco do grande, fatal, inevitavel e irremediavel naufragio,
sabendo que. sua vida e velejar em dire9ao ao naufragio, rumo a
morte, ultimo passo da penosa viagem, meta mais terrivel do que
os escolhos evitados". A vida e necessidade e dor. Se a necessidade
e satisfeita, entao mergulha na saciedade e·no tedio: "0 fim, em
substancia ..•e ilus6rio: com a posse, desvanece todo atrativo; 0
desejo, porem, renasce de nova forma e, comele, a necessidade; caso
contrario, eis a tristeza, 0 vazio, 0 tedio, inimigos ainda mais
terriveis do que a necessidade".
Segue-se dai que a vida humana oscila, comopendulo, entre a
dor e 0 tedio. Dos sete dias da semana, seis sao de dor e necessidade,
urn de tedio. EmParerga eParalipomena, Schopenhauersustenta
que, no fundo, 0 homem e animal selvagem e feroz. Conhecemos 0
homem somente naquele estado de mansidao e domesticidade
chama do civiliza9ao, mas basta um pouco de anarquia. para que
nele se manifeste a verdadeira natureza humana: "0 homem e 0
linico animal que faz sofrer os outros pelo unico objetivo de fazer
sofrer"; 0 homem se compraz no mal alheio e, para ele, como diz
Romero, a ira e mais doce que 0 mel; "0 homem e animal de ca9a,
que, nem bem ve surgir ao seu lado urn ser mais frac0ique ele, cai-
lhe em cima".
--
-' i:s ..
<
CD
:s
Igor
Realce
Igor
Realce
Igor
Realce
A realidade e que "0 mundo e qs hornens sao, por urn lado, as
almas danadas e, por outro, os demoriios".J~orisso, ninguem e para
ser invejado, mas infinitos homens sao digrloSde compaixao pois
sao condenados a vida: "0 trabalho, a clor,0 cansa~o e a necessidade
sao certamente 0 destino de quase todos os homenf;lpor toda a sua
vida" e "a infelicidade C .. ) e a norma". 'Essimcialmente, 0 que e
positivo, ou seja, real, e a dor, ao passo que 0 que e negafivo, ou seja,
ilusorio, e a felicidade: "Nenhum objeto da vontade, uma vez
alcan~ado, pode dar satisfa~ao duravel, que' nao mude mais: as-
semelha-se a esmola que, jogada ao mendigo, prolonga hoje a sua
vida para continuar amanha 0 seu tormento". '"
A dor e a tragedia nao sao somente a essencia da vida dos
individuos, mas tambem a essencia da historia detoda a humani-
dade: "A historia nos fala da vid8. dos povos e so sabe nos contar
guerras e revolt as C .. ). Assim, a vida de todo individuo e continua
1uta, nao apenas a luta metafisica coma necessidade ou com0 tedio,
mas tambem, a luta real com os outros individuos. A cada passo,
encontra ele 0 seu adversario, vive em guerra contInua e morre de
armas nas maos".A vida edor ea hist6ria eacaso cego.-6progresso e
ilusiio. A historia nao e, como pretende Hegel, racionalidade e
progresso: sao injustificaveis todo fmalismo e qualquer otimismo.
Ahistoria e"destino", e a tragic a repeti~ao domesmo acontecimento
em formas diversas. Como bem disse Calderon, "0 maior delito do
homem foi 0 de ter nascido".
4.7. A liberta9ao atraves da arte
Como fenomeno, 0 mundo e representa~ao. Mas, em sua
essencia, e vontade cega e irrefreavel, perenemente insatisfeita,
dilacerando-se entre for~as contrastantes. Mas quando, aprofun-
dando-se em seu proprio intimo, 0 homem consegue compreender
isso, ou seja, que a realidade e vontade e que ele proprio e vontade,
entao esta"pronto para a sua reden~ao - e ela so pode se dar "com
o deixar de querer".
Em suma, na opiniao de Schopenhauer, sopodemos nos libertar
da dor ,e do tedio e nos subtrair a cadeia infinita das necessidades
mediante,aarte ea ascese. Comefeito,na experiencia estetica, oindivi-
duo se separa das cadeias da vontade, afasta-se dosseus desejos, anula
as suas necessidades, deixando de olhar osobjetos em fun~ao de eles
lhe poderem ser uteis ou nocivos. Na experiencia estetica, 0 homem
se aniquila como vontade e se transforma em puro olho do mundo,
mergulha no objeto e esquece-se de simesmo ede sua dor. E esse puro
olho domundonao ve mais objetos que tern relayoes comoutras coi-
sas, nem mais objetos uteis ounocivos,mas percebe ideias, essencias,
modelos das coisas, fora do espa~o, do tempo e da causalidade.
Igor
Realce
Igor
Realce
A arte expressa e objetiva a essencia das coisas. E, precis a-
mente por isso, ajuda-nos a nos afastannos da vontade. 0 genio
capta as Ideias eternas e a contempla~ao estetica mergulha nelas,
anulando aquela vontade que, tendo optado pela vida e pelo tempo,
e somente pecado e dor. Escreve Schopenhauer: "0 prazer estetico
consiste em grande parte no fato de que, mergulhando no estado de
contempla~ao pura, libertamo-nos por urn instante de todo desejo
e preocupa~ao; despojamo-nos, em certo sen,tido, de nos mesmos;
nao somos mais 0 individuo que p6e a inteligencia a servi~o do
querer, 0 sujeito'correlato a sua coisa particular, pela qual todos os
objetos tornam-se motivo de voli~ao;mas sim, purificados de toda
vontade, somos 0 sujeito eterno do conhecimento, 0 correlato da
Ideia".
Em surna, na experiencia estetica nao somosmais conscientes
de nos mesmos, mas somente objetos intuidos. A experiencia
estetica e a anula~ao temporaria da vontade e, portanto, da dor. Na
intui~ao estetica, 0 intelecto rompe a sua servidao a vontade,
deixando de ser 0 instrumento que procura osmeios para satisfaze-
la e tornando-se puro olho contemplativo. E, "enquanto para 0
homem comum 0 seu patrimonio cognoscitivo e a lanterna que
ilumina 0 caminho, para 0 homem genial e 0 sol que revel a 0
mundo".
A arte - que, da arquitetura (que expressa a ideia das for~as
naturais) a escultura, da pintura a poesia, chega a tragedia, a mais
elevada forma de arte - objetiva a vontade. E quem a contempla
esta, de certo modo, fora dela. Assim, "a tragedia express a e obje-
tiva a dor sem nome, 0 am da hurnanidade, 0 triunfo da perfidia, a
escarnecedora senhoria do acaso e 0 fatal precipicio dos justos e
inocentes" -e e desse modoque ela nos permite contemplar a natu-
reza do :mundo.
E, dentre as artes, a musica nao e aquela que expressa as
ideias, isto e, os graus de objetiva~ao da vontade, mas expressa a
propria vontade. Por isso, ela e a arte mais universal e profunda:
a musica e capaz de narrar "a hist6ria mais secreta da vontade". A
arte, portanto, e libertadora. Ela destaca 0 conhecimento da von-
tade e, portanto, nos liberta da necessidade e da dor. Ela faz de nos
puros sujeitos contemplativos que, enquanto contemplam, nao
desejam e, portanto, nao sofrem.
Entretanto, esses momentos felizes da conternpla~ao estetica,
nos quais nos sentimos libertados da tirania furiosa da vontade,
sac instantes breves eraros. Naturalmente, eles nos indicam "como
deveser feliz a vida dohomem cuja vontade nao se aquietou por urn
s6 momento, como no extase estetico, mas foi satisfeita para
sempre, alias, reduzida completamente ao nada, fora daquela
pequena centelha que ainda anima 0 corpoe desvanece com avida".
Igor
Realce
Igor
Realce
Conseqiientemente, a liberta9ao da dor da vida e a reden9ao total
do homem devem ocorrer por outro caminho. E esse caminho e 0 da
ascese.
4.8. Ascese e reden~ao
A ascese significa que a liberta9ao do homem em rela9ao ao
altemar-se fatal da dor e do tedio s6pode se realizar suprimindo em
n6s mesmos a raiz do mal, isto e, a vontade de viver. E 0 primeiro
passo para tal supressao se verifica pela realiza9ao dajustiqa, vale
dizer, mediante 0 reconhecimento dos outroscomo iguais a n6s
mesmos. Entretanto, a justi9a golpeia 0 egoismo, mas nos faz
considerar os outros como distintos de n6s, comodiferentes de n6s.
E, por isso, nao acaba com 0 principium indiuiduationis que fun-
damep.ta 0 nosso egoismo e nos op5e aos outros.
E preciso entao ultrapassar a justi9a e ter a coragem de
eliminar toda distin9ao entre a nossa individualidade e ados
outros, abrindo os olhos para 0 fato de que todos n6s estamos
envolvidos na mesma aventura. Esse novopasso e a.bondad~, 0 amor
desinteressado para com seres que carregam a nossa mesma cruz
e vivem 0 nosso meSrno destino tnigico. Bondade, portanto, que e
compaixao, sentir a dor do outro por meio da compreensao da nossa
pr6pria dor: "Todo amor (agape, charitas) e compaixao."
E e precisamente a compaixao que Schopenhauer insere como
fundamento da etica, de modo que, "em contraposi9ao a (...) forma
do principio moral kantiano, eu gostaria de estabelecer a seguinte
lei: nao se deve apreciar objetivamente os hornens com os quais
entramos em contato segundo 0 seu valor e a sua dignidade; deve-
se sobrevoar sobre a maldade de sua vontade e sobre a limita9ao do
seu intelecto e de sua razao, ja que a primeira poderia provocar 0
nosso 6dio e a segunda 0 nosso desprezo; nossos olhos devem ver .
neles somente suas dores, suas miserias, suas anglistias, seu
sofrimento; entao sentiremos a afinidade que nos liga a eles,
experimentaremos simpatia por eles e, ao inves de 6dio e desprezo,
sentiremos por eles aquela piedade que e a linica agape a qual nos
chama 0 Evangelho. 0 caminho mais oportuno para reprimir 0 6dio
eo desprezo que os homens despertam em n6s nao e a considera9ao
de sua pretensa 'dignidade', e sim a considera9ao de sua infelicidade,
de onde nasce a piedade".
Como quer que seja, porem, tambem a piedade, isto e, 0
compadecer, ainda epadecer. Eo caminho para erradicar de modo
decisivo a vontade de viver e, portanto, a dor e 0 caminho da ascese,
aquela ascese que faz Schopenhauer sentir-se pr6ximo dos sabios
hindus e dos santos ascetas do cristianismo. A ascese e 0 horror que
experimentamos pela essencia domun<;locheio de dor. E "0 primeiro
Igor
Nota
A ascese (do grego ἄσκησις, derivado de ἀσκέω, “exercitar”) consiste na prática da renúncia do prazer ou mesmo a não satisfação de algumas necessidades primárias, com o fim de atingir determinados fins espirituais.
Igor
Realce
Igor
Realce
Igor
Realce
passe na ascese ou na negat;:ao da vontade e a castidade livre e
perfeita". A castidade perfeita liberta da realizat;:ao fundamental
da vontade no seu impulso de gerat;:ao. A pobreza voluntaria e
intencional, 0 conformismo e 0 sacrificio tambem somam para 0
mesmo objetivo, isto e, a anulas:ao da vontade.
Enquanto fenomeno, 0 homem e urn elo da cadeia causal do
mundo fenomenico. Mas, reconhecendo a vontade comocoisa em si,
esse conhecimento age sobre ele como aquietante do seu desejo. E
e assim que 0 homem se torna livre, se redime e entra naquilo que
os cristaos chamam de "estado de grat;:a".Aascese arranca 0homem
da vontade de vida, do vinculo com os objetos - e e assim que lhe
permite aquietar-se.
Quando a voluntas torna-se noluntas, 0 hornem esta redimido.
5. Soren Kierkegaard: 0 "Individuo" e a
"causa do cristianismo"
5.1. Vma vida que levou a serio 0 cristianismo
"Algum dia, nao somente os meus escritos, mas ate a minha
vida e todo 0 complicado segredo do seu mecanismo serao minu-
ciosamente estudados". Isso foi 0 que Kierkegaard disse de si
mesmo. E a profecia tornou-se verdadeira com 0 existencialismo
contemporaneo, que se propos explicitamente como uma Kier-
kegaard-Renaissance, trazendo novamente ao primeiro plano, no
palco da filosofia, 0 pensamento daquele filosofo solitario que foi
Soren Aabye Kiekegaard, nascido e crescido no restrito ambiente
cultural da Dinamarca de entao.
Kierkegaard veio ao mundo em 5 de maio de 1813, em
Copenhaga. Seu pai, comerciante, desposara em segundas mipcias
sua propna domestica. Ao contrario do primeiro casamento, que
fOra infertil, 0 segundo foi fecundo de nada menos que sete filhos.
Soren foi 0 ultimo dos sete filhos, tendo nascido quando 0 pai ja
tinha cinquenta e seis anos e amae quarenta e quatro. Por isso, ele
se definiu "filho da velhice". Cinco irmaos de Kierkegaard morre-
ram antes dele. Somente Pedro, que depois tornou-se bispo luterano,
lhe sobreviveu.
Em sua familia, sobretudo no pai, Kierkegaard viu a marca de
tragi co destino misterioso. Falando de obscura culpa do pai, ele
afirma que a revelat;:aodessa culpa constituiu para ele 0 "grande
terremoto" de sua vida. Em 1844, no seu Diario, fala de "relat;:ao
entre pai e filho, na qual 0 filho descobre involuntariamente tudo
o que esta por detras dos bastidores, mas sem ter a coragem de ir
ate 0 fundo. 0 pai e homem estimado, piedoso e austero. Somente
Igor
Realce
uma vez, em estado de embriaguez, escapam-lhe algumas palavras
que fazem suspeitar de coisa mais horrenda. 0 filho nao consegue
sabe-lo por outra via. E nao ousa nunca perguntar sobre 0 assunto
ao pai ou a outras pessoas".
Talvez a culpa secreta do pai tenha sido a "maldi~ao" que
lan~ara, quando menino, contra Deus na deserta charneca de
Jutland e que ainda nao esquecera com a idade de oitenta e dois
anos. Ou entao 0 "pecado com Betsabeia", cometido com a domes-
tica poucos meses depois da morte da primeira mulher. Seja como
for, a imprevista revelas:ao da culpa do pai representaria para
Kierkegaard uma como que lfunpada no escuro, que Ihe permitiria
a compreensao profunda do misterio de sua vida.
Escreveu ele: "Foi entao que tive a suspeita de que a avan~ada
idade do meu pai nao fosse urna bens:ao divina, mas muito mais
urna maldis:ao, e que os eminentes dons de inteligencia de nossa
familia nos houvessem sido dados s6 para que se extirpassem urn
ao outro. Entao senti 0 silencio da morte crescer em torno de mim:
meu pai apareceu-me como condenado a sobreviver a todos n6s,
como cruz funerea plantada sobre 0 t1irnulo de todas as suas
pr6prias esperan~as. Alguma culpa devia pesar sobre a familia
inteira, pois urn castigo de Deus pendia sobre ela: ela devia
desaparecer, derrubada ao solo pela divina onipotencia, cancelada
como tentativa malograda C •.. )."
A rela~ao de Kierkegaard com 0 pai e com a familia e uma
"cruz", urna dolorosa rela~ao religiosa vivida sob amarc a docastigo
de Deus. E rela~ao volt ada para algo de culpado epecaminoso,que
a divina onipotencia cancelaria como tentativa malograda. E
tambem de natureza religiosa era aquele "espinho na carne" que
bloqueou a tentativa de,Kierkegaard de se re-alizar no ideal etico e
impediu-o,de casar com Regina Olsen ou de se tornar pastor.
Regina Olsen, filha de alto funciomirio, tinha dezoito anos quando,
em 1840, comvinte e sete anos, Kierkegaard pediu-a em casamento.
Adoze anos de distancia do seu primeiro encontro comRegina,
eis 0 que Kierkegaard ainda escreve dela: "Erajovem deliciosa, de
natureza amavel, como que feita de prop6sito para que urna me-
lancolia comoaminha pudesse encontrar no encanta-la a sua (mica
alegria. Ela estava verdadeiramente graciosa na primeira vez em
que a vi: graciosa no seu abandono, era comovente em sentido nobre,
nao sem certa sublimidade no Ultimo momento da separa~ao. In-
fantil do principio ao fim, malgrado a sua cabecinha esperta, uma
coisa sempre encontrei nela, algo que, para mim, vale como elogio
eterno: silencio e interioridade. E ela tinha urn poder: olhar adoravel,
quando pedia, que teria podido comover ate as pedras. Teria sido
uma bem-aventurans:a poder encantar-lhe a vida e uma bem-
aventuran~a poder ver a sua bem-aventuran~a indescritivel."
Igor
Realce
236
Soren Kierkegaard (1813-1855) foi 0 "poeta cristiio" que declarou
"ridiculo" 0 sistema hegeliano epara quem a existencia do individuo
s6 se torna autentica diante da "transcendenCia" de Deus.
Essa atormentada recorda~ao que 0 apaixonadotern de sua
jovem amada testemunha 0 profundo significado da presen~a de
Regina na vida de Kierkegaard. Sua rela~ao coni Regina foi a sua
"grande rela~ao". E, no entanto, ele nao conseguiu conduir 0
noivado: "Pedi uma conversa comela, que aconteceu na tarde de 10
de setembro. Nao disse uma palavra sequer para iludi-la: consenti
(... ). Mas, no dia seguinte, no meu fntimo, vi que me tinha enga-
nado. Urn penitente comoeu, coma minha vida ante acta e a minha
melancolia ... ja devia ser 0 bastante. Naquele momenta, sofri
penas indescritiveis (... ).0 rompimento definitivo ocorreu cerca de
dois meses depois. Ela se desesperou (. ..)"
Mais tarde, Regina casou-se com certo Schlegel e teve ma-
trimonio tranquilo. Mas Kierkegaard nao a esqueceu: no fundo,
continuou esperando que a oposi~aodomundo de que ele era vftima
talvez the conferisse "novo valor" aos olhos de Regina. Alem disso,
confess a ele, "a lei de toda a minha vida e que ela retorna em todos
os pontos decisivos. Como aquele general que comandou pessoal-
mente os que 0 fuzilavam, eu tambem sempre comandei quando
devia ser ferido (... )0 pensamento (e isso era amor) era: eu serei teu
ou te sera permitido ferir-me tao profundamente, no mais intimo
da minha melancolia e na minha rela~ao comDeus que, ainda que
de ti separado, continuo sendo teu".
o contelido daquele ana de noivado, observa Kierkegaard, '~no
fundo, nada mais foipara mim doque sequela de p~nosas reflexoes
de consciencia angustiada. Perguntava-me: ousarias noivar, ou-
sarias te casar? Que estranho! S6crates fala sempre do que havia
aprendido comurrla mulher. Tambem eu posso dizer que devo tudo
oque tenho demelhor a umamo~a: nao 0 aprendi dela, propriamente,
mas por causa dela".
Na opiniao deKierkegaard, umpenitente, alguem que abra~ou
o ideal cristao daVida, com toda aquela tremenda seriedade que 0
cristianismo comporta, nao pode viver a tranquil a existencia de
homem casado. Ele nao pode aceitar 0 compromisso-mundano e a
gratificante inser~ao na ordem constituida. Regina nao podia
tornar-se sua esposa "porque Deus tinha a precedencia". E essa
tambem e a razao por que Kierkegaard renunciou a tomar-se
pastor·
E ainda ai, na fe que relativiza todas as coisas humanas e que
nao pode ser reduzida a cultura, que Kierkegaard se lan~a a rufna,
em violenta polemica contra a cristandade de sua pr6pria epoca. 0
bispo luterano Mynster - que, a renova~ao da vida crista, como
Kierkegaard a entendia, op6s a defesa da "ordem constituida" -
morreu tranquilamente em fins dejaneiro de 1854 e, homenageado
por seu povo, foi celebrado por seu sucessor, Martensen, como"um
elo da cadeia sagrada que liga entre si as testemunhas da verdade".
Mas, em polemica com Martensen, Kierkegaard se pergunta: "0
bispo Mynster era testemunha da uerdade, uma daquelas uerdadei-
ras testemunhas: sera issa uerdade?"
Averdade, para Kierkegaard, era que nao poderia ser celebrado
como"testemunha da verdade quem viveu desfrutando a vida, ao
abrigo dos sofrimentos, da luta interior, do medo e do temor, dos
escrlipulos, das anglistias da alma e das penas do espirito (. ..). A
verdadeira testemunha da verdade e 0 homem que, na humildade
e no rebaixamento, e desprezado, odiado, rejeitado, desconhecido,
ironizado, que tern a persegui~ao como 0 seu pao cotidiano e e
tratado como residuo. Sera que foi essa a vida do bispo Mynster?"
A polemica de Kierkegaard desenvolveu-se nos nove fasclcu-
los de "0 Momento", de maio a setembro de 1855. Foi nela que ele
consumiu suas liltimas energias antes de ceder de repente e mor-
rer em 11 de novembro desse mesmo ano. Alguns anos antes,
Kierkegaard escrevera: "Mynster pensa provavelmente (e, habi-
tualmente, isso e a modernidade) que cristianismo e cultura. Mas
esse conceito de cultura e pelo menos inadequado e talvez ate
diametralmente oposto ao cristianismo quando se torna
desfrutamento, refinamento e pura cultura humana".
Na opiniao de Kierkegaard, 0 contraste entre cristianismo e
cristandade estabelecida e claro: "0 cristianismo edeuma seriedade
tremenda: e nesta vida que,se decide a tua eternidade (... ). Ser
cristao e se-lo como espirito, e a inquietude mais elevada do
espirito, e a impaciencia da eternidade, e temor e tremor continuo,
agu~ados pelo fato de encontrar-se neste mundo perverso que
crucifica 0 amor e abalado de estremecimento pela presta~ao de
contas final, quando 0 Senhor e Mestre retornara parajulgar se os
cristaos foram fieis".
Entre.tanto, depois de mil e oitocentos anos de cristianismo,
"tudo se tornou superficialidade na cristandade atual". E isso
porque 0 cristianismo e visto comoinstrumento capaz de "facilitar
sempre mais a vida, a temporalidade no sentido mais trivial". 0 que
se quer e "viver tranqiiilo e atravessar 0mundo em felicidade": essa
e a razao por que "toda a cristandade e disfarce, mas 0 cristianismo
nao existe em absoluto". E Kierkegaard se escandaliza diante da
realidade - para ele, terrivel - de que, entre as heresias e os
cismas, nao se encontra nunca a heresia mais sutil e mais cheia de
perigos: a heresia que consiste em "brincar de cristianismo".
5.2. Kierkegaard: 0 "poeta cristao"
Escreve Kierkegaard: "Na especie animal, vale sempre 0
principio: 0 individuo e inferior ao genero. Ja no genero humano
prevalece a caracteristica, precisamente porque cada individuo e
criado a imagem de Deus, de que 0 Individuo emais elevado do que
o genero". E, uma vez assumido com toda a seriedade que merece
aquele acontecimento fundamental da historia que e 0 cristianis-
mo, e na defesa do Individuo que se concretiza e desenvolve toda a
obra deKierkegaard, cujo primeiro trabalho filosoficofoi0 Conceito
de ironia (1841), no qual ele contrap5e 0 empenho etico da ironia
socratica a ironia romantica (que, em nome do Eu absoluto, nao
leva a realidade a serio).
Sao de 1843 os dois volumes de Aut-Aut, dos quais emerge a
ideia de que a existencia finita do Individuo existente nao e
caracterizada pelo et-et, isto e, pela supera9ao hegeliana, mas sim
pela escolha, isto e, pelo aut-aut. NoDicirio de um sedutor- com
o qual termina 0 primeiro volume -, Kierkegaard delineia 0 ideal
estetico da vida dosedutor, que vivesegundo a segundo, dispersando-
se na multiplicidade sem autentico empenho etico e dissipando-se
no prazer. E dessa forma de vida, que e precisamenteo ideal
estetico, sai-se comurn salto (eis 0 aut-aut), que leva a vida etica e,
depois a vida da fe. E, segundo Kierkegaard, e exatamente a
vida da fe que constitui a forma verdadeiramente autentica da
existencia finita, vista como 0 encontro do Individuo com a singu-
laridade de Deus.
Kierkegaard dedica a questao do significado da fe a obra
Temor e tremor (1843). A fe vai alem do proprio ideal etico da vida.
o simbolo da fe e Abraao, que, em nome da fe em Deus, levarita 0
punhal sobre 0 seu proprio filho. Mas como fez Abraao para estar
certo de que era realmente Deus que the ordenava matar 0 filho
Isaac? Se aceitamos a fe, como Abraao, entao a autentica vida
religiosa aparece em toda a sua paradoxalidade, ja que a fe em
Deus, que ordena matar 0 proprio filho, e 0 p:r:incipiomoral que
imp5e amar 0 proprio filho entram em conflito e levam 0 crente a
ser posta diarite de escolha tragica.
A fe e paradoxa e angustia diante de Deus comopossibilidade
infinita. E e ao problema da anglistia como modo de ser da
existencia do Individuo que Kierkegaard dedica 0 conceito da
angustia, que e de 1844. "Aangustia e a possibilidade da liberdade:
somente essa angustia, atraves da fe, tern a capacidade de formal'
absolutamente, enquanto destroi todas as finitudes, descobrindo
todas as suas ilus5es". A anglistia forma "0 discipulo da possibili-
dade" e prepara "0 cavaleiro da fe".
Ainda em 1844, Kierkegaard publicou a importante obra
Migalhas filos6ficas, na qual 0 autor examina a ideia da maieutica
religiosa eanalisa 0 significado da categoria dopossivel. Entretanto,
urn ana antes,em 1843, dera a luz A repetiqfio, onde, ao ideal es-
tetico da vida, e contraposta a reconquista de si, vale dizer, a
autentica existencia atraves da fe. E os Estcigios no caminho da
vida (1845) tambem examinam 0 mesmo tema. E, em A doem;a
mortal (1849), explorando os resultados das analises realizadas
nas obras anteriores, Kierkegaard contrap6e ao desespero, que e a
verdadeira doenr;amortal, a salva-;ao da fe, sustentando que, fora
da fe, s6 existe 0 desespero.
No Ultimo ana de sua vida, como dissemos, Kierkegaard
publicou nove fasciculos doperi6dico "0 Momento", atraves doqual
pretendia rest aurar 0 sentido genuino do cristianismo. Em forte
polemica comosmeios religiosos, Kierkegaard teve 0Ultimoperiodo
de sua vida ainda mais amargurado em virtude de urna serie de
ataques quase cotidianos de urnjornal hurnoristico "0 Corsario".
Alem disso, tern fundamental importancia 0 seu Diario. Ele
ocupa quase cincomil paginas dosvinte volumes de que se constitui
a edi-;aop6sturna de suas "Cartas". 0 Diario foiobra queKierkegaard
iniciou em 1833, quando tinha pouco mais de vinte anos, chegando
ate os liltimos dias de setembro de 1855,menos de doismeses antes
de sua morte. Comonotou Cornelio Fabro, oDiario revel a 0 espirito
e 0 pensamento de Kierkegaard melhor do que qualquer outro
escrito seu, "pela intimidade e sinceridade, pela vastidao de di-
mens6es que 0 seu espirito alcan-;a, pela profundidade de analise
do homem interior e pela como-;aode estilo que 0 aproximam das
Confissoes de santo Agostinho".
Com base nesses rapidos acenos a obra de Kierkegaard, nao e
dificil perceber que 0 seu pensamento epensamento essencialmente
religioso: e a defesa da existencia do Individuo, existencia que s6 se
toma autentica diante da transcendencia de Deus. 0 Individuo e
Deus e a rela~ao do Individuo com Deus, eis os temas de fundo da
fIlosofia de Kierkegaard, que, desse modo, se configura como
verdadeira autobiografia teol6gica. .
Comoobs~rva Kierkegaard em seuDiario, "0 cristianismo nao
existe mais aqui, mas, para que se possa falar em reve-lo, era
preciso despeda-;ar 0 corayao de urn poeta - e esse poeta sou eu".
Eo poeta cristiio, que "nao ere em simesmo, mas somente emDeus",
afirma em "0 Momento" que morria tranqiiilo: a luta acabou e ele
se declara infinitamente grato a Providencia, que Ihe concedeu de
sofrer para prop agar a ideia do cristianismo como "verdade sofre-
dora". E a verdade crista, por meio da escola do sofrimento, 0
tornara livre: "Humilhado atraves de tremenda escola, tambem
adquiri a franqueza."
5.3. 0 "fundamento ridiculo" do sistema hegeliano
E e comcorajosa franqueza que, em nome daquela indedutivel
realidade que e 0 Indiv£duo, Kierkegaard ataca a filosofia
especulativa, espeeialmente 0 sistema hegeliano. Diz ele: "A exis-
tencia corresponde a realidade singular, ao Individuo (0 que
Arist6teles ja ensinou): ela permanece de fora e de qualquer forma
nao coincide com 0 conceito (. ..). Urn homem singular certamente
nao tern existencia conceitual."
Mas a filosofia, reafirma Kierkegaard, pareceu interessada
somente nos conceitos: ela nao se preocupa com0 existente concreto
que podemos ser eu e tu, em nossa irrepetivel e insubstituivel
singularidade; ao contrario, ela se preocupa com 0 homem em ge-
ral, com 0 conceito de homem. Mas a nossa existencia nao e em
absoluto urn conceito. Substancialmente, 0 Individuo e o.ponto que
Kierkegaard enfatiza para invalidar as pretens6es do sistema.
Confessa ele: "Se eu devesse encomendar urn epitafio para 0meu
tUmulo, nao pediria mais do que 'aquele Individuo', ainda que,
agora, essa categoria nao seja compreendida. Mas 0 sera mais
tarde. Com essa categoria, '0 Individuo', quando aqui tudo era
sistema em cima de sistema, eu tomei polemicamente 0 sistema
como alvo e, agora, nao se fala mais de sistema".
Kierkegaard ligava a sua pr6pria importancia hist6rica a
categoria de "Individuo", vinculando-a tambem ao desmascara-
mento da mentira contida nos sistemas filos6ficos que, precisa-
mente, se interessam pelos conceitos e nao pela existencia. "Isso
acontece com a maioria dos fi16sofosem rela~ao aos seus sistemas,
como se alguem construisse um enorme castelo e depois, por sua
pr6pria conta, fossemorar em celeiro. Eles nao vivem pessoalmente
em seus enormes edificios sistematicos. Essa e e permanece (. ..)
acusa~ao decisiva."
E a acusa~ao decisiva e dirigida sobretudo a Hegel, cujo sis-
tema e a encarna~ao da pretensao de "explicar tudo" e demonstrar
a "necessidade" de todo acontecimento. Mas 0 sistema nao conse-
gue engaiolar a existencia, revelando-se unicamente uma contra-
fa~aoe urna caricatura do que existe de singular, irrepetivel, quali- .
tativo e hurnano na existencia. Na opiniao de Kierkegaard, a figura
dofil6sofosistematica, em suma, a figura deHegel, e figura camica.
:It c6mica a situa~ao do "espirito sistematico, que acredita poder
dizer tudo e esta persuadido de que 0 incompreensivel seja algo
falso e secundario". Por isso, diz Kierkegaard, "brandi a brincadei-
ra da ironia (... ) contra a horrorosa solenidade dos especuladores".
E Kierkegaard mostra-se mais duro contra Hegel do que
Schopenhauer. Com efeito, ele chega a dizer que 0 hegelianismo,
"esse brilhante espirito de podridao", e "amais repugnante de todas
as formas de libertinagem". Kierkegaard fala da "murcha pompa
do hegelianismo" e de sua "abominavel pompa corruptora". Afirma
ele: "Antes de Hegel, (... ) houve fil6sofos que tentaram explicar a
hist6ria. E a Providencia s6 podia sorrir ao ver essas tentativas.
Mas nao se entregou ao riso desenfreado, porque neles havia
sinceridade humana e honestidade. Mas Hegel! Aqui, necessito da
linguagem de Homero. A que explosao de risos nao devem ter-se
entregado osdeuses! Urn professorzinho tao semgra~a, que pretende
simplesmente ter descoberto a necessidade de toda coisa (. .. ) e ei-
10 agora dedicado a tocar toda a sua musica no seu organum-zinho:
escutai, portanto, 6 deuses do Olimpo!"
Hegel pretende ver as coisas com os olhos de Deus, de saber
tudo, mas cai no ridiculo, ja que 0 seu sistema se esquece da
existencia, isto e, do Individuo. E essa e a razao por que a fllosofia
sistematica nao se ap6ia tanto em pressuposto equivocado, mas
muito mais em "fundamento ridiculo": presume falar do Absoluto
e nao compreende a existencia humana. "0 corvo que perde 0 queijo
por culpa da eloquencia - eis uma imagem da doutrina idealista,
que, depois que tudo se perdeu, nada mais mantem senao a si
mesma". NaApostila conclusiva, Kierkegaard escreve que a figura
do fll6sofo tornou-se figura tao fabulosa que .sequer a fantasia mais
extravagante teria podido encontrar algo similar.
Por ai, ja se pode ver que 0 ataque desferido por Kierkegaard
contra Hegel e ataque de natureza ret6rica. Ele nao entra no merito
do sistema hegeliano: para ele, todo 0 sistema e ridiculo, nao
valendo a pena discutir os princfpios do sistema hegeliano, pois e
o sistema em sua totalidade que nao interessa, que nao tern
importancia. Esse sistema nao e importante para compreender a
existencia: "0 Individuo, etica e religiosamente acentuado ou
existencialmente acentuado", esta sempre e de qualquer modo fora
do sistema.
Kierkegaard nao discute os princfpios de Hegel. Ele procura
muito mais deslocar os interesses da filosofia: para ele, a fllosofia
nao e sistema especulativo, e sim 0 did-rio intima de existencia
irrepetivel. Em seu Did-rio, de 1844, perguntava-se Kierkegaard:
"Por que, em nossos dias, a filosofia assumiu andamento ~ao
enganoso e nao diz palavra sobre 0modo comoosautores individuais
se comportam? Nao se consegue compreende-Ios, porque nao sabem
como e que eles pr6prios existem. Assim, ate as obras de primeira
ordem escondem frequentemente a mentira: 0 autor nao compreen-
deu a si mesmo, mas sim esta ou aquela ciencia, coisa bem mais
facil do que compreender-se a si mesmo".
"0 'Individuo' e a categoria atravesda qual devem passar, do
ponto de vista religioso, 0 tempo, a hist6ria, a humanidade".
SegundoKierkegaard, e 0 Individuo que constitui a Unicaalternativa
valida ao hegelianismo. Para Hegel, 0 que conta, como na especie
bio16gica, nao e 0 Individuo, e sim a· humanidade. Mas, para
• -•..oo.r..-~." _J,:~t. ~~ + "0.,
I
Kierkegaard, 0 Individuo conta mais do que a especie: 0 Individuo
e a contesta~ao e a rejei~ao dosistema. E, aomesmo tempo, tambem
eo Individuo - original, irredutivel, insubstituivel:- que poe em
xeque todas as formas de imanentismo e de panteismo, com as
quais se tenta reduzir, isto e, reabsorver 0 individual no universo.
Dessemodo,0 Individuo toma -se 0baluarte da Transcendencia,
como afrrma Kierkegaard: "'0 Individuo': e comessa categoria que
se mantem ou cai a causa do cristianismo (oo.). 0 Individuo e e
permanece sendo a ancora que detem a confusao panteista, e e
permanece sendo 0 peso com 0 qual se pode comprimi-Ia (. ..). Para
cada homem que eu posso atrair sob essa categoria de 'Individuo',
esfors;o-mepor faze-Io tomar-se cristao, ou melhor, comoum nao
pode fazer isso pelo outro, garanto-Ihe que 0 sera".
o "Individuo" e a "fe", portanto, sao correlatos. E, para
Kierkegaard, a fe, isto e, "0 fato de ser cristao" constitui 0 dado
central da pr6pria existencia. Mas, uma vez assumido esse dado,
logose ve que "a filosofia eo cristianismo nunca se deixam conciliar.
E isso porque, se eu devo manter uma das coisas essenciais do
cristianismo, vale dizer, a Redens;ao, ela deve necessariamente ser
estendida ao homem todo. Ou sera que deverei supor as suas
qualidades morais como defeituosas e 0 seu conhecimento, ao
contrario, comointacto? Dessemodo,eu possoadmitir apossibilidade
de uma filosofia depois do cristianismo ou depois que 0 homem se
tornou cristao, mas essa filosofia seria crista".
Em outros termos, 0 crente nao pode fIJ.osofarcomo se a Re-
velas;aonao houvesse ocorrido. Com Cristo, tivemos a irrups;ao do
eterno no tempo. E, para 0 conhecimento cristfio, esse e rato abso-
luto, que, enquanto tal, nao precisa ser demonstrado, pela simples
razao de que os fatos nao sao para serem demonstrados, e sim para
serem aceitos ou rejeitados, bem como pelo outro motivo de que,
quanto ao absoluto, "nao podemos dar razoes: nomaximo, podemos
dar razoes de que nao existem raz6es". .
Para Kierkegaard, a verdade crista nao e verdade para ser
demonstrada: ela e muito mais verdade para ser testemunhada,
"reproduzindo" a Revelas;aona pr6pria vida, "sem reservar, para 0
caso de necessidade, urn esconderijo para si mesmo e urn beijo de
Judas para as conseqiiencias". E essa reduplicaqfio implica em
testemunho total, porque, no que se refere a Deus, e impossivel
assumi-lo "ate certo ponto", pelo fato de que Deus e a negas;ao de
tudo 0 que e "ate certo ponto".
Lessing sustentara que nao se pode passar de fato hist6rico a
consciencia etema. Mas Lessing, segundo Kierkegaard, esta en-
ganado, porque nao se trata de "acomodar as verda des do cristia-
nismo em paragrafos". A questao e outra: "para mim, tanto para a
simples domestica comopara 0professor, ha em expectativa 0 sumo
bem, que se chama 'bem-aventuranc;a eterna'. Eu ouvi dizer que 0
cristianismo e a condic;aopara obter esse bem. E agora me pergunto:
como posso eu reportar-me a essa doutrina?"
Aquilo que Kierkegaard contesta e a "considerac;aoespeculativa
do cristianismo", vale dizer, a tentativa de justifica-lo com a
filosofia. Nao se trata de justificar, mas de crer. E, para crer, nao
e necessario ser contemporaneo de Jesus. A verdade e que ver urn
homeIIl;nao e suficiente para fazer-me crer que aquele homem e
Deus. E a fe que me faz ver em fato hist6rico algo de eterno: e, no
que se refere ao eterno, "qualquer epoca esta igualmente pr6xima".
A fe e sempre saIto, tanto para quem e contemporaneo de Cristo
como para quem nao e.
Por isso, e compreensi vel a expressao deKierkegaard, segundo
a qual "a verda de e subjetividade": ninguem pode se par em meu
lugar diante de Deus. "A lei da existencia (que, por seu turno, e
grac;a) que Cristo instituiu para ser homem e: p6e-te como Indivi-
duo em relac;ao com Deus". 0 "cavaleiro da fe" "nao disp6e em tudo
e por tudo senao de si mesmo, em isolamento absoluto". Mas esse
fato de isolamento diante de Deus e, "para 0 pobre homem, algo de
imensamente angustiante". E, conseqiientemente, ele fica com
medo, nao ousa se por em relac;ao com Deus e considera mais
prudente ser ((comoas outros".
Naturalmente, afrrma Kierkegaard, os milh6es de homens
que tem comolei da existencia 0 "antes ser comoos outros" constitui
uma massa de macacos que da a impressao de ser alguma coisa,
muito, urna forc;aimensa. E, aparentemente, as coisas parecem ser
assim, "mas idealmente toda essa massa, esses milh6es, nao conta
nada: trata-se de existencias desperdic;adas e perdidas". Deus teve
tal miseric6rdia dos homens a ponto de conceder a gra~a de querer
se por em contato com cada Individuo. Por isso, "quando os homens
preferem ser'como os outros, isso e delito de lesa-majestade contra
Deus. A massa dos macaquinhos e culpada de lesa-majestade! E a
punic;ao sera que Deus os ignorara!"
5.5. 0 principio do cristianismo
Portanto, 0 homem deve ter a coragem de, como Individuo,
p6r-se em rela~ao com Deus: "antes em rela~ao com Deus e nao
antes 'com os outros'''. E a essencia dessa relac;ao e que "ha infinita
e abissal diferenc;a qualitativa entre Deus e 0 homem. Isso significa
ou se expressa dizendo que 0 homem nao pode absolutamente nada,
que eDeus quem da tudo, que e ele quem possibilita ao homem crer
etc. Isso e a Grac;a, e ai temos 0 principio do cristianismo". Mas e
precisamente esse principio que torna autentica a existencia, ja
que, quando nos pomos diante de Deus, nao ha mais espac;oalgum
para os fingimentos, os disfarces e as ilus6es: "Para nadar, e preciso
ficar nu; para aspirar a verdade, e preciso ficar nu em sentido muito
mais intimo, e preciso desfazer-se de vestimentas muito mais inte-
riores de pensamentos, de ideias, do egoismo e de coisas similares,
antes de poder ficar nu 0 quanto e necessario".
Em suma, para Kirkegaard, 0 cristianismo e a verdade "por
parte de Deus" e nao "por parte do homem". Por isso, "profess ores"
e "pastores" sao unicamente canalhas: sua fun98.0 seria a de sa-
tisfazer a eternidade, mas eles pretendem satisfazer 0 tempo; trata-
se de "velhacos", que consideram que "e mais comodo adular os
contemporaneos". E "eis por fim, comtanta bravura, esses canalhas,
como Goethe, Hegel e, entre nos, Mynster, pregando ou pelo menos
levando a efeito 0 principio de que a verdadeira seriedade.e
satisfazer 0 tempo".
Erguendo-se contra eles, Kierkegaard quis posicionar-se ao
lado da verdade crista, mas nao para demonstra-la ou falar inutil-
mente sobre ela - coisa que, precisamente, fazem os "prdfessores"
e os "pastores" - mas, muito mais experienciando~a em sua
propria existencia: "Eu me consagrei a esclarecer 0 que'e 0 cris-
tianismo, impelido por necessidade pessoal e tambem porque
compreendi que era disso que 0nosso tempo tinha necessidade (... )
o cristianismo e 0 devir cristao constituiram a tarefa da minha
vida, porque, com piedade profunda, compreendia que ate a mais
longa vida nao seria demais para essa tarefa".
Nesse contexto, pode-se compreender entao por que, no Ponto
de vista explicativo da minha obra (1848), Kierkegaard insiste em
dizer que "sempre fui e sou escritor religioso". A filosofia existencial
de Kierkegaard e verdadeira teologia experimental ou, ainda mais
exatamente, autobiografia teol6gica.
5.6. Possibilidade, angu.stia e desespero
Segundo Kierkegaard, como ja observamos, a caraeteristica
do homem enquanto espirito e a de que, diversamente das especies
animais, 0 Individuo e superior a especie. 0 animal tern uma
essencia, sendo, portanto, determinado,ja que a essencia eo reino
donecessario, cujas leis a ciencia procura.Aexistencia, ao contrario,
eo reino do devir, do contigente e, portanto, da historia. Em suma,
a existencia e 0 reino da liberdade: 0 homem e 0 que ele escolhe ser,
e 0 que se torna. Isso quer dizer que 0modo de ser da existencia nao
e a realidade ou a necessidade, e sim a possibilidade.
Mas, escreve Kierkegaard em 0 conceito da angustia, "a
possibilidade e a mais pesada das categorias". Ebem verdade que
se ouve dizer 0 contrario, isto e, que a possibilidade e muito leve e
que a realidade, ao inverso, e muito pesada. Mas esses discursos
provem de "homens miseraveis", que confundem a possibilidade
com aquela "inven~ao falaz que os homens, em sua corrup~ao,
brandem para terem menos um pretexto para lamentarem-se da
vida e da Providencia e para terem uma oportunidade de se
tornarem importantes aos seus pr6prios olhos". Diz Kierkegaard
que, na possibilidade, tudo e igualmente possivel. E que quem foi
realmente educado mediante a possibilidade, compreendeu tam-
bem 0 seu lado terrivel e sabe "que nao pode pretender absoluta-
mente nada da vida eque 0 lado terrivel, a perdi~ao,0 aniquilamento,
mora ao lado do homem, porta a porta".
A existencia e liberdade, e poder-ser, isto e, possibilidade:
possibilidade de nao escolher, de ficar paralisado, de escolher e de
se perder- possibilidade como"amea~a donada". Arealidade eque
a existencia epossibilidade e, portan to,angustia. Aanglistia e0puro
sentimento dopossivel, eo sentido daquilo que pode acontecer e que
pode ser muito mais terrivel do que a realidade. Porque, se alguem
sai da escola da possibilidade e "soube tirar proveito da experiencia
da angustia", entao "dara a realidade outra explica~ao: exaltara
a realidade e, ate quando ela pesar duramente sobre ele, recordar-
se-a de que ela e muito mais leve do que era a possibilidade".
o possivel, afirma Kierkegaard, corresponde perfeitamente
ao futuro. Para a liberdade, 0 possivel e 0 futuro. E, para 0 tempo,
o futuro e 0 possivel. Por isso, anglistia e futuro estao conjugados.
A anglistia caracteriza a condi~ao humana: quem vive no pecado,
se angustia pela possibilidade do arrependimento; quem vive,
tendo-se libertado do pecado, vive na anglistia de nele recair. Mas
o importante e compreender que a angustia forma: com efeito, ela
"destr6i todas as fmitudes, descobrindo todas as suas ilus6es. E
nenhum grande inquisidor tern prontas tantas torturas tao terri-
veis quanto a angustia; nenhum espiao sabe atacar com tanta
astucia a pessoa suspeita, precisamente no momento em que esta
mais fraca, nem sabe preparar tao bem os la~os para agarra-Ia,
como sabe a anglistia; por mais sutil que seja, nenhum juiz sabe
examinar tao a fundo 0 acusado como a anglistia, que nao 0 deixa
escapar nunca, nem na diversao, nem na algazarra, nem no
trabalho, nem de dia ou de noite".
Claro, a anglistia pode levar a tenta~ao do suicidio, mas isso
significaria subentender a angustia, nao aprender em sua escola.
o que verdadeiramente importa, ao contrario, e dar as boas-vindas
a angustia, faze-Ia entrar no espirito, deixar que 0 perquira e
permitir-lhe esmagar "todos ospensamentos fmitos emesquinhos".
E e desse modo que "Deus, que quer ser amado, desce, com a ajuda
da inquietude, a ca~a do homem".
E, enquanto a anglistia e tipica do homem na sua rela~ao com
omundo, 0 desespero e pr6prio do homem na sua rela~ao consigo
mesmo. Para Kierkegaard, 0 desespero e a culpa dohomem que nao
sabe se aceitar a si mesmo em sua profundidade. Porvezes, odiando
a existencia, 0 homem queI' ser tao plenamente ele mesmo a ponto
de transformar-se em horrivel deus, ao passo que outras vezes sai
de si mesmo e se dissipa na distra~ao. Mas tanto em urn como em
outro caso ha urn mal-entendido consigomesmo. E, tanto buscando-
se como fugindo, ele nao se possui. E dai 0 desespero.
Para Kierkegaard, 0 desespero e doenc;a mortal: "eterno mor-
reI' sem no entanto morrer", "autodestrui~ao impotente". Do ponto
de vista cristao, "sequel' a morte e 'doen~a mortal', muito menos
qualquer sofrimento terre no e temporal, pobreza, doeiwa, miseria,
tribula~6es, adversidades, tormentos, penas espirituais, luto, fadi-
gas". A morte pode ser 0 fim de doen~a, mas, no sentido cristao, a
morte nao e 0 fim. "Se se quisesse falar de doen~amortal no sentido
mais estrito, dever-se-ia tratar de doen~a cujo fim fosse a morte e
em que a morte fosse fim. E ai esta precisamente 0 desespero".
o desesperado esta mortalmente doente. 0 desespero, escreve
Kierkegaard, e "0 viver a morte do eu". Assim, todo homem e
desesperado. E, talvez mais do que qualquer outro, 0 seja aquele
que nao sente em si nenhurn desespero. Entretanto, precisa ele,
todo homem e desesperado exceto quando, "orientando-se.em sua
propria dire~ao, querendo ser ele mesma, 0 seu eu emerge, atraves
de sua propria transparencia, na potencia que 0 colocou".0 desespero
brota no nao querer se aceitar como estando nas maos de Deus.
Mas, negando Deus, 0 homem aniquila-se a si mesmo, pois separar-
se de Deus equivale a arrancar suas proprias raizes e afastar-se do
"unico po~odo qual pode se obter agua".
Mas, se a raiz do desespero esta em nao querer se aceitar nas
maos de Deus, entao esta claro que a autentica'existencia e aquela
que esta dis:Qonivelpara 0 amor de Deus, a existencia daquele que
nao cre mais em si mesmo, mas em Deus somente. E essa fe em
Deus, esse testemunho da "verda de que esta do lado de Deus", leva
o cristao a "entrar em serio e direto conflito com este mundo" e, ao
mesmo tempo, 0 faz compreender que, do ponto de vista cristao, 0
"objetivo desta vida e ser leva do aomais alto grau de tedio da vida".
E, quando se chegou a esse ponto, entao passamos de modo
cristao pela prova da vida e estamos maduros para a eternidade:
"Assim como0 homem que houvesse empreendido a volta aomundo
para encontrar 0 cantor ou cantora do timbre mais perfeito, da
mesma forma, no ceu, Deus tambem esta a escuta. E, toda vez que
escuta 0 louvor de homem que ele levou ao ponto extremo do tedio
pela vida, Deus diz de si para consigo: eis ai 0 tom certo. E diz 'eis
ai' como se fosse urna descoberta que ele faz. Mas Deus ja sabia
disso, porque ele proprioja estava presentejunto aquele homem e
o ajudava, porquanto Deus pode ajudar naquilo qu;e,no entanto, so
a liberdade pode fazer. S6 a liberdade pode faze-lo, mas que
surpresa para 0 homem poder se expressar agradecendo a Deus,
como se Deus 0 houvesse feito! E, em sua alegria de poder Ihe
agradecer, ele esta tao feliz que nao quer ouvir nada mais, em
absoluto a nao ser 0 pr6prio Deus. Cheio de reconhecimento, ele
tudo refere a Deus e ora a Deus para que as coisas permanet;am
assim, pois e Deus que faz tudo, porque ele nao ere mais em si
mesmo, mas somente em Deus".
5.7. Kierkegaard: a ciEmcia e 0 cientificismo
Para Kierkegaard, portanto, "e Deus que tern a precedencia".
Consequentemente, a ciencia deste mundo nao tern muita impor-
tancia, ja que, para 0 cristao, a exist encia autentica estabelece-se
noplano da fe:comoforma devida, a ciencia e existencia inautentica.
Diz ele: "Considerar a descoberta ao microsc6pio como pequeno
passatempo ou uma pequena perda de tempo, tudo bern, mas con-
sidera -la comocoisa seria e tolice (... ).SeDeus se pus esse a vaguear,
combastao nas maos, verieis como0 buscariam, especialmente tais
observadores tao empertigados com seus microsc6pios! E, com seu
bastao, Deus acabaria comtoda hipocrisia deles e dosnaturalistas."
E a "hipocrisia" consiste em dizer que as ciencias levam aDeus.
o que Kierkegaard combate e a apologetica "cientifica". Ele se
revolt a contra os que - comohomens superiores! - gostariam de
"fazer de Deus uma beleza grave, urn artista fenomenal que nem
todos estao em condit;oesde compreender". Mas "alto la!Aexigencia
religiosa e humana e que ninguem, absolutamente ninguem, pode
compreender Deus: 0 mais sabio deve se ater humildemente a
'mesma coisa' que 0 ingenuo. Ai esta a profundidadeda ignorancia
socratica: '-,:enunciar com toda a forqa da paixao' a todo saber
curioso para ser simplesmente ignorante diante de Deus". .
Se 0 naturalista que quer compreender Deus coma sua ciencia
e hip6crita, tambem e verda de que e funesto e perigoso levar tal
cientificidade para a esfera doespirito: "Que se trate desse modo as
plantas, as estrelas e as pedras; mas tratar desse modo 0 espirito
humano e blasfemia que serve somente para enfraquecer a paixao
pela etica e pela religiosidade". Existe abismo infinito entre 0
homem e Deus. Os problemas eticos e religiosos nao se deixam
tratar com os metodos das ciencias naturais e nao podem ser
resolvidos pela obserVa9aOao microsc6pio.
o naturalista que presuma de alguma forma conhecer Deus e
hip6crita. 0 cientista que quer tratar osproblemas eticos ereligiosos
com0metodo da ciencia e perigoso e funesto. E arrogante e a classe
dos naturalistas, que, sentindo-se forte com seus sucessos e seus
experimentos, escreve ainda Kierkegaard no Diario, "quer liqui-
dar Deus completamente, comosuperfluo, substituindo-o pelas leis
naturais" e presumindo que, "no fundo 0 homem se transforma em
Deus". A presUllyaodos cientistas se express a em luta contra Deus
e tende a criar "toda uma multidao de homens que fara.das cieneias
naturais a sua religiao". Isso, porem, e pura loucura. As cienCias
naturais nao podem dar mais do que a si pr6prias - ~nao saC?nem
etica nem religiao. 0 espirito exige certeza moral e esperanyR que
nao deve esperar as ultimas noticias do correio. Isso, porem,' a
ciencia nao pode dar. E, quando se fala de etica, entao, "e perfei-
tamente indiferente se os homens acreditam que a terra esteja
parada e 0 sol se mova". E sentencia Kierkegaard: "Nao, s6 a etica
deve ser acentuada; e, no campo da etica, nao me parece que as
ciencias naturais tenham feito alguma descoberta".
Por outro lado, lembra Kierkegaard, "as ciencias naturais nao
pretendem C .. ) ter descoberto tudo, nem que, em mil anos, nao se
possa descobrir que muitos dos nossos modos de viver e pensar
eram uma ilusao". Entretanto, ate quando se admite que as
ciencias naturais tern razao contra varias expressoes das Escrituras
(sobre a idade do universo, sobre a astronomia etc.), aquilo que
"permanece completamente imutado e a etica crista, suas exigencias
de mortificayao etc. A respeito disso, parece-me que a ciencia
natural nao fez nenhuma descoberta que implique em qualquer
modificayao. Mas 0 que nao se quer e precisamente essa iIJ1uta-
bilidade da etica, pois quer-se gozar a vida de forma paga. E com
esse fim que se pretende desembara~ar-se do cristianismo, mas
ainda com certo medo do cristianismo, quer-se faze-lo hipocrita-
mente ... isto e, por razao cientifica".
oMestre (Deus), porem, e a pr6pria seriedade. E, por isso, fara
de tudo para que 0 seu discipulo nao se distraia: "Por isso, ele nao
chama a aten~ao de modo algum para qualquer outra coisa senao
para a etica; quanto a todo 0 resto, fala completamente comofalam
oshomens a quem esta falando". Deus nao se preocupou em revelar
aos homens a maquina a vapor ou a arte da impressao. "Sim, Deus
esta tao longe de querer informar os homens sobre essas coisas com
a revela~ao que, ao contrario, precisamente para tentar os homens,
se compraz em introduzir aqui ou ali algumas confusoes, 0 que e
feito de prop6sito para servir de escandalo para todos os naturalis-
tas, para todo0 distinto publico cientifico, para todas as sociedades
pela difusao das ciencias naturais, para todos juntos - Cumpor
todos, todos por urn!' "
5.8. Kierkegaard e a "teologia cientifica"
Sendo assim, entao e evidente a situayao comica (e tragica) em
que se encontra a teologia: "A ciencia teo16gica tambem deseja
250 'Kierkegaard
muito ser ciencia, mas tambem nisso devera perder a aposta. Se a
coisa nao fosse tao seria, seria muito comico pensar a penosa
situa~ao da ciencia teo16gica; entretanto, ela 0 merece, pois isso e
a nemesis de sua cobi~a em querer se arvorar em ciencia". Para
Kierkegaard, a realidade e que "a teologia e incredula, carece de
franqueza diante de Deus e age de ma fe em rela~ao a Sagrada
Escritura. Ela nao pode respirar - como teria feito, por exemplo,
Lutero - com urn decreto do seguinte teor: 'Nosso Senhor pouco se
importa com as ciencias naturais!' "
E insensato prop or uma "teologia cientifica", da mesma forma
comoe insensato fazer uma "teologia sistematica (isto e, hegeliana)".
Faz-se isso s6 porque se tern medo e nao se tern fe. Diz Kierkegaard:
"Em si mesmos, os protestos da ciencia nao tern muita importancia:
mas uma opiniao forte e uma cultura mundana podem tomar os
te6logos assustados, de modo que eles nada mais ousam doque dar-
nos a aparencia de que tambem possuem vernizes de ciencia etc. Na
verdade, eles teriam medo de ficar frente a frente com 0 homem da
ciencia, como aconteceu outrora em rela~ao ao 'sistema'. 0 que
precisariamos seria de "vis comica" e coragem pessoal: "vis comica"
para mostrar quanto 0 protesto e ridiculo, ja que, por mais que as
ciencias naturais tenham razao do ponto de vista da ciencia, erram
o 'alvo' da religiao; coragem pessoal para ousar temer a Deus mais
do que aos homens."
A pesquisa cientifica nao tern fun, nao se conclui nunca. E, "se
o naturalista nao sente esse tormento, significa que ele nao epen-
sador. Esse e 0 suplicio de Tantalo da intelectualidade. 0 pensador
experimentaaspenasdoinfemoenquantonaoconseguirexperimen-
tar a certeza do espirito: 'Hie Rhodus, hie salta'. A esfera da fe esta
onde se trata de que 'tu deves crer' (ainda q}letodo 0mundo ardesse
em chamas e todos os elementos se fundissem). Aqui, nao se deve
ficar esperando pelas Ultimas noticias do correio ou pelas novida-
des dos navegantes. Essa sabedoria do espirito, a mais humilde de
todas, a mais mortificante para a alma vaidosa (porque observar ao
microsc6pio e tao aristocratico!), e no entanto a linica ..certeza".
Para concluir, a obje~ao principal que Kierkegaard esgrima
contra as ciencias naturais (na realidade, contra 0 eientifieismo
positivista) e a seguinte: "Nao se pode absolutamente pensar que 0
homem que tenha refletido sobre si mesmo como espirito possa ter
a ideia de escolher as ciencias naturais (com materia empiiica)
como tarefa das suas aspira~6es". Quando se trata de homem de
talento, 0naturalista tern faro e e engenhoso,-mas nCiose eompreende
a si mesmo. Se a ciencia torna-se modo de viver, entao esse "e 0
modomais terrivel de viver:o de encantartodo mundo e se extasiar.
com as descobertas e a genialidade, sem no entanto conseguir
compreender-se a si mesmo".
F.Nietzsche (1844-1900) foi profeta da «mortede Deus" eo fundador
de uma moral «alem do bem e do mal".
NIETZSCHE: FIDELIDADE A TERRA E
TRANSMUTAQAO DE TOnOS OS'VALORES
Critico impiedoso do passado e "inatual" profeta do futuro,
dessacrador dos valores tradicionais e propugnador dohomem que
esta por vir, Friedrich Nietzsche (1844-1900) possuia forte cons-
ciencia do seu destino: "Eu conhe90 a minha sorte. urn dia, meu
nome ira ligado a recorda9ao de uma crise comonunca houve outra
semelhante na terra, ao mais profundo conflito de consciencia, a
decisao proclamada contra tudo 0que ate entao fOracriado, exigido
e cohsagrado. Nao sou homem, sou dinamite (;..). Contradigo como
nunca foi contradito e, apesar disso, sou & antltese 4~_'espirito
negador (. ..). E, malgrado tudo, sou tambem, necessariamente,
homem do destino. Com efeito, se a verdade entra em luta eom a
mentira de milenios, teremos tais abalos e tais convulsoes de
terremoto que nunca antes haviam sido sequer sonhados. 0 concei-
to de politica entrou agora completamente em guerra entre espi-
ritos, todas as formas de dominio da velha sociedade saltaram pelos
ares; como elas repousam todas na mentira, havera guerras como
nunca houve sobre a terra. Somente comigo come9a sobre a terra
a grande poUtica. " . .
Nietzsche se considera como homem

Continue navegando