Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 1 O Direito como sistema autopoiético na evolução jurídica da matriz teórica de Gunther Teubner Geralda Magella de Faria 1 Resumo Trata-se de um estudo sobre a matriz disciplinar do Direito, porquanto sistema autopoiético, segundo a teoria de Gunther Teubner, notadamente, a sua evolução jurídica. Examinar a teoria autopoiética e compreender que é o próprio sistema que se autoconstrói a partir de seus próprios componentes, se propõe paradoxal, eis que, na medida do avanço tecnológico, seria de se esperar constantes mudanças voltadas para o novo. Na lição da autopoiese, entretanto, regularmente são produzidos mecanismos a serem utilizados pelo processo para caracterização dos sistemas vivos porquanto máquinas autopoiéticas, as quais, por meio de interações e transformações, regeneram-se e reproduzem-se realizando a tarefa autopoiética, caracterizada por seu fechamento. Não há, assim, uma mudança dita nova. Há uma transformação, uma autogeração que se (re)produziu no próprio modelo. Face ao fechamento autopoiético, rompe-se com a tradição segundo a qual a conservação e a evolução das espécies seriam condicionadas basicamente pelos fatores ambientais e/ou autodeterminantes, ou mesmo decorrente da presença de determinadas moléculas, posto que, no legado da autopoiese, a vida pode ser contemplada a partir de um sistema que se autoduplica através de um padrão de relações entre estruturas e processos metabólicos autogeradores que compõem uma rede organizativa cunhada com o selo autopoiético. Palavras-Chave: direito; sistema autopoiético; Gunther Teubner; evolução jurídica. Abstract This is a study on the disciplinary matrix of the Law since, according to the theory of Gunther Teubner, it is an autopoietic system, especially, its juridical evolution. Examining the autopoietic theory and understanding what the system itself is, which is self-constructed from its own components, is proposed to be paradoxical inasmuch as the technology is advancing, constant changes towards the new would be expected. In the lesson of the autopoiesis, however, mechanisms to be used by the process in order to characterize the live systems are regularly produced insofar as autopoietic machines are regenerated and reproduced by means 1 Procuradora federal, Mestre do Programa de Pós-Graduação em Direito Público da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, professora do Curso de direito da UNESC. Endereço eletrônico: geraldamagella@gmail.com. Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 2 of interactions and transformations fulfilling the autopoietic task identified by its closure. Therefore, there is no such a thing as a change. There is a transformation, self-generation which is (re)produced in its own model. Taking the autopoietic closure into consideration, the tradition, according to which the preservation and evolution of the species would be basically conditioned by the environmental and/or self-determining factors, or those arising from the presence of certain molecules, is broken, although, in the legacy of the autopoiesis, life can be contemplated from a system that self-duplicates through a pattern of relations between self- generating metabolic structures and processes that compose an organizational network stamped with the autopoietic seal. Keywords: law; autopoietic system; Gunther Teubner; juridical evolution. Introdução O objetivo deste breve estudo é realizar uma abordagem sobre a “Autopoiesis e Evolução Jurídica” (TEUBNER, 1989), de onde se extrai o tema e se construiu o título do presente, e, para tanto, elege-se o objetivo geral no sentido de analisar o direito como sistema autopoiético sob a perspectiva de sua evolução jurídica na matriz teórica de Gunther Teubner, e, como objetivos específicos principais, três aspectos, quais sejam, a um, refletir em torno do paradigma autopoiético, com ênfase para os seus aspectos históricos transformadores; a dois, examinar o direito como sistema autopoiético; e, por último, estudar a autopoiese e sua evolução jurídica segundo a teoria de Gunther Teubner. O método utilizado para esta pesquisa foi tomado a partir de revisão bibliográfica, dirigida a partir da teoria do sistema da autopoiese, desde uma perspectiva histórico- sociológica-ética e sistêmica, e, sobretudo, contextualizar os principais pontos apreendidos e necessários ao exame da obra, objetivando examinar e compreender o sentido do Direito como sistema autopoiético e sua evolução jurídica na Teoria de Gunther Teubner. Pretende-se desta forma abordar, alguns pontos escolhidos a partir da matriz disciplinar do Direito, porquanto sistema autopoiético na teoria de Gunther Teubner (que está neste estudo também denominada, ora teoria, ora modelo, ora sistema, ora processo), procurando dar qualidade e emprestar reflexão ao texto, e, sobretudo, examinar o paradoxo da teoria autopoiética no sentido de que é o próprio sistema que se autoconstrói a partir de seus próprios componentes. Referido paradoxo se firma significativo e curioso, eis que, na medida do avanço tecnológico, seria de se esperar constantes mudanças voltadas para o moderno. A mensagem Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 3 do texto confirma outro sentido, i.é, na lição da autopoiese, constantemente são produzidos mecanismos a serem utilizados pelo processo para caracterização dos sistemas vivos porquanto máquinas autopoiéticas, as quais, por meio de interações e transformações, regeneram-se e reproduzem-se realizando a tarefa autopoiética, caracterizada por seu fechamento. Não há, assim, uma mudança “nova”, há uma transformação, uma autogeração que se produziu no próprio modelo. Desta forma, face ao fechamento autopoiético, rompe-se com a tradição segundo a qual a conservação e a evolução da espécie seriam condicionadas originariamente pelos fatores ambientais e/ou autodeterminantes, ou mesmo decorrente do fazer presente de determinadas moléculas, quando se sabe que a definição de vida decorre de uma rede de processos, dito “metabólicos autogeradores” (CAPRA, 2003, p. 80), e para os quais, a marca autopoiética na esfera biológica encerra uma fidelidade e uma estabilidade impressionantes. A não ser assim, como pensar em um modelo que se autoduplica e que leve consigo um sofisticado processo de controle, verificação e conserto sendo que a possibilidade de erro seria mais ou menos um em dez bilhões em benefício de um equilíbrio sutil entre a estabilidade genética e a mutabilidade em si mesmo (CAPRA, 2003, p. 176-177)? O compromisso perpetuador, integrador e autogerador implica em uma nova compreensão da vida. Sobre ela muito se tem dito contrariamente, mas a compreensão sistêmica tem-se firmada “o que significa que se baseia não só na análise de estruturas moleculares, mas também na dos padrões de relação entre essas estruturas e dos processos específicos que determinam a sua formação” (CAPRA, 2003, p. 80). Visando a facilitar e dar sustentação às idéias sobre a vida, entendo que a anotada por Capra (2003) quanto ao padrão de organização e estrutura, sejam interessantes na análise da obra, justificadora ou não quanto a forma autopoiética. Sobre a natureza dos sistemas vivos três matrizes teóricas foram apontadas no seu texto. São elas, o ponto de vista dos padrões, o ponto de vista da estrutura e o ponto de vista dos processos, em específico, o padrão de organização, e a estrutura (CAPRA, 2003, p. 83). De igual sorte, é preciso traduzir a expressão “teoria da autopoiese”2, a qual identifica o padrão das redes autogeradoras como uma das característicasque definem a vida e a não ser mediante o uso contínuo de energia, a célula morreria (CAPRA, 2003, p. 30). Com esta fórmula, buscar no exercício e tarefa da pesquisa, o modelo de evolução da ciência jurídica justificadora da teoria teuberiana que se pretende examinar. Daí, as bases motivadoras do presente estudo. Assim, impõe (re)pensar o lugar ocupado pela construção da “autopoiese” - que está 2 Seja acompanhada das expressões processo, modelo, sistema, fenômeno, ou simplesmente “autopoiese”. Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 4 neste estudo denominada, ora sistema, ora modelo, ora paradigma autopoiético ou mesmo autopoiesis 3 - na dinâmica da matriz disciplinar da evolução jurídica. Da mesma forma, é preciso traduzir o significado e influência desta evolução e, também, qual a autogeração e o significado na identificação do modelo jurídico. 1. O paradigma 4 autopoiético: um pouco de história O que quer dizer autopoiese? De que forma ela foi e continua sendo capaz de influenciar inúmeras áreas do conhecimento, como é o caso do Direito? Qual a sua função na teoria da evolução e, por tabela, qual a sua correspondência com a Ciência Jurídica e por que Teubner fez dela uma matriz justificadora para construir uma teoria amplamente discutida? Este breve estudo propõe tecer considerações, ou mínimas respostas para tais questionamentos. Vejamos. O modelo da autopoiese decorre principalmente da teoria biológica de dois grandes cientistas, Humberto Maturana e Francisco Varela, os quais, referem que a palavra deriva do grego autos (por si próprio) e poiesis (criação, produção) (NEVES, 2006, p. 80). Falar de autopoiese é compreender que a vida é um sistema biológico que se permite pelo processo do conhecimento e pela dinâmica de sua organização 5 . Mais que isto, impõe dizer que a vida pode ser contemplada a partir de um sistema que se autoduplica através de um padrão de relações entre estruturas e processos em uma rede organizativa cunhada com o selo autopoiético na esfera biológica que compreende uma fidelidade e uma estabilidade impressionantes. Muito significativa se apresenta a Teoria de Santiago, para a qual, A idéia central é a identificação da cognição, o processo de conhecimento, com o processo de viver. Segundo Maturana e Varela, a cognição é a atividade que garante a autogeração e a autoperpetuação das redes vivas. Em outras palavras, é o próprio processo da vida. A atividade organizadora dos sistemas vivos, em todos os níveis de vida, é uma atividade mental. As interações de um organismo vivo – vegetal, animal ou humano – com seu ambiente são interações cognitivas. Assim, a vida e a cognição tornam-se inseparavelmente ligadas. A mente - ou melhor, a atividade mental – é algo imanente à matéria, em todos os níveis de vida. (CAPRA, 2003, p.50) 3 Esta foi a expressão cunhada na obra referente a este breve estudo, conforme tradução. 4 O sentido do paradigma que aqui se adota é o mesmo sentido adotado por Thomas Kuhn no seu clássico A Estrutura das Revoluções Científicas (no posfácio), a teor de inúmeras confusões emprestadas ao tema, Kuhn adota outro termo para evitar confusão, qual seja matriz disciplinar. A própria expressão é desmembrada em outro conjunto de quatro significados. O primeiro deles foi dito “generalizações simbólicas”; o segundo compromissos como crenças em modelos; o terceiro, os valores, com o sentimento de pertencer a uma comunidade; Por último, o quarto sentido emprestado à expressão, sob a justificativa de que este assumiu vida própria, passa a substituí-lo por exemplares, p. 228-234. 5 Referida compreensão muda significativamente o conceito de vida, que deixa de ter uma conotação puramente biológica, e que ganha dimensão de troca (seleção) e de rede (evolução). Portanto, com implicações na questão social, o que por si corrobora a teoria Teuberiana. Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 5 O conhecimento deste modelo fornece a idéia de aprendizado constante, e não será necessário um grande esforço para atrelar o conhecimento à idéia de ciência, portanto, pertencente ao paradigma da racionalidade. Entretanto, o conhecimento, entendido aqui como a capacidade organizativa e estrutural, nem sempre atendeu a tal aspecto. No processo da seleção da origem das espécies, ele pode se dar de forma menos complexa e pertencente a uma cadeia biológica de espécie mais simples, como os vegetais, posto que foi com a evolução que o saber restou instrumento da tarefa da ciência. Em um sistema dito conceitual a vida implica em “gerar o fenômeno cognitivo como resultado da ação do ser vivo” (CAPRA, 2003, p. 36), de tal forma que a explicação do conhecer pode implicar em uma série de domínios, os quais foram muito bem identificados por Maturana e Varela. Anota-se. A um, um fenômeno a explicar: ação efetiva do ser vivo em seu ambiente; a dois, uma hipótese explicativa: organização autônoma do ser vivo. Deriva filogenética e ontogenética (acoplamento estrutural); a três, uma dedução de outros fenômenos: interações recorrentes e coordenação comportamental; e quatro, fenômenos sociais, domínios lingüísticos, linguagem e autoconsciência (CAPRA, 2003, p. 35). A organização, deveras, é um tanto mais simbólica, ela compreende o estabelecimento de uma série de eventos que devem ser tomados de forma imbricada e que decorrem das relações entre os seus componentes que o identificam em uma classe determinada. A não ser pela organização e pela disposição das moléculas, em conjunto com uma rede autogeradora a vida seria impossível no Planeta. Vejamos como a terra surgiu. Primeiro é preciso dizer que ela tem cerca de cinco bilhões de anos e está em constante transformação. Maturana e Varela revelam que no começo havia homogeneidade molecular, depois, com o surgimento dos planetas, uma contínua transformação deu lugar a uma grande diversidade de moléculas chegando à formação de redes de reações moleculares, produtoras do mesmo tipo de moléculas que as integram, e, também, limitadoras do seu entorno espacial, produtoras de si mesmas e de seus limites (CAPRA, 2003, p. 44-46). Este último ponto merece criteriosa atenção porque se refere à organização autopoiética. Os seres vivos se caracterizam por produzirem de modo contínuo a si próprios, devendo estar dinamicamente relacionados numa rede contínua de interações, que recebe o nome de metabolismo celular, sendo que tal metabolismo produz componentes que, de acordo com uma estrutura integram uma rede de transformações cujo limite advém de uma fronteira (membrana) (CAPRA, 2003, p. 52). Ocorre, o ser humano é recente na cadeia da vida, o que significa dizer que os homens são novos por aqui. Segundo Alvim Tofler (2001, p. 25) se dividirmos os últimos 50 mil anos Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 6 de existência do homem em gerações de 62 anos cada, terá havido 800 gerações sobre a terra, das quais 650 foram passadas na caverna. Qualquer pedra ou a menor das pedras é milhões de anos mais velha do que qualquer um da raça humana (O`DONOHUE, 2000). Até mesmo a mais simples das bactérias já estava aqui nos primeiros bilhões de ano da evolução biológica. Vejamos segundo anotação de Morin qual é afinal o tempo do homem sobre a terra: UNIVERSO 14 bilhões/ano(s); TERRA 5 bilhões/ano(s); VIDA 2 bilhões/ano(s); VERTEBRADOS 600 milhões/ano(s); RÉPTEIS 300 milhões/ano(s); MAMÍFEROS 200 milhões/ano(s); ANTROPÓIDES 10 milhões/ano(s); HOMINÍDEOS 4 milhões/ano(s); HOMO SAPIENS 140 mil a 100 mil/ano(s) *50 mil/ano(s) matriarcado; 4 mil/ano(s) patriarcado; CIDADES,ESTADOS 10 mil/ano(s); FILOSOFIA 3.500/ano(s). (MORIN, 2004, p. 128) Ora a raça objeto da seleção que se coloca no topo do ciclo evolutivo, saiu da linhagem de hominídeos de mais de quinze milhões de anos, de onde surgiram os caçadores-coletores, e há cerca de três milhões de anos passou a usufruir de traços estruturais essencialmente idênticos aos atuais, isto é, aos do homem moderno (MATURANA; VARELA, 2001, p. 241- 244). A passagem longa de uma geração para outra, levou milhões de anos, mas, aparentemente, foi preciso apenas um piscar de olhos para que a teoria da evolução fosse identificada e, alguns segundos para que Varela e Maturana a identificasse na Teoria da Autopoiese que passou a influenciar várias áreas, inclusive a esfera jurídica. Retomemos a validação do reconhecimento, i.é, do pertencer à classe dos seres vivos pela sua organização autopoiética, que é certificadora de um dado único – os seres vivos são unidades autônomas, e, nesta medida, em um campo maior, o sistema é autônomo se for capaz de especificar sua própria legalidade, (p.55). A lição da autopoiese é exatamente esta “o mecanismo que faz dos seres vivos sistemas autônomos, é a autopoiese, que os caracteriza como tal” (MATURANA; VARELA, 2001, p. 56). E a justificativa para a sua existência, segundo Maturana e Varela, está no fato de que, como não se pode fornecer uma lista requisitória para caracterização do ser vivo, porque não um sistema que, ao funcionar gera a sua fenomenologia (MATURANA; VARELA, 2001, p. 56). Ocorre, é certo que a unidade autopoiética contempla os requisitos comuns necessários à interdependência, quais sejam, o metabolismo e a estrutura celular. Somente quando a Terra foi abençoada com as condições ideais 6 deu-se lugar à formação de moléculas interdependentes que se agruparam em células capazes de autogeração, as quais se agruparam em células especificadoras de sua própria legalidade, e, 6 Estrutura e organização são requisitos capazes de ensejar a unidade autopoiética. Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 7 assim, ocorreu a história a qual pertencemos e estamos ajudando a autogerar. Esta é a origem dos sistemas vivos que corresponde às duas histórias, a história da autopoiese e a história da Terra. Desta forma, as unidades autopoiéticas têm uma importância fundamental na história humana e na história do sistema solar e é seu padrão próprio organizacional e estrutural de fenomenologia que a inscreve na qualidade biológica (ou não). A história humana é a história da autopoiese, de redes autogeradoras! Contudo, há implicações decorrentes desse processo que merecem minimamente serem apontadas, forte no sentido de que muito pode influenciar as relações humanas na exata medida que decorre dele mesmo a capacidade de ser observador e, para a qual “a história pode participar na geração da conduta do observador”. Ora a conduta lingüística interfere na atividade mental, que interfere na cognitiva ou nas “perturbações do sistema nervoso e, portanto, parte de seu ambiente” (ROMESÍN; GARCÍA, 1997, p. 133). Assim, de organização em organização, de estrutura em estrutura, ou mesmo de um [...] estado em estado, o tempo, como uma maneira de comportamento, entra na determinação de seus estados através do domínio descritivo como um componente no domínio da conduta do organismo. [...] ainda que não representem estados do sistema nervoso, constituem componentes causais no domínio da conduta do indivíduo; isso acontece, por exemplo, com noções como beleza, liberdade e dignidade. (ROMESÍN, GARCÍA, 1997, p. 133) Operar esta dinâmica, desume-se, é tarefa para o autoobservador, o qual pode, e muito, influir significativamente no processo, mesmo porque o sistema nervoso não faz distinções entre suas diferentes fontes de perturbação, quer em relação à operação, em relação aos agentes perturbadores, ainda que decorrentes do ambiente, ou decorrentes de organismos acoplados (ROMESÍN, GARCÍA, 1997, p. 133). Qualquer característica atribuída a um determinado sistema vivo “observador” a um objeto “observado” constitui apenas um processo de auto-observação (TEUBNER, 1989, p. VII-VIII), sendo que o observador descreve a sua organização, não a sua estrutura. Mas isto é uma outra história! 2. O Direito como sistema autopoiético Provavelmente, a mais significativa teoria referente à autopoiese no âmbito do Direito quanto aos Sistemas Sociais, decorre de Niklas Luhman, das quais Gunther Teubner é um dos Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 8 embaixadores, em que conste, tanto em um, quanto em outro, percebe-se clara distinção de matrizes disciplinares teóricas. A teoria autopoiética teve sua nascente na dimensão das ciências biológicas com os estudos de Maturana e Varela 7 , de onde passou por diversos campos até chegar à esfera das Ciências Sociais. A passagem do campo biológico para o social impôs diversos graus de compreensão, para os quais, para efeitos deste estudo, em todos eles, foi necessária uma reflexão quanto a vida, tais como origem, terminologia, conceituação e aspectos históricos, as quais em uma síntese muitíssimo breve pode ser assim explicada – todos os caminhos foram possíveis por conta da seleção natural até chegar na complexidade imensa da diversidade dos dias atuais. De outro norte, “podemos estar certos de que a sucessão ordinária por geração jamais foi interrompida” da mesma forma que se pode dizer que a “seleção natural jamais produzirá numa espécie alguma variação exclusivamente em prol ou em prejuízo de outra espécie” (DARWIN, 1994, p. 171). Terminada a tarefa de refletir quanto a vida, o que se apresenta imutável em cada organismo durante o transcorrer da vida e quais as características estruturais responsáveis pela identidade de cada ser vivo, o estudo avançou até a esfera jurídica, não sem antes, caminhar pelo campo das ciências sociais indo ao encontro da autopoiese de Teubner. O Direito não é determinado por fatores externos, mas sim por ele mesmo. Desta forma, a autopoiese é sustentada por Teubner como facilitadora de uma compreensão do sistema jurídico porquanto sistema autônomo, mas que usufrui de relação de dependência, independência e interdependência em relação aos outros sistemas. É importante esclarecer que a “pragmática-sistêmica em Luhmann” tem como ponto de partida as suas análises em torno da “Teoria dos Sistemas” (sociais) de Talcott Parsons (ROCHA, 2005, p. 30), e tem como característica principal a perspectiva de que nas dimensões da semiótica, no interior do sistema, estão presentes a problemática do risco e do paradoxo (ROCHA, 2005, p. 31). Na primeira fase Luhmann não abandona o modelo básico tradutor da variação, seleção e retenção, e, em uma segunda fase, avança na Teoria Social de Parsons, onde acresce-lhe uma matriz autopoiética baseada em Maturana e Varela, e destaca a sistematicidade do Direito como auto-reprodutor de suas possibilidades (ROCHA, 2005, p. 31). Há aqui um ponto elementar a ser sustentado, eis que na teoria da evolução social, se faz de suma importância a existência de membranas plásticas. Sem ela a célula não teria organização, estrutura, não se autogeraria, e até provavelmente, a vida deixaria de existir. 7 São os “criadores” da matriz autopoiética. Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 9 Maturana refere à membrana porquanto uma “fronteira membranosa” que limita a extensão da rede de transformações, mas que também participa dela (2001, p. 53), enquanto Capra a justifica como os fundamentos da identidadecelular (2003, p. 25). Então, o que define a vida? A membrana celular é a primeira característica que a define. A segunda é a natureza do metabolismo que ocorre dentro das células (CAPRA, 2003, p. 26). A teoria Luhmanniana, entrementes, nos convida a repensar este aspecto “fechado” que é o meio propulsor da autopoiese. Daí sua excepcionalidade. O sistema autopoiético na esteira do Direito, segundo tal teoria, é um sistema que é aberto e fechado, ou que “não é fechado nem aberto” (ROCHA, 2005, p. 38). É um sistema que liga o consciente ao inconsciente, e que vai ser compreendido como “ligado ao passado e ao futuro simultaneamente” (ROCHA, 2005, p. 38). O “primeiro Luhmann” tenta resolver a questão da autonomia evolutiva do direito, mas permanece com o modelo básico de variação, seleção e retenção, não resolvendo as questãos do debate evolutivo – stasis, identidade sistêmica e subdeterminação (TEUBNER, 1989, p. 110-111), as quais no dizer de Teubner correspondem aos elementos essenciais de uma teoria evolutiva dos dias atuais. Que elementos são estes, justificadores de um desenvolvimento global da vida e que fornecem base para os caminhos evolutivos? Teubner (1989, p. 104) anota que há três idéias chaves, quais sejam, a interação cega entre variação, seleção e retenção, a combinação entre desenvolvimento ontogenético e filogenético; e a co-evolução de direito, sociedade e outros subsistemas sociais. Os tempos atuais presenciaram uma verdadeira explosão de teorias científicas nas mais variadas áreas do conhecimento humano – isto inclui o Direito e, há muitas teorias que procuram explicar a sua evolução. Ocorre, é de todo prudente elencar um resumo das teorias evolutivas principais, a teor de informar um contraponto quanto a teoria da evolução social sustentadora da Teoria de Luhmann e, também, da Teoria de Teubner, as quais são apresentadas na seqüência. São três as teorias evolutivas principais. A primeira, a das mutações genéticas aleatórias que corresponde ao elemento principal da teoria neodarwiniana; a segunda, a recombinação de DNA- troca de genes; a terceira é a da evolução pela simbiose (CAPRA, 2003, p. 44-45). A segunda teoria, no caso a Teoria Luhmanniana, ou Teoria Evolutiva do Direito, refere-se à unidade da evolução social ou jurídica, e esta frise-se, corresponde ao primeiro Luhmann. Ela não é assim representada, nem pelo indivíduo humano, nem pelo grupo de indivíduos, nem por um gene egoísta, mas pela própria sociedade e direito enquanto sistemas de comunicação (TEUBNER, 1989, p. 105-106), mas pode ser representada pela lógica Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 10 evolutiva inerente ao sistema jurídico: stasis evolutiva, identidade do sistema evolutivo e subdeterminação na relação sociedade-direito (TEUBNER, 1989, p. 109). Como ela não consegue alcançar solução para as questões do moderno debate evolutivo, a proposta de Teubner é submetê-la à teoria da autopoiese, que será tratada a seguir. 3. Autopoiesis 8 e evolução jurídica na teoria de Gunther Teubner De pronto, convém dizer que até o surgimento da marca autopoiética as ciências biológicas não haviam conseguido identificar o princípio energético ou enteléquia da vida (TEUBNER, 1989, s. II, p. III). Sozinho este dado é revelador. Para o direito, porém, é preciso outras perspectivas. Explica-se. Inicialmente é deveras importante perceber como a evolução e, a partir dela, a evolução jurídica contribuiu de forma a estabelecer matrizes para o pensamento de Teubner. Busca-se em Maturana e Varela, a dimensão de tal compreensão, para os quais o termo evolução refere ao que aconteceu na história das transformações dos sistemas vivos terrestres, e enquanto processo, evolução é história da troca de um modelo de organização de unidades independentes geradas por etapas auto-reprodutivas (ROMESÍN, GARCÍA, 1997, p. 98). A autopoiese no espaço biológico alcança a condição mínima bastante e suficiente para caracterizar e manter a vida de forma autônoma. Referida compreensão altera profundamente o conceito de vida, incluindo o seu estabelecimento e a sua manutenção, a teor de que, mantida assim a verdade científica para a vida, segundo o conceito autopoiético, a característica primordial da evolução passa a residir muito mais na questão interna (estrutura cíclica do sistema), e muito menos na função de adaptação ao meio envolvente (capacidade de se relacionar). Com efeito, a autopoiese corresponde a unidade mínima de vida - “o modelo holístico imutável da rede circular e auto-referencial” (TEUBNER, 1989, s. II, p. V). No sistema organizado, refere-se à sua própria organização e não à estrutura desse sistema correspondente - as formas espácio-temporais assumidas por essa rede num determinado sistema vivo concreto (TEUBNER, 1989, s. II, p. V). Curiosamente a lógica autopoiética conserva sua auto-referencialidade separada por um sistema, uma fronteira, de forma indiferente e, porquanto fechada, inacessível aos sistemas envolventes. É um sistema que tem repetição e diferença, tendo que equacionar no seu interior esse paradoxo, que os operadores do direito vão usar como critério para tomar decisões (ROCHA, 2005, p. 38). 8 Para efeitos de título do presente capítulo, optou-se por deixar a palavra tal qual consta apresentada na tradução da obra, objeto deste. Entretanto, ao longo de todo o trabalho ela aparece cunhada como “autopoiese”. Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 11 Passaremos agora a resolver as questões indagadas por Teubner: 1. A pergunta – “Poderá a Teoria da Autopoiesis resolver tais questões?”9 2. A(s) resposta(s). Primeiro cabe dizer que o conceito de autopoiese já foi apresentado. Então, recorre-se a tarefa de resolver as “tais questões”. Afinal que questões são estas merecedoras de uma análise deste porte? Para tanto, Teubner apresenta dois modelos. O primeiro modelo da evolução sócio- cultural, refere-se a existência de uma lógica evolutiva inerente ao sistema jurídico que cobraria a solução de questões cruciais do moderno debate evolutivo– “stasis evolutiva (período de estabilidade ou inatividade de uma forma de vida, estase), identidade do sistema evolutivo e subdeterminação na relação sociedade-direito” (1989, p. 109), ou “variação, seleção e retenção” (1989, p. 112). Na lógica do primeiro modelo, “o sistema jurídico não pode proceder de outra forma, [pois] ele está comprometido com sua autopoiesis. Ele deve fazer dessa assimetria sua própria auto-referência” (ARNAUD, 2004). No segundo modelo, é apresentado o “segundo Luhmann” (ou o próprio Teubner), sendo então colocada a seguinte indagação: “Poderá a teoria da autopoiesis resolver tais questões?” (TEUBNER, 1989, p. 112). O segundo modelo, refere-se ao próprio modelo de evolução – a lógica de desenvolvimento inerente á esfera normativa – dissolve as vantagens de uma teoria evolutiva moderna. Mesmo respondida permanece sem sentido a questão – quais os mecanismos que operam a transferência do desenvolvimento individual para o desenvolvimento da moralidade social (TEUBNER, 1989, p. 109-110). Luhmann (TEUBNER, 1989, p. 110), então, longe de resolver o problema da autonomia evolutiva do direito, não abandona o modelo básico de variação, seleção e retenção e o enriquece, internamente, com a troca sistêmico-jurídica e, para isto recorre-se a normas, institutos e dogmática; e externamente (exogenamente), pela analogia com outros subsistemas. A conclusão e o fundamento: stasis, manutenção da identidade sistêmica e autonomia evolutiva seriam dependentes da autopoiese do sistema, bem como, é evidente no debate daautopoiese a necessidade de (re)visão do conceito de evolução na dimensão das condições de reprodução autopoiética (TEUBNER, 1989, p. 112), em que pesem as posições contrárias, dos quais são exemplos, Maturana, Varela, Roth e Wake, que criticam um neo-darwinista ortodoxo do processo evolutivo como a capacidade de adaptação de um sistema aberto às 9 (TEUBNER, 1989, p. 112), sendo que a grafia “autopoiesis”, neste caso, foi usada conforme a obra objeto deste estudo. Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 12 exigências e pressões seletivas do meio envolvente, justificando que o sistema auto- reprodutivo, pode ele mesmo, definir os limites da sua tolerância a mudanças estruturais, recorrendo à sua própria organização cíclica de auto-manutenção (TEUBNER, 1989, p. 112- 113). A questão não é tão simples assim, de tal forma que possa ser revelada em um posicionamento de grupos de cientistas. Verdadeiramente, a lógica autopoiética faz com que o ideal de internalização transfira o “epicentro da dinâmica evolutiva do meio envolvente para o interior do próprio sistema” (TEUBNER, 1989, p. 113). Desta forma, a matriz autopoiética subordina a questão à sua própria lógica, à lógica autopoiética. Teubner aponta que somente os sistemas organizados do ponto de vista da teoria autopoiética podem evoluir, sendo que a responsabilidade por esta evolução estaria a cargo da estruturação interna. Desta forma a capacidade evolutiva do Direito coloca-se diretamente proporcional à interação dos mecanismos evolutivos sistêmicos (TEUBNER, 1989, p. 113- 114) e confere o alcance de sua autonomia pelos seguintes processos, a variação dos seus conteúdos, a seleção e a estabilização da cultura jurídica. A questão posta por Teubner poderia ser representada de forma simbólica através do seguinte esquema gráfico (Figura 1). Cada um destes processos se encarrega de fazer correspondência com os mesmos sistemas que ocorrem na autopoiese biológica, quais sejam, as normas sociais que determinam o espectro das possibilidades de variação das normas jurídicas; o processo de seleção das normas jurídicas é levado a cabo na base de um processo de seleção social abrangente dentro do próprio sistema jurídico; e a retenção dessas normas (o estabelecimento de uma tradição Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 13 jurídica) resultam de um corpo de idéias partilhadas na sociedade – mundovisões, mitos, dogmas e ideologias (TEUBNER, 1989, p. 116). Para a teoria autopoiética a função dos conflitos sociais afasta-se dos conflitos relacionados diretamente ao direito dos litigantes e muito se aproxima dos processos sistêmicos internos de formulação jurídica. De outro lado, os conflitos não são traduzidos para a linguagem jurídica, mas reconstruídos autonomamente como conflitos jurídicos dentro do próprio sistema jurídico (conflitos de proposições jurídicas divergentes, por exemplo). Desta forma, compreende-se que a aprendizagem ontogenética resultante da linguagem e do processo autopoiético, quando em contato com o sistema jurídico, tem lugar na circunstância do próprio processo jurídico, e resulta de sua interação com os mecanismos jurídico-doutrinários decorrentes da variação e seleção, enquanto que a retenção decorre do processo de memorização (conhecimento) da interação processual ligada à simples história do processo. A filogenia e sua correspondente evolução decorrem da intervenção das funções de retenção no padrão social (sociedade), repassando a aprendizagem obtida para a relação jurídico-processual através da conexão episódica que “[...] permite o estabelecimento de princípios jurídicos de seleção para além do episódio jurídico individual, assegurando que a evolução procede da aprendizagem” (TEUBNER, 1989, p. 121). Enquanto que o processo jurídico individual (p.121) traz a marca da interação e de outros sinais de comunicação, do qual é exemplo o(s) processo(s) escrito(s), a utilização de um código de normas e o histórico processual garantidor de suas próprias estruturas, “[...] a combinação de desenvolvimento ontogenético e filogenético no direito oportuniza a interrelação entre processo jurídico e cultura jurídica: interação entre dois ciclos comunicativos” (TEUBNER, 1989, p. 122). Teubner aponta dois ciclos de comunicação representados pelo processo jurídico e o circuito comunicativo da cultura jurídica: O 1º ciclo de comunicação representa o processo jurídico: constitui a interacção de expectativas normativas (mecanismos de variação) e decisões judiciais (mecanismos de seleção) (TEUBNER, 1989, p. 122). ( ver Figura 2); Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 14 O 2º ciclo que o circuito comunicativo da cultura jurídica: assume a função de retenção; o qual desencadeia a transmissão e tradição da cultura jurídica (ver Figura 2). A validade jurídica compreende a relação circular entre estes dois ciclos de comunicação: a decisão nos processos jurídicos tem o legado normativo por referência, sendo que, a mesma decisão representa o ponto de partida para novos desenvolvimentos na esfera cultural-jurídica (TEUBNER, 1989, p. 122). É o contato com as crises 10 , com os movimentos, ou com as variações sofridas pelo direito – ainda que aparentemente insignificantes, que fazem o Direito avançar. Portanto, a sua transformação não decorre necessariamente do produto do conflito social, mas da comunicação interna do sistema jurídico, o qual, por vezes, e no limite, torna irreconhecível o conflito para os litigantes (TEUBNER, 1989, p. 117). Desta maneira, pelo viés da teoria autopoiética, o fio condutor que gera a aprovação social das normas é um aceno sinalizador do consentimento para aprovação sistêmica interna. Justifica-se, assim, a realização da matriz autopoiética. O que isto significa e traduz na esfera das relações jurídicas? A primeira constatação resta traduzida pela impossibilidade de transferir diretamente as questões sociais para o sistema jurídico. Isto é visível no modelo autopoiético eis que se torna imperioso um ato selecionador que goze de autonomia - seleção autônoma - que pode ser encontrado em uma norma de referência, e até mesmo em uma decisão judicial. 10 O significado de “crise” aqui neste trabalho deve ser interpretado no contexto de conflito de interesses como valorada pela lide jurídica, e traduzida com o sentido de violação a uma norma posta e garantida pelo sistema codificador. Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 15 Desta forma, tem-se que as características da seleção, confirmadoras da autopoiese na disciplina jurídica, impõem íntima relação com os seguintes aspectos, todos eles ratificados por Teubner 11 : governada por processos jurídicos internos mais do que pela aceitação social exterior; seus principais critérios são a adaptabilidade da inovação às estruturas normativas (programas jurídicos) e a sua compatibilidade com a autopoiesis jurídica (código jurídico). Há ainda um dado bastante revelador quanto ao sistema autopoiético. Este dado tem a ver com a estabilidade das estruturas dos sistemas autopoiéticos e correspondem aos instrumentos produzidos na própria matriz interna (estrutura produtora), que também passa a garantir a retenção das normas jurídicas. Desta forma, a estabilidade é cada vez menos os diversos contextos sociais - moral, política, a religião - e cada vez mais a auto-referencialidade do sistema jurídico passa a ter nas decisões judiciais, normas, princípios ou discursividade jurídica, o seu mecanismo facilitador (TEUBNER, 1989, p. 119). A obra objeto deste estudo, quanto ao debate da teoriada evolução do direito, informa a distinção entre aprendizagem ontogenética e desenvolvimento filogenético, sendo que Teubner apresenta um contraponto necessário à unidade ontogenética da evolução e a contraparte ontogenética da evolução social. A primeira, constituída pelo ser humano no seu desenvolvimento moral; a segunda, constituída pelo ser humano na sua interação (TEUBNER, 1989, p. 119-120). Socorre dizer que há uma interrelação – relação de dependência, independência e interdependência - entre filogenia e ontogenia, de onde decorre “[...] a relação entre interações específicas e o sistema social, e, também, a relação entre um processo jurídico concreto e o próprio sistema jurídico” (TEUBNER, 1989, p. 120). É de se realçar que a teoria de Teubner, quanto a este aspecto, não comporta a relação entre indivíduo e sociedade. Esse aspecto merece destaque, porque é exatamente neste ponto que reside grande resistência, e, portanto, severas críticas à matriz Teuberiana, como se tal teoria comportasse o sim e o não do sistema, o certo e o errado, e como se o direito em si não tivesse o alcance da crítica, da circunstância e do fato e gozasse de absoluta independência do próprio sistema jurídico de tal forma que o sistema de Teubner correspondesse à propriedade e à qualidade de ser dono da verdade e do significado que a teoria encerra para o codex jurídico. Sobre o estado da questão, notadamente o ponto da divergência, anota-se O sistema jurídico não pode proceder de outra forma, [pois] ele está comprometido com sua autopoiesis. Um observador externo está mais livremente posicionado. Ele 11 (TEUBNER, 1989, p. 118-119), o qual também anota: “o sistema ao definir os pressupostos do acto jurídico, define também cada etapa evolutiva do próprio direito”. Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 16 deve fazer dessa assimetria sua própria auto-referência, mas ele não pode fazer isso da mesma forma que o direito. (ARNAUD, 2004, p.13) Identificado o ponto da divergência, é preciso dizer que a relação entre a ontogenia e a filogenia é de importância crucial para a simbiose de processos, e, portanto, colaboradoras na desconstrução da dúvida: o centro de gravidade da co-evolução é o episódio individual, ou, o processo jurídico individual, no direito. Desta forma, quanto ao processo de co-evolução, Teubner apresenta a fórmula de sua operacionalização, apresentando, inicialmente, o trilema angulatório em contraponto com a simbiose de processos, onde destaca que a seleção das mudanças e inovações no direito decorre: da autopoiese do próprio sistema jurídico; da autopoiese de outros subsistemas sociais; e da própria sociedade que não participa apenas no ciclo autopoiético, antes em contato com outros ciclos (1989, p. 122). Teubner conclui seus questionamentos quanto a autopoiese e a evolução jurídica anotando que a desintegração dificilmente ocorrerá ao nível filogenético, sendo possível ao nível ontogenético e o que no plano ontogenético conduz à desintegração, no filogenético conduz à indiferença. (1989, p. 124) Devolve-se, então a pergunta: “poderá a teoria da autopoiese resolver tais questões?”, sendo que, por tais questões devem ser compreendidas a dimensão da “stasis” evolutiva, da identidade do sistema evolutivo e da subdeterminação na relação sociedade-direito. A resposta, conforme restou apontado por Teubner, de uma forma sintética pode ser resumida como possível e sendo a condição, o pressuposto para que o fenômeno biológico possa eclodir de todo em todo na unidade do sistema autônomo; ou o resultado de um processo em que o observador explica ou descreve o próprio observador (não o objeto observado). Qual é a noção (...) que podemos ter de um sistema que é ligado ao passado e ao futuro, simultaneamente que lida com a idéia de paradoxo? (ROCHA, 2005, p. 38) A resposta pode ser encontrada na autopoiese, colocada esta sob a dimensão da evolução jurídica. Considerações finais Este breve estudo procurou tecer considerações a respeito da Teoria de Teubner tendo como base a autopoiese e a influência de tal teoria para o Direito, especialmente quanto a sua evolução jurídica, e oferecer algumas respostas e indagações para tais questionamentos partindo do pensamento de Teubner quanto ao sistema autopoiético. O que quer dizer autopoiese? De que forma ela foi e continua sendo capaz de Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 17 influenciar inúmeras áreas do conhecimento, como é o caso do Direito? Qual a sua função na teoria da evolução e, por tabela, qual a sua correspondência com a Ciência Jurídica e por que Teubner fez dela uma matriz justificadora para construir uma teoria amplamente discutida? Ocorre, se pode perceber que a autopoiese comporta uma abordagem científica, cuja influência está nela mesma. A partir da Biologia ela avançou através de diferentes disciplinas e foi muito além da disciplina em que foi originariamente identificada. Seu modelo decorre da teoria biológica de dois grandes cientistas, Humberto Maturana e Francisco Varela, os quais, referem que a palavra deriva do grego autos (por si próprio) e poiesis (criação, produção, ou geração) (NEVES, 2006, p. 80). Seu objetivo é a autogeração, para a qual um dos imperativos é o cuidado com a vida, sendo unidade do conhecimento. Falar de autopoiese é compreender que a vida é um sistema biológico que se permite pelo processo do conhecimento e pela dinâmica de sua organização 12 . Mais que isto, impõe dizer que a vida pode ser contemplada a partir de um sistema que se autoduplica através de um padrão de relações entre estruturas e processos em uma rede organizativa cunhada com o selo autopoiético na esfera biológica que compreende uma fidelidade e uma estabilidade impressionantes. Para tanto, foram examinadas os principais aspectos de compreensão da autopoiese a partir dos trabalhos de seus “criadores”, a contribuição luhmanniana e, principalmente os estágios que favoreceram o entendimento do Direito como sistema autopoiético. Diante de tantas dimensões pelas quais a autopoiese passou até chegar ao campo das ciências sociais, e mais ainda frente à proposta de Teubner, foram suscitadas duas questões apontadas pelo autor, quais sejam, se o Direito pode ser considerado um sistema autopoiético e se, afinal, poderia a teoria da autopoiese resolver as questões de “stasis” evolutiva, da identidade do sistema evolutivo e da subdeterminação na relação sociedade-direito(?). Da análise do acima exposto se pode, em traços gerais indicar os seguintes aspectos: 1. Em que pese as críticas recebidas a respeito de se conceber o direito como um sistema autopoiético, percebe-se que Teubner apresentou alternativas e considerações baseadas em uma proposta complementar à idéia originária de Luhmann, ou seja, desenvolveu, com base na idéia original, uma proposta própria, utilizando principalmente a noção da autopoiese, e com ela as questões de estabilidade e identidade evolutiva e subdeterminação na dimensão da sociedade-direito, acrescendo uma nova função para a auto- observação. 2. Para que não paire qualquer dúvida, quando se analisa a autopoiese na perspectiva 12 Referida compreensão muda significativamente o conceito de vida, que deixa de ter uma conotação puramente biológica, e que ganha dimensão de troca (seleção) e de rede (evolução). Portanto, com implicações na questão social, o que por si corrobora a teoria Teuberiana. Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 18 social, resta posto que a proposta de Teubner baseia-se na de Luhmann, entretanto,com algumas diferenças, notadamente no que se refere à concepção de sistema fechado, já que Teubner entende que autonomia e autopoiese são conceitos gradativos – relação de dependência, independência e interdependência. 3. Apesar das dúvidas e das críticas, a autopoiese em contato com a dimensão da teoria evolutiva, muito tem a contribuir para a eterna crítica da crise do Direito. Um sistema que ligue o passado e o futuro ao mesmo tempo (ROCHA, 2005, p. 38), que represente o consciente e o inconsciente, que seja um processo em que o observador explica ou descreve o próprio observador (TEUBNER, 1989, s. II, p. VIII), que tenha o pressuposto “o sistema fechado não é possível, o sistema aberto é inútil” (ROCHA, 2001, p. 135), e, enfim, construa e aponte novas e concretas “autogerações” para o Direito. Referências ARNAUD, André Jean; LOPES JR, Dalmir (Orgs). Niklas Luhmann: Do sistema social à sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. CAPRA, Fritjof. Conexões ocultas. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. 3 ed., São Paulo: Cultrix, 2003. KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 9 ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. DARWIN, Charles. A origem das espécies. Belo Horizonte, Rio de Janeiro: Villa Rica, 1994. MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Trad. Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2001. MORIN, Edgar. Em busca dos fundamentos perdidos. 2 ed., Porto Alegre: Sulina, 2004. NEVES, Marcelo. Verbete “Autopoiese”. In: BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.) Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006. O`DONOHUE, John. Anam Cara: um livro da sabedoria celta. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. ROMESÍN, Humberto Maturana; GARCÍA, Francisco J. Varela. De máquinas e seres vivos, autopoiese: a organização do vivo. (Trad. Juan Acunã Llorens) Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. ROCHA, Leonel Severo. “Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico”. In: Rocha, Leonel Severo et al. Introdução à Teoria dos Sistemas Autopoiéticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. ROCHA, Leonel Severo. In: BARRETO, Vicente de Paulo. Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006. Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 19 ROCHA, Leonel Severo. O Direito na forma de sociedade globalizada. In: Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito Mestrado e Doutorado da Unisinos. São Leopoldo: Unisinos, 2001. TEUBNER, Gunther. O Direito como sistema autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. TOFLER, Alvim. A terceira onda. Rio de Janeiro: Record, 1980.
Compartilhar