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As quatro Estruturas Fundamentais do Sujeito - Autismo, Psicose, Neurose e Perversão

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ISSN 1516-9162
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
n. 38, jan./jun. 2010
ESTRUTURAS CLÍNICAS
ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
Porto Alegre
R454
Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre / Associação
Psicanalítica de Porto Alegre. - Vol. 1, n. 1 (1990). - Porto Alegre: APPOA, 1990, -
Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
Semestral
ISSN 1516-9162
1. Psicanálise - Periódicos. I. Associação Psicanalítica de Porto Alegre
CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837
Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de
Psicologia (http://www.bvs-psi.org.br/)
Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br
Impressa em dezembro 2010. Tiragem 500 exemplares.
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO
PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
EXPEDIENTE
Publicação Interna
n. 38, jan./jun. 2010
Título deste número:
ESTRUTURAS CLÍNICAS
Editores:
Valéria Machado Rilho e Beatriz Kauri dos Reis
Comissão Editorial:
Beatriz Kauri dos Reis, Deborah Pinho, Glaucia Escalier Braga,
Maria Ângela Bulhões, Otávio Augusto W. Nunes,
Sandra Djambolakdjan Torossian, Valéria Machado Rilho.
Colaboradores deste número:
Marta Pedó, Paulo Afonso R. Santos e Maria Lúcia Stein
Editoração:
Jaqueline M. Nascente
Consultoria lingüística:
Dino del Pino
Capa:
Clóvis Borba
Linha Editorial:
A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que
tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém
estudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições
temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da
venda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou
doação a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.
ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICADE PORTO ALEGRE
Rua Faria Santos, 258 Bairro: Petrópolis 90670-150 – Porto Alegre / RS
Fone: (51) 3333.2140 – Fax: (51) 3333.7922
E-mail: appoa@appoa.com.br - Home-page: www.appoa.com.br
ISSN 1516-9162
ESTRUTURAS CLÍNICAS
SUMÁRIO
 EDITORIAL............................ 07
 TEXTOS
As quatro estruturas
fundamentais do sujeito:
autismos, psicoses,
neuroses e perversões ............... 09
The four fundamental
structures of the subject
Alfredo Jerusalinsky
O traço do caso na clínica
psicanalítica com crianças
e adolescentes ........................ 20
The case trait in the children
and teenagers analysis
Leda Mariza Fischer Bernardino
Adolescência virtual ..................... 29
Virtual adolescence
Daniel Paola
Dora ....................................................... 39
Dora
Elaine Starosta Foguel
O que consome o adolescente .... 49
What the adolescent consumes
Carmen Backes
Estruturas clínicas:
questões preliminares .................... 70
Clinical structures: preliminary questions
Eda Estevanell Tavares, Maria Lucia
Müller Stein e Otávio Augusto Winck Nunes
Quando o nome
do pai não vem ............................... 79
When the name of the father doesn´t come
Maria Ângela Bulhões
A psicose, seu tratamento,
seus limites ........................................ 87
Psychosis, it’s treatment, it’s limits
Adão Luiz Lopes da Costa
 ENTREVISTA
Estrutura é a
da linguagem.................................. 126
Language’s structure
Alfredo Eidelsztein
 RECORDAR, REPETIR,
ELABORAR
O pensamento estrutural:
um modo de interpretar
o mundo ............................................... 133
The structural thought: a way of interpreting the world
Ione Bentz
 VARIAÇÕES
Neurociências e psicanálise:
definindo discordâncias para
construir o diálogo ...................... 145
Neuroscience and psychoanalysis: defining
disagreements to build a dialogue
Benilton Bezerra Jr
Desabrigados da palavra ........... 160
Dislodged from the word
Ieda Prates da Silva
“Um gêmeo cheio de delírio” ...... 95
A twin full of delirium
Gerson Smiech Pinho
Uma história improvisada:
sexo e morte escritos
em oficina ......................................... 104
An improvised story:
sex and death written in workshop
Marieta Luce Madeira, Paulo Gleich e
Simone M. Rickes
Boderline:
nas bordas de quê? ...................... 115
Borderline: what border?
Eduardo Mendes Ribeiro
7
EDITORIAL
Os mistérios da mente e sua capacidade de atormentar e até mesmo deenlouquecer os homens têm sido objeto de interesse e estudo tão antigos
quanto a própria história humana. Da tentativa de extirpar a “pedra da loucura”,
na Idade Média, passando pelo inconsciente freudiano, até as atuais propostas
de interpretar e tratar os males psíquicos pela via orgânica, muitos caminhos
foram e são percorridos.
Do ponto de vista da psicanálise, a porta de entrada para o inconsciente
foi a histeria. Tratava-se, inicialmente, do específico da neurose. O trabalho com
o inconsciente levou Freud a formular outras questões a respeito das vias da
delimitação do psiquismo, passando por diferentes organizações neuróticas,
como a fobia e a neurose obsessiva, mas não se restringiu a elas.
Foi através do estudo do caso Schreber que Freud articulou grande parte
de suas proposições teóricas sobre o campo da psicose, especificamente a
paranoia, bem como aprofundou conceitos importantes, como o narcisismo,
extraindo dessa articulação consequências fundamentais para a prática psica-
nalítica.
Jacques Lacan retomou essa obra de Freud no seminário As psicoses ou
As estruturas freudianas das psicoses, de 1955-1956. Esse seminário foi profe-
rido por Lacan na gestação do estruturalismo na França, corrente de pensamen-
to que elegeu em vários momentos como interlocutor de questionamentos que
desejava transpor para a psicanálise.
No terreno específico das modalidades clínicas, ou estruturas clínicas,
como frequentemente chamamos, a influência estruturalista se faz presente,
seja pelo nome que porta, seja porque neurose, psicose e perversão possuem
8
EDITORIAL
cada uma delas, para além dos matizes e formas diferentes, um núcleo derivado
das relações com o Nome-do-Pai.
Mas hoje, será que referendaríamos a influência do estruturalismo? E, se
não, seria agora por influência de uma cultura que não se interessa mais pelo
que permanece? Ou por que o invariante da estrutura desmerece as muitas
mudanças que um sujeito é capaz de realizar, independente de sua estrutura
clínica? Ou ainda, a propalada mutabilidade e velocidade de nosso tempo influ-
enciam a noção de um psiquismo que muda, transforma-se? Os sintomas têm
mais relevância que a estrutura de fundo? O aparente importa mais que a causa
dele? Se sim, isso implica um fechamento para o inconsciente enquanto instân-
cia não aparente?
Seja onde procuremos possíveis influências da cultura atual, encontra-
mos referências à mutabilidade. Importa o que se desfaz, o que se transmuta, e
a concepção de sujeito moderno acompanha essa noção. Mas, e o sujeito da
psicanálise? Como consideramos a tensão entre o fixo e o cambiável? Como
incluir a noção de mutabilidade sem recair na imprecisão dos diagnósticos
fenomenológicos? Questões centrais do nosso trabalho, que permearão os tex-
tos publicados neste número da Revista da APPOA.
TEXTOS
9
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 9-19, jan./jun. 2010
Resumo: O texto estabelece uma diferença de posicionamento entre o modelo
positivista e o modelo estruturalista. Discute, ainda, a influência do estruturalis-
mo na psicanálise e seu desdobramento na prática clínica.
Palavras-chave: estruturas clínicas, psicanálise, neurose, psicose, estrutura-
lismo.
THE FOUR FUNDAMENTAL STRUCTURES OF THE SUBJECTAUTISMS, PSYCHOSES, NEUROSES AND PERVERSIONS
Abstract: The text establishes a difference of positioning between the positivistic
model and the structuralistic model. It also discusses the structuralistic influence
in psychoanalysis and its effects on the clinical practice.
Keywords: clinical structures, psychoanalysis, neurosis, psychosis,
structuralism.
AS QUATRO ESTRUTURAS
FUNDAMENTAIS DO SUJEITO:
autismos, psicoses,
neuroses e perversões1
Alfredo Jerusalinsky2
1 Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA, Estruturas Freudianas, realizadas
em Porto Algre, outubro de 2009.
2 Psicanalista; Membro da APPOA, do Núcleo de Estudos Sigmund Freud, do Centro Lydia
Coriat e da Association Lacaniènne International ; Doutor em Educação e Desenvolvimento
Humano (USP); Autor dos livros: Psicanálise do autismo (Porto Alegre: Artes Médicas, 1984),
Psicanálise e desenvolvimento infantil (2. ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999), Seminário
I, Seminário II, Seminário III, Seminário IV e Seminário V (São Paulo: USP) e Saber falar:
como se adquire a língua? (Porto Alegre: Vozes, 2008). E-mail: jerusalf@uol.com.br
1010
Alfredo Jerusalinsky
Não me parece que tenha sido fruto do acaso a escolha da imagem utilizadapara simbolizar nossos trabalhos sobre a psicose nestas Jornadas. A ex-
tração da pedra da loucura3 , dentre todos os quadros que pintou Hieronymus
Bosch, é o mais realista, o menos simbólico em seu conteúdo: é uma cirurgia.
Curiosa seleção: deixou de fora as obras de Bosch que tematizam o delírio.
Suponho que essa seleção tenha se imposto devido ao peso com que o real,
como conceito de Lacan, irrompe na loucura. Significa dizer que o não casual
dessa seleção reside, precisamente, na questão de estrutura. Qualquer outra
de suas telas poderia simbolizar nossos trabalhos sobre a loucura; por exem-
plo, o tríptico, de Hieronymus Bosch, O jardim das delícias4 , que aborda o
paraíso, o purgatório e o inferno. Não obstante, cabe observar, as estruturas
fundamentais ou as estruturas do inconsciente estão bem representadas pela
escolha feita.
Chama a atenção que, tão cedo, alguém testemunhe a estrutura do in-
consciente através de sua própria loucura e de seu próprio delírio tornado ima-
gem. Poderíamos dizer, para ser justo, que esse é o quadro mais científico de
Hieronymus Bosch. Talvez seja, precisamente, o menos delirante, o menos
representativo de seu inconsciente; ele pintou a realidade. Ponto que somos
obrigados a reconhecer a partir do que a psicanálise ensina sobre a loucura, a
saber, que ela é determinada ao redor de um eixo que tem a ver com o real.
Mas certamente não aderiríamos à ideia de que, extraindo-se uma pedra
do cérebro, a loucura acabaria; chame-se essa pedra de corpo estranho, ano-
malia anatômica ou substância bioquímica. Mais do que a ideia, talvez o quadro
ofereça a esperança, provavelmente a do próprio Hieronymus Bosch, de se ver
livre de sua angústia esquizofrênica, pois o pouco que sobrou de sua biografia
alude a uma possível esquizofrenia de crises periódicas. Esperança de se ver
livre de sua angústia siderativa; de que alguém retirasse de sua própria cabeça
isso que ele vivia como corpo estranho, irreal, invasivo. Tal como descrevem os
pacientes psicóticos, que dizem ter invasores que falam dentro de sua cabeça
ou de um corpo estranho em seu corpo; sensação que não lhes pertence e na
qual eles não se reconhecem.
3 Quadro de Bosch, pintado entre 1475 e 1480, pertencente ao acervo do Museu do Prado,
Madri, Espanha.
4 Quadro de Bosch, pintado entre 1504, pertencente ao acervo do Museu do Prado, Madri,
Espanha.
As quatro estruturas fundamentais...
11
Assim, com toda a desfaçatez e com toda a intenção proposital, eu pro-
nuncio a palavra “estrutura” de um modo marcante, porque reconheço nela a
arma mais formidável que o pensamento humano contemporâneo fabricou para
fazer frente ao positivismo cru e nu. Não obstante a amplitude dos critérios de
pensamento que o estruturalismo ofereceu, a partir do seu nascimento, e a
diversidade interpretativa que sobre a estrutura pode ser feita, o estruturalismo
permitiu que, em parte, o positivismo viesse repousar também na sombra de
sua própria estrutura, na sombra da metodologia que o estruturalismo ofereceu.
Estrutura é a arma mais formidável para desligar pensamento e razão. De
um lado, o finalismo idealista; de outro, seu materialismo ingênuo, que oferece
um campo de pensamento. Dessa forma, a dedução da verdade ocorre a partir
do campo das ideias, precisamente para que a dedução da verdade permita ao
humano uma autonomia de reflexão que abranja toda a extensão e todas as
formas mais heterogêneas do discurso, e não do objeto ou da palavra divina.
Nunca, na história da humanidade, havia se desenvolvido um método tal, muito
embora fosse sonhado por Descartes.
Descartes, confessa, sonhou sua metodologia. Ele teve três sonhos, na
noite do dia 10 para 11 de novembro de 1619: sonhou a ideia de um método
universal para encontrar a verdade textual. A resposta estava nos seus sonhos;
como vira positivista depois, ninguém sabe (como confiava nos seus sonhos,
muito positivista não era!). Ele teve que produzir três sonhos, porque o princípio
do método cartesiano é a composição de três – seguramente teve que sonhar
um de cada vez; não podia sonhá-los misturados. Digamos que Descartes so-
nhou o estruturalismo; essa é a minha interpretação, um pouco arriscada. Ou
seja, um método que lhe permitisse deduzir em sonhos, por meio de ideias, a
verdade.
O estruturalismo enfrentou suas vicissitudes. E não poderia ser de outro
modo. Uma disciplina que tão vigorosamente entra no século XX na polêmica
sobre o pensamento, colocando em questão os critérios de verdade que até
então vinham se formulando, não poderia deixar de sofrer atribulações e, ainda,
dada a sua riqueza, tentativas de captura. É por isso que o estruturalismo adqui-
re variantes, que vão desde as estruturas mais abertas e flexíveis, nas quais
cabe a análise dedutiva de qualquer forma de pensamento, até as formas mais
fechadas, que reduzem o estruturalismo a um método unívoco, ou seja, um
método limitado. Uma das variantes é a popperiana, método crítico e científico
de 1932, que captura o estruturalismo dentro de um território unívoco. Com
Popper, o sonho de Descartes se realiza através de um método capaz de, por si
só, garantir a verdade; sem nenhuma abertura, sem nenhuma variação.
A palavra “estrutura” já havia sido usada por Freud. Em Lacan, a encon-
tramos do início ao fim de sua obra, mais especificamente nos Seminários O
1212
Alfredo Jerusalinsky
sintoma ([1975-1976] 2008), L´insu ([1976-1977] 1998) e A topologia e o tempo
([1978-1979] inédito). Então, se ele deixou de ser estruturalista, temos que
perguntarmo-nos como o estruturalismo de Lacan se modificou, porque certa-
mente, num sentido total, não desapareceu. Lacan não renunciou, pelo menos
no essencial, ao que o estruturalismo ofereceu: deduzir a verdade das ideias.
Poderíamos dizer o mesmo de inúmeros cientistas sociais e de inúmeras ver-
tentes do campo das ciências, a linguística, por exemplo; o estruturalismo deu
como fruto um Peter Gay, um Lévi-Strauss e, curiosamente, do lado do pensa-
mento americano, também, Donald Campbell, por exemplo.
O curioso e maravilhoso livro de Michael Crichton (2008), Devoradores de
mortos, é uma reconstrução da vida dos vikings e dos povos nórdicos, que
segue o método historiográfico estruturalista, a partir da carta de um embaixa-
dor árabe, Ahmad Ibn Fadlan, do ano 922 de nossa era. Michael Crichton, na
ciência, é um homem de muito prestígio, pois é antropólogo, além de autor do
roteiro de O parque dos dinossauros (2009). Então, devo dizer que vale a pena
não exercer, contra ele, nenhum preconceito, já que, em todo caso, O parque
dos dinossauros é, estruturalisticamente falando, uma boa dedução; é aí que
reside o interesse desse livro.Ele recolhe um documento histórico muito valio-
so; seu trabalho é ímpar. Por ele, fica-se sabendo que a moral sexual nem
sempre foi a mesma.
Como nosso tema é o modo como a psicanálise se vale do conceito de
estrutura – a vertente aberta e não unívoca, em contrapartida à de estrutura
fechada –, vou me permitir um pequeno comentário sobre a moral. A moral é um
território que, pela variabilidade histórica e pessoal, de família em família, de
sujeito em sujeito, é conceito de difícil leitura científica, pois é colocado forte-
mente à prova pela extrema variabilidade de verdades morais que se supõem
eternas ou que sempre foram assim, mas que se demonstram, rapidamente,
como mutáveis. Basta escutar com atenção a moral de cada um de nossos
pacientes para perceber as variantes. Claro, quando se encontra com variabili-
dades em macro, ou seja, em alta dimensão de diversidade e de divergência,
isso parece notável. Por exemplo, nos povos nórdicos não se concebia a ques-
tão da fidelidade tal como em outros povos e tempos. O embaixador árabe que
foi capturado pelos vikings foi obrigado a ser um soldado viking durante quatro
anos, o que não era fácil, muito menos para um árabe. Ele relata surpreso:
quando um guerreiro volta para a aldeia (eram povos quase nômades) e ele
encontra sua mulher transando com outro, não fica indignado. Então, pergunta:
– “Por quê?” O guerreiro responde: – “Minha mulher estava com outro, pois eu
não estava aqui; se eu estivesse, ficaria brabo, mas como eu não estava aqui...”
– “Mas como, ela não é sua esposa?” – “Sim, é minha esposa, mas eu não
estive durante quatro anos aqui e ela não está morta, está viva. Além do mais,
As quatro estruturas fundamentais...
13
ela não sabia se eu estava vivo ou morto”. Portanto, conclui o embaixador árabe:
“Esses vikings não sabem o que é a moral”. Qualquer pensamento
fenomenológico aderiria facilmente à conclusão do embaixador árabe, mas um
pensamento estruturalista se perguntaria em que consiste a moral dos vikings.
Assinalo, com isso, que os parâmetros de comportamento não são de-
monstrativos de quase nada. Não digo nada, mas quase nada, porque eles
precisam ser confrontados com o tecido significante, o tecido simbólico, para
serem lidos. O comportamento é letras entre os humanos; e, para se ler uma
letra, precisa-se saber em que estrutura ela funciona; não somente a que histó-
ria pertence – o que implica uma série –, mas também em que estrutura ou em
que lógica ela funciona. Falar de estrutura é falar da lógica. Falar da lógica
implica em como se transmite a verdade. Quais são os princípios que permitem
afirmar que algo que seja verdadeiro em certo tecido significante permaneça
como verdadeiro no tecido seguinte? O tecido se transforma, mas a lógica
ordenadora do critério de verdade permanece. Em psicanálise, isso chama-se
filiação.
A filiação é o que permite a continuidade do simbólico, independentemen-
te da mudança da figura, quer dizer, independentemente da mudança da moral,
da moda, do aspecto e do comportamento. É assim que alguém pode se reco-
nhecer e ser reconhecido como filho, apesar de o pai ser careca e o filho, punk ,
usar um corte moicano e quatro piercings, três tatuagens, das quais o pai tem
horror. O que não impede que ele seja reconhecido como filho, e se reconheça
como filho porque há um traço que sustenta a continuidade simbólica.
O que quer dizer a continuidade simbólica? Não quer dizer a continuidade
moral. Não quer dizer a continuidade da figura. Significa a continuidade, perma-
nência, ou persistência de uma lei que obriga o sujeito a certas formas de proce-
der para produzir um reconhecimento de valor recíproco. Significa que o sujeito
é capaz de produzir uma operação cuja resultante seja reconhecível pela gera-
ção anterior como algo de valor simbólico, de valor representativo da cultura na
qual ambas as gerações trabalham. Significa que aquilo que o filho faz seja pas-
sível de ser reconhecido pelo pai como algo que assegura a continuidade histórica
de sua estirpe, a continuidade dos valores essenciais que estavam em jogo, que
não são de ordem moral. O filho pode obedecer, ou não, aos modos que legitimam
o reconhecimento, por exemplo, transar com uma mulher, ou transar com um
homem; mas, apesar de não obedecer a esses princípios, ele inscreve seu ato no
julgamento da geração anterior e aceita ser reconhecido ou rejeitado em função
de seu ato. Quer dizer que seu ato não é rompimento, não é ataque à ordem
simbólica anterior; é um novo modo de demandar reconhecimento.
Tropeçamos com adolescentes, atualmente, em posições extremas de
aparente rompimento com a geração anterior, como, por exemplo, cabelo moicano,
1414
Alfredo Jerusalinsky
skinheads, tatuagens no corpo todo, penduricalhos por todos os lados, piercings
na ponta da língua... Submetem-se a processos dolorosos, oferecendo um espe-
táculo de horror para a geração anterior e, também, de estranhamento. Ou seja, a
geração atual não permite que a geração anterior se espelhe nos seus filhos.
A potência paterna, durante o processo migratório e a busca de autono-
mia do homem moderno, repousou, em parte, em assegurar que o filho fosse
um continuador da própria profissão do pai. Para um advogado pai, um advogado
filho; para um médico pai, um médico filho; para um agricultor pai, um agricultor
filho, etc. Esse espelhamento de reconhecimento pela via do imaginário foi recu-
sado progressivamente pelas gerações que advieram no pós-guerras.
Os adolescentes disseram: – “Não queremos ser iguais a vocês, quere-
mos ser diferentes; precisamos de modos de reconhecimento da continuidade
simbólica que não repousem no mimetismo”. O que os colocou na borda da
loucura, borda do não reconhecimento recíproco da continuidade simbólica, pois
rompeu o suporte imaginário dessa continuidade, como por exemplo, se vestir
igual ao pai. E esse rompimento, na verdade, é uma forma de negativa. Para
quem se propõe a uma continuidade simbólica que não repouse no mimetismo,
é evidente que é uma perda de tempo aprender a ser ou a se vestir igual. Temos
que nos perguntar se esse rompimento do mimetismo, essa quebra do espelho
que os adolescentes e os jovens provocam, é um ataque contra a continuidade
simbólica ou não.
O estruturalismo nos fornece instrumentos para fazermos essa pergunta
e não repousar nem no positivismo do objeto que está em questão – piercing ou
não piercing, corpo ou não corpo – e, também, não ter que responder pela
fenomenologia da continuidade imaginária.
Perguntar sobre a continuidade da significação é perguntar se, apesar de
recusar o mimetismo, a nova geração continua ou não fazendo história. Ela
pertence à história dessa civilização, embora seu modo de operar seja diferen-
te? Reconhecemo-nos em nossos pacientes psicóticos ou em nossos pacien-
tes que estão em quadros de borda? Sem dúvida a presença desse hiato, dessa
“hiância” discursiva, a tematização dos nossos pacientes psicóticos no seu
delírio alude incessantemente a esse rompimento geracional. Nós podemos ler
isso de um modo histórico ou anistórico. Lacan vacilou incessantemente entre
um modo e outro de leitura, o modo histórico e o modo anistórico. Essa
pendulação será frutífera, se não se pretender tomar apenas um dos ângulos do
pêndulo e resumir-se ou constranger-se a esse único ângulo, ou bem o históri-
co, ou bem o estruturalista puro, o qual provoca um isolamento de qualquer
condição histórica.
Uma forma de ler a ameaça de rompimento, o retorno do delírio psicótico
do rompimento geracional que ameaça a continuidade simbólica é, por exem-
As quatro estruturas fundamentais...
15
plo, lê-lo a partir do ângulo de quando um pai esmorece, ou a função paterna
esmorece. Temos aí o risco de rompimento da continuidade simbólica, que faria
ir ao encontro de todo o psicótico para vasculhar como a função simbólica caiu.
Seria um método possível.
Outro, talvez,seja o preferido pela antipsiquiatria quando do encontro
com o lacanismo, momentos em que se fizeram congressos e debates conjun-
tamente. O ponto em que a antipsiquiatria tornou-se permeável à intervenção do
psicanalista no campo hospitalar, na leitura da loucura, vai indagar as vicissitu-
des que, no discurso social, tem a posição paterna. A posição paterna e não a
função. Entre a posição e a função, Lacan oscilou; o que torna difícil, para ele,
deixar claro o conceito de pai, pois ora é uma função, ora é uma figura histórica.
E devo dizer que a minha experiência clínica me recomenda fazer uma miscelâ-
nea entre as duas.
Na minha concepção estruturalista, não alcanço, em termos de estrutu-
ra, fazer mais do que uma miscelânea, ou seja, uma intersecção. Não saberia
como estabelecer um método para uni-las porque, embora continue trabalhando
na tentativa de articulá-las – vai exigir meus próximos 40 anos de vida –, me
desculpo (ou não me culpo?) por não sabê-las, porque inclusive Lacan não sa-
bia como articulá-las; por isso ele oscila entre uma e outra.
No seminário L´insu que sait de l´une-bévue s´aile à mourre ([1976-1977]
1998), Lacan disse que a psicanálise é uma religião moderna, justamente por-
que tem o que o idealismo sempre teve, que é deduzir a verdade das ideias.
Afirmação lacaniana que não aprecio nem um pouco, pois se alinha à concep-
ção de uma dedução pura das ideias, de como ter fé na estrutura. Ideia. Posi-
ção, a qual ele tentou recusar, pelo menos a partir do seminário Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan, [1964] 1985). Então, ter mais fé
na estrutura do que na história, ou ter mais fé na história do que na estrutura,
conduz, provavelmente, aos mesmos equívocos.
Assim, ao cancelar qualquer interrogação sobre a loucura, reduzindo-a a
um mecanismo bioquímico, pode parecer ser a grande solução. Porque o desa-
fio que os neuroquímicos colocam para a psicanálise pode nos levar a essa
indagação e a essa solução. O que representaria uma oscilação entre a respos-
ta racionalista e idealista, de um lado, e do outro, ao racionalismo científico cuja
materialidade cambaleia, porque a história, de qualquer forma, precisa de uma
interpretação, não são os fatos que a causam.
A versão mais científica de Lacan tem o pai como causa. O pai da estru-
tura, em termos de estrutura lógica da função, ou o pai da história? Não há
possibilidade de manifestação do pai da estrutura sem o pai da história, e su-
põe-se que algo de verdade a questão da estrutura contenha. A história é legível
somente em termos de estrutura. Essa é a tautologia lacaniana. A história de-
1616
Alfredo Jerusalinsky
monstra a sua verdade na estrutura, na leitura estrutural; a estrutura demonstra
a sua verdade na história. Evidentemente, isso faz uma elipse evitando o corpo,
por isso podemos encontrar Lacan dizendo: ”O corpo não tem importância ne-
nhuma”. O que também nos coloca numa posição complicada, porque não sa-
bemos a importância que tem o corpo na loucura; não somente do ponto de
vista bioquímico, genético e neurológico, mas, também, enquanto corpo real.
A esse respeito, vou me permitir, com a devida permissão de sua autora,
citar brevemente um caso clínico que foi trazido por uma jovem analista, pois ele
é exemplar no tocante à questão das formas da loucura. Trata-se de uma jovem
de 14 anos, com síndrome de Down, que, quando chegou ao tratamento – um
par de anos atrás –, engatinhava como um animal, tirava suas roupas, colocava
seu dedo na vagina, chupava seu dedo, cheirava suas próprias fezes, se arra-
nhava, batia a sua cabeça contra a parede, se auto-agredia ostensivamente,
especialmente, e quase exclusivamente, na frente da mãe; bastava o olhar ma-
terno para provocar essas manifestações. Após todos esses atos, imediata-
mente fazia um pequeníssimo intervalo para olhar a reação das pessoas à volta,
o que denotava o caráter provocativo desses atos, e então largava uma gargalha-
da. Digamos que é bem parecido ao que os casos históricos de perversão nos
mostram.
O livro de Elisabeth Roudinesco (2008), A parte obscura de nós mesmos,
leitura recomendável para analistas, contém relatos de personagens históricos
que produzem esse tipo de comportamento, seja em acessos místicos, seja
em acessos de criminalidade, porque estão complementados com assassina-
tos, atuações perversas, sádicas, etc.
A menina em questão – jovem evidentemente psicótica com um quadro
esquizofrênico, sem capacidade de simbolização em função de sua estrutura
psíquica – dirige seus atos a alguém; quer dizer, a significação de seus atos não
é zero. Ela provoca. E a analista, com toda perspicácia, percebe a fantasmática
que está em jogo aí, percebe como o pai e a mãe estão implicados nessa
fantasmática mínima elementar, que está totalmente colada ao corpo. Apesar
de não haver nenhum relato possível, nenhum tecido simbólico que se distancie
do corpo, essa menina, em função da compreensão da significação mínima de
seus atos, oferecida pela analista, vai abrindo um espaço de fala e, dois anos
depois, começa a falar, e não produz mais nenhum desses atos.
Nada foi mudado em termos neuroquímicos; apenas foi mudada a posi-
ção de escuta, na qual o corpo muda completamente de posição. A menina,
hoje, continua sendo psicótica, porque a sua posição é completamente infantil,
não há nenhuma representação do sujeito no discurso social, a não ser sob a
forma de um sujeito completamente infantil, e no real; mesmo que ela se identi-
fique com alguma personagem de ficção – por exemplo, a princesa das histórias
As quatro estruturas fundamentais...
17
infantis, e especialmente Fiona, de Shrek , o monstro repulsivo. O que muda é
que agora, em lugar de ela atuar, a personagem passa a ser um campo de
relato: ela é a Fiona. É alguém que pode se distanciar simbolicamente de seu
corpo, tanto que a sua feiúra, representada como excrescência no olhar da
mãe, pode ser desvinculada da posição simbólica em que ela se representa. É
uma Fiona. E ela é psicótica.
Mas é evidente que a psicose de dois anos atrás não é a mesma psicose
de hoje. Então, o que mudou? Mudou a filiação pela qual a menina se reconhe-
cia – o traço de reconhecimento estava ligado à condição de excrescência do
corpo, de um corpo amaldiçoado – e que a obrigava a ligar a fantasmática, seu
fantasma, ao corpo. Uma escuta gera uma suplência – não gera uma metáfora
paterna, tomando-se ao pai como causa – no campo da linguagem que lhe
permite falar desse corpo sem sê-lo, e construir uma história em que ela é a
heroína, a personagem. Mesmo um romance, no qual seu corpo não é o que
determina a filiação. O problema de nossa colega analista é que a menina fez
filiação no olhar dela; com isso, nossa colega vai ter que viver muitos anos
sustentando esse olhar, até que seja possível que essa menina se aproprie
desse traço filiatório.
Não sei se isso pode ser chamado de função paterna, é uma função; não
sei se merece ou não o nome de pai. Se tomarmos o lado histórico dessa
menina, posso dizer que foi uma recusa ao pai e à mãe o que essa menina
conseguiu. Seu pai padece de um delírio erotomaníaco, no qual o corpo está
sempre em destaque; não é só um delírio, mas uma atuação erotomaníaca, ele
é um ninfomaníaco. De todo modo, do lado histórico, a menina teve que fazer
recusa das figuras parentais; é por ter “forcluído” o pai e a mãe que a suplência
da análise se tornou possível, pois se a menina continuasse ligada a esse traço
filiatório estaria frita, estaria, ainda, rastejando como um animal.
As vicissitudes da psicose e das perversões nos confrontam com os
limites de nossa teorização, ora por nos lançarem no lado da historicidade, ora
no lado da função. A estrutura pode servir para ler ambas as coisas, mas nor-
malmente ela tem se alinhado mais à função e pouco à história. Podemos dizer
que fica mais cômodo, porque, no lado da função, vira método; e, quando temosum método capaz de nos aproximar da verdade, ficamos mais cômodos, porque
nós nos encostamos a ele, e tendemos a ler sempre do mesmo modo. Quando,
na verdade, a psicanálise é justamente o cancelamento do método, não da
estrutura, mas, sim, do método.
O que é um analista? O que forma um analista? A psicanálise forma em
cada um o cancelamento do método unívoco de leitura e o capacita ou coloca
em condições de fazer a leitura do que ele pode fazer, segundo o que ele lê do
romance da vida de seu paciente. Não dá para medir o quanto de analista se
1818
Alfredo Jerusalinsky
formou em alguém através de teste do quão rigoroso é o método que ele aplica.
Se fosse assim, teríamos um método uniforme, a ser aplicado para todo e qual-
quer paciente. E o analista é justamente aquele que permite que a transferência
o atravesse e faça dele uma folha ao vento, ou seja, o arraste para o lado e os
extremos, para as alturas e os infernos, que ele é capaz de suportar sem perder
a capacidade de interpretar, de ler, de transformar isso em texto.
Se me perguntam se eu sou o mesmo analista para todos os meus paci-
entes, tenho que responder que não, porque se eu fosse não seria analista.
Descartes sonhou um método que garantisse a verdade; a psicanálise está no
avesso desse sonho. Quando se trata da loucura, vemos isso operar in extremis,
quer dizer, na queda de qualquer possibilidade de ler com um método uniforme.
Já na neurose há uniformidade. Qualquer tentativa de uniformizar a leitura, ou de
fazer uma nosografia ou uma taxonomia para uniformizar a leitura, nos levaria ao
fracasso da compreensão da psicose. Podemos, por métodos bioquímicos e
neuroquímicos, reduzir a expressão sintomática, mas certamente não conse-
guiríamos que o fantasma se desligasse do corpo, que é a cura que podemos
tentar.
Assim, para que o fantasma se desligue do corpo – como no exemplo da
paciente acima – implica fazer a leitura do que os seus traços corporais, mani-
festados na loucura, significam, e não o que significam universalmente. Por
isso, toda a tentativa de classificação está na contramão da psicanálise, ou
seja, a psicanálise e o DSM-IV não combinam. Da mesma forma, as classifica-
ções sexológicas da primeira metade do séc. XX, que são taxonômicas, ou
seja, por traços de comportamento, também não combinam.
A psicanálise é aprender a ler. Nossos professores de primeiro grau, que
nos ensinaram as letras, não nos deram instruções a respeito de quais livros ler,
nem como interpretá-los, nem como deveríamos lê-los. Nós, que transmitimos a
psicanálise, apenas somos capazes (e ainda bem!) de transmitir as letras míni-
mas. Ou seja, uma capacidade de leitura que em cada um tem um limite. É
verdade que há um limite mínimo, há um piso inferior necessário, quer dizer, não
dá para ser analista e analfabeto. Só isso.
REFERÊNCIAS:
CRICHTON, Michael. Devoradores de mortos. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008.
______. O parque dos dinossauros. Porto Alegre: L&PM Editores, 2009.
LACAN, Jacques. O seminário, livro, 11 : os quatro conceitos fundamentais da psica-
nálise [1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
______. O seminário, livro 23: o sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2007.
______. A topologia e o tempo [1978-1979]. Inédito.
______. L´insu que sait de l´une-bévue s´aile à mourre [1976-1977]. Paris: publica-
As quatro estruturas fundamentais...
19
ção não comercial da Associação Lacaniana Internacional, 1998.
ROUDINESCO, Elisabeth. A parte obscura de nós mesmos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2008.
Recebido em 10/11/2009
Aceito em 05/01/2010
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
20
TEXTOS
20
Resumo: Discute-se neste trabalho o destacamento do “traço do caso” como
estratégia para pensar a clínica, especialmente na análise de crianças e adoles-
centes. Conclui-se que o trabalho em torno do “traço do caso”, ao transformar o
produto da escuta analítica em texto, pode permitir o surgimento da letra, convo-
car uma operação de leitura e trazer efeitos interessantes para a direção do
tratamento.
Palavras-chave : traço do caso, letra, identificação, clínica psicanalítica.
THE CASE TRAIT IN THE CHILDREN AND TEENAGERS ANALYSIS
Abstract: This paper discusses the relief of the “case trait” like a strategy to
think about the clinic practice, especially in the children and teenagers analysis.
The conclusion points the interest of the “case trait” to the conduction of the
treatment, because it brings the possibility of appearance of the letter and a
reading operation of the clinic.
Keywords: case-trait, letter, identification, psychoanalytic clinic.
O TRAÇO DO CASO NA
CLÍNICA PSICANALÍTICA
COM CRIANÇAS E
ADOLESCENTES1
Leda Mariza Fischer Bernardino2
1 Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Estruturas Freudianas , realizadas
em Porto Alegre, outubro de 2009.
2 Psicanalista; Analista-Membro da Associação Psicanalítica de Curitiba e da Association
Lacanienne Internationale; Professora titular da PUCPR; Pós-Doutora em Tratamento e Preven-
ção Psicológica pela Université de Paris 7 (bolsa CAPES). E-mail: ledber@terra.com.br
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 20-28, jan./jun. 2010
O traço do caso na clínica...
21
Diante do reducionismo e do empobrecimento galopantes da clínica, queatualmente impera na prática da psicopatologia dita “geral” – através da
adoção e do uso indiscriminado de manuais descritivos e estatísticos dos cha-
mados “transtornos mentais” – alguns psicanalistas franceses (Melman, Czermak,
Thibierge, 2008), atuantes no campo da psiquiatria, com sólidos estudos da
psicopatologia tal qual foi construída classicamente, com bases psicanalíticas,
encontraram uma forma de resgatar o raciocínio clínico e a riqueza da formação
psicanalítica através do conceito de “fato clínico”.
O que é o fato clínico?
Para Charles Melman (2008), o fato clínico fundamental é o destacamen-
to de um traço. Haveria, nos casos clínicos, algo que faria “um”, que possibilita-
ria identificar sua especificidade. Isso abre caminho para um tipo especial de
reunião clínica, que promove discussões em torno do “traço do caso”.
Pretendemos discutir, neste trabalho, a importância desse recurso, tanto
para a formação do psicanalista quanto para a condução psicanalítica do trata-
mento, a fim de enfatizar, na sequência, a particularidade desse recurso na
análise de crianças e adolescentes.
Para tal, somos conduzidos à questão propriamente psicanalítica do que
dá lugar ao único, ao singular de cada paciente, ponto que remete à concepção
psicanalítica de um aparelho psíquico que deve se construir para cada um, a
partir de sua história, conforme Freud ([1923]1972) propôs. Para Lacan ([1961-
1962] s/d), isso implica o processo necessário para o surgimento do sujeito e
sua relação com o traço que o funda, ou seja, o conceito de traço unário. Pas-
semos, então, a discutir esses elementos.
Lacan e os conceitos de sujeito e de traço
Para Lacan ([1964]1979), o sujeito se institui em sua singularidade após
sua inserção na linguagem, o que se dá na relação com um outro, semelhante
privilegiado, que representará para ele esse campo, dito do Outro, tesouro de
significantes. O sujeito surgirá desse banho de significantes e conjunto de sig-
nificações, após um tempo necessário de alienação a esses saberes e um não
menos necessário tempo de separação dos mesmos. Dessas operações psí-
quicas – alienação-separação – surgirá um sujeito, dividido entre o que ficou
escrito e recalcado desse encontro com seus outros e o que pensa consciente-
mente saber de si. Lacan ([1964]1979) situa o sujeito nessa divisão, entre os
significantes que o representam: um S1, que o insere em uma série significante,
e um S2, que traz um saber perdido (inconsciente) sobre ele.
Mas como, com tal história, o sujeito pode se considerar como um, úni-
co, singular,e reconhecer-se como tal? É a questão levantada por Charles Melman:
2222
Leda Mariza Fischer Bernardino
 O que é que faz com que nós mantenhamos ou sejamos manti-
dos por essa permanência estranha, que quase nos garante que
somos, aproximadamente, os mesmos ao longo de todo esse
percurso da existência? (Melman, 2009, p. 331).
Lacan ([1961-1962] s/d) concebeu, a partir de sua leitura do texto freudiano,
o conceito de traço para definir essa marca identificatória, necessária para o
sujeito poder se reconhecer no campo simbólico. Chamou-o então de “unário”,
por sua função de permitir a alguém contar-se como “um”, diferente dos outros.
Em 1961-1962, no Seminário IX – a identificação, Lacan resgata o einziger
Zug, o “traço único” freudiano e transforma-o em importante conceito de sua
teoria:
Nestes elementos de informação significante, a originalidade que
traz o traço, digamos, a serialidade que ele comporta, traço tam-
bém de discrição, de corte, o que Saussure não articulou melhor
senão dizendo que, o que os caracteriza é ser o que os outros
não são (Lacan, [1961-1962] s/d, p.26).
Este traço, curiosamente, é proposto como a diferença que se instala na
repetição, caracterizando a identidade não por uma suposta igualdade, mas
justamente pela diferença que se repete através da sutileza de um traço, que
reaparece em um novo contexto, ou com nova roupagem. Comporta, então: a
originalidade, nos dois sentidos, de origem e de novidade; a serialidade: o sujei-
to faz parte de uma série que o precede, dos humanos, ao mesmo tempo em
que se iniciam, com esse traço, as demais marcas; e o corte, de separação e
de divisão, desse grupo que de certa forma o constitui.
Por isso, contra o “um” da totalidade, propõe o um como o traço destaca-
do por Freud ([1921] 1972) e enfatizado por ele:
Este traço único, este einziger Zug [...] poderia substituir todos
os elementos do que constitui a cadeia significante, suportá-la,
ele sozinho, pura e simplesmente por ser sempre o mesmo (Lacan,
[1961-1962] s/d, p. 32).
 O traço é, em suma, a repetição de uma diferença que justifica o
surgimento de “um”, um significante que se destaca dentre todos os outros: S1,
o enxame que dá início à série significante. Entretanto, longe de ser o que
unifica, é justamente o que confronta o sujeito com o preço de sua identificação
enquanto falante – sua divisão, sua incompletude –, como já assinalava Lacan:
O traço do caso na clínica...
23
Se o traço é pura diferença, a identificação não é unificação, mas
fissura. Ele introduz uma diferença no real que apaga a coisa, a
única identificação possível é o eclipse do sujeito entre os
significantes (Lacan, [1961-1962] s/d, p.92).
Assim, não seria conveniente traduzi-lo como “único”, mas, sim, como
“unário”. Situar o traço é encontrar, nos diferentes pontos de repetição de um
sujeito, o que marca sua singularidade, relacionada certamente com sua estru-
tura clínica e com seus sintomas, mas peculiares a ele. Se compararmos com
a lógica do DSM IV, por exemplo, que segue uma direção exatamente oposta, o
quadro clínico no qual o paciente pode ser situado vai inseri-lo em um grupo que
apresenta sintomas comuns – ali ele encontraria sua “identidade”, que só pode-
ria ser imaginária.
Se retomarmos a história do movimento psicanalítico, vemos que Freud
([1914]1974) fez esse empreendimento, desde seus encontros com Charcot:
ele isolou um traço que se repetia na clínica, o sexual. Ao realçar este traço, ao
identificá-lo, ele inaugurou a clínica psicanalítica.
Tomando seu exemplo fundador, podemos dizer que o traço é o fato clíni-
co fundamental, básico, porque ele inicia a clínica. Algo que é destacado, que
aponta um enigma cifrado, que convida a uma leitura. É o estatuto de sintoma:
um fato enigmático, que convida o clínico a trabalhar.
Dessa forma, em psicanálise, tomamos o sintoma não como indicativo
de um “transtorno”, mas como fato clínico: algo que pede uma leitura, uma
interpretação no sentido de deciframento, de uma produção única por parte do
sujeito.
Fazemos então a hipótese, a partir desse fato clínico fundamental, de
que o fato deve ser articulado. É o que Freud descobre, diz Thibierge: “o corpo é
marcado por um traço que faz interpretação de um desejo, de um gozo sexual”
(Thibierge, 2008, comunicação oral). E isso só se tornou um fato clínico porque
Freud o identificou – ele o chamou de “formação do inconsciente”. É um fato
clínico porque foi um “achado” que, ao fazer limite ao saber, pedia uma leitura,
uma interpretação.
Para Thibierge, Lacan nos mostrou que o sintoma é o que faz parar o
gozo, porque traduz uma interpretação desse gozo. Se não há essa redução, o
gozo é ilegível. A redução fálica faz do sintoma o traço de um gozo selvagem,
mas interpretável. Trata-se de um traço que se liga ao corpo e o alça ao simbó-
lico, detendo o gozo orgânico ilimitado – em alguns casos ele se apresenta
como sintoma, apelo ao outro, e pede interpretação. A leitura permitirá identifi-
car as marcas singulares do sujeito que sintomatiza, o trabalho psicanalítico
permite esse desdobramento.
2424
Leda Mariza Fischer Bernardino
Para Thibierge, “o traço é um significante, uma marca para o outro. É um
ponto de referência para o significante” (Thibierge, 2008, comunicação oral).
Este autor destaca a questão da identificação: “desde que o escrevo, este traço
me coloca diante da questão: o que é que identifica este traço? Como vou lê-lo?
A maneira como vou lê-lo vai decidir sobre sua identificação”(id., ibid., comuni-
cação oral).
Na clínica, essa leitura pode ser feita de várias formas. Thibierge se per-
gunta: por que privilegiar a leitura psicanalítica, em detrimento da leitura dita
“científica”? Ele responde: a ciência trata o traço como o 1 da matemática, faz a
partir daí uma afirmação universal, que se refere ao homem genérico. O traço
marca uma diferença, segundo a qual 1 é diferente de 1, diz a psicanálise,
portanto, a “identidade” é impossível. O que traz dificuldades: se é algo singular,
o que quer dizer? Aí entra o clínico, aquele que vai tentar dizer algo sobre o real,
a partir de suas investigações.
Logo, o traço é algo a partir do qual vai girar a questão da identificação,
que é diferente do que a ciência propõe em torno do conceito de identidade.
Atualmente, tenta-se promover um movimento rumo à busca da identidade, que
estaria relacionado com a dificuldade de precisar o conceito de identificação.
Essa reivindicação de identidade é um sintoma de nossa época, ligado à busca
de reconhecimento, tendo em vista a falência das instâncias simbólicas, que
tradicionalmente referendavam as identificações. Na contemporaneidade, as
referências imaginárias tomam a dianteira.
O traço, por sua vez, é o suporte do Eu, sujeito do inconsciente, que é
sempre uma divisão e uma abstração evanescente, surge justamente no corte
que o supõe separado, condição para ser falante e desejante. Esse sujeito que
fala de modo verdadeiro e legítimo, que deseja, a partir de uma existência sim-
bólica e pulsional, é cada vez mais convocado a se calar.
A estratégia clínica do traço do caso
A proposta de Marcel Czermak é “tornar o caso falante”. Ele se indaga:
“como se fabrica este enigma do que é um fato clínico?” (Czermak, 2008, p.92).
Segundo ele, depende do método e da transferência O método psicanalítico,
como sabemos, é o da associação livre, esse convite para falar “livremente”. A
transferência é o que instala o ouvinte em um lugar privilegiado de escuta e de
intervenção, um endereçamento possível para essa fala.
Santurenne explica como se pode trabalhar com esse exercício do des-
taque do “traço do caso” que faz enigma:
Cada um vai ter que ocupar um lugar inédito, com uma distância,
em relação à fala inaugural do paciente, na intenção de destacar
O traço do caso na clínica...
25
nela o fato clínico, isto é, o realce de uma afirmação, suasurpre-
sa, sua retomada em um trabalho lógico, no reaparecimento, na
iteração do que só se encontra uma vez descoberto” (Santurenne,
2008, p.13).
Ele destaca três etapas no processo, comparando com o trabalho do
fotógrafo: na primeira etapa, a questão clínica é postulada – “introduz a
instantaneidade da interlocução entre o vivo da fala do paciente e o interlocutor
atento” (id., ibid., p. 14) [o momento de tirar a foto]; na segunda, ocorre a trans-
crição e o trabalho de leitura que se segue [em que pode se “revelar” o traço do
caso]; a terceira, finalmente, com o momento da discussão, traria
(...) o acabamento do instantâneo, a aposta que se faz no “fato
clínico”- artifício elaborado para nos convidar a uma nova apreen-
são ou a uma des-apreensão, a partir do inédito, para estabelecer
um fato clínico que escapa um pouco da operação habitual do
trabalho teórico (Santurenne, 2008, p. 14).
No terceiro tempo chegamos ao “fato clínico”, em um processo espiral –
a descoberta do “traço do caso” cria um novo “fato clínico”, diferente do inicial,
trata-se de uma redescoberta do paciente.
O traço do caso na clínica com crianças e adolescentes
Finalmente, podemos agora abordar nossa questão. Considerando-se que
a especificidade da clínica psicanalítica com crianças e adolescentes reside na
escuta de sujeitos ainda em processo de constituição da subjetividade; que o
discurso em torno do fato clínico é muitas vezes plural – tem a palavra do sujei-
to, mas também a dos pais, às vezes até dos professores ou outros integrantes
do campo social que o encaminham; ou ainda, que o discurso não necessaria-
mente vai ser verbal. O dispositivo do destacamento do traço do caso seria
operável nessa clínica?
A experiência nos ensina que o traço, na clínica de crianças, relaciona-se
com o lugar apontado pelos pais, em seu discurso, para cada um dos filhos.
Além disso, é necessário identificar qual lugar a mãe dá ao pai e, a partir daí,
qual lugar cada filho passa a ter.
Assim, podemos utilizar o dispositivo proposto: identificar o traço pelo tex-
to da fala da criança e de seus familiares em uma escrita do caso, que conterá
também os efeitos inconscientes desses discursos sobre aquele que escuta.
 Bergès e Balbo aludem à questão das lembranças de infância para abor-
dar essa questão do traço. Para eles, a lembrança de infância é “aquilo que a
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Leda Mariza Fischer Bernardino
criança cria, para manter vivo um ‘fragmento de pura verdade’, isto é, uma inscri-
ção significante infantil” (Bergès e Balbo, 1997, p. 109). Aí eles situam o traço:
“Ela vai construir para si uma série de lembranças, das quais o traço unário,
apagado e lembrado por seu intermédio, é uma inscrição significante” (id., ibid.,
p.109).
Renato, 11 anos, dentre as várias reproduções de marcas de sua “tribo”,
rasura o nome em inglês de uma loja para skatistas – drop dead (literalmente
“caia morto”) – e convoca o trabalho analítico. Com associação livre, transferên-
cia, escuta em ação, uma leitura foi possível: uma história que remetia a um
bisavô que, atingido por um raio diante de seu filho, “caiu morto” (Bernardino,
2003).
Assim, o texto da fala ou da expressão significante da criança, por outras
vias – desenho, modelagem, pintura –, pode permitir “ler” esse traço, na transfe-
rência, que estaria presente na “escrita do caso” e pediria uma “leitura” fora da
sessão, mas no contexto da apresentação desta escrita para os pares.
Bergès e Balbo utilizam o termo “inscrição significante” porque essa ex-
pressão remete “às relações necessárias entre o significante e a letra” (Bergès
e Balbo, 1997, p. 108). Mas uma questão fica em aberto – se é, como os
autores lembram, “o recalque, a partir das construções, que permite inventar
para si um passado” (id., ibid., p.108); se é à fantasia que cabe retomar “a
inscrição significante em uma lógica formulável da relação entre o sujeito toma-
do na linguagem e o objeto” (id., ibid., p.109) , como se daria então, na clínica de
crianças pequenas, quando intervimos em um tempo anterior ao recalque propri-
amente dito?
Uma tentativa de resposta possível seria a teoria das identificações, des-
critas por Freud ([1921] 1972) como bastante precoces. Assim, tanto a primeira
identificação – a identificação ao Pai –, quanto a segunda identificação – ao
objeto perdido – ocorreriam em tempos lógicos anteriores à operação edípica
propriamente dita. Apenas na terceira identificação – que põe em cena a estru-
tura do desejo, da fantasia, como desejo de desejo insatisfeito (histérica), esta-
ríamos no pós-recalque secundário.
Vejamos mais detalhadamente essas operações. A primeira identifica-
ção, segundo Freud, ao Pai, dá-se por “incorporação”. Trata-se, para o filhote
humano, de identificar-se com o Outro, com a mãe enquanto portadora da metá-
fora paterna primordial, mãe cujas palavras ele “ingere”.
Darlene, 41 anos, encontra-se pela primeira vez com seu pai, desapareci-
do desde que sua mãe dela engravidara, em um relacionamento casual. Aos
colegas do trabalho, que a indagaram sobre a situação insólita, ela respondeu:
“estava digerindo ainda a história”! Mesmo adulta, é do corpo que se trata, dian-
te daquele que – mesmo desaparecido – transmitira “traços” identificatórios.
O traço do caso na clínica...
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Sessões depois, ela narra um sonho: “uma tv ligada, mas somente os pontinhos
aparecendo, e um risco no meio, em zigue-zague”. Realmente, ela “saíra do ar”
com esse encontro. Mas o risco no meio, associado primeiramente à aprendi-
zagem da escrita e ao exercício repetitivo de um traçado, remete diretamente à
letra inicial do sobrenome paterno...
 Essa identificação marca a antecipação do sujeito e prepara seu lugar
de falante, toca o sujeito do inconsciente. Mas essa primeira identificação só é
possível pela segunda – a identificação por regressão – com o Outro da de-
manda. É a identificação a um traço único tomado do Outro do desejo, consi-
derado como objeto, em que a identificação viria substituir a perda pela frustra-
ção necessária; essa identificação toca o Eu (moi). O Outro é a metáfora do
traço unário (um “pedacinho” dele é incorporado – por metonímia, o pedaço
pelo todo); mas o que é introjetado é seu lugar e sua função, fazendo dessa
introdução do Outro ato de desejo, ao entrelaçar corpo e significante, no regis-
tro da experiência pulsional. Já na fantasia, o sujeito, separado do Outro, mas
a ele unido no campo da representação, se faz ausência-presença do objeto a e
esse processo é que constitui a identificação com o traço unário: busca repetitiva
da inauguração mítica, que o traço unário qualifica. A identificação de terceiro
tipo, por sua vez, a histérica, é a identificação imaginária, narcísica, é o sujei-
to, na qualidade de desejante, “agindo” seu desejo do desejo do Outro. Para o
sujeito, conforme aponta Melman (2009), identificar-se com o significante da
falta do outro o faz faltante, insatisfeito e, portanto, portador de um desejo
inconsciente.
Esse caminho aborda a passagem de real a significante, narra a entrada
no campo simbólico, que podemos situar miticamente na primeira identificação;
mas é apenas no segundo tempo, com a apreensão do outro como objeto, que
pode ser inscrita. Como afirmam Bergès e Balbo, “para que seja possível uma
inscrição, é preciso que a coisa caia, e é sobre seu suporte que se inscreve o
significante que poderá decifrá-la” (Bergès e Balbo, 1997, p. 112).
A escuta no tempo da infância poderia permitir o destacamento deste
traço deixado pela coisa? Segundo esses autores, sim, pois “quando [a coisa]
se perde ou pode ser perdida, permite que o significante venha inscrever-se
nela, para poder ser lido ou decifrado” (id., ibid., p. 112).
Conclusão
A proposta do trabalho de reunião entre pares para destacar o “traço do
caso”, na clínica de crianças, poderia permitir, assim, um trabalho conjunto de
leitura e deciframento,ao convocar essa reflexão, que incluiria o texto da crian-
ça (suas verbalizações, suas produções através do brincar, da modelagem, do
desenho e da pintura), o texto da fala de seus pais e o próprio relato do analista,
2828
Leda Mariza Fischer Bernardino
sua escrita, dando lugar aos efeitos inconscientes da escuta mais além do
setting analítico.
O trabalho em torno do “traço do caso” pode ser proposto como um outro
lugar para pensar a clínica. Não se trata de supervisão, de discussão clínica ou
de trabalho teórico. Implica a transformação do produto da escuta em texto –
permitindo o surgimento da letra, que convoca uma operação de leitura. Provoca
um distanciamento do caso, para lançar-lhe nova luz, e permite uma leitura na
qual o papel dos pares, com sua escuta-leitura, faz função de alteridade; possi-
bilita um distanciamento da captura imaginária que todo caso tem a tendência a
provocar.
Dessa forma, pode-se ir além da leitura convencional, que permite identi-
ficar a estrutura, trabalho importante, mas insuficiente para a direção do trata-
mento de cada caso particular. É uma estratégia que viabiliza mais recursos
para uma intervenção que se dirija à singularidade do paciente.
REFERÊNCIAS
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FREUD, S. A história do movimento psicanalítico [1914]. In: ______. Edição standard
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XIV.
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standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1972. v. XVIII.
FREUD, S.. O Ego e o Id [1923]. In: ______. Edição standard brasileira das obras
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. XIX
LACAN, J.] L’identification. [1961-1962]. Paris: Association Freudienne Internationale,
s/d.
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questions de clinique usitée et inusitée. Paris: A.L.I., 2008.
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SANTURENNE, François. Façons de faire. In: CZERMAK, M.; VEKEN, C. Les jardins
de l’asile: questions de clinique usitée et inusitée. Paris: A.L.I., 2008, p. 13-17.
THIBIERGE, Stephane. Séminaire sur le trait du cas. Seminário inédito proferido na
Association Lacanienne Internationale, Paris, abril de 2008 (comunicação oral).
Recebido em 18/06/2010
Aceito em 20/08/2010
Revisado por Beatriz Kauri dos Reis
TEXTOS
29
Resumo: O texto aborda a atualidade da adição virtual, principalmente, quando
da adolescência. O autor se utiliza, inicialmente, da formulação lacaniana do
estádio do espelho para sustentar a virtualidade como presente nos processos
humanos, inclusive no estabelecimento da adição.
Palavras-chave: adolescência, virtual, adição, psicanálise, estádio do espe-
lho.
VIRTUAL ADOLESCENCE
Abstract: The text approaches the actuality of the virtual addiction, especially
during adolescence. The author makes use, initially, of the lacanian
conceptualization of the mirror stage as to support the presence of virtuality in
the human processes, as well as in the establishing of addiction.
Keywords: adolescence, virtual, addiction, psychoanalysis, mirror stage.
ADOLESCÊNCIA VIRTUAL1
Daniel Paola2
1 Traduzido por Paulo Gleich.
2 Psicanalista; membro da Escuela Freudiana de Buenos Aires (EFBA). Autor dos livros:
Transadolescência(Ed. Letra Viva, 2007); Psicosis y cuerpo(Ediciones Laderiva, 1994);
Erotomania, paranoia y celos (Homo Sapiens, 2000); Erradamente la pulsion(Homo Sapiens,
2005). E-mail: purple@sion.com
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 29-38, jan./jun. 2010
3030
Daniel Paola
A adição virtual
Opsicanalista enfrenta a atualidade de um novo desafio na prática com ado-lescentes. Começou a ser motivo de consulta uma modalidade de adição
virtual que captura os jovens diante dos computadores, transformando o laço
social que as gerações precedentes consideram dentro de padrões de normali-
dade.
A chamada adição à internet não figura como diagnóstico no DSM IV já
que, de acordo com seus parâmetros, sempre é necessária uma substância
química para defini-la. No entanto é vox populi entre os psiquiatras associar
essa adição a um transtorno compulsivo que oculta um comportamento
depressivo e hostil frente ao social.
Para a analista Nelly Vázquez, da consultora eMarketer3 , a adição virtual
poderia ser uma atividade letal, dados os recordes que algumas pessoas se
propuseram a estabelecer jogando no computador. Essa analista menciona que
a adição não é só dos jovens, já que também alguns adultos poderiam ver-se
implicados, segundo os dados apresentados pelo Computer Addiction Services
do Hospital McLean, de Massachusetts, Estados Unidos.
De acordo com o Departamento de Pedagogia Aplicada da Universidade
Autônoma de Barcelona, a adição virtual não exige conhecimento prévio nem
especial capacidade intelectual, já que se desenvolveriam sobretudo atividades
psicomotoras que melhorariam com a persistência, gerando, além disso, perso-
nagens fantásticas, afastadas por completo da vida real.
Para o psicanalista, a adição se define em outros termos. O adicto, to-
xicômano ou não, apresenta questões particulares em relação ao discurso, sendo
o discurso definido como o próprio dizer referenciado com respeito a uma verda-
de, que encerra um plus frente ao semelhante, referido a outra posição de saber,
quanto à produção do que foi dito.
Com respeito ao discurso, o adicto apresenta uma substituição do plus
da verdade na substância que lhe outorga um saber. Esse saber outorgado pela
substância é excludente de todo partenaire que não declare uma identidade de
percepção É por isso vivencial. que, em terapias grupais cujo referente é cons-
tituído por líderes que transitaram por transtornos idênticos, são estes os úni-
cos, entre certos círculos de adictos, que poderiam ter palavra autorizada no
tempo em que se propõe uma abstinência.
3 Empresa americana de consultoria em tecnologia.
Adolescência virtual
31
Nesse mesmo sentido, a constituição grupal que implica o deslocamento
real a determinado lugar, para falar do tema que se queria evitar, já resulta por si
mesma difícil na adição virtual, porque deixar de lado o computador para reunir-
se com outros já se revela impossível em alguns casos, pela angústia súbita da
falta do elemento julgado imprescindível. Nesse sentido, nenhum adicto à internet
poderia iniciar contato com um semelhante que lhe propusesse regras
condutivistas de abstinência. Portanto, realizar um grupo virtual entre adictos à
internet traria o problema de não propor a abstinência.
À diferença do toxicômano, que poderia ter uma conduta social, o adicto
virtual realiza seu laço fundamentalmente através dos jogos em rede, e é impos-
sível que detecte por si mesmo algum tipo de inconveniente em seu proceder, já
que não há substância proibida nem lei que o julgue. Talvez os efeitos gerados
na escolaridade sejam os mais chamativos para os pais, que então começam a
tomar consciência de um suposto problema. Mas o psicanalista encontra-se
habitualmente com um inocente ou, melhor dito, com uma mente virginal, que
nem sonha em deixar seu adorado entretenimento.
A abstinência
A abstinência é, então, o primeiro obstáculo que o psicanalista enfrenta.
Porque os pais creem que a suspensão do jogo é uma tarefa imediata e que se
resolve com proibições ao jovem, entre as quais se contam, por exemplo, cortes
de luz ou impedimentos no uso do computador. Da mesma maneira, qualquer
familiar de um paciente psicótico crê que o analista tem o poder de proibir o
delírio. É comum, entre familiares de pacientespsicóticos, a desconformidade
com o psicanalista que não expõe a falsidade dos argumentos delirantes ou
alucinatórios, numa suposição mágica como a que se outorga ao encantador de
serpentes ou a quem sopra e faz garrafas.
Propor que não há abstinência quanto ao uso do computador é o primeiro
passo para conseguir que o adicto virtual finalmente possa entrar no discurso,
na medida em que seu jogo determina um gozo. E se de entrada houvesse que
definir gozo, proporia que, em sua generalidade, este serviria de suporte a seu
próprio fracasso. Porque não haveria gozo que ao fim das contas não tendesse
a sua extinção, pois qualquer atividade humana tem um limite à satisfação com
a qual se pode alimentar.
Suponhamos que elegemos a sobremesa que mais nos apetece e decidi-
mos degustá-la para sempre. Em um primeiro tempo, a satisfação vai ser óbvia.
Em um segundo tempo, a satisfação pertence à escolha, já que, sendo a sobre-
mesa que mais nos apetece, passa a ser o significante que a representa en-
quanto gozo. Em um terceiro tempo, depois de alguma forma de declaração de
impotência, esse gozo fracassa, porque produz rechaço. Nesse último tempo já
3232
Daniel Paola
nos encontramos em contato com a ponta do real, porque o indivíduo tende a se
perguntar que sentido tem estar concentrado em algo que lhe provoca aversão.
No trato da aversão se encontra a possibilidade de um novo sentido através de
uma identificação rechaçada.
No contato com o adicto virtual há de se saber esperar esses tempos, e
eles não poderiam se produzir se os pais do ou da jovem não acordam com a
regra básica de uma abstinência, com respeito a propor uma proibição do jogo
virtual que consome a vida de seus filhos. Isso não exclui dois fatos: o primeiro
é de conter a hostilidade dos pais que esperam eficiência e rapidez, o segundo
é de dispor de uma localização teórica do momento em que se encontra quem
se satisfaz com o jogo ou já goza dele.
Partindo do estádio do espelho
O estádio do espelho de Lacan ([1936] 1994) e seu posterior desenvolvi-
mento no seminário A angústia ([1962-1963] 2005) são o lugar apropriado para
começar a considerar o problema. Se chamamos i(a) a imagem real que o infans
retém, no sentido de que vai dar existência a seu corpo, de acordo com a ima-
gem virtual i’(a), que é produto do que se sabe reflexo no espelho, não por isso
essa oposição se termina de uma só vez e para sempre nos primeiros meses de
vida.
Que o infans tome de sua imagem virtual i’(a) a possibilidade da unidade
que vai dar sentido a seu corpo, até então fragmentado por uma incompleta
mielinização de sua via piramidal, não por isso teria de se desconhecer que sem
o assentimento, tal como o propôs Lacan, de um partenaire que o sustenha,
não haveria eficácia possível para a dimensão do Outro como campo do
significante.
O infans, portanto, não só vê a duplicidade da imagem enquanto se vê e
ao mesmo tempo se registra no espelho como imagem virtual, mas também vê
a forma do partenaire refletida, estabelecendo a identidade com ele, na imagem
que habita o espelho. Essa identidade virtual é causa de júbilo pela via do absur-
do, porque tanto um quanto outro se encontram na mesma dimensão virtual que
os une.
Sem essa dimensão virtual que une o infans com o partenaire adulto na
imagem, não se poderia pensar no falo como aquilo que está por fora da ima-
gem, enquanto a dimensão virtual os projeta unidos no plano do espelho. E o
júbilo é júbilo da transmissão incipiente desse falo, já existente por antecipação
no partenaire que preparou toda a cena ou que se surpreende por havê-la feito
possível.
Como resultado dessa primeira unidade redunda sua impossibilidade de
fato, porque não haverá senão para sempre dois no lugar do um, imagem real
Adolescência virtual
33
i(a) e imagem virtual i’(a), duplicidade que é margem de um Imaginário que se
reduz à circunstância de um corpo que no Outro toma sua dimensão simbólica,
e no gozo que essa redução provoca. Redução que, por outro lado, é determina-
da pelo que não se vê como escotoma, do qual advém a dimensão do falo, que
contém então o signo menos do que não habita o ser enquanto imagem.
A redução é do significante, já que é impossível atribuir-lhe uma significa-
ção se, de entrada, não há Um teleológico para a mentalidade, como existe na
filosofia em relação ao ente. Essa redução é gozo que o pensamento encerra,
jamais resignado a suportar limites ao estar sustentado pelo Ideal do Eu, que
tende à propriedade dos fractais, ou seja, aos números dos quais não se conhe-
ce a localização do limite.
Aqueles que se apresentam com uma adição virtual ao consultório de um
psicanalista poderiam ser considerados como tendo alguma alteração deste
estádio do espelho, se é que suas consequências não são somente determina-
ção do primordial, mas também circulação permanente em fatos do real da vida
de qualquer ser falante. Suponhamos que houve uma parada permanente nesse
momento de júbilo e chamemos isso de adolescência virtual: Quais são as
coordenadas futuras para esse ser falante?
A ilusão do intersubjetivo
Proponho voltar agora a esse instante de júbilo no qual o infans se encon-
trou do outro lado do fato do real que os sustenta frente ao espelho. Esse outro
lado virtual, enquanto é imagem, permite a suposição de unidade em uma cena
na qual há conexão de um a outro, nesse caso infans e adulto, conexão virtual
livre de efeitos desse real que se apresenta no corpo, que ainda não se move
como se moverá no futuro. Essa conexão então permite a suposição de enlace
entre ambos em uma intersubjetividade fantástica, que retornará como estra-
nha, dada sua falsidade real.
A imagem real sempre oferecerá a inevitável oferta do campo do verdadei-
ro, cuja significância exclui qualquer tentáculo de um a outro, ou do sujeito ao
campo do Simbólico, a não ser por uma passagem ao ato, que suponha a
crença salvadora da suposição de um saber que se encontre nos meandros da
linguagem que nos habita em sua dimensão inconsciente. Isso quererá dizer
que não há intersubjetividade possível na realidade psíquica, a não ser que haja
um estancamento no gozo que suponha a ilusão efetiva dessa virtualidade.
O século XX foi testemunho de uma humanidade unida virtualmente atra-
vés de líderes carismáticos, impelidos ilusoriamente às soluções finais que ter-
minavam nos campos de extermínio e concentração. Por acaso se chamou
essa solução de adição virtual? Não existem os espelhos desde a origem do
vidro?
3434
Daniel Paola
A virtualidade dos dias de hoje parece ter excluído os líderes. Ao menos,
essa adição virtual aos jogos e à internet não propõe campo de concentração,
além do que a comodidade da própria casa – ou do ciberespaço, menos perigo-
so, aliás, que o paradigma das câmaras de gás – oferece. Com isso, pretendo
propor que virtualidade sempre houve, ainda que agora, através da internet, a
liderança tenha se deslocado para a primazia do objeto instaurado pela ciência,
que já faz muitos sonharem com todo tipo de robôs.
No filme Sleeper4 , de Woody Allen, do ano 1968, o protagonista é desper-
tado em um futuro longínquo, pleno de uma vida robotizada, após a
crioconservação de seu corpo. Quando lhe explicam a quantidade de feitos que
os robôs serventes realizam, o sleeper pergunta se se poderia ter sexo com as
mulheres robôs, esfregando as mãos com a intensidade própria de um festim
auto-erótico. O mundo virtual dos computadores encerra uma variável do auto-
erotismo, sempre em busca da originalidade que sustente a diferença com as
gerações que o precederam.
A adição virtual, então, não é mais que a reedição de um laço intersubjetivo
respondendo como um Um virtual à univocidade do líder, descrito como ideal de
Eu por Freud ([1921] 1981), em Psicologia das massas. A diferença para com o
objeto da ciência, objeto positivo, gadget, como escreveu Lacan em A terceira
([1974] 1985),é que esse objeto não pode existir, se concebemos a existência
do fantasma senão como um efeito do lado do sujeito, ou seja, como um objeto
ainda não negativizado.
A direção da cura poderia então orientar-se com a abstinência relativa-
mente ao uso do jogo virtual, tomando em conta a coagulação de um instante
virtual que encerra o sujeito frente à fascinação do ideal de Eu que suporta uma
primeira ilusão intersubjetiva, que pouco a pouco deverá ser destituída para dar
lugar ao sintoma. Se é que existe a chance de sua produção.
O jogo e o sintoma
Qual é a demanda que um sujeito capturado pelo jogo virtual encerra? Em
princípio se desconhece. Para cada um haverá alguma demanda, que poderá
ser formulada no curso de uma análise. E os sintomas que se gerarem através
de seu encontro serão variados, de acordo com as identificações edípicas que
poderão se desenvolver.
4 O Dorminhoco, na versão lançada no Brasil (N.T.).
Adolescência virtual
35
Mas pode-se apreciar, se existe a possibilidade de jogar e o psicanalista
não é vencido pelo preconceito, um efeito interessante ligado ao sintoma. Cada
dificuldade, cada obstáculo no jogo, que é preciso dominar com a insistência de
um proceder, refere-se a uma superação de quem joga ligada à obtenção de
uma satisfação, tal como o sentido alimenta o sintoma no discurso. Porém,
sucede que de tanto jogar se consegue um efeito: com a persistência, desapa-
rece a obtenção de satisfação, porque se consegue superar cada um dos obs-
táculos.
Mais além de que o jogo possa mudar, chega um momento em que, à
diferença daquele que se faz por dinheiro, a satisfação desaparece e surge uma
espécie de impotência frente ao tempo perdido. Ou seja, aquele que esgota seu
gozo na incorporação da satisfação se encontra apenas com o real, que produz
aversão de maneira equivalente a como o sintoma se impõe no discurso: con-
creto e com a necessidade de ir contra ele.
Os personagens fantásticos que são criados no jogo, por outro lado, não
são mais que os mesmos que a fantasia desenvolve detrás dos líderes de mas-
sas, até que se perdem na irrealidade que a virtualidade propõe frente à vida.
Não haverá de se esperar senão até que se esgote o efeito de uma satisfação
que, cedo ou tarde, fracassa; melhor se aquele que joga pode analisar o porquê
de sua exagerada dependência ao líder que seu personagem fantástico encerra.
Passar da irrealidade virtual intersubjetiva a aceitar que o intersubjetivo não
existe nos fatos reais faz quem joga passar por um esboço de sua libido objetal.
Nada mais nem nada menos que o pulsional escópico é o que se detém no jogo
virtual, já que se crê ver tudo para superar os obstáculos e não se pensa no tempo
que passa e no corpo que envelhece. É um escotoma que não é visto porque o
jogo tem o próprio limite de sua finitude quando se conhecem todos os segredos.
Haverá de se conseguir sair dos computadores, se é que podemos espe-
rar algo de um futuro sem campo de concentração, mesmo que esse campo
seja cada vez menos perigoso para a vida, já que, como jogo, não teria por que
matar alguém, salvo alguma exceção que pretenda instaurar um recorde de
permanência.
Há fim
Definir o termo adolescência virtual traz em segunda instância outro pro-
blema. Não creio ser prudente definir adolescência ligada exatamente ao crono-
lógico, já que existem sujeitos que se comportam toda a vida como tais, crendo
que efetivamente há iniciação eficaz no relativo ao sexual que os aparta dessa
etapa. Assim como não por ter a primeira relação sexual há algum início, tampouco
por ter um suposto saber sobre o conhecimento do sexual se chega a algum
porto da maturidade.
3636
Daniel Paola
Por que não há iniciação sexual? A própria experiência sexual demonstra
que não é por saber que existe a eficácia. Que um indivíduo atravesse a primeira
relação sexual não é garantia de nenhuma iniciação, assim como não assegura
nenhuma eficácia de função na próxima. De qualquer forma, atravessar esse
momento de início, fato que geralmente transcorre na adolescência, não é igual
a não fazê-lo, já que justamente ali se põe à prova uma inscrição irredutível do
sujeito; me refiro ao recalque primordial, que faz de suporte para tolerar a falta
perpétua de garantia quanto à função.
É no seminário Os nomes do Pai que Lacan desdobra esse ensino. Que
não haja iniciação quer dizer que não há mais que um véu de sentido para o
sujeito. Não se poderia então despertar de maneira alguma depois de uma inici-
ação, porque não há possibilidade de fazer disso uma inscrição. Haveria portan-
to um registro onde é possível supor a falta de inscrição: esse registro é o real.
Não há iniciação no real, quer dizer que todo sujeito deverá suportar a
consequência da diferença entre o imaginário e o sentido que nele é imaginado.
Essa consequência é a ineficácia de todo sujeito para estabelecer uma inscri-
ção de início. Portanto, dizer que não há iniciação é o mesmo que dizer que não
há relação sexual, sem implicar, além disso, que a iniciação estaria ligada ao
sexual. Por esse motivo, nada do virtual fará inscrição, e nenhuma adição tem a
eficácia de alguma iniciação. O que, sim, se inicia é o discurso do inconsciente,
no preciso momento em que se abandona a crença de algum começo.
Nesse sentido, Freud teria sido, segundo Lacan, um verdadeiro incauto
do real, já que nunca se valeu do estabelecimento de uma iniciação mas, pelo
contrário, diria de minha parte, de uma retroação inconsciente para demonstrar
o retorno do recalcado. E há de se pensar também que essa retroação impõe ao
ser falante a convicção de que há fim, mesmo que não haja início. Poderá haver
um momento de concluir se se compreende que só há instante de ver, e que o
escópico está sempre esburacado de escotoma.
O que não funciona
Quando insisto em sustentar que a adolescência poderia ser um tempo
que dura toda a vida não estou me referindo a uma vulgar configuração da ima-
gem que o indivíduo porta, seja em hábitos, vestimenta, música preferida ou
inclusive em condutas sexuais. Aquilo que liga o ser falante à adolescência se
encontra relacionado à crença falsa de alcançar uma iniciação de algum tipo
que seja garantia eficiente de função, seja do intersubjetivo, do sexual ou do
próprio inconsciente.
A adolescência é essa crença própria de toda mentalidade pela qual trans-
corre cada ser falante e que evidentemente poderia concluir-se em vida, se se
tolera a inexistência dessa garantia que recai sobre a função. A mentalidade é
Adolescência virtual
37
um espaço extensamente desenvolvido por Lacan nos últimos seminários, do
qual se depreendem algumas considerações. Já não será o mesmo pensar o
conceito de inconsciente se não se alude ao sentimental do ser falante, enquan-
to o amor e o ódio, como odioamoramento, constituem o obstáculo próprio, ao
qual se aferra todo sujeito, para não topar com a essência da significação:
existe o que não funciona. E o que não funciona existe no jogo virtual também,
para dar esboço a essa mentalidade, quando o obstáculo desaparece e já não
se pode acrescentar mais satisfação.
A pregnância que o registro imaginário adquire é de tal magnitude que a
invenção da psicanálise desenvolvida por Freud nos situa, com respeito ao lap-
so, como paradigma do inconsciente, de uma maneira positiva. E foi assim que,
mediante o lapso, muitos psicanalistas acreditaram poder chegar a alguma quin-
tessência, porque a primeira versão, como cabia, demostrava um descobrimen-
to sem falha. O jogo virtual também é um lapso, só que investido do intersubjetivo:
ou não foi por ali que Jung desenvolveu sua teoria?
Em compensação, uma releitura de Freud em virtude da extensa contri-
buição de Lacan não deixa entrever nenhuma euforia, seja ela genital ou a
provocada por um atravessamento fantasmático. Pelo contrário, aquilo que
universaliza a existência do inconsciente é a própria falha com seu fundo

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