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IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Copyright - © 2013 Ministério do Meio Ambiente. Todos os direitos reservados. É proibido qualquer tipo de reprodução total ou parcial desta publicação, sem autorização formal e por escrito do Ministério do Meio Ambiente. Os produtos eventualmente consultados ou citados nesta publicação são de direitos reservados de seus respectivos autores. Apesar de todas as precauções e revisões, a editora não se responsabiliza por eventuais erros de impressão, erros ou omissões por parte do autor, ou por quaisquer danos financeiros, administrativos ou comerciais, resultantes do uso incorreto das informações contidas nesta publicação. Sumário 1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................... 4 1.1. Glossário ..................................................................................................................................................... 5 2. PARA COMEÇAR: ONDE ESTÁ A DESIGUALDADE E QUAL A RELAÇÃO ENTRE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ................................................................................................. 7 2.1. Mulheres e homens: distintos papéis, diferentes realidades ........................................................................ 7 2.1.1. Desigualdade no âmbito da unidade familiar ............................................................................................. 12 2.1.2. Desigualdade no mercado de trabalho ....................................................................................................... 20 2.1.3. Desigualdade nos espaços de poder e decisão ........................................................................................... 31 2.1.4. Desigualdade nas ciências e tecnologias .................................................................................................... 38 2.2. Qual a relação entre igualdade de gênero e desenvolvimento sustentável? ............................................... 44 2.2.1. Como as mulheres são afetadas por problemas sociais, econômicos e ambientais .................................. 51 2.3. O que a sociedade perde com a desigualdade de gênero e o que ganha com a igualdade? .......................... 67 3. EM BUSCA DE UMA MUDANÇA DE PARADIGMA .................................................................... 77 3.1. A luta dos movimentos sociais e feministas ............................................................................................... 77 3.2. Empoderamento da mulher e o papel do homem ...................................................................................... 94 3.3. Valores femininos para um mundo mais sustentável ............................................................................... 101 4. TRANSVERSALIZAÇÃO DA TEMÁTICA DE GÊNERO ............................................................ 111 4.1. Transversalidade de gênero nas políticas públicas .................................................................................... 111 4.2. A política de gênero no Brasil .................................................................................................................. 116 4.3. A importância da transversalização das políticas ...................................................................................... 124 4.4. De que forma o gestor público pode efetuar a internalização das questões de gêneros na elaboração de políticas, programas e projetos ............................................................................................................................ 128 4.5. Exemplos concretos de políticas que contemplem a variável de gênero ................................................... 136 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................... 144 IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 4 1. INTRODUÇÃO Este material contém os assuntos tratados no curso Igualdade de gênero e desenvolvimento sustentável e pode ser utilizado como material de consulta e complemento. Este curso foi desenvolvido devido ao fato de os gestores públicos não estarem sensibilizados quanto à temática do gênero, não conseguirem perceber a relação entre desigualdade de gênero e problemas ambientais, econômicos e sociais, e, portanto, não elaborarem as políticas públicas inserindo a variável de gênero. A expectativa para este curso é, então, que esses gestores sejam sensibilizados e capacitados para lidar com essas questões. Segundo o MMA, é interessante desenvolver este curso: Porque a temática de gênero é transversal e aqueles que não atuam diretamente com esse assunto desconhecem sua importância e como inseri-lo no seu cotidiano. Conhecendo e internalizando a problemática de gênero nas suas instituições, os gestores podem contribuir para o combate à desigualdade, que afeta o desenvolvimento. Objetivo: O objetivo geral deste curso é sensibilizar e capacitar os gestores públicos de todas as áreas sobre a problemática da desigualdade de gênero e a importância da transversalização dos temas “gênero” e “desenvolvimento sustentável”. Já os objetivos específicos deste curso são: Fornecer informações sobre a temática, de modo a reduzir o desconhecimento. Sensibilizar os gestores quanto à temática, de forma a reduzir o desinteresse (e até o preconceito). Capacitar os gestores para que eles sejam aptos a elaborar políticas com um olhar mais voltado para a questão de gênero. O público-alvo: O público-alvo deste curso constitui-se por gestores públicos de todas as áreas, federais, estaduais e/ou municipais com nível educacional superior, de ambos os sexos e de todas as faixas etárias. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 5 O público-alvo deve: Conhecer os impactos negativos da desigualdade de gênero. Entender a relação entre igualdade de gênero e desenvolvimento sustentável. Identificar a importância de se trabalhar pela igualdade de gênero. Aprender como elaborar políticas públicas transversais nesses temas. 1.1. GLOS SÁ RIO Neste material existem alguns termos técnicos bastante específicos aos temas tratados. Pensando nisso, apresentamos um breve glossário contendo esses conceitos. Em caso de dúvidas, retorne ao glossário e consulte o termo desconhecido: CNDM: Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. CNPM: Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Conhecimento tradicional: consiste na informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético. Desenvolvimento sustentável: aquele capaz de suprir as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade de atender as necessidades das futuras gerações. Empoderamento: tradução não dicionarizada do termo inglês empowerment, denota o processo pelo qual as mulheres ganham poder interior para expressar e defender seus direitos, ampliar sua autoconfiança, identidade própria e autoestima e, sobretudo, exercer controle sobre suas relações pessoas e sociais. Equidade: disposição para se reconhecer imparcialmente o direito de cada um; equivalência ou igualdade. Característica de algo ou alguém que revela senso de justiça, imparcialidade, isenção, neutralidade etc. Família monoparental: é a definida na Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 226, parágrafo quarto,como sendo "a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes". As famílias formadas por um dos pais e seus descendentes organizam-se tanto pela vontade de assumir a paternidade ou IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 6 a maternidade sem a participação do outro genitor, quanto por circunstâncias alheias à vontade humana, entre as quais a morte e o abandono. Família reconstituída: é composta por um casal, no qual um dos membros, ou ambos, tem filhos do casamento anterior. Gênero: construção cultural das características masculinas e femininas. Heteronormatividade: padrão de sexualidade que regula o modo como as sociedades ocidentais estão organizadas, significado que exerce o poder de ratificar, na cultura, a compreensão de que a norma e o normal são as relações existentes entre pessoas de sexos diferentes. Hiato: no sentido figurado, um hiato representa uma falha, uma lacuna. Insumo: Cada um dos elementos (matéria-prima, equipamentos, capital, horas de trabalho etc.) necessários para produzir mercadorias ou serviços. Intergovernalidade: pacto federativo (acordo firmado entra a união e os estados federados. Este acordo estabelece as funções, direitos e deveres da união e dos estados). Intersetorialidade: inclusão da sociedade civil organizada, por meio da participação social. Intragovernabilidade: órgãos setoriais e centrais do Governo federal Laicidade: ideologia, doutrina ou sistema que se baseia no preceito básico de que o poder político e/ou administrativo, geralmente de um país, deva ser exercido pelo Estado e não por igrejas ou ideais religiosos. Morbidade: Número que se refere aos doentes atingidos por determinada doença; incidência de uma doença. OCDE: Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico ODM: Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Paradigma: que pode ser utilizado como padrão (a ser seguido); modelo, exemplo. PEA: População Economicamente Ativa. PNPM: Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Relações patriarcais: fazem com que a família seja compreendida como um todo homogêneo e o homem visto como representante dos interesses do conjunto e detentor do poder de decisão. Somatização: Sensação de dores e sintomas físicos provenientes de distúrbios psíquicos. SPM: Secretaria de Políticas para Mulheres. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 7 Transversalidade da política de gênero: consiste na reorganização de todas as políticas públicas dos governos, a fim de incorporar o recorte de gênero para além da instituição responsável pela coordenação de políticas para as mulheres. 2. PARA COMEÇAR: ONDE ESTÁ A DESIGUALDADE E QUAL A RELAÇÃO ENTRE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 2.1. MULHE R ES E HOMEN S : D IST INTOS PAPÉIS , D IFER ENTE S REALID A DES Gênero e sexo são a mesma coisa? A diferença de sexo torna homens e mulheres desiguais? As diferenças de gênero são naturais (definidas pela biologia) ou culturais (construídas socialmente)? Pense nas mulheres que você conhece (mãe, esposa, filha, colega de trabalho etc.), você consegue perceber se existem diferenças entre elas e os homens, no que tange a liberdade, direitos e oportunidades? O primeiro passo para que você compreenda e interiorize o conceito de Igualdade de Gênero consiste desde logo em efetuar uma distinção entre Sexo e Gênero. Sexo: Diferenças biológicas e fisiológicas entre homens e mulheres. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 8 Gênero: Construção cultural das características masculinas e femininas. O conceito de Sexo pertence ao domínio da biologia e traduz o conjunto de características biológicas e fisiológicas que distinguem os homens e as mulheres. Por oposição, o conceito de Gênero é um conceito social que remete às diferenças existentes entre homens e mulheres, diferenças essas não de caráter IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 9 biológico, mas resultantes do processo de socialização. O conceito de gênero descreve assim o conjunto de qualidades e de comportamentos que as sociedades esperam dos homens e das mulheres, formando a sua identidade social. Uma vez que a abordagem utilizada neste curso se prende ao conceito social, e mais concretamente com as relações que se estabelecem entre os homens e as mulheres, sobre as quais se pretende efetivar a mudança, convém clarificar que essas relações de gênero se têm caracterizado por: Serem diferentes de cultura para cultura, de religião para religião, ou de uma sociedade para outra; Serem influenciadas por diferentes fatores, tais como: a etnia, a classe social, a condição e a situação das mulheres; Evoluírem no tempo; Serem dinâmicas e estarem no centro das relações sociais; Distinguirem-se pela sua desigualdade, havendo uma hierarquização dos gêneros, na qual os homens têm um lugar privilegiado em relação às mulheres. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 10 Pronto, agora que você já identificou a diferença entre sexo e gênero, pode estar se perguntando: Mas qual é importância de se falar nisso atualmente? Por que é importante discutir a igualdade de gênero? Primeiro, deve-se considerar que a igualdade entre mulheres e homens, ou igualdade de gênero, significa igualdade de direitos e liberdades para a igualdade de oportunidades de participação, reconhecimento e valorização de mulheres e de homens, em todos os domínios da sociedade, político, econômico, laboral, pessoal e familiar. Desde a segunda metade do século XX assistiu-se a um conjunto de importantes transformações nas sociedades industrializadas. Essas transformações tiveram repercussões em diversos níveis, afetando o comportamento de homens e mulheres nas esferas profissional e familiar. Assim, cada vez mais se observam transformações profundas no “modelo familiar”, tradicionalmente baseado em uma construção social de papéis de gênero em função do sexo, conduzindo a uma concepção do masculino e do feminino diferenciada e hierarquizada em termos de importância, segundo a qual se atribuíam ao homem papéis e responsabilidades no domínio público, de sustento, e de orientação para resultados, de competitividade e força, e à mulher papéis no domínio privado, de cuidado da casa e da família, com base em características mais emocionais e relacionais. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 11 De fato, a esse conceito de “modelo familiar” comumente aceito, foram acrescentadas novas variáveis e realidades, fruto das várias modificações nas estruturas familiares, que nos permitem hoje em dia reconhecer a existência não de um, mas de vários “modelos familiares”, (famílias monoparentais, famílias reconstruídas, famílias clássicas de dupla profissão) em que a tônica dominante passa pelo fato de ambos os elementos do casal terem uma atitude ativa face ao trabalho, passando as mulheres a assumirem uma postura mais participativa na esfera pública. Ora esses novos “modelos familiares” implicam necessariamente um ajustamento na organização da vida familiar e, sobretudo, nas relações sociais de gênero, questão que nos remete para a importância da inclusão do princípio da igualdade de gênero em todas as esferas da sociedade. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 12 Falar em igualdade de gênero atualmente torna-se, assim, fundamental, ainda mais se nos detivermosno aspecto de que a crescente participação das mulheres no mercado de trabalho não foi acompanhada por um crescimento correspondente da participação dos homens na vida familiar. Um dos motivos pelos quais a desigualdade de gênero é tão gritante na nossa civilização, deve-se às relações patriarcais que fazem com que a família seja compreendida como um todo homogêneo e o homem visto como representante dos interesses do conjunto e detentor do poder de decisão. 2.1.1. Desigualdade no âmbito da unidade familiar Gestar, cuidar dos/as filhos/as e da casa fazem parte do destino biológico das mulheres? Se todos usufruem do bem-estar e conforto do lar, por que é responsabilidade apenas da mulher cuidar desse ambiente? Como é a rotina da sua família? Os homens ajudam nas tarefas domésticas e nos cuidados com os filhos após o trabalho? Quais indicadores podem contribuir para que o questionamento à divisão sexual do trabalho doméstico saia do âmbito privado? IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 13 As relações patriarcais existentes na família se ancoram e são constitutivas de uma visão da economia e do trabalho restritos ao âmbito de mercado. Essa visão se apoia no discurso em que as mulheres são destinadas à esfera privada, como parte de um destino biológico vinculado à maternidade e reforça o não reconhecimento da produção doméstica e do papel econômico do trabalho das mulheres na família. Para as mulheres a realização desses trabalhos coloca-se como parte de sua identidade primária, uma vez que a maternidade é considerada seu lugar principal. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 14 Essa identidade é introjetada de forma profunda pelas mulheres e sua vivência está marcada pela avaliação das funções maternas e valores associados: a docilidade, fragilidade, compreensão, cuidado, afeto. Na verdade esse discurso da boa mãe é uma construção ideológica para que as mulheres continuem fazendo o trabalho doméstico. Essa realidade que é apresentada como fruto da natureza, na verdade é estruturada por uma relação social específica entre homens e mulheres, que tem como base material, uma forma de divisão do trabalho, a chamada divisão sexual do trabalho. Segundo Daniele Kergoat, a divisão sexual do trabalho se organiza a partir de dois princípios: da separação (trabalho de homem e trabalho de mulher) e hierarquização (o trabalho dos homens é mais valorizado). Disso, decorrem práticas sociais distintas, que atravessam todo o campo social. Ou seja, uma sociedade sexuada, estruturada transversalmente pelas relações de gênero. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 15 Dentro de casa, quase sempre as mulheres seguem sendo consideradas como as únicas responsáveis pelas inúmeras tarefas da casa, dos cuidados com as crianças e da família, enfim responsáveis pelo bem-estar. O trabalho doméstico naturaliza a divisão do público e do privado e estabelece um lugar para cada um e cada uma na sociedade. Economistas e outros cientistas sociais têm avançado na análise do trabalho reprodutivo e na tentativa de estimar seu valor, uma vez que ele se encontra fora da esfera produtiva mercantil. Mas para que inicie a difusão do valor intrínseco do trabalho doméstico é necessário estimar a magnitude deste em termo quantitativo, assim será possível obter dados suscetíveis de serem comparados com outros agregados nacionais. Uma análise dos domicílios mostra uma distribuição desigual do trabalho dentro da família – as mulheres investem mais tempo em atividades não remuneradas que os homens. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 16 O acesso a esse tipo de informação abre a possibilidade de confrontar o uso do tempo ao menos em duas dimensões: para a reprodução econômica e para a reprodução social. O tempo para reprodução econômica envolve aquele destinado ao trabalho remunerado e o gasto com deslocamento para sua realização. O tempo para reprodução familiar e social incorpora, basicamente, as atividades de organização domiciliar, de lazer e de sono. Ambos os tempos são recorrentemente transformados pelas mudanças econômicas, sociais e culturais. É importante destacar que a regulação do uso do tempo depende, na sociedade moderna, da presença das instituições políticas e culturais. Elas regulam sua duração e fazem a articulação entre os dois tempos. Não há naturalidade na alocação de seu uso. Portanto, as pessoas realizam a alocação de seu tempo sob constrangimento social, tendo pouca ou relativa autonomia de decisão sobre esse processo. Como as mulheres são responsáveis pelo trabalho doméstico, existe um uso do tempo profundamente desigual entre homens e mulheres. Apesar da tendência de uma menor jornada de trabalho de caráter econômico exercida pelas mulheres fora de casa, elas possuem uma jornada total superior à dos homens, uma vez que as mulheres além de possuírem trabalhos remunerados, também respondem por uma jornada de trabalho em afazeres domésticos, em média, três vezes superior àquela realizada pelos homens. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 17 No gráfico abaixo, verifica-se que, no total, as mulheres dedicavam 25,3 horas semanais aos afazeres domésticos, contra 9,9 horas dos homens. A análise por grupos etários mostra que o tempo dedicado aos afazeres domésticos cresce à medida que aumenta a idade para ambos os sexos, demonstrando a dinâmica do ciclo de vida do grupo familiar. Os/As filhos/as que moram com pais e mães dedicam menos tempo aos afazeres domésticos por cada sexo, demostrando que na esfera do cuidado reside o núcleo da desigualdade de gênero. O trabalho doméstico tem ocupado um lugar central na reflexão de pesquisadoras feministas (Delphy Kergoat, Hirata, Araújo), pois ele encerra uma das contradições profundas das sociedades, que remuneram o trabalho realizado na IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 18 esfera pública, mas ignoram atividades voltadas para a manutenção do espaço doméstico – cruciais para manter a vida individual e coletiva. Só por meio da análise da relação entre atividades domésticas e atividades remuneradas é que se pode compreender de forma marcante as desigualdades das relações de trabalho entre e para as mulheres. Há dupla concepção para o mesmo trabalho doméstico: a) atividade não remunerada realizada por donas de casa; b) prestação de serviços nos lares de outras famílias. A primeira é qualificada como algo voluntário, gratuito, oriundo da dedicação aos familiares, enquanto a segunda é uma atividade profissional desempenhada por grande parte das mulheres brasileiras, sobretudo pelas mulheres negras. Como uma prestação de serviços, o trabalho doméstico remunerado enseja um vínculo de trabalho, podendo ser formalizado através da carteira assinada e de certos (e geralmente reduzidos) benefícios. O trabalho das mulheres no âmbito de suas próprias famílias não é tratado como um produto, uma vez que não se converte em renda monetária. Há, assim, uma desvalorização do autoconsumo. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 19 De modo geral, o trabalho doméstico (remunerado ou não) não é percebido como parte da organização do tempo social, sendo concebido como parte das atribuições femininas, uma extensão de sua natureza destinada a servir. Esta percepção se contrapõe àquela acerca do tempo despendido em atividadeslaborais realizadas fora da esfera da casa, visto como diacrônico e cumulativo. O trabalho doméstico é tratado como uma categoria à parte dos demais empregos e, em razão de seu estatuto profissional especial, permanece como uma grande dimensão estruturante das desigualdades de gênero e raciais no País. As formas com que as pessoas lidam com os desafios do trabalho e da vida familiar são marcadas pelas desigualdades de gênero. As desvantagens vivenciadas pela maioria das mulheres acabam afetando a renda, o compromisso, a estabilidade nos postos de trabalho e a qualidade de vida de todos os membros da família. A despeito destas desvantagens, as mulheres estão se inserindo progressivamente nas atividades produtivas. Em pesquisa realizada em 2009 por Bruschini e Ricoldi, concluiu-se que as trabalhadoras mais jovens que são chefes de família e têm filhos/as muito pequenos/as são as mais sobrecarregadas. As políticas públicas mais adequadas para este segmento deveriam priorizar as creches e as jornadas de trabalho mais flexíveis para compatibilizar a atividade profissional e o cuidado familiar; já as trabalhadoras com mais idade, cujos/as filhos/as são maiores, descrevem um cotidiano menos pesado. Para ambas existe a preocupação com a violência, o uso de drogas, o lazer e as atividades físicas. As trabalhadoras anseiam por políticas públicas que garantam IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 20 escola para os/as filhos/as, segurança, transporte e espaços públicos de lazer para a toda a família. A conciliação entre vida familiar e atividade laboral constitui um dos maiores desafios de nosso tempo. Buscar fórmulas de conciliação entre a atividade laboral e as tarefas de cuidado não é apenas assunto de negociação entre homens e mulheres, mas também entre o Estado, o mercado e a sociedade em geral. 2.1.2. Desigualdade no mercado de trabalho O mercado de trabalho fornece as mesmas oportunidades para homens e para mulheres? O desemprego atinge homens e mulheres de forma distinta? Em sua cidade, quais as possibilidades de “bicos” ou trabalhos informais para homens e mulheres? Há uma segregação de gênero para os “bicos” ou trabalhos informais possíveis? De que forma e por quais motivos? Há aqueles e aquelas que rompem esses limites? Como essas pessoas são vistas? Grandes transformações sociais ocorridas no Brasil nas últimas décadas, como o processo de urbanização e o crescimento do setor terciário da economia, bem como a redução da fecundidade, as mudanças na dinâmica conjugal e familiar e a elevação dos níveis médios de escolaridade tornaram o sexo feminino uma força de trabalho indispensável para o desenvolvimento do País. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 21 Alguns estudiosos consideram que o aumento da participação feminina no mercado de trabalho ocorreu em função da necessidade de uma complementação da renda familiar por parte das mulheres (cônjuges ou filhas), em uma situação de redução do rendimento per capita domiciliar. Contudo, esta argumentação não considera que as mulheres continuam se inserindo no mercado de trabalho nos momentos de aumento da renda domiciliar e são, principalmente aquelas com maior nível educacional (e com salários acima do salário mínimo), as que possuem as maiores taxas de atividade, inclusive as que moram sozinhas. Embora as mulheres brasileiras predominem nos segmentos mais escolarizados da PEA (População Economicamente Ativa), os homens seguem em maioria nos segmentos com melhor remuneração. As mulheres ocupadas predominam nas faixas de 0 a ½ salário mínimo (SM) e de ½ a 1 salário mínimo, enquanto os homens ocupados predominam nas faixas acima de um SM. Observe o gráfico a seguir: IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 22 O fato de as mulheres ganharem menos do que os homens, mesmo trabalhando a mesma quantidade de horas, possuindo as mesmas qualificações e muitas vezes tendo maiores níveis educacionais, reflete uma persistente desigualdade de gênero. Várias outras questões estão envolvidas neste tema, tais como a relação entre trabalho doméstico e trabalho produtivo e a do uso do tempo. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 23 As diferenças de renda, do ponto de vista de gênero, são reforçadas com a transversalidade das desigualdades no âmbito regional e local de domicílio. Homens e mulheres de todas as regiões tiveram aumento do rendimento médio entre 2001 e 2007. As mulheres do Nordeste apresentaram os menores rendimentos do País, sendo R$ 280 em 2001 e de R$ 485 em 2007. Em seguida, aparecem empatados os homens do Nordeste e as mulheres do Norte. Em um grupo intermediário estão as mulheres do Sul, do Sudeste e do Centro-Oeste e os homens do Norte. No topo do gráfico, indicando aqueles com maiores rendimentos, encontram-se os homens do Sul, do Sudeste e do Centro-Oeste. Nota-se que os maiores ganhos ocorridos entre 2001 e 2007 ficaram com homens e mulheres do Centro-Oeste, provavelmente refletindo o peso dos maiores salários do Distrito Federal. Estes dados mostram como são complexas as interações entre as desigualdades de gênero e as desigualdades regionais. Se, de modo geral, o sexo feminino ganha menos que o masculino, as mulheres do Sudeste e do Centro-Oeste, por exemplo, tiveram rendimentos maiores do que os homens do Norte e do Nordeste do País. O cenário é ainda mais complexo quando incluímos as desigualdades raciais. Segundo estudo realizado por Paixão e Carvano em 2006, o rendimento médio mensal IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 24 do trabalho principal, em todo o País, era de R$ 1.016,00 para os homens brancos, R$ 586,26 para os homens negros (pretos e pardos), R$ 744,51 para as mulheres brancas e R$ 388,18 para as negras. Fica evidente que as diferenças de rendimento por cor/raça variam muito. Embora os dados demonstrem que de 1995 a 2002 estas desigualdades diminuíram paulatinamente em todo o País, os diferenciais de rendimento por cor e gênero ainda são muito altos; servem de alerta para que não percamos de vista a grande desigualdade que as cifras evidenciam e a necessidade de políticas públicas voltadas para a equidade de gênero e raça. No Brasil, décadas passadas, o mercado de trabalho era um espaço de hegemonia masculina. Até a metade do século XX, as mulheres não tinham o horizonte da carreira profissional ou a participação na vida pública como metas preponderantes, não tendo participação significativa na população economicamente ativa. Hoje, a presença das mulheres no mercado de trabalho é expressiva, o que contribui para desvelar as desigualdades e as discriminações se comparadas aos homens, seja no espaço público, seja no espaço privado. O Brasil apresentou um grande crescimento da População Economicamente Ativa (PEA) nas últimas seis décadas, registrando um aumento de 5,8 vezes. A PEA masculina passou de 14,6 milhões para 56,1 milhões (incremento de 3,8 vezes), enquanto a feminina teve uma elevação extraordinária, passando de 2,5 milhões, em 1950, para 43,4 milhões, em 2008 (crescimento de 17,2 vezes). O gráfico a seguir mostra o comportamento das taxas de atividade para homens e mulheres, entre 1950 e 2007. Verificam-se a redução das taxas masculinas e o aumento das femininas no período. A linha do gráfico mostra a tendência de IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 25 decréscimo do hiato de gênero, já que existe um processo de convergência no nível deinserção de ambos os sexos na população economicamente ativa. De acordo com a pesquisa feita pela Catho Online em 2011, de forma geral, no Brasil, as mulheres não chegam a ocupar nem um terço dos cargos de presidentes nas organizações de todos os portes, com uma presença de 22,91%. A boa notícia é que a presença delas aumentou, já que era de 15,14% em 2001. (Fonte: http://www.negocioglobal.com.br/pt/economia/mais-mulheres-ocupando-cargos-de-chefia-nas- empresas) Chamamos a atenção para o fato de um contingente expressivo de mulheres estar representado pelas principais provedoras de suas famílias, em contextos nos quais os maridos perderam seus postos no mercado formal de trabalho e, ainda assim, não serem reconhecidas. É recente na legislação civil o reconhecimento das mulheres como “pessoa de referência da família”, designação antes reservada somente aos homens, vistos como “o chefe da família”. Desde que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) incorporou o quesito “pessoa de referência” nos censos, foi possível demonstrar a crescente participação das mulheres no provimento da família; atualmente esse percentual é de cerca de 30%. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 26 A População Economicamente Ativa (PEA) feminina tem crescido mais rapidamente do que a masculina, mas o desemprego de mulheres se mantém mais elevado do que o de homens desde a década de 1980. A oferta de trabalho feminino aumenta em ritmo superior ao crescimento da demanda. Entre as explicações para o maior desemprego feminino, três merecem destaque: Desemprego feminino: Explicação Fator 1. Um dos fatores que contribuem para o desequilíbrio entre oferta e demanda é a segregação ocupacional, que torna o leque de profissões femininas mais estreito que o masculino. Assim, ao oferecer mais opções para os homens, o mercado atingiria um equilíbrio em um nível mais baixo de desemprego masculino, enquanto a disputa pelas poucas ofertas de emprego feminino torna o desemprego das mulheres um fenômeno mais frequente; Fator 2. A divisão sexual do trabalho, que incumbe preferencialmente as mulheres das tarefas domésticas e do cuidado com os/as filhos/as e dos/das idosos/as no domicílio, torna mais difícil compatibilizar o emprego fora do local de residência com os afazeres domésticos. Enquanto o homem pode optar por um emprego que o afaste a maior parte do dia (ou da semana) da rotina familiar, a mulher precisa, em geral, conciliar trabalho e família, e suas opções são mais limitadas; Fator 3. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 27 As mulheres são comumente mais vulneráveis à falta de segurança pública e no trabalho. Os padrões culturais sexistas da sociedade dificultam a entrada da mulher em algumas ocupações consideradas inseguras ou exercidas em horários incompatíveis com o cuidado familiar, por exemplo, vigia e segurança noturno. Apesar de as mulheres terem ingressado na força de trabalho em grande número em quase todo o mundo nos últimos 25 anos, esse aumento da participação não se transformou em oportunidades iguais de emprego ou em salários iguais para homens e mulheres. Homens e mulheres tendem a trabalhar em partes muito diferentes do “espaço econômico”, com pouca mudança ao longo do tempo, mesmo nos países de alta renda. Em quase todos os países, as mulheres têm mais probabilidade do que os homens de participar de atividades de baixa produtividade. Também têm mais probabilidade de trabalharem no setor de salários informais. Na agricultura, em geral, as mulheres trabalham em terrenos menores e cultivam culturas menos remunerativas. Como empresárias, elas tendem a gerenciar empresas menores e a se concentrarem nos setores menos lucrativos. E no emprego formal, elas se concentram em ocupações e setores do “sexo feminino”. Esses padrões de segregação por gênero no mercado de trabalho se transformaram com o desenvolvimento econômico, mas não desapareceram. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 28 Atualmente se observa um inicio de mudanças no que se refere à posição econômica das mulheres rurais, embora ainda seja alarmante o número de mulheres que em nosso País trabalha sem auferir renda, e nesse universo há uma porcentagem de trabalhadoras domésticas de origem rural, em particular jovens, que trabalha apenas em troca de casa e/ou comida. O percentual de participação das mulheres nas atividades para autoconsumo é bastante elevado e corresponde a 46%. Em relação ao trabalho urbano, quando conseguem empregar-se no mercado de trabalho, as mulheres concentram-se em espaços bastante diferentes daqueles ocupados pelos trabalhadores do sexo masculino. As mulheres são, em maior proporção que os homens, empregadas domésticas, trabalhadoras na produção para o próprio consumo e não-remuneradas, enquanto os homens encontram-se, proporcionalmente, mais presentes na condição de empregados (com e sem carteira assinada), conta-própria e empregador. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 29 E são as mulheres negras as que mais ocupam postos no emprego doméstico (21,4% contra 12,7% das mulheres brancas) e nas categorias que englobam a produção para autoconsumo, a construção para o próprio uso e as trabalhadoras não remuneradas (17% contra 12%). Sendo assim, o que explica essa segregação persistente por gênero no mercado de trabalho e os hiatos resultantes em termos de ganhos? As diferenças de gênero na utilização do tempo, no acesso a bens e crédito, e no tratamento por parte dos mercados e das instituições formais (incluindo estrutura jurídica e normativa) desempenham um papel importante na restrição das oportunidades das mulheres. O crescimento de renda tem certa influência na mudança desses padrões, mas não os elimina. As interações mutuamente reforçadoras entre esses diferentes fatores tornam o problema particularmente de difícil solução. Um segundo fator que aumenta a segregação no mercado de trabalho e as disparidades salariais são as diferenças em dotações físicas (incluindo o acesso a bens e crédito). Em termos de agricultura e empreendedorismo, grandes e significativos hiatos de gênero no acesso a insumos (incluindo terra e crédito) e na posse de bens estão na base do hiato de produtividade de gênero. Na verdade, as diferenças de produção para agricultores do sexo masculino e feminino desaparecem de uma só vez, quando o acesso aos insumos de produção é levado em consideração. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 30 Quão grandes são as diferenças de gênero no acesso a bens (principalmente terra), crédito e outros insumos? Uma variedade de fontes de dados sugere que são enormes. Dados para 16 países em cinco regiões em desenvolvimento indicam que as famílias chefiadas por mulheres têm menos probabilidade de possuir e de lavrar terra. Por causa de problemas como esses relacionados à titularidade da terra, embora as mulheres respondam por dois terços do trabalho no mundo, elas são donas de apenas 1% dos bens produzidos no mundo. Um terceiro motivo para a diferença de gênero no mercado de trabalho é que as falhas de mercado e as restrições institucionais também desempenham um papel importante. Os mercados de trabalho, muitas vezes, não funcionam bem para mulheres, principalmente se sua presença for limitada a alguns setores ou ocupações. Quando existem poucas mulheres empregadas, os empregadores podem manter crenças discriminatóriassobre a produtividade ou adequabilidade das mulheres como trabalhadoras – tais crenças podem persistir se não houver mecanismos implementados para corrigi-las. O acesso a informações sobre empregos e o apoio a promoções e avanços na carreira geralmente ocorrem em redes por gênero, prejudicando as mulheres que estão tentando ingressar em um campo dominado por homens (ou prejudicando do mesmo modo os homens que estão tentando ingressar em um campo dominado por mulheres, como enfermagem). E, às vezes, barreiras legais, concebidas como medidas de proteção, impedem as mulheres de ingressar em alguns setores ou ocupações. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 31 Em resumo, quer as mulheres sejam agricultoras, empresárias ou trabalhadoras, muitas caem em uma armadilha da produtividade: trabalham duro em um campo de atuação desigual com acesso desigual a insumos de produção. Essa armadilha impõe custos significativos ao bem-estar das mulheres e às oportunidades econômicas dos dias atuais, além de sérios desincentivos para investir nas mulheres de amanhã. O desenvolvimento econômico e social de um país depende do pleno emprego dos insumos produtivos disponíveis e do crescimento da produtividade dos fatores de produção. Para haver aumento do excedente social e avanço na disponibilidade per capita de bens e serviços, são necessários incorporação de progressos tecnológicos, aumento do nível de informação, inovação do conhecimento e crescimento qualitativo do capital humano, com o desenvolvimento de uma força de trabalho saudável e mais escolarizada. A inserção feminina na divisão social do trabalho é um dos elementos- chave para o desenvolvimento humano com equidade de gênero. 2.1.3. Desigualdade nos espaços de poder e decisão Se as mulheres são maioria na população, por que não o são na representação política? As mulheres votam em mulheres? Por quê? IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 32 As mulheres não gostam de política partidária? Não gostam de ocupar lugares de poder? Ou há outros motivos? Quais? Você acha que as cotas para mulheres nos partidos podem diminuir as desigualdades de representação? Que outras medidas poderiam ser adotadas? Você já parou para refletir se faria diferença para a população a presença de mais mulheres no Governo e no Congresso? Veja só que contraditório: as mulheres são maioria da população e dos votantes, mas são minoria no exercício do poder. Entre 1974 e 2006 o eleitorado brasileiro passou de cerca de 34 milhões para quase 126 milhões de eleitores. As mulheres, que eram minoria, passaram a ser maioria entre o universo das pessoas aptas a votar. Já no início do século XXI, o sexo feminino atingiu a maioria do eleitorado. Contudo, este poder majoritário do voto não chegou a transformar a representação por gênero nos diversos níveis da representação parlamentar. As mulheres brasileiras continuam sub-representadas no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais. Durante a maior parte da história do Brasil, as mulheres estiveram distantes da vida pública e tinham como destino os espaços privados e a convivência familiar. As mudanças começaram a ocorrer com o Movimento Sufragista, responsável pela IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 33 ampla mobilização para a conquista do direito das mulheres brasileiras de votarem, o que aconteceu em 1932. As sufragistas brasileiras capitaneadas pela bióloga Bertha Lutz (1894-1976) e pela engenheira Carmem Portinho (1903-2001) criaram organizações, polemizaram na imprensa, escreveram discursos e pelas de teatro. Mesmo sem direito ao voto, para chamar a atenção da sociedade, criaram o Partido Republicano Feminino. Isso em 1910. Finalmente, em 1932, o Colégio Eleitoral estendeu o voto às mulheres alfabetizadas. A primeira brasileira eleita foi a médica Carlota Pereira de Queirós (1892-1982), deputada federal por São Paulo. Foi de sua autoria o projeto para a criação de serviços sociais no País. Nesses anos, a sociedade brasileira avançou muita na questão. No Legislativo, a força da deputadas conseguiu vitórias, como a criminalização do Assédio Sexual e a Lei Maria da Penha – ferramenta para as mulheres se defenderem da violência sofrida no trabalho e dentro de casa. As senadoras, apesar de serem apenas 12,3% do total, também fazem barulho. (Bertha Lutz, em 27 de abril de 1925 / Reprodução) (Álbum da Família (presente na 4ª capa do livro de Ana Luiza Nobre, Carmen Portinho, o moderno em construção, 1999) (Carlota Pereira de Queiroz: primeira deputada eleita no Brasil, em 1934 / Reprodução) IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 34 Os avanços na representação política das mulheres brasileiras têm sido pequeno e não têm acompanhado os avanços ocorridos no resto do mundo. O percentual de mulheres no Parlamento no Brasil é menor do que em outras regiões com nível de desenvolvimento mais baixo. Na América Latina e no Caribe, o Brasil estava em um dos últimos lugares no ranking da participação feminina nos Parlamentos. Em 2009, o Brasil só possuía taxas IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 35 de participação maior do que o Haiti e a Colômbia, perdendo para todos os outros países, em uma lista de 29 Parlamentos. Será que um Parlamento mais “feminino” não significaria também proposições de projetos de lei de natureza diferente das que temos hoje? Um dos motivos que explicam o diferencial de participação feminina no Brasil e no resto do mundo é a forma como a política de cotas (Lei de Cotas 9504/97, que institui 30% de cotas para candidatas mulheres) foi adotada no País, que reserva um número de vagas para as candidaturas femininas, mas não obriga os partidos a preencherem estas vagas. Devem se considerar os avanços previstos com as Novas Regras Eleitorais aprovadas no Congresso Nacional, em setembro de 2009, válidas para as eleições de 2010. Além de garantir uma parcela do tempo de propaganda e um percentual do fundo partidário para as mulheres, a lei inova no sentido de fazer as cotas funcionarem como um piso e não como um teto. É provável que o percentual de candidatas fique acima de 30%, tendendo a elevar o percentual de mulheres eleitas. Em 2009 foi acatado pela Câmara Federal um substituto que prevê uma reserva de 5% do fundo partidário para promoção de atividades de incentivo à participação política feminina, e de 10% do tempo dos partidos no rádio e na TV para as mulheres, nos anos eleitorais ou não. Anteriormente não existia percentual. Agora, se o partido não destinar o percentual para esta finalidade, no ano seguinte terá que acrescentar mais 2,5% do fundo partidário como sanção pelo não cumprimento da lei. Nas eleições majoritárias do Senado, onde não existem cotas, a primeira senadora foi eleita em 1990 e o percentual de mulheres passou de 1,2% na legislatura 1991-1999 para 12,4% na de 2007-2015. Para as administrações estaduais, a primeira governadora foi eleita no País em 1994, sendo que atualmente existem três governadoras, representando 11,1% do total das Unidades da Federação. No Poder Judiciário, a representatividade feminina nos Tribunais Superiores é também extremamente reduzida. Até 1995, nenhuma mulher ocupava cargo nas instâncias superiores. Em 1998, a participação feminina subiu para 2%; em 2001, para 8,2%; e em 2003, para 9,09%. As mulheres já são maioria entre os/as formados/as nos cursos de Direito,mas na primeira instância jurisdicional, as mulheres ocupam IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 36 30% dos postos do Supremo Tribunal Federal (STF). Até 2000, nenhuma mulher havia sido ministra do STF. Apenas em 2001 houve a indicação da ministra Ellen Grace Northfleet. Ministra Ellen Grace Northfleet No Superior Tribunal de Justiça (STJ), composto por 28 ministro, em 2004 havia quatro ministras. Já o Tribunal Superior do Trabalho (TST) tem 16 ministros e apenas uma ministra. É importante assinalar que, na primeira instância, o número de juízas do trabalho supera o de juízes. Além da baixa participação de mulheres nas altas cortes de Justiça, a representatividade feminina é nula nos Tribunais Superiores Eleitoral e Militar. O Instituto Vox Populi realizou uma pesquisa, com representatividade nacional, que mostra que o eleitorado não discrimina o sexo feminino, ao contrário, considera as mulheres mais competentes, sensíveis e honestas ao ocuparem cargos de responsabilidade pública. Assim, as desigualdades de gênero na política seriam explicadas não pela rejeição dos eleitores, mas por outros motivos, como: A persistência da cultura patriarcal que associa os homens ao espaço público e as mulheres ao espaço privado; O peso do poder econômico no processo eleitoral e o custo crescente das campanhas favorecendo as candidaturas masculinas; O pouco tempo dedicado à ação política pelas mulheres, em grande parte pela sobrecarga de responsabilidades, pelo acúmulo das tarefas domésticas e com o cuidado com as/os filhas/os e com os familiares doentes, bem como com os IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 37 cuidados dispensados às pessoas com deficiência e às idosas/os, além dos dedicados à vida laboral; As trajetórias políticas das mulheres, menos consolidadas relativamente às dos homens. Para além da presença feminina na política institucional, ou seja, nos cargos e postos da administração direta e indireta, vale lembrar que são diversas as formas de participação política, podendo-se destacar alguns mecanismos e instrumentos no âmbito do Estado, da sociedade organizada e dos partidos políticos. No caso da participação político-partidária feminina, esta é crescente ao longo dos anos e uma de suas expressões é o elevado percentual de mulheres no total de filiadas/filiados. Apesar disso, elas ainda se mantêm como minoria nas direções partidárias. Cabe ressaltar que os partidos têm um papel fundamental no sistema político brasileiro na medida em que possibilitam, com exclusividade, o acesso a cargos e mandatos eletivos. Por conseguinte, assumem responsabilidades com o equacionamento dos problemas da realidade brasileira e com a educação política das cidadãs e cidadãos. No âmbito da sociedade organizada, destacam-se os movimentos feministas e os de mulheres em sua ampla diversidade: de mulheres negras, indígenas, lésbicas, trabalhadoras rurais e domésticas, donas de casa, associações de mães, entre outros. Estes agrupamentos se sustentam em identidades para além da referência de gênero, em suas convergências com a condição social, de raça/etnia, de orientação sexual, entre outras. Outros espaços de participação das mulheres são os movimentos: ambientalista, negro, de direitos humanos, de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (travestis e transexuais), de pessoas com deficiência, de idosas, de crianças e adolescentes e de jovens. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 38 Os movimentos feministas e de mulheres têm aprofundado suas parcerias e alianças com estes movimentos sociais, gerando vínculos de solidariedade e fortalecendo a compreensão de que a construção de uma sociedade justa e humana passa pela superação de todos os tipos de discriminação e desigualdade. Por fim, trabalhar para ampliar a participação das mulheres nos espaços de poder e decisão é trabalhar para consolidar e aperfeiçoar a democracia brasileira. Para refletir: Você acha que depois da eleição, pela primeira vez em nosso País, de uma mulher como presidente, as mulheres passaram/passarão a ter mais presença na esfera política? 2.1.4. Desigualdade nas ciências e tecnologias IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 39 Como se dava e como se dá, atualmente, a distribuição de homens e mulheres nas áreas de humanas e de exatas? Em seu campo de atuação, há maior concentração de mulheres e de homens em algumas áreas? Como você explica essa concentração? Homens e mulheres têm iguais acessos a tecnologias, como a internet? À primeira vista, pode parecer que as escolhas ou os modos de inserção em diferentes espaços da sociedade sejam reflexo exclusivo de preferências naturais, aptidões natas, capacidades e desempenhos distintos entre homens e mulheres. As assimetrias de gênero são essenciais para a análise da distribuição de homens e mulheres nos diferentes espaços da sociedade e têm servido também para classificar as aptidões de homens e mulheres em diferentes áreas científicas. A física, por exemplo, foi considerada uma disciplina mais apropriada para ser exercida pelos homens por ser imparcial, mais racional, abstrata, por exigir aptidão analítica e um trabalho árduo e longo, enquanto as ciências humanas, que se dedicam ao estudo das pessoas, e mais próximas das preocupações do cotidiano, foram consideradas mais adequadas às mulheres. Observa-se que o modo de compreender o que é específico de cada disciplina foi associado ao que se entende como característica de cada gênero. Isto faz com que as mulheres estejam pouco representadas na física e em outras ciências ditas “mais complexas” (o termo é traduzido de hard sciences, da discussão epistemológica norte- americana e europeia), não porque sejam disciplinas “mais difíceis”, mas pelas imagens que as associam ao masculino. Também a matemática sempre foi vista como IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 40 incompatível com as mulheres. Geralmente, o prestígio de uma ciência depende de seu grau de “matematização” e, quanto mais matemática for exigida para um dado emprego, maior a remuneração e menor a taxa de participação das mulheres. Esta perspectiva foi diversas vezes legitimada por teorias biológicas da lateralização cerebral ou da genética. Entretanto, poucos esforços foram feitos para se estudarem as diferenças de gênero em relação a outras importantes variáveis, tais como etnia, cultura e classe. Historicamente, portanto, o gênero foi um organizador silencioso de teorias e práticas científicas, estabelecendo prioridades e determinando resultados. A noção das fêmeas como naturalmente subordinadas conformou-se com a perspectiva política da posição social inferior da mulher. A fala de uma médica no topo de sua profissão poderia ser estendida a outras áreas: As mulheres, desde meninas, educadas para cuidar dos outros (filhos, marido, parentes idosos), acabam por abraçar carreiras tidas como femininas: professoras, enfermeiras, assistentes sociais, psicólogas, empregadas domésticas etc. Não só é comum que elas escolham carreiras no campo do ensino ou da prestação de serviços sociais ou de saúde, como se supõe que tais atividades sejam uma extensão, no espaço público, das tradicionais atividades que elas já desenvolvem no ambiente doméstico. Esta escolha é construída pela socialização diferencial de gênero. O processo de escolarização pode reforçar a associação frequente entre o gênero feminino e determinadas ocupações. Este vínculoleva a uma desvalorização social de certas profissões, por elas serem consideradas de menor competência técnica ou científica. Mesmo entre carreiras de prestígio social, como a medicina, as especialidades que se feminizaram – a exemplo da pediatria – terminam sendo mais mal remuneradas se comparadas a outras especialidades cujo contingente masculino é mais expressivo, como a ortopedia ou a neurologia. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 41 Se incluirmos nesta análise as relações raciais, teremos um quadro ainda mais agravado, como vimos na lição anterior ao analisarmos os salários médios de brancos/as e negros/as e entre mulheres brancas e mulheres negras. As tecnologias e, em particular, as tecnologias de informação e comunicação, são consideradas como um importante vetor de transformação da vida social, econômica e política em todo o mundo. Em muitos casos, o aperfeiçoamento contínuo e aplicação das tecnologias têm contribuído para a criação de novas e significativas oportunidades econômicas e de emprego, sendo que muitos países em desenvolvimento estão tirando partido das novas tecnologias para acelerar os seus processos de desenvolvimento. Milhões de homens e mulheres sem acesso às novas tecnologias correm o risco de ficarem excluídos do desenvolvimento. Uma vez que as mulheres representam uma maioria significativa dentre aqueles que não têm acesso às tecnologias, o fosso tecnológico adquire uma manifesta dimensão de gênero, apresentando, por conseguinte, várias vertentes. De fato, este fosso existe entre os países que têm e os que não têm um fácil acesso às tecnologias avançadas. E, também, em cada país, entre os diferentes estratos socioeconômicos com ou sem acesso às tecnologias (em particular nas zonas rurais). Observam-se, ainda, disparidades entre homens e mulheres a nível nacional e regional na maioria dos países: praticamente em toda a parte, as mulheres se deparam com mais obstáculos que os homens no acesso à formação e na utilização das tecnologias. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 42 A participação das mulheres no ensino superior vem registrando um aumento contínuo, aproximando-se atualmente dos 50% a nível mundial. Apesar disso, verifica- se em várias regiões do mundo, um marcado desequilíbrio entre homens e mulheres nos cursos científicos e tecnológicos (em todos os níveis de ensino) e na mão-de-obra. Um relatório recente da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) revela que, na maioria dos países membros desta organização, menos de um terço dos alunos do secundário que frequentam as aulas de química, física e biologia avançadas são do sexo feminino. Nos Estados Unidos, as mulheres representam menos de 15% dos estudantes matriculados em computação avançada. Todavia, de acordo com o Instituto de Estatística da UNESCO, na América Latina e Caribe, 43% dos pesquisadores em ciência e tecnologia são mulheres, uma porcentagem bastante superior à média mundial de 28%. De acordo com os dados declarados, esta porcentagem atinge cerca de 50% na maioria dos países da Ásia Central, 43% na Comunidade de Estados Independentes e cerca de 31% na África. Porque existem disparidades tão acentuadas entre homens e mulheres em algumas regiões do mundo e em outras não? IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 43 De acordo com a OCDE, é mais uma questão de incentivos, de distribuição de papéis em função do sexo e de atitudes do que de competências. As meninas têm muito menos probabilidades que os meninos de estudarem engenharia, informática ou física e, ainda que nos países da OCDE mais da metade dos diplomas universitários seja obtida por mulheres, apenas 30% dos diplomados em ciência e tecnologia são mulheres. A porcentagem de mulheres diplomadas do ensino superior que enveredam pela pesquisa é ainda mais reduzida, representando menos de 30% dos pesquisadores em ciência e tecnologia, na maioria dos países da OCDE, e apenas 12% em países como o Japão e a República da Coreia. Convém ainda salientar outro elemento: o grau de acesso das mulheres e dos homens às tecnologias de informação e comunicação. Embora, nos países da OCDE, as mulheres ocupem mais de 60% dos postos de trabalho relacionados com estas tecnologias, apenas 10 a 20% são programadoras, engenheiras, analistas ou designers de sistemas. A grande maioria desempenha tarefas de secretariado, processamento de texto ou entrada de dados, ou seja, tarefas de rotina que requerem um baixo nível de competências ou uma formação técnica limitada. Em 2006, continuavam a ser significativas as disparidades na utilização da Internet entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, embora se registre um ritmo de desenvolvimento acelerado em algumas regiões do mundo. De um modo geral, o utilizador típico da Internet é do sexo masculino, titular de um diploma do ensino superior e aufere rendimentos superiores à média. Observa-se, no entanto, uma evolução positiva. De fato, em várias regiões do mundo, as disparidades entre os sexos são bem mais reduzidas e até inexistentes IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 44 entre os jovens, o que se deve à crescente disponibilização de computadores, nas escolas e outros locais de ensino e formação. Na Cúpula Mundial para a Sociedade de Informação (WSIS), convocada pelas Nações Unidas em 2005, os líderes mundiais reconheceram o papel-chave da ciência e tecnologia, incluindo as TIC (Tecnologia da Informação e Comunicação), no âmbito do debate mais amplo em torno do desenvolvimento. Esta cúpula contribuiu de forma determinante para a definição de metas visando estabelecer uma sociedade de informação mais equilibrada, harmoniosa e solidária. Com os dados apresentados sobre a participação das mulheres na produção de conhecimento científico, na educação, no mercado de trabalho, na vida política, na propriedade etc., queremos demonstrar que uma persistente hierarquia de gênero organiza as relações sociais no espaço público, destinando lugares, postos, posições de prestígio, funções específicas, direitos e deveres a cada sexo. A análise aqui iniciada, e que será aprofundada durante todo este curso, pretende oferecer subsídios para que se abandone a avaliação ingênua de que a participação de homens e mulheres na vida pública seja aleatória, fruto de desejos pessoais ou resultante de aptidões ou habilidades naturais a cada sexo. Somos socialmente educados e educadas para nos interessarmos mais ou menos por política, economia, leis, quer sejamos homens ou mulheres. A via de acesso à cidadania passa por lutas e conquistas normativas e jurídicas. 2.2. QUAL A REL AÇÃ O ENTRE IGUAL DADE DE GÊ NER O E DESE NV OLVIMEN TO SUST ENTÁV E L? O que é desenvolvimento sustentável? Ele está relacionado apenas à natureza? Por que é necessário haver igualdade de gênero para que haja desenvolvimento sustentável? Existe algum dispositivo legal que trata desse assunto? Embora o termo “desenvolvimento” tenha uma naturalidade e legitimidade que fazem parecer que ele é constitutivo da história da humanidade, ou pelo menos da história do mundo ocidental, a sua trajetória é relativamente curta. É no século XVIII - IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 45 quando o “trabalho” deixa de ser visto prioritariamente como castigo, penosidade, algo ligado ao destino dos “menos capazes”, e se transforma em “vocação”, em “convicção de uma obrigação”, em condição de merecimento do paraíso,em fator legitimador das posses que o indivíduo conquista - que se torna perceptível a mentalidade pró- desenvolvimentista. Também o conceito de “ecodesenvolvimento” foi mudando com o passar do tempo. Atualmente, a definição mais aceita para desenvolvimento sustentável é aquele capaz de suprir as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade de atender as necessidades das futuras gerações. É o desenvolvimento que não esgota os recursos para o futuro. Essa definição surgiu na Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, criada pelas Nações Unidas para discutir e propor meios de harmonizar dois objetivos: o desenvolvimento econômico e a conservação ambiental. Além disso, o desenvolvimento sustentável, em sentido amplo, também está ligado à igualdade de direitos entre pessoas (entre homens e mulheres, por exemplo), melhoria de vida para a população e valorização de aspectos que vão além do consumo, como a família, a cultura, o contato com a natureza, entre outros. (Foto: Secretaria de Estado da Mulher do DF) Refletir sobre meio ambiente e desenvolvimento sustentável significa contemplar fatores relacionados à degradação ambiental dos ecossistemas em geral, por exemplo, o desmatamento, a contaminação da água, do solo e do ar, assim como a superexploração e inadequado manejo dos recursos naturais. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 46 Contudo, é um fato conhecido que o discurso da conservação tem sido abordado de uma perspectiva predominantemente biológica, sem considerar a relação que os homens e as mulheres e suas distintas formas de organização estabelecem com o seu entorno. Dentro da sociedade, os diversos grupos humanos se ordenam, hierarquizam-se, diferenciam-se e ocupam determinada posição, na qual desenvolvem, também, diversas formas de relação com a natureza. Quando nos referimos ao meio ambiente, estamos tratando de compreender e de relacionar processos naturais ligados à ação humana. Em última instância, não se trata de conhecer processos sociais e naturais de forma isolada, mas antes de saber de que maneira o uso que a humanidade atualmente faz dos recursos existentes interfere em processos naturais que afetam a qualidade de vida dos homens; e de saber quais formas alternativas de utilização são possíveis para que os impactos negativos de desenvolvimento sejam evitados ou minimizados. Os modelos de desenvolvimento existentes afetam de maneira diferente o cotidiano de homens e mulheres. O padrão corrente de desenvolvimento não é nem sustentável, nem igualitário. Para melhorar a condição do ser humano na sociedade, é importante desentranhar as estruturas de poder nas quais estamos imersos. Para se chegar a um novo modelo de desenvolvimento, todos os atores e atrizes sociais têm de ser contemplados, considerando-se suas vozes. É dentro dessa ótica que é importante se dar atenção não só para a incorporação das mulheres em análises das necessidades práticas existentes, como para a utilização da perspectiva de gênero para a elaboração de políticas sociais mais justas e equitativas. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 47 A equidade de gênero é considerada pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, em inglês) um direito humano, sendo o empoderamento das mulheres ferramenta indispensável para promover o desenvolvimento e a redução da pobreza. Mulheres com maiores níveis de educação e participação no mercado de trabalho estão, em geral, mais capacitadas para contribuir para a saúde e a produtividade de suas famílias e localidades, criando melhores perspectivas para as novas gerações. A importância da igualdade de gênero é evidenciada pela sua inclusão como um dos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), e é reconhecida como a chave para se alcançar os outros sete objetivos (UNFPA, 2009). Embora o êxito em cada uma das três dimensões do desenvolvimento sustentável (social, ambiental e econômica) seja importante para o empoderamento das mulheres, isto não é suficiente, tornando indispensável adotar uma abordagem integrada. Isso implicaria uma mudança para um modelo de desenvolvimento sustentável, no qual as dimensões econômica, social e ambiental envolvam as mulheres como beneficiárias, líderes e contribuintes de um crescimento inclusivo, justo e socialmente equitativo, e que administrem de forma eficiente os recursos e o meio ambiente. Dimensão econômica: O crescimento inclusivo é um elemento crucial para assegurar que os resultados dos esforços do desenvolvimento sejam distribuídos de forma equitativa. Quando as mulheres têm acesso adequado a recursos e oportunidades e participam em pé de igualdade da vida econômica, estão em melhor posição para cumprir seus papeis como condutoras dos resultados do desenvolvimento e aproveitar as vantagens do crescimento econômico inclusivo e sustentável. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 48 Evidências mostram que isso não apenas beneficia as próprias mulheres, mas também contribui para o crescimento econômico. Todavia, a feminização da pobreza, o trabalho não remunerado das mulheres, sua concentração em empregos informais e precários, as restrições ao seu acesso aos recursos produtivos e ao capital, a falta ou ausência de representantes e de vozes femininas nas instâncias decisórias-chave limitam as contribuições das mulheres à produtividade, à eficiência e ao desenvolvimento sustentável. Dimensão social: A igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres são aspectos fundamentais da justiça social. As normas sociais, os estereótipos sexuais, o acesso limitado e desigual a recursos e serviços de educação e saúde, além de outros direitos não satisfeitos, restringem a capacidade das mulheres de participar de forma plena e equitativa de todos os aspectos da vida. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 49 Apesar do progresso no marco normativo para a igualdade e gênero e o empoderamento das mulheres nas últimas décadas, há um longo caminho a ser percorrido para garantir os direitos das mulheres no âmbito da família, da comunidade e da sociedade. Dentre vários exemplos, pode-se mencionar o das mulheres indígenas, que carecem de muitos direitos e são praticamente esquecidas ou deixadas de lado por políticas econômicas e estratégias de desenvolvimento que não oferecem proteções ambiental e social que contemplem sua exclusão social. Políticas sociais que compreendessem os princípios de inclusão, equidade e sustentabilidade ambiental contribuiriam para a criação de um ambiente propício para um crescimento mais distributivo e benéfico para todas as categorias sociais de mulheres e homens – e, consequentemente, para avançar a concretização do desenvolvimento sustentável. Dimensão ambiental: As mulheres que são produtoras, trabalhadoras e administradoras de recursos da agricultura contribuem para influenciar a produção e o consumo sustentáveis, proteger o meio ambiente e a biodiversidade, preservar o conhecimento tradicional e alocar recursos apropriados e sustentáveis nas famílias e nas sociedades. As agricultoras tomam decisões em condições altamente limitadas que muitas vezes as forçam a adotar modelos de produção que negligenciam a preocupação com o desenvolvimento sustentável. No contexto da economia do cuidado, as mulheres que vivem em situação de pobreza têm de administrar diferentes alocações de recursos escassos, incluindo água IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 50e energia. Isto se evidencia mais particularmente quando elas são confrontadas com a degradação ambiental, que aumenta seu fardo de cuidado. Além disso, a pobreza afeta seus padrões de consumo e a gestão global dos recursos naturais pela comunidade. Oferecer às mulheres oportunidades e recursos e engajá-las nos processos decisórios relativos ao meio ambiente poderia melhorar os meios de subsistência e o bem-estar de comunidades inteiras em áreas que avancem em direção à sustentabilidade. Por efeito dos debates sobre desenvolvimento que se desenrolaram desde os anos 1980, organismos internacionais, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Banco Mundial e, mais recentemente, o Fórum Econômico Mundial têm buscado avaliar as desigualdades entre homens e mulheres no desenvolvimento, incorporando indicadores de equidade e de empoderamento de gênero, tais como o Índice de Desenvolvimento Ajustado ao Gênero (IDG), a Medida de Empoderamento de Gênero (MEG) e o Índice Global de Desigualdade de Gênero (IGDG). Além dos Relatórios Anuais de Desenvolvimento Humano que desde 1995 incluem o IDG e a MEG em suas tabelas estatísticas, é importante fazer referência ao relatório sobre gênero e desenvolvimento publicado pelo Banco Mundial, “Engendering Development” (Banco Mundial, 1998) que foi amplamente traduzido e disseminado. Inclusive estudos de entidades privadas afirmam que a redução das desigualdades de gênero aumenta a produtividade e o crescimento econômico. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 51 Segundo relatório do Fórum Econômico Mundial, as pesquisas demonstram que o investimento na educação feminina reduz as taxas de fecundidade, de mortalidade infantil e de mortalidade materna, aumenta as taxas de participação da força de trabalho e elevam os ganhos salariais. O estreitamento dos hiatos de gênero (gender gap) não só é uma questão de promoção da igualdade social, mas também incrementa o crescimento econômico e o bem-estar da população. No Brasil a equidade de gênero figura no texto da Carta Magna como um direito fundamental, a partir da Constituição Federal de 1988. Os princípios de dignidade, liberdade, privacidade e igualdade de tratamento perante a lei converteram-se, gradativamente, em legislação complementar e ordinária, contribuindo para reduzir as desigualdades e as discriminações entre homens e mulheres no País. Afinal, não há como se pensar em desenvolvimento em seu sentido mais amplo sem que haja igualdade perante todos os cidadãos. Não há como uma sociedade lutar pelo desenvolvimento sustentável se não promover a igualdade entre gêneros. 2.2.1. Como as mulheres são afetadas por problemas sociais, econômicos e ambientais A falta de água e energia elétrica afeta mulheres e homens da mesma forma? Por quê? Quais são as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no ambiente urbano? Você consegue perceber tais dificuldades em seu cotidiano? Por que a saúde das mulheres é importante para o desenvolvimento do País? Qual a relação entre educação e saúde? Na região onde você mora, existe desigualdade de gênero no acesso à educação? Por que muitas mulheres ainda não denunciam casos de violências ocorridos em suas casas? A pobreza tem gênero? Por que a questão do gênero é importante na adaptação às mudanças climáticas? IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 52 Ainda que, conforme visto no capítulo anterior, o ordenamento legal do Brasil estabeleça preceitos fundamentais para garantir a igualdade de tratamento perante a lei e a equidade de gênero, na vida cotidiana persistem inúmeros obstáculos, seja no mundo do trabalho, seja na esfera política ou privada. Mulheres brasileiras, nos diferentes períodos da vida, sofrem a violência com base no gênero em suas várias expressões: restrições no campo da autonomia sexual, dificuldades de acesso à saúde sexual e reprodutiva, sobrecarga de responsabilidades, segregação ocupacional, discriminação salarial, baixa presença nos espaços de poder, má distribuição dos afazeres domésticos etc. Vejamos alguns problemas sofridos pelas mulheres: Água potável Embora a igualdade de acesso à água potável seja aceita de modo amplo como um direito humano essencial para o pleno gozo da vida, a falta de acesso a ela tem um impacto claramente específico em função do gênero: em diversas comunidades ao redor do mundo, buscar água é de responsabilidade das mulheres e crianças. Além disso, a água é primordial para o conjunto total de atividades domésticas, as quais ainda são tradicionalmente vistas como “do domínio das mulheres” por muitas culturas: preparação de alimentos, cuidado dos animais, irrigação de plantios, higiene pessoal da família inteira, cuidado dos doentes, limpeza, lavagem e eliminação de resíduos. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 53 Em áreas rurais, mulheres e meninas estão indo cada vez mais longe para encontrar água, submetendo-se ao risco frequente de violência em áreas política ou ambientalmente instáveis. A crescente quantidade de tempo consumido pela procura de água limita as oportunidades de mulheres e meninas para participar de outras atividades – como ir à escola ou gerar renda. Embora as imagens de mulheres carregando água sejam onipresentes, poucos entendem o verdadeiro impacto social e econômico dessa tarefa monumental. Uma das estimativas de 2012 sugere que cortar apenas 15 minutos do tempo de caminhada até uma fonte de água poderia reduzir a mortalidade de crianças abaixo de cinco anos em 11% e a prevalência de desnutrição e diarreia em 41%. Em Gana, por exemplo, a diminuição de 15 minutos no tempo da busca de água aumentou a frequência das meninas na escola de 8% para 12%. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 54 Acesso à energia Atualmente, 1,4 bilhão de pessoas não têm acesso a formas de energia modernas. Aproximadamente 2,7 bilhões de pessoas dependem de fogueiras e fogões tradicionais para cozinhar e se aquecer. A responsabilidade de buscar combustível (como madeira, estrume e resíduos agrícolas) cabe a mulheres e meninas. Quando as fontes de energia modernas são limitadas ou inexistentes, muitas mulheres são obrigadas a percorrer longas distâncias a fim de buscar combustíveis para as necessidades domésticas, e as tarefas diárias demoram mais para serem concluídas. Estudos apontam que as mulheres gastam em geral aproximadamente 35 horas por semana para cozinhar e lavar. No Quênia, por exemplo, o investimento em infraestruturas e tecnologias que poupam tempo e mão de obra, especificamente em melhores fogões, reduziu as necessidades de madeira combustível em aproximadamente 40%. Estudos de caso da Bolívia, Tanzânia e Vietnã mostram que, com melhor acesso à energia em casa, as mulheres podem conciliar atividades de geração de renda com tarefas domésticas. Estima-se que todos os anos a poluição do ar em casa, proveniente de fogueiras e fogões tradicionais usados para cozinhar e aquecer, mata 2 milhões de pessoas – 85% das quais são mulheres e crianças. IGUALDADE DE GÊNERO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 55 Os digestores de biogás e os fogões solares podem oferecer opções de emissões menores do que os fogões tradicionais a biomassa, e podem reduzir de forma substancial a poluição dentro de casa. Cidades e territorialidade As famílias chefiadas por mulheres estão se tornando cada vez mais comuns em áreas urbanas. Para
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