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Hermenêutica - Critica ao positivismo juridico - Wilson Engelmann

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WILSON ENGELMANN
Mestre em Direito Público e Especialista 
em Direito Político pela Unisinos. 
Professor de Introdução ao Direito na Unisinos, 
São Leopoldo, e na Feevale, Novo Hamburgo. 
Advogado
C R ÍTIC A AO PO S ITIV IS M O JU R ÍD IC O
P R IN C ÍP IO S , REG RAS E O CO N C EITO D E D IR E IT O
Sergio Antonio Fabris Editor
Porto Alegre / 2001
© Wilson Engelmann
Diagramação:
Formato Artes Gráficas
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SUMARIO
A P R E S E N T A Ç Ã O ........................................................................... 7
IN T R O D U Ç Ã O ................................................................................. 9
P R IM E IR A P A R T E - O P O S IT IV IS M O J U R ÍD IC O ................... 15
1 A contribuição de Thomas Hobbes.............................................. 17
1.1 O estado de natureza: direito natural x lei natural................ 17
1.2 0 Estado c iv il.......................................................................... 23
1.3 A influência do pensamento de Thomas Hobbes para a
construção do positivismo ju ríd ic o ....................................... 35
2 A caracterização do Positivismo Jurídico.................................... 41
2.1 Hans Kelsen............................................................................... 42
2.1.1 A concepção de Ciência do D ire ito ............................... 42
2.1.2 A norma ju r íd ic a .......................................................... 50
2.1.3 A norma fundam ental................................................... 52
2.1.4 O D ireito e a sua interpretação.................................. 57
2.2 Herbert H a rt............................................................................. 60
2.2.1 A regra sob os pontos de vista interno e externo....... 62
2.2.2 As regras prim árias e as regras secundárias................. 63
2.2.3 A regra de reconhecimento.......................................... 66
2.2.4 A "zona de penumbra ” e poder discricionário
ju d ic ia l........................................................................... 70
2.3 Norberto B o b b io ..................................................................... 72
2.3.1 Algumas idéias sobre a proposta de Norberto Bobbio.... 72
2.3.2 A unidade de ordenamento ju ríd ic o ............................ 75
2.3.3 A coerência e a completude como características
do ordenamento ju ríd ic o .............................................. 78
2.4 Considerações sobre o conceito positivista de Direito......... 82
S E G U N D A P A R T E - OS PR IN CÍPIO S E 
O P O S IT IV IS M O J U R ÍD IC O ..................................................... 85
1 Os Princípios.................................................................................. 87
1.1 Os princípios e o Direito Romano......................................... 87
1.2 Os princípios e a sua caracterização..................................... 91
1.2.1 Considerações gerais................................................... 91
1.2.2 A definição dos princípios............................................ 92
1.2.3 Características dos p rin c íp io s .................................... 96
1.2.4 As categorias de princíp ios .......................................... 97
1.2.4.1 As classificações sugeridas pela doutrina....... 97
1.2.4.2 Uma proposta de classificação dos princípios. 102
1.2.5 Normas, regras e princípios: relações e diferenciações.. 104
1.2.5.1 A proposta de Josef Esser................................ 104
1.2.5.2 A proposta de Ronald D w orkin ....................... 107
1.2.5.3 A proposta de Luis D íez-Picazo...................... 108
1.2.5.4 A proposta de Robert A le x y ............................ 108
1.2.5.5 A proposta de Juan Antonio Martínez Munoz. 110
1.2.5.6 A proposta de Humberto Bergmann Á v ila ..... 112
1.2.5.7 A proposta de Aulis A a m io ............................. 113
1.2.6 As funções dos princípios............................................. 119
1.2.6.1 A função sistematizadora do D ire ito ............... 119
1.2.6.2 A função hermenêutica..................................... 120
1.2.6.3 A função argumentativa dos princípios.......... 124
1.2.7 C onflito de regras e colisões de princíp ios................. 125
1.2.8 C onflito de regras e colisões de princípios: os
“casos difíceis” .............................................................. 131
2 A inadequação do Modelo Positivista.......................................... 141
Conclusão.......................................................................................... 161
Bibliografia........................................................................................ 169
APRESENTAÇÃO
O trabalho aqui apresentado, originalmente uma dissertação de 
mestrado elaborada sob minha orientação no Programa de Pós-Gra­
duação da Unisinos, representa uma contribuição para as discussões 
em tomo de um problema central da teoria do direito contemporânea, 
a saber, a questão dos princípios jurídicos.
Os princípios passaram a ocupar o centro dos debates jusfilosófi- 
cos por uma razão de ordem histórica e filosófica.
Historicamente, os princípios adquirem relevância no século X X 
por dois motivos: um retomo da razão prática no direito, propondo-se 
modelos de raciocínio jurídico que sejam permeáveis à influência da 
moral, fenômeno que surge como uma reação ao relativismo axio- 
lógico e o niilism o que precederam (e favoreceram) o advento do tota­
litarismo. Nesta “revanche da razão prática” , os modelos de raciocínio 
jurídico (tópica, teoria da argumentação, etc.), reservam-se aos prin­
cípios um papel central. E m segundo lugar, as constituições do pós- 
guerra, para acomodar as divergências ideológicas no seio da socie­
dade, utilizaram a estratégia de configurar as normas constitucionais 
como princípios, “que, estando acima dos interesses particulares, per­
mitem a convivência de todos.” 1 De fato, no direito constitucional
1 Gustavo Zagrebelsky. E l derecho dúctil. Madri: Trotta, 1997.
7
contemporâneo, é importante observar que, “se o direito atual está 
composto de regras e princípios, cabe obervar que as normas legis­
lativas são prevalentemente regras, enquanto que as normas constitu­
cionais sobre direitos e sobre a justiça são prevalentemente princípios. 
Por isso, distinguir os princípios das regras, significa, em geral, dis- 
tingüir a Constituição da lei.”2
Neste contexto, um modelo de pensamento jurídico que concebe 
o direito como um sistema de regras, determináveis por meio do con­
ceito de validade, como é o caso do positivismo, obviamente se mos­
trará inadequado para dar conta da experiência jurídica. É exatamente 
a análise minuciosa desta inadequação que forma o ceme do trabalho 
de W ilson Engelmann.
Na primeira parte, histórica, a análise parte de Hobbes e avança 
até os positivistas contemporâneos como Kelsen, Hart e Bobbio.
Na Segunda parte, de caráter sistemático, o autor faz uma revisão 
das principais teorias sobre os princípios jurídicos, propondo uma 
classificação dos mesmos, além de investigar as funções dos princí­
pios como sistematizadores da experiência jurídica, pautas hermenêu­
ticas da aplicação do direito e a contribuição de Dworkin e Alexy para 
a questão da “colisão dos princípios” .
Luís Fernando Barzotto 
Professor do PPGD/Unisinos
2Idem, p. 110.
8
INTRODUÇÃO
Na estrutura do raciocínio jurídico, mesmo que de forma indireta, 
estão presentes os princípios gerais do direito. Tomando-se tal aspecto co­
mo ponto de partida, surge a proposta do presente livro, cuja temática é in­
vestigar o modo como os princípios ingressam no conceito de Direito, ao 
lado das regras, desenvolvendo uma crítica ao positivismo jurídico.
Busca-se, inicialmente, caracterizar o positivismo jurídico, a par­
tir das idéias de Thomas Hobbes, Hans Kelsen, Herbert Hart e Nor- 
berto Bobbio. Entretanto, o trabalho não tem o intuito de estudar esses 
autores, mas apenas abordar as suas contribuições para o delineamento 
do modelo positivista.
Além disso, o trabalho apresenta uma contextualização dos prin­
cípios através da ênfase em seus diversos aspectos conceituais, carac­
terísticas, classificações e a sua relação/distinção com as regras. Com 
tal demarcação, os princípios e as regras serão catalogados como espé­
cies do gênero norma.
O livro não visa estudar nenhum exemplo específico de princí­
pio, mas objetiva lançar as bases de uma perspectiva teórica geral so­
bre os mesmos. Com isso, não será priorizado nenhum autor, sendo 
objeto de estudo os principais autores contemporâneos que se dedicam 
ao tema, escolhidos sem a pretensão de exaurir as possibilidades.
Através desta linha de idéias, busca-se demonstrar a postura que 
o positivismo jurídico assume frente aos princípios, bem como su-
9
blinhar a necessidade de sua consideração na construção do conceito 
de Direito. Haja vista que, para o positivismo jurídico, o Direito é ape­
nas um sistema de regras que produz um raciocínio jurídico calcado 
nos modelos subsuntivo e discricionário. O modelo subsuntivo, de 
cunho eminentemente lógico-dedutivo, busca extrair da regra, através 
do seu confronto com um fato concreto, as conseqüências jurídicas, 
quando cabíveis, previamente dadas. Já o modelo discricionário é re­
conhecido pelo positivismo jurídico, a partir do momento em que a 
situação da vida não está respaldada pela regra ou, quando permite a 
escolha da forma de aplicação da mesma, dentre várias possibilidades. 
Neste caso, o intérprete/aplicador “dimensiona” as conseqüências ju rí­
dicas que serão aceitas, fundadas, na maioria dos casos, em consta­
tações subjetivas.
Assim, com a introdução do conceito de princípios, o Direito 
passa a ser visto como um sistema de regras e princípios, aspecto que 
acaba gerando um novo modelo de raciocínio jurídico.
Este modelo dos princípios - que é simultaneamente uma con­
cepção de Direito e de raciocínio jurídico - precisa ser explorado, em 
decorrência da rápida transformação das relações sociais que exigirão 
um novo perfil do Direito. Conseqüentemente, é preciso buscar outras 
possibilidades jurídicas, situadas um pouco além dos contornos de­
finidos pela regra jurídica. Desta feita, os princípios apresentam-se co­
mo uma possibilidade a ser considerada pelo mundo jurídico, nota- 
damente pelo Poder Judiciário. Haja vista que a subsunção do fato à 
norma, como preconiza o positivismo jurídico, precisa abrir espaço 
para os reflexos jurídicos irradiados pelos princípios, para que se 
possa conhecer o seu caráter normativo.
Neste particular, reside a importância do trabalho, uma vez que 
se busca sublinhar os aspectos gerais dos princípios a serem con­
trapostos aos postulados do positivismo jurídico. Através deste inter­
câmbio, mediante a valorização das características peculiares da situa­
ção concreta, demonstrada por alguns casos práticos, formula-se a 
necessidade de uma (re)valorização dos princípios, que são um ele­
mento do raciocínio jurídico, dentro de um novo conceito de Direito. 
Tal desafio é desenhado como uma possibilidade de conferir ao mes­
mo a necessária maleabilidade para enfrentar os novos contornos de­
finidos na sociedade.
10
Para a demonstração do entendimento de “positivism o juríd ico” a 
ser empregado no presente trabalho, devem ser observadas algumas 
idéias lançadas por Norberto Bobbio e M a x Weber.
Em Norberto Bobbio3 encontram-se sete pontos fundamentais 
que servem para caracterizar o positivismo jurídico. Assim, inicial­
mente, o positivismo jurídico é relacionado a uma forma específica de 
abordagem sobre o direito, que é visto como um conjunto de fatos 
produzidos pela sociedade. O segundo ponto está circunscrito à 
“definição do direito” , onde prepondera o elemento coercitivo, ou 
seja, o direito se faz respeitar através da possibilidade do emprego da 
força. U m outro aspecto encontra-se vinculado ao estudo das fontes do 
direito, com grande preponderância à lei. Outro ponto a ser conside­
rado é a questão relativa à teoria da norma jurídica, catalogada como 
um comando ou uma ordem, dando margem ao nascimento da cha­
mada “teoria im perativista do direito". O autor aponta, ainda, a cha­
mada “teoria do ordenamento ju ríd ico", como uma outra maneira de 
encarar o estudo do positivismo jurídico. Neste particular, é enfatizada 
a coerência e a completude do ordenamento jurídico. A lém disso, por 
outro ângulo, o positivismo jurídico preconiza um método específico 
para a tarefa interpretativa, onde o viés criativo do ju iz é cerceado, 
mediante a substituição por uma intervenção meramente declaratória 
do direito. Por fim , uma sétima forma de verificar as características do 
positivismo jurídico, encontra-se relacionada à ideologia do direito, 
enquanto necessidade de obediência à lei.
A característica que melhor retrata as diversas possibilidades de 
definir o positivismo jurídico está “ representada pelo fa to de que as 
mesmas procuram estabelecer o que é o direito prescindindo de seu 
conteúdo, vale dizer, da m atéria por este regulada"4. Sob este ângulo, 
nasce o chamado “formalismo jurídico” que é priorizado pelos autores 
escolhidos para a especificação do positivismo jurídico (Kelsen, Hart 
e Bobbio). O “formalismo jurídico” toma por refêrencia apenas o 
modo “como” o direito se produz, sem considerar o seu conteúdo5, ou,
3 Bobbio, Norberto. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito, p. 131-3.
4 Bobbio, Norberto. Op. cit., p. 145.
5 Neste sentido, Ibidem mesma página; E l Problema dei Positivism o Jurídico, p. 18- 
9; Giusnaturalism o e Positivism o Giuridico, p. 85-6.
11
como prefere Eros Roberto Grau, “o direito fo rm al” representa “ um 
modo de aplicação de determinado direito positivo"6. Esta alternativa 
de formulação do positivismo jurídico encontra-se assentada numa 
teoria do direito, englobando todas as características antes alinhava­
das, com exceção da primeira e da última.
A par destas idéias e adotando algumas categorias weberianas, 
pode-se dizer que este formalismo está preocupado exclusivamente 
com o procedimento jurídico. Assim sendo, “um direito é form al 
quando o juríd ico-m aterial e o jurídico-processual não tem em conta 
mais que características gerais, unívocas, dos fa to s ”1. Este tipo de 
direito produz a combinação da racionalidade com critérios decisórios 
de cunho eminentemente jurídicos.
A referida racionalidade pode manifestar-se através de duas vias:
a) “a generalização” : que ocorre através da “redução das razões deter­
minantes da solução de um caso concreto a um ou vários princípios, 
isto é, a preceitos juríd icos”8. Neste particular, a partir de um exame 
casuístico, são identificados alguns elementos chaves da situação con­
creta que passam a nortear as futuras decisões sobre casos semelhan­
tes, na medida em que são considerados como elementos juridica­
mente relevantes de uma ação comunitária9; b) “a sistematização” : 
consiste em relacionar os preceitos obtidos atravésda generalização, 
objetivando a construção de “ um conjunto de regras claro, coerente e 
desprovido de lacunas, exigência que necessariamente im plica que 
todos os fatos possíveis possam ser subsumidos sob algumas das 
normas do mesmo sistema"10.
A racionalidade, assim concebida, encontra-se assentada em re­
gras gerais e abstratas que podem ser utilizadas no processo decisório, 
oferecendo um alto grau de previsibilidade e calculabilidade11.
Com tais características, o formalismo racionalista, principal as­
pecto do positivismo jurídico, busca acercar-se da maior segurança
6 Prefácio da obra de Freitas, Juarez. A Interpretação Sistemática do D ireito, p. 10.
7 Weber, M ax. Econom ia y Sociedad. Esbozo de sociologia comprensi va, p. 511.
8 Ibidem, p. 509.
9 Conforme interpretação de Dulce, María José Farinas. La Sociologia del Derecho 
de M ax Weber, p. 213-4.
10 Weber, Max. Op. cit., p. 510.
11 Dulce, María José Farinas. Op. cit., p. 214.
12
/
possível na identificação do jurídico. Isto acaba reduzindo o direito a 
um conjunto de regras a serem identificadas por critérios qualitativos 
rígidos.
Tomando-se como referência este conceito de Direito do posi­
tivismo jurídico, é necessário investigar se nessa estrutura cabem as 
considerações sobre princípios. Destarte, é oportuno pensar numa al­
ternativa de substituir a racionalidade formal do direito por uma racio­
nalidade baseada nos princípios, que são responsáveis pelo conteúdo 
das formas jurídicas12.
O exame destas questões propõe os seguintes problemas: o mo­
delo positivista tem lugar para a consideração sobre princípios? O 
positivismo jurídico abre espaços para que se possa tratar de normas 
como regras e princípios? Qual a importância dos princípios no 
desenvolvimento do raciocínio jurídico?
Para enfrentar estas questões, o trabalho será dividido em duas 
partes: a primeira visa levantar os contornos mais significativos do 
positivismo jurídico; a segunda, por sua vez, apresenta a caracteri­
zação dos princípios, culminando com a demonstração da inadequação 
do positivismo jurídico frente ao modelo de regras e princípios.
A pesquisa utilizará, como método de abordagem, o método in­
dutivo. N o tocante aos métodos de procedimento, serão empregados 
os métodos tipológico, histórico e o comparativo. A lém disso, como 
técnica de pesquisa, será lançada mão da pesquisa bibliográfica atra­
vés do emprego da documentação indireta.
12 Prefácio de Grau, Eros Roberto, da obra Freitas, Juarez. Op. cit., p. 11.
13
/
P R IM E IR A P A R T E 
O P O S IT IV IS M O J U R ÍD IC O
1. A CONTRIBUIÇÃO DE THOMAS HOBBES
1.1 O estado de natureza: direito natural x lei natural
Num estágio anterior à formação do Estado, Hobbes13 considera 
que os homens eram essencialmente iguais. Esta situação de igualdade 
apresenta-se em três planos: na igualdade de fato, na escassez de 
recursos e no direito sobre tudo14. A natureza conferiu condições 
iguais aos homens, tanto no que diz respeito às faculdades do corpo 
quanto naquelas concernentes ao espírito, compreendendo quatro 
poderes: a força corporal, a experiência, a razão e a paixão15. Com 
relação à força do corpo, mesmo que se encontrem homens com uma 
força física maior, tal “diferença entre um e outro homem não é 
suficientemente considerável para que qualquer um possa com base 
nela reclamar qualquer benefício a que o outro não possa aspirar, tal 
como ele” 16. Esta variação da força física poderá ser compensada pela
13 Hobbes, Thomas. (1588-1679). Entre suas obras pode-se destacar: Elementos de 
Lei N atural e P olítica (1640); Sobre o Cidadão (1642); Leviatã ou Matéria, For­
ma e Poder de uma Comunidade Eclesiástica e C iv il (1651); Sobre o Corpo 
(1654) e A D ialogue between Philosopher and a Student o f Common Laws o f En­
gland (1681).
14 Bobbio, Norberte. Thomas Hobbes, p. 34.
15 Hobbes, Thomas. Elementos do D ireito N atural e Político, p. 99.
'6 Idem, Leviatã ou m atéria, form a e poder de um Estado Eclesiástico e C ivil, p. 107.
17
utilização de meios inesperados para surpreender o outro, ou através 
da união de vários homens que almejam o mesmo objetivo. Já no 
tocante às faculdades do espírito, a igualdade também é o marco fun­
damental, pois cada homem não reconhece no outro uma inteligência 
maior do que a sua própria. Tal aspecto é possível na consideração 
individual que cada homem tem a seu próprio respeito, ou seja, a sua 
percepção está centrada em si mesmo, ao passo que visualiza o outro a 
uma certa distância, fazendo com que as diferenças efetivamente exis­
tentes tomem-se imperceptíveis.
A o lado desta faceta da igualdade, surge a esperança, peculiar a 
cada homem, de atingir os seus objetivos. Na busca destas metas, 
emerge a escassez de recursos, o que faz nascer a situação de dois 
homens pretenderem a titularidade da mesma coisa. Como isto é im ­
possível, os pretendentes tomam-se inimigos, passando a idealizar al­
ternativas para destruir ou subjugar todos aqueles que estiverem no 
mesmo caminho.
Dada a inexistência de regras que permitam separar o “meu” e o 
“ teu” , delineia-se a inclinação natural de tudo pertencer a todos, ou 
seja, há uma “potência indiscrim inada de cada um em relação a 
todas as coisas” 11. Inexiste, neste estado, a noção de propriedade, 
pois cada um é titular de alguma coisa enquanto expressar condições 
de conservá-la. Este direito que o homem possui a todas as coisas, 
pode representar, examinando-o por outro ângulo, um direito a nada. 
Haja vista que o homem tem pouca probabilidade de usufruir o seu 
direito a tudo, se um outro, mais forte do que ele, tem direito à mes­
ma coisa18.
A o lado destas características do estado natural, deve ser lem­
brado que os homens também agem sob o impulso das paixões. Tal 
configuração faz com que Hobbes19 apresente três fundamentos de 
discórdia, capazes de gerar a luta entre os homens: [a] a competição: 
que leva o homem a atacar o outro tendo em vista o lucro ou o ganho; 
[b] a desconfiança: já que cada homem desconhece qual será a atitude 
do outro, sendo a antecipação a melhor alternativa para não correr o
*7 Hobbes, Thomas. D e Cive - Elementos filosóficos a respeito do cidadão, p. 25.
18 Hobbes, Thomas. Elementos do D ireito N atural e Político, p. 102.
19 Idem, Leviatã ou matéria, form a e poder de um Estado Eclesiástico e Civil, p. 108-9.
18
risco de ser agredido; [c] a glória: que leva o homem à luta a fim de 
preservar a sua reputação. Estes três fundamentos são permeados pela 
paixão da vanglória, posto que cada homem imagina uma superio­
ridade ou poder sobre aquele com o qual está em conflito. Estas carac­
terísticas levam ao estado de instabilidade gerado pela guerra contínua 
entre os homens. Assim sendo, a guerra é “aquele tempo em que se 
manifesta inequivocamente a vontade de lutar com a força, por 
palavras e atos. Chama-se PA Z o tempo restante”20. Tudo indica que, 
no estado de natureza, inexista este tempo restante, já que a necessi­
dade da preservação do conquistado, bem como o interesse por novas 
aquisições, toma a vontade de lutar permanente.
A par deste delineamento, tudo leva a crer que esta “guerra de 
todos contra todos” , possa ser caracterizada, retirados os exageros da 
expressão, conforme assevera Norberto Bobbio21, como um estado no 
qual impera o medo da morte violenta. Com isto, ratifica-se a igual­
dade abordada anteriormente, pois “os homens são iguais na violên­
cia. (...) Todos são iguais no ‘medo recíproco’, na ameaça, que paira 
sobre a cabeça de cada um, da ‘morte violenta ’. Os homens ‘igualam- 
se ’ neste medo da morte ”22.
A par da igualdade assim especificada, e objetivando fazer frenteao temor pela perda da vida, o homem utiliza a racionalidade de que é 
titular para enfrentar estes desafios. Vale dizer que o homem utiliza a 
razão para atingir este fim . Para Hobbes, o ato de raciocinar nada mais 
é do que
“conceber uma soma total, a partir da adição de parcelas, ou conceber um 
resto a partir da subtração de uma soma por outra; o que (se for feito com 
palavras) é conceber da consequência dos nomes de todas as partes para o 
nome da totalidade, ou dos nomes da totalidade e de uma parte, para o 
nome da outra parte. (...) A partir do que podemos definir (isto é, 
determinar) que coisa é significada pela palavra razão, quando a 
contamos entre as faculdades do espírito. Pois razão, neste sentido, nada 
mais é do que cálculo (isto é, adição e subtração) das consequências de 
nomes gerais estabelecidos para marcar e significar nossos pensamentos.
20 Idem, D e Cive - Elementos filosóficos a respeito do cidadão, p. 55.
21 Bobbio, Norberto. Op. cit., p. 38.
22 Hobbes, Thomas. De Cive - Elementos filosóficos a respeito do cidadão, p. 27.
19
Digo marcar quando calculamos para nós próprios, e significar quando
demonstramos ou aprovamos nossos cálculos para os outros homens ”23.
Fica claro que, no estado de natureza, o homem não age apenas 
movido pelas paixões, mas, igualmente, a partir da razão, através da 
qual calcula os meios necessários para a implementação dos fins dese­
jados. Esta razão do homem permite o acesso à chamada lei natural, 
responsável pela indicação dos caminhos a seguir para a implemen­
tação dos objetivos pretendidos, dentre os quais a busca da paz. Esta 
lei natural pode ser definida como "um ditame da reta razão sobre as 
coisas a fazer ou om itir para garantir-se, quanto possível, a preser­
vação da vida e das partes do corpo’’24. Esta lei estabelece uma espé­
cie de dever ao homem: fazer tudo aquilo que possa favorecer a 
manutenção da sua vida, impedindo, na medida do possível, qualquer 
atitude contrária a este objetivo. Esta noção de lei natural é interes­
sante, pois Hobbes especificou o direito natural como uma liberdade 
absoluta que possibilita ao homem o poder de fazer tudo aquilo que 
quiser, ou seja, a utilização de seu próprio poder, a fim de preservar a 
sua natureza, vale dizer, a sua vida25.
A lei natural contém uma espécie de catálogo de conselhos pru- 
denciais, desenvolvidos para a própria sobrevivência do homem26. A 
prudência, neste contexto, indica um saber prático que orienta a ação, 
procurando indicar uma resposta para a indagação: como agir para 
atingir o fim visado que é a sobrevivência? A partir de uma definição 
formal, pode-se dizer que “bem” é tudo aquilo que é buscado como 
fim da ação. Tal aspecto Hobbes enuncia da seguinte forma: “as p a i­
xões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o 
desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confor­
tável, e a esperança de consegui-las através do trabalho ”27. Por outro
22 Hobbes, Thomas. Leviatã ou matéria, form a e poder de um Estado Eclesiástico e 
C ivil, p. 51-2.
24 Idem, De Cive - Elementos filosóficos a respeito do cidadão, p. 58-9. Tal defini­
ção também se encontra na obra Leviatã ou matéria, form a e poder de um Estado 
Eclesiástico e C ivil, p. 113.
25 Ibidem, mesma página. Esta idéia também aparece em Thomas Hobbes. Diálogo 
entre un filó so fo y un jurista y escritos autobiográficos, p. 28.
26 Conforme estudo preliminar desenvolvido por Miguel Angel Rodilla, inserido em 
Hobbes, Thomas. Op. cit., p. X V I.
27 Idem. Leviatã ou matéria, form a e poder de um Estado Eclesiástico e C ivil, p. 111.
20
lado, materialmente definido, “bem” é a soma dos instrumentos que 
estão à disposição do homem para preservar a sua vida. Estes instru­
mentos são as normas de paz, sugeridas pela reta razão, que são 
chamadas de leis naturais28.
Thomas Hobbes enumera cerca de vinte leis naturais, que a reta 
razão, como já referido, sugere ao homem. Deste elenco, a primeira 
parece receber a característica de “fundam entar da qual são derivadas 
as demais: “que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em 
que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode pro­
curar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra ”29. O principal 
bem visado pela ação do homem é efetivamente a conservação da 
vida. Não obstante, as leis naturais, como estão desprovidas de um po­
der coercitivo, serão observadas se houver conveniência por parte dos 
homens. Tal perspectiva, entretanto, não oferece nenhuma segurança 
de que todos os homens, ou pelo menos a maioria, venham a observar 
este ditame contido ha lei natural. Isto ocorre, porque as leis de 
natureza possuem força obrigatória “in fo ro interno” , ou seja, existe 
apenas “o desejo de que sejam cumpridas” , mas em nível de “foro 
externo, isto é, impondo um desejo de pô-las em prática, nem sempre 
obrigam ”30.
Para que os homens, no estado natural, realmente possam atingir 
o fim pretendido, a saber, a busca da paz, toma-se imperioso cada um 
abrir mão do seu direito a todas as coisas:
“que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida 
em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, 
em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação
28 Mesmo que recebam a denominação de “ leis", Hobbes adverte que esta cataloga­
ção é imprópria, pois elas são apenas “ditames da razão dos homens". A denomi­
nação de “ le i” pode apenas ser atribuída à palavra daquele que possui o poder de 
mando sobre os demais. "No entanto, se considerarmos os mesmos teoremas como 
transmitidos pela palavra de Deus, que tem direito de mando sobre todas as coi­
sas, nesse caso serão propriam ente leis". Neste sentido, Hobbes, Thomas. Idem, 
p. 133 e De Cive - Elementos filosóficos a respeito do cidadão, p. 82.
29 Hobbes, Thomas. Leviatã ou matéria, form a e poder de um Estado Eclesiástico e 
C ivil, p. 114.
30 Ibidem, p. 131.
21
aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite
em relação a si mesmo ”31.
Esta segunda lei de natureza estabelece que cada homem esteja 
convencido de que deve abrir mão do seu direito sobre todas as coisas. 
Apesar disto, se não houver o cumprimento desta lei por todos, 
aqueles que a cumprirem, estarão em situação de desvantagem, pois 
serão alvos fáceis e inofensivos dos demais.
Desta feita, nasce uma outra lei de natureza: “que os homens 
cumpram os pactos que celebrarem’’7,2. Apesar destes enunciados, 
nenhum homem, no estado de natureza, terá segurança que todos irão 
cumprir os pactos celebrados, já que a força das palavras é demasia­
damente fraca. Segundo Hobbes, existem duas maneiras para reforçá- 
la: “estas são o medo das conseqüencías de fa lta r à palavra dada, ou 
o orgulho de aparentar não precisar fa lta r a e la ”77. Entretanto, ne­
nhuma destas duas formas é capaz de conferir a obrigatoriedade do 
cumprimento aos pactos celebrados entre os homens. O segundo re­
forço depende de uma generosidade que existe em poucos homens; já 
com relação ao primeiro, deve ser observado que o medo pode ser 
desmembrado em dois objetos extremamente gerais: um é o poder da 
religião, “e o outro é o poder dos homens que dessa maneira se pode 
ofender”74. O primeiro, depende da crença e acrescenta um juramento 
ao cumprimento do pacto, o que equivale a uma promessa, ou seja, o 
promitente abre mão da misericórdia divina caso não venha a cumprir 
o prometido35; o outro, fundamenta-se na existência de um poder civil, 
ausente no estado de natureza. Interessante sublinhar, no entanto, que 
“destes dois, embora o prim eiro seja o m aior poder, mesmo assim o 
medo do segundo é geralmente o m aior medo ”76.Assim, tudo leva a 
crer que, antes da formação da sociedade civil, os homens apenas 
cumpriam o pactuado, motivados pela crença na ira de Deus, como 
conseqüência ao desrespeito da palavra empenhada.
31 Ibidem, p. 114.
32 Hobbes, Thomas. Op. Cit., p. 123.
33 Ibidem, p. 120.
34 Ibidem, p. 120.
35 Idem. D e Cive - Elementos filosóficos a respeito do cidadão, p. 66.
35 Hobbes, Thomas. Leviatã ou matéria, form a e poder de um Estado Eclesiástico e 
C ivil, p. 120.
22
Desta forma, o estado de natureza caracteriza-se pela presença de 
leis que são “válidas, mas não eficazes”. Isto ocorre, pois inexiste um 
poder organizado, capaz de ser invocado quando as leis de natureza 
deixarem de ser cumpridas. Assim sendo, o único caminho para con­
ferir eficácia a estas leis, fazendo com que os homens passem a atuar 
através da razão e não com fundamento na paixão, “é a instituição de 
um poder tão irresistível que torne desvantajosa a ação contrária. 
Esse poder irresistível é o Estado ”37.
1.2 O Estado civil
Dos aspectos examinados, emerge uma contradição: o homem, 
no estado de natureza, através do uso da razão, planeja (calcula) os 
meios necessários para a obtenção do fim : a preservação da vida. Para 
tanto, busca reunir os bens necessários para este objetivo, partindo 
para o acúmulo de poder, que é definido por Hobbes, nos seguintes 
termos: “o poder de um homem (universalmente considerado) con­
siste nos meios de que presentemente dispõe para obter qualquer 
visível bem futuro ”38. Esta mesma trajetória é desenvolvida por cada 
homem neste estado de natureza, aspecto que acaba provocando a 
guerra de todos contra todos. Assim, nesta condição, onde o homem 
espera a preservação da sua vida, acaba colocando a mesma em risco, 
já que a ameaça da morte é constante.
Como o homem é essencialmente igual no estado de natureza, 
este medo recíproco justifica a necessidade da mudança. O poder de 
cada homem leva-o a buscar uma elevação dos seus ganhos/bens e 
uma redução das suas perdas. Tal oposição vai gerar a guerra, pois 
poderá ocorrer que dois ou mais homens almejem, ao mesmo tempo, a 
mesma coisa. Disto resulta, por consequência, que apenas o mais forte 
poderá servir-se do bem; e a decisão sobre quem é o mais forte, 
somente poderá ser decidida através da luta39.
37 Bobbio, Norberto. Op. cit., p. 40.
38 Hobbes, Thomas. Op. cit., p. 83.
39 Idem. De Cive - Elementos filosóficos a respeito do cidadão, p. 52-3.
23
Esta luta acaba provocando a morte do mais fraco. Desta forma, 
a morte é o maior mal a ser evitado. Como este medo é comum entre 
os homens, os mesmos partem em busca de companheiros a fim de 
sair desta situação. Hobbes destaca que esta busca de companheiros 
pode ser operacionalizada de duas formas: a união forçada, quando o 
vencedor do combate subjuga o vencido que permaneceu com a vida; 
ou através da manifestação de vontade de ambas as partes, sem a 
violência, mas por intermédio da concordância recíproca40. A forma­
ção do Estado C iv il, como um resultado da evolução do estado natu­
ral, está alicerçada na segunda forma. Os homens deverão concordar 
em formar o Estado, posto que o elemento volitivo, ou seja, o con­
senso41, é o ingrediente mais importante. Assim, o Estado Civil, como 
um Estado artificial, aparece sob a forma de “síntese de vontades” , 
apresentando a conotação propriamente política que tem no consenso 
o princípio de sua legitimação42. Neste passo, a razão ainda consiste 
num fundamento importante, que o homem continua em busca da 
concretização de seu objetivo maior: a preservação da vida.
Este consenso deverá partir de um grande número de pessoas, pois, 
se não tomar como parâmetro um grande número, basta um pequeno 
aumento, no outro lado, para novamente ser instaurada a insegurança da 
invasão. Inexiste, outrossim, um número exato que possa definir a multi­
dão, o que apenas poderá ser aferido “por comparação com o inimigo 
que tememos, e é suficiente quando a superioridade do inimigo não é de 
importância tão visível e manifesta que baste para garantir a vitória, 
incitando-o a tomar a iniciativa da guerra ”43.
Esta multidão, motivada pelo mesmo objetivo, deverá elaborar 
um acordo prévio, onde o elemento volitivo é indispensável a fim de 
ser processada a saída do estado natural e o ingresso no Estado civil. 
A necessidade deste acordo é a remoção das causas da insegurança, 
das quais a mais importante é a falta de um poder central, capaz de 
obrigar a todos os contratantes. Esta ausência era apontada para a falta
40 Hobbes, Thomas. Op. cit., p. 55-6.
41 Idem, Elementos do D ireito Natural e Político, p. 137.
42 Bobbio, Norberto; Bovero, Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia P o líti­
ca Moderna, p.38-9.
43 Hobbes, Thomas. Leviatã ou matéria, form a e poder de um Estado Eclesiástico e 
C ivil, p. 142.
24
de efetividade das leis naturais. Com este acordo, torna-se possível a 
instituição do poder de um Estado, ou seja, “aquele composto pelos 
poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa, 
natural ou civil, que tem o uso de todos os seus poderes na depen­
dência de sua vontade ”44.
Para que a formação deste poder possa ter êxito, toma-se neces­
sário que cada integrante da multidão concorde em renunciar45 ao seu 
próprio direito sobre todas as coisas, bem como a utilização da força 
individual para a busca e proteção dos seus bens. A lém desta renúncia, 
a concordância deverá ser obtida na transferência destes direitos a uma 
pessoa, natural ou civil. Na consolidação deste acordo, a transferência 
caracteriza-se em algo mais do que simples renúncia, pois cada ho­
mem pretende beneficiar uma determinada pessoa ou pessoas46.
Por intermédio deste acordo, a transferência se dá para um ho­
mem ou uma assembléia de homens como representante de suas pes­
soas, na medida em que cada homem passe a considerar-se como ator 
dos atos que o representante venha a praticar, no tocante àquilo que 
disser respeito à paz e segurança comuns. Desta forma, haverá uma 
verdadeira submissão da vontade de todos à vontade daquele que os 
represente, e das suas decisões à sua decisão. Com tais contornos, o 
acordo estaria sendo caracterizado como um verdadeiro pacto de união 
de cada homem com todos os homens, através da enunciação recí­
proca: “cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a 
este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de 
transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante 
todas as suas ações ”47.
Através deste compromisso recíproco, os homens pactuaram res­
peitar uma terceira pessoa. A multidão, com este ato, possibilitou o 
nascimento do Estado, que recebe a autoridade de cada homem e,
44 Ibidem, p. 83.
45 É interessante observar que a “renúncia” importa na privação da "liberdade de 
negar ao outro o benefício de seu próprio direito à mesma coisa". Esta renúncia, 
no entanto, não faz nascer nenhum direito para o outro, pois no estado de natureza 
todos tem direito a tudo; o renunciante apenas sai do caminho, permitindo que o 
outro ou qualquer homem tenha condições de usufruir de seu direito original. Con­
forme Hobbes, Thomas. Idem, p. 114.
46 Hobbes, Thomas. Op. cit., p. 114.
47 Ibidem, p. 144.
25
através do poder e da força, toma-se capaz de conformar a vontade de 
todos eles, a fim de ser instaurada a paz em seu próprio país, bem 
como uma ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. Daí emerge a 
idéia do “Levíotô”48, como o único centro de autoridade, que, através 
do poder e da força do terror, é capaz de provocar a passagem da 
humanidade do estado de guerra de todos contra todos para o estado 
de paz. Esta é a essência'doEstado49 ou Soberano, que pode ser 
definida da seguinte forma:
"uma pessoa de-cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recí­
procos uns com os outros, fo i instituída por cada um como autora, de modo
a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar 
v conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum ”50.
O representante desta pessoa, assim caracterizada, é chamada de 
soberano, exercendo o poder supremo. O Estado formado com estes 
contornos é chamado de Estado por instituição, ou seja, há uma espé­
cie de pacto de submissão entre os homens a respeitarem a um homem 
ou uma assembléia, a fim de buscarem a proteção do mesmo contra 
todos os demais. Vale observar que Hobbes não distingue o pacto de 
associação (o responsável pela formação da sociedade) do pacto de 
submissão (aquele que institui um poder político, um governo). Os 
dois aparecem reunidos na perspectiva de Hobbes: não existe primeiro 
a sociedade, e posteriormente o poder (o Estado). O governo existe 
justamente para possibilitar a convivência pacífica entre os homens51.
Hobbes enumera uma série de direitos do soberano:
1. Aqueles que participam da celebração do pacto não estão su­
jeitos a nenhum pacto anterior capaz de ser oposto ao atual;
2. O soberano não assina o pacto, pois, neste ato da assinatura, o 
soberano ainda não existe. Desta forma, o soberano não poderá ser 
acusado de haver quebrado o pacto, estando isento de obrigações.
48 Monstro da mitologia fenícia, conhecido sobretudo através da Bíblia, onde é iden­
tificado com um animal aquático ou réptil. No livro de Jó, 41.1-34, encontra-se a 
descrição pormenorizada deste monstro.
49 Esta essência do Estado é caracterizada no De Cive como Cidade, ou sociedade 
civil, ou ainda pessoa civil. Hobbes, Thomas. De Cive - Elementos filosóficos a 
respeito do cidadão, p. 99.
50 Idem, Leviatã ou m atéria, form a e poder de um Estado Eclesiástico e C ivil, p. 144.
51 Conforme idéia de Ribeiro, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança, p. 62-3.
26
Com isto, nenhum súdito poderá liberar-se da sujeição, sob o pretexto 
de infração;
3. A maioria, através do voto de consentimento, poderá escolher 
o soberano que obrigará a todos, mesmo àqueles discordantes. Desta 
forma, aos discordantes serão apresentadas duas alternativas: aceitar 
os atos praticados pelo soberano, ou, então, retomar ao estado anterior 
de guerra, no qual poderão ser destruídos por qualquer um, sem in­
justiça;
4. Tomando-se em conta que cada um dos súditos é autor dos 
atos e decisões do soberano instituído, nenhuma atitude deste pode ser 
considerada injuriosa para com os súditos, não havendo, igualmente, 
cabimento para a acusação de injustiça;
5. O titular do poder soberano "não pode justamente ser morto, 
nem de qualquer outra maneira pode ser punido por seus súditos"52. 
Tal conseqüência decorre do item anterior, visto cada súdito ser o 
autor dos atos do soberano. Com isto, cada um estaria castigando o 
outro por uma atitude própria. Como o fim visado pela instituição é a 
paz e a defesa de todos, aquele que detém a soberania deve ser o ju iz 
de todos os meios para a paz e a defesa, “quanto de tudo o que possa 
perturbar ou d ificultar estas últim as’’55. Este poder engloba a tomada 
de qualquer decisão para preservar a paz e a segurança, bem como 
medidas para recuperar a paz e segurança, eventualmente perdidas;
6. O soberano é o ju iz com autoridade para especificar as opi­
niões e doutrinas necessárias para fomentar a paz, bem como aquelas 
que deverão ser rechaçadas, por representarem idéias contrárias;
7. Cabe ao soberano o poder de prescrever as regras de disposi­
ção dos bens de cada homem e os limites das ações de cada um, a fim 
de não ser molestado por nenhum dos concidadãos;
8. A autoridade judicial pertence exclusivamente ao poder sobe­
rano que será o único autorizado a ouvir e julgar todas as controvér­
sias, seja sobre as leis civis ou naturais, ou em relação aos fatos;
9. Cabe ao soberano o direito de fazer a guerra e a paz com ou­
tras nações e Estados;
52 Hobbes, Thomas. Op. cit., p. 147.
53 Ibidem, p. 147-8.
27
10. O soberano possui competência para a escolha de todos os 
conselheiros, ministros, magistrados e funcionários, tanto na paz como 
na guerra; \ '
1 1 . 0 soberano tem o poder de elaborar leis que lhe confiram o 
direito de recompensar os atos positivos e punir os atos reprováveis, 
praticados por qualquer súdito;
12. O soberano tem o direito de conceder títulos de honra, bem 
como decidir a ordem de lugar e dignidade que cabe a cada um, bem 
como os sinais de respeito que cada homem deverá expressar em 
relação aos outros54.
Estes direitos do soberano permitem caracterizar o pacto de 
união com três aspectos distintos: [a] a irrevogabilidade, dado que o 
pacto de submissão é celebrado entre os homens; [b] o caráter abso­
luto, pois o poder que cada homem possui, no estado de natureza, 
resta transferido ao soberano; [c] a indivisibilidade, este poder é con­
ferido a uma pessoa, que exerce, com exclusividade, o estabele­
cimento dos direitos e deveres55.
Os homens celebraram o pacto de união, favorecendo a passagem 
do estado de natureza para o estado civil, a fim de atingirem a segu­
rança, que pode ser entendida como o estado onde é possível a obser­
vância das leis naturais sem qualquer risco de sofrermos algum pre­
ju ízo56. Fica evidente que o homem concorda em renunciar ao seu 
direito de natureza motivado pelo medo. Haja vista que o homem 
busca uma forma de viver com o maior conforto possível, aspecto que 
passa a representar a principal obrigação do soberano. Os benefícios 
que o homem busca atingir podem ser agrupados em quatro cate­
gorias: a disponibilização de meios com os quais os homens possam 
defender-se contra os inimigos externos, o homem também quer ter ao 
seu alcance meios de vida pacífica na parte interna da sociedade, o 
acesso a alternativas para proporcionar a segurança pública e usufruir 
da liberdade simples e espontânea57.
54 Hobbes, Thomas. Op. cit., p. 145-50.
55 Tal caracterização é apresentada por Bobbio, Norberto. Op. cit., p. 43.
56 Segundo entendimento de Bobbio, Norberto. Idem, p. 49.
57 Hobbes, Thomas. D e Cive - Elementos filosóficos a respeito do cidadão, p. 168-9.
28
A idéia de Hobbes sobre o homem, como um ser perverso e 
sempre voltado para a busca de vantagens, não muda com a instituição 
da sociedade civil. Os homens se juntam e passam a querer a compa­
nhia dos demais apenas para receber as honras e vantagens da forma­
ção da sociedade, circunstância que fica evidente a partir da enume­
ração acima.
A partir da conclusão da passagem do estado de natureza para o 
estado civil, o soberano passa a usufruir os direitos a ele inerentes. Isto 
equivale dizer que o soberano passa a exercer, com exclusividade, o 
poder de dizer o que é justo ou injusto, de acordo com os limites 
criados através das leis civis, de sua autoria. A criação destas leis civis 
decorre da própria necessidade de estabelecer conceitos comuns sobre 
temas que acabam provocando divergências entre os homens. Desta 
forma, o soberano deverá apresentar regras comuns que permitam aos 
homens distinguir entre aquilo que passa a chamar de “seu” , e o que é 
o “alheio” ', a noção do justo e do injusto; do honesto e do desonesto; 
do bom e do mau, a saber, tudo aquilo que o homem deverá fazer ou 
evitar no seu relacionamento com os demais. Com estes delineamen­
tos nascem as leis civis, que representam “os mandamentos daquele 
que está investido no poder soberano da Cidade, para controle das 
ações futuras dos cidadãos ”58.
Estas leis, baixadas pelo soberano, trazem consigoo dever de 
obediência, posto que são ordens, e não simples conselhos59. Como a 
celebração do pacto possibilitou o surgimento do poder soberano, a 
implementação da soberania passa a ser exercida de forma coercitiva, 
ou seja, sem a participação da vontade dos obrigados, dada a própria 
necessidade de manutenção do estado civil. Tal característica é subli­
nhada por Hobbes: “os pactos sem a espada não passam de palavras, 
sem força para dar a menor segurança a ninguém ”60. Esta idéia da
58 Hobbes, Thomas. Op. cit., p. 105.
59 A ordem pode ser caracterizada a partir do seguinte enunciado: “ Faze isto” ou 
“Não faças isto” , sem a necessidade de qualquer outra justificativa, a não ser a 
vontade de quem emana o comando. Já o conselho, pode ser especificado a partir 
dos mesmos exemplos, mas a base para o seu cumprimento está nos benefícios que 
poderão ser auferidos por aquele a quem se dirige. Desta forma, “a ordem é d irig i­
da para benefício de quem a dá, e o conselho para benefício de outrem". Idem. 
Leviatã ou m atéria, form a e poder de um Estado Eclesiástico e C ivil, p. 201 -2.
60 Ibidem, p. 141.
29
espada representa a força das decisões tomadas pelo poder soberano, 
na medida em que se tomam obrigatórias para todos, pelo fato de 
estarem na sociedade civil61.
Ao soberano cabe, assim, usando este poder, legislar com exclusivi­
dade, sendo considerado o único legislador. Da mesma forma, o soberano 
é o único que pode revogar a lei. Assim sendo, tudo aquilo que o so­
berano ordena deve ser considerado “bem", e aquilo que ele proíbe, deve 
ser considerado “m a r62. Importante ressaltar que nem mesmo as normas 
da “common law ” são capazes de restringir este poder do soberano, pois, 
no caso da Inglaterra, o rei é o único competente para editar leis, quan­
do estiver no exercício da função legislativa. Desta forma, “qualquer 
outra norma jurídica, inclusive as que constituem o direito comum, 
recebe validade unicamente da aprovação tácita ou expressa do sobe­
rano”62. Hobbes se opõe ao direito reconhecido e acolhido pelos juízes, 
por mais sábios que os mesmos sejam, já “que não é a sabedoria senão a 
autoridade que fa z uma le i’,(A. Dentro desta linha de idéias, conside­
ra falsa a premissa de que os juristas sejam capazes de refinar o direito, 
pois na Inglaterra as leis sempre são elaboradas pelos reis. Assim sendo, o 
rei é reconhecido como o único legislador, sendo considerado, outrossim, 
o único ju iz supremo.
Tomando como parâmetro estas idéias, Hobbes define a lei como 
sendo “ um mandato daquele ou daqueles que tem o poder soberano, 
dado a quem são seus súditos, declarando pública e claramente o que 
cada um pode fazer e que deve abster-se de fazer"65. Esta definição 
serve para complementar os contornos da lei civil que foram apresen­
tados anteriormente. A lei civil é dividida em duas partes: uma proibi­
tiva ou distributiva - dirigida aos súditos - e a outra punitiva ou vindi- 
cativa, direcionada aos juízes. Uma lei deve apresentar estas duas 
partes, sob pena de ser inútil66. Evidencia-se, assim, a total ausência 
de preocupação com o conteúdo da norma, já que a perspectiva prin-
61 Idem. Elementos do D ireito N atural e Político, p. 148.
62 Hobbes, Thomas. D e Cive - Elementos fdosóficos a respeito do cidadão, p. 156.
63 Bobbio, Norberto. Op. cit., p. 73.
64 Hobbes, Thomas. Diálogo entre un filósofo y un jurista y escritos autobiográficos, p. 6.
65 Ibidem, p.24.
66 Hobbes, Thomas. D e Cive - Elementos filosóficos a respeito do cidadão, p. 182-3.
30
cipal é a autoridade que produz a mesma. Isto revela uma concepção 
exclusivamente formal67.
Estes parâmetros devem nortear o papel do ju iz na aplicação do 
direito, já que o mesmo precisa respeitar a intenção do legisla- 
dor/soberano na sua sentença, caso contrário, será uma decisão do 
juiz, e, portanto, injusta68. O ju iz acaba sendo transformado em uma 
mera “boca do legislador” , autorizado apenas a repetir o direito 
estabelecido pelo soberano. Nesta atividade, o ju iz pode se afastar da 
letra da lei, desde que não perca de vista o sentido e o significado da 
lei69. Vale dizer, o meio condutor da intenção do autor da lei poderá 
ser substituído por um considerado mais adequado, mas sem perder de 
vista o objetivo buscado pelo soberano com a instituição da norma.
As leis civis não obrigam o soberano, pois ele detém o poder de 
criar e revogar as leis. Com tal característica, o próprio soberano pode­
rá, a qualquer momento, libertar-se da lei que causa algum impe­
dimento ao mesmo. Isto equivale reconhecer que o soberano sempre 
foi livre, porque nenhum homem pode dar a si mesmo aquilo que já 
possuía anteriormente: “sendo a mesma pessoa o ‘obrigado’ e o ‘obri- 
gante’, e tendo este o poder de liberar aquele, seria um gesto vão l i ­
gar-se enquanto pode desligar-se a seu critério, pois isto mostra que 
ele já está livre de fa to ”70.
Não reconhecendo a limitação do poder do soberano pelas regras 
da “common la w ” , Hobbes estabelece algumas considerações sobre o 
costume: a autoridade de lei que este possa vir a receber, não está 
vinculada ao uso prolongado, mas como decorrência da vontade do 
soberano expressa por intermédio de seu silêncio. Com isto, o costume 
somente continua com esta autoridade enquanto o soberano mantiver 
o seu silêncio71. Desta maneira, o soberano é o detentor do poder de
67 Argüelles, Juan Ramon de Paramo. H. L. A. H art y la Teoria A nalítica dei D e- 
recho, p. 114.
68 Hobbes, Thomas. Leviatã ou matéria, form a e poder de um Estado Eclesiástico e 
C ivil, p. 210.
69 Idem. D iálogo entre un filó so fo y un jurista y escritos autobiográficos, p. 8.
70 Hobbes, Thomas. D e Cive - Elementos filosóficos a respeito do cidadão, p. 108. 
Do mesmo autor, Leviatã ou matéria, form a e poder de um Estado Eclesiástico e 
C ivil, p. 208.
71 Ibidem, p. 208.
31
favorecer o surgimento do costume - pelo seu silêncio - bem como a 
sua extinção, quando o soberano rompe o silêncio.
A par disto, fica evidenciado que o D ireito encontra-se l i ­
mitado à vontade estatal, pois cabe ao Estado determinar as con­
dutas a serem observadas pela sociedade. Este monopólio é justi­
ficado pela necessidade da manutenção da concórdia social que 
seria ameaçada se houvesse outro poder com as mesmas possibili­
dades72. Nasce, desta forma, o chamado “ direito do Estado” , que 
configura um direito de soberania, visualizado sob o ângulo dos su­
jeitos, como um “dever de todo indivíduo acatar as ordens emana­
das da instância estatal”73.
Deste conjunto de idéias, surge a concepção de que o direito está li­
mitado à lei, entendida como a vontade do poder soberano, seja manifes­
tada diretamente no texto legal, ou, de forma indireta, na aprovação tácita 
do costume, além das manifestações constantes nas decisões judiciais.
A lei civil e a lei natural formam uma única lei, já que uma está 
contida na outra. Tal aspecto se fundamenta no princípio de que as leis 
de natureza, na realidade, não são verdadeiras leis, mas apenas argu­
mentos impulsionadores dos homens para a paz e a obediência. Tais 
postulados apenas recebem o contorno de leis após a instituição do 
Estado, momento em que se transformam em leis civis, através da 
interferência do soberano, determinando a sua obediência. Assim, a lei 
de natureza é parte integrante da lei civil. A recíproca também é 
verdadeira, porque a lei civil faz parte das regras de natureza. Isto 
ocorre a partir do momento em que os súditos de um Estado prome­
teram uns aos outros (o pacto de submissão) cumprir a lei civil. Des­
tarte, “a le i c iv il e a le i natural não são diferentes espécies, mas dife­
rentes partes da lei, umadas quais é escrita e se chama civil, e a 
outra não é escrita e se chama natural”14. A principal finalidade da 
lei civil é lim itar o direito de natureza, pois, sem algumas destas res­
trições, a vida em sociedade toma-se impossível. Cabe, assim, ao so­
berano dizer através das leis civis o que é justo ou injusto, as quais
72 Hobbes, Thomas. De Cive - Elementos filosóficos a respeito do cidadão, p. 32.
73 Ibidem, p. 34.
14 Hobbes, Thomas. Leviatã ou matéria, form a e poder de um Estado Eclesiástico e 
C ivil, p. 208-9.
32
representam, aceitando-se a relação apresentada por Hobbes, "a exe­
cução coativa das leis naturais ”75.
Para que tal característica tenha sentido, tomam-se necessários 
dois pressupostos: que os homens tomem conhecimento de quem é o 
titular do poder de elaborar as leis e, além disso, devem conhecer o 
conteúdo das leis. O conhecimento do legislador é incumbência do 
próprio súdito, porque o poder de criar as leis foi conferido pelo 
próprio cidadão, através da via convencional, seja expressa ou taci­
tamente. O conhecimento da lei depende do soberano, pois a norma 
legal, uma vez elaborada, deverá ser publicada a fim de possibilitar a 
mais ampla divulgação76. Este ato de dar conhecimento da lei, como 
responsabilidade do Estado, exige que os destinatários da norma te­
nham condições de entender o seu conteúdo, ou seja, todo aquele que 
não tiver esta capacidade, deixará de estar sujeito aos preceitos legais. 
Desta forma, as leis não se aplicam às crianças ou aos portadores de 
alguma anomalia mental, posto que não participaram da celebração do 
pacto. Com isso, não tomaram parte da autorização para a aceitação 
das ações do soberano, circunstância fundamental para a formação do 
Estado77. Vale observar que uma lei escrita não deve ser contrária à 
razão, pois não há nada mais razoável que todos obedeçam à lei a que 
hajam dado a sua concordância. A lei da razão, portanto, determina 
que todos respeitem a lei a que prestaram o seu consentimento, e 
obedeçam à pessoa a quem prometeram submissão e fidelidade78.
Cabe ao soberano, através da edição das leis civis, tomar obri­
gatórias as leis naturais, bem como delimitar o seu conteúdo. Dada a 
existência da lei natural que proíbe violar os pactos, emerge a obrigação 
de observar todas as leis civis. Tal contexto é enunciado através da 
seguinte proposição: “quando somos obrigados à obediência antes de 
saber o que nos será ordenado, temos a obrigação geral de obedecer em 
todas as coisas”79. Desta forma, nenhuma lei civil, com exceção daquelas 
que são contrárias à vontade de Deus, pode ser contra a lei natural. Assim
75 Conforme interpretação apresentada por Bobbio, Norberto. Op. cit., p. 49.
76 Hobbes, Thomas. D e Cive - Elementos filosóficos a respeito do cidadão, p. 184-5.
77 Hobbes, Thomas. Leviatã ou matéria, form a e poder de um Estado Eclesiástico e 
C ivil, p. 210-1.
78 Idem, Diálogo entre un filósofo y un jurista y escritos autobiográficos, p. 61 e 136.
79 Idem, De Cive - Elementos filosóficos a respeito do cidadão, p. 184.
33
sendo, mesmo que a lei natural considere o roubo, o homicídio, o 
adultério, além de outras figuras injuriosas, como atitudes proibidas, será 
a lei civil a responsável pela caracterização de tais figuras. A lei civil 
delimita o campo de ação de cada homem, pois a noção do lícito e do 
ilícito emerge dos seus contornos. Destarte, a ação de tomar alguma coisa 
de alguém, apenas será furto, na medida em que a ação for dirigida contra 
um bem alheio, de acordo com a definição da lei c ivil80.
A partir destes aspectos, delineia-se a noção de delito, caracte­
rizado como uma ofensa de qualquer espécie, em relação a qual a lei 
do país estabelece uma pena. Por outro lado, tomando-se em conta a 
relação entre lei civil e lei natural, Hobbes sustenta que todos os 
delitos são pecados81, mas a recíproca não é verdadeira, pois nem to­
dos os pecados são delitos, uma vez que podem ser cometidos em 
pensamento, dificultando a sua prova82.
O “gigante Leviatã” , que foi idealizado por Hobbes, encontra um 
limite na sua atuação: o direito natural à vida é inalienável, já que o 
direito de defender-se a si mesmo não é abandonado pelo homem através 
do pacto83. Com isso, nasce um limite ao poder do soberano, ou seja, o 
súdito tem o direito de resistir às ordens do Estado quando colocam em 
risco a vida do homem. Haja vista que o poder do Estado é mantido 
enquanto seja capaz de proporcionar a proteção do homem. Evidencia-se, 
desse modo, que o rompimento do dever de obedecer ao soberano não 
está alicerçado no abuso, mas no não-uso, ou seja, não é o excesso, e sim 
a escassez de poder84.
80 Hobbes, Thomas. Op. cit., p. 109.
81 Isto pode ser explicado, de acordo com Norberto Bobbio, pelo entendimento de Hobbes 
de igualar as leis naturais e os mandamentos divinos, já que a diferença entre ambos não 
se relaciona ao conteúdo, mas somente à fonte. Bobbio, Norberto. Op. cit., p. 147. Tal in­
terpretação é ratificada pela seguinte passagem: “(...) leis naturais, por serem preceitos da 
remo natural, (...) são também leis divinas, em relação ao seu autor, Deus-Todo- 
Poderoso; (...)’’. Hobbes, Thomas. Elementos do Direito Natural e Político, p. 129.
82 Idem. D iálogo entre un filósofo y un ju rista y escritos autobiográficos, p. 34-5.
83 Idem, Leviatã ou matéria, form a e poder de um Estado Eclesiástico e C ivil, p. 178.
84 Bobbio, Norberto. Op. cit., p. 51. Interessante observar que José Reinaldo de Lima Lo­
pes justifica esta postura através da seguinte interpretação: “apenas em nome da paz e 
da ordem (segurcmça) pode-se contestar a autoridade, ou seja, é quando a autoridade 
se tom a incapaz de manter um mínimo de ordem que ela deixa de ser autoridade. Em 
poucas palavras, a perda de eficácia significa perda de legitimidade". Lopes, José 
Reinaldo de Lima. O Direito na História - Lições Introdutórias, p. 192.
34
1.3 A influência do pensamento de Thom as Hobbes 
para a construção do positivismo juríd ico
A partir destes aspectos, busca-se a caracterização do positivismo 
jurídico, tomando os postulados hobbesianos como ponto de partida.
O pensamento de Thomas Hobbes sugere um paradoxo: por um 
lado, apresenta-se como um expoente do jusnaturalismo racionalista 
do século X V I I e, por outro lado, suas idéias permitem catalogá-lo co­
mo o precursor do positivismo jurídico85.
Os homens, no estado de natureza, eram essencialmente iguais. 
Não obstante, esta igualdade, como visto, representava um dos argu­
mentos para a instauração da guerra de todos contra todos. A partir do 
momento em que, através do consenso, os homens firmaram o “pacto 
de união” , possibilitando o nascimento do estado civil e, com ele, o 
poder do soberano de ditar as leis, surgiu também a desigualdade entre 
eles: “a desigualdade que atualmente existe fo i introduzida entre eles 
pela le i c iv il”*6. A desigualdade aparece, a partir de então, como um 
dos fundamentos do estado civil, especialmente aquela existente entre 
o soberano e os súditos, a saber, entre aqueles que possuem o direito 
de mandar e os que têm o dever de obedecer. Disto resulta que não 
existem, daqui em diante, outras leis além daquelas impostas e sancio­
nadas pelo soberano87.
A caracterização examinada permite apontar dois pressupostos 
básicos do positivismo jurídico: [a] a unidade política: todos os orde­
namentos foram reunidos num único, ou seja, no ordenamento do 
Estado (Hobbes lançou as bases para a eliminação do dualismo Igreja- 
Estado e do contraste Rei-Parlamento); [b] a unidade jurídica: a única 
fonte do direito é a lei, de autoria do soberano que tem o monopólio 
exclusivo de dizer o que é direito e aquiloque não é, inclusive no 
tocante às normas consuetudinárias88.
Com isso, aceita-se a idéia de que a concepção do justo depende 
daquilo que os homens convencionaram. Assim, o justo é aquilo que o
85 Argüelles, Juan Ramon de Paramo. Op. cit., p. 107-8.
85 Hobbes, Thomas. De Cive - Elementos filosóficos a respeito do cidadão, p. 52.
87 Bobbio, Norberto. Thomas Hobbes, p. 62 e 70.
88 Ibidem, p. 74.
35
soberano quer, pois o homem singular, não estando mais no estado 
natural, deixou de ser o titular da determinação do justo e do injusto. 
O soberano obteve este poder através do consenso, isto faz com que o 
homem seja obrigado a obedecer às ordens do mesmo. Desta feita, 
para algo valer como Direito, deve ter tido origem num comando do 
soberano que sempre se apresenta como justo e isto se verifica, porque 
“o Estado assume o direito e não restam direitos aos súditos, senão 
aqueles reconhecidos pelo soberano ”89. Além disso, como o soberano 
é o único que possui a titularidade de dizer o que é justo e injusto, 
inexiste qualquer outra ação justa além da determinada pelo soberano 
e outra ação injusta além daquela que ele proibiu90. Neste ponto, en­
contra-se uma das raízes do positivismo jurídico, pois o soberano (o 
Estado/Poder Legislativo) é o único que poderá, através da lei, dizer o 
que se pode fazer (o justo) e aquilo que está proibido (o injusto). Desta 
forma, surgem duas características marcantes: “o voluntarismo e a 
autoridade do direito positivo”91.
Partindo-se destes pressupostos, a obra de Thomas Hobbes su­
gere os contornos da justiça formal, ou seja, é a concepção que consi­
dera a justiça como o cumprimento das obrigações, qualquer que seja 
o seu conteúdo, expressa na obediência à ordem contida na lei e ema­
nada do Estado. Assim, a injustiça apenas poderá ser praticada contra 
aquele com que se celebrou um pacto; disto segue que justiça é o 
cumprimento e a injustiça o descumprimento do pacto ou promessa92. 
As idéias assim concebidas produzem a formulação da concepção le­
galista da justiça que considera a lei, enquanto uma ordem de quem 
tem o poder legítimo de comanadar, como o único critério de estabe­
lecer o justo e o injusto; “é justo o que é ordenado, pelo único fato de 
ser ordenado p o r quem tem o poder de ordenar; é injusto o que é 
proibido, pelo único fato de ser proib ido”93. Neste ponto, aparece no­
vamente a concepção formalista do direito, que será responsável, no 
âmbito da teoria da justiça, pelo desenvolvimento de uma concepção
89 Lopes, José Reinaldo de Lima. Op. cit., p. 192.
90 Bobbio, Norberte. Op. cit., p. 83-4.
91 Lopes, José Reinaldo de Lima. Op. cit., p. 192.
92 Conforme Hobbes, Thomas. Op. cit., p. 70-1.
93 Bobbio, Norberte. Op. cit., p. 102-3. Do mesmo autor, D a Hobbes a Marx., p. 13-4.
36
legalista da justiça e, no da ciência do Direito, pela formação da 
dogmática e da jurisprudência conceituai do século X I X 94. ,
Com esta afirmativa, a teoria de Hobbes transita do jusnatura- 
lismo para o positivismo jurídico: as leis naturais prescrevem ações 
boas em relação a um certo fim . Destas leis naturais, a mais impor­
tante, considerada, portanto, fundamental, é a que busca a conservação 
da vida, ou seja a paz. Partindo-se dessa premissa, a primeira lei da 
natureza, derivada da fundamental, prescreve a constituição do Estado, 
através da renúncia de alguns direitos que o homem é titular, isto é, do 
direito a tudo. Desta feita, o Estado é o meio mais eficiente para a con­
cretização do fim supremo definido pela lei natural. Com tal caracte­
rização, delineia-se a relação entre a lei natural e a lei positiva: o Esta­
do está alicerçado na própria lei natural, e as leis positivas, que justifi­
cam a existência do Estado, buscam a sua base na lei natural95. Disto 
resulta que a lei natural é concomitantemente o fundamento de valida­
de do Estado e do dever dos súditos obedecerem às leis positivas.
A par dos aspectos examinados, pode-se referir que “o direito na­
tural constitui o fundamento de validade do ordenamento jurídico posi­
tivo, considerado em seu conjunto”96. Desta passagem podemos concluir 
que o direito positivo não depende do direito natural para formar o seu 
conteúdo, mas apenas para sustentar a sua validade. Para o exato dimen­
sionamento da pretensão de Hobbes, devem ser sopesados os seguintes 
argumentos: o limite entre o bom e o m im é estabelecido pelo soberano, 
ou seja, cabe a ele dizer o que é justo (o ordenado) e o injusto (o proi­
bido); a lei civil deve estar em consonância com a lei natural; o súdito 
deve sempre obedecer às ordens do soberano, sem considerar o seu 
conteúdo, a saber, as leis editadas pelo soberano são válidas independen­
temente da sua conformidade ou não com as leis naturais.
94 Conforme constatação de Argüelles, Juan Ramon de Paramo. Op. c ií., p. 115.
95 Bobbio, Norberto. D a Hobbes a M arx, p. 19-20.
96 Esta passagem é uma das três espécies de sistemas jusnaturalistas, que ainda são 
integradas pelas seguintes: "direito natural e direito positivo estão entre si numa 
relação de princípio a conclusão (ou de máximas gerais a aplicações concretas); 
o direito natural determina o conteúdo das normas jurídicas, enquanto o direito 
positivo, tom ando-as obrigatórias, garante-lhes a eficácia” . Estas duas teses não 
estariam relacionadas ao pensamento hobbesiano, conforme entendimento de Bo­
bbio, Norberto. Thomas Hobbes, p. 140; do mesmo autor, D a Hobbes a M arx, p. 
60 e, ainda, Ensaios Escolhidos - História do Pensamento Político, p. 7.
37
Estas considerações demonstram o localização do pensamento 
hobbesiano dentro dos contornos do jusnaturalismo, quando reconhece 
a existência do direito natural e em nível superior ao direito positivo; 
mas as suas idéias também se inserem no positivismo jurídico, toman­
do em consideração a forma como trabalha aquela superioridade. Haja 
vista que a função da lei natural é justificar a legitimidade e a obri­
gatoriedade do ordenamento jurídico positivo em seu conjunto, e não 
de cada norma individualmente considerada. Desta forma, Hobbes en­
fatiza que o poder civil, na sua constituição, está baseado numa lei na­
tural, mas as normas individuais que este poder vai editando poste­
riormente, não dependem mais das leis naturais particulares, porém 
apenas da autoridade do soberano97.
Os postulados desenvolvidos por Hobbes, que influenciaram o 
positivismo jurídico, podem ser resumidos da seguinte forma98:
1. Prevalência da lei como fonte do Direito sobre os costumes e 
as decisões judiciais, ou seja, desencadeia as bases da teoria monista 
das fontes do direito;
2. Oposição à força obrigatória dos precedentes: o responsável 
pela elaboração da lei não é a “jurisprudentia ” ou sabedoria dos ju í­
zes que são subordinados, mas a “ razão deste nosso homem artificial, 
o Estado, e suas ordens”99',
3. Inabilitação da doutrina como fonte do Direito: as opiniões dos 
jurisconsultos, ou seja, as “responsa prudentium ” não são considera­
das leis por causa de sua autoridade, mas apenas porque são permiti­
das pelo soberano100. Estes dois postulados de Hobbes demonstram 
claramente a sua concepção voluntarista da lei: “auctoritas non veri- 
tasfacit legem ” (a autoridade, não a verdade, faz a lei);
4. Os juízes são reconhecidos como intérpretes delegados do so­
berano: quem julga nos tribunais de justiça é o soberano. Desta forma,
97 Estas idéias são encontradas nas seguintes obras de Bobbio, Norberto. Thomas 
Hobbes, p. 139-50; Ensaios Escolhidos - História do Pensamento Político, p. 8-16; 
D a Hobbes a M arx, p. 59-70.
98 Conforme levantamento apresentado por Argüelles, Juan Ramon de Paramo. Op. 
cit., p. 117-8.
99 Hobbes, Thomas. Leviatãou matéria, form a e poder de um Estado Eclesiástico e 
C ivil, p. 210.
i00Idem. Elementos do D ireito Natural e Político, p. 236-7.
38
“o ju iz subordinado deve levar em conta a razão que levou o 
soberano a fa z e r determinada le i", pois a sentença deve basear-se 
nela a fim de ser justa101. Aqui sublinha-se a concepção imperativista 
do direito, pois não se trata de um conselho do soberano, mas de uma 
ordem, sem preocupações materiais para a validade do direito, além 
do caráter puramente formal. Além disso, a noção de justiça é estri­
tamente convencional, pois depende da definição do soberano, não 
sendo permitida a utilização de qualquer outro critério;
5. Desta característica decorre a chamada “teoria declarativa da 
interpretação ju d ic ia l” , já que os juízes não criam a lei, devem li ­
mitar-se apenas à sua aplicação;
6. O costume receberá contornos jurídicos através da aceitação 
tácita do soberano, demonstrando claramente a sua contribuição para o 
desenvolvimento da compreensão do Estado como titular do monopó­
lio da criação do direito.
' 01 Idern. Leviatã ou m atéria, form a e poder de um Estado Eclesiástico e C ivil, p. 210.
39
2. A CARACTERIZAÇÃO DO 
POSITIVISMO JURÍDICO
O desenvolvimento histórico projetado por estes ideais, abstraí­
dos a partir da obra de Hobbes, são responsáveis, no século X X , por 
um processo de progressiva tecnicização e formalismo no âmbito 
jurídico. A fórmula hobbesiana do “auctoritas non veritas fa c it le­
gem " provoca um esvaziamento dos interrogativos a respeito do senti­
do e da verdade, posto que o soberano exige uma obediência do tipo 
formal e externo, aspecto que também caracteriza a produção jurídica 
do mesmo102.
Não há qualquer preocupação com a validade ética da norma 
jurídica elaborada pelo poder soberano, já que a conduta exigida apre­
senta contornos externos, sem vinculação com a sua intemalização.
Tal caracterização é o ponto de sustentação do desenvolvimento 
da corrente doutrinária chamada de positivismo jurídico. Desta linha 
de pensamento jusfilosófica, serão estudados três autores: Hans Kel- 
sen, Herbert Hart e Norberto Bobbio. A partir de algumas idéias sobre 
o conceito de direito destes autores, busca-se caracterizar o positi­
vismo jurídico, a fim de mostrar, num segundo momento, a inade­
quação deste modelo frente aos princípios.
102Catania, Alfonso. Fondamento dei diritto e prospettiva nonnativistica, 594-5.
2.1 Hans Kelsen
2.1.1 A concepção de Ciência do D ireito
O estudo das propostas lançadas por Kelsen103 pode ser abordado 
de diversos ângulos, dada a sua vastidão e riqueza. Sem dúvida, no 
entanto, a obra central que domina todo o seu pensamento é a “ Teoria 
Pura do D ire ito "104.
Como transmite o próprio título da obra, Kelsen pretendeu for­
mular uma teoria (vale dizer uma proposta científica) que pudesse es­
tudar o seu objeto (o Direito) com uma metodologia pura, ou seja, 
livre de infiltrações consideradas como não sendo jurídicas. O projeto 
idealizado por Kelsen estava voltado, dessa forma, ao afastamento de 
elementos psicológicos, econômicos, políticos e sociológicos, presen­
tes no estudo do Direito em sua época105.
Dentro deste contexto, Luis Alberto Warat enfatiza que o primei­
ro problema enfrentado por Kelsen estava voltado à determinação dos 
princípios metodológicos que possibilitassem a construção de um ob­
jeto teórico, autônomo e sistemático para a Ciência Jurídica. Desta fei­
ta, a busca da autonomia da Ciência Jurídica dependia da já referida 
liberação dos elementos estranhos, a fim de remanescer apenas duas 
questões: “que é" e “como é” o Direito, “sem procurar explicitá-lo, 
transform á-lo, justificá-lo, nem o desqualificar a partir de pontos de 
vista que lhe são alheios” 106.
103Kelsen, Hans (1881-1973). Foi professor das Universidades de Viena, Colônia e 
Berkeley. Entre as suas obras, podemos destacar: Problemas Capitais da Teoria do 
D ireito Político, desenvolvidos do ponto de vista da proposição juríd ica (Haup­
tprobleme der Staatsrechtslehre entwickelt aus der Lehre vom Rechtssatz) (1911); 
O Problem a da soberania e a teoria do direito internacional (Das Problem der 
Souverinitaet und die - Theorie des Voelkerrechts) (1920); Teoria Pura do D ireito 
(Reine Rechtslehre) (1934); Teoria G eral do D ireito e do Estado (General Theory 
o f Law and State) (1945); O que ê Justiça? (W hat is Justice?) (1957) e Teoria Ge­
ra l das Normas (Allgem eine Theorie der Normen) (1979).
104A primeira edição alemã da obra foi publicada em 1934, sendo que em 1960 ocor­
reu a publicação da segunda edição.
105Reale, M iguel. Filosofia do D ireito, p. 455.
106Warat, Luis Alberto. Introdução G eral ao D ireito. A Epistemologia Jurídica da 
Modernidade, p. 149-50.
42
Para empreender este objetivo, Kelsen apresenta um princípio 
metológico fundamental, que é explicitado da seguinte forma:
“quando a si p ró p ria se designa como ‘p u ra ’ teoria do D ireito, isto 
significa que ela propõe g a ra n tir um conhecim ento apenas d irig id o ao 
D ire ito e e xc lu ir deste conhecim ento tudo quanto não pertença ao seu 
objeto, tudo quanto não se possa, rigorosam ente, determ inar como D ireito. 
Q uer isto d ize r que ela pretende lib e rta r a ciência ju ríd ic a de todos os 
elementos que lhe são estranhos ” 107.
Obtido o resultado esperado por Kelsen, resta para a Ciência do D i­
reito apenas o estudo do Direito que será definido a seguir. Convém assi­
nalar que o intuito do autor não é purificar o Direito e nem ignorar as rela­
ções que este estabelece com as áreas antes referidas. Busca-se apenas 
não perder a essência da Ciência do Direito, bem como esclarecer os 
limites do seu objeto108. Com isto, tudo leva a crer que a sua proposta é 
algo mais que uma teoria pura do direito, pois busca uma teoria para uma 
ciência jurídica pura. Tal perspectiva está centrada na descrição de sis­
temas jurídicos particulares, “realizada com abstração de considerações 
axiológicas, por um lado, e sociológicas, pelo outro ” 109.
O ponto de partida para a obtenção desta pureza metodológica é 
a separação proposta por Kelsen entre ciência causal e ciência norma­
tiva. Segundo o autor, é possível delimitar o Direito em relação à 
natureza, a saber, a ciência jurídica - como ciência normativa - das 
demais áreas do conhecimento, através da lei da causalidade. Na natu­
reza há uma ordem das coisas, que estão interligadas segundo o cha­
mado princípio da causalidade, ou seja, a relação entre causa e efeito. 
Esta relação tende a se projetar numa escala infinita: uma causa de­
sencadeia um efeito; este, por sua vez, a partir da sua concretização, se 
transforma em causa de um novo efeito, e assim sucessivamente110. Já 
a ciência do direito, como uma ciência social, parte de um outro prin­
cípio, que pode ser chamado de imputação. Este princípio, que serve à 
ciência do direito, pode ser expresso na seguinte fórmula: “sob deter-
107Kelsen, Hans. Teoria Pura do D ireito, p. 1.
I08Kelsen, Hans. Op. cit., p. 1-2.
l09Nino, Carlos Santiago. Algunos M odelos Metodológicos de “ C iência" Jurídica, p. 
22.
1 l0Kelsen, Hans. Op. cit., p. 84-5.
43
minados pressupostos, fixados pela ordem juríd ica, deve efetivar-se 
um ato de coerção, pela mesma ordem ju ríd ica estabelecido” 111.
Tal distinção está fundada na separação apresentada por Kelsen 
entre o "ser” (sein) e o "dever ser” (sollen). Interessante observar que 
Kelsen lim ita qualquer especulação maior sobre a separação entre o 
“ser” e o “dever ser” , ao afirmar que “é um dado imediato da nossa 
consciência” 112. Segundo ele, ninguém poderá negar a afirmação de 
que algo é, como uma descrição

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