Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Instituto de Biologia Roberto Alcantara Gomes Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas à Distância Disciplina Biogeografia Prof. Dr. Francisco José de Figueiredo Profa. Msc. Jéssica Beck Carneiro Aula 5A. Breve Histórico da Biogeografia Uma visão panorâmica da história da Biogeografia nos permite identificar uma série de fatos e descobertas que contribuíram para o desenvolvimento de vários conceitos e até mesmo para a construção de paradigmas. Muitos conceitos e termos ainda persistem. Outros, porém, hoje obsoletos ou usados com sentido bem diferente do original, devem ser avaliados dentro de contexto de época. O desenvolvimento do pensamento biogeográfico está condicionado a ideias opostas na tentativa de melhor explicar aquilo que assumimos como realidade. Isto é normal e faz parte do intelectualismo. O resgate desta história é importante para entendermos a construção de correntes de pensamento atuais e as metodologias subjacentes. A seguir é apresentada uma retrospectiva histórica da Biogeografia com ênfase em seletos avanços nas fases descritiva, narrativa e analítica, discutindo-se suas influências e complementaridades. Considerando-se também que Biogeografia é uma ponte entre biologia e geologia, e que o espaço geográfico é o cenário para a história das biotas, notas relevantes sobre a história das geociências também são adicionadas. O desenvolvimento do pensamento biogeográfico remonta à própria história da humanidade e está intimamente ligado à própria concepção que o homem passou a ter do espaço Geográfico, coincidindo também com a própria história da exploração geográfica. E muito do que se acreditava tem suas raízes em mitos e lendas das religiões e das mais antigas civilizações. Muitos povos e civilizações empreenderam viagens exploratórias, muitas com finalidade comercial ou militar. Entre aqueles que se aventuraram por mares distantes, tivemos fenícios, gregos, polinésios, chineses, bascos, cartagineses e vikings. Infelizmente poucos registros foram deixados. A Ilíada e a Odisséia de Homero (VIII a.C.) (Figura 1) nos falam de viagens épicas de heroicos gregos (e.g., Jasão, Ulisses) pelo Mediterrâneo e mares adjacentes, repletas de mitos e lendas. Figura 1. Ulisses, rei de Ítaca, protagomista da Odisséia de Homero. Apesar de belas narrativas, elas estão distantes do conteúdo científico. Mas, com base nelas, pode-se ter uma pista de como era o mundo no tempo de Homero. Tratava-se de um anel de Terra cercando os mares conhecidos, o Mediterrâneo e o Egeu. Em torno deste anel de Terra situava-se um oceanus fluvius, um rio-oceano de gosto amargo. Para os gregos haviam quatro ventos, Bóreas (frio, do norte), Euro (do leste), Zéfiro (do oeste) e Noto (do sul) nos “quatro cantos”. Mais tarde, esta mitologia inspiraria a criação da rosa-dos-ventos. Um dos registros geográficos mais antigos é o de navegante Píteas de Messália (atual Marselha), na metade do século IV a.C., que explorou o Mar do Norte na primeira expedição geográfica de cunho científico que se tem notícia e sob os auspícios de Alexandre Magno. Queria conhecer a extensão da Terra em direção ao Norte. Chegou até a Groenlândia (ou, para alguns, a Islândia), referida nos relatos de viagem como ilha de Thule, e fez observações oceanográficas originais, como fluxo e refluxo de marés, e o fenômeno da maré vermelha. Ele ficou deslumbrado com a aurora boreal e o sol da meia-noite. Ao retornar, foi rotulado de mentiroso. Caiu em descrédito. Muitos séculos depois, obteve reconhecimento de sua contribuição para a ciência, sendo considerado por muitos como o primeiro oceanógrafo. Foi Eratóstenes de Cirene (275 - 195 a.C.) (Figura 2a), o bibliotecário-chefe de Alexandria e Siena, contemporâneo de Arquimedes, que concluiu que a terra firme de globo corresponderia a um terço da circunferência terrestre, tanto que a distância entre a costa leste da Ásia e a península Ibérica deveria medir algo em torno de 240 meridianos. Foi um dos pioneiros a declarar que o Sol é o centro do universo e não a Terra. Foi quem pela primeira vez calculou a circunferência terrestre através de um dos experimentos mais fantásticos da história das ciências. Por outro lado, a existência de fósseis marinhos em regiões distantes do mar intrigou Eratóstenes. Ele propôs uma hipótese para explicar o problema. Acreditava que o mar Mediterrâneo tinha abaixado de nível repentinamente devido as aberturas das colunas de Hércules (estreito de A B Gibraltar) e do Ponto Euxino, que comunicava o mar Negro com o Mediterrâneo. Segundo ele, esses dois mares estiveram mais elevados do que no presente, formando junto com o Oceano algo parecido com bacias sobrepostas. Com a abertura, esvaziou-se parcialmente. Daí, encontrarmos vestígios de organismos petrificados e destroços de embarcações em áreas montanhosas ou distantes do litoral acima do nível do mar atual. A sua explicação divergia daquela de Estrabão (58 a.C e 21 d.C.) (Figura 2b), que acreditava que a causa natural estava relacionada a algum fator atual que teria provocado variações consideráveis no nível do mar. Ele percebeu que há períodos de invasão e recuo do mar. Mas postulou que um maremoto (tsunami) seria a melhor explicação para explicar os fósseis em montanhas distantes do mar. Este teria transportado os organismos até os pontos mais altos e depois estes teriam sofrido petrificação natural, transformando-se em fósseis. As duas explicações, mesmo longe da interpretação atual, têm seus méritos. Buscou-se explicar a natureza pela própria natureza, sem recorrer a ajuda da mitologia. Eratóstenes pode ser considerado um precursor do Catastrofismo de Georges Cuvier, no século XVIII, e Estrabão, um precursor do Atualismo de Jean-André Deluc e James Hutton, no século XVIII, e principalmente, Charles Lyell, no século XIX. Figura 2. A) Eratóstenes de Cirene (275 - 195 a.C.). Retirado de: https:// w ww. b i o g r a f i a s y v i da s . c o m/ b i o g r a f i a / e / e r a t o s t e n e s . h t m ; B) Estrabão (58 a.C e 21 d.C.). Retirado de: https://documentariofundeadouroromano.wordpress.com/tag/estraba. Os antigos gregos, de uma forma geral, não acreditavam nem em uma criação recente para o mundo, nem num fim próximo. Muitos, como Aristóteles (Figura 3), argumentavam que à medida que velhas montanhas desmoronam, outras novas surgem em seus lugares, obedecendo a um eterno ciclo de compensações pontuais. Uma forma diferente de ver as coisas veio com a corrente de pensamento dos estóicos que defendiam a proposta que se montanhas desmoronam, o mundo inteiro também está em processo de desmoronamento e condenado, como um todo, a desaparecer até que um novo evento repentino de renascimento ocorra. Esta corrente de pensamento encaixou-se como uma luva na doutrina filosófica cristã difundida na Idade Média, com todos os seus pesadelos escatológicos. Assim, o sistema de pensamento tornou-se tributário da crença religiosa. O mundo eterno de Aristóteles foi colocado de lado. Era mais sugestivo acreditar num ato único de criação e destruição. E até hoje sentimos esta influência quando este ou aquele “profeta” sugere alguma data para o “fim do mundo”. Figura 3. Mapa-múndi sob inspiração aristotélica na época de Heródoto (485?-413 a.C.). Note o locus solis, onde o Sol nasceria todos os dias, ao leste. Daí vem a palavra orientação, ou seja, posicionamentoem relação ao leste ou Oriente, de onde surge a luz. A B Pelo que se sabe, a confecção de mapas parece ser anterior à escrita e teve início nas rotas de viagem, localização de cidades e acidentes geográficos. Enfim, tentativas de administrar e utilizar racionalmente o espaço geográfico. Mais tarde, plantas e animais começaram a ser incluídos contribuindo, muitas vezes, como “impressões digitais” de certas regiões. Um mapa nada mais é do que uma representação reduzida e plana da superfície terrestre. É de se supor que todas as civilizações tiveram algum tipo de representação simbólica ou geográfica do mundo conhecido, o ecúmeno (oikoumené, termo usado desde a época de Alexandre Magno). Um dos documentos cartográficos mais antigos que se tem conhecimento foi obtido em escavações no norte do Iraque e está representado por uma plaqueta de argila exibindo rios, montanhas e a situação geográfica de Nuzi, cidade ao norte da antiga Mesopotâmia, entre 2.300 a 2500 a.C. (Figura 4a). O único mapa-múndi conhecido da Antiguidade é uma planta da antiga cidade de Nippur, na Mesopotâmia, com detalhes em escrita cuneiforme cravado sobre uma pequena placa de argila. Foi produzido no tempo do segundo império babilônico, entre 626 a 539 a.C., e está depositado nas coleções do Museu Britânico, de Londres. Ele nos mostra o cosmo e a Terra no seu centro, em forma de disco. Ao seu redor flui o oceano, o “rio amargo” (Figura 4b). Figura 4. A) Mapa da cidade de Nuzi, norte da Mesopotâmia, 2300 a 2500 a.C.; B) Mapa-múndi babilônico (626 a 539 a.C.) depositado no Museu Britânico de Londres. Visões divergentes quanto à forma da Terra e sua representação no mapa obviamente moldaram nossa interpretação de muitos padrões geográficos e biogeográficos. Cláudio Ptolomeu (100 d.C. a 160 d.C.) (Figura 5) trabalhou como astrônomo, geógrafo e cartógrafo em Alexandria e frequentava a famosa biblioteca desta cidade, destruída e incendiada muito tempo depois (391 d.C.) pela ação de cristãos fundamentalistas. Ele nos legou a obra Geografia, composta de oito livros, copiada e recopiada por séculos. Ela apresentava informações detalhadas sobre povos, rios e montanhas, coordenadas geográficas e orientação pelo posicionamento das estrelas. Registrou cerca de 8.000 acidentes geográficos. Infelizmente não incluiu nenhum mapa, mas foi com base nesta obra que muitos mapas foram elaborados até a Renascença (Figura 6). Figura 5. Cláudio Ptolomeu (100 d.C. a 160 d.C.). Retirado de h tt p : // w w w . s c i e n c e s o u r c e i m a g e s . c o m/ s c i e n c e - source-collection/. Logo de início, desde a Antiguidade e início da Idade Média, duas visões globais entraram em conflito. São os esquemas dos mapas inspirados nas ideias de Aristóteles e Ptolomeu. Naqueles inspirados nas ideias do estagirita, encontramos o ecúmeno em posição centralizada, com todos os continentes então conhecidos (norte da África, Europa e parte da Ásia) reunidos. Em torno desta Terra teríamos o Oceano (oceanus fluvius) formando os limites extremos. Em suma, temos basicamente uma Terra rodeada por oceano. Para alguns especialistas um discípulo de Aristóteles, Dicáiarcos de Messênia, já falava de uma linha de orientação que se estendia das Colunas de Hércules até a Pérsia, cruzando a Ilha de Rodes. Ele teria antecipado o uso das coordenadas geográficas. Naqueles mapas inspirados na visão do mundo de Ptolomeu, os continentes se estendem até as bordas, dando ideia de continuidade, admitindo inclusão de terras ainda não conhecidas (terrae icognitae). O formato deles é geralmente quadrangular. No meio dos continentes teríamos um único oceano, o Indico. A única exceção corresponde à área oceânica referente ao Mar do Norte e suas extensões. Em suma, o padrão é oceano central rodeado por terra. Figura 6. Mapa-múndi inspirado nas ideias de Cláudio Ptolomeu. Tentativas de integração aparentemente impossíveis como a da Terra redonda grega com o mito bíblico da Terra Plana (absorvido de outros povos e civilizações na antiguidade) foram feitas. Nesse sentido distinguimos, a síntese bíblico-cratesiana (baseada nas ideias de Crates de Malos, em 150 a.C.) (Figura 7), conhecida das obras de Martianus Capella e Ambrosius Macrobius, no século V d.C., na qual se representava sobre a Terra redonda quatro “manchas” (i.e., perioeci, ecúmeno, antoeci e antipodes) diametralmente opostas, correspondentes a massas continentais, separadas por grandes extensões oceânicas. Assumia-se que somente uma dessas massas continentais teria vida, o ecúmeno. Nele teria ocorrido segundo a visão judaico-cristã a criação divina dos seres vivos e por lá se espalharam os descendentes de Adão. Figura 7. Síntese bíblico-cratesiana. Na síntese bíblico-aristotélica (com inspiração nas ideias de Aristóteles), assumia-se o cosmos composto de quatro esferas concêntricas ordenadas segundo uma relação decrescente de densidade, do centro para a periferia. Daí, a ordenação dos elementos, terra, água, ar e fogo. E a este conjunto se acrescentava, pelo menos, uma região mais externa, a do éter. O pensamento medieval admitia que havia uma proporção de um para dez entre a densidade de um elemento e a do seguinte. Sendo assim, a superfície da Terra descoberta pelas águas e correspondente ao ecúmeno permaneceria insignificante em relação a imensa esfera de água. Em virtude desta hipótese ad hoc, a porção de terra habitável podia ser representada plana e a Terra, como um todo, esférica, no contexto astronômico. Mas essa integração cômoda viria a ser abalada pelas descobertas feitas com as grandes navegações, no século XV. Outro esquema bastante conhecido na Idade Média delimitava as partes habitáveis da superfície terrestre segundo a teoria das zonas climáticas latitudinais, atribuído a Parmênides, mas melhor conhecida pela exposição de Aristóteles em sua Meteorológica (Figura 8). Assim, a Terra era dividida em cinco faixas climáticas distintas. As duas muito frias e assumidas como inabitáveis se situavam próximas dos polos. Na altura da linha do equador situava-se a zona tórrida, também não habitada e intransponível, mas que separava as duas zonas temperadas, boreal e austral, as únicas com capacidade de abrigar seres vivos. Mais tarde esta divisão influenciou fortemente na divisão ecológica da Terra em grandes biomas. Curiosamente, durante a Idade Média, houve uma ardorosa discussão do ponto de vista teológico se haveria realmente vida abaixo da zona tórrida, na região chamada alter orbis. Muitos achavam que o local seria todo coberto por águas, sem terra habitável. Figura 8 As cinco zonas climáticas em mapa-mundi de autor desconhecido, de 1483. O ecúmeno estava representado em diversos mapas medievais do tipo Orbis Terrarum (chamados de “T-O” ou mapa de roda) (Figura 9). Eles já eram conhecidos desde o século VIII. Nestes a Terra está representada por um círculo no qual se inscreve um “T”. Este “T” teria grande valor simbólico uma vez que vem da letra T ou Tau, do alfabeto grego. E foi interpretado como o próprio símbolo da cruz. Os ramos do “T” correspondem ao mar Mediterrâneo, e os rios Nilo (ramo direito) e Tanais (ou Dom, ramo esquerdo) que dividiam o ecúmeno (i.e., Ásia, Europa e África). Dentro da concepção judaico-cristã, os continentes foram destinados aos filhos de Noé (a Ásia, para Sem; a África, para Cam e a Europa para Jafé). O “O” corresponderia ao oceano circundante ( oceanus fluvius), além do qual se juntavam os cinfins da Terra e do céu, separados por um abismo celestial. O continente asiático era colocado na parte superiordo mapa e, por lá, estaria o paraíso, em ponto de maior altitude. A posição do inferno seria a oposta, nas mais altas profundezas da Terra. Santo Agostinho, em sua De civitate dei, no capítulo referente à descrição do mundo, concordava plenamente com o ecúmeno dos mapas “T- O”. Acreditava-se inclusive que a Ásia contribuiria com a metade do total dos continentes. Figura 9. Mapa Orbis Terrarum. Ainda, de acordo com a cosmologia judaico-cristã, Jerusalém seria o ponto central do mapa, ou seja, o “umbigo” da Terra habitada. Mas, esta tendência de se colocar esta ou aquela cidade no centro do mapa, já era observada em produtos de várias civilizações desde a Antiguidade sob influência religiosa e etnocentrista. Por exemplo, para muitos muçulmanos, o centro do mapa era cidade de Meca; para os hindús, o monte sagrado Meru; para os gregos, Delfos. Aos poucos, nos mapas do tipo T-O, do século XIII, começamos a notar uma preocupação com o registro de animais de áreas geográficas pouco conhecidas. De modo geral, estes mapas dividiam a Terra em três regiões zoogeográficas: a Paleártica (Europa e parte da Ásia), Etiópica (África) e Oriental (parte da Ásia). Nesse contexto, de particular interesse para a biogeografia, destacam-se os mapas-múndi de Hereford e Ebstorf, do século XIII por serem ricos em detalhes (Figura 10). Figura 10. Mapa de Ebstorf (1235). O mapa de Hereford foi produzido pelo clérigo Richard de Haldingham, em painel de 160 cm de altura por 133 cm de largura, em pele de carneiro, por volta de 1290, e recebeu este nome pela associação com a Catedral de Hereford, onde esteve guardado por muito tempo. Já o mapa-múndi de Ebstorf recebeu este nome devido ao fato de ter sido guardado no mosteiro beneditino de Ebstorf, próximo da cidade de Uelzen, na Alemanha. Alguns autores sustentam que teria sido produzido entre 1230 e 1240 pelo britânico Gervásio de Tilbury, um professor de direito canônico. Neste mapa-múndi aparecem alces, auroques, cavalos, saiga, camelo, urso, serpentes, leão, camaleão, algumas aves e grandes felinos representando a região Paleártica. Para a região Etiópica são assinalados elefante, leopardo, hiena, macacos, dromedário, crocodilos, avestruz e antílopes. A região Oriental está representada por papagaio, serpentes, antílope, búfalo e a saiga. Há também registro de animais mitológicos como grifos e unicórnios admitidos como reais pela própria Bíblia. Muitos animais mitológicos que aparecem em antigos mapas e relatórios de viagens são decorrentes de informações de segunda mão ou de quem se deparou com elementos exóticos, desconhecidos e de difícil interpretação. Nesse sentido, o homem passou a associar o que estava vendo com alguma imagem conhecida ou mitológica e tudo isso com muita dose de fantasia (Figura 11). Figura 11. Monstro marinho no imaginário medieval. O mundo ocidental, durante a Idade Média, teve a atividade intelectual controlada pela Igreja. Debatia-se em centros mais eruditos se a interpretação literal ou simbólica das sagradas escrituras seria mais adequada para esclarecer as incongruências reveladas pelo empirismo. O que dizer, por exemplo, da possibilidade da existência dos antípodas (Figura 12), a contra-partida humana abaixo da zona tórrida tropical, na chamada alter orbis? A crença nos antípodas (ou antíctones) se dava principalmente pelo fascínio da impossibilidade de se encontrar com eles. Eles seriam pessoas que têm os pés contra aqueles que estão no hemisfério norte por estarem na parte oposta (“parte debaixo”) da terra. Cada habitante do hemisfério norte teria seu correspondente antípoda, algo do tipo matéria-antimatéria. Na terra dos antípodas, o sol deveria se pôr quando no hemisfério norte ele nasce. Lá ocorreria o inverso de tudo que acontece no hemisfério norte. A sua existência levava a se postular: como permaneciam ligados ao globo terrestre? Por que não caem no vazio? Eles caminham de ponta-cabeça? Figura 12. Criaturas fantásticas no contexto do imaginário medieval. A primeira, da esquerda para a direita é um antípoda, ao lado, um cíclope, bebê de duas cabeças, homem sem cabeça e um cinocéfalo (“cabeça -de-cão”). A geografia da Idade Média avançou pouco em relação ao que tinha sido alcançado desde os tempos de Ptolomeu. Os árabes, nesse sentido, foram intelectualmente mais flexíveis e devemos a eles os maiores avanços neste período. Eles foram os responsáveis pela preservação das obras de muitos pensadores da Antiguidade clássica como as de Aristóteles e Ptolomeu. Entre eles destacamos Al-Biruni, Ibn Batuta, Al-Idrisi e Avicena. Abu Al-Rayhan Mohammed ben Ahmad Al-Biruni (937-1050) contribuiu para a Biogeografia ao constatar que a dinâmica da área de distribuição dos seres vivos tende originalmente a aumentar até atingir um “cosmopolitismo primitivo”. Fez observações importantes em regiões de altas latitudes e também na África e na Índia. Contribuiu também para a maior precisão dos cálculos de latitude e longitude. Curiosamente propôs que o Oceano Índico se comunicava com o Atlântico através de uma passagem nas montanhas do sul da África. Ibn Batuta (1304-1377), o maior dos viajantes árabes, nos forneceu relevantes informações geográficas sobre povos islâmicos e asiáticos. Ele cobriu mais de 75.000 milhas da África até a China fazendo registros inéditos. Al-Idrisi (1100-1154) foi considerado o maior dos cartógrafos árabes e aquele de maior reconhecimento na Europa. Usou nos seus mapas sete zonas climáticas ou de latitude entre o Equador e os polos. Descreveu detalhes geográficos a montante do rio Nilo e até mesmo das pescarias de ostras no Golfo Pérsico. Avicena (980-1036), o maior de todos os pensadores árabes, contribuiU com questões ligadas à origem das montanhas e sobre erosão. Um evento que mudou consideravelmente o panorama foram as novidades divulgadas pelas viagens do veneziano Marco Polo (1254-1324). Entre 1271 e 1275, ele viajou com seu pai e seu tio em direção ao oriente em missão comercial (Figura 13). A viagem teve início em 1260 no período em que o império mongol estava no apogeu sob o comando de Kublai Khan. Marco visitou o imperador no seu palácio em Shangtu (também chamado de Xanadú) e foi muito bem tratado. Retornou para a Europa e mais tarde empreendeu nova viagem para a China, em 1275. Depois de usufruir durante bom tempo da proteção do imperador, Marco Polo retornou à Veneza que, na ocasião, estava em litígio contra a rival Genova. Foi preso. E na prisão ditou suas aventuras para Rustichello da Pisa, seu companheiro de cárcere, que escreveu as anotações em francês. O livro foi lançado em 1306 e logo se tornou um sucesso. Desde então, mapas confeccionados passaram a incluir muitos dos animais levantados por ele em suas viagens. Com a difusão da bússola, inventada provavelmente pelos chineses na Antiguidade, e difundida no Mediterrâneo pelos marinheiros da cidade de Amalfi, na Campânia, no tempo das cruzadas, a cartografia ganhou grande impulso. Figura 13. Viagem de Marco Polo em mapa portulano. Século XIII. Os mapas medievais eram de forte conteúdo teológico. Mas, sua contribuição como a representação real do espaço era muito limitada. Eram impróprios para quem desejava se orientar em viagens por terra ou por mar. No final do século XIII, apareceu na Europa um mapa de caráter mais científico, o portulano (Figura 14), com informações mais precisas sobre acidentes geográficos, coordenadas e correntes marítimas. Nesta carta náutica primitiva criada por navegantes italianos se incluía uma rosa-dos-ventos e até uma escala de milhas. A orientação era feita em relação ao norte magnético de modo que este coincidiacom o ponto cardeal norte da rosa-dos- ventos. Os portulanos catalães feitos em Barcelona ou Majorca, sob influência árabe, eram os melhores, mais bem feitos. Eles cobriam uma área geográfica bem maior do que aqueles tradicionais portulanos e são a principal fonte de informação biogeográfica do século XIV. Nesse período, um dos maiores cartógrafos era o judeu catalão, Abraham Cresques, que produziu o mapa-múndi Atlas Catalão, em 1375. Figura 14. Mapa portulano, século XVII. Nos mapas portulanos, as linhas saídas das subdivisões das rosas-dos-ventos, as linhas de prumo, eram retas. Isto gerava sérias dificuldades para os navegantes que tinham que encarar a esfericidade da Terra. A solução para o problema viria bem mais tarde com a contribuição do cartógrafo holandês Gerardus Mercator (1525-1594) e seu sistema de projeções, no qual as relações entre paralelos e meridianos eram verdadeiras em qualquer ponto da superfície terrestre. Isto foi posto em prática por ele em um mapa-múndi, em 1569, rompendo com a tradição geográfica desde Cláudio Ptolomeu. Mais tarde, outro holandês, Abraham Ortelius (1527-1598), em 1570, publicou aquele que é considerado o primeiro mapa-múndi moderno (Figura 15). Figura 15. Mapa-múndi de Abraham Ortelius, de Theatrum Orbis Terrarum, 1598. Este cartógrafo é considerado pioneiro na proposta de explicação por deriva continental para a configuração atual dos continentes conforme se vê registrado no mapa. Em um comentário sobre a Atlantis (Atlântida) de Platão, publicada em seu Thesaurus geographicus, de 1596, apontou de forma original que as concordâncias nas linhas de costa do Velho e do Novo Mundo não se devem ao acaso. Ele também sugeriu que um evento catastrófico, ou seja, terremotos mais invasão de mar, levou a separação. Não apelou para o mito do dilúvio universal bíblico. Assim, a Atlantis de Platão seria equivalente à própria América e não teria afundado e sim se deslocado para oeste da Europa e África. Já, a primeira teoria biogeográfica tem inspiração bíblica. Como postulado básico temos: um centro de origem bem definido (sejam eles, o Jardim do Éden, centro primário ou original de criação divina; Monte Aratat e Torre de Babel, como centros secundários de radiação) e dispersão a partir destes centros, podendo ou não haver mudanças nos atributos dos seres vivos em função de influência direta do ambiente e herança de caracteres adquiridos. Um dos problemas maiores em termos de explicação é o das barreiras à livre dispersão. Como explicar a presença de certos animais com capacidades limitadas de dispersão em ilhas e continentes distantes separados por longas extensões de mares? No século IV, Santo Agostinho indicou que certos animais poderiam fazê-lo por conta própria, sem problemas, mas outros necessitariam de alguma ajuda externa. Ele postulou a intervenção sobrenatural: transporte feito pelos anjos. Mais, tarde outros pensadores, compartilhando da ideia de centros de origem e dispersões a longas distâncias, postularam eventos episódicos como furacões, tsunamis, troncos de árvore levados por correntes marítimas, “caronas” bem vindas em organismos com maior potencial para dispersar como explicações válidas. Deu-se início a biogeografia do incrível, do fantástico e do extraordinário. As descobertas geográficas feitas no período das grandes navegações (séculos XV e XVI) levantaram a poeira sobre questões intrigantes aceitas com base na interpretação literal da Bíblia. Várias espécies de plantas e animais, muito diferentes daquelas até então conhecidas na Europa, Ásia e África, separadas por imensas distâncias, por vezes oceânicas, foram reconhecidas, sugerindo assim vários eventos de criação e dispersão. Então, começaram a surgir opiniões heréticas. Houve um único (monotopismo) ou mais de um (politopismo) sítio de criação divina? Foram as espécies criadas de uma só vez (monogênese) ou escalonadas (poligênese) no tempo? Para complicar mais a situação, no final do século XV, constatou-se a presença de populações humanas no Novo Mundo: os índios. Isto pôs em dúvida a veracidade do ecúmeno. Teriam sido eles (os índios) também descendentes de Adão e redimidos pela vinda do Cristo? Foram criados independentemente? Uma das contribuições mais relevantes para a história da biogeografia durante o Renascimento foi a do jesuíta Joseph de D’ Acosta (1540-1600) (Figura 16) que postulou uma conexão entre a América do Norte e o bloco euroasiático via ponte de Terra. Mais tarde esta seria descoberta e chamada de Estreito de Bering. Acosta descartou a hipótese da Atlântida de Platão como uma ponte intercontinental. A sua proposta explicaria a chegada dos índios, a similaridade de faunas e floras, bem como a dispersão. Ele reconheceu também o endemismo de várias espécies americanas em relação as equivalentes europeias. No contexto da sua explicação, D’ Acosta nitidamente adotou o modelo de mapa proposto Ptolomeu (i.e., oceano ao centro e continentes na periferia) para acomodar a sua hipótese. Figura 16. Joseph de D’ Acosta (1540-1600). Retirado de h tt p : // o l i v e r c o w d e r y . c o m/t e xt s / 1 604 A c o s . h t m . Outra contribuição importante neste período foi a proposta herética de Isaac La Peyrière (1594-1676) que pôs em dúvida a universalidade do dilúvio bíblico sustentando que as espécies são autóctones para as regiões onde são encontradas. Argumentou também que os chineses seriam mais antigos que os hebreus contrariando nitidamente a crença na interpretação literal da Bíblia. As grandes civilizações da aurora da humanidade cresceram em associação com grandes rios. Esses grandes rios além de contribuírem positivamente para a economia desses povos também apresentaram uma história adversa, ligada a catástrofes e inundações. Evidente que o fenômeno natural da inundação foi imortalizado em numerosos mitos e lendas, onde a ideia de punição, morte, renascimento e recompensa estavam interligadas. Para os egípcios as inundações do delta do rio Nilo correspondiam a eventos cíclicos comandados divinamente. Entre os hindus, no livro dos Vedas, com dilúvio o mundo é destruído e sucedido por outro também obedecendo a ciclos. Calculando-se a quantidade de ciclos, chegaram a idade da Terra a 1.972.947.101 a.C., não tão distante dos 4.6 bilhões de anos que a ciência nos mostra, mas bem distante dos 6 a 8 mil anos proposta na idade média por alguns cristãos baseados na interpretação da Bíblia. A ideia dos ciclos está evidentemente vinculada à constatação do homem da existência de fenômenos naturais periódicos (e.g., fases da Lua, ciclo das marés, estações do ano). O dilúvio universal bíblico corresponde, ao contrário, a um evento único. E certamente, o mito bíblico da Arca de Noé e o dilúvio foi aquele que mais inspirou o desenvolvimento do pensamento biogeográfico ocidental. Ele inspirou a produção de dissertações exaustivas sobre o tema, como por exemplo, a obra Arca Noe, de 1675, de Athanasius Kircher (1602-1680) (Figura 17a,b). Este erudito padre jesuíta tratou melhor do que qualquer um as extensões geográficas do dilúvio, as dimensões da Arca de Noé e seus tripulantes. Para Kirsher, o mundo teria sido criado em 4053 a.C. e o dilúvio teria ocorrido por volta de 2.400 a. C. Sustentava que o evento foi realmente universal e que durou 365 dias. A arca teria três andares, com diversos compartimentos. Mas, já prevendo alguns problemas, ao contrário de Santo Agostinho, considerou que somente mamíferos, aves e certos répteis estariam no interior dela (Figura 18). Usando uma boa hipótesead hoc, considerou que o resto dos seres vivos surgiria por geração espontânea. Logo, não precisariam estar lá dentro. Considerando também a grande quantidade de “tipos” (espécies) desses animais privilegiados (animalia munda) que estavam na arca, formas híbridas (animalia immunda), de sangue impuro, surgiriam depois da saída da arca por cópula promíscua entre puros e impuros e, secundariamente, entre os impuros. Exemplos curiosos são os do leopardo (Panthera pardus) e da girafa (Giraffa camelopardalis). O primeiro seria fruto da união do pardus, um enigmático e atraente felino macho malhado (guepardo?), campeão em relações extraconjugais, com a leoa. O segundo seria o fruto do cruzamento indesejável do pardus com a fêmea do camelo. Figura 17. A) Topografia do paraíso. Retirado de https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Arca_Noe,_topography_of_paradise,_b y_A._Kircher._Wellcome_L0013367.jpg; B) Mapa pós-diluviano de Athanasius Kirsher. Ao longo da história, inundações dos grandes rios que abastecem as áreas onde floresceram grandes civilizações da Antiguidade (Egito, Mesopotâmia, China), foram fenômenos naturais localizados e episódicos que causaram sérios problemas às populações. Eles foram imortalizados em vários mitos e lendas. Mas, um dilúvio universal carece de qualquer evidência histórica. A construção de uma embarcação de madeira de 300 cúbitos (cerca de 135 metros) de comprimento, mais de quatro vezes o tamanho de qualquer uma conhecida em torno de 2000 a.C., sob o comando de um patriarca, Noé, então com 600 anos, parece bastante improvável. Por exemplo, somente a partir do início do século XX, tivemos a construção de escunas que poderiam se equiparar com as dimensões da famosa Arca. Elas, inclusive, dependiam de vigas diagonais de ferro na construção para não se partirem ao meio. Só tinham autonomia para pequenas viagens costeiras. Por causa disso, desde então, a indústria naval começou a investir em barcos de aço. Se a interpretação literal (ou seja, não simbólica ou não metafórica) é assumida, vários problemas aparecem. Se choveu por quarenta dias a ponto de cobrir qualquer extensão de terra, as águas oceânicas seriam diluídas. Aquelas formas de organismos aquáticos com pouca tolerância a variações de salinidade estariam todas mortas. E para onde foram aquelas de vários rios do mundo? Uma saída (hipótese ad hoc) seria aceitar que tirando mamíferos, aves e répteis, o resto dos animais se originaria por geração espontânea, o que sabemos que não ocorre. Como Noé teria feito para coletar animais em locais tão distantes da terra, como Austrália, Nova Zelândia, América do Norte, América do Sul? E em lugares de condições climáticas extremas como desertos e polos? Como manter um estoque de alimento durante um ano de dilúvio para suprir as necessidades de animais que comem tanto, como elefantes e leões? E o que comeriam depois da saída da Arca? Um casal de carnívoros vai procurar um casal de herbívoros e no final não restaria ninguém para contar a história. Uma inundação capaz de cobrir toda a Terra teria exigido cerca de 4.5 bilhões de km3 de água. A quantidade de vapor d’água na atmosfera é bem inferior àquela que seria necessária para existirem nuvens tão carregadas. Daí, um grande problema seria a pressão atmosférica. Ela é causada pelo peso dos gases da atmosfera pressionando sobre a superfície terrestre. O vapor d’água é bastante pesado. Para as condições do dilúvio, a pressão atmosférica ao nível do mar seria em torno de 900 atmosferas, algo equivalente à pressão que há no mar a uma profundidade de 9.000 metros. Sendo assim, qualquer coisa que estivesse sobre a superfície terrestre seria esmagada, inclusive Noé, sua Arca e todos os animais. Ainda, quando o vapor d’água se condensa para formar água líquida ocorre liberação de calor. Se as condições da interpretação literal do dilúvio ocorreram, a condensação para levar a produção de chuva a ponto de cobrir toda a Terra teria liberado altíssima quantidade de energia, algo em torno de 3.500 oC, assim fervendo as águas, aniquilando todos os seres vivos, inclusive os da Arca e sua tripulação. Então, a interpretação literalista da Bíblia tem sido descartada (salvo por correntes fundamentalistas), por muitos que trabalharam na sua êxegese. Só foi energicamente retomada em momentos nos quais a Igreja teve que “arrochar” em virtude de correntes de pensamento que estavam causando instabilidade no controle de seus correligionários e na população como um todo. Figura 18. Alguns animais da Arca de Noé segundo Athanasius Kircher.
Compartilhar