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1 Histórias de Gente Que Lê Galeno Amorim 2 Índice Prefácio Maria Antonieta Cunha .............................................................. 6 Prólogo Missionários da Leitura ................................................................ 8 Introdução Os livros não mudam o mundo ................................................ 11 Parte I Os livros mudam as pessoas. A sacola de Dona Jamila .......................................................... 22 Leitor de florestas e de mundo ............................................... 25 Morador das ruas e leitor ......................................................... 30 Os olhos de Dona Lydia .......................................................... 33 O menino do Desemboque ..................................................... 36 3 Amyr e o mar ............................................................................. 42 O livro dos livros ....................................................................... 46 O livreiro que não sabia ler....................................................... 50 Livro de “um reais” .................................................................... 55 A bola e o livro ............................................................................ 59 Lições de Dona Maria ................................................................ 63 O homem que não vendia os livros ........................................ 68 Do outro lado do muro ............................................................. 72 Ele é o cara! ................................................................................. 75 Marinheiro só .............................................................................. 78 Pequenos leitores do sisal .......................................................... 81 No profundo mar azul ............................................................... 86 A que foi sem nunca ter sido .................................................... 90 Parte II E as pessoas mudam o mundo. O livreiro do Alemão ................................................................. 94 4 Esmeralda cansada de guerra .................................................... 99 O zelador de livros ................................................................... 104 A Bibliojegue do sertão ........................................................... 108 Ler para o outro é um ato de amor ......................................... 113 Santo Antônio Casamenteiro ................................................. 117 O pescador de leitores ............................................................. 120 A biblioteca na roça .................................................................. 125 O semeador do Seridó ............................................................. 128 Operário em construção ......................................................... 132 Mães que amam demais ........................................................... 135 Entre livros e pneus ................................................................. 139 A encantadora de leitores ........................................................ 143 O pedreiro e os livros ............................................................... 147 João que virou juiz .................................................................... 153 Histórias que acolhem ............................................................. 155 O tapete mágico da Tia Aninha .............................................. 159 Sobre carnes e livros ................................................................ 163 Bibliotecárias não sabem disfarçar ......................................... 168 5 Epílogo ..................................................................................... 172 6 Prefácio e todas as pessoas que conhecem Galeno Amorim, acredito que nenhuma deixaria de identificar sua paixão maior: a causa da leitura, que, das mais variadas maneiras e pelos mais diferentes pontos do país, ele procura obstinadamente defender para todos os brasileiros! Porque, para ele – como para muita gente boa –, a leitura é mesmo um direito de todos, tão fundamental quanto a saúde, a habitação, o saneamento básico, a liberdade de expressão – por exemplo. Um direito, mas também uma esperança: “Os livros transformam pessoas, e pessoas transformam o mundo.” E, em muitas frentes, procura fazer chegar essa posição ao maior número possível de pessoas. D 7 Pois nessa busca de novas formas de propagá-la, Galeno resolveu reunir em um livro algumas histórias exemplares: apresenta-nos figuras brasileiras, que, nas mais diversas regiões do Brasil e nas mais distintas condições (sempre adversas), tiveram suas vidas modificadas pela descoberta da leitura (mais precisamente, do livro) e, a partir daí, conseguiram mudar a vida de alguém, ou de muita gente - transformados todos, também, em leitores. Várias das histórias e personagens apresentadas por Galeno são também do meu conhecimento, e atesto – embora desnecessário – a sua veracidade. São relatos comoventes, às vezes impressionantes, a maioria, de pessoas muito simples (à época dos fatos iniciais, pelo menos), com ações igualmente modestas, e que ganharão de imediato a admiração dos leitores, assim como têm o reconhecimento de suas comunidades. Que fiapo de luz, que traço especial terão em comum todas essas figuras? Acredito que é isto que espera o Galeno: que essas vitórias, aparentemente pequenas, se pensarmos nas dimensões e carências brasileiras, sejam o atestado de possibilidades, que ele quer ver multiplicadas. Da minha parte, é isso que também eu desejo que aconteça. Tenho a convicção de que estas histórias podem inspirar outras tantas, da mesma forma que a arte em si (e, portanto, a literatura lida pelas figuras desses relatos) pode ser inspiradora. Prefiro, no entanto, 8 relativizar a força da leitura (mais ainda, a força do livro), sempre possível, mas nem sempre exercida: a história da humanidade (inclusive a de artistas extraordinários) e a história do Brasil (a que se desenrola diante de nossos olhos assustados, por exemplo) mostram que homens “letrados e cultos” podem não se tornar melhores, nem mais conscientes, nem mais patriotas, pela leitura e pela arte. Imagino, por outro lado, que possa haver vida feliz, produtiva e sábia mesmo fora da leitura de material impresso, ou mesmo virtual. Pode ser mais difícil, pode funcionar mais em determinadas comunidades, pode fazer mais sentido para uns do que para outros, mas acredito que seja possível. Preciso ter também essa esperança. O que me parece justo afirmar é que, por si, a leitura não fará mal algum – a ninguém, e que poderá fazer um enorme bem – a todos, ou quase. Todas as lutas em favor da leitura são, portanto, muito importantes. Por isso, desejo fortemente que, tal como nestas histórias, este livro caia também em mãos de muitos leitores que tenham - quem sabe? – aquele mesmo fio de luz das suas personagens e que eles se sintam motivados a engrossar as fileiras do bom combate do nosso corajoso autor. 9 Missionários da Leitura Aos professores, bibliotecários, gestores, técnicos e demais pessoas que se colocam entre livros e leitores a fim de aproximá-los. inguém pode ser obrigado a ler, nem a escrever, a cantar ou a dançar. Tampouco deve ser obrigado a saber o significado das coisas todas da vida. Por que ler, acima de tudo, é um ato de liberdade: introspectivo, espontâneo, libertador. Por isso, livros nos fazem livres! Ninguém nasce sabendo ler. Como não se nasce sabendo escrever, cantar ou dançar. Também não se nasce sabendo pronunciarpalavras ou apreciar um bom filme, teatro ou quadro. N 10 O certo é que ler – como tantas coisas na vida – não é um ato natural. Natural, isto sim, é respirar, comer e andar, se proteger do frio e do calor. É sentir medo e reagir. Natural é esse desejo intrínseco de, em algum tempo, ser feliz. Mas ler, não. Ler pede atitude, esforço, aprendizado – habilidade mesmo. Demanda oportunidade e investimento pessoal. E requer que se pratique, até que se tome gosto pela coisa – tal como se aprende a gostar de música boa, de jogar xadrez ou de admirar dribles geniais numa pelada de rua. Ler é coisa do espírito, que também pede certo esforço do corpo, boa vontade e dedicação, até que, um dia, torna-se absolutamente algo essencial, um alimento mesmo da alma. Não por outra razão cabe a toda a gente instigar esse namoro – que vira noivado e, depois, casório – entre livros e leitores, tal qual um Santo Antônio Casamenteiro dos dias de hoje. Um missionário a espalhar a boa nova do conhecimento pra tudo quanto é canto. Mas que isso seja feito com jeito, com delicadeza e com amor. Pois não há outro jeito de cultivar e cativar o bicho leitor. Esse que cresce e ganha corpo na medida da sustança das boas histórias, da sonoridade das palavras, do afeto que elas encerram. Da magia e da engenhosidade de quem cria e inventa o tempo todo. Tratemo-lo, pois, o bicho leitor, com carinho. Como a um filho que nasce, cresce e conquista a autonomia de voar. 11 Façamo-lo, pois, gostar dos livros como a criança gosta da flor, para que, seduzido e encantado, possa jamais ser curado dessa vontade irresistível de se deixar levar pela beleza das palavras e, assim, mergulhar fundo nesse oceano de ideias. Porque, para ele, o leitor, há um sentido especial em cada palavra impressa: aquilo a que se chama de a força mesma das coisas. Daí, a necessidade, danada, e jamais saciada, de se ter, sempre, à mão, uma página que seja pelo simples prazer de apalpar, de cheirar e sorver com os olhos tudo o que faz lembrar um livro. Ao aprender a decifrar os sinais, bebendo dessa fonte, descortinam-se os horizontes e descobre-se, enfim, o bom prazer de ler. Agora, um leitor de mundo, ele é capaz de aprender e apreender, de se reinventar o tempo todo. De compreender e interpretar cada coisa ao seu redor. E, ao ler pelos olhos do outro, de se tornar um sujeito melhor, tolerante e amoroso. Ao tomar para si o conhecimento universal e construir o seu próprio, o leitor, alarga a inteligência, supera o improvável e descobre a capacidade própria para o amor – fundamento elementar para se mudar o mundo, o de dentro e o de fora. Pois para quem, agora, já tem a sabedoria para ler o mundo, tudo é absolutamente possível! 12 Os livros não mudam o mundo “Os livros não mudam o mundo. Os livros mudam as pessoas. E as pessoas mudam o mundo.” a primeira vez em que ouvi alguém pronunciar o conjunto de frases acima, que me parecem traduzir, com precisão e uma clareza incrível, o papel que os livros exercem na vida de homens e mulheres na sociedade, sorri, discretamente. Afinal, aquela dúzia e meia de palavras sintetizavam, em boa medida, com objetividade extraordinária, centenas de páginas de consistentes reflexões a respeito do tema sobre as quais eu já me debruçara antes. N 13 Esse contentamento também era movido por ver a quem sua autoria era, naquele momento, atribuída: José Bento Monteiro Lobato – ele mesmo, autor que, mais de setenta anos após sua morte, continua a ser referência, e preferência, nacional. Nada de se estranhar, portanto, que o pai da boneca Emília, Narizinho, Pedrinho, Tia Nastácia, Visconde de Sabugosa e Dona Benta, e de uma porção de invencionices do Brasil da primeira metade do século XX, pudesse ter trazido à luz uma síntese de pensamento tão definitiva sobre a função social dos livros para a humanidade. Já fora ele, Monteiro Lobato, o grande precursor da literatura infantil brasileira. Antes dele, só se via, por aqui, livros infantis com textos estrangeiros e, em geral, muito distantes da nossa cultura. Lobato foi responsável direto pelo surgimento, durante as décadas seguintes, de brilhantes gerações de escritores do gênero. Embora haja quem discorde, a ele também se deve o crédito pela invenção do mercado editorial tal qual se conhece hoje em dia. Isso graças às suas geniais sacadas como editor para aumentar as tiragens de suas publicações e para fazer com que os livros chegassem onde o povo letrado estava. Das prosaicas pharmácias às vendas, os armazéns de antigamente, predecessores dos megas e hipermercados da atualidade: qualquer canto deveria, segundo dizia, abrigar um ponto de venda de livros. Nada de espantoso, portanto, creditar a Lobato, venerado por seu papel incansável na defesa dos livros e da literatura do Brasil, 14 tamanho acerto e capacidade de concisão, e justo por algo pelo qual sempre batalhou. Não fora ele, afinal, que apregoara que “uma nação só se faz com homens e livros”? Mas qual não foi a minha surpresa ao, muito tempo depois, tomar conhecimento de que aquilo era, simplesmente, um erro terrível: — Isso não é Lobato nem aqui, nem na China... – tratou, de me explicar (gentilmente, a bem da verdade) um amigo pesquisador, anos mais da tarde. Nos anos seguintes, ouviria e leria, em muitas ocasiões, gentes de universidades, academias, editoras, livrarias e do governo darem, enfim, o devido crédito a alguém que, sem sombra de dúvida, faz por merecer todo e qualquer tipo de gratidão do povo brasileiro e dos amantes, em geral, da boa literatura: Mário Quintana, o genial poeta gaúcho. Ao que parecia, seria, mesmo, Quintana quem teria dito – com a simplicidade, sensibilidade e sabedoria de poeta – esta e uma porção de outros ditos e frases que, na era internet, têm sido propagados com espantosa rapidez. Graças às ferramentas modernas que permitem buscas incríveis em frações de segundo, podemos recorrer e utilizar, a todo instante, frases belas que costumam causar efeito imediato. 15 Quando, contudo, obediente e disciplinado, e desta vez também resignado, já me habituara com o novo – e, ao que tudo indicava, definitivo esclarecimento do senso comum em torno de tão importante questão – eis que seria, novamente, surpreendido por uma nova e, a essa altura, arrasadora errata: — Estão todos redondamente enganados – foi o que ouvi, aturdido. A nova e, sim, definitiva corrigenda viria, desta vez, amparada por alguma base científica. Pesquisadores, leitores e admiradores do poeta gaúcho chegaram a criar blogs e comunidades virtuais, na internet, para alertar contra a enxurrada de frases e pensamentos indevidamente atribuídos a Quintana. Nada contra ele, faziam questão de explicar. Aliás, muito pelo contrário: — O grande problema é que corremos o risco de levar os jovens e as novas gerações a conhecer, e até a aprender a admirar, um Quintana que, simplesmente, não existe – argumenta um deles, com boa dose de razão. Uma comunidade criada no finado site de relacionamentos Orkut, precursor do atual Facebook, explicava, já no próprio título, ao que viera: “O verdadeiro Mário Quintana”. A página se propunha, com relativo sucesso para a época, “a pesquisar e a desmistificar, com a ajuda de colaboradores voluntários, o que não consta da obra conhecida do poeta”, dando “nomes aos verdadeiros bois, no caso, http://emiliopacheco.blogspot.com.br/2005/05/o-verdadeiro-mario-quintana.html 16 os autores de versos e pensamentos creditados indevidamente ao gaúcho”. Quem se debruçou sobre toda a obra de Quintana (que pode ser encontrada em Poesia Completa, da Nova Aguilar) ou leu as suas entrevistas ou mesmo o livro Ora Bolas, que Juarez Fonseca escreveu sobre ele, jamais encontrou a dita cuja. Uma pesquisadora dá overedito sobre a citação: — Até hoje não foi possível identificar a autoria por absoluta ausência de fonte. Mas uma coisa é certa: do Quintana é que não é... Há especialistas que atribuem a autoria da frase ao senador romano Caio Graco, que viveu entre 157 e 121 antes de Cristo. Eles sustentam que a frase teria sido traduzida inúmeras vezes até ganhar o seu formato atual, agora com uma referência explícita aos livros. Desde então, tenho preferido imaginar que qualquer um dos três – ou, quem sabe, todos eles, cada qual a seu tempo – pode, muito bem, ter dito isso ou algo parecido, tamanha a força e a capacidade que essas três pequenas frases têm para expressar tão poderosa ideia sobre esse objeto conhecido como livro e a sua vocação transformadora, e, assim, perigosa. Sobretudo se, depois de se apropriar do seu conteúdo, dá-se dentro desse leitor um rebuliço interno de inquietações e de novas percepções, formulações e atitudes. 17 Tenho ido a diversas localidades conversar com gente atrás de boas histórias de leitores. A primeira impressão que dá é que as práticas sociais da leitura têm propiciado, de fato, microrrevoluções por toda parte. Tão íntimas que, por vezes, nem dá para percebê-las. Mas também outras que se materializam das mais diversas formas e promovem pequenas, porém vigorosas, modificações no cotidiano e no próprio entorno social desses leitores. E, cada vez que um só leitor, que seja, opera em si alguma mudança mínima – e esta se soma a tantas outras que se dão, simultaneamente, nos mais diferentes rincões do planeta –, ele move uma força poderosa, capaz de tornar o mundo um lugar melhor para se viver. Afinal, desde que Gutemberg inventou a prensa que deu origem ao livro, tal qual o conhecemos e admiramos hoje, – este que é considerado a maior invenção do último milênio – não são poucas as histórias de personalidades que, sendo leitores e tendo lido qualquer uma das dezenas de milhões de obras já publicadas pela humanidade, acabariam por protagonizar feitos importantes que causaram massivas transformações na sociedade. Se Quintana, Lobato ou Caio Graco disseram, ou não, tais palavras mágicas sobre o poder dos livros nem é o mais importante. Pode, muito bem, ter saído da boca de uma pessoa qualquer, às margens da história, e, mesmo assim, ter chegado ao nosso tempo, de forma tão imponente, a ponto de ter influenciado tantas gerações. Prefiro crer que todos possam, sim, ter dito! 18 E, mais do que isso, que outras tantas pessoas, em diferentes épocas da história humana, tenham se importado e levado adiante a poderosa força dessa ideia. Assim como eu e você, por exemplo, podemos estar, agora, fazendo, ou já fizemos, ou ainda haveremos de fazer no futuro. O que você vai ler neste livro é uma pequena coleção de pequenas histórias de pequenos leitores que são, na verdade, enormes. Após tantas buscas, pesquisas e conversas, a conclusão é que, de fato, os livros, por si só, não têm qualquer condição de mudar as coisas e o mundo. Talvez, ainda, os livros venham a ocupar espaço ligeiramente maior no tempo livre das pessoas, propiciando, assim, conhecimento, melhoramento pessoal, lazer e entretenimento cultural de qualidade. Mas, a julgar pelas histórias colhidas em diferentes locais ao longo dos últimos anos, vivenciadas por homens e mulheres, negros e pobres, crianças e velhos, os livros, com suas histórias e personagens formidáveis, têm sido capazes de provocar pequenas grandes mudanças em cada um de nós. E, então, como nos têm ensinado Quintana, ou Lobato, ou Graco (ou, então, nenhum deles!), serão essas pessoas – que podem atender por nomes como Evando, Otávio ou Esmeralda, personagens deste livro – que encontramos em nosso dia a dia, num açougue, numa 19 borracharia ou numa viagem de barco pelo interior da Amazônia, que seguirão mudando, em tempo real, o mundo em que vivemos. *** Nas páginas que se seguem, eu vou defender as habilidades de leitura e de escrita como ferramentas ímpares para o desenvolvimento individual das pessoas e a transformação da sociedade ao seu redor. Por vezes, pode ficar a impressão de que parece não existir vida inteligente e salvação para a humanidade fora do cultura letrada. Não é assim. O certo é que a leitura e a escrita são formas fundamentais, ou até mesmo superiores, para apoiar e estimular nosso crescimento íntimo, bem como as mudanças no nosso dia a dia do ponto de vista da vida social. E, ainda, as estruturas que lhe dão forma e ritmo. Isso tudo, claro, tendo como referência as formas de sociedade que conformam – mais como regra do que exceção – o mundo como conhecemos atualmente Quando se fala da leitura e da escrita, se fala de capacidades de desvendar códigos e de se manifestar a partir desses sistemas codificados, e, mais do que isso, de capacidades de análise, de reflexão e de sentimento, treinadas pelo contato mais profundo com a literatura. A dignidade que todo ser humano tem por ser humano – por respirar, por se mover, por se alimentar, por sentir, por pensar, por 20 se expressar, por trabalhar, por se emocionar, por sofrer, por sonhar – independe de se saber ler e escrever. Só que o analfabetismo e a incapacidade de uma leitura mais aprofundada criam legiões de excluídos, em locais espalhados ao redor do globo ou áreas específicas de um mesmo país, de uma mesma região, de uma mesma cidade. Assim, é inegável que o domínio sobre a palavra escrita é, sim, uma porta de entrada para um mundo de direitos. A mesma estrutura de poder que não garante uma educação de qualidade para todos, cria oportunidades ou dificuldades distintas àqueles que dominam ou não a palavra escrita e todo o conhecimento formal por ela delimitado. A marginalização dessas pessoas devido à falta de familiaridade com as letras costuma se combinar a outras, tais como classe, raça, gênero, e, mediante às diferentes combinações desses e outros traços, são punidos de formas diferentes. Mas, além da sua dignidade pessoal inerente à experiência humana, a sensibilidade, o conhecimento e a faculdade de expressão, que distinguem alguns como brilhantes, não dependem das habilidades de leitura e escrita. Aquela coisa mágica que torna certos indivíduos grandes – não exatamente aquelas grandes personalidades da história, mas os que conseguem brilhar na sua vida, não importa qual a sua ocupação – nasce em si e independe da leitura e da escrita. 21 O que há de mais mágico, e de mais humano, no ser humano sãos as suas capacidades de sentir, de pensar e de se comunicar. Não é a leitura, não é a escrita. Só que, além de impulsionarem oportunidades e evitarem punições em um mundo seletivo, injusto e cruel, essas habilidades e, especialmente, a leitura e escrita de literatura aproximam as pessoas, por meio da comunicação, de todo o pensar e o sentir que já foram registrados, preservados e que se encontram disponíveis aos potenciais leitores. Aproxima as pessoas de pessoas. A leitura e a escrita trazem em si uma enorme possibilidade de tornar alguém mais humano, na medida em que o colocam para partilhar da humanidade dos outros e, com os outros, compartilhar a sua humanidade. Somada a essa tarefa de mediação e aproximação exercida pela palavra escrita, o consumo de arte, de uma forma geral, e, em especial, da literatura tem a tarefa de promover um tipo de nivelação da sociedade. Enquanto, para alguns, o brilho da sensibilidade e do conhecimento se apresentam de forma natural, para outros, a literatura pode aproximá-los de toda reflexão que não conseguiriam alcançar sem a experiência da leitura. 22 Parte I Os livros mudam as pessoas. 23 A sacola da Dona Jamila ona Jamila já passou dos oitenta, mas conserva uma vitalidade, física e intelectual, impressionante.Uma ou duas vezes por mês, ela sai, cedo, de casa e se dirige ao centro da cidade. Lá chegando, entra direto no velho e imponente casarão que, no passado, serviu de moradia para alguns dos mais poderosos coronéis do café da Velha República. Ela repete, há anos, esse mesmo ritual. Vasculha, cuidadosamente, entre as prateleiras envelhecidas pelo tempo em busca de novidades. Ela só sai de lá quando a sacola estiver cheia. Então, sorrirá aliviada: seu mês está garantido! Ou, como costuma ela mesma dizer, sua vida está, por mais algum tempo, salva. D 24 O que será que a mulher idosa, de cabelos esbranquiçados e de aparência frágil, uma decorrência da idade, carrega na sacola com tamanho apego? — Livros! – ela responde. São quatro ou cinco deles que, invariavelmente, Dona Jamila toma emprestado a cada vez que vai à Biblioteca Altino Arantes, em frente à praça principal da cidade. Mais tarde, quando chegar em casa, vai abrir, calmamente, cada um deles e sorver, primeiro, o que vai impresso na capa e na contracapa. Depois, fará um breve passeio pelas orelhas da brochura e dará uma espiada no prefácio para, então, e, finalmente, mergulhar de cabeça numa nova viagem. Esse ritual é um verdadeiro roteiro de prazer para a mulher. A vista cansada nunca é desculpa. Professora aposentada, Dona Jamila lê quatro horas todos os dias. Em média, é um livro novo por semana. Ou quatro por mês. Ou, ainda, em torno de cinquenta a cada ano. Chova ou faça sol, é sempre assim. Dona Jamila adora os livros de ficção, e, especialmente, as novelas policiais. Nos dias em que vai à biblioteca, ela mais parece uma adolescente revirando as prateleiras atrás de novidades literárias. A mulher trabalhou, boa parte da sua vida, como assistente social, inicialmente em São Paulo, capital, e, mais tarde, no interior do 25 Estado. Embora nunca tenha viajado para fora do país, descreve com detalhes algumas das principais cidades do mundo. — Já estive em Paris, Roma, Londres... – ela anota mentalmente, enquanto relembra curiosidades sobre ruas e lugares das metrópoles mais charmosas do planeta que viu a partir das páginas da literatura. — Minha vida jamais seria a mesma sem os livros – ela assegura, com convicção. A história de Dona Jamila é uma história simples. De uma pessoa comum, “Sem nada demais”, conforme ela própria diz. Mas é a história de alguém que vive a buscar, todo santo dia, em cada nova aventura literária em que se mete, na sua sala de estar ou na calmaria do seu quarto, conhecimento, prazer e novos sentidos para a vida. Rumo aos noventa, a velha professora continua a ensinar uma lição diária sobre o amor pelos livros num país que ainda carece de gente que leia ou que leia mais. A experiência da senhora, é, de fato, algo alvissareiro, exemplo de um bom rumo para o Brasil trilhar. Diante da legião de leitoras de idade avançada como Dona Jamila, que se vê cada vez mais pelos quatro cantos do País, e da força – para os menos atentos – invisível que elas transmitem, não dá para permanecer indiferente. 26 Leitor de florestas e de mundo ilho e neto de ribeirinhos, Tenório passou a infância entre cipoais e banhos de rio na Costa do Cabaleana, lugarejo ermo escondido às margens do Rio Solimões, perto de São Tomé, onde nasceu. Um dos povoados que formam o município de Manacapuru, no interior da selva amazônica, aquela era uma localidade abandonada à própria sorte, onde escola era um luxo que jamais existira. Quem quisesse aprender o bê-á-bá para ser, como se dizia por lá, alguém na vida; que se virasse por conta própria. Com sorte, talvez encontrasse uma boa alma que se dispusesse a ensinar o pouco de escrita e leitura que sabia. Nesse caso, a sala de aula podia ser F 27 improvisada num canto qualquer, pois a falta de espaço não era, propriamente, um problema por ali. Não por outra razão, a mãe de Tenorinho levou um susto danado naquele fim de tarde, ao voltar do trabalho no campo de juta. Ela ficara, justificadamente, surpreendida diante da cena insólita: e não é que seu menino, que jamais botara os pés numa escola, estava lendo de verdade? Devota e temente a Deus que era, a mulher sequer teve tempo para tentar compreender o milagre, já que Tenorinho desembestara a falar e a exibir os seus novos prodígios diante da mãe, estupefata. Parecia ser mais um daqueles mistérios inexplicáveis da floresta, onde a sobrevivência, por si só, já é uma grande façanha, tamanhas as adversidades do cotidiano. O fato é que o moleque agora sabia ler. Aprendera, sabe-se lá como, a juntar letras e a formar palavras. Os poucos entendidos do lugar garantiam que aquela mistureba toda de rabiscos, feitos com um toco de lápis sobre um pedaço de papel puído, fazia, sim, algum sentido. — Bê... Ah... BÁ! – Tenorinho soletrou, com pompa e todo cheio de si. Era uma sílaba, alguém se apressou a explicar. Enfileiradas umas às outras, com certa parcimônia, poderiam constituir palavras ou frases inteiras. Um espanto! 28 Era assim, tratou-se de esclarecer, que as pessoas estudadas da cidade transpunham para o papel suas ideias, o conhecimento que recebiam de seus ancestrais e tudo aquilo que era dito com a boca ou sentido com o coração. Tenorinho enchia o peito: — BA – NA – NEI – RA! À medida que aquele som gutural saía de suas entranhas, parecia ganhar forma, diante de seus olhinhos, a imagem exuberante da planta tropical, com seus cachos amarelos dependurados. O menino Tenório, agora, conseguia ligar nomes e coisas e ampliava, mais e mais, o seu universo pessoal. Anotava, num caderninho, as novas palavras que aprendia e cantarolava, repetidas vezes, para si mesmo até conseguir guardá-las. Cada descoberta era um novo troféu para a sua coleção. A bem da verdade, Tenorinho havia tido, sim, um mestre. Fora um velho tio, que mal conseguia ler e escrever o próprio nome. Mas, como em terra de cego quem tem um olho é rei, dava bem para o gasto. No entanto, danado e ligeiro como só ele, Tenorinho havia, em pouco tempo, aprendido quase todas as palavras disponíveis. Como seguiria aprendendo? Foi quando alguém apareceu com uma bíblia, o livro mais lido do mundo e, por meio do qual, muita gente, como Tenorinho, aprendera a ler. Assim que se alfabetizou, o menino passou a ler, todos os dias, os versículos e salmos para a mãe, que era analfabeta. 29 Ele não sabia, mas naquele singelo gesto de amor começava a ser forjado um eloquente orador. O menino da selva crescia. Por dentro e por fora. Mas as dificuldades não tardaram a surgir. A primeira delas: não havia outros livros no vilarejo. Sem escola, biblioteca, livraria ou uma banca de jornal que fosse, como ele poderia continuar aprendendo? A mãe entendeu que a única maneira de propiciar ao filho a oportunidade que ela própria não tivera – arrumar um bom emprego na cidade grande – seria se mudar para a capital. Tomou o filho pela mão e subiu num barco rumo a Manaus. Era uma mulher de poucas, porém sábias palavras: — Pobre só tem chance de ser alguém na vida se sabe ler e escrever – ela sentenciou, resoluta, antes de partirem. A mudança para a capital do Amazonas, no entanto, não fora suficiente para deixar, de vez, os tempos difíceis para trás. As dificuldades só faziam crescer. O dinheiro mal dava para alimentar as bocas da casa, quanto mais para comprar livros. Mas Tenório não se fazia de rogado. Varava noites, em claro, até decorar trechos inteiros das cartilhas emprestadas dos amigos. Era esse o único jeito de ter acesso ao mundo dos livros e da cultura letrada. O tempo passou e o meninote cresceu. À custa de muita leitura sob a luz de lamparina, Tenório entrou para o curso de Direito da 30 Universidade Federal do Amazonas. Concluiu o curso e, como almejava trabalhar com algode que gostasse muito, acabou indo fazer também o curso de Letras. — Eu estava perdidamente apaixonado pelas palavras... – lembra o, hoje, poeta e professor universitário Tenório Telles, autor de críticas e ensaios, além de editor de livros. No coração da Amazônia, ativista cultural dos bons, ele guarda na ponta da língua trechos inteiros dos livros que decorava. Assim que sobrou o primeiro dinheiro, ele cuidou de comprar vários deles, para poder exibir em lugar de destaque da estante. — São eles a prova viva do poder dos livros de mudar a vida das pessoas. Porque são essas pessoas, depois, que vão mudar o mundo – apregoa doutor Tenório, com a autoridade que a vida e os livros lhe deram. 31 Morador das ruas e leitor ndereço fixo ele não tem. Trabalha, come, dorme e vive nas ruas. Só não admite que o tratem como mendigo. Mesmo porque, diz, ganha a vida com o suor de seu trabalho como vendedor de pipoca e biscoito nas esquinas da grande cidade. No fim da tarde, separa uma parte da féria do dia, algo em torno de cinco reais, para pagar pelo banho e comida. Sem um teto e um endereço fixo para morar, Márcio costuma dizer que é, de certo modo, uma dessas pessoas que passa todo o dia e dorme no próprio local de trabalho. Pode passar uma noite sob uma marquise ou um viaduto, ou, mesmo, em uma calçada ou praça, dependendo da conveniência do dia. A localidade muda, mas a moradia, em si, é sempre a mesma: o carrinho de mão que ele E 32 próprio construiu com pedaços de madeira e bugigangas encontradas nas ruas. Para quem o vê puxando seu carrinho-dormitório pelas ruas do Rio de Janeiro, é impossível notar qualquer diferença entre Márcio Pereira dos Santos, o Gaúcho, e os moradores de rua que são vistos perambulando pelas cidades brasileiras de Norte a Sul do País. Como qualquer um deles, o rapaz também enfrenta o frio, a chuva, a violência e o julgamento público, independentemente dos motivos que possam ter levado cada um deles a essa situação. Márcio trocou, há três anos, a vida na casa dos pais no Rio Grande do Sul pelas ruas do Rio. Diz que foi uma escolha. Para tentar manter um pouco de sanidade, recorre, diariamente, à leitura. Lê jornais e revistas usados e livros, de ficção aos ensaios sobre política e sociologia. Também é leitor assíduo da bíblia, na qual diz buscar a força necessária para levar sua vida adiante. Por um bom tempo, Márcio, um rapaz bem apessoado de seus 34 anos, lia tão somente para se entreter e fazer o tempo passar, mas, desde que resgatou da lata de lixo a obra Biblioteca de Sociologia Geral, de Nello Andreoti Neto, passou a se interessar mais pelos temas sociais. Ele gosta de ler e, então, analisar e refletir sobre o conteúdo do que leu, fazendo um cruzamento das leituras com situações pelas quais passou e suas escolhas pessoais. Ultimamente, tem pensado muito, por exemplo, sobre o funcionamento das políticas públicas destinadas aos moradores de rua. 33 — É importante confrontar suas opiniões com as do autor do livro, pois sempre se aprende com isso – ele conclui. Mas não é só nisso que os livros têm mexido com a vida de Márcio. Após uma dessas leituras, ele percebeu que também é um cidadão, com direitos e deveres, como qualquer outro. Ao ler uma notícia sobre o Bolsa Família, um direito de todo cidadão que vive abaixo da linha da pobreza, ele foi atrás e obteve o auxílio. Aonde vai, carrega sempre junto o título de eleitor e sua cédula de identidade. Também possui conta bancária, cartão de crédito e conta de e-mail, que acessa de alguma lan house. Márcio, um admirador confesso de Monteiro Lobato, diz que também encontra nos livros uma forma de serenidade: — Ler me faz relaxar a mente. 34 Os olhos de Dona Lydia ona Lydia sempre teve uma queda pelas palavras. Como não sabia ler, passava horas ouvindo e tentando distinguir, pela sonoridade, o sentido e o significado delas. Analfabeta até a idade madura, Dona Lydia viveu a maior parte de sua vida apartada da forma grafada e impressa das palavras. Estas que se materializam e vêm à luz quando se juntam letras, esses sinais que, se bem empregados, dão vitalidade e perenidade a frases, ideias e pensamentos. Embora nunca tenha se dado conta disso, Dona Lydia sempre foi uma poetisa de mão cheia. Morando a vida toda num povoado caiçara no litoral de São Paulo, ela buscava no mar a inspiração para D 35 expressar, do seu jeito, como enxergava e sentia o mundo e as coisas ao seu redor. Podia ser de um acontecimento simples do seu cotidiano a algo subjetivo que a deixava emocionada, como a beleza diária daquele cenário composto de montanhas, céu e mar. Para não deixar se perder a magia daqueles instantes, a mulher criava e armazenava os versos na cabeça. Como Deus costuma escrever certo por linhas tortas, o destino fez com que ela sentisse na pele, amargamente, o quanto a falta de intimidade com a palavra escrita pode afetar, negativamente, a vida das pessoas. Mas, por outro lado, Dona Lydia foi sacudida para a percepção do quanto a leitura e a escrita ainda poderiam modificar a vida dela e de outras pessoas. Já na entrada da velhice, Dona Lydia se viu na obrigação de regularizar as terras herdadas do avô, entre Peruíbe e Itanhaém. Eram o único bem material dela e da sua família nesta vida. Foi onde toda a parentela nasceu, cresceu e de onde, durante décadas a fio, tirou o sustento. Mas o advogado que foi contratado para solucionar o imbróglio se aproveitou do fato de ela não saber ler para ficar com metade da propriedade – único ganha-pão da família, que sobrevivia do cultivo de milho, batata e melancia. Depois disso, a mulher, resoluta, tomou uma decisão. Iria para a escola e nunca mais seria enganada por não saber ler. Mas Dona Lydia, além de aprender a ler e a escrever, encantou-se com os livros 36 e com os estudos. Apaixonou-se pelos versos de Carlos Drummond de Andrade e Castro Alves e, aos 75 anos, resolveu fazer faculdade. Dez anos depois, Dona Lydia S. Gonçalves – como passou a grafar o próprio nome – tornou-se escritora, tendo publicado vários livros com os seus poemas e os aforismos que colecionou por toda a vida. Com os vários diplomas numa parede e uma farta coleção de livros nas outras, é ela agora que ensina, do alto da autoridade do seu próprio exemplo de vida: — Aprender é como abrir os olhos. E nunca é tarde para isso! 37 O menino do Desemboque ascido menino pobre no Desemboque, interior de Minas Gerais, Ariclenes sonhava, desde pequeno, com a cidade grande. Queria ser famoso e, um dia, conhecer as cantoras do rádio, ícones daquele Brasil rural da primeira metade do século XX. Vivia suspirando pelos cantos só de pensar em namorar alguma delas. Acontece que Ariclenes, ou Ari, vivia num lugarejo longínquo, em meio a um punhado de vivas almas, no coração perdido do Brasil. Por mais que tentasse pensar numa saída, não lhe ocorria nada tão genial que pudesse, enfim, fazê-lo, um dia, chegar lá. N 38 Enquanto sua sorte grande não chegava, Ari ajudava o pai, boiadeiro, na lida com o gado. Para faturar uns trocos, ele vendia fotos da mãe, que era artista de circo. Assim seguia o menino tocando sua vidinha, que dizia, ser sem eira nem beira. Mas, um dia, Ari tomou coragem, subiu na carroceria de um caminhão e seguiu no rumo de São Paulo. Estava firmemente decidido a cair na estrada em busca do seu Eldorado. No meio do caminho, contudo, o menino apeou da condução. Nunca tinha ouvido falar daquele lugar onde estava. Se ainda não era aquela a metrópole com a qual tanto sonhara, ele, ao menos, poderia, ali, ir se acostumando, aos poucos, com a vida de cidade grande. RibeirãoPreto ficava bem no meio do seu caminho para a capital. Com os seus cabarés, teatros, radionovelas e uma vida noturna movimentada até demais para o garoto caipira recém-chegado do Desemboque, no Triângulo Mineiro, bem que podia servir como experiência e, ainda, um trampolim para um salto na vida. Resolveu ficar uns tempos por lá. Na esteira da derrocada dos barões do café, a cidade vivia novo surto de prosperidade. A industrialização nascente e os novos ricos, daqueles tempos de mudança do Brasil rural para o Brasil urbano, dominavam o cenário político e econômico da cidade. 39 Ari, um frangote de não mais do que dezesseis anos, foi morar numa pensão e, logo, arrumou ocupação. Empregou-se como carregador numa loja de materiais de construção. Lá, no embalo do progresso daqueles anos 30, os canteiros de obras pipocavam por toda parte e, com isso, punham mais mercadoria na cacunda do rapaz. Por isso, foi uma benção aquele santo dia em que os livros entraram na vida dele. Foi tudo por acaso. Ari só queria mesmo dar uma escapadela do sol fatigante que fazia a carga sobre seus ombros magricelas parecer pesar toneladas. Ao passar diante daquele casarão majestoso, de frente para a praça central da cidade, o rapaz empacou. Pessoas que entravam e saíam chamaram a sua atenção para aquele lugar que parecia ser um espaço público. Sem muito pudor, ele ajeitou no chão, calmamente, o vaso sanitário que trazia sobre as costas. Só deu uma olhadela para os lados para se certificar de que ninguém o espiava para dedurá-lo ao patrão e entrou. Quase diante do Theatro Pedro II, majestosa casa de ópera daquela terra de coronéis, o velho Solar dos Junqueira já não era o mesmo. Em vez das romarias de líderes políticos e de apadrinhados atrás dos favores dos barões do café, no casarão, agora, funcionava uma... biblioteca. Ele levou um baita susto. Mas, já que estava lá dentro mesmo, Ari resolveu permanecer. Afinal, pior do que a carga pesada e do sol escaldante que o aguardavam do lado de fora é que não podia ser. 40 Aquela seria, anos mais tarde ele diria, a mais sábia decisão de sua vida. No início, precisou controlar o pavor que passou a tomar conta de si. Tentava adivinhar quem seriam aquelas criaturas bem vestidas, totalmente estranhas a sua vida roceira. Circulavam, com desenvoltura, entre as estantes, poltronas e as largas mesas em estilo colonial. Talvez fossem, ele deduziu, poetas, professores ou alunos do Ginásio do Estado – que era uma espécie de chave do céu para os rapazes e moças que, na transição de uma monocultura cafeeira para uma economia mais industrializada, aspiravam por ascensão social. Se quisesse, portanto, permanecer mais tempo no local, misturado aos leitores intelectuais, teria ao menos que disfarçar. Pegou o primeiro livro à sua frente e folheou algumas páginas, mas, logo, fechou e o colocou sobre a mesa escura. Voltou o olhar para a capa do livro e o título impresso em letras garrafais chamou a sua atenção: Grandes Esperanças. O autor era um certo Charles Dickens, um famoso desconhecido para o garoto do Desemboque. Decidido que estava a parecer, ao menos aos olhos dos que ali estavam, um leitor de verdade, tinha que se esforçar mais. Num gesto largo e pausado, sentiu-se no meio de um palco no circo, vivendo a vida de outro personagem, como tantas vezes sua mãe fizera. Olhou, atentamente, as letras miúdas, franziu a testa e fingiu concentração. Só conseguiu relaxar minutos mais tarde, quando, ao 41 tatear uma vez mais a brochura e, finalmente, abri-la, deixou-se levar pela narrativa vibrante. Ao contrário do que esperava, sorvera com certo gosto as páginas iniciais. Aventurou-se por mais algumas e, sem que se desse conta, fora, repentinamente, abduzido por aquela história, e totalmente absorto pela leitura. Já não conseguia mais desgrudar os olhos do livro. E tampouco se preocupava em disfarçar; agora, já devorava uma página após a outra, e tudo, num fôlego só, vivenciando um terrível conflito íntimo. Ao mesmo tempo em que desejava, ardentemente, chegar à última página do livro, já sofria com a possibilidade de fim daquela história. Ari, definitivamente, fora fisgado pelos livros. Daquele dia em diante, a literatura nunca mais sairia de sua vida. O moço estava sempre com um livro nas mãos – eles seriam, por sinal, uma companhia constante na vida do caipira recém-chegado à cidade. Sua sensação era que, finalmente, encontrara a chave para uma vida melhor que tanto procurara em sua vida. Em seu primeiro teste para locutor, já em São Paulo, Ariclenes tropeçou no sotaque caipira. Mas não desistiu, arrumou um emprego de contínuo na Rádio Difusora e seguiu adiante. Logo depois, foi promovido a sonoplasta. Na primeira oportunidade, conseguiu um papel para uma ponta numa radionovela. Nunca mais parou. 42 Meio século depois, e agora famoso, sob o pseudônimo de Lima Duarte, um dos maiores nomes da dramaturgia brasileira de todos os tempos (afinal, como ele dizia, Ariclenes Venâncio não era nome de artista que se prezasse), o menino do Desemboque está mais convencido do que nunca que foram os livros a sua tábua da salvação. — Antes dos livros entrarem na minha vida – ele se diverte, com o sotaque ainda inconfundível – eu não passava era de um anarfa... 43 Amyr e o mar mbora vivesse não muito longe do Atlântico, Amyr morria de medo do mar. Era um trauma de infância. Ainda pequeno, estava com o pai e os irmãos na praia quando foi derrubado por uma onda forte, algo que acontece com, basicamente, todo mundo que vai à praia quando criança. Porém, o que em alguns resvalam, em outros fere fundo. O caso é que, mesmo adulto, ele teve muitas dificuldades para superar aquilo. Por isso, arriscar-se além da beira-mar não era, exatamente, sua diversão predileta. Quando terminou a faculdade de economia, Amyr optou por fincar mais os pés em terra firme, tomando a decisão de administrar a E 44 fazenda da família e lidar com gado e leite. Tudo que desejava era ter um chão seguro e palpável. Mas os livros fariam esse Amyr, já adulto e recém-saído da faculdade, a reaprender a gostar do mar, rendendo-se à possibilidade infindável de aventuras oferecida tanto pela imensidão da literatura quanto a dos oceanos. As histórias fascinantes sobre marujos, navios e ilhas perdidas ajudaram a trazer de volta aquele menino que se assustara com as ondas. Uma dessas histórias que o encantaram foi A Expedição Kon-Tiki, do antropólogo norueguês Thor Heyerdahl, que navegou do Peru à Polinésia, numa jangada construída por nativos, para provar que civilizações sul-americanas podiam muito bem ter cruzado mares para povoar as ilhas do Pacífico. Também ficou fascinado pelas aventuras de O Último Lugar da Terra, de Roland Huntford, sobre a disputa, no século passado, entre exploradores ingleses e noruegueses pelo Polo Sul. E se maravilhou com os poemas do poeta Fernando Pessoa, um de seus prediletos, que vivia a soprar em seu ouvido que, sim, navegar era preciso. Mas o que o faria voltar de corpo e alma para o mar, que não desistira dele, foi O Grande Inverno, escrito por um casal de aventureiros que ele conhecera em uma de suas férias em Parati. Sally e Jérôme Poncet viviam uma vida modesta e sem grandes solavancos num barco velho e enferrujado, no qual haviam 45 compartido uma inédita viagem ao território desconhecido e gelado da Antártica. A história nem era tão espetacular assim e, de certo modo, até desmistificava um pouco a ideia de grandes epopeias vivenciadas por aventureiros em alto-mar. Era tão somente um singelo, porém apaixonado e poético relato sobre a experiência do casal francês. Durante a viagem, Sally engravidou em pleno inverno polar e decidiu ter o filho lá mesmo, naentão desabitada e inóspita Geórgia do Sul. Ao chegar à última página, Amyr sabia exatamente o que faria da vida dali em diante: seria um navegador. Ele começou a se preparar lendo mais relatos de navegação e manuais, e passou a se dedicar mais aos treinos da sua equipe de remo do Espéria, clube da elite paulistana. O passo seguinte foi comprar uma canoa e, em seguida, um barco a remo. Com o tempo, passou a construir os próprios barcos. Não tardou para Amyr Khan Klink, filho de um imigrante libanês e uma artista plástica sueca, tornar-se um dos grandes heróis nacionais dos nossos tempos. Sua primeira grande proeza foi atravessar o litoral brasileiro numa pequena canoa. Em seguida, cruzou, solitário, desde a África, o Oceano Atlântico a remo. Depois disso, circunavegou o globo, perfazendo mais de 400 mil quilômetros nos mares. 46 Bom leitor e excelente contador de histórias, Amyr aproveita, entre uma e outra aventura, para escrever os próprios livros. Assim nasceu Cem Dias entre o Céu e o Mar, um deles, que já vendeu meio milhão de cópias. Cada vez que ele vai se lançar numa nova aventura, Amyr Klink se planeja bem e, antes de zarpar, toma todas as providências e precauções. Como é indicado nesses casos, leva só o essencial para suas temporadas sozinho em alto mar – sendo que algumas podem durar mais de ano. Algo que não pode faltar na sua listinha de prioridades: os livros. Numa das viagens, Amyr carregou nada menos do que meia tonelada deles. Afinal, diz Amyr, fazendo troça do trauma que o afastou dos mares, não fossem os livros ele estaria hoje com cracas nas canelas de tanto andar à beira-mar. Foram os livros, ele assegura, que deram um sentido novo para a sua vida. 47 O livro dos livros ma é Maria das Graças. Outra é Maria Augusta. A terceira delas atende pelo nome de Joanice. Todas elas estão com os filhos criados e frequentam a mesma igreja na periferia de Belo Horizonte, a capital mineira. Tal como as outras mulheres da mesma faixa etária com quem elas convivem no dia a dia, as três levam, mesmo em uma grande cidade, uma vida pacata. Também em comum entre as três há o fato de que, só agora, já na idade madura, é que estão tendo, pela primeira vez na vida, contato com as letras e com os livros. As duas Marias mais Joanice se conheceram lá mesmo, na igreja do bairro. Apesar de trajetórias de vida distintas, as três mulheres partilham, atualmente, de um mesmo sonho: elas estão ansiosas para U 48 conseguir ler o seu primeiro livro, o primeiro desde que se conhecem por gente. Mas, para elas, não vale um livro qualquer. As três foram fisgadas, a essa altura da vida, para frequentar a escola de jovens e adultos por causa do sonho por elas compartilhado de conseguirem, sozinhas, ler a bíblia. Até então, só tomavam conhecimento das belas passagens do Evangelho, que tanto faziam bem para seu estado de espírito, durante as preleções. A intenção delas, desde o início, era aprender a ler para, assim, tentar abrir um canal direto com Deus e, com isso, receber a palavra diretamente, a qualquer hora do dia ou da noite e, sobretudo, em horas de necessidade. Dona Joanice Gomes de Oliveira, 62 anos, já se dá por contente se, um dia, conseguir ler, sozinha, um salmo inteiro. Antes de começar a ir à escola, ela chegava a decorar trechos inteiros da bíblia, para poder recorrer nas horas de precisão. Dona Joanice já foi cozinheira, faxineira, lavadeira e servente, entre outras coisas. Ela criou cinco filhos, dois dos quais foram adotados, todos os cinco alfabetizados, e garante que, agora, não desperdiçará a oportunidade de se alfabetizar e ler, ela própria, os livros que desejar. A história dela não é muito diferente das histórias de outras mulheres do Alto Vera Cruz, bairro da periferia de BH. Dona Maria das Graças da Silva, dois anos mais velha e mãe de dezenove filhos, dez dos quais, ainda vivos, tem uma história prosaica. Ela não se 49 alfabetizou porque era proibida pelo pai de ir à escola em Jequeri, na Zona da Mata mineira, para que não ficasse uma moça “assanhada” e “namoradeira”. — Nunca tive tempo pros cadernos... – ela diz, lembrando que, ao constituir a própria família, a prioridade, então, passou a ser botar comida na boca da filharada. Só bem mais tarde, Dona Maria das Graças desconfiou que, se não soubesse ler e escrever, jamais conseguiria ir muito longe. — Não há nada pior do que não saber ler – ela atesta. — Eu, mesma, nunca pude ir sozinha aos lugares por não saber o preço das coisas e nem conseguir tomar um ônibus. O mundo, ela desconfia, funciona com códigos: — E eu não conseguia decifrar nada daquilo... A vizinha, Dona Maria Augusta Souza, 79 anos, dá o tom: — Até que analfabeto acha emprego. Mas pode ver que é faxineira, lavadeira, servente de pedreiro. Passa muita humilhação e ganha muito pouco. Para quem não sabe ler, está tudo fechado. Depois da bíblia, as futuras leitoras prometem não parar por aí e já ficam imaginando o que vão encontrar em outros livros. Em países de tradição cristã, a leitura da bíblia costuma ser uma porta de entrada para muitos não leitores ao mundo da palavra escrita. Ela é o livro mais lido e o mais relido do Brasil, além de ser, segundo os leitores, o que mais mexeu com as suas vidas. Até entre 50 quem nunca leu um livro inteiro, muita gente tem o costume de ao menos dar uma espiada nos versículos de vez em quando. É provável que boa parte dos neoleitores da bíblia nunca irá além de uns pequenos trechos do livro sagrado na hora de dormir ou ao acordar. E isso bastará a eles. O que não deixa de ser, uma experiência concreta com as práticas leitoras. Haverá, entretanto, outro grupo de leitores que, após algum tempo, já não se contentará só com esse tipo de leitura e partirá para outros, o segmento mais ampliado de livros religiosos, e, na sequência, é possível, outros gêneros. Alguns entre eles talvez se convertam em textos literários. Uma só ovelha trazida para o seio do rebanho universal dos leitores já vale muito a pena. Muito porque serão essas mesmas ovelhas – que podem atender por nomes como Maria das Graças, Maria Augusta ou Joanice – que vão ajudar, mais tarde, a semear para outros rebanhos a boa nova dos livros. E, com eles, a vitória da luz, do conhecimento e da razão sobre o obscurantismo e a ignorância das trevas. 51 O livreiro que não sabia ler m um ano comum, Seu Leonídio costuma ler, por baixo, quarenta livros. Ele lê diferentes gêneros literários, e, praticamente, ao mesmo tempo. Leitor compulsivo confesso, admite que não sabe direito o que fazer se não há um livro por perto e ao alcance da sua mão, seja no carro, ao lado da cama ou no banheiro da casa. Mas nem sempre foi assim. A aventura literária de Seu Leonídio só começou em seus 20 anos de idade. Antes disso, ele era analfabeto de pai e mãe, mas nem por isso vivia longe dos livros. Muito tempo antes de conseguir decifrar uma só letra do alfabeto, Seu Leonídio já era, creia, um livreiro. Como vendedor de livros que batia de porta em porta, atrás dos E 52 compradores, ele tinha uma freguesia fixa e era o livreiro de confiança de muita gente. Portanto, primeiro, ele estabeleceu, ainda que não soubesse ler e escrever, uma intimidade improvável com os livros e seus autores. Só muito depois é que conseguiu a habilidade necessária para poder decifrá-los e compreendê-los. No Brasil de meados do século XX, quando o analfabetismo ainda era muito alto no País, se comparado a bons indicadores internacionais, este homem saía à caça de freguês a freguês, estivessem onde estivessem. Vendia nas ruas, nas casas, permanecia plantado nas portas de fábricas e escritórios, e nos mais inesperados lugares, desde que,ali, pudesse existir algum comprador de livro em potencial. De livro em livro, ele vendeu, ao longo da vida, milhões deles. Mais tarde, já alfabetizado, chefiou pequenas legiões de vendedores porta a porta e, como editor, publicou perto de dois mil títulos. Não é pouco, principalmente para esse alagoano de Arapiraca, que, decidido a mudar de vida, correu atrás de um futuro igualmente incerto na cidade grande. Ele começou fazendo pequenos bicos em São Paulo, onde seu primeiro emprego foi de faxineiro. Nos corredores da pensão onde foi viver, nos arredores da Praça João Mendes, no centro de São Paulo, o rapaz moreno de porte atlético conheceu alguns vendedores de livro. 53 O moço, logo, encantou-se com os relatos apaixonados e, em especial, com os causos hilários que aconteciam no dia a dia dos vendedores de livros, as suas divertidas e inesperadas situações no trabalho. Aqueles homens saíam cedo da pensão e batiam de casa em casa para oferecer livros a quem não tinha tempo, gosto, dinheiro ou mesmo que não sentia a menor necessidade de ir a uma livraria. Embora não conseguisse decifrar uma só palavra estampada nos livros que deveria vender, o novo e promissor vendedor se animou com o desafio e, em pouco tempo, sentia-se como um veterano do ramo. Para que não percebessem que o homem que vendia livros não tinha a menor ideia do conteúdo do produto que tentava empurrar aos outros, Leonídio tinha suas próprias artimanhas. Ele decorava o título, o autor e o resumo da capa e da contracapa, que algum colega lia para ele, e surpreendia a clientela declamando, em alto e bom som, as informações principais. Com graça e estilo, estabelecia de cara uma empatia com o freguês, aproveitando para fugir de eventuais saias justas. Não tinha erro: tirava um pedido atrás do outro – que ele pedia para o próprio cliente preencher, como uma cortesia do seu vendedor. Os truques de venda e o talento nato para o ofício ele aprendera nos idos tempos em que vendia galinhas vivas, que carregava dependuradas em pedaços de pau sobre os ombros. Lidar com livros, ele racionou com a astúcia de vendedor, certamente, seria 54 muito mais fácil, já que eles sequer faziam barulho e tampouco se alvoroçavam. Um dia, contudo, um dos clientes percebeu que o vendedor inventava sempre uma desculpa diferente na hora de preencher os pedidos. Ele não deveria saber ler, desconfiou o homem, um advogado, que acabaria por convencer Leonídio que nunca é tarde para ir à escola. Turrão como ele só, Leonídio, que sempre havia sido autodidata, decidiu que faria do seu jeito. Acabou se alfabetizando sozinho, enquanto lia placas de rua, reclames na TV e as capas dos livros que vendia. Quando já casado e pai de seis filhos, fez questão de que todos eles tirassem o diploma da faculdade. Depois que descobriu a escrita e a leitura, jamais deixaria de transmitir, à filharada o valor da escola. Com o dinheiro que juntou vendendo livros, Leonídio comprou um prédio de apartamentos inteiro na Aclimação, bairro paulistano de classe média, e trouxe todos os parentes de Alagoas para morar perto dele. Foi lá que ele montou sua primeira editora. Se o assunto é livro, Leonídio Balbino, o livreiro que não sabia ler, transforma-se. Ele pode falar por horas a fio, sem se cansar, até convencer seu interlocutor por que ler livros é mesmo tão imprescindível e pode, realmente, melhorar a vida das pessoas. Se lhe dão trela, ele repete, à exaustão, sempre com gestos largos, sua ladainha predileta: 55 — Tem que ler, tem que ler, tem que ler... No livro autobiográfico que escreveu para narrar sua história, O Operário do Livro, Seu Leonídio, que se tornou cidadão honorário do Rio e de São Paulo, não deixa de relatar os momentos dramáticos que passou pela vida. Porém, otimista de plantão que é, Leonídio Balbino gosta de contar que chegou aonde chegou graças a uma feliz combinação de três coisas: uma vontade incrível de viver, a confiança em si próprio e, naturalmente, os livros. 56 Livro de “um reais” unca soube o nome dela. E as chances de voltar a encontrá-la, algum dia, são bem remotas. De seu rosto magro, contudo, não há como esquecer. E menos ainda de seus olhos negros e redondos que não pediam, mas, com determinação, praticamente exigiam. Não era para ela, fizera questão de explicar. Era para o filho, que ainda não estava na escola. Não queria esmola. Só desejava comprar um livro, com o mísero dinheiro que dispunha no momento. Apesar de não tê-la encontrado novamente; durante anos, a imagem dessa mulher reapareceria para mim outras vezes. Como nas ocasiões em que eu precisava falar em público, para membros do governo ou representantes do mercado editorial, como os livros e a N 57 leitura podem mexer com a vida das pessoas e, portanto, sobre a necessidade de se garantir o acesso a eles, seja gratuitamente ou pagando por preços acessíveis. A mulher desconhecida – que seguirá anônima, para mim, e, talvez, sempre invisível, aos olhos do Estado e da própria sociedade – certamente teria muito a dizer sobre isso. Era uma manhã fria de agosto, primeiro dia da Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. O caso se deu lá, mas poderia ter sido em qualquer outro lugar. Importantes editores, livreiros e escritores estavam na cidade. Muitos deles haviam cruzado o país só para isso. Nos dias seguintes, aproveitariam os holofotes para falar da função social da leitura e o quão importante é tornar o Brasil um lugar de leitores. A mulher surgiu do nada, quando ainda restavam boas horas para a cerimônia de abertura e início da programação farta – com escritores, venda de livros, cinema, teatro, exposições e outras artes, com a literatura como um fio a conectá-los. Ela, calmamente, estacionou o carrinho de mão no meio fio e, mesmo maltrapilha, não se intimidou diante dos homens de terno e gravata, que discutiam com entusiasmo sobre livros. Sem cerimônia, a catadora de papelão enfiou uma das mãos por dentro o vestido, na altura dos seios, e exibiu a cédula de R$ 1,00, que parecia ser tudo o que tinha naquela hora do dia. Talvez fosse mais sensato trocar por pães amanhecidos na padaria da esquina ou 58 inteirar para levar um litro de leite para casa no final da jornada. Mas, não. A mulher caminhou resoluta, na direção dos negociantes de livros, sabendo o que seria. Sem dirigir a palavra a nenhum deles em especial, lascou: — Tem aí livro de “um reais”?! – ela esclareceu, – É pro meu filho, que tá na idade de ir pra escola. Quero dar um livro a ele para que seja alguém na vida. A fala pungente calou fundo naqueles homens dos livros. Embora o Brasil esteja entre os dez maiores produtores de livros do mundo, o acesso a eles no País consegue ser ainda pior do que a desigualdade social. Só uma em cada oito pessoas compra livros. Mais e mais pessoas, nos dias atuais, reconhecem a função social e transformadora da leitura na sociedade. E a julgar pela fala simples, mas poderosa, dessa catadora de papel, é possível supor que a relevância da leitura também cresce, e, aos poucos, se consolida, no imaginário popular. Nesse caso, embora analfabeta, o que ela mesma afirmaria, a mulher intuiu que poderia estar ali, em meio aos livros, a chave do futuro para seu menino. Do contrário, a continuar apartado do acesso à educação e ao conhecimento – materializado diante dela na forma de livros –, deveria engrossar a lista de candidatos a engordar as estatísticas oficiais sobre miséria, desemprego, fome e violência. Mas para a catadora de papelão atrás de um livro com preço compatível ao seu bolso, um livro tem um significado que vai além 59 do objeto que seus olhos veem. Porque não se resume ao maço de papéis costurados e manchado com tinta, que, a rigor, ele é. O quea mãe catadora vê é um sonho, um futuro e oportunidades que ela e o pai da criança, provavelmente, nunca tiveram. Talvez um emprego com carteira assinada, duas ou três refeições no dia e alguma dignidade na vida. 60 A bola e o livro dward estava, porque estava, convencido de que, no futuro, ainda ganharia a vida correndo atrás de uma bola: queria ser jogador de futebol profissional. Após uma meteórica estreia no seu glorioso Mirassol Futebol Clube, orgulho da cidade, ele, em seus sonhos infantis, jogaria, em seguida, em um dos times grandes do Rio ou de São Paulo para, então, partir direto para a seleção, como um ídolo festejado do escrete nacional. Naqueles tempos, meados do século passado, jogar no exterior era algo absolutamente fora de questão. Era este o sonho de Edward e de milhões de outros garotos, fossem pobres ou fossem ricos, no futuro País do Futebol. Era difícil E 61 encontrar algum que não almejasse ganhar fama e glória nos estádios. No caso de Edward não seria exatamente por falta de treino ou dedicação diária que esse sonho deixaria de se realizar. Afinal, todo santo dia, ele e um punhado de amigos praticavam, em renhidas peladas de rua nos campinhos de terra de Mirassol, interior de São Paulo, o esporte bretão que, supunham, deveria alçá-los ao estrelato. Edward não estava de todo enganado. Uma bola de futebol estava, de fato, entre ele e seu destino. Não era, contudo, exatamente como sonhara. Certo dia, Edward participava de um concorridíssimo racha no pátio da escola. De repente, um colega de time deu um tremendo chutão que fez com que a bola fosse parar lá longe. O craque, naquele instante envergando a gloriosa farda do Grupo Escolar de Mirassol, na plenitude de seus não mais do que oito anos de idade, foi, prontamente, escalado para resgatar a pelota, que, desgraçadamente, enfiara-se por uma maldita janela aberta. O mundo era mesmo injusto. Era sempre a mesma coisa: os grandes mandavam e aos menores não cabia outra coisa senão obedecer. Convertido, momentaneamente, em gandula oficial da peleja, lá foi o candidato a futuro atleta atrás de localizar o paradeiro da preciosa. Mas alguma coisa do outro lado da parede chamou a atenção do menino. Edward se intrigou diante do cenário inesperado: jamais vira tantos livros juntos! 62 Do outro lado da janela, funcionava a biblioteca da escola que, justo naquela manhã, recebera um acervo novo de livros. Eram livros de literatura para crianças. O pequeno Edward pegou um deles nas mãos – A Banana que Comeu o Macaco, ele jamais se esqueceria – e se deixou levar pela história, que leu até o fim. Ele nunca voltou para retomar aquele jogo de futebol. Nos trezentos e sessenta e cinco dias seguintes, Edward contabilizaria nada menos do que duzentos e cinquenta livros lidos – para se ter uma ideia, basta dizer que só em 2017 a média anual de livros lidos por brasileiro chegaria a cinco livros por habitante/ano. O menino parecia mais uma máquina leitora! Como o Edward manuseava com rara habilidade a arte das palavras, um professor inscreveu, sem que ele soubesse, sua redação escolar em um concurso estadual. A notícia fez o menino pular de alegria: ele fora classificado em primeiro lugar! Enquanto abiscoitava um prêmio aqui e outro acolá, o agora rapazote passou a faturar uns trocados com a habilidade recentemente conquistada. Sua intimidade com os livros ficaria patente ao prestar concurso público para o Banco do Brasil, posto cobiçadíssimo por legiões de jovens atrás de carreira estável e do status conferido pelo cargo. A primeira notícia não fora nada boa: havia tirado um baita zero em Contabilidade. Só que, ao ver as outras notas, a surpresa: dez nas 63 demais disciplinas. Na hora H, o costume de ler bons livros o ajudara a conquistar o emprego. Noutra ocasião, o jovem corrigiu, durante uma aula, e sem grandes pretensões, a professora do cursinho preparatório. Sua argumentação fora tão consistente que a escola resolveu contratá-lo no lugar dela. Mais uma vez, os livros dariam um empurrão em sua vida. Mais tarde, já na faculdade, preocupado que estava com as dificuldades para acompanhar as aulas de latim, Edward foi a um sebo atrás de livros usados para aprimorar seus conhecimentos no idioma. Fez resumos primorosos para cada livro que lia. Ele sequer desconfiava, mas acabara de escrever o manuscrito do seu primeiro livro, um dos muitos que publicaria pela vida afora. Com o tempo, Edward Lopes se tornou um dos mais brilhantes linguistas do País e, hoje em dia, não há estudante de Letras que não tenha recorrido a uma de suas obras sobre semiótica e linguística. Quem sabe o escrete canarinho não perdeu um grande talento com a bola nos pés. Não sei. Mas, com certeza, o Brasil ganhou um tremendo talento das letras. Que, longe das quatro linhas do gramado, tem ajudado a formar várias gerações de mestres que, eles próprios, igualmente craques das palavras, têm, por sua vez, despertado o gosto de ler, a cada ano letivo, em milhões de novos leitores verde-amarelos. O País da bola carece e agradece. 64 Lições de Dona Maria or que, afinal de contas, as pessoas leem e escrevem? E por que é absolutamente essencial a leitura para se viver na sociedade moderna? As respostas a estas perguntas costumam variar de acordo com o interlocutor e suas áreas do saber. Todas, entretanto, remetem a uma questão central: a necessidade imperiosa que temos de nos comunicar uns com os outros, de compreender coisas e de nos fazer entendidos. Também nos ensinam que saber decifrar os códigos – o que chamamos de letras e palavras, matéria prima das frases – vai nos ajudar de várias maneiras pela vida afora. Ainda nos lembram o quanto a invenção dos alfabetos foi fundamental para a estruturação P 65 da humanidade tal qual a conhecemos hoje. E, por fim, que assim podemos nos apropriar do conhecimento universal, que é o grande legado acumulado através dos tempos pelos homens e mulheres. A saudável troca de experiências entre leitores, autores e seus personagens, cada qual com sua visão distinta de mundo, que se dá no ato de ler, tem o poder de operar em nosso interior reflexões surpreendentes. Essa é uma forma de gerar, continuamente, novos modos de ver, sentir e compreender as coisas. O que abre, sem dúvidas, caminho para atitudes e posicionamentos igualmente novos. Sem contar que o exercício de enxergar com os olhos do outro é uma forma extraordinária para se gerar mais tolerância, algo, evidentemente, indispensável nos processos de paz, mas, na verdade, necessário para a vida em sociedade de um modo geral Há, enfim, todo tipo de respostas e, provavelmente, todas com boa dose de razão. Vejamos, agora, o que tem a dizer sobre isso uma mulher camponesa de seus 70 anos, mãos calejadas, que duas ou três vezes por mês comparece, religiosamente, a uma sala de aula de alvenaria improvisada no acanhado salão de reuniões do Horto Guarani, perto de Guariba – no interior de São Paulo, epicentro da revolta dos boias-frias ocorrida em maio de 1984. Ali, foi instalado o primeiro assentamento da reforma agrária no coração da mais importante e poderosa região do agronegócio no Brasil. 66 Dona Maria Terezinha – é este o nome dela – tem uma percepção e uma teoria toda própria sobre o tema, que, por mais que se esforce, tem certa dificuldade para expressar: a função social da leitura e da escrita na vida de gente como ela, que trabalha duro na roça durante o dia e, à noite, espreme-se sobre bancos toscos de madeira, enquanto o sono permite, para aprender a ler e escrever. Sem dominar a capacidade de leitura e escrita, Dona Maria se acostumou a recorrer aos rabiscos rudimentares – como nos primórdios faziao homem das cavernas – para registrar os relatos sobre seu cotidiano e o que vai dentro de sua alma. Em um desses desenhos, ela aparece jogando milho para as galinhas no quintal do sítio em um dia ensolarado. Em outro, ela está rodeada pela parentela, com a natureza exuberante às suas costas em uma ocasião que parece ter sido muito especial para ela e sua família. Dona Maria também registrou com entusiasmo o dia em que participou do mutirão que ergueu a sua primeira casa própria naquelas terras devolutas, antes tomadas por eucaliptos, no horto localizado no município de Pradópolis. Há algumas semanas frequentando a escola noturna do assentamento, por ora, Dona Maria mal consegue desenhar o nome. Para ela, entretanto, isso já é muito, e ela comemora com um sorriso de criança cada nova letra que consegue transpor, na forma de garranchos quase ilegíveis, do quadro negro da parede para o 67 caderno. E ela o faz com a mesma devoção com que faz a oração do dia antes de se deitar. Para esta mulher camponesa, desenhar o próprio nome já foi uma grande vitória. No dia em que ela foi à agência bancária receber a aposentadoria, o gerente a convidou para ir até sua mesa. Nessa hora, ela se emocionou: seria a primeira vez em sua vida que não teria que passar pelo constrangimento de carimbar as digitais e sair da agência com os dedos sujos de tinta. A felicidade que a mulher septuagenária sentiu naquele momento não tem preço! Dona Maria saiu do banco tão leve e confiante que encomendou, na mesma hora, uma nova carteira de identidade, na qual já não apareceria a expressão que calava tão fundo em seu peito: “analfabeta”. Mas Dona Maria sabe que é só o começo e que há um longo caminho pela frente para que possa adentrar, para valer, no complexo universo das letras. Também está consciente de que, apesar da idade avançada e da fadiga diária que deixa as vistas mais cansadas do que antes, terá que dar duro nas aulas. Mas dar duro no batente é algo que, afinal, ela já faz a vida inteira na roça. Empurrada por uma força que não sabe dizer de onde vem, essa mulher faz questão de registrar no caderno cada nova palavra que vê nos livros. Nessas horas, é tomada por uma alegria incomum. Ainda assustada diante de tantas sensações desconhecidas, Dona Maria Terezinha – mais uma candidata a integrar a legião de 68 neoleitores que se forma nos assentamentos da reforma agrária nos grotões do Brasil – tem um palpite: — Acho que é isso que as pessoas da cidade chamam de cidadania – ela arrisca, com simplicidade e com o jeito de quem não quer mais tirar o pé dessa estrada. 69 O homem que não vendia livros onde vai, afinal, aquele homem carregando tantos livros debaixo do braço? Ele mal dobrou a esquina e aparece, ainda pequenino, lá longe, mas nota-se que ele leva uns belos duns livrões sob os braços arqueados. Aos poucos, enquanto caminha celeremente, gesticula e parece conversar sozinho, sua figura franzina vai tomando corpo na calçada. Talvez nem sejam tantos livros assim. Agora que ele está mais perto, dá para ver que são enciclopédias, esses livrões danados de pesados, que condensam nos volumes, de quem se mete a colecioná-los, toda sorte de conhecimento, curiosidades e informações, úteis ou não. Parece fazer valer o dito, segundo o qual o conhecimento vale quanto pesa. A 70 O homem segue, agitado e solitário, em seu caminho sem rumo. Vai de casa em casa, bate de porta em porta. Em algumas, toca a campainha estridente. Em parte delas, vai dar com o nariz na porta, ele sabe disso. Certas residências estarão mesmo vazias, enquanto, noutras, os moradores vão fingir que não há ninguém na casa, sua estratégia eficaz e mal educada para barrar os inconvenientes. Mesmo entre aqueles que vão abrir a porta, suas estatísticas dizem que só uma pequena parcela será capaz de fazer ao menos ideia do quão importante é o conteúdo contido naqueles livrões. Com sorte, no final da jornada, uma parte ínfima dos seus interlocutores terá ouvido sua preleção até o fim e, encerrada a ladainha, assinado o pedido e preenchido os cheques parcelados. Diariamente, o homem repete, à exaustão, seu discurso sobre verbetes, personagens, excentricidades e a roda viva da história. Quer incutir na cabeça das pessoas por que aquilo tudo tem a ver com a sua vida e, sobretudo, com o seu futuro. Não é uma tarefa fácil. Só que Seu Luciano não leva jeito para vender livros. Pode falar por horas a fio com quem quer que seja e der o azar (ou seria sorte?) de abrir-lhe a porta. Circunspecto e gestos largos, é de sua natureza parlar. Mas nunca teve tino comercial para nada. Contudo, é um brilhante vendedor de ideias, como se verá. Foi de uma hora para outra que vender livro de porta em porta se tornou, pelas circunstâncias, seu ganha-pão. Seu Luciano era um 71 homem importante, desses que saem muitas vezes nas páginas dos jornais, ora escrevendo, ora sendo ele mesmo a própria notícia. Jornalista dos bons, foi eleito vereador e deputado, e apareceu já na primeira leva dos cassados às vésperas do golpe militar de 1964. Tornou-se uma lenda nos movimentos de trabalhadores paulistas pelo apoio firme em milhares de greves no estado São Paulo. Suas campanhas eram feitas pelos próprios eleitores, que se incumbiam até de imprimir seus panfletos e pedir votos por ele, que também não levava lá muito jeito para a coisa. Até os adversários se deixavam enfeitiçar pela sua pureza e coerência na defesa das ideias, com sua invejável eloquência e teimosia calabresas. Era justamente nos livros, bem como nos jornais e no próprio cotidiano das pessoas mais pobres, que Seu Luciano aprendera tudo o que sabia na vida. Filho de calabreses, lia sobre política, lutas do proletariado e o que aparecesse pela frente. Lia, confabulava com os próprios botões e devolvia tudo, devidamente deglutido e processado, em forma de artigos ou discursos eloquentes sobre caixotes de madeira. Era assim que o homem dos livros cativava amigos e simpatizantes num tempo em que não existia cabo eleitoral pago ou campanhas milionárias. Proibido de escrever e legislar nos anos de chumbo, Seu Luciano chegou a recusar, por questão de princípios, o emprego fajuto que lhe arrumaram. Preferia vender livros, que ele considerava um trabalho mais digno. Mas não durou muito naquele emprego, já que, 72 em vez de vender, dava os livros de presente para quem não podia pagar. Só anos mais tarde, com a redemocratização do País, Seu Luciano Lepera voltaria às redações. Comunista das antigas e tão generoso quanto teimoso, ele se tornou um mestre, pelo caráter irretocável, para várias gerações de jornalistas. Era capaz de tirar a comida da boca para dar a alguém que necessitasse mais do que ele. Antes de morrer, doou a própria casa, seu único bem material. Quem quer que cruzasse seu caminho nunca mais era o mesmo. O vendedor que não vendia os livros tinha o poder inexplicável de tocar e comover pessoas. Embora ateu, os amigos carolas garantiam que o homem dos livros era mais cristão do que qualquer um deles. — Ele nem precisa acreditar em Deus, pois Deus acredita nele. 73 Do outro lado do muro aíssa é uma guria que acaba de completar três anos. Ela nunca saiu dali. Mesmo que quisesse, não teria como. No lugar das janelas, há pesadas grades de ferro chumbadas na parede, e a porta, que dá acesso ao térreo, permanece o tempo todo trancada à chave. Há outras gurias na mesma situação. No meio da noite, uma delas sempre chora. Se de fome, frio ou medo, não se sabe. Na cabecinha daquelas crianças inocentes, privadas da sua liberdade desde que vieram ao mundo, lá fora é, de certo modo, um lugar que não existe. Parece algo tão incerto quanto pueril, mesmo porquenenhuma delas guarda na memória a lembrança de algum dia ter atravessado um daqueles portões gigantes e ir dar na rua. R 74 Jamais puderam contemplar pessoas quaisquer caminhando com elas numa calçada ou qualquer outra cena corriqueira que faça parte do cotidiano comum das cidades. Esses guris nem desconfiam que, do lado de fora dos pavilhões onde vivem, há uma cidade imensa banhada pelo rio – com parques, praças, zoológicos, pipoqueiros, guloseimas e toda sorte de coisas simples, inocentes e belas que tanto fascinam a gurizada. Mas, se alguém perguntar a Raíssa ou a outro qualquer um dos filhos das mulheres presas no Madre Pelletier, o presídio feminino de Porto Alegre, muitos responderão que conhecem tudo isso e muito mais. Raíssa nasceu de uma das visitas conjugais mensais que são permitidas às presidiárias da instituição e vive lá desde que veio ao mundo. Ela adora ouvir as fábulas. Parece precisar delas para seguir vivendo e sonhando. Conta, com candura, que já esteve em bonitos lugares e já conheceu príncipes, dragões e fadas. Descreve, com riqueza de detalhes, castelos e reinos maravilhosos, e intercala expressões de medo e alívio ao mencionar os monstros e caçadores de bom coração que encontrou quando esteve perdida em florestas escuras e mágicas. Muitas dessas mulheres foram parar na criminalidade por causas de seus maridos, que continuaram lá fora. Com suas mães, esses filhos do cárcere vivem quase o tempo todo atrás das grades. Foi no 75 presídio que deram os primeiros passos e pronunciaram as primeiras palavras. Sua ligação com a vida lá fora se dá quase que só pelos livros. É nas histórias que descobrem o mundo externo e criam suas fantasias, diz uma das voluntárias do Liberdade pela Escrita, projeto dos alunos de Letras e Pedagogia da UniRitter, uma faculdade local. Os estudantes ensinam às mães técnicas da contação de histórias e, a partir de crônicas, poemas e do noticiário de jornais, as mulheres aprendem a expressar, no papel, suas angústias, dúvidas e esperanças. Kelly, que está presa por ter se envolvido com o tráfico de drogas, para agradar o namorado traficante, acordou no meio da noite e escreveu para Deus sobre o seu desejo de mudar de vida quando sair dali, como leu em um livro. Às vezes relatam as injustiças e os sofrimentos, e fazem reflexões sobre os erros e a própria vida. Essas endurecidas mulheres do cárcere estão descobrindo, nos livros, um sentido novo para as suas vidas e, principalmente, uma perspectiva inédita para suas crianças. Elas sabem que não será tão fácil assim, mas contam com a ajuda dos livros para tornar sua realidade menos dura, ao menos enquanto mergulham em alguma página da literatura. E, talvez, tirar de algumas delas força, fé e coragem para seguir adiante. 76 Ele é o cara! lávio é um bom menino. É gentil e educado quando fala com as pessoas e, na sala de aula, está sempre atento e ligado nas explicações da professora. Ele tem aulas pela manhã e à tarde e, para dar conta de tudo, não tem moleza; sua rotina diária não é nada fácil. Ele pula da cama, todo santo dia, às quatro da manhã. Só, lá, pelas oito da noite é que conseguirá voltar para casa. Só nessa hora é que vai comer a sua última refeição do dia, descansar um pouco e já iniciar os preparativos para a maratona do dia seguinte. O menino cumpre essa mesma jornada há anos, com uma disciplina espartana, mas bom humor. F 77 Flávio viaja, diariamente, duzentos quilômetros por dia desde São Joaquim da Barra, no interior de São Paulo, já quase na divisa com Minas. De manhã, ele frequenta a escola municipal Raul Machado, em Ribeirão Preto, onde tem aulas regulares. Depois que almoça, está matriculado em cursos de canto, informática e atividades manuais. O que aparece ele faz, e nunca se queixa. Sua agenda diária é típica da garotada de classe média. Por ora, ainda não faz ideia do que quer ser quando crescer. Nem é hora disso; afinal, ele só tem dez anos. Lá no fundo do peito, guarda seu maior segredo: seu sonho é ser cantor de música gospel. Duas vezes por mês, Flávio vai com os amigos à biblioteca das duas escolas em que está matriculado. Está sempre em busca de algum livro diferente. Andou lendo Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, e vários livros do Pedro Bandeira. Ultimamente, anda interessadíssimo nos livros para garotos mais velhos, curioso que está em desvendar mistérios, nas aventuras para adolescentes sobre amizade e, admite ruborizado, em garotas, namoricos e coisa e tal. Flávio gosta mesmo de ler. Como a maioria dos meninos da sua idade, adora brincar e curtir os amigos, e também dos livros. Ler, para ele, é algo muito prazeroso. Diz que aprecia os livros porque acha que eles podem ser seu único caminho para ser alguém na vida. Simples assim. A história de Flávio é, por assim dizer, a história de um menino comum, desses que pode se encontrar por toda parte. O único 78 detalhe que o diferencia dos outros meninos da sua idade é o jeito como esse jovem e convicto leitor lê seus livros. Flávio, como a maioria das crianças, gosta muito quando alguém lê ou conta uma história para ele. Mas aprecia escolher os próprios livros que quer ler e, então, faz isso sozinho. Ele faz isso de algumas formas: às vezes, pega um audiolivro e escuta no seu tocador de CD; outras vezes, esfrega um dos dedos no papel saliente enquanto vai decodificando, palavra a palavra, até formar frases inteiras, graças a um sistema que ficou mundialmente conhecido pelo nome de seu inventor: Braille. Quando está lendo, muitas vezes, Flávio, simplesmente, esquece que é cego. As coisas, então, parecem ficar mais claras e ele pode curtir a deliciosa sensação de enxergar mais longe. Apesar do pouco tempo que sobra na agenda, repleta de atividades, e do acesso restrito em função dos ainda modestíssimos acervos de livros para pessoas cegas no País, Flávio é o que se chama de bom leitor. Ele mantém a média de dezenas de livros lidos por ano e nos dá uma lição diária. Flávio dos Santos frequenta a escola da Associação dos Deficientes Visuais de Ribeirão Preto, uma ONG que faz um bonito trabalho com pessoas de baixa visão ou cegas, e mantém uma ativa biblioteca para incentivar a leitura entre eles. Flávio, o menino que lê com a ponta dos dedos, é mesmo o cara! 79 Marinheiro só mesmo impossível ir a Ilhéus, no litoral da Bahia, e não ser arrastado para dentro de uma das histórias incríveis de Jorge Amado, filho mais famoso da terra e um dos nossos grandes escritores. O casario porta-e-janela, os barcos no cais. Em cada canto da cidade histórica tem um quê de Gabriela e certo aroma de cravo e canela, algum traço firme dos coronéis do cacau ou alguma memória do punhado de personagens que, muito antes de seu criador, entraram para a imortalidade através das portas da literatura. Não distante dali, próximo desse cenário impregnado de histórias deliciosas e de cultura, que, para bem além do período representado É 80 pelo autor, remonta à época das capitanias hereditárias e dos tempos em que a Bahia era o epicentro do Brasil Colônia, vive Joílson, o marinheiro. Ele mais todos os fantasmas saídos, diretamente, das páginas e da prosa fácil de Jorge Amado, e que podem atender por nomes como Quincas, Vadinho, Nacif ou Flor. Tal como o conterrâneo ilustre, Joílson Maia, o marinheiro, cresceu entre as fazendas de cacau e as histórias dos coronéis daquelas terras do sem fim, cenário e fio condutor de tramas que até hoje atraem legiões de turistas ao lugar. Joílson tinha certeza de que não passava de um capiau, simplório e ingênuo, quando foi apresentado, pela primeira vez, à obra do ídolo. Como ele não tinha dinheiro para comprar os livros de Jorge Amado, o menino começou a pegaremprestado dos colegas de escola. Como precisava devolver no dia seguinte, Joílson passava as noites em claro para decorar as histórias favoritas e contar, no outro dia, para os irmãos. Assim, aos poucos, foi que Joílson tomou gosto pela coisa. Mais tarde, quando nasceu seu filho, de nome também Joílson, o marinheiro pensou que era chegada a hora de compartilhar com ele todas aquelas histórias que tanto o encantavam. Foi assim que ele se descobriu um contador de histórias. Joílson se arriscou, então, a escrever as próprias histórias. Já publicou dez livros, entre os infantis e os romances. O Dia da Gota D’Água e Memórias Sofridas são dois desses, que Joílson gosta de 81 contar aos passageiros da balsa que faz a travessia entre o continente e a Ilha de Comandatuba. Personagens e cenário não faltam por ali. E mestres que, no seu caso, foi, ao vivo e a cores, o próprio autor de Terras do Sem Fim: — Jorge Amado, um dia, me contou que sempre começava uma história tendo na cabeça um personagem real de Ilhéus – Joílson garante que a receita é infalível. — Está cheio de personagens de livro andando nas ruas por aí. Leitor formado na lida e, hoje, também um escritor das terras do sem-fim, Joílson, o marinheiro, sonha ir mais longe: planeja escrever outros livros sobre a sua Bahia e, quem sabe, um dia, participar de lançamentos e sessões de autógrafos numa Bienal do Livro, no Rio ou em São Paulo. A julgar pelas boas histórias e ricas personagens que têm saído, por décadas a fio, de Ilhéus, inspiração é que não vai faltar. 82 Pequenos leitores do sisal oisés, Laudércio, Antônio Jorge. São nomes de crianças comuns, dessas que habitam desde pequenas vilas nos grotões do Brasil até as periferias das grandes cidades. Vivendo em habitações precárias e quase nenhuma condição sanitária, esses meninos e meninas levam uma vida simples e sem grandes preocupações quanto ao futuro. Por toda parte, país afora, crianças nessa idade costumam, seja lá como for, brincar numa parte do seu dia, enquanto, na outra, vão à escola, a fim de aprender a ler e a escrever. Mas, nesse caso dos três acima, como de tantos outros do Nordeste brasileiro, não era exatamente assim. M 83 Moisés, Laudércio e Antônio Jorge tiveram que partir cedo para a labuta diária nas plantações de sisal nos arredores de Retirolândia, no sertão da Bahia. Ainda pequenos, acostumaram-se com os pais a ouvir que ler, escrever e brincar era um luxo só para os filhos da gente rica da cidade. Isso faria de Antônio Jorge uma criança triste. Os folguedos e os cadernos nunca fizeram parte da sua infância ou sequer do seu vocabulário infantil. Ele se punha de pé, ainda escuro, para se aprontar e passar as horas seguintes, até o entardecer, ao lado do pai, ceifando a palha do sisal. Tirar os espinhos que costumam deixar cortes profundos na pele era, por assim dizer, o que mais se aproximava de uma distração. Para meninos como eles, havia muito pouco a esperar dessa vida. O jeito, para ele e os outros, era simplesmente se resignar, aceitando como absolutamente normal o fato de que, aos sete ou oito anos de idade, tinham às mãos uma foice, em vez de lápis e caderno. Mas essa era, afinal, a vida deles. E parecia que estavam condenados a viver sempre assim. No dia em que funcionários do governo chegaram avisando que criança não podia mais trabalhar foi um “Deus nos acuda” por lá. A revolta tomou conta da cidade. A pergunta que se faziam era uma só: “Como é que aquela meninada endiabrada e embrutecida poderia aprender a ser alguém na vida sem o santo remédio do trabalho?”. 84 Para quem empregava, era o fim da mão de obra farta e barata. Mas pais e mães também estavam horrorizados, sem compreender, a princípio, que haveria outras alternativas de vida fora daquela rotina que conheciam desde sempre. A situação só aliviou um pouco quando as famílias souberam que, em troca, passariam a receber uma ajuda do governo para compensar o dinheiro que as crianças deixariam de ganhar na roça. Só teriam que ser matriculadas e frequentar, comprovadamente, a escola. Mas para aquelas crianças a mudança também não seria tranquila. Após uma infância inteira longe dos cadernos e dos livros, ter que ir à escola para aprender lições que pareciam muito complicadas de se entrar na cabeça já seria, apesar da pouca idade, algo difícil e desafiador Alguém teve, então, uma feliz ideia: talvez conseguissem compreender mais facilmente se, antes do próprio bê-á-bá das cartilhas, começassem ouvindo as histórias contidas nos livros. Os baús para acomodar os primeiros livros foram construídos com o mesmo sisal que, até então, era o grande responsável por afastar aquelas crianças da escola. O plano deu certo, e, aos poucos, aqueles meninos cuja infância e direito de aprender a ler e a escrever lhes eram negados; agora, já aprendiam e se divertiam com o novo conhecimento que chegava cada vez que um livro era aberto. 85 Nos quinze anos vividos no meio do mato, Antônio Jorge Santiago jamais imaginara que pudesse existir tanta coisa assim como, agora, ele descobria a cada página virada. Seu depoimento é um tiro certeiro: — Descobri um mundo novo dentro desses baús – diz, com emoção. Laudércio Carneiro, o amigo, se convenceu de que não é certo obrigar criança a trabalhar em vez de ir à escola: — Foram os livros que me tornaram gente – ele diz, com orgulho incontido. Moisés, ou Moca para os amigos, era um menino muito tímido. Envergonhado, não abria a boca para nada. No dia em que Ana Paula, a professora, o chamou para ler na frente de todos, ele simplesmente foi tomado pelo pavor. Suava frio. Percebendo sua dificuldade, ela deu, literalmente, empurrão em suas costas – na verdade, um toque sutil e carinhoso, que foi a maneira que encontrou para incentivá-lo. Moca leu o texto sem gaguejar e descobriu que gostava disso mais do que supunha. Desde então se soltou e tornou-se mais falante. Acabou se elegendo presidente do grêmio escolar e virou o líder da turma. Aos poucos, os livros vêm operando pequenos milagres na vida dos meninos trabalhadores do sisal. O Movimento de Organização Comunitária já contabiliza mais de 700 desses Baús da Leitura 86 espalhados pelas cidades da zona sisaleira da Bahia. Adilson Baptista, um dos líderes, diz que a literatura aproxima os jovens locais de outros que vivem em outras partes do mundo. Sem os livros, afirma ele, uns jamais conheceriam a realidade dos outros. — Uma pessoa que não lê vive isolada do mundo – Adilson vive repetindo, – os livros podem servir de elo entre as pessoas, independente de onde elas estiverem. 87 No profundo mar azul esde pequena, Ângela acalentou o sonho de ser professora. Ela sempre se interessou em conhecer coisas novas e cresceu achando natural compartilhar aquilo que aprendia com as outras pessoas. A menina só não suportava uma coisa: a ideia de crescer ali e se ver obrigada a reproduzir a mesma vida da mãe, da avó e das outras mulheres da ilha. Mal saíam da puberdade, cumpriam um ritual idêntico: namoro (às vezes providenciado pela própria família), noivado e, por fim, casamento e filhos. Tornavam-se donas de casa e davam à luz ainda jovens, repetindo o único ciclo de vida para mulheres que aquelas famílias caiçaras D 88 conheciam de cor e salteado. Muitas delas chegavam à velhice, prematuramente, sem sequer terem pisado no continente. Esta parecia ser também a sina de Ângela. Tal qual as amigas, Ângela, também tinha seus sonhos românticos de menina-moça, influenciados, claro, pelos costumes locais. Almejava se apaixonar e constituir família. Só que as coisas, dizia para si, teriam que acontecer na hora certa e do seu jeito. Porque ela também gostava de seimaginar no futuro, trabalhando em algo que a realizasse profissionalmente e, ao mesmo tempo, fazendo algo útil para sua comunidade. Entretanto, a menina sabia que suas chances, vivendo no que ela, às vezes, pensava ser um fim de mundo, eram quase zero. E Ângela não tinha a menor intenção de abandonar a terra de seus antepassados, onde, bem ou mal, estavam seus parentes, amigos e a vida que ela conhecia. Na praia da Longa, um dos vilarejos que compõem a Ilha Grande, no litoral do Rio de Janeiro, luz elétrica era um luxo distante, que só demoraria alguns anos para chegar, a reboque do programa Luz para Todos. Adentrar ao universo da informação e do conhecimento formal era, portanto, para ela, como uma corrida de obstáculos. Se biblioteca, livraria ou banca de jornal eram inexistentes, o acesso à internet, naqueles anos, então, nem pensar. 89 Para complicar as coisas, os jovens caiçaras que insistiam em estudar precisavam se submeter a longas e exaustivas viagens diárias. Dali até Araçatiba, onde funcionava a única escola dos arredores, era um tempão de barco. Do cais de Santa Luzia, na Baía de Angra dos Reis, até Proveta, a última das ilhas, já em mar aberto, consumia-se nada menos do que seis horas de barco, entre ida e volta. Porém, decidida que estava a correr atrás do sonho de ter uma profissão e tomar para si as rédeas de seu destino, Ângela resolveu ir à luta. Uma ideia simples, que brotou numa conversa entre professores incomodados com o desperdício de tempo dos alunos no trajeto até a escola, acabaria por colocar no caminho de Ângela tudo aquilo de que ela necessitava para seguir adiante em sua jornada. Os professores, que vinham de Angra dos Reis para lecionar no lugar, resolveram pegar emprestados uns livros da escola e improvisaram no convés do barco Três Irmãos Unidos II uma pequena biblioteca. Em homenagem a Castro Alves, deram a ela o nome de Espumas Flutuantes, título da obra na qual estão alguns dos versos mais famosos do poeta baiano. Junto à estante de madeira, instalaram o sofá da leitura, para que os tão aguardados leitores pudessem ler com algum conforto. Não tardou e o barco-biblioteca virou a sensação do lugar. Era lá que aconteciam os flertes e namoricos, e onde tinham início relações que durariam a vida toda. Também era lá onde se tiravam algumas 90 das dúvidas escolares e, naturalmente, onde se podia ler e estudar tranquilamente e, claro, emprestar livros para levar para casa. Ângela bebeu, por anos a fio, daquela fonte. Lá, conheceu os romances e viveu aventuras memoráveis da sua adolescência. Era ali que fazia amizades e onde se deliciava com os poemas, gênero que causaria um impacto profundo em sua existência. Estimulada pelas leituras, reflexões e histórias arrebatadoras saídas de dentro dos livros, Ângela de Oliveira insistiu até que levou a cabo o antigo sonho de ser professora. Continuar a viver em Ilha Grande depois de formada foi, portanto, uma escolha pessoal dela, que atualmente leciona na mesma escola na qual um dia estudou. Ângela sabe que agora é a sua vez de inocular em seus meninos e meninas aquele mesmo vírus bom da leitura que abriu para ela uma imensa janela de oportunidades e novas perspectivas de vida, além de uma possibilidade concreta de escrever seu próprio destino. Para esses brasileiros e brasileiras, Ângela não se cansa de falar sobre sua gratidão para os livros, que deram a ela um novo sentido para a sua vida. 91 A que foi sem nunca ter sido s bambambãs da leitura costumam dizer, com razão, que para formar bons leitores é preciso reunir certas condições. A primeira delas, evidentemente, é que o sujeito saiba ler e escrever, e tenha habilidade em manejar as palavras e entender o sentido do que lê. Mas não é só. Ajudará muito se esse indivíduo vive num lugar onde há livros, jornais, revistas e, de tempos para cá, internet; como também uma boa biblioteca e livrarias para que ele tenha acesso à informação e ao conhecimento. Se o candidato a leitor tiver a sorte de ter nascido numa família leitora, onde livros podem ser encontrados em qualquer canto, suas O 92 chances serão, então, muito, muito maiores. Assim como ocorre se puder frequentar uma boa escola, com livros e professores que gostem de ler e levem seus alunos a fazer o mesmo. Em Sertãozinho, na minha infância, não havia livrarias. Cresci numa família que não era exatamente de grande tradição leitora. Davam duro, de sol a sol, na roça e quase não sobrava tempo para mais nada. A mãe que me criou deixara de ir à escola, quando mocinha, para ajudar a criar os irmãos menores. Ocorre que a mais nova dos seus oito filhos enfiara na cabeça que iria estudar, queria ser professora. Cursou, com muito custo, o Normal e, ainda bem jovem, foi lecionar numa escola de fazenda. Como eu ainda não tinha idade para ir à escola, ela me carregava junto. Nossa aventura começava muito antes de o sol apontar. O ônibus nos deixava na beira da estrada, diante da porteira da propriedade, e, de lá, seguíamos de charrete até a sede da Fazenda Palmital, famosa pela água mineral deliciosa que jorrava generosamente. Era bonito ver aqueles meninos e meninas de variados tamanhos chegando com a cartilha debaixo do braço. E a professorinha ensinava muito mais que o bê-á-bá. Era lá que eles – que, mais tarde, seriam vítimas do êxodo rural – aprendiam a se preparar para a vida e conquistar seu lugar ao sol na cidade em que fossem morar. Com o mesmo fervor e dedicação com que se entregava às suas crianças, ela cuidou de me apresentar aos livros. Quando, mais tarde, 93 casou e se mudou, levando os livros da casa; passei a visitá-la diariamente. Eram quilômetros que valiam a pena. Primeiro, ela me enfeitiçou com sua coleção de livros de capa dura de Monteiro Lobato. Ao chegar ao último volume da estante, começava tudo de novo – só muito depois eu descobriria a biblioteca pública. Quarenta anos depois e duas aposentadorias nas costas, a professorinha segue lecionando. E sempre em alguma escola pública, em algum bairro pobre. Não se cansa da missão que têm os educadores de verdade de aproximar livros e leitores. Basta que um só deles tome gosto pela coisa e seus olhos brilham, como em seu primeiro dia no magistério. Tenho encontrado por toda parte, e cada vez mais, professorinhas semelhantes a ela, que gostam do que fazem e vivem em função de tornar os seus meninos e meninas em leitores. Com paixão e uma capacidade extraordinária de encantar, elas vêm ajudando a formar uma boa geração de brasileirinhos leitores, que certamente serão bons cidadãos no futuro. O nome dela? Elisabeth de Souza e Silva, a que foi, sem nunca ter sido, minha professora de verdade. 94 Parte II E as pessoas mudam o mundo. 95 O livreiro do Alemão távio guarda, até hoje, a estranha sensação de que tudo o que ele é ou conseguiu na vida se deve ao futebol. Ou, para ser mais específico, a uma pelada de futebol, entre as tantas que já jogou nos campos de chão batido do subúrbio. No caso, a uma para a qual, a propósito, sequer chegou a ser escalado. Não, Otávio não foi alçado ao estrelato e à glória no mundo do futebol em função de tal peleja, se é isso que você está pensando. Tampouco se tornou um boleiro profissional, ainda que fosse um desses que, mesmo sem fama nem glória, acabam conseguindo juntar uns trocos correndo atrás da bola em algum campeonato da O 96 várzea ou, se der sorte, jogando, ao menos, uma temporada no exterior. Esse não foi o caso de Otávio. Como a imensa maioria de meninos pobres e negros do Brasil, ele também chegou a pensar, um dia, no futebol como sua chance de ser “alguém na vida” e, assim, alcançar dinheiro e sucesso. Não erra, porém, quem dizque a história de sucesso e realização pessoal de Otávio começou, de fato, num campinho de futebol. Só que do lado de fora das quatro linhas do campo e de forma bastante diferente da que ele imaginava. Justo naquele dia, Otávio fora excluído da lista dos titulares. Não sobrara vaga alguma, sequer a de goleiro, a mais desprestigiada, e, por isso, geralmente entregue a quem fosse fazer menos falta jogando na linha. Na hora de formar os times no futebol improvisado da garotada, funciona assim: ou você joga na linha, ou você joga no gol, dependendo do talento ou da amizade com os líderes e com os atletas mais disputados. E as habilidades futebolísticas não eram, exatamente, as principais de Otávio, que, como ficaria provado, teria muitas outras. O fato é que, nesse dia, Otávio ficou, mais uma vez, de fora do jogo. Filho de pedreiro e de uma dona de casa, Otávio, que recebeu o mesmo nome de batismo do pai, ainda não havia completado oito anos de idade. Contrariado com a exclusão do time, ficou, como era de se esperar, emburrado. Para ele, meninos maiores não tratavam 97 os menores com o devido respeito e se achavam mesmo os autênticos “donos da bola”. Por isso, decidiu arrumar alguma outra coisa para fazer. Ao revirar o latão de lixo nos arredores do campo, encontrou, em meio a brinquedos velhos e toda sorte de bugigangas, um livro. Levou com ele, sem saber ao certo o que faria com o dito cujo. Dias depois, estava em casa quando a luz elétrica da favela pifou pela enésima vez. Até aí tudo bem, ele pensou, mas o problema é que isso tirara do ar a tevê em preto e branco, e, com ela, a Sessão da Tarde, única diversão que restara. Otávio, resignado, se lembrou, então, do tal livro que encontrara revirando a lata de lixo. Era Don Gatton, um conto infantil espanhol, traduzido para o português. Otávio gostou tanto da história que resolveu ir atrás de outros livros. Sem que se desse conta, a literatura foi, com seus personagens fantásticos e histórias mirabolantes, entrando, lentamente, em sua vida. A ponto de fazer o menino largar mão, de vez, dessas histórias de virar jogador profissional de futebol. Havia dias em que o garoto chegava a matar aula só para poder ler livros escondido na biblioteca. A mãe, coitada, ia à loucura. Mas Otávio era um bom menino e jamais deixou de pegar firme nos estudos. Só que gostava muito de ler. Nos anos seguintes, ganhou bolsas de estudo, em reconhecimento ao seu esforço, e, sempre, aproveitou ao máximo as oportunidades. 98 Fez cursos de teatro, cinema, literatura e o que aparecia. Um dia se matriculou no curso que arrebataria nele uma paixão para a vida inteira: a arte de contar histórias. Otávio, que já tivera a experiência de atuar como ator e produtor cultural na periferia, percebeu que a vida esperava mais dele. Se combinasse seus dotes de ator amador ao seu conhecimento com a literatura e começasse a contar histórias para crianças e adolescentes dos morros, certamente, despertaria em muitas deles o gosto pelas delícias da leitura. Mas, principalmente, poderia mostrar o que os livros podem fazer na vida das pessoas, tal qual fizera, por sinal, com ele próprio. Durante dez anos, o circo literário do Otávio levou alegria, histórias e diversão aos moradores das favelas do Rio de Janeiro. Depois dele, vieram o Lanchinho Literário, o Cineminha Literário e o Leia 10, Leia Favela. E nunca mais parou. No início, era só um punhado de livros, o tapete puído da mãe e a velha e manjada mala vermelha, também achada no lixo, na qual transportava perto de uma centena de exemplares. Mais tarde, Otávio abriu uma biblioteca comunitária, a “Barracoteca”, primeira do Morro do Caracol, no pacificado Complexo da Penha e do Alemão, que reúne treze favelas da Zona Norte do Rio. A Barracoteca Hans Christian Andersen funciona em um sobradinho de dois andares, onde, antes, existia um salão de forró. É a partir de lá que o rapaz sonha, um dia, poder irradiar livros e 99 leitura para toda a população de quatrocentos mil habitantes do entorno. É um desafio e tanto, mas Otávio não desanima: — Os livros estão ajudando as crianças daqui a ampliar seus horizontes – ele diz, com os olhos brilhando de felicidade. Gabriely Estevão, menina de oito anos que um jornal foi encontrar brincando de médica na Rua Nova, nas imediações da Barracoteca, é prova disso. Toda prosa, dela emana, dos seus pequenos olhos, um brilho bonito de se ver quando ela contempla o próprio futuro. — Eu quero ser doutora! Mas tem que ler para ser alguma coisa na vida... Já Otávio, com mais de sete mil livros lidos e contabilizados desde aquele Don Gatton pioneiro, espera, algum dia, poder topar com uma biblioteca em cada esquina da favela. Numa área antes conflagrada pelo tráfico e que, até recentemente, era considerada uma das mais violentas do Rio de Janeiro, o rapaz plantou uma nova e boa semente. No lugar dos tiros e das mortes, Otávio Cesar Santiago de Souza Junior, o Otávio Junior, o livreiro do Alemão, levou para lá livros. E, com eles, um novo sopro de vida e de esperança. 100 Esmeralda cansada de guerra smeralda era uma menina que vivia suspirando pelos cantos, toda cheia de sonhos. Quando crescesse ficaria uma moça bem bonita, com um bom emprego na cidade, e se casaria com um belo príncipe encantado, que surgiria do nada e a levaria para bem longe dali. Para isso, pensava ela, precisava estudar para ficar cada vez mais inteligente e, assim, aproveitar as oportunidades que o destino, docemente, reservava-lhe – fosse um bom emprego, fossem novos amigos, fosse um marido amoroso. Em busca de seu sonho dourado, ela adorava ir à escola. E fazia os deveres escolares com incontida alegria. E 101 Mas houve um dia em que o mundinho cor de rosa, que Esmeralda desenhava para si, ruiria por terra. As fantasias deram lugar, de uma hora para outra, a uma realidade dura e cruel. Foi o dia mais triste de sua vida: o dia em que ela, ainda uma criança, foi forçada a abandonar a escola para trabalhar e ajudar nas despesas da casa. Como num conto de fadas às avessas, ela perdeu o rumo e o prumo na vida. Desde então, Esmeralda comeu o pão que o diabo pisou e amassou. Mas Esmeralda é, acima de tudo, uma sobrevivente. De uma penca de dezenove filhos de uma família de Nova Londrina, no interior do Paraná, ela e dez irmãos vingaram. Todos os demais morreram. De subnutrição, doenças ou simplesmente porque sucumbiram, antes mesmo de nascer. Na verdade, a saga de Esmeralda foi toda entremeada por histórias de fome, dor, pranto e doenças. A mãe, alcoólatra, diziam que era uma perdida. Quando dava na ideia, tomava a filharada pelo braço e saía pelo mundo afora, sem direção. Dormiam em ruas, praças e calçadas, e se alimentavam das migalhas da caridade alheia. Mas se havia algo que a mãe de Esmeralda levava a sério era o dito popular que reza que escola de pobre é o trabalho. Mal a filha completara cinco anos, já a levou para trabalhar como doméstica, em troca de roupa lavada, comida e pouso – o que a menina fazia com certa alegria, pois isso permitia que, no turno de folga, frequentasse a escola como tanto desejava. 102 Por isso, ela se abalou tanto ao saber que teria que abandonar os estudos para trabalhar numa casa de família na capital. Lá, conforme disseram, teria um salário melhor para ajudar mais a mãe e os irmãos. Sua tragédia pessoal estava só começando. Mal chegou a Curitiba, a menina foi vítima de estupro. Sofrida e desamparada, voltou correndo para perto da mãe. Depois de, dolorosamente, ter sentido em seu próprio corpo as mazelas culturais da sua sociedade, a alma de Esmeralda seria, mais uma vez, vitimada. Voltando à cidade, seria, então, alvo da maledicência alheia: a vizinhança tratou de espalhar que a garotanegra e franzina fora à cidade grande, justamente, para cair na vida. Outra amarga decepção. Em desespero e se sentindo desamparada, ela acabou por ceder à bebida e às drogas. E passou, aí sim, a se prostituir para sobreviver longe de casa. Não sairia tão cedo do seu inferno pessoal. À custa de muita dor e sofrimento, ela descobriria que, se o seu vale de lágrimas nem foi tão difícil assim para achar, já a trilha de volta seria longa, estreita e sinuosa. Como dizem que não há mal que dure para sempre, houve um dia em que a Providência fez parar nas mãos de Esmeralda algo que deflagraria o início de uma grande virada em sua vida: o exemplar de um livro velho, surrado e despretensioso, que beirava as noventa páginas. 103 Para ela, aquele jamais seria um livro qualquer. Samuel Morris – era esse o título do livro – trazia a narrativa das aventuras vividas por um menino africano que, ao ser sequestrado por uma tribo rival para ser vendido como escravo, perdera tudo o que tinha na vida. Levado para a Europa, ele teve uma vida muito além do difícil, sofrido e cruel. Mas, impulsionado por uma força interior irresistível, acabaria por conseguir dar uma incrível, e positiva, reviravolta em sua trajetória. Era tudo o que Esmeralda precisava ouvir. Aquilo, para ela, foi como um sopro de esperança. Cansada daquela rotina errante e doída, Esmeralda decidiu abandonar a rotina que vinha levando e se mudou até de estado: transferiu-se do Paraná para Rondônia, na fronteira com a Bolívia, para retomar o controle do seu destino, longe de tudo e de todos. O plano de Esmeralda era retomar os estudos na região Norte do país, a milhares de quilômetros da sua antiga vida, e construir, por lá, uma nova. Mas, outra vez, ela não teve muita sorte: sua velha escola, no interior do Paraná, fora simplesmente destruída por um incêndio, e já não havia nenhum documento para contar história, podendo comprovar, assim, seus anos de estudo. Teria, uma vez mais, que adiar o sonho de se formar e recomeçar. Esmeralda não largou mão. Anos mais tarde, a custo de muito suor e sacrifício, ela conseguiu, finalmente, o tão esperado diploma. Desde então, Esmeralda nunca 104 mais deixou de ler. Na verdade, depois de Samuel Morris, os livros foram se sucedendo em suas mãos. Até hoje, ela lê livros de diferentes gêneros e, na hora de dormir, não abre mão de ler algum trecho da bíblia. Hoje em dia, de volta à região Sul, Esmeralda, agora mãe de quatro filhos, não perde a oportunidade para aproximá-los dos livros. Eles e a filharada da vizinhança. Ela se alistou como agente de leitura voluntária do Programa Arca das Letras e montou, na casa dela – no antigo quilombo do Despraiado, um assentamento da reforma agrária –, uma pequena biblioteca rural, já com trezentos e tantos títulos. Ela explica que este é o jeito que ela encontrou de repartir com as outras cinquenta e oito famílias descendentes de escravos, que, lá vivem do cultivo do feijão, soja e verduras, a luz que emana dos livros que ela lê. Agora, mais velha e um pouco cansada de tanta guerra, Esmeralda Alexandre Alfonso, pequena proprietária da reforma agrária em Candói, no interior do Paraná, jura que desta boa luta – levar livros a quem não tem e que sequer sabe o seu valor – ela não vai desistir nunca. 105 O zelador de livros oi por causa da primeira mulher, uma enfermeira, que Sebastião tomou gosto pela coisa. Ela repetia, com insistência, que ele precisava ler mais e que os livros ainda haveriam de provocar grandes mudanças na vida dele. Sábias palavras aquelas, hoje, Sebastião não tem a menor dúvida. Na época, entretanto, Sebastião não deu muita bola para essas conversas. Algum tempo depois, ela veio a falecer. O tempo foi passando e Tião, que já não era lá muito afeito às letras, tratou de esquecer, de vez, os conselhos da finada mulher. Aos poucos, ele reconstruiu sua vida e buscou um trabalho estável e alguma tranquilidade. Encontrou um emprego de zelador num F 106 prédio de classe média, que oferecia registro em carteira e benefícios. Sua vida, de fato, ficou mais sossegada. Passou a ter horário para entrar e para sair e seus dias ingressaram numa fase de calmaria. Mas algo no novo trabalho o incomodava, e Sebastião não sabia exatamente o que era. Por fim, o zelador percebeu o quanto ficava inquieto com o fato de os moradores do condomínio atirarem pilhas e mais pilhas de jornais velhos, revistas e livros no lixo. Muitos deles não pareciam sequer ter sido folheados. Cada vez que via aquilo – o que, aliás, repetia-se com muita frequência –, era como se as palavras da finada esposa martelassem na sua cabeça: — Você precisa ler mais, Sebastião! Os livros podem ajudar a melhorar a sua vida. Um dia, Tião resolveu recolher aquela livrarada que se amontoava, cada vez mais, na lixeira do prédio. Eram clássicos, dicionários, livros escolares, ficção e muitas revistas. Sebastião organizou o acervo com critérios, que iam do tipo e periodicidade da publicação até o gênero. A pequena biblioteca do condomínio se completava com gibis e revistas, as mais disputadas pelas faxineiras. Aquilo deixou o zelador com a pulga atrás da orelha. Então era assim: o que parecia descartável para uns podia ser tremendamente útil para outros. 107 Sebastião ia de porta em porta atrás de novas doações. Em pouco tempo, era bibliotecário-mor de um vasto acervo, que, na primeira oportunidade, acondicionou em grandes caixas de papelão e transportou até Cravinhos, na sua cidade, localizada à beira da Anhanguera, rodovia que liga São Paulo a Minas Gerais. Todo fim de semana, o zelador desencaixotava tudo e expunha numa praça da periferia de Cravinhos, nos arredores de casa. Nem ele imaginou tamanha aceitação. Os que viam e gostavam tratavam de espalhar a novidade para os vizinhos e amigos. Rapidamente, chegou a trezentas as famílias cadastradas para emprestar livros. Tudo muito simples e funcional: bastava pegar e levar o livro para casa, e trazer de volta no final de semana seguinte. Sebastião percebeu o quanto pessoas pobres e remediadas, como ele, gostam de ler. O problema, concluiu, é que nem sempre têm acesso aos livros, jornais e revistas. Quando a prefeitura, que a princípio apoiara a iniciativa, desistiu de continuar no projeto, o zelador resolveu seguir sozinho. Ele saiu em busca de mais doações e, desta vez, não era só livros. Arrumou tijolos, areia e cimento – o que foi suficiente para erguer um puxadinho no quintal de casa, no Jardim Berbel 2, bairro popular da cidade. Levou para lá sua pequena biblioteca comunitária que, a essa altura, já somava em suas estantes quatro mil livros e duas mil revistas, salvas do cemitério do conhecimento pela solidariedade das pessoas. 108 Sua Biblioteca na Calçada, como ele a batizou, virou mania na periferia da cidade. Sob seus toldos azuis, a criançada do bairro se junta nos finais de semana para ouvir histórias enquanto a vizinhança se espreme entre os corredores apertados para vasculhar entre suas prateleiras. O zelador já não tem mais sossego, mas nunca se queixa. A qualquer hora que apareça algum interessado em um de seus livros, Sebastião vai, abre a biblioteca e, pacientemente, entrega de bom grado o que o consulente demanda. — Eu não tenho coragem de negar um livro a ninguém... – ele diz, explicando que esse é o único bem que pode fazer ao seu próximo. Casado pela segunda vez – desta vez, com uma professora – e pai de dois filhos, Sebastião continua a juntar, com a paciência e a disciplina de sempre, uma nova leva de livros. O sonho dele, agora, é formar uma biblioteca bem grande para poder emprestar mais livros e atender moradores de outras regiões da cidade. Enquanto esse dia não chega, Sebastião, o zelador de livros de Cravinhos,segue formando os seus leitores na Calçada. E zelando pela sua biblioteca, como na música do Chico Buarque, com o zelo de quem leva o andor. 109 A Bibliojegue do sertão ão adianta perguntar, por lá, sobre o paradeiro do Manoel Ribeiro Filho. Dificilmente alguém conseguirá responder. Mas, se mencionar o epíteto Barraca, provavelmente, o prezado leitor encontrará muita gente disponível para narrar uma das muitas proezas do personagem em questão. Sempre haverá alguém com uma boa história na ponta da língua para contar. Nascido e criado em Auzilândia, lugarejo incrustado no meio do caminho para a Serra de Carajás, no interior do Maranhão, Barraca se tornou uma figura célebre no lugar. Tudo por causa da sua incrível história com um jegue e com os livros. N 110 O apelido, que veio dos “barracos” em que ele vivia se metendo, fora conquistado, verdade seja dita, por mérito próprio e à custa de muita confusão. Suas histórias eram famosas por ali. Brigas, envolvimento com drogas... e por aí vai. Seu boletim escolar era um vermelhão de dar dó. Como quem tem fama deita na cama, como diz o dito popular, é muito provável que parte dos causos tenha sido injustamente creditada ao pobre coitado. De todo modo, Barraca fugia como o diabo da cruz dos conselhos e sermões dos mais velhos, a essa altura cada vez mais frequentes. O caso é que não havia quem apostasse, uma ficha que fosse, no futuro do menino, sempre rebelde e arredio. Mas, eis que, um dia, o tal milagre aconteceu. De uma hora para outra, Barraca estava irreconhecível. Tornou-se mais atencioso e educado. Nem de longe lembrava aquele outro. Estava, definitivamente, mudado, da água para o vinho. Ninguém sabia explicar ao certo o que se passara com ele. Uns atribuíam, em tom jocoso, a um suposto milagre do jegue, animal que em algumas regiões do Brasil é tido mesmo quase como um bicho sagrado, o que transportou o menino Jesus. Outros diziam que os livros – que nunca foram seu forte – teriam desmiolado de vez o rapaz. Com quem estava a razão, jamais se soube ao certo. O caso é que uma professora resolveu escalar o insolente aluno, veja só, para ajudar em um importante projeto da escola. Como 111 dificilmente se conseguia encontrar livros em Auzilândia, muitos moradores, embora alfabetizados, simplesmente perdiam, pela falta da prática, a habilidade da leitura. A ideia era simples: levar os livros das escolas para que a população pudesse escolher, entre eles, o que mais lhe apetecia e, assim, não se esquecer de como se lê. Com isso, pensaram, acertadamente, os professores, “quem se sabe se os adolescentes considerados problemáticos não se interessariam um pouco mais pela leitura?”. E lá foi o Barraca para a gloriosa, porém nada fácil, missão – que coube justo a ele que dizia detestar os livros. Sua tarefa, a princípio, não parecia difícil: ele só tinha que puxar o jegue pelas ruas do povoado. Sobre o lombo do animal, seria colocado um jacá, um cesto colorido, cheinho de livros. Tamanha agitação, ele calculou mentalmente, era garantia de confusão na certa. Ele topou na hora. Semana sim, semana não, a festiva procissão das letras saía, com pompa, pelas ruelas do lugar. A curiosidade despertada pela inusitada e ruidosa caravana de livros atraía os candidatos a leitor em potencial. Depois de descarregados, os livros eram, cuidadosamente, ajeitados sobre um lençol estendido no chão. Como um camelô falante da cidade grande, Barraca tratava de passar o seu recado: — Olha, aí, os livros. Quem quiser que pegue o seu! 112 Sempre aparecia algum interessado. No início, com certa timidez. Aos poucos, no entanto, iam se soltando e até se arriscavam a folhear um dos livros. Certo dia, Barraca assistiu a uma cena que mexeria, profundamente, com ele. Notara, de relance, que um deles, já bem velho, olhava atentamente para o livro aberto. Até aí, estava tudo bem, a não ser por um detalhe: o exemplar estava de cabeça pra baixo. O jovem olhou com ternura para o homem e pensou que ele devia ser analfabeto e que, pelo visto, não se sentia à vontade com isso. Naquele instante, Barraca – que sempre fizera questão de se vangloriar pelo seu desprezo aos livros – foi tocado por um sentimento esquisito. Era compaixão o que ele estava sentindo. Então, pegou o livro e, em voz alta, leu para o ancião que não sabia ler. Aquele gesto mudaria para sempre o seu modo de encarar as coisas e a sua própria vida. O menino leria outras vezes para outras pessoas e, aos poucos, tornou-se um contador de histórias, essa figura mítica que tem papel importante na tarefa de multiplicar leitores em um país no qual a tradição oral ainda é muito poderosa. Lentamente, ele ia percebendo o quanto sua vida começava a mudar. Agora, pensava, tinha uma ocupação que lhe dava certo prazer e, mais do que isso, era reconhecido nas ruas e nos lugares aonde ia. Quando o avistavam, as crianças apontavam em sua direção: 113 — Olha lá, o tio dos livros... O menino recuperou a autoestima perdida em anos de broncas, sermões e punições, a cada vez que se metia em alguma encrenca. E daquele casulo, onde Barraca se sentia condenado a viver trancafiado pela eternidade, ressurgiria Manoel Ribeiro Filho, cidadão que reconquistou nos livros a alegria de viver e, hoje, vive e trabalha em Auzilândia, no município de Vista Alegre do Alto, entre o Norte e o Nordeste do Brasil. Mas a história não parou por aí. Manoel, que há muito deixou de ser Barraca, alistou-se para trabalhar como professor na alfabetização de jovens e adultos, algo que surpreendeu a muitos, menos a ele próprio, que, no contato com os livros e as personagens das histórias que lera, fizera uma descoberta singela: se ao ler para si próprio era uma espécie de investimento pessoal, quando lia para os outros estava praticando um ato de amor. 114 Ler para o outro é um ato de amor ânia, Silvia, Shirley. Tanto faz seus nomes, idades, ocupações ou os lugares onde vivem. Algumas delas são profissionais liberais; outras, donas de casa. Há, entre elas, ainda, algumas que já estão aposentadas. E as que vivem do trabalho assalariado, com registro em carteira e o dia corrido, mas que também dão um jeitinho de espremer mais a agenda diária e arrumar um tempinho para incluir, entre os afazeres, um trabalho voluntário. Quem sair, por aí, visitando obras sociais, igrejas, hospitais, escolas e projetos de ONGs verá que há muito mais pessoas do que, em geral, se imagina – em sua maioria mulheres – dedicando horas do seu tempo livre para trabalhar de graça por outras pessoas. Elas buscam alguma oportunidade para fazer o bem ao próximo. Seja por T 115 compaixão, fé, militância ou outro qualquer tipo de crença em uma causa. É mais frequente encontrar voluntários atuando em projetos sociais de combate à fome, campanhas do agasalho e de saúde ou atrás de donativos para menores, deficientes, idosos ou dependentes químicos. Para praticar a solidariedade, cada um dá o que sabe e o que pode. Uns oferecem dinheiro, alimentos ou roupas e objetos que não usam mais. Costureiras, cabelereiros, cozinheiros, instrutores de informática, pedreiros e médicos, por exemplo, podem dar parte de seu tempo livre e de suas habilidades. Escritores, ilustradores, editores e livreiros bem que poderiam utilizar a sua criatividade e familiaridade com os livros para engrossar essa cruzada e levar a leitura a mais gente por aí. Não dá para continuar achando que esse é um problema, exclusivamente, do governo e que já se paga imposto e coisa e tal. Há muita gente que já faz algum tipo de ação voluntária nesse sentido, muitos dos quais são professores e bibliotecários aposentados, mas não só. Só é preciso ter um mínimo de gosto pela leitura. Hámuita gente por aí – em asilos, creches, hospitais, associações de bairro, escolas – que daria tudo para ter alguém que lhe conduzisse, com carinho e segurança, para esse universo paralelo das palavras. É o que faz, por exemplo, Tânia Alves Afonso. Assim que ouviu pela primeira vez que poderia praticar o voluntariado doando algo de que gostasse muito e que não lhe faria falta, ela de pronto pensou: 116 “Por que não doar a própria voz e habilidade de ler e contar histórias para os outros?”. Tânia se alistou imediatamente como contadora de histórias voluntária do HC, o Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, onde passou a ir, uma vez por semana, compartilhar, com outras pessoas, uma das coisas que ela mais gosta de fazer na vida: ler. Ela lê e conta histórias para crianças com câncer, como o curumim Pedro de Oliveira – da tribo dos Xacriabás, de São João das Missões, no interior de Minas Gerais – que há anos guerreia contra a doença. Entre uma e outra quimioterapia, essa meninada se deixa embalar pelas fábulas de Rapunzel, Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho e quem mais vier. Em outro lugar, as mulheres da Igreja Presbiteriana, capitaneadas pela médica Silvia Pelegrino, leem para os moradores do Lar dos Velhos, uma casa que abriga idosos pobres na periferia de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Uma vez por semana, donas de casa, comerciárias e profissionais da saúde param tudo o que estão fazendo e trocam os compromissos profissionais ou lazer com a família pelo prazer de ler... para o outro. — Ler faz bem para a saúde – diagnostica a doutora, que tem constatado, por sinal, melhoras extraordinárias em seus pacientes idosos. — São melhoras nítidas, tanto em sua percepção visual 117 como, especialmente, no campo emocional e no neurológico – ela assegura. Shirley levou tão a sério a contação de histórias que decidiu se matricular em um curso de aperfeiçoamento, só para poder caprichar mais na arte da interpretação e, assim, prender a atenção dos seus ouvintes e conquistar mais leitores entre os jovens e adolescentes do Hospital Municipal Santa Lydia. Gente como Tânia, Silvia, Shirley e tantas outras pessoas voluntárias que se espalham pelo Brasil afora, talvez nem se dê conta do grande bem que estão fazendo a essas pessoas e ao País. Com o simples gesto, que não custa nada, essas mulheres vêm produzindo transformações, muitas vezes, aparentemente, invisíveis na vida das pessoas. Se somadas cada uma dessas mudanças interiores, seus novos olhares e atitudes; essa soma, com certeza, é alta. Motivadas tão somente pela vontade e a disposição de devolver um pouco do que já receberam da vida, elas não esperam nada em troca. Mas, de um jeito ou de outro, isso acaba acontecendo, mesmo que não percebam. É uma onda poderosa de amor, gratidão e respeito, que muito pode. Pois se ler para si mesmo é uma atitude de autoestima e cidadania, ler para o outro é um ato de amor. 118 Santo Antônio Casamenteiro nita. Era esse o título do primeiro livro que Denise, ainda menina, ganhou de presente. Era uma história bonita, farta em ilustrações, publicada pela Disney. Ela ficou fascinada e se entregou de alma ao pequeno objeto e suas cores reluzentes. Nas horas que se seguiram àquele instante de pura magia, não houve nada que fosse capaz de desviar sua atenção ou extrair da sua lembrança os personagens e o enredo da história que tanto a cativara. O livro fora um presente da tia. Não havia nenhum motivo especial para isso; ela, simplesmente, resolvera presentear a sobrinha querida A 119 com um livro. Podia ter sido uma boneca ou outro brinquedo qualquer, mas ela escolheu dar um livro. Essa escolha não só marcou, profundamente, a sua infância como também ajudou Denise, já moça, a definir seu rumo profissional e a própria vida futura. Depois daquele dia, Denise nunca mais foi a mesma. Seu caso de amor com os livros foi algo à primeira vista, desde o instante em que virou as primeiras páginas de Anita. Das fábulas, a mineirinha pulou para as aventuras adolescentes e, daí, para o romance, a poesia e os mais variados gêneros literários. Parecia abduzida por aquele universo paralelo de magia e encantamento. Quando chegou a hora de escolher a faculdade, os livros vieram imediatamente à sua memória e ela optou por fazer Biblioteconomia, uma forma de estar sempre perto deles. O primeiro emprego de Denise foi na Universidade Federal de Minas Gerais, onde estava matriculada, para cuidar dos livros de Direito. Sua tarefa era ajudar os futuros advogados a encontrar os livros que buscavam, e não só as obras jurídicas, como também os livros de literatura, que poderiam ajudá-los a desenvolver uma visão mais abrangente do mundo e das pessoas com quem teriam que lidar no futuro. Sua maior alegria, porém, foi ao entrar pela primeira vez numa biblioteca pública para trabalhar no atendimento aos leitores. Teve claro, para si, que não poderia se dar o luxo de atuar como mera guardadora de livros. Que, ao contrário, teria uma bela missão pela 120 frente: colocar tête-à-tête livros e leitores, e, principalmente, aqueles que ainda não liam. Mais da metade de sua vida à frente da Biblioteca Pública JK, no bairro Fundinho, em Uberlândia, no interior de Minas, Denise de Carvalho, bibliotecária por convicção, tornou-se uma espécie de Santo Antônio Casamenteiro de livros e leitores. O que – ela sabe – não é nada fácil, mas faz com alegria e gosto, e isso faz toda a diferença. Para conquistar os futuros leitores, Denise não mede esforços: já criou um carro-biblioteca, depois uma Kombi-biblioteca e, por fim, o ônibus-biblioteca, um sucesso danado por lá. Sua paixão pelos livros é tamanha que ela sofre só de pensar que terá um dia que parar. Por via das dúvidas, já cuidou de apresentar Ana Luiza, a filha, aos livros e a sua biblioteca. Parece que deu certo: assim como a mãe, a menina tem verdadeira paixão pela leitura! Mal completou dez anos de idade, Ana Luiza tem planos para o futuro. Diz que vai substituir a mãe e, assim, dar vida a uma nova geração de bibliotecárias compromissadas em levar adiante essa obra de desenvolver novos leitores. É uma história de mãe para filha que, pelo visto, parece que não vai acabar tão cedo. 121 O pescador de leitores dia ainda não amanheceu quando Seu Joaquim, mineiro como o da outra história, experiente com as rédeas, manobra com destreza a sua carroça. A centenas de quilômetros da capital e da região metropolitana do seu estado, Minas Gerais, ele estaciona o carro de tração animal diante de uma casa sem fazer barulho. Ainda faz escuro, e barulho, como ensinava o poeta Drummond, de nada resolve. O ritual tem início pontualmente às cinco da manhã, hora de um silêncio absoluto por aquelas ruas. Há anos é a mesma coisa, o que o homem faz com fervor quase religioso e uma disciplina de quartel. Com cara de quem acabou de acordar, o dono da casa abre, sonolento, a porta. Em vez de uma bronca, esse visitante do meio O 122 da noite é, longe disso, recebido com um largo sorriso. O morador tão somente acena, passa uma das mãos para ajeitar a cabeleira vasta e espantar os últimos resquícios do sono. Em minutos, está ajudando o homem da carroça a ajeitar, pacientemente, os sete caixotes e as duas estantes sobre o tablado. A condução toma o rumo do estádio do glorioso Pirapora Futebol Clube, mas passa indiferente pelo campo de futebol que, a essa hora, permanece às escuras. Pa-co-plá. Pa-co-plá. Pa-co-plá. O ruído das patas do animal contra o asfalto é o único som que se ouve naquela hora por ali, mesmo a quarteirões de distância. Dali a pouco, o homem pensa, todo aquele silêncio deixará de existir e dará lugar à balbúrdia habitual de todo domingo de manhã.O carroceiro sabe que a corrida está prestes a terminar quando avista o bando ruidoso que descarrega e monta suas tralhas bem no meio da rua. Sem se apressar, o homem da carroça para o veículo em plena via pública e apeia, indiferente ao que algum vizinho possa dizer ou se um guarda surgirá, do nada, com um talonário de multa na mão naquela inusitada hora, já não se sabe se do dia ou se da noite Ainda faz escuro quando homens e mulheres ocupam cada metro quadrado, antes vazio, com suas barracas e apetrechos. Parece uma operação de guerra. De repente, sobre uma banca coberta por um toldo puído, alguns homens ajeitam, com cuidado, dúzias de 123 laranjas. Sobre uma outra, tomates, frutas frescas e maços de verduras de folha. Não demora e a misteriosa carga, zelosamente, transportada no escuro pelo carroceiro se revelará às primeiras luzes do dia. Leonardo, o dono da casa, agora, está bem acordado e radiante. Ele saca duas cédulas de dez reais da carteira e entrega ao carroceiro, régio pagamento acertado pelo carreto contratado para todas as semanas do ano. “Outro domingo”, o rapaz vibra em seu íntimo. Este é o seu dia preferido e ele tem motivos de sobra para isso. Nos dias de semana, Leonardo é pescador profissional dos bons. Varre as águas do Velho Chico, no Norte de Minas, e só volta para casa no fim da tarde, quando vê que o pescado é suficiente para encher as geladeiras e atender à freguesia fixa, que nos dias úteis acorre a sua casa e no domingo vai comprar na feira. Boa parte da sua vida, ele passou sobre as águas do Rio São Francisco. Por isso, só o conhecem, por ali, como Léo do Peixe. Mas há outra razão para Léo gostar dos domingos. É que nesses dias, depois que monta a peixaria e ajuda a esposa a preparar a banca de roupas infantis, o pescador repete as palavras mágicas de sempre, que funcionam como uma espécie de senha para que as sete misteriosas caixas sejam finalmente abertas: — Agora, os livros! – grita, com vontade. Do interior dos caixotes, é tirado algo que, a bem da verdade, não combina muito com os hortifrutigranjeiros e outros artigos que 124 estarão em exposição para a freguesia, que nunca falha. São livros, de diferentes autores e gêneros, que, nas horas seguintes, serão ofertados aos transeuntes que queiram saber deles. Não é cobrado nada por isso e quem quiser levar emprestado poderá devolvê-lo no domingo seguinte, na própria feira. A cada semana uma centena de fiéis leitores comparecem à inusitada barraca atrás de livros. Muitos se habituaram a frequentar a feira só por causa deles, já que nesse dia, quando as pessoas têm mais tempo, a biblioteca pública não funciona. No Clube de Leitura de Pirapora, cidade que fica no Alto do Rio São Francisco, no interior de Minas Gerais, não há qualquer burocracia. Só que, na feira, em vez de legumes, verduras e frutas, o freguês enche a sacola de outro tipo alimento, que é o alimento da alma. Uns preferem ler no próprio local. Lobato, Machado, Eça, Coelho... Para alguns, nem importa quem são os autores dos títulos: vão até lá pelo simples prazer de ter um livro nas mãos. Léo teve a ideia pelo medo que tinha de, por passar muito tempo fora de casa em função das pescarias, ver os filhos se distanciarem dos livros. Deu certo. Além de primeiros usuários do Clube, eles passaram a ajudar o pai na pequena biblioteca comunitária. Os filhos dos outros feirantes logo aderiram e, em pouco tempo, já passavam de 400 os sócios do clube. Léo precisou recrutar ajudantes extras para dar conta da demanda. 125 A ideia se espalhou por outros cantos da cidade e Léo está, sempre, disponível para criar outros clubes de leitura aonde reclamarem sua presença. Quando alguém quer saber por que ele faz isso, Leonardo da Piedade Diniz Filho, o Léo do Peixe, um pescador de leitores, responde de pronto: — É porque quem não lê se torna um cidadão de segunda classe... É preciso ler livros para ser alguém na vida. 126 Uma biblioteca na roça costumada que sempre foi aos hábitos, tipicamente, urbanos da cidade grande, jamais ocorreu a Simone que a vida dela e da família estaria, em um futuro próximo, tão vinculada à terra e à tranquilidade do campo. Ou que algumas palavras, impressas num livreto, mudariam de forma tão radical sua vida. Simone cursou o magistério e iniciou sua vida profissional como professora na cidade de São Paulo. A bem da verdade, a palavra escrita sempre esteve, de alguma forma, presente no dia a dia de Simone. Nos anos em que atuou como professora, já via de perto as transformações que a leitura promove no cotidiano das pessoas. Mas foi só quando ela e o marido tomaram A 127 a decisão de trocar a metrópole pela pequena roça no interior paulista é que ela pôde sentir isso na própria pele. Simone e Wilson, o marido, se arriscaram, no início, a criar umas vacas; não deu certo. Na sequência, tiveram a ideia de plantar eucaliptos – também não era aquilo. No limite das ideias e das forças, cogitaram vender a propriedade de um único alqueire, que àquela altura já se consumia em dívidas. Porém, os compradores, simplesmente, não apareceram. Como recurso derradeiro para tentar salvar o único bem da família da falência quase certa, a professora resolveu buscar ajuda nos livros. Saiu em busca de literatura técnica sobre agricultura familiar e de alguma ideia que pudesse dar uma boa ocupação àquelas terras no meio do mato, na zona rural de Santa Rita D´Oeste. O casal se deteve numa publicação farta em textos e ilustrações que explicava como ganhar o sustento com uma criação comercial de peixes. No tanque construído nas terras do pequeno sítio, despejaram pacus e tilápias. Buscaram mais conhecimento nos livros, jornais e revistas e o pequeno negócio passou a ir de vento em popa. A escolha mudaria definitivamente a vida dos Vizenzi. A família passou a fornecer filés de peixe congelados e abriram novos tanques para aumentar os cardumes. Foi no meio de outra leitura que eles tiveram a ideia de transformar a propriedade, batizada de Chácara 128 Nossa Senhora Aparecida, em um modesto circuito de educação ambiental, com direito a palestras e passeios ecológicos. Simone agora quer levar os livros aos outros moradores de Aparecida do Bonito, o povoado onde ela e Wilson vivem com Matheus, o filho de treze anos, e um dos mais empolgados com a ideia. Abriu, para isso, uma biblioteca rural que já abastece de conhecimento os 90 moradores da comunidade. Os frequentadores também têm aulas sobre computação e aprendem a usar a internet, além de, naturalmente, poder levar livros emprestados para ler em casa. Pequenas atitudes como essa da família Vizenzi podem ter um poder incrível de transformação. 129 O semeador do Seridó ma vida de paixão, uma vontade incrível de vencer e... livros, muitos deles. A cena inicial se dá num vilarejo escondido no interior do Nordeste do País, onde viveu uma infância miserável e de futuro incerto. Com uma trama entrecortada por histórias de superação e glórias, como também pela improvável amizade com alguns dos mais importantes intelectuais do Brasil contemporâneo, esse roteiro ainda tem outros ingredientes para uma boa fita de cinema. O protagonista da trama viveu episódios épicos do século XX, como a Revolta dos Marinheiros. Percorreu lugares e situações salpicadas por aventuras até chegar à cidade grande. Adaptou-se, rapidamente, ao novo ambiente, estudou, criou uma empresa U 130 respeitada, mas sem abandonar, em um só momento, a cultura e os costumes da sua terra natal. A saga desse Zé, um brasileiro igualzinho a tantos outros que existem por aí, até que podia ser apenas mais uma boa história dos livros ou das telonas,tamanha a fartura e riqueza de seus ingredientes. Mas, não. Esta é a história de uma personagem de carne e osso, nascido e batizado de José, numa currutela chamada Currais Novos, no interior do Rio Grande do Norte. Foi lá que tudo começou e de onde ele saiu, ainda moço, para virar doutor na cidade grande. Zé começou a trabalhar, ainda criança, na roça. Primeiro, no cultivo de algodão; depois, como garimpeiro; e marinheiro, ocasião em que participou da famosa revolta. Cassado e expulso da Marinha, ele se mudou para São Paulo, onde se empregou como lavador de carros. Foi trabalhando em um estacionamento vizinho da PUC, a Pontifícia Universidade Católica, ativo centro da resistência política contra a ditadura militar, que ele conheceu e passou a se relacionar com intelectuais de esquerda, como o educador Paulo Freire. Os novos amigos, instigados pelo tirocínio e a simpatia do lavador de carros, passaram a indicar livros para ele ler. Zé acabou prestando vestibular na PUC e se meteu nos estudos. Para pagar a faculdade, começou a vender livros para os colegas. Como o negócio indo bem, animou-se a abrir uma livraria nas imediações da universidade. Naqueles tempos bicudos de censura e 131 perseguição, o ex-marinheiro, às escondidas, conseguia, para os estudantes, os livros proibidos pelos militares. Depois de algum tempo, viu que também dava conta de publicar livros como aqueles. O resultado não tardou a acontecer. Tempos depois, Seu José se tornaria um importante livreiro e editor. Além do amor pelos livros e pelo saber, sempre teve um jeito muito especial para lidar com as coisas. Numa ocasião em que ladrões assaltaram sua livraria, ele se dirigiu, serenamente, até a seção de livros infantis e encheu algumas sacolas, que entregou para os assaltantes. Que eles levassem para os filhos, ele explicou com bondade, pois, assim, eles talvez tivessem mais oportunidades na vida e, dessa forma, não caíssem no mundo do crime. Este é Seu José, hoje em dia mais conhecido como José Cortez Xavier, um aclamado ícone do universo das letras no Brasil. Agora, no entanto, o semeador de livros do Seridó quer passar uns tempos longe da livraria e da editora que tornaram seu sobrenome uma marca de sucesso e uma referência no mundo dos livros. Não que tenha desistido. É que ele quer aproveitar o tempo para compartilhar com outras pessoas a sua própria história para tentar convencê-las do quanto os livros ainda podem fazer por elas. Seu Cortez tem ido a escolas, presídios, associações de bairro e onde se dispuserem a ouvi-lo. Do alto de uma sabedoria construída à base de livros, ele diz que, não importa aonde se quer chegar, só se precisa de duas coisas: 132 — Um livro nas mãos, que é para servir de base para conquistar o conhecimento; e outro na bolsa, que é para inspirar os sonhos e ajudar a realizar os projetos de vida. Esse Zé sabe do que diz. 133 Operário em construção aul dos Reis, 49 anos, é operário. Estudou até o antigo colegial e, há tempos, trabalha como caldeireiro numa fábrica da cidade onde mora, no interior de São Paulo. Seu dia a dia é corrido e não sobra tempo para muita coisa fora dali. Acontece que Saul adora ler. Por sorte, foi trabalhar numa fábrica onde os donos, que também apreciam a leitura, resolveram montar uma pequena biblioteca para os funcionários. De uma hora para outra, Saul se descobriu um leitor e passou a ser um dos mais assíduos frequentadores do espaço. O operário lê cinco livros por mês. Compare: o que ele lê em um único mês, segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, os S 134 brasileiros levam, em geral, um ano inteiro, e, ainda assim, incluindo os livros escolares. Como será que esse trabalhador consegue fazer isso? Saul conta que sempre dá um jeito. É na hora do almoço, na hora do jantar, antes de dormir ou no transporte público. Ele sempre arruma um tempo, entre os diversos afazeres diários, para devorar mais algumas páginas. Quando ele encontra um livro que não consegue parar de ler, parece mesmo um tormento, ele diz. Seu preferido é um livro de poemas de Cecília Meirelles, As mais belas poesias. Em casa, Saul costuma compartilhar com o pai e os irmãos as histórias que aprende nos livros. No início, era o moço que precisava insistir com os parentes. Hoje em dia, a coisa se inverteu e os familiares chegam a protestar quando ele precisa, por alguma razão, mudar o que já entrou na rotina da casa. Os livros passaram a fazer parte da vida de Saul. Aonde ele vai sempre carrega um deles junto. O operário diz que os livros são seus grandes companheiros da vida inteira e, em geral, recorre a algum em especial para tentar compreendê-la melhor. Ao mesmo tempo em que a literatura vai ampliando seu universo cultural, ele diz, os livros, de forma geral, o têm ajudado a melhorar seu próprio modo de ser e de perceber as coisas. Por isso, Saul dos Reis está convencido de que os livros vêm fazendo dele uma pessoa melhor. Acabam até ajudando no seu relacionamento com os colegas de trabalho, familiares e as pessoas 135 que encontra no dia a dia. Quando está lendo, diz ele, não sobra espaço para mágoas, ressentimentos, tristezas ou inimizades. O leitor de Cecília Meireles anda, agora, atrás de desenvolver sua própria autonomia poética: — Ler me faz entender/O corpo é só um sopro/O espírito é eterno/Como a mãe Terra. 136 Mães que amam demais á, por todos os cantos do país, e, felizmente, cada vez mais, boas histórias de leitores que, graças aos livros, deram um outro rumo em suas vidas. Seja porque ampliaram seu universo cultural, seja porque na esteira das experiências alheias, colhidas no simples contato com autores e seus personagens, passaram a ler e a ver o mundo de outras formas, e, então, a agir com mais autonomia e criatividade. É um leitor, aqui, que se identifica com um personagem e descobre talentos e virtudes que ele próprio desconhecia. Ou outro, acolá, que, após ler um livro e o confrontar com sua própria história de vida, reestrutura, sem perceber, as suas dinâmicas pessoais e a forma como que compreende as coisas; e, em função disso, toma decisões H 137 e escolhe novos caminhos que farão que o seu destino já não seja o mesmo. Enfim, boas histórias de leitores há por toda parte e para todos os gostos. Dizem respeito a transformações de ordem pessoal ou profissional, que podem manifestar-se na forma de pequenas e íntimas modificações que levam a uma nova visão de mundo e a pequenas atitudes e formas de reagir nas diversas situações do cotidiano. Por trás de muitas histórias dessas personagens de carne e osso que seguem produzindo incríveis exemplos de transformação, há uma figura que nem sempre aparece: a mãe. Aliás, as mães, em certas regiões do País, chegam a influir até mais do que os professores no desenvolvimento do gosto de ler da meninada. Algumas sequer sabem ler e escrever e fazem isso por pura intuição. Outras fazem de tudo para que seus miúdos não tenham negado o direito de acesso à literatura – o que mestre Antônio Cândido defende que seja incluído entre os direitos inalienáveis do homem. Ao ler uma história para o filho na hora de dormir, presentear com um livro ou pôr a criança no colo enquanto conta uma história, essas mães vão estabelecendo uma poderosa associação entre leitura e uma amorosa sensação de bem-estar emocional. É algo que durará para sempre na memória afetiva e, certamente, contribui para se formar adultos que continuem a ler e a gostar de fazer isso. 138 Joana Jacinto, que trabalha como copeira e recepcionista, e vive no interior de Goiás, é esse exemplo de mãe. Ela sabia que não conseguiria oferecer o luxo e conforto que gostariade dar, se pudesse, aos filhos. Então, tratou de cuidar, desde que as crianças eram pequenas, para que os livros, ao menos, jamais faltassem em suas vidas. Sempre que podia, ela ia com a filharada a alguma livraria de Brasília, onde trabalha, para que escolhessem o livro que quisessem. Para que as crianças pudessem ter um livro nas mãos, a mãe chegava a pedir doações às pessoas. O resultado não custou a chegar. João Felipe, um dos filhos, aprendeu a ler aos cinco anos de idade, com a ajuda da irmã mais velha. Sempre que terminava de ler um livro, fazia questão de emprestar aos amigos, cujas famílias, assim como a sua, também tinham dificuldades para comprar livros. É assim mesmo que metade dos brasileiros que leem chega a um livro: pelo boca a boca e emprestando entre si. João cresceu com a certeza de que estaria nos livros a chave para sua realização pessoal e profissional. Estimulado pela mãe e apoiado por uma bolsa de estudo, além de muita garra pessoal, ele foi admitido na Universidade Católica de Taguatinga, no Distrito Federal, e já está no quinto semestre do curso de Relações Internacionais. Já fez estágios na Esplanada dos Ministérios e agora está atrás de aprimorar o inglês, aprendido na escola pública, para poder galgar outros degraus. 139 De passo em passo, João acredita que, de fato, está de nas páginas dos livros que lê a sua chance para abrir novos caminhos na vida e conquistar o admirável mundo novo que busca para si e para sua família. Não é tarefa simples, ele sabe. Mas João Felipe também sabe que, nesta era do conhecimento, não há sonho que não possa se tornar se real, principalmente, quando se é um bom leitor de livros. 140 Entre pneus e livros onde já se viu misturar livros, pneus e esta sujeiraiada toda?! – o homem se desconcertou. Do alto de seus 40 anos de ofício, Seu Joaquim, escolado na vida, deu seu veredito: — Isso não vai dar certo... Afinal, seria como tentar misturar água e óleo. Seu Joaquim Borracheiro, profissional tarimbado e com tino, reconhecido por todos, para atuar no ramo, só não contava com uma coisa: a teimosia do filho, tão cabeça dura quanto o pai. Com isso e coração mole como ele só, no fim, acabou fazendo vistas grossas para aquela maluquice toda. -A 141 E, quando foi se dar conta, semanas depois, era tarde demais: lá estava ela, com sua pobreza franciscana, porém com dignidade e altivez. Ainda assim, era como um peixe fora d’água, o homem notou, contrariado. Era uma estante só e até simplória, com setenta e tantos exemplares, Seu Joaquim pai calculou. Os livros estavam tão arrumadinhos que, por instantes, o pai se permitiu a alguns devaneios: “Não é que seu menino levava jeito pra coisa? Com mais estudo, bem que podia até trabalhar numa loja de livros ou mesmo numa biblioteca”. Seu Joaquim não estava enganado. Ao optar por auxiliar o pai no pequeno negócio da família, em Sabará, na região metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais, Marcos abriu mão de muitas coisas, como tentar um trabalho menos pesado ou uma profissão que desse mais dinheiro, ou mesmo maior projeção social. Só não abriu mão de uma coisa: levar, junto com ele, para seu local de trabalho, os livros que faziam parte de sua vida de criança e de adolescente. Assim ele fez. Nas horas de folga, entre um e outro pneu furado, Marcos aproveitava para ler. Mas o que ele desejava mesmo era tentar convencer a vizinhança sobre o verdadeiro tesouro que aqueles livros, agora tão perto deles, significavam. Algo dizia a ele que os moradores do entorno, principalmente as crianças e os jovens das escolas dos arredores, só teriam a ganhar com isso. 142 A isca para atrair as crianças que vivem em torno da Praça Paula de Souza Lima, no bairro de Caieira, foi a coleção de gibis de Marcos. A notícia correu rápido e, daí a pouco, os adolescentes também já faziam fila. Em seguida, apareceram os mais velhos e o acervo, que a essa altura já chegava a 600 exemplares, ficou pequeno demais. Mas não tardou para atingir a marca dos três mil livros. A “Borrachoteca”, mistura de borracharia com biblioteca comunitária, tornou-se um sucesso. De público e de crítica. No início, os fregueses se espantavam diante da novidade. Mas acabaram se acostumando e aprovando. Enquanto aguardavam o remendo do pneu furado, muitos aproveitavam para pôr a leitura em dia. Para esses, mergulhados na correria do dia a dia, aquele reencontro inesperado com os livros se constituía numa rara ocasião para retomar o bom e velho prazer esquecido da leitura, fosse pelos afazeres do dia a dia, pelo cansaço ou simplesmente por não ter, ao alcance das mãos, uma obra que despertasse o desejo de ler. Aos poucos, os livros também passaram a provocar pequenas modificações na rotina diária dos moradores das duas margens do Rio das Velhas, que atravessa o bairro Caieira. Hoje em dia, a meninada de lá fala com uma intimidade instigante sobre os poetas Thiago de Mello e Carlos Drummond de Andrade e de autores clássicos que, até então, não passavam de nomes de ruas ou de ilustres desconhecidos por aquelas paragens. 143 Um bom exemplo das transformações em curso, nesse pequeno torrão de Sabará, é o próprio Marcos. Sua história acabou indo parar nos jornais e ele ganhou uma bolsa para fazer faculdade. Escolheu, de cara, o curso de Letras, interessado que estava em saber mais sobre literatura e os escritores que se aninhavam em algumas prateleiras da sua borracharia-biblioteca. Embora não cogite abandonar a profissão e o negócio construído pelo pai, Marcos diz que pretende trabalhar, nas horas de folga, como professor. Ele está convencido de que tem uma missão nesta vida: levar mais gente para perto dos livros. A ONG criada por Marcos para ajudar nesta tarefa, o Instituto Cultural Aníbal Machado, já abriu outras bibliotecas na cidade – uma delas funciona no presídio local. Por que ele faz isso? Marcos Túlio Damascena, o borracheiro dos livros de Sabará, tem a resposta na ponta da língua: — Ler já é, por si só, uma fonte de prazer, mas a leitura também instrui. Sem ler, não se é ninguém nesta vida. 144 A encantadora de leitores ntônio levava uma vida de menino de cidade pequena do interior. Estudava na mesma escola pública que as demais crianças do lugar e ainda não tinha a menor ideia do que faria quando crescesse. Como era um menino esperto, talvez conseguisse emprego num escritório, ou talvez se tornasse operário em uma das fábricas ou usinas de açúcar da região. Eram esses os caminhos mais prováveis e naturais para a gente do lugar. Eram todos, naturalmente, empregos dignos e almejados pelos jovens da pequena Matão, no interior de São Paulo, fundada há cerca de meio século. Só que Antônio queria mais. Ele sonhava com algo diferente para ocupar os seus dias de gente grande. A 145 Tudo começou a mudar no segundo ano do Grupo Escolar. Foi justo no dia em que aquele professor estranho entrou na sala de aula com um sorriso enigmático no rosto. Um ano antes, Antônio já se encantara com a professorinha do Primário, que tinha o costume de cantarolar as palavras e frases da cartilha, no afã de fazer seus alunos decorar a lição. Dona Albina tinha um plano infalível para despertar neles o gosto pela leitura. Todo o final do ano letivo, a professorinha preparava a surpresa. Ela comprava, com dinheiro do próprio salário, um livro para cada um deles e presenteava os alunos no último dia de aula. Não tinha erro. Antônio também ganhara o seu e ficara fascinado. Desde então, o menino parecia outro. Já se interessava mais pela leitura e não saía da biblioteca. E escrevia compulsivamente. Mas seu destino com as letras seria mesmo selado no ano letivo seguinte, e já no primeiro dia de aula. Como o novoprofessor tinha a fama de ser um provocador nato, os alunos tremeram quando seu corpo passou agigantado pela porta da classe e ele, sem mais nem menos, sacou do bolso da calça o relógio. Mirou nos olhos assustados dos alunos temerosos diante do que viria pela frente e, num gesto tão largo quanto teatral, disparou, para o desespero final da plateia nervosa: — Agora eu vou esquecer o relógio... Quero que alguém venha aqui na frente e diga uma coisa qualquer: pode declamar um poema, contar uma história, seja lá o que for! 146 Antônio nem olhou de lado. Ao cabo de longos segundos, ele respirou fundo, encheu o peito de ar e se levantou. Tomou impulso e coragem e foi. Caminhou tímida e lentamente até a frente da classe e se plantou ao lado da mesa do professor. A poucos passos do quadro negro, colegas e o professor podiam contemplar seu rosto pálido e a respiração ofegante. O menino percorreu, em fração de segundos, sua memória afetiva e, de lá, voltou com a singela história da galinha dos ovos de ouro, a mesma contida no livro que ganhara de presente da professorinha do primeiro ano, que ele lera e relera tantas vezes. Diante da plateia assustada, Antônio venceu o medo inicial que tinha de se expor ao ridículo diante dos colegas e contou a historieta que guardara na memória. As palavras vinham magicamente a sua boca e, após segundos terrivelmente longos de silêncio geral, ele ouviu, finalmente, os aplausos dos colegas. Foi sua consagração. Antônio sorriu aliviado e, desde então, desembestou a falar em público. Nascia ali, na magia do instante, o futuro e eloquente professor. Depois de escarafunchar entre as narrativas literárias, Antônio se deixou cair de amores pela língua pátria. Aos poucos, faturava uns trocados dando aulas particulares para candidatos do curso de Admissão ao Ginásio. Hoje professor de sucesso de cursinhos preparatórios e apresentador no rádio e na televisão, Antônio Cassoni diz que os bons mestres são aqueles que têm a magia e jeito para formar leitores 147 que, mais tarde, vão gostar de ler pela vida toda. E com um prazer sem fim. 148 O pedreiro e os livros ascido em Aquidabã, no sertão de Sergipe, Evando cresceu numa das regiões mais pobres do Brasil, desprovida de recursos e de perspectivas de futuro diferente. Cedo, aprendeu aquilo que Euclides da Cunha, o grande escritor de Os Sertões, só cravaria, na idade madura, em sua obra prima: “que o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. E, ao contrário de tantas outras crianças nascidas por lá, que morrem antes de completar seu primeiro ano de vida, ele teimou. Evando não só sobreviveu e seguiu adiante, como enfiou na cabeça que faria o que fosse necessário para que as coisas ficassem diferentes. Foi com essa ideia na cabeça que, um dia e algumas peças de roupa debaixo do braço, tomou uma condução na direção do Sul, N 149 sobre o qual se contavam maravilhas na sua terra. Deixou para trás um rastro de dramas, misérias e fome, um enredo comum e triste do sertão. Evando desembarcou no Rio de Janeiro com uma ideia fixa: buscar, a qualquer modo, uma vida melhor para ele e os seus. Só que nada do que ele tentava dava certo, não encontrou a prosperidade que imaginava abundar nesse canto do país. Demorou, mas o homem percebeu: à beira de completar trinta anos de idade, não sabia ler e escrever. Para Evando, era essa a explicação do que estava atravancando a sua vida por mais que se esforçasse e trabalhasse duro. Certo dia, um colega do canteiro de obras de urbanização da Favela da Maré, onde trabalhava como servente, convenceu o sergipano a estudar. Ele jamais conseguiria mudar de vida, alertou o amigo, se não fosse para a escola a fim de se alfabetizar e aprender mais coisas. Ter que frequentar os bancos escolares àquela altura da vida, dizia para si mesmo, era algo custoso demais para cabras como ele, mais talhados para a vida bruta e pesada. Mas nem por isso Evando desistiu. Matriculou-se na alfabetização de jovens e adultos e foi, mais uma vez, à luta. Foi na escola que ouviu pela primeira vez alguém dizer o quanto os livros podiam ser preciosos na vida de pessoas como ele, e que podiam tanto ajudar a melhorar seu vocabulário como o próprio jeito de encarar a vida e, assim, ajudá-lo a se tornar uma pessoa 150 melhor. Evando não deu muita bola, mas aquilo ficaria martelando em sua cabeça por algum tempo. O destino resolveu, então, ser mais explícito e colocou, literalmente, no meio do seu caminho algo que mudaria a sua vida para sempre. Afinal, se Maomé não foi à montanha, como diz o dito popular, a montanha acabou indo até Maomé. Tudo se deu no dia em que o rapaz andava, distraído, pela cidade e deu de topo com uma lata de lixo. Ela estava repleta de... livros. Evando, que ouvira na escola sobre o poder que os livros tinham para operar pequenos milagres no cotidiano das pessoas, olhou, entre surpreso e estarrecido, para os exemplares que, com o impacto do tropeção, haviam se espalhado pela calçada. O que fazer com aqueles livros cujo destino seria, certamente, ir parar em algum lixão? Pelo sim, pelo não, Evando apanhou a pequena coleção de livros que estavam sendo descartados pelo seu dono. Um deles era de autoria de um conterrâneo seu, Tobias Barreto, autor de clássicos fundamentais para a literatura brasileira. Evando ficou orgulhoso quando soube de que se tratava de um sergipano famoso. Foi atrás de outros livros dele e de outros autores, e parecia mesmo obcecado pelas letras, como se, a partir daquela data, simplesmente, não conseguisse respirar sem literatura. Na verdade, não acontecera nada capaz de provocar diferenças mais óbvias na vida do rapaz. Mas, por onde quer que olhasse, parecia 151 que a sua vida estava um pouco melhor. A primeira coisa que notou é que sabia muitas palavras novas. E, com o repertório ampliado, sentia uma sensação de como se as ideias formigassem em seu cérebro. Os seus interlocutores, logo, percebiam que estavam diante de um sujeito que sabia de muitas coisas e sempre tinha algo interessante para puxar uma boa conversa. Em vez dos bicos esporádicos com os quais sobrevivia, Evando passou a ter um emprego fixo e, logo depois, foi promovido a pedreiro. Aquilo já era uma bela ascensão em sua vida profissional. Sua fama de cabra sabido corria de boca em boca e só fazia crescer a freguesia interessada em sua mão de obra. O homem, agora, tinha mais facilidade para compreender as demandas da clientela e, como articulava bem as próprias ideias, também se comunicava melhor. Ficara mais criativo para enfrentar as dificuldades do dia a dia. O salário melhorou e Evando passou a fazer novos planos para o futuro. Como também tinha ficado mais falante e desinibido, arrumou uma namorada e, daí a pouco, constituiu família. Pouco a pouco, Evando ia se aprumando na vida e cimentando, com suas mãos e a pá de oficial pedreiro, o seu próprio destino. Voltou aos livros e, lá, encontrou respostas para suas dúvidas existenciais e aos questionamentos de ordem espiritual que há 152 tempos se fazia. Enfim, por qualquer ângulo que mirasse, Evando notava transformações na sua vida pessoal e profissional. Hoje em dia, Evando dos Santos, pedreiro dos bons, comanda uma biblioteca comunitária no quintal de sua casa, na Vila da Penha, subúrbio do Rio, que ele iniciou com aqueles primeiros cinco livros encontrados no lixo. A obra foi projetada pelo arquiteto Oscar Niemayer, que se encantou com a história admirável do construtor de casas e, sobretudo, de leitores. A qualquer hora do dia ou da noite, Evando está lá para atender à porta e emprestar livros de graça para a vizinhança. Livros que ele juntou a partir de doações e já fez chegar a vários estados do Nordeste, acomeçar pelo seu Sergipe. Abnegado e incansável quando a tarefa é conquistar novos leitores, Evando nunca sai de casa sem dois ou três exemplares debaixo do braço. Não importa aonde vai, ele trata logo de puxar conversa e direcioná-la para um dos temas tratados em um dos livros que carrega. Se o interlocutor se mostra interessado, ele entrega o exemplar para o desconhecido – quem sabe um novo leitor em potencial que a vida colocou em seu caminho? Não sem antes repetir a mesma ladainha de sempre: — Se gostar passe à frente a um amigo; e se não gostar, dê para um inimigo. Evando dos Santos, o pedreiro dos livros, tem feito a sua parte. Sabe que sua missão é ajudar a semear livros à mão cheia para outros 153 Evandos como ele, que se amontoam pelo país afora. Está convencido de que – da mesma forma que aconteceu com ele, supostamente por acaso – pode estar dentro de um desses livros alguma informação, dica ou, então, só uma boa história, mas que certamente vai mexer com a emoção ou, quem sabe, a vida de quem o ler. 154 João que virou juiz oão nasceu numa família pobre. O pai e a mãe não sabiam ler e escrever, davam duro, de sol a sol, para não deixar faltar a comida na mesa. A família vivia num casebre simples, bem parecido com as favelas de hoje em dia, nem escritura do imóvel eles possuíam. Ao completar sete anos, idade de ir para a escola, João foi trabalhar na roça com os pais. O menino se virava como podia: foi vendedor de refresco, catou papelão nas ruas, oferecia banana nas casas da redondeza. Quando cresceu, foi trabalhar como feirante. Até que, um dia, os livros entraram na vida dele. Desde então, João passou a ler e a escrever sem parar. Aos desesseis anos, publicou o seu primeiro livro. Antes, sempre estudando em J 155 escola pública, João descobriria os clássicos. Leu Dostoievski ainda jovem e se abriu para que autores dos mais variados gêneros fossem, um a um, entrando em sua vida. Quando foi se dar conta, já havia entrado para a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo de São Francisco, a mais celebrada do país. Cresceu, virou moço e não parou de ler. E tampouco de evoluir, como pessoa ou na carreira profissional que resolveu abraçar. Hoje em dia João é juiz de Direito. Dos bons. Publicou outros livros com os poemas que vem escrevendo pela vida afora. Também é autor de livros jurídicos, que é sua especialidade. Embora os compromissos e as tarefas da vida profissional e social não parem de se avolumar, ele continua arrumando um tempo para ler. Dizem que, por onde ele passa, costuma fazer pequenas revoluções. Nas varas judiciais onde atuou em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, por exemplo, João – ou melhor, Doutor João Gandini, como passou a ser conhecido e ganhou a admiração de ricos e pobres – tomou inúmeras medidas que vêm ajudando a Justiça paulista a operar melhor. Um de seus projetos de moradia para a população de baixa renda ganhou prêmios e notoriedade nacional. Poeta e juiz, João Gandini é um caso singular do extraordinário poder de transformação dos livros. 156 Histórias que acolhem os corredores do Hospital das Clínicas, na Universidade de São Paulo, a cena já não causa estranheza. De uma das longas alas e de paredes claras, em meio a enfermeiros, médicos e familiares de pacientes internados que vão de um lugar a outro, a trupe surge do nada, como num passe de mágica. Em questão de segundos, entra, sem avisar, em um dos quartos do pavilhão e assume, dali em diante, o comando do espaço. Eles andam em bando e, por outras vezes, sozinhos. A única regra fixa nesse ramo – no qual ninguém recebe dinheiro algum e, ainda por cima, precisa ralar e suar muito a camisa, ou o jaleco, para se estabelecer com relativo sucesso – é que não há lugar para a tristeza e o desânimo. Ao contrário, o insumo básico para o trabalho de N 157 contar histórias a doentes internados em hospitais é, basicamente, alegria e disposição. E, naturalmente, livros e boas histórias. Na manhã de hoje, por exemplo, uma mulher entrou de supetão em um dos quartos da ala infantil e, sem cerimônia, sacou da bolsa um livro de capa colorida para ler aos pequenos pacientes. Os dias de ouvir histórias são ocasiões especiais para eles, crianças, adolescentes e jovens que podem permanecer ali, enquanto recebem o tratamento, durante semanas ou meses. Para os mais novos, singelos contos de fadas são, praticamente, obrigatórios no cardápio de histórias dos contadores. Entre os mais velhos, os livros de mistério e as eletrizantes aventuras, como as do bruxinho Harry Potter, são sucesso garantido. Por vezes, o que dá certo mesmo são as histórias inventadas na hora, na base do improviso e da criatividade do contador, que precisa ter a sensibilidade para perceber o que cai bem em cada situação. O efeito é garantido. Além do interesse que, em geral, as leituras despertam nos pacientes-leitores, sempre algum deles se anima a pegar um livro na pequena biblioteca do hospital para continuar a ler mais tarde. Muitos ficam com o livro só para que os acompanhantes, ou visitantes de logo mais, também leiam para eles. Os livros de dobraduras, com as brincadeiras que eles estimulam, são concorridíssimos. Nessas ocasiões, o ambiente hospitalar frio e cinzento, de uma hora para outra, transforma-se. Nos quartos maiores, a chegada da trupe 158 de contadores de histórias dá ensejo a uma animada roda de leitura, da qual nem os acompanhantes escapam. Todo mundo entra na dança: parentes, funcionários e quem mais estiver passando na hora por ali. Quando a história chega ao fim e tudo se acaba, os pacientes já querem saber quando será a próxima sessão. A história, enfim, não pode parar. *** — Ler é contagiante – pontifica Claudinéia Kamei, a assistente social que levou a ideia dos livros para auxiliar nos tratamentos da ala infantil do HC, ou, ao menos, ajudar aqueles jovens paciente a devolver alguma esperança. Entre alunos da universidade e voluntários de diferentes profissões, cerca de vinte homens e mulheres atuam como mediadores de leitura do Projeto Biblioteca Viva em Hospitais, que teve início em 2002 e não parou mais. Só naquela unidade do Hospital das Clínicas, há perto de mil livros disponíveis. Cada leitor em potencial recebe, ali, um tratamento especial, seja um bebê ou um jovem à beira de entrar na idade adulta. Um sorriso, lágrimas ou qualquer emoção manifestada são encarados como um componente importante para a cura. No mínimo, a prática vem ajudando a humanizar o ambiente hospitalar, algo fundamental quando se pensa que vários daqueles pacientes terão que passar longas temporadas por lá e, em alguns casos extremos, lá, passam sua temporada final nesta vida. 159 Funcionários antigos do hospital, habituados a conviver com dramas de toda natureza, emocionam-se ao ver a reação dos pacientes diante de um livro. Esta é a magia dos livros. Esta é a magia das boas histórias. 160 O tapete mágico da Tia Aninha m Cruz das Posses, pequeno distrito rural rodeado por canaviais, no caminho entre Sertãozinho e Jardinópolis, no interior de São Paulo, existia um pequeno local para abrigar os parcos livros que havia por lá. Era um local acanhado mesmo, já que se contavam nos dedos os que se interessavam por eles. Como a maior parte da população do povoado é constituída por boias-frias sem nenhuma habilidade com a leitura, a modesta biblioteca vivia literalmente às moscas. Nos meses da entressafra da cana, quando parte dos moradores retorna para suas casas – no Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais, já na divisa com a Bahia; e alguns para o Nordeste –, o movimento das ruas do E 161 povoadofica ainda menor. Numa ou noutra ocasião, poucos eram os que davam alguma bola para os livros. Mas isso já faz algum tempo. Essa história começou a mudar com a chegada ao povoado de uma professorinha espevitada e irrequieta. Aos poucos, foram caindo por terra, um a um, os muitos mitos que reinam em torno da questão da leitura, que muitas vezes involuntariamente acabamos repetindo. Um deles é o que aposta que pessoas comuns, que pegam no batente mais pesado para sobreviver, não têm os livros como prioridade em suas vidas. E, portanto, não incluem a leitura entre as coisas que mereçam ser tratadas como importantes em suas vidas. Ana Lúcia, a professora escalada para a difícil missão de dirigir a, então, minúscula e modesta biblioteca do povoado; logo, constataria que as coisas não são e nem precisam ser bem assim. Se conseguisse ao menos aproximar aqueles moradores dos livros existentes, ela pensou, muitos deles, provavelmente, poderiam ser atraídos pela magia das histórias. No trajeto diário do ônibus entre a cidade e o distrito de sete mil almas, a cabeça da professora fervilhava de ideias. Ela estava convencida de que deixar os livros presos às estantes, à espera de possíveis leitores, não daria muito certo. A cada semana, aparecia com alguma ideia nova atrair os candidatos a leitor. Eram coisas simples; certamente, já experimentadas antes em outros lugares. Só 162 que ela, obstinada que é, estava decidida a fazer todas as tentativas possíveis. A roda de leitura que ela criou foi um sucesso. Enquanto interpretava os textos, Ana Lúcia estimulava os novos leitores a falar sobre o livro e seus personagens. Virava uma terapia em grupo e todo mundo sempre tinha algo a dizer. No início, estranharam um pouco, mas, a cada dia, aderiam a cada uma das invenciones da professora-bibliotecária, também uma exímia contadora de histórias. Quando, por exemplo, foi ler Quase Memória, de Carlos Heitor Cony, para seu clube de leitura de idosos, Ana Lúcia se vestiu como uma dama das antigas. Alguns deles podem não saber ler, e vão lá pela convivência e a magia do ambiente, mas sabem, perfeitamente, ver e ouvir. Por isso, voltam dessas sessões para suas casas com a gostosa sensação de que livros são divertidos e interessantes. E que, neles, há sempre algo para se aprender. Não por outra razão, fazem questão de levar os netos, a quem mostram, com orgulho, suas carteirinhas de sócio da biblioteca. Outro espaço altamente disputado é o carpete famoso que Ana estende no chão para as crianças ouvirem histórias e folhearem os livros com conforto. O local está sempre apinhado de leitores miúdos, que, certamente, no futuro, associarão sua ideia de leitura a uma agradável sensação de afeto. 163 À beira de completar seu vigésimo aniversário, a Biblioteca Pública de Cruz das Posses passou a ter presença tão marcante na vida local que, hoje em dia, qualquer um que chegar lá e perguntar sobre ela ao primeiro transeunte que encontrar na rua, ainda que este não seja seu usuário, com certeza, ouvirá algum comentário positivo. Este é um dos principais segredos para uma biblioteca como essa, num distrito afastado da cidade-sede, ter longevidade: fazer com que os moradores desenvolvam a percepção do quão importante ela é para a vida do lugar. 164 Sobre carnes e livros enino pobre nascido na Bahia de todos os santos, Luiz começou, muito cedo, a dar duro para ganhar a vida. Aos sete anos, já trabalhava como engraxate; depois, foi lavador de carros, feirante, vendedor de picolés e servente de pedreiro. Precisava ajudar nas despesas da casa e, assim, tempo de sobra para ir à escola era, como diziam os familiares, um luxo do qual, naqueles tempos de tamanha dureza, ele não dispunha. O primeiro emprego estável de Luiz foi num açougue em Brasília, na da Asa Norte da cidade, para onde se mudou ainda pequeno. Junto com o novo emprego de ajudante do açougue, o menino obteve sinal verde do dono para morar num quartinho dos fundos. M 165 Sem ter o que fazer à noite, após o expediente, Luiz tratava de arrumar ocupação para esse seu tempo livre. Já estava com dezesseis anos quando conseguiu, finalmente, ir para a escola. Nos livros, ele encontraria não só uma distração e companhia de todas as horas, como, principalmente, um rumo diferente e absolutamente inesperado para seu destino, que até então era só dificuldade e muita labuta. No começo, foi tudo muito difícil. Luiz, simplesmente, não conseguia compreender o significado das palavras e o próprio sentido dos textos maiores e com alguma complexidade. Decidiu que começaria com os gibis, com seus textos reduzidos, ideias mais simples e diretas e, ainda por cima, fartos em ilustrações. Adorou a experiência. Aos poucos, resolveu se arriscar mais. Mas começou pelo caminho menos fácil. O primeiro livro que caiu em suas mãos foi um desastre: era uma obra sobre Filosofia, com muitas páginas, e Luiz não entendeu bulhufas. Mas estava tão disposto a virar esta página de sua história que, disciplinadamente, foi até o fim. Logo se veria diante de novos, porém fascinantes, desafios. Encarou cada um deles. Jamais imaginara que existiam tantas palavras novas assim. As ideias que elas traziam embutidas eram igualmente complexas e, por vezes, difíceis de acompanhar. Pareciam mesmo, simplesmente, inalcançáveis para pessoas que, como ele, foram muito tarde para a escola. 166 Mas, como chegara tão perto, Luiz não deixou se abater e pensava que já não dava mais para retroceder. Buscava, então, com otimismo, convencer-se que o próximo livro talvez não fosse tão difícil. E os próximos livros vieram, uns após outros. Uns eram, de fato, mais fáceis; outros, porém, nem tanto. Aos poucos, o ajudante de açougueiro ia ampliando seu universo cultural. A cada livro que lia, algumas coisas pareciam ficar mais claras e compreensíveis. Com o tempo, as dificuldades foram diminuindo e, pouco depois, o rapaz estava simplesmente irreconhecível. Sua vida definitivamente estava mudando. Quinze anos mais tarde, quando Luiz, já estudado, propôs ao patrão comprar o negócio, as ideias formigavam na sua cabeça. Para o pequeno comércio prosperar, teria que inovar e se diferenciar dos outros açougues. Foi assim que, em meio a bifes, linguiças e frangos, surgiu a história de emprestar livros aos fregueses. No início, uma única estante foi o suficiente para abrigar os livros, que não passavam de dez, que eram todo seu acervo pessoal. Quando a Vigilância Sanitária do Distrito Federal foi se dar conta, a Biblioteca do Açougue T-Bone, a essa altura um animado e ativo centro cultural no Plano Piloto de Brasília, já contabilizava mais de dez mil exemplares. Só que a clientela aprovava. Ao entrar no recinto, a freguesia se divertia com a provocação literária: 167 — A madame vai levar meio quilo de Saramago ou uns bifes à Machado de Assis? – tascava Luiz, sempre com humor. A fama de “açougueiro dos livros” se espalhou rapidamente e ajudou o negócio prosperar, tanto que as vendas subiram para mais de dez toneladas de carne a cada mês. E, a cada novo livro que lia, Luiz aparecia sempre com alguma nova ideia, que buscava, logo, colocar em prática. O boca a boca correu solto. Escritores importantes como Ziraldo e Frei Betto fizeram questão de ir ao açougue, que também recebeu muitos artistas famosos. Os saraus do açougue cultural chegam a reunir dez mil pessoas numa só noite. Depois do açougue-biblioteca, Luiz já inventou a rede de bibliotecas populares nas paradas de ônibus de Brasília. Espalhou estantes nos pontos onde não há ninguém para controlar quem pega ou devolve um livro. O leitor pode escolher e ler à vontade, enquanto aguarda a condução, e pode, também, levar o livro para continuar lendo durante o trajeto para devolver quandobem entender. Leitor confesso de Sartre, Platão, Tolstoi e Shakespeare, Luiz diz que seu caso pessoal é uma rica demonstração do quanto os livros podem transformar a vida de uma pessoa que, segundo ele próprio, não tinha nenhuma chance de dar certo na vida. É por isso que Luiz Amorim, açougueiro de profissão e agente de leitura por vocação, está convencido que seria um grande egoísmo de sua parte deixar de cooperar para outras pessoas possam também 168 descobrir esse poder dos livros. É por isso também que ele se tornou uma espécie de pregador incansável entre aqueles que ainda não descobriram a boa nova: — A carne – ele apregoa – é um alimento para o corpo. Já os livros são o alimento para o espírito. 169 Bibliotecárias não sabem disfarçar ibliotecárias têm um jeito todo próprio de enxergar as coisas. Talvez venha daí essa capacidade extraordinária de lidar e processar tamanha quantidade de informação e conhecimento, processar tudo isso para, só então, devolver tudo devidamente organizado e sistematizado, para que, então, nós, mortais leitores, possamos saborear – da forma que melhor nos aprouver. Por isso, elas nos fazem tanto falta, e precisamos tanto delas. Só que, de tempos para cá, ouve-se mais e mais falar de outra, e tão ou ainda mais nobre, missão para nossas bibliotecárias: ser uma espécie de ponte entre os leitores e os livros – em outras palavras, mediadoras da leitura. Gosto disso. A verdade é que não é de hoje B 170 que muitas delas já fazem isso, ainda que não esteja escrito em nenhum alfarrábio ou mesmo que certas faculdades, simplesmente, esqueçam-se disso. Não se pretende, evidentemente, aumentar, ainda mais, a sua carga de trabalho ou ampliar responsabilidades legais e administrativas nas repartições em que atuam. Mas tão somente incorporar uma nova visão (que nem é tão nova assim) e atender a uma justa demanda da sociedade. Bibliotecárias de vanguarda – antigas e novas – perceberam isso há mais tempo e, por isso, desenvolvem trabalhos belíssimos, de encher os olhos de quem vai conhecê-los, como eu tenho ido. Portanto, mais do que guardar, catalogar e organizar nossos acervos – algo, por sinal, imprescindível –, a missão das bibliotecárias do terceiro milênio é, cada vez mais, servir, de fato, como ponte entre os livros e os leitores. Está em suas mãos essa notável tarefa de mediar e aproximar as partes, e, assim, patrocinar, este enlace. — Um educador! É isso que o bibliotecário é. A definição é de uma das maiores delas, Dona Carminda Nogueira de Castro Ferreira que, já à beira de completar noventa anos, saía para fazer palestras e distribuir orientações aos mais jovens sobre as novidades tecnológicas e outras modernidades da profissão. Sem deixar de ir, é claro, ao cerne da questão: a função social do bibliotecário de formar leitores. 171 — Mesmo porque, em muitos lugares, o único profissional atuando que existe é o bibliotecário e, nesse caso, não resta dúvida sobre qual é sua missão mais nobre – ela repetia, incansavelmente. Dona Carminda é uma espécie de símbolo para profissionais da área. E com razão. De seus onze filhos, que lhe deram trinta e três netos e treze bisnetos, nada menos do que nove têm o diploma de bibliotecário na parede. Como mestre para os novatos ou no comando de entidades da área, ela ajudou a trazer um pouco mais de luz e um melhor norte para o exercício da profissão, tão bonita quanto essencial para a sociedade. Formada em Letras Românicas pela Universidade de Coimbra, Dona Carminda trocou, com o marido, Portugal pelo Brasil na primeira metade do século XX. Era uma mulher à frente de seu tempo: entrou para a faculdade quando isso era coisa só de homem e fincou o pé por lá mesmo quando nasceram os filhos, uma afronta para os costumes da época. Mas ela ainda teria uma boa desculpa para voltar à faculdade quando já era mãe de filhos moços no Brasil. Ela aproveitou que o filho primogênito, reprovado no vestibular de Engenharia, decidira cursar Biblioteconomia e ingressou também na faculdade, sob o pretexto de “dar uma força” ao rapaz. Até o fim da sua vida, jamais sairia de dentro de uma biblioteca. 172 Ao longo da vida, fez muitos bibliotecários repensarem a profissão, sacudida, algumas vezes, pela chegada das novas tecnologias. Devota de Nossa Senhora de Fátima, costumava sentenciar: — A invenção do computador é uma grande benção! Tenho visto, por aí afora, uma boa geração de bibliotecárias, igualmente vocacionadas, que se veem, justamente, nesse papel de agente de promoção da leitura. Por mais que enfrentem adversidades, seguem em frente. E fazem isso por uma simples razão: creem, verdadeiramente, que podem ajudar as pessoas se conseguirem que elas leiam mais. Essa sinceridade de propósito está em seus olhares. E por onde andam essas bibliotecárias-missionárias? Elas estão por toda parte, em bibliotecas nas grandes ou pequenas cidades, em escolas ou bibliotecas comunitárias. Como fazer para descobri-las? A resposta é simples. Basta que se olhe nos olhos de qualquer uma delas, ao flagrá-la no instante em que ela estiver exercendo sua arte maior de encantar o leitor, levando-o, de forma firme, e doce, a adentrar, aos poucos, com receio, ou logo de supetão, no universo mágico da leitura. A resposta está, provavelmente, nesse olhar. Porque as bibliotecárias, essas bibliotecárias, não sabem disfarçar. 173 Epílogo Essas histórias de gente que lê eu tenho colhido, país afora, ao longo da minha militância na causa do livro e da leitura. Muitas delas eu vi com meus próprios olhos ou mesmo conheci – ou ainda conheço – suas personagens. Em alguns casos, são histórias que extrai do Blog do Galeno (www.blogdogaleno.com.br), no qual publicou, desde 2007, historietas de pessoas que tiveram suas vidas transformadas graças aos livros e à leitura. Entrevistei várias dessas pessoas ou ouvi, atentamente, seus relatos, durante minhas andanças pelo país, para dar palestras, fazer consultorias, me reunir com lideranças locais ou me encontrar – em feiras de livros, festivais de literatura, entrevistas na imprensa ou visitas a escolas – com o povo do livro e da leitura. http://www.blogdogaleno.com.br/ 174 Algumas delas são reproduções de notícias publicadas em jornais e revistas, e mesmo da televisão, sempre com as devidas citações das fontes originais. 175 Se você gostou do livro que acabou de ler, mande sua história de leitor, ou a de alguém que você conhece, para o Blog do Galeno (www.blogdogaleno.com.br) ou para meu e-mail pessoal (ga@galenoamorim.com.br). Eu e meus leitores vamos adorar! http://www.blogdogaleno.com.br/ 176 Preparação de originais: Pedro Amorim Capa: Wagner Luiz dos Santos Diagramação: Luiz Magalini Revisão: Pedro Amorim e Brás Henrique Produção: Revolução eBook 2017 ISBN Digital: 9788582454213 Fundação Observatório do Livro e da Leitura DIRETORIA EXECUTIVA Presidente – Galeno Amorim Diretora Tesoureira – Luciana Paschoalin Diretora Secretária – Francisca Paris CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO Presidente – Maria Antonieta Cunha Secretário – Aníbal Bragança Menalton Braff CONSELHO FISCAL Marcus Vinicius Alves Tuchaua Pereira Rodrigues Luiz Fernando Zugliani Suplentes Neide Aparecida da Silva Gabriella Ferraz Leboutte Claudia Camata 177 www.observatoriodolivro.org.br E-mail fundacao@observatoriodolivro.org.br http://www.observatoriodolivro.org.b/ mailto:fundacao@observatoriodolivro.org.br 178 Quem é o autor Galeno Amorim, autor de 17 livros, é jornalista. Foi presidente da Biblioteca Nacional e do Centro Regional de Fomento ao Livro na América Latina e no Caribe (Cerlalc/Unesco) e oresponsável pela criação do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), do Ministério da Cultura e MEC. É fundador do Blog do Galeno e já deu mais de 800 palestras no Brasil e no exterior. Entre ensaios e literatura infanto-juvenil, seu livro mais conhecido é O Menino Que Sonhava de Olhos Abertos, cujas tiragens somam mais de 150.000 exemplares. Saiba mais sobre o Galeno. http://www.blogdogaleno.com.br/ http://www.blogdogaleno.com.br/sobre-o-galeno