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O Museu e o Problema do Conhecimento

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O museu e o problema do conhecimento
Ulpiano Bezerra de Meneses
Eu começaria – e não é somente uma obrigação de etiqueta – por felicitar vivamente a Casa de Rui Barbosa,
em particular minha colega e amiga Magaly Cabral, não só pelos setenta anos da instituição, setenta anos que
se justificam cada vez mais, mas também pela continuidade que está sendo dada a esta série de encontros e
seminários. E me sinto feliz por ter sido convidado: é um prazer, uma obrigação prazerosa colaborar com um
empreendimento que me parece tão sério, ainda mais quando trata de um tema freqüentemente marginaliza-
do, minimizado entre nós, mas que merece a maior atenção.
Ainda antes de entrar no tema propriamente dito, devo explicitar que alterei um pouquinho o título da
sessão: passei de “A pesquisa no museu como produção de conhecimento original” para “O museu e o proble-
ma do conhecimento”. Em primeiro lugar, porque preferi falar de uma questão mais ampla, que é o conheci-
mento, dentro do qual se insere a pesquisa. Há várias nuances de conhecimento que não se encaixam especifi-
camente no domínio da pesquisa, mas falar de conhecimento já é se orientar para a pesquisa. Em segundo
lugar, falo de “problema” do conhecimento para indicar que não se trata de uma questão líquida e certa: há
conflitos entre perspectivas, pontos de vista e avaliações. E em terceiro lugar, devo dizer também que o que vou
apresentar aqui é antes uma amostragem de questões a serem retomadas, algumas das quais certamente o
serão no decorrer deste seminário, mais do que um panorama introdutório ao tema geral. Não tenho nenhuma
pretensão de apresentar um quadro que servisse de moldura à discussão dos problemas específicos. Meu
objetivo é sobretudo partilhar uma reflexão que leve a uma espécie de mapeamento de um território, tornando
possível percorrê-lo mais tarde.
AS MÚLTIPLAS FUNÇÕES DO MUSEU
A primeira questão a ser, senão debatida, pelo menos enunciada, é com relação ao lugar do conhecimento
no museu. Como é que o conhecimento se aloca no museu, onde é que ele se insere junto aos usos e funções do
museu? Não vou aqui discorrer sobre tais usos e funções, mas todos sabemos que os museus se caracterizam
por uma multiplicidade de usos e funções. Multiplicidade de usos e funções que lhe são atribuídos
programaticamente, mas também multiplicidade ainda maior pelas expectativas e práticas dos usuários.
A fruição estética, que diz respeito à percepção sensorial (aísthesis em grego quer dizer percepção), é uma
dessas funções e desses usos prioritários. Trata-se de algo de extrema importância, pois os sentidos são pontes
que permitem ao sujeito comunicar-se com o universo. O museu dispõe de condições eficazes para aprofundar
esse trânsito que pode existir entre o “eu” e o “mundo fora de mim”. A condição humana é uma condição
corporal, encarnada – sensorial. Ainda que busquemos a transcendência, é a partir de nosso horizonte corporal
que o fazemos. O metabolismo entre o natural e o sobrenatural, assim como a interioridade mais profunda, não
têm o poder de ignorar a dimensão estética da existência. Portanto, quando se fala em fruição estética, não se está
indicando um requinte, sofisticação talvez supérflua na vida humana, mas, ao contrário, está-se pressupondo
algo constitutivo do humano na plenitude da condição humana.
Entre as funções prioritárias estão igualmente o deleite afetivo, as relações de subjetividade que se estabe-
lecem entre os indivíduos e as coisas e que funcionam, por exemplo, como suportes da memória, marcas
identitárias, e agem para definir trajetos, para explicitar percursos, para reforçar referências, definir amarras –
principalmente de espaço e de tempo, já que somos seres balizados pelo espaço e pelo tempo.
Mas também se vai ao museu em busca de informação, isto é, para levantamento de atributos empíricos de
coisas, para apreensão literal de dados – que ainda não constituem conhecimento – e também para a educação,
para a formação, seja de natureza substantiva, seja metodológica.
O museu é ainda lugar e oportunidade de devaneio, de sonho, de evasão, do imaginário, que são funções
psíquicas extremamente importantes para prover equilíbrios, liberar tensões, assumir conflitos, desenvolver
capacidade crítica, reforçar e alimentar energias, projetar o futuro, e assim por diante.
É claro que existem outros usos indiferenciados e mais vagos, como aqueles que se inserem no quadro do
lazer, da diversão. Diversão, aliás, é uma palavra interessantíssima, porque significa desvio, variante: um
divertimento antes de mais nada é algo fora da rotina, atalho diverso do caminho rotineiro, e o museu se presta
muito bem a esta possibilidade de desvio da repetição que costuma enfraquecer a consciência. Além disso,
poderíamos elencar muitas outras práticas associadas ao museu, desde posturas místico-religiosas, até o
pragmatismo mais direto.
Este potencial tão aberto não significa que o museu se caracteriza por um relativismo de objetivos, exten-
síveis na escala dos interesses individuais. Seria, aliás, impossível gerir um organismo tão despersonalizado,
que serve um pouco para tudo – e, portanto, para pouca coisa. Tal indefinição, sintoma de ausência de conteú-
do específico, seria tão nociva quanto a camisa de força que priorize esta ou aquela função em detrimento das
demais, ao invés de articulá-las de forma solidária. Não cabe, neste momento, discutir a hierarquia dos obje-
tivos que o novo século nos propõe, mas tão-somente privilegiar o potencial multiforme do museu e sua
extraordinária multifuncionalidade. E chamar a atenção para os riscos da unifuncionalidade, do reducionismo
e do desperdício. Trata-se de riscos efetivos, não pura possibilidade.
Nas décadas de 70 e 80, por exemplo, como derivação de toda aquela fermentação cultural que se originou
na Europa (e principalmente na França, no “maio de 68”) e depois se espalhou pelo resto do mundo, chegando
até nós, expressaram-se duas vertentes no campo dos museus. Na década de 70, no Brasil, deu-se à educação
um papel que redimiria o museu de todas as suas culpas anteriores, como suporte ideológico das elites. Agora,
o museu seria instrumento essencial de transformação da sociedade, pela educação. Só que não se teve o
cuidado de perguntar, com profundidade e rigor, qual a especificidade da educação no museu. Seja como for,
tal como ocorrera no Estado Novo, também sob o regime militar a ação dos museus (inclusive sua visão
missionária da educação) não trouxe qualquer incômodo ou preocupação para as autoridades constituídas –
ao contrário do que ocorreria com a literatura, o cinema, o teatro, a música popular, o jornalismo –, prova de
que boas intenções não bastam.
A segunda vertente se inicia também na década de 70, mas se amplia na década seguinte. Agora, não se
tratava propriamente apenas de educação, mas de necessidades comunitárias, a começar pela formação ou
consolidação de uma identidade cultural. Do elitismo de tempos passados se vai direto para o populismo,
recuperando aquilo que até anteriormente ao golpe militar de 64 havia sido uma das linhas mais paternalistas
e de frutos duvidosos – por exemplo, na política estudantil, os projetos dos centros populares de cultura. Nos
anos 80, então, é o conceito de comunidade que vai estabelecer a referência fundamental para o museu. Mas se
tratava, de novo, de um conceito formulado na melhor das intenções, porém sem qualquer consistência social:
nunca se explicitaram, por exemplo, as relações dessas “comunidades” com as estruturas de uma sociedade de
classes cada vez mais segmentada e injusta. É nesse contexto que de certa forma se desperdiça a noção englobante
de território, formulada pelos ecomuseus, para perder-se em objetivos “comunitários” redentores, de gratifica-
ção imediata. Não que não tenham existido (e continuem a existir) experiências altamente positivas, mas as
propostas ideológicas passaram a girar um pouco em falso.
Independentementedessas duas vertentes tão reducionistas, na última década do século temos outra ma-
triz. Agora é o mercado e, associado a ele, às suas necessidades – às vezes de maneira explícita, outras de
maneira sutil e muitas vezes inconscientemente –, emerge outra unifuncionalidade sedutora, a comunicação,
com a qual se pretende aglutinar tudo aquilo de potencial que o museu tem. O sociólogo francês Pierre Bourdieu
utilizou uma expressão feliz para caracterizar o papel que a comunicação vem assumindo na indústria cultu-
ral: êxtase beatífico, por intermédio do qual o mercado se torna presente. Nessa década de 90, muitos exem-
plos nos museus daqui e de fora revelam como a problemática da comunicação tem sido colocada de forma
acrítica e superficial: e, por isso mesmo, servindo inocentemente ao mercado, malgrado (de novo) as boas
intenções. Talvez um caso que mereça lembrança é o de Julian Spalding, diretor do Museu de Glasgow, na
Escócia, até ser demitido por ter dissolvido todos os usos e funções da instituição no caldo cáustico da comu-
nicação. Dizia ele que até então os museus tinham sido apenas depósitos de coisas; impunha-se, agora, pôr o
público no centro das atenções, “não mais as coisas”, e, portanto, o “negócio” doravante seria “provocar
interesse”. Mas o que significava “provocar interesse”? Significava transformar o museu num centro de lazer:
a era do show business começava. Cinco anos depois, toda a estrutura museológica que Glasgow levara longo
tempo montando e testando desapareceu. O museu perdeu totalmente sua especificidade (inclusive enquanto
espaço de lazer), embora tivesse despertado, por um momento, o “interesse” da população, que começou a
decrescer depois, porque não havia mais diferença entre museu e qualquer outro equipamento de diversão; ao
contrário, a indústria cultural ou a indústria de espetáculos se mostravam muito mais definidas e eficazes. É
nessa mesma linha de showbusiness e já agora sem inocência, servindo à lógica do mercado, que vão surgir as
chamadas blockbusters exhibitions, as exposições arrasa-quarteirões, que, naturalmente, procuram legitimar-
se com a aura da “cultura”. Mas é bom não esquecer que, ao se falar em mercado cultural, está-se falando,
antes de mais nada, em mercado. O mercado cultural é apenas especialização do mercado. Seria oportuno
esclarecer que não vejo incompatibilidade entre cultura e economia, valores culturais e valores econômicos. A
cultura é uma dimensão que pode qualificar qualquer lugar, momento ou instância da vida humana. A zona de
conflito ocorre é entre cultura e mercado, entre as necessidades culturais e a razão de mercado.
Não podendo fazer, aqui, um balanço crítico mais aprofundado dessas tendências, limito-me a apontar o
traço que me interessa por ora: o mal de tais posturas não está nos objetivos introduzidos, mas na postulação
desses objetivos como unitários e dominantes, fora dos quais não se teria salvação para os erros que o museu
devia purgar por seu passado de compromissos espúrios. O que acontece é que se criaram outros, e às vezes até
mais graves, desprezando a pluralidade de funções que o museu teria de preencher.
 Reitero, mais uma vez, que não se trata tão-somente de multiplicar funções. A multiplicação em si não é
um bem. O câncer, que é um grande mal, consiste em multiplicação de células fora de controle. Por isso seria
bom introduzir uma idéia-chave em nossa reflexão: a da solidariedade que deve articular organicamente a
multiplicidade de funções. A integração solidária pressupõe que as variadas possibilidades de atuação devem
fertilizar-se umas às outras. Acredito que a solidariedade, no museu, pode ser referenciada por um tripé de
funções: as de natureza científico-documentais, as educacionais e as culturais. As primeiras têm alvos cognitivos,
as segundas respondem pela formação e equipamento intelectual e afetivo, as últimas se referem ao universo
das significações (e dos valores). Sem dúvida, há muitas maneiras de preencher essas funções, e o museu não é
a única. Mas, ao menos na sociedade ocidental, é a melhor maneira de preenchê-las solidariamente. Eis um
privilégio excepcional, de cujo alcance os museólogos nem sempre parecem estar conscientes.
Neste tripé é que fica evidenciada a posição que cabe ao conhecimento no museu.
O MUSEU COMO “ESPAÇO DE FICÇÃO”
Se se excluir ou minimizar o conhecimento dentre os objetivos do museu, todos os demais objetivos, obvi-
amente, ficam prejudicados. Sem o conhecimento, o museu se empobrece e, de acréscimo, perde precisamente
sua marca. Que marca é essa, no que toca ao conhecimento ?
 O museu não é uma forma de reproduzir o mundo e a vida. No entanto, muitas vezes essa confusão ocorre.
O museu não é uma forma de transportar para um espaço específico e concentrado a vida ao vivo, a pulsação
da vida de todo dia no seu próprio fluxo – seja nos produtos da natureza ou nos produtos da ação humana
–, mas é uma maneira de representar (re-presentar) o mundo, os homens, as coisas, as relações. A diferença
entre essas duas expressões é radical e a conseqüências são cheias de peso.
O museu é por excelência o espaço da representação do mundo, dos seres, das coisas, das relações. Não é
o único espaço, pois a ciência é também um espaço de representação do mundo, assim como a arte. Qual,
então, sua especificidade? É que esta representação se faz com segmentos do mundo físico, se faz com elemen-
tos que integram a nossa própria natureza enquanto seres humanos, natureza que está marcada pela nossa
corporalidade. Somos seres físicos e embora possamos superar o nível de materialidade da existência e
espiritualizá-la ou sublimá-la, não deixamos de continuar existindo como seres corporais, num universo fisica-
mente condicionado. No museu, é corrente ignorarmos as profundas conseqüências desta premissa na própria
concepção e operação da instituição.
Fala-se muito de museu vivo, museu dinâmico, mas imaginar que a “vida” possa ser trazida para dentro do
museu (quer dizer, dentro de seu espaço de atuação, inclusive os espaços extramuros) é outra ingenuidade
inútil – e muito cômoda. Museu vivo não deveria ser aquele que simula a vida, dela fornecendo uma versão
que permite confundirem-se ambas pela aparência, mas aquele que precisamente cria a distância necessária
para se perceber da vida tudo que a existência cotidiana vai embaçando e diluindo, ou tudo aquilo que não
cabe nos limites de minha experiência pessoal. Se eu confundir as coisas do museu com as coisas da vida e
comportar-me semelhantemente, que ganho há? Não há como recriar os ritmos da vida no museu: é a repre-
sentação que nos serve. E é por isso mesmo que podem existir armas nos museus, porque elas não estão lá para
defesa ou ataque. Caso contrário, a polícia as consideraria como arsenais. Ainda que num museu do telefone
todos os aparelhos estejam em condições de uso, não vou a ele para providenciar uma comunicação telefônica.
Da mesma forma, não corro até um museu do relógio, para saber ou confirmar a hora certa. No museu, o
telefone e o relógio não se definem mais por seu valor de uso, não mais são artefatos que permitem comunica-
ção à distância ou a marcação do tempo: são artefatos (documentos) que informam sobre tais artefatos utilitá-
rios. E é por isso também que podem existir drogas e tóxicos no museu da polícia, porque eles não mais se
destinam ao consumo; o “barato”, agora, é cognitivo e também afetivo, estético...
Seria interessante pensar numa das implicações do conceito de representar, que significa apresentar de
novo. Apresentar de novo porque algo está ausente. Aquilo que se representa não está presente, nem é um
duplo. Representar não significa desfazer a ausência. E esta é a ambigüidade da representação, em qualquer de
seus vetores: a imagem visual, a palavra, o som, as coisas, etc. Representar significa, ao mesmo tempo, tornar
presente o que está ausente, mas pela própria presença da ausência, acentuar a ausência.O museu não haveria
de escapar desta ambigüidade fundamental, porque é da natureza da representação o jogo entre presença e
ausência. O museu, portanto, não reproduz a vida, ele é parte da vida, atendendo a nossas necessidades de
representação. Este seria um bom início de conversa para definir diretrizes para nossas exposições.
 É o caso de perguntar por que sentimos tal necessidade de representar. Precisamos representar porque
somos seres não só produtores de sentidos, significados, mas vivemos deles, não passamos sem eles. Cornelius
Castoriadis afirmava que era impróprio definir o homem como ser racional. Se assim fosse, o mundo não
estaria imerso na irracionalidade da barbárie. Somos dotados de razão, sim, podemos eventualmente fazer uso
dela, sim, mas não é o que nos caracteriza. O que nos caracteriza é que somos seres dependentes da imagina-
ção. Mais radicalmente ainda, diz ele: “a imaginação é o que nos permite criar um mundo, ou seja, apresentar-
mos alguma coisa da qual, sem a imaginação, não poderíamos nada dizer e sem a qual não poderíamos nada
saber”.
De fato, não enfrentamos o mundo diretamente, mas criamos formas para apreender seus significados. A
hagiografia cristã conta que Santo Agostinho – o grande teólogo e doutor da Igreja, do século IV – estava certa
feita a passear na praia, em sua Cartago natal, procurando compreender o mistério da Santíssima Trindade,
quando teve a atenção distraída por um jovem que, repetidamente, corria até o mar e trazia, na concha das
mãos, água para depositar num buraquinho na areia. O santo bispo ficou todo preocupado com o sentido
daquela ação e perguntou ao jovem o que ele vinha tentando fazer, pois era evidente que o mar não caberia no
buraco. Respondeu o jovem – na certa, vê-se agora, um anjo – que mais vão seria Agostinho tentar entender,
com a razão de que os homens são dotados, o mistério infinito da Trindade. De maneira que, se quisermos
enfrentar diretamente seja o mistério infinito da Trindade, seja o mistério infinito do mar, não devemos fazer
como o anjo, que executava didaticamente o que nós, pobres mortais, fazemos por ignorância, tentando fazer
caber a imensidão num buraquinho. Acaso seria então impossível participar do mistério, tentar aflorar o
mistério? Não, felizmente. Para não falarmos da experiência mística, o mito é uma dessas possibilidades, a
poesia é outra. E o que têm de comum essas categorias essenciais de linguagem, mito e poesia? Têm a mesma
matriz: o enfrentamento da imensidão do real não se faz por via direta, denotativa, mas é esse enfrentamento
indireto, mediado por formas criadas, que penetra fundo e sinteticamente na raiz das coisas. É só assim que a
linguagem humana é capaz de dizer o indizível: por representação. (A ciência também pode deixar-se impreg-
nar destas formas, mas seu caminho específico é outro). A representação, portanto, é uma necessidade inelutá-
vel, porque sem ela não poderíamos dar inteligibilidade e sentido ao mundo em que existimos. Representamos
o mundo para torná-lo inteligível. O mundo tal como é seria um enigma indecifrável se não pudesse ser
reconstruído pelas formas que criamos para entendermos as formas incriadas.
Em latim há um verbo interessante, fingo (seu particípio passado é fictus, donde vem o substantivo fictio,
ficção). Fingo, de início, era o verbo indicador da ação do oleiro, que modelava potes, telhas e outros artefatos
cerâmicos, mas que passou também a modelar imagens. Ficção, portanto, não se opõe a verdade: designa as
figuras (palavra da mesma família) que modelamos, para darmos conta da complexidade e vastidão infinitas
do mundo. O museu é um espaço extraordinário de ficção, pois mobiliza formas para representar o mundo e
assim permitir que dele possamos dizer alguma coisa. Longe de se opor a conhecimento, portanto, a ficção é
um seu instrumento extraordinariamente eficaz. O museu, pela mesma razão, é um instrumento excepcional
de conhecimento, ou, dito de outra maneira, o museu é, por excelência, um espaço de ficção. Mas um espaço
de ficção em que o conhecimento científico pode ser acoplado ao poético, fecundando-se mutuamente.
MUSEU SEM ACERVO?
Há uma premissa que conviria desde já explicitar: a especificidade do museu, como espaço de ficção, está
precisamente no uso dessas formas, dessas figuras. Estamos, de novo, no campo sensorial: tais formas são
visíveis, tácteis, auditivas... São físicas, materiais. A matéria-prima com que aí representamos o mundo e a vida
são aqueles segmentos do universo natural culturalmente apropriado (segmentos, pois, transformados na sua
morfologia, função ou sentido). Abre-se, aqui, a problemática do acervo (acervos artísticos, históricos, antro-
pológicos, tecnológicos, etc.), que será apenas assinalada.
Tem ocorrido, cada vez com mais freqüência, entre nós, a pergunta: pode existir museu sem acervo? A
pergunta, é claro, envolve ainda o debate iniciado também em 1968, que opunha o museu “patrimonial” ao
museu “centro de criação”, o “templo” ao “fórum”. Os quase quarenta anos já decorridos deveriam ter
servido para comprovar que não se trata de modelos excludentes e que a tendência de nossos museus (princi-
palmente os históricos) se orientarem para a segunda alternativa, em detrimento da primeira, revela antes a
incapacidade de enfrentar o universo material – universo em que estamos mergulhados até a base de nosso ser
e irrecusável para todos os instantes de nossa sobrevivência biológica, psíquica e social, mas que, por isso
mesmo, foi profundamente naturalizado. Dessa forma, escapa de nossa consciência e nos parece explicar-se
por si mesmo.
Mas perguntar se pode existir museu sem acervo é tão ingênuo quanto perguntar se existe mula-sem-
cabeça. Nos dois casos, a resposta só pode ser positiva. Mais ainda, como o museu sem acervo, a mula-sem-
cabeça não só existe, mas solta gloriosamente fogo e fumaça pelas ventas. Entretanto, a pergunta está mal
direcionada, pois o que se deve perguntar é se tem sentido o museu com acervo, se é necessário o museu com
acervo. No caso da mula, se eu precisar daquilo que uma mula com cabeça pode fazer, é bom que ela seja
inteira: para ver o caminho, por exemplo, e transportar a carga que tem de ser transportada. Da mesma forma,
apesar de todas as transformações que a cibernética está trazendo, nossa sociedade – enquanto formos seres
corporais – ainda necessitará de espaços institucionalizados (isto é, dispondo de uma certa estabilidade e
condições de operação) para atuarem precisamente sobre esta dimensão física, básica na nossa existência.
Ainda que possamos e devamos transcender os limites da corporalidade e da materialidade, somos corpo e
matéria também e estamos mergulhados num universo de coisas físicas. Não se reduz a existência à matéria, é
claro, repito, mas como podemos nos entender e determinar ignorando essa base física, essa dimensão física,
material, empírica, da nossa existência? Eliminar o acervo no horizonte do museu é comprometer uma das
possibilidades mais eficazes de consciência e compreensão dessa dimensão visceral de nossas vidas.
Por ironia, as propostas de privilegiar o museu sem acervo ocorrem quando mais e mais se consolidam os
espaços econômicos de presença do mundo material, como o supermercado. Não existe instituição mais pare-
cida com um museu do que um supermercado. E não só porque os museus estão se rendendo à sedução do
mercado e às vantagens de sua lógica. É também porque nos supermercados e museus tudo gira em torno de
objetos materiais. Vai-se ao supermercado e ao museu por causa dos objetos que ambos oferecem. A linha
demarcatória estaria em que se vai ao museu pelas coisas enquanto coisas; vai-se ao supermercado pelas coisas
enquanto mercadorias. Esta linha divisória, porém, está cada vez mais tênue – em parte graças ao maior peso
e competência dos supermercados, que passam a fornecer modelos e idéias aos museus.
Antes de terminar, convém explicitar que acervo, aqui,não é apenas aquele cartorário, patrimoniado,
exposto ou depositado em reservas técnicas, mas também o acervo operacional – aquele sobre o qual opera o
museu (por exemplo, a cidade empírica, num museu de cidade).
Na década de 60, matriz daquelas duas vertentes que mencionei há pouco, se dizia justamente que o museu,
em particular o museu de arte, não podia mais ter preocupacões documentais, patrimoniais. E quem disse isso
foram grandes cabeças, como Giulio Carlo Argan, grande historia-dor de arte italiano: “É preciso que se crie,
ao lado do museu histórico, do museu patrimonialista, do museu de arte antiga – que vão continuar, pois
ninguém os destruirá –, museus como espaços de criatividade: são os museus vivos.” Como se o museu vivo
tivesse de, por natureza, cortar as amarras da sua condição temporal, espacial. Como se o museu vivo fosse o
museu do instante e justamente do provisório. Como se não houvesse possibilidade de criar, definindo trajetó-
rias.
O interessante é que a arte do século XX é uma arte que, ou por negação ou por reciclagem, tem como
referencial o histórico. Basta ver, a começar pelo nível da produção, o problema da originalidade. O que
significa originalidade? O que significa para um artista inovar? Aliás, o que significa criação para os critérios
valorativos da arte do século XX (deixando de lado, por ora, as implicações da divisão social do trabalho)?
Significa fazer o que outros não fizeram, o que comporta então a necessidade de historicização: não se pode
escapar da história. Se se pensar que a história é só uma trajetória cronológica, aí, sim, a documentação se
transforma numa atividade morta e aí, sim, pode ser acusada de historicista. Mas pense-se, por exemplo, em
algo que também foi acusado de ser morto: a escrita em relação à palavra viva. Quando o problema da
comunicação oral e da escrita começou a atrair a atenção dos especialistas, houve quem dissesse que a palavra
viva era uma palavra mais humana do que a palavra escrita – palavra morta, pois congela a fala, o enunciado,
esse sim ação humana por excelência. A escrita seria, então, algo como a mumificação da ação humana. Mas
tal visão é radicalmente falsa e equivaleria a imaginar que vida é apenas atividade mecânica, imediata. Ora,
uma das estratégias fundamentais da vida é a dilação no tempo, isto é, a aquisição de recursos que não são
usados imediatamente, mas em previsão de necessidades maiores ou de circunstâncias que ainda não ocorre-
ram. De maneira que a escrita é uma espécie de investimento que se multiplica depois, em retornos vários.
Constitui fecunda possibilidade de dar à vida da palavra oral um acesso muito mais amplo do que o espaço e
o tempo que os enunciados permitem. A palavra escrita tem a possibilidade, portanto, não de congelar, mas de
dilatar o uso para multiplicar a vida da palavra para pessoas que jamais poderiam ter, pela oralidade, esse
contato. De maneira que, ao invés de recurso elitista, a palavra escrita é um recurso democrático, porque torna
as possibilidades de fruição – seja no tempo, seja no espaço, seja em relação aos fruidores – muitíssimo mais
amplas. Supor, portanto, que o museu deve comportar-se também (e não exclusivamente) como um centro de
documentação, nada tem de desdouro. Muito pelo contrário. Para terminar, penso que a relação entre o acervo
e sua utilização em exposições pode ter como paralelo aquela distinção estabelecida por Saussure entre langue
(o repertório da língua socialmente disponível) e parole (o aproveitamento individual que se faz desse repertó-
rio), ou, se se preferir, a distinção e relação que se podem estabelecer entre o dicionário (o acervo) e o poema
(a exposição).
Seja como for, sem acervo reduz-se o potencial de conhecimento do museu.
AS RELAÇÕES ENTRE MUSEU E CONHECIMENTO
Gostaria de traçar, rapidamente, um panorama das relações entre museu e conhecimento, desde sua origem
recente, no século XVIII. É então que se coloca de forma mais definida o problema do conhecimento no
museu. Os materiais reunidos nas coleções que darão origem depois aos museus públicos começam a deixar de
ser meras ilustrações de um conhecimento que se produz fora delas. Mas é no século seguinte que essas coisas
se transformam nitidamente em instrumento por intermédio do qual se produz conhecimento. É bom não
esquecer a vertente visual do Iluminismo, que está na matriz desse uso documental dos objetos. Já no século
XIX, o museu se configura como uma instituição por excelência produtora e difusora de conhecimento, além
de formadora para o exercício dessas atividades. O paradigma é o museu de História Natural, que representa
o casamento mais íntimo entre conhecimento e museu. Os museus de História Natural de Paris, Nova Iorque
e outros, mas principalmente o British Museum, em Londres, vão funcionar como um tipo especial de institui-
ção científica. Não é coincidência que a História Natural tenha sido não apenas a ciência que imporá a episteme
da época, isto é, os critérios de verdade, mas também, por isso mesmo, o modelo para a própria definição do
conhecimento científico e suas condições. Desempenharam papel essencial a respeito as teorias unificadoras,
como é o caso do evolucionismo, que deu uma fisionomia própria às ciências biológicas. O conhecimento não
mais se produz especulativamente a partir de pressupostos teológicos, teóricos ou filosóficos, mas do sensível
é que se chega ao inteligível: daí a consolidação das coisas materiais como documentos, fontes de informação.
Desta postura surgem traços que marcam o museu ainda hoje. Antes de mais nada, a própria noção de coleção,
não como um conjunto disparatado de objetos, mas como uma série sistematicamente organizada de “fontes”.
Para responder a tal exigência de sistematicidade, a melhor maneira de adquirir as fontes é a coleta de campo
(orientada por um projeto prévio) e não a procura casual ou aleatória. Os objetos não valem por sua singula-
ridade, mas pela capacidade de amostrar uma série inteira e propiciar o conhecimento de um fenômeno por
intermédio de “tipos”. Dentro desta perspectiva, ainda que existam “unicatas”, são as duplicatas que consti-
tuirão o essencial da coleção e se prestarão a intercâmbio com instituições congêneres. A própria noção de
preservação de coleção está associada à necessidade de manter os acervos disponíveis para renovar os conhe-
cimentos que ele permite produzir. A primeira operação a que se submete o acervo é a classificação. Sem
classificação, o acervo é morto. Por outro lado, as premissas iluministas e suas derivações políticas impõem
que se difundam os conhecimentos produzidos (com a publicação de catálogos e monografias) e se apresentem
os documentos (as exposições procuram reproduzir visualmente – por intermédio dos arranjos espaciais, ar-
mários, vitrinas – os sistemas classificatórios que se formularam).
Ao estudar o desenvolvimento da noção de curadoria, nos Estados Unidos, entre 1740 e 1870, Joel Orosz
registra esse casamento entre a pesquisa acadêmica e a educação popular, cuja base é fornecida pelo museu.
Em outras palavras: nunca as responsabilidades sociais do museu tiveram resposta tão eficaz quando mais
intensas foram suas relações com o campo do conhecimento. De fato, é nesse caldo de cultura republicana em
ampliação nos Estados Unidos após a Independência (1776) que se postulam a respeitabilidade e a ascensão
das classes médias (educação popular), ao mesmo tempo que a necessidade de profissionalismo científico.
Cumpre notar que a Antropologia se organiza como ciência no interior dos museus de História Natural,
adotando integralmente todos os seus critérios, a partir da proximidade de conteúdo e circunstâncias (a cultu-
ra – estudada nos povos exóticos e eventualmente colonizados – faz parte, então, da história natural do
homem).
Na América Latina, assim como em outras nações recém-liberadas do jugo colonial, é o museu de História
Natural – e não o museu histórico, nem o museude arte – que servirá para referenciar a nova identidade. A
História, é claro, se constasse dos novos museus, teria de ser amputada de suas matrizes coloniais, pois não se
poderia reproduzir na nação independente seu passado dependente. Nesse quadro, a história da nova nação
ainda estava por ser feita. A alternativa de História do futuro, ao que me conste, só foi preferida nos Estados
Unidos, onde o museu de Peale, em Filadélfia (ainda no séc. XVIII) buscava definir os rumos que a jovem
república haveria de tomar: é extraordinário que esse museu histórico tenha introduzido em seu campo a
tecnologia, ao contrário da separação esquizofrênica entre história e tecnologia, reveladora da inexistência,
em nosso caso, de uma revolução burguesa e de nossa refração às exigências republicanas. Por isso, é no
interior dos museus de História Natural que se instalará a História: todos os quatro grandes museus criados no
oitocentos – Museu Nacional, Museu Paraense (hoje Museu Emílio Goeldi), Museu Paranaense e Museu
Paulista –, principalmente o primeiro e o último, tinham um enclave histórico no seu campo biológico.
É curioso observar que, lamentavelmente, a História se manteve rigorosamente incontaminada pelas ativi-
dades científicas desses museus. Com efeito, seu papel nada tinha de cognitivo, era apenas moral e simbólico,
celebrativo. Por isso, os acervos históricos se marcam pela presença de objetos singulares, que não são utiliza-
dos como fontes de informação, mas como bens não-fungíveis (que não podem ser substituídos por outros de
mesmas propriedades), os quais derivam seu significado seja de seus atributos estéticos, seja, sobretudo, pela
contaminação que sofreram em contato com figuras ou eventos históricos notáveis. Sequer se notam conflitos,
que não deixavam de ocorrer. Assim, no Museu Paulista (popularmente conhecido como Museu do Ipiranga),
sempre se teve uma convivência absolutamente tranqüila entre o índio das seções de Antropologia e o índio
das seções históricas (principalmente o da iconografia), como também nunca se percebeu a incoerência de
exaltar romanticamente o bandeirante e romanticamente instituir um passado indígena, sem se dar conta do
curto-circuito que assim se instaurava entre predador e presa: o biombo que separava o estatuto cognitivo/
epistemológico do ético/estético/simbólico era suficiente para desarmar contradições. Natureza e nação são
palavras de origem comum, mas representavam estatutos diferentes: a primeira está associada ao conhecimen-
to e a segunda, à celebração.
No Brasil, com o surgimento das universidades, além da ocorrência de outros fatores que não é o momen-
to, agora, de discutir (como a criação dos institutos de pesquisa aplicada, tais como Manguinhos ou o Instituto
Agronômico de Campinas), dilui-se a trama que tecia relações tão fortes entre museu e conhecimento.
Hoje, a trama é inexistente, precária ou secundária. Pela própria evolução das disciplinas, a dependência
em relação às fontes materiais é menor. No campo das Biociências, sem dúvida a Botânica, a Zoologia, a
Mineralogia, etc., ainda precisam de ampliação contínua de seus acervos. Mas a ênfase não é mais a morfologia,
a sistemática, a taxonomia. A Genética, a Bioquímica, a Ecologia introduziram outras variáveis que têm cará-
ter relacional e não empírico. Na Antropologia, o peso, no terceiro quartel deste século, do estruturalismo nas
abordagens semióticas e nos fenômenos de interrelações sociais veio tirar prestígio das fontes materiais. Hoje
não há razão para tal marginalização, pois, como dizia Sorokin, a cultura material são as relações sociais em
seu aspecto sensorial e são evidentes as imensas possibilidades de informação que daí se abrem para o conhe-
cimento. No entanto, a Antropologia reluta em percorrer esses novos caminhos. Na Arqueologia, por defini-
ção, persiste a dependência essencial com relação às evidências físicas, ainda que acopladas a vários outros
gêneros de evidência: no entanto, o preço pago tem sido alto, pois essa disciplina ainda não foi capaz de
desfetichizar suas fontes. Quanto à História, é inexplicável que não se tenha dado conta da necessidade de
trabalhar a dimensão material da produção/reprodução social. Da parte dos historiadores, a sensibilidade
para este domínio se limita ao papel de ilustração – dominante, como se afirmou acima, anteriormente ao
século XVIII. De parte dos nossos museus, nenhum deles trouxe contribuição seminal para o conhecimento
histórico da sociedade brasileira. Nem mesmo existe a figura do que os americanos chamam de “museum
historians”, ou as preocupações com a “Public History”. Ou a formulação de políticas de acervo que tenham
qualquer compromisso com os requisitos do campo de saber pertinente. Na melhor das hipóteses, os museus
históricos terceirizaram a produção do conhecimento. Os museus de ciência e tecnologia não se vêm notabili-
zando por contribuições ao conhecimento da área – que se tem desenvolvido independentemente deles. Os
esforços consideráveis do Museu de Astronomia e Ciências Afins de se impor como um museu que produz (e
não apenas difunde) história da ciência e da tecnologia e a incompreensão que o CNPq (do qual ele depende)
tem demonstrado a seu respeito constituem contraprova do peso do padrão geral. Finalmente, os museus de
arte também padecem dos mesmos entraves e não podem ser creditados com investimentos consideráveis no
campo do conhecimento. Ao menos, porém, releve-se uma importante atividade documental que se tem mani-
festado na publicação de catálogos e monografias referentes seja a acervos permanentes, seja a exposições “de
curadoria”. Todavia, o trabalho do curador se orienta, hoje, cada vez mais longe do museu, para a produção
profissional independente – o que facilita a espetacularização das funções museológicas. Não deve causar
surpresa, nessas condições, que um espírito tão alerta como o de Claude Lévi-Straus, que em 1950 chamava a
atenção para o fato de que um museu de etnografia não trabalha com objetos, mas, por intermédio deles, com
problemas humanos, 37 anos depois, ao comentar uma exposição sobre arte “pompier” no Museu de Orsay,
assuma a postura retrógrada de propor que os museus de arte deixem as “lições” de história e sociologia para os
livros e se limitem a salvar e exibir objetos estéticos de qualidade...
Pode-se indagar se ao menos os museus universitários têm conseguido, no país, articular as funções de
conhecimento às demais. A resposta é negativa, infelizmente. Na verdade, várias universidades assumiram
museus (Rio, São Paulo, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio Gran-
de do Norte, Goiás, Bahia, etc.), mas se pode antes falar de museus na Universidade do que de museus da
Universidade. O museu da Universitade, isto é, o museu universitário propriamente dito, teria de integrar
solidariamente as funções científico-documentais, educacionais e culturais da Universidade com a marca da
ação museal – e não apenas existir como museu que se vincula administrativamente à Universidade. Em outras
palavras, é o ideal de curadoria dos museus americanos do século passado – ideal de integrar solidariamente
propósitos científicos, de educação popular e profissional e de referência cultural – que está fazendo falta. Não
basta um museu para a Universidade, como tem sido freqüente; é preciso um museu que atinja toda a socieda-
de pela Universidade. Este potencial ímpar, por exemplo, de socializar imediata e eficazmente o conhecimento
produzido, não tem sido percebido pelos formuladores de políticas de extensão universitária – na maioria
concebidas como tarefas extra desenvolvidas sem qualquer marca profunda do que seria a especificidade
universitária. Como deveria ocorrer com uma orquestra universitária, um hospital universitário ou uma far-
mácia universitária, um museu universitário não poderia ser apenas mais um (bom) museu, mas deveria ser
totalmente universitário, sendo totalmentemuseu.
PARA UMA AGENDA FUTURA DE DISCUSSÃO
Gostaria de concluir apenas expondo uma série bem limitada de questões que, a meu ver, deveriam consti-
tuir uma agenda de discussão para o futuro, agenda que começa inclusive neste próprio seminário. Mesmo
tendo selecionado somente dois tópicos, eu não poderia ir muito além dos próprios enunciados.
A produção do conhecimento novo
Penso ter deixado claro que a atuação do museu se compromete fora do universo do conhecimento. Além
disso, o museu opera com material que pode também ser trabalhado como fonte de informação para produzir
conhecimento. Nessas condições, não há por que atrelar as responsabilidades museais de conhecimento ao
mero repasse ou transferência do que tiver sido produzido fora dele – salvo se se quiser limitar seu horizonte ao
de guardião e almoxarife. O que é dramático, entre nós, é que tal perspectiva só tem aceitação mais tranqüila
nos museus de Antropologia (inclusive Arqueologia, Folclore, artes populares, etc.), Zoologia ou Botânica e
similares. (Nos museus de arte e tecnologia, a situação é mais ambígua – e não poderá ser aqui detalhada). É,
por exemplo, absolutamente desconhecido, em nossas instituições acadêmicas de formação e pesquisa, o po-
tencial específico dos acervos museológicos para a produção de saber original no campo da História. Um
debate recente que empreendi com historiadores do mais alto nível sobre a problemática da exposição
museológica histórica demonstrou, sem margem para dúvidas, o abismo que separa os museus do gênero dos
departamentos universitários de História. Quando muito há uma utilização pontual para “criar clima” ou
completar o conhecimento produzido a partir de esquemas exclusivamente logocêntricos. Além disso, é peno-
so ver como nossos historiadores (e também outros cientistas sociais, inclusive os antropólogos e, em particu-
lar, os arqueólogos) insistem em fetichizar a noção de “cultura material”, reduzindo-a ou a reles cenário
material da vida social, ou à necessidade de emprego de fontes materiais. Se tivessem algum contato com o que
se faz em centros academicamente mais maduros, saberiam que os estudos de cultura material não procuram
definir estratos da vida social (um “estrato material”), mas sim a dimensão material na produção/reprodução
social. Saberiam, também, que não basta alinhavar aspectos simbólicos ou semióticos, para identificar as
formas de atuação dos sistemas materiais no interior da vida social. Por sua parte, os museus encontram-se
desarmados para efetivamente produzirem conhecimento com seus acervos. Daí, na melhor das hipóteses, a
terceirização no fornecimento dos insumos de que necessitam: trata-se da “pesquisa de encomenda”.
A perspectiva que proponho sem dúvida acarreta obrigações além daquelas normalmente assumidas (não a
substiuição delas!). E, além disso, especial atenção para algumas questões, das quais destaco as mais importan-
tes – aqui exclusivamente referenciadas, como não poderia deixar de ser, pela problemática do conhecimento:
a. a necessidade de uma política de acervo, que envolva propósitos mais bem definidos, abrangência não
aleatória, sistemática e coerente, para cobertura de problemas de conhecimento. Pesquisa e mapeamento de
campo e estratégias de aquisição são tão importantes quanto a obtenção de fundos;
b. não se ignora que nenhum problema relevante (em qualquer área, História, Antropologia, artes, ciências
da natureza, tecnologia, etc.) possa ser coberto apenas com o acervo de um único museu. Daí a necessidade de
articulações de todos os tipos e objetivos, com especialistas e instituições – não para transferir responsabilida-
des, mas para fecundar sua especificidade com as especificidades complementares. As necessidades documen-
tais impõem a organização de bancos de dados tão completos quanto possível, não apenas sobre o acervo, mas
sobre os campos de problemas a serem cobertos. De novo, a abrangência e especialização devem ser conside-
radas com cuidado. De novo, também, é bom tratar do acervo operacional, além daquele cartorial;
c. a necessidade de um corpo próprio de pesquisadores (com formação no campo museológico e no campo
de saber envolvido) é inquestionável. Da mesma forma, uma agenda de pesquisa institucional que evite as
insuficiências e superficialidades da chamada “pesquisa para exposição”. As exposições, as atividades educa-
cionais, de extensão e culturais deveriam ser entendidas como saques na conta alimentada pela pesquisa
institucional.
A difusão do conhecimento. A exposição
A primeira questão que se coloca, no âmbito do conhecimento, relativamente à exposição, é a da pertinência
do tratamento panorâmico ou monográfico. O tratamento panorâmico é o mais pobre de todos (pois dispõe
de poucos recursos para ir além do nível da informação) e, também, o mais frágil (pois vulnerável, como todas
as sínteses, não só à deformação simplificadora de conteúdos mas ainda à sua manipulação ideo-lógica).
Seria a monografia o modelo a ser seguido pela exposição museológica? A palavra é significativa, pois
“grafia”, vem do grego graphé, arte da escrita. Monografia, portanto, é a escrita sobre um único assunto
(mónos), em que, com palavras, apresentam-se os resultados da busca do entendimento de um problema, em
princípio a partir de pressupostos teórico-conceituais e da análise de fontes documentais. É conveniente explicitar
que fontes são essas, como foram selecionadas, quais as formas de trabalhá-las que se preferiram, de que
premissas se partiu, etc., para poder medir o alcance dos resultados. Valeria a pena utilizar este paradigma
para as exposições museológicas comprometidas com objetivos de conhecimento? A resposta é não. E não
somente não valeria a pena, como seria inviável. Ocorre, contudo, que esta perspectiva, infelizmente, é a que
domina as exposições ditas “didáticas”, onde os objetos expostos são asfixiados por uma maré de informações
audiovisuais – sobretudo verbais – sem que aquilo que é específico do museu – a materialidade das coisas –
esteja em causa. Nessa linha, publicações bem cuidadas e ilustradas, ou vídeos, filmes, CD-Roms projetados
com competência seriam de longe a melhor solução – e tornariam o museu de quase nenhuma serventia, a esse
respeito... Minha experiência no Museu Paulista permitiu ver o estrago provacado por visitas de estudantes
guiados por seus professores que, ao invés de ensiná-los a ver os objetos, lhes impunham a reprodução das
legendas escritas – o que poderia ser feito mais cômoda e eficazmente na escola, com simples cópias xerox.
O nó do problema é que trabalhar com as coisas, para por intermédio delas permitir entender muito mais
do que elas mesmas, demandaria domínio da linguagem das coisas e da linguagem museal. O historiador, o
antropólogo, o especialista em artes plásticas, etc., ao redigirem uma monografia, dispensam os documentos
de que se serviram e empregam apenas palavras. No museu, é com as mesmas coisas que o essencial (não a
totalidade, claro) deve ser “dito”. A linguagem, para tanto, não dispensa os auxílios de outra natureza –
inclusive a utilização de recursos virtuais – mas, para justificar a convocação do museu, é necessário que a
linguagem visual e espacial sejam prioritárias (ou, no mínimo, de algum peso significativo). Ora, que conhece-
mos desta linguagem? Muito pouco. Qual é, por exemplo, a retórica visual? Conhecemos muito bem a retórica
verbal e a empregamos para criar e veicular os sentidos que julgamos necessários. Há trinta anos Roland
Barthes tentou alinhavar algumas tramas – muito tênues – da retórica da imagem. A Semiótica, a seguir, não
trouxe muito avanço para um domínio maior da questão (sobretudo, é claro, porque as coisas materiais não
são unidades de uma linguagem – como as palavras – embora possam ter funções lingüísticas). Sabemos como
se nega com palavras: o advérbio não é uma dentre várias possibilidades. Mas, como se nega com imagens?
Aproveitando um exemploclássico, como dizer com imagem “o gato não está sobre a lareira”? A mera ausên-
cia do gato não é suficiente. O fato é que não podemos tomar a linguagem verbal como paradigma a ser
copiado ou adaptado pela linguagem museológica. É preciso criar uma linguagem própria, objetivo viável mas
para o qual se faz necessário muito investimento, ainda. No campo de estudos da “cultura visual” haveria
muita semente a colher, mas nossa formação tem dado preferência à vertente mais cômoda e na moda (por
necessidades do mercado) da comunicação.
A camisa-de-força da comunicação, entendida num esquema quase mecânico de mensagem já constituída/
pólo emissor/pólo receptor, privilegia a visão como coincidente com o conhecimento. Ver seria conhecer. É o
chamado paradigma observacional do conhecimento, por oposição ao paradigma discursivo. É o paradigma
que domina, por exemplo, em certos jornais televisivos, onde a credibilidade da informação é caucionada pela
possibilidade de ver o que “está acontecendo” sob os olhos do espectador, no calor da hora, simultaneamente,
sem edição (como se a imagem tremida do câmera e a voz ofegante do locutor, juntamente com todos os
critérios de seleção, não constituíssem edição...). A preeminência da linguagem visual a que acima se aludiu
não nos deve levar a confundir percepção sensorial com conhecimento. A percepção seria aí apenas o impulso
inicial – e não, como pretendem os living museums, os “museus vivos”, uma imersão epistemológica espontâ-
nea e sem esforço, que nos mergulhasse na “verdade” a ser conhecida. Naturalmente, nas sociedades de massa,
nas sociedades a serviço da indústria cultural, esse paradigma é necessário por razões de mercado, como tem
sido denunciado por sociólogos preocupados com o que se vem denominando “oculocentrismo” nas socieda-
des do capitalismo avançado. O videoclipe é uma das linguagens emblemáticas dessas “sociedades do espetá-
culo”.
O videoclipe permite introduzir outros dogmas vigentes na orientação da exposição com relação ao proble-
ma do conhecimento. Julga-se que, para propiciar o acontecimento, o mergulho deve eliminar ou atenuar a
diferença, a alteridade. O caráter caleidoscópico do videoclipe, montado na descontinuidade e na velocidade,
impede qualquer forma de conhecimento. Potencializa, porém, o mergulho sensorial, estímulos que se multi-
plicam em cadeia. Ora, diz a epistemologia que não há conhecimento sem ruptura, sem descontinuidade; só se
conhece quando se extraem, do fluxo contínuo do existir, parcelas que eu posso, pela distância tomada, obser-
var melhor, questionar, analisar, compreender. Acima falei de poesia. É bom lembrar que a intuição poética
não elimina a ruptura e o distanciamento necessários para os procedimentos analíticos. É justamente um dos
grandes poetas do nosso tempo, e também um dos grandes críticos, Octavio Paz, quem diz que a poesia é
gerada em dois momentos, que são contraditórios mas insubstituíveis. O primeiro momento é aquele em que
a palavra é arrancada do seu habitat, arrancada da língua falada, cotidiana, em que a palavra é completamente
“renascida”, por assim dizer ela passa a não ter exisitido anteriormente. O poeta, nesse primeiro momento da
criação poética, utiliza os dados que constam do repertório da língua, mas, ao arrancá-los de seu contexto de
vida, ele provoca o estranhamento. Num segundo momento é que a palavra volta, e aí sim, é possível a
partilha, é possível a comunicação. Sem estranhamento, não há poesia. Eu acrescentaria: nem conhecimento.
Todavia, os museus insistem em eliminar toda e qualquer possibilidade de estranhamento e em ressaltar
exclusivamente os dados da vivência do visitante cujo potencial intelectual é sempre paternalisticamente su-
bestimado. A intenção, obviamente, é das melhores: trata-se de evitar aquele padrão chamado de “goetheficação”
(que toma como modelo as celebrações recentes do segundo centenário de Goethe, apresentado como herói
tão excelso quanto inatingível e inimitável), mas, infelizmente, cai-se direto no padrão oposto, o da
“disneyficação” (que é a reprodução do já conhecido, mas projetado sob formas diversas, sem, porém, alterar
a substância do mesmo, de si próprio, da própria identidade). Sob aparência do novo, sensorialmente estimu-
lado, a “disneyficação” reforça todo um estado de coisas e minha centralidade nele. Impede o conhecimento.
Embora partindo de outra postura, Gaston Bachelard, ao caracterizar a epistemologia fenomenológica, falava
que o sujeito que conhece precisa pagar um “preço do conhecimento”, devido à necessidade de remover a
ameaça constante para o intelecto de se deixar invadir pelo mundo confusamente fascinante do vivido empírico
e pelo narcisismo que a evidência imediata alimenta.
Gostaria de encerrar esta exposição tão sumária com um exemplo extraordinário de como o museu poderia
transformar-se num espaço de estranhamento, assumindo um papel próprio (e não conversível ao da palavra)
na produção do conhecimento. Conhecimento que, para aproveitar a especificidade do museu, integra o cognitivo
e o afetivo. Marcel
Duchamp, há algumas décadas, tomou um mictório – objeto da vida cotidiana e, mais que isso, conotado
como menos nobre por vincular-se a necessidades fisiológicas do organismo – e o introduziu num museu,
sobre um pedestal e com a legenda “A fonte”. Os críticos começaram por arrancar os cabelos, perguntando-se
qual a matriz estética dessa postura. Em suma, o que faria desse objeto uma obra de arte? Seria, talvez, o
aspecto leitoso e homogêneo da matéria-prima? Seriam as suaves curvaturas? Sua associação ao meio líquido?
Não era nada disso. Duchamp procurou desmitificar a própria noção de obra de arte, oposta à desvalorização
da vida corrente e banal. No fundo, é a contestação dos caminhos formais de instituição da arte. Ele mostrou
que tal processo pode dar-se conceitualmente, pondo em cheque os supostos sentidos intrínsecos que definem
e hierarquizam os objetos. Com isso ele demonstrou que a arte é a produção de formas (ainda que secundari-
amente, situacionalmente) por intermédio das quais se pode ter um entendimento mais profundo da existência
– por exemplo, do cotidiano e da mitificação da arte. Esse corte profundo só foi possível pelo estranhamento
que o museu é capaz de propiciar. Poesia e museu: a perspectiva de Octavio Paz coincide com a de Duchamp.
Ao invés da monografia, é no questionamento poético que o museu teria uma de suas principais platafor-
mas de conhecimento – afirmação que, por certo, precisaria ser esmiuçada e fundamentada. Não podendo
fazê-lo agora, deixo, como reflexão final, a proposta utópica de transformar o museu antes num espaço de
questionamento e de indagações do que de respostas.

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