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Capítulo 5. BREVE HISTÓRICO DA BIOGEOGRAFIA Uma visão panorâmica da história da biogeografia nos permite identificar uma série de fatos e descobertas que contribuíram para o desenvolvimento de vários conceitos e até mesmo para a construção de paradigmas. Muitos conceitos e termos ainda persistem. Outros, porém, hoje obsoletos ou usados com sentido bem diferente do original, devem ser avaliados dentro de contexto de época. O desenvolvimento do pensamento biogeográfico está condicionado a ideias opostas na tentativa de melhor explicar aquilo que assumimos como realidade. Isto é normal e faz parte do intelectualismo. O resgate desta história é importante para entendermos a construção de correntes de pensamento atuais e as metodologias subjacentes. A seguir é apresentada uma retrospectiva histórica da Biogeografia com ênfase em seletos avanços nas fases descritiva, narrativa e analítica, discutindo-se suas influências e complementaridades. Considerando-se também que Biogeografia é uma ponte entre biologia e geologia, e que o espaço geográfico é o cenário para a história das biotas, notas relevantes sobre a história das geociências também são adicionadas. O desenvolvimento do pensamento biogeográfico remonta à própria história da humanidade e está intimamente ligado à própria concepção que o homem passou a ter do espaço Geográfico, coincidindo também com a própria história da exploração geográfica. E muito do que se acreditava tem suas raízes em mitos e lendas das religiões e das mais antigas civilizações. Muitos povos e civilizações empreenderam viagens exploratórias, muitas com finalidade comercial ou militar. Entre aqueles que se aventuraram por mares distantes, tivemos fenícios, gregos, polinésios, chineses, bascos, cartagineses e vikings. Infelizmente poucos registros foram deixados. A Ilíada e a Odisséia de Homero (VIII a.C.) (Figura 1E) nos falam de viagens épicas de heroicos gregos (e.g., Jasão, Ulisses) pelo Mediterrâneo e mares adjacentes, repletas de mitos e lendas. Figura 1E. Ulisses, rei de Ítaca, protagomista da Odisséia de Homero. Apesar de belas narrativas, elas estão distantes do conteúdo científico. Mas, com base nelas, pode-se ter uma pista de como era o mundo no tempo de Homero. Tratava-se de um anel de Terra cercando os mares conhecidos, o Mediterrâneo e o Egeu. Em torno deste anel de Terra situava-se um oceanus fluvius, um rio-oceano de gosto amargo. Para os gregos haviam quatro ventos, Bóreas (frio, do norte), Euro (do leste), Zéfiro (do oeste) e Noto (do sul) nos “quatro cantos”. Mais tarde, esta mitologia inspiraria a criação da rosa-dos-ventos. Um dos registros geográficos mais antigos é o de navegante Píteas de Messália (atual Marselha), na metade do século IV a.C., que explorou o Mar do Norte na primeira expedição geográfica de cunho científico que se tem notícia e sob os auspícios de Alexandre Magno. Queria conhecer a extensão da Terra em direção ao Norte. Chegou até a Groenlândia (ou, para alguns, a Islândia), referida nos relatos de viagem como ilha de Thule, e fez observações oceanográficas originais, como fluxo e refluxo de marés, e o fenômeno da maré vermelha. Ele ficou deslumbrado com a aurora boreal e o sol da meia-noite. Ao retornar, foi rotulado de mentiroso. Caiu em descrédito. Muitos séculos depois, obteve reconhecimento de sua contribuição para a ciência, sendo considerado por muitos como o primeiro oceanógrafo. Foi Eratóstenes de Cirene (275 - 195 a.C.) (Figura 2E), o bibliotecário-chefe de Alexandria e Siena, contemporâneo de Arquimedes, que concluiu que a terra firme de globo corresponderia a um terço da circunferência terrestre, tanto que a distância entre a costa leste da Ásia e a península Ibérica deveria medir algo em torno de 240 meridianos. Foi um dos pioneiros a declarar que o Sol é o centro do universo e não a Terra. Foi quem pela primeira vez calculou a circunferência terrestre através de um dos experimentos mais fantásticos da história das ciências. Por outro lado, a existência de fósseis marinhos em regiões distantes do mar intrigou Eratóstenes. Ele propôs uma hipótese para explicar o problema. Acreditava que o mar Mediterrâneo tinha abaixado de nível repentinamente devido as aberturas das colunas de Hércules (estreito de Gibraltar) e do Ponto Euxino, que comunicava o mar Negro com o Mediterrâneo. Segundo ele, esses dois mares estiveram mais elevados do que no presente, formando com o Oceano algo parecido com bacias sobrepostas. Com a abertura, esvaziou-se parcialmente. Daí, encontrarmos vestígios de organismos petrificados e destroços de embarcações em áreas montanhosas ou distantes do litoral acima do nível do mar atual. A sua explicação divergia daquela de Estrabão (58 a.C e 21 d.C.) (Figura 2E), em sua Geografia, que acreditava que a causa natural dever-se-ía a algum fator atual que teria provocado variações consideráveis no nível do mar. Ele percebeu que há períodos de invasão e recuo do mar. Mas postulou que um maremoto (=tsunami) seria a melhor explicação para explicar os fósseis em montanhas distantes do mar. Este teria transportado os organismos até os pontos mais altos e depois estes teriam sofrido petrificação natural, transformando-se em fósseis. As duas explicações, mesmo longe da interpretação atual, têm seus méritos. Buscou-se explicar a natureza pela própria natureza, sem recorrer a ajuda da mitologia. Eratóstenes pode ser considerado um precursor do Catastrofismo de Georges Cuvier, no século XVIII, e Estrabão, um precursor do Atualismo de Jean-André Deluc e James Hutton, no século XVIII, e principalmente, Charles Lyell, no século XIX. Figura 2E. A) Eratóstenes de Cirene (275 - 195 a.C.). Retirado de: https://www.biografiasyvidas.com/biografia/e/eratostenes.htm; B) Estrabão (58 a.C e 21 d.C.). Retirado de: https://documentariofundeadouroromano.wordpress.com/tag/estrabao/ Os antigos gregos, de uma forma geral, não acreditavam nem em uma criação recente para o mundo, nem num fim próximo. Muitos, como Aristóteles (Figura 3E), argumentavam que à medida que velhas montanhas desmoronam, outras novas surgem em seus lugares, obedecendo a um eterno ciclo de compensações pontuais. Uma forma diferente de ver as coisas veio com a corrente de pensamento dos estóicos que defendiam a proposta que se montanhas desmoronam, o mundo inteiro também está em processo de desmoronamento e condenado, como um todo, a desaparecer até que um novo evento repentino de renascimento ocorra. Esta corrente de pensamento encaixou-se como uma luva na doutrina filosófica cristã difundida na Idade Média, com todos os seus pesadelos escatológicos. Assim, o sistema de pensamento tornou-se tributário da crença religiosa. O mundo eterno de Aristóteles foi colocado de lado. Era mais sugestivo acreditar num ato único de criação e destruição. E até hoje sentimos esta influência quando este ou aquele “profeta” sugere alguma data para o “fim do mundo”. BA Figura 3E. Mapa-múndi sob inspiração aristotélica na época de Heródoto (485?-413 a.C.). Note o locus solis, onde o Sol nasceria todos os dias, ao leste. Daí vem a palavra orientação, ou seja, posicionamento em relação ao leste ou Oriente, de onde surge a luz. Pelo que se sabe, a confecção de mapas parece ser anterior à escrita e teve início nas rotas de viagem, localização de cidades e acidentes geográficos. Enfim, tentativas de administrar e utilizar racionalmente o espaço geográfico. Mais tarde, plantas e animais começaram a ser incluídos contribuindo, muitas vezes, como “impressões digitais” de certas regiões. Um mapa nada mais é do que uma representação reduzida e plana da superfície terrestre. É de se supor que todas as civilizações tiveram algum tipo de representação simbólicaou geográfica do mundo habitado e conhecido, o ecúmeno (oikoumené, termo usado desde a época de Alexandre Magno). Um dos documentos cartográficos mais antigos que se tem conhecimento foi obtido em escavações no norte do Iraque e está representado por uma plaqueta de argila exibindo rios, montanhas e a situação geográfica de Nuzi, cidade ao norte da antiga Mesopotâmia, entre 2.300 a 2500 a.C. (Figura 4E). O único mapa-múndi conhecido da Antiguidade é uma planta da antiga cidade de Nippur, na Mesopotâmia, com detalhes em escrita cuneiforme cravado sobre uma pequena placa de argila. Foi produzido no tempo do segundo império babilônico, entre 626 a 539 a.C., e está depositado nas coleções do Museu Britânico, de Londres. Ele nos mostra o cosmo e a Terra no seu centro, em forma de disco. Ao seu redor flui o oceano, o “rio amargo” (Figura 4B). Figura 4E. A) Mapa da cidade de Nuzi, norte da Mesopotâmia, 2300 a 2500 a.C.; B) Mapa-múndi babilônico (626 a 539 a.C.) depositado no Museu Britânico de Londres. Visões divergentes quanto à forma da Terra e sua representação no mapa obviamente moldaram nossa interpretação de muitos padrões geográficos e biogeográficos. Cláudio Ptolomeu (100 d.C. a 160 d.C.) (Figura 5E) trabalhou como astrônomo, geógrafo e cartógrafo em Alexandria e frequentava a famosa biblioteca desta cidade, destruída e incendiada muito tempo depois (391 d.C.) pela ação de cristãos fundamentalistas. Ele nos legou a obra Geografia, composta de oito livros, copiada e recopiada por séculos. Ela apresentava informações detalhadas sobre povos, rios e montanhas, coordenadas geográficas e orientação pelo posicionamento das estrelas. Registrou cerca de 8.000 acidentes geográficos. Infelizmente não incluiu nenhum mapa, mas foi com base nesta obra que muitos mapas foram elaborados até a Renascença (Figura 6E). Figura 5E. Cláudio Ptolomeu (100 d.C. a 160 d.C.). Retirado de http://www.sciencesourceimages.com/science-source-collection/. B A Logo de início, desde a Antiguidade e início da Idade Média, duas visões globais entraram em conflito. São os esquemas dos mapas inspirados nas ideias de Aristóteles e Ptolomeu. Naqueles inspirados nas ideias do estagirita, encontramos o ecúmeno em posição centralizada, com todos os continentes então conhecidos (norte da África, Europa e parte da Ásia) reunidos. Em torno desta Terra teríamos o Oceano (=oceanus fluvius) formando os limites extremos. Em suma, temos basicamente uma Terra rodeada por oceano. Para alguns especialistas um discípulo de Aristóteles, Dicáiarcos de Messênia, já falava de uma linha de orientação que se estendia das Colunas de Hércules até a Pérsia, cruzando a Ilha de Rodes. Ele teria antecipado o uso das coordenadas geográficas. Naqueles mapas inspirados na visão do mundo de Ptolomeu, os continentes se estendem até as bordas, dando ideia de continuidade, admitindo inclusão de terras ainda não conhecidas (terrae icognitae). O formato deles é geralmente quadrangular. No meio dos continentes teríamos um único oceano, o Indico. A única exceção corresponde à área oceânica referente ao Mar do Norte e suas extensões. Em suma, o padrão é oceano central rodeado por terra. Figura 6E. Mapa-múndi inspirado nas ideias de Cláudio Ptolomeu. Figura 7E. Síntese bíblico-cratesiana. Modificado de Randles (1993). Tentativas de integração aparentemente impossíveis como a da Terra redonda grega com o mito bíblico da Terra Plana (absorvido de outros povos e civilizações na antiguidade) foram feitas. Nesse sentido distinguimos, a síntese bíblico-cratesiana (baseada nas ideias de Crates de Malos, em 150 a.C.) (Figura 7), conhecida das obras de Martianus Capella e Ambrosius Macrobius, no século V d.C., na qual se representava sobre a Terra redonda quatro “manchas” (i.e., perioeci, ecúmeno, antoeci e antipodes) diametralmente opostas, correspondentes a massas continentais, separadas por grandes extensões oceânicas. Assumia-se que somente uma dessas massas continentais teria vida, o ecúmeno. Nele teria ocorrido segundo a visão judaico-cristã a criação divina dos seres vivos e por lá se espalharam os descendentes de Adão. Na síntese bíblico-aristotélica (com inspiração nas ideias de Aristóteles), assumia-se o cosmos composto de quatro esferas concêntricas ordenadas segundo relação decrescente de densidade, do centro para a periferia. Daí, a ordenação dos elementos, terra, água, ar e fogo. E a este conjunto se acrescentava, pelo menos, uma região mais externa, a do éter. O pensamento medieval admitia que havia uma proporção de um para dez entre a densidade de um elemento e a do seguinte. Sendo assim, a superfície da Terra descoberta pelas águas e correspondente ao ecúmeno permaneceria insignificante em relação a imensa esfera de água. Em virtude desta hipótese ad hoc, a porção de terra habitável podia ser representada plana e a Terra, como um todo, esférica, no contexto astronômico. Mas essa integração cômoda viria a ser abalada pelas descobertas feitas com as grandes navegações, no século XV. Outro esquema bastante conhecido na Idade Média delimitava as partes habitáveis da superfície terrestre segundo a teoria das zonas climáticas latitudinais, atribuído a Parmênides, mas melhor conhecida pela exposição de Aristóteles em sua Meteorológica. Assim, a Terra era dividida em cinco faixas climáticas distintas. As duas muito frias e assumidas como inabitáveis se situavam próximas dos pólos. Na altura da linha do equador situa-se a zona tórrida, também não habitada e intransponível, mas que separa as duas zonas temperadas, boreal e austral, as únicas com capacidade de abrigar seres vivos. Mais tarde esta divisão fortemente influenciou a divisão ecológica da Terra em grandes biomas. Curiosamente, durante a Idade Média, houve uma ardorosa discussão do ponto de vista teológico se haveria realmente vida abaixo da zona tórrida, na região chamada alter orbis. Muitos achavam que o local seria todo coberto por águas, sem terra habitável. O ecúmeno estava representado em diversos mapas medievais do tipo Orbis Terrarum (chamados de “T-O” ou mapa de roda) (Figura 8). Eles já eram conhecidos desde o século VIII. Nestes a Terra está representada por um círculo no qual se inscreve um “T”. Este “T” teria grande valor simbólico uma vez que vem da letra T ou Tau, do alfabeto grego. E foi interpretado como o próprio símbolo da cruz. Os ramos do “T” correspondem ao mar Mediterrâneo, e os rios Nilo (ramo direito) e Tanais (ou Dom, ramo esquerdo) que dividiam o ecúmeno (i.e., Ásia, Europa e África). Dentro da concepção judaico-cristã, os continentes foram destinados aos filhos de Noé (a Ásia, para Sem; a África, para Cam e a Europa para Jafé). O “O” corresponderia ao oceano circundante (oceanus fluvius), além do qual se juntavam os cinfins da Terra e do céu, separados por um abismo celestial. O continente asiático era colocado na parte superior do mapa e, por lá, estaria o paraíso, em ponto de maior altitude. A posição do inferno seria a oposta, nas mais altas profundezas da Terra. Santo Agostinho, em sua De civitate dei, no capítulo referente à descrição do mundo, concordava plenamente com o ecúmeno dos mapas “T- O”. Acreditava-se inclusive que a Ásia contribuiria com a metade do total dos continentes. Figura 8E. Mapa Orbis Terrarum. Ainda, de acordo com a cosmologia judaico-cristã, Jerusalém seria o ponto central do mapa, ou seja, o “umbigo” da Terra habitada. Mas, esta tendência de se colocar esta ou aquela cidade no centro do mapa, já era observada em produtos de várias civilizações desde a Antiguidade sob influência religiosa e etnocentrista. Por exemplo, para muitos muçulmanos, o centro do mapa era cidade de Meca; para os hindús, o monte sagrado Meru; para os gregos, Delfos. Aos poucos, nos mapas do tipo T-O, do século XIII, começamos a notar umapreocupação com o registro de animais de áreas geográficas pouco conhecidas. De modo geral, estes mapas dividiam a Terra em três Regiões Zoogeográficas: a Paleártica (Europa e parte da Ásia), Etiópica (África) e Oriental (parte da Ásia). Nesse contexto, de particular interesse para a biogeografia, destacam-se os mapas-múndi de Hereford e Ebstorf, do século XIII por serem ricos em detalhes (Figura 9E). Figura 9E. Mapa de Ebstorf (1235). O mapa de Hereford foi produzido pelo clérigo Richard de Haldingham, em painel de 160 cm de altura por 133 cm de largura, em pele de carneiro, por volta de 1290, e recebeu este nome pela associação com a Catedral de Hereford, onde esteve guardado por muito tempo. Já o mapa-mundi de Ebstorf recebeu este nome devido ao fato de ter sido guardado no mosteiro beneditino de Ebstorf, próximo da cidade de Uelzen, na Alemanha. Alguns autores sustentam que teria sido produzido entre 1230 e 1240 pelo britânico Gervásio de Tilbury, um professor de direito canônico. Neste mapa-múndi aparecem alces, auroques, cavalos, saiga, camelo, urso, serpentes, leão, camaleão, algumas aves e grandes felinos representando a região Paleártica. Para a região Etiópica são assinalados elefante, leopardo, hiena, macacos, dromedário, crocodilos, avestruz e antílopes. A região Oriental está representada por papagaio, serpentes, antílope, búfalo e a saiga. Há também registro de animais mitológicos como grifos e unicórnios admitidos como reais pela própria Bíblia. Muitos animais mitológicos que aparecem em antigos mapas e relatórios de viagens são decorrentes de informações de segunda mão ou de quem se deparou com elementos exóticos, desconhecidos e de difícil interpretação. Nesse sentido, o homem passou a associar o que estava vendo com alguma imagem conhecida ou mitológica e tudo isso com muita dose de fantasia (Figura 10C). Figura 10E. Monstro marinho no imaginário medieval. O mundo ocidental, durante a Idade Média, teve a atividade intelectual controlada pela Igreja. Debatia-se em centros mais eruditos se a interpretação literal ou simbólica das sagradas escrituras seria mais adequada para esclarecer as incongruências reveladas pelo empirismo. O que dizer, por exemplo, da possibilidade da existência dos antípodas (Figura 11), a contra-partida humana abaixo da zona tórrida tropical, na chamada alter orbis? A crença nos antípodas (ou antíctones) se dava principalmente pelo fascínio da impossibilidade de se encontrar com eles. Eles seriam pessoas que têm os pés contra aqueles que estão no hemisfério norte por estarem na parte oposta (“parte debaixo”) da terra. Cada habitante do hemisfério norte teria seu correspondente antípoda, algo do tipo matéria-antimatéria. Na terra dos antípodas, o sol deveria se pôr quando no hemisfério norte ele nasce. Lá ocorreria o inverso de tudo que acontece no hemisfério norte. A sua existência levava a se postular: como permaneciam ligados ao globo terrestre? Por que não caem no vazio? Eles caminham de ponta-cabeça? Figura 11E. Criaturas fantásticas no contexto do imaginário medieval. A primeira, da esquerda para a direita é um antípoda, ao lado, um cíclope, bebê de duas cabeças, homem sem cabeça e um cinocéfalo (“cabeça-de-cão”). A geografia da Idade Média avançou pouco em relação ao que tinha sido alcançado desde os tempos de Ptolomeu. Os árabes, nesse sentido, foram intelectualmente mais flexíveis e devemos a eles os maiores avanços neste período. Eles foram os responsáveis pela preservação das obras de muitos pensadores da Antiguidade clássica como as de Aristóteles e Ptolomeu. Entre eles destacamos Al-Biruni, Ibn Batuta, Al-Idrisi e Avicena. Abu Al-Rayhan Mohammed ben Ahmad Al-Biruni (937-1050) contribuiu para a biogeografia ao constatar que a dinâmica da área de distribuição dos seres vivos tende originalmente a aumentar até atingir um “cosmopolitismo primitivo”. Fez observações importantes em regiões de altas latitudes e também na África e na Índia. Contribuiu também para a maior precisão dos cálculos de latitude e longitude. Curiosamente propôs que o Oceano Índico se comunicava com o Atlântico através de uma passagem nas montanhas do sul da África. Ibn Batuta (1304-1377), o maior dos viajantes árabes, nos forneceu relevantes informações geográficas sobre povos islâmicos e asiáticos. Ele cobriu mais de 75.000 milhas da África até a China fazendo registros inéditos. Al-Idrisi (1100-1154) foi considerado o maior dos cartógrafos árabes e aquele de maior reconhecimento na Europa. Usou nos seus mapas sete zonas climáticas ou de latitude entre o Equador e os pólos. Descreveu detalhes geográficos a montante do rio Nilo e até mesmo das pescarias de ostras no Golfo Pérsico. Avicena (980-1036), o maior de todos os pensadores árabes, contribui com questões ligadas à origem das montanhas e sobre erosão. Um evento que mudou consideravelmente o panorama foram as novidades divulgadas pelas viagens do veneziano Marco Polo (1254-1324). Entre 1271 e 1275, ele viajou com seu pai e seu tio em direção ao oriente em missão comercial (Figura 12). A viagem teve início em 1260 no período em que o império mongol estava no apogeu sob o comando de Kublai Khan. Marco visitou o imperador no seu palácio em Shangtu (também chamado de Xanadú) e foi muito bem tratado. Retornou para a Europa e mais tarde empreendeu nova viagem para a China, em 1275. Depois de usufruir durante bom tempo da proteção do imperador, Marco Polo retornou à Veneza que, na ocasião, estava em litígio contra a rival Genova. Foi preso. E na prisão ditou suas aventuras para Rustichello da Pisa, seu companheiro de cárcere, que escreveu as anotações em francês. O livro foi lançado em 1306 e logo se tornou um sucesso. Desde então, mapas confeccionados passaram a incluir muitos dos animais levantados por ele em suas viagens. Com a difusão da bússola, inventada provavelmente pelos chineses na Antiguidade, e difundida no Mediterrâneo pelos marinheiros da cidade de Amalfi, na Campânia, no tempo das cruzadas, a cartografia ganhou grande impulso. Figura 12E. Viagem de Marco Polo em mapa portulano. Século XIII. Os mapas medievais eram de forte conteúdo teológico. Mas, sua contribuição como a representação real do espaço era muito limitada. Eram impróprios para quem desejava se orientar em viagens por terra ou por mar. No final do século XIII, apareceu na Europa um mapa de caráter mais científico, o portulano (Figura 13E), com informações mais precisas sobre acidentes geográficos, coordenadas e correntes marítimas. Nesta carta náutica primitiva criada por navegantes italianos se incluía uma rosa- dos-ventos e até uma escala de milhas. A orientação era feita em relação ao norte magnético de modo que este coincidia com o ponto cardeal norte da rosa-dos-ventos. Os portulanos catalães feitos em Barcelona ou Majorca, sob influência árabe, eram os melhores, mais bem feitos. Eles cobriam uma área geográfica bem maior do que aqueles tradicionais portulanos e são a principal fonte de informação biogeográfica do século XIV. Nesse período, um dos maiores cartógrafos era o judeu catalão, Abraham Cresques, que produziu o mapa-múndi Atlas Catalão, em 1375. Figura 13E. Mapa portulano, século XVII. Nos mapas portulanos, as linhas saídas das subdivisões das rosas-dos-ventos, as linhas de prumo, eram retas. Isto gerava sérias dificuldades para os navegantes que tinham que encarar a esfericidade da Terra. A solução para o problema viria bem mais tarde com a contribuição do cartógrafo holandês Gerardus Mercator (1525-1594) e seu sistema de projeções, no qual as relações entre paralelos e meridianos eram verdadeiras em qualquer ponto da superfície terrestre. Isto foi posto em prática por ele em um mapa-múndi, em 1569, rompendo com a tradição geográfica desde Cláudio Ptolomeu.Mais tarde, outro holandês, Abraham Ortelius (1527-1598), em 1570, publicou aquele que é considerado o primeiro mapa-múndi moderno (Figura 14E). Figura 14E. Mapa-múndi de Abraham Ortelius, de Theatrum Orbis Terrarum, 1598. Este cartógrafo é considerado pioneiro na proposta de explicação por deriva continental para a configuração atual dos continentes conforme se vê registrado no mapa. Em um comentário sobre a Atlantis (Atlântida) de Platão, publicada em seu Thesaurus geographicus, de 1596, apontou de forma original que as concordâncias nas linhas de costa do Velho e do Novo Mundo não se devem ao acaso. Ele também sugeriu que um evento catastrófico, ou seja, terremotos mais invasão de mar, levou a separação. Não apelou para o mito do dilúvio universal bíblico. Assim, a Atlantis de Platão seria equivalente à própria América e não teria afundado e sim se deslocado para oeste da Europa e África. Já, a primeira teoria biogeográfica tem inspiração bíblica. Como postulado básico temos: um centro de origem bem definido (sejam eles, o Jardim do Éden, centro primário ou original de criação divina; Monte Aratat e Torre de Babel, como centros secundários de radiação) e dispersão a partir destes centros, podendo ou não haver mudanças nos atributos dos seres vivos em função de influência direta do ambiente e herança de caracteres adquiridos. Um dos problemas maiores em termos de explicação é o das barreiras à livre dispersão. Como explicar a presença de certos animais com capacidades limitadas de dispersão em ilhas e continentes distantes separados por longas extensões de mares? No século IV, Santo Agostinho indicou que certos animais poderiam fazê-lo por conta própria, sem problemas, mas outros necessitariam de alguma ajuda externa. Ele postulou a intervenção sobrenatural: transporte feito pelos anjos. Mais, tarde outros pensadores, compartilhando da ideia de centros de origem e dispersões a longas distâncias, postularam eventos episódicos como furacões, tsunamis, troncos de árvore levados por correntes marítimas, “caronas” bem vindas em organismos com maior potencial para dispersar como explicações válidas. Deu-se início a biogeografia do incrível, do fantástico e do extraordinário. As descobertas geográficas feitas no período das grandes navegações (séculos XV e XVI) levantaram a poeira sobre questões intrigantes aceitas com base na interpretação literal da Bíblia. Várias espécies de plantas e animais, muito diferentes daquelas até então conhecidas na Europa, Ásia e África, separadas por imensas distâncias, por vezes oceânicas, foram reconhecidas, sugerindo assim vários eventos de criação e dispersão. Então, começaram a surgir opiniões heréticas. Houve um único (monotopismo) ou mais de um (politopismo) sítio de criação divina? Foram as espécies criadas de uma só vez (monogênese) ou escalonadas (poligênese) no tempo? Para complicar mais a situação, no final do século XV, constatou-se a presença de populações humanas no Novo Mundo: os índios. Isto pôs em dúvida a veracidade do ecúmeno. Teriam sido eles (os índios) também descendentes de Adão e redimidos pela vinda do Cristo? Foram criados independentemente? Uma das contribuições mais relevantes para a história da biogeografia durante o Renascimento foi a do jesuíta Joseph de D’ Acosta (1540-1600) (Figura 15) que postulou uma conexão entre a América do Norte e o bloco euroasiático via ponte de Terra. Mais tarde esta seria descoberta e chamada de Estreito de Bering. Acosta descartou a hipótese da Atlântida de Platão como uma ponte intercontinental. A sua proposta explicaria a chegada dos índios, a similaridade de faunas e floras bem como a dispersão. Ele reconheceu também o endemismo de várias espécies americanas em relação as equivalentes europeias. No contexto da sua explicação, D’ Acosta nitidamente adotou o modelo de mapa proposto Ptolomeu (i.e., oceano ao centro e continentes na periferia) para acomodar a sua hipótese. Figura 15E. Joseph de D’ Acosta (1540-1600). Retirado de http://olivercowdery.com/texts/1604Acos.htm. Outra contribuição importante neste período foi a proposta herética de Isaac La Peyrière (1594-1676) que pôs em dúvida a universalidade do dilúvio bíblico sustentando que as espécies são autóctones para as regiões onde são encontradas. Argumentou também que os chineses seriam mais antigos que os hebreus contrariando nitidamente a crença na interpretação literal da Bíblia. As grandes civilizações da aurora da humanidade cresceram em associação com grandes rios. Esses grandes rios além de contribuírem positivamente para a economia desses povos também apresentaram uma história adversa, ligada a catástrofes e inundações. Evidente que o fenômeno natural da inundação foi imortalizado em numerosos mitos e lendas, onde a ideias de punição, morte, renascimento e recompensa estavam interligadas. Para os egípcios as inundações do delta do rio Nilo correspondiam a eventos cíclicos comandados divinamente. Entre os hindus, no livro dos Vedas, com dilúvio o mundo é destruído e sucedido por outro também obedecendo a ciclos. Calculando-se a quantidade de ciclos chegaram a idade da Terra a 1.972.947.101 a.C., não tão distante dos 4.6 bilhões de anos que a ciência nos mostra, mas bem distante dos 6 a 8 mil anos proposta na idade média por certos cristão com base na interpretação literal da Bíblia. A ideia dos ciclos está evidentemente vinculada à constatação do homem da existência de fenômenos naturais periódicos (e.g., fases da Lua, ciclo das marés, estações do ano). O dilúvio universal bíblico corresponde, ao contrário, a um evento único. E certamente, o mito bíblico da Arca de Noé e o dilúvio foi aquele que mais inspirou o desenvolvimento do pensamento biogeográfico ocidental. Ele inspirou a produção de dissertações exaustivas sobre o tema, como por exemplo, a obra Arca Noe, de 1675, de Athanasius Kircher (1602-1680) (Figura 16ab). Este erudito padre jesuíta tratou melhor do que qualquer um, do modo mais rigoroso possível para o contexto de época, as extensões geográficas do dilúvio, as dimensões da Arca de Noé e seus tripulantes. Para Kirsher, o mundo teria sido criado em 4053 a.C. e o dilúvio teria ocorrido por volta de 2.400 a.C. Sustentava que o evento foi realmente universal e que durou 365 dias. A arca teria três andares, com diversos compartimentos. Mas, já prevendo alguns problemas, ao contrário de Santo Agostinho, considerou que somente mamíferos, aves e certos répteis estariam no interior dela (Figura 17). Usando uma boa hipótese ad hoc, considerou que o resto dos seres vivos surgiria por geração espontânea. Logo, não precisariam estar lá dentro. Considerando também a grande quantidade de “tipos” (espécies) desses animais privilegiados (animalia munda) que estavam na arca, formas híbridas (animalia immunda), de sangue impuro, surgiriam depois da saída da arca por cópula promíscua entre puros e impuros e secundariamente entre os impuros. Exemplos curiosos são os do leopardo (Panthera pardus) e da girafa (Giraffa camelopardalis). O primeiro seria fruto da união do pardus, um enigmático e atraeante felino macho malhado (guepardo?), campeão em relações extraconjugais, com a leoa. O segundo seria o fruto do cruzamento indesejável do pardus com a fêmea do camelo. Figura 16E. Éden e “vestígios” dilúvio universal segundo Kircher. . Acima, topografia do paraíso. Retirado de https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Arca_Noe,_topography_of_paradise,_by_A._ Kircher._Wellcome_L0013367.jpg; abaixo, mapa pós-diluviano de Athanasius Kirsher. Ao longo da história, inundações dos grandes rios que abastecem as áreas onde floresceram grandes civilizações da Antiguidade (Egito, Mesopotâmia, China), foram fenômenos naturais localizados e episódicosque causaram sérios problemas às populações. Eles foram imortalizados em vários mitos e lendas. Mas, um dilúvio universal carece de qualquer evidência histórica. A construção de uma embarcação de madeira de 300 cúbitos (cerca de 135 metros) de comprimento, mais de quatro vezes o tamanho de qualquer uma conhecida em torno de 2000 a.C., sob o comando de um patriarca, Noé, então com 600 anos, parece bastante improvável. Por exemplo, somente a partir do início do século XX, tivemos a construção de escunas que poderiam se equiparar com as dimensões da famosa Arca. Elas, inclusive, dependiam de vigas diagonais de ferro na construção para não se partirem ao meio. Só tinham autonomia para pequenas viagens costeiras. Figura 17E. Alguns animais da Arca de Noé segundo Athanasius Kircher . Por causa disso, desde então, a indústria naval começou a investir em barcos de aço. Se a interpretação literal (ou seja, não simbólica ou não metafórica) é assumida, vários problemas aparecem. Se choveu por quarenta dias a ponto de cobrir qualquer extensão de terra, as águas oceânicas seriam diluídas. Aquelas formas de organismos aquáticos com pouca tolerância a variações de salinidade estariam todas mortas. E para onde foram aquelas de vários rios do mundo? Uma explicação ad hoc seria aceitar que tirando mamíferos, aves e répteis, o resto dos animais se originaria por geração espontânea, o que sabemos que não ocorre. Como Noé teria feito para coletar animais em locais tão distantes da terra, como Austrália, Nova Zelândia, América do Norte, América do Sul? E em lugares de condições climáticas extremas como desertos e polos? Como manter um estoque de alimento durante um ano de dilúvio para suprir as necessidades de animais que comem tanto, como elefantes e leões? E o que comeriam depois da saída da Arca? Um casal de carnívoros vai procurar um casal de herbívoros e no final não restaria ninguém para contar a história. Uma inundação capaz de cobrir toda a Terra teria exigido cerca de 4.5 bilhões de km3 de água. A quantidade de vapor d’água na atmosfera é bem inferior àquela que seria necessária para existirem nuvens tão carregadas. Daí, um grande problema seria a pressão atmosférica. Ela é causada pelo peso dos gases da atmosfera pressionando sobre a superfície terrestre. O vapor d’água é bastante pesado. Para as condições do dilúvio, a pressão atmosférica ao nível do mar seria em torno de 900 atmosferas, algo equivalente à pressão que há no mar a uma profundidade de 9.000 metros. Sendo assim, qualquer coisa que estivesse sobre a superfície terrestre seria esmagada, inclusive Noé, sua Arca e todos os animais. Ainda, quando o vapor d’água se condensa para formar água líquida ocorre liberação de calor. Se as condições da interpretação literal do dilúvio ocorreram, a condensação para levar a produção de chuva a ponto de cobrir toda a Terra teria liberado altíssima quantidade de energia, algo em torno de 3.500 oC, assim fervendo as águas, aniquilando todos os seres vivos, inclusive os da Arca e sua tripulação. Então, a interpretação literalista da Bíblia tem sido descartada (salvo por correntes fundamentalistas), por muitos que trabalharam na sua êxegese. Só foi energicamente retomada em momentos nos quais a Igreja teve que “arrochar” em virtude de correntes de pensamento que estavam causando instabilidade no controle de seus correligionários e na população como um todo. Figura 18E. Cilindro com o selo representando a Epopeia de Gilgamés. O uso desenfreado de aves e mamíferos no reconhecimento de padrões biogeográficos é um legado do mito da Arca e do dilúvio universal. Somente eles, as “formas mais perfeitas”, nos prestariam para “desvendar” os problemas biogeográficos. O resto não nos daria pista alguma. Henry Creswicke Rawlinson (1810-1895) foi um arqueólogo britânico, especialista em povos da Mesopotâmia que pela primeira vez traduziu e decifrou documentos de escrita cuneiforme. Mais tarde, coube a George Smith (1840-1876), um famoso assiriologista e aluno de Rawlinson, o início da tradução de dois épicos contidos nas placas de argila da biblioteca de Assurbanipal (668 a 631 a.C.): Epopeia da Criação (=Enuma Elish) e Epopeia de Gilgamés. A Epopeia de Gilgamés nos revelou informações importantes. Na plaqueta de número XI (a do dilúvio), mostra que os deuses queriam punir a humanidade com um imenso dilúvio. O deus Ea decidiu avisar ao patriarca Ut-napistim para que ele e sua família construíssem uma barca e colocasse nela casais (“sementes”) de animais das proximidades. Por seis dias e sete noites o dilúvio castigou um ponto da Terra. Ut-napistim soltou inicialmente uma pomba, depois uma gaivota e por fim, um corvo. Só o último não retornou. Qualquer semelhança com a narrativa bíblica não é mera coincidência. No entanto, a idade da Epopeia de Gilgamés é anterior a qualquer documento bíblico. E o dilúvio relatado teria ocorrido em carácter local, causado pela inundação casada com o transbordamento de um rio. Não era um dilúvio universal. A descoberta da Epopeia da Criação e a da Epopeia de Gilgamés (2.700-2.600 a.C.) (Figura 18E) foram impactantes uma vez que foi demonstrado que a Bíblia não seria o documento mais antigo conhecido e que ainda absorvera mitos de outros povos, particularmente os da Mesopotâmia (e.g., sumérios, acádios, babilônios). O naturalista sueco Carolus Linnaeus (1707-1778) (Figura 19E), criacionista e inicialmente fixista, formulou uma hipótese biogeográfica com base em centro de criação e dispersão das biotas, mas não adotou a narrativa literal do dilúvio. Concedeu ao mito uma nova leitura, integrando o episódio do Éden com o do Dilúvio. Postulou que o Éden seria uma ilha paradisíaca localizada nos trópicos circundada pelo oceano primordial. Lá teria ocorrido um único evento de criação para as espécies. Curiosamente sua proposta não mencionava animais. Para ele, as espécies de plantas estariam distribuídas altitudinalmente na ilha espelhando suas distribuições latitudinais e de acordo com uma perfeita interação ecológica. Com o abaixamento do nível do mar, as espécies recém-criadas puderam dispersar para outros locais da superfície terrestre onde as condições ecológicas seriam similares. Assumindo a premissa que as espécies foram criadas em algum ponto e que são permanentes e imutáveis, poderíamos deduzir que em lugares diferentes do globo terrestre encontraríamos as mesmas espécies. Mas, não é o que ocorre. Figura 19E. Carolus Linnaeus (1707-1778). Mais tarde, em 1777, o zoólogo Eberhardt Zimmermann, na sua Specimen Zoologiae geographicae quadrupedum, na qual introduziu o termo “zoologia geográfica”, também contribuiu para a história da biogeografia, ao criticar a teoria de Linnaeus, que sustentava um único evento de criação no tempo e no espaço. Ao contrário, Zimmermann sustentava que se assim fosse, o primeiro casal de carnívoros X teria devorado o primeiro de herbívoros Y e, assim por diante, causando uma verdadeira catástrofe ecológica. Para ele seria mais lógico pensar que Deus teria criado cada animal na área em que vive atualmente, a partir de grande quantidade de indivíduos e em condição de perfeito equilíbrio ecológico. Ou seja, defendia a ideia de criação múltipla e simultânea para as biotas. Já um botânico, Karl Willdenow (1765-1812), sustentava também que ao invés da existência de uma única ilha primordial, como argumentava Linnaeus, a criação divina teria sido feita no topo de várias ilhas (ou montanhas), separadas pelo mar universal. As espécies depois de criadas teriam se espalhado pela superfície terrestre à medida que o mar foi recuando. A determinação das áreas de endemismo de plantas estaria ligada a estas montanhas originais. Ele identificou várias dessas regiões. Foi a primeira tentativa de divisão fitogeográficado globo terrestre. Georges Louis Leclerc de Buffon (1707-1788) era contemporâneo e rival de Linnaeus. Ele não era um criacionista propriamente dito, nem fixista, mas sim um transformista comedido. Ele acreditava que na história das espécies, elas, independentemente do grau de complexidade, surgiriam espontaneamente na natureza em algum ponto restrito. Como já dito, devemos a ele a Lei de especiação geográfica que, como já visto, estabelece que em lugares diferentes da superfície terrestre com condições ecológicas similares não encontramos os mesmos táxons, evidenciando-se assim o endemismo. Mas, por outro lado, Buffon era etnocentrista e aplicou suas tendenciosas ideias em uma teoria holarticista para a história dos mamíferos. Eles teriam seu centro de origem ou de criação no Hemisfério Norte e de lá teriam dispersado para outros locais da superfície terrestre se deparando com novas condições climáticas e tendo que se acostumar com outros recursos alimentares. Nesse caminho, as espécies de mamíferos sofreriam mudanças até se transformarem gradualmente. Ele acreditava que estas mudanças levariam a uma seletiva degeneração das espécies. Porém, para espécies de outros tipos de animais (e.g., insetos, peixes), Buffon acreditava que na América sofreriam grande desenvolvimento e até aumentariam em número. Figura 20E. Georges Louis Leclerc de Buffon (1707-1788). Reitrado de https://micro.magnet.fsu.edu/optics/timeline/people/buffon.html Comparando os mamíferos do velho e novo mundo, Buffon não descartou a hipótese de um centro de origem, mas refutou a hipótese da imutabilidade das espécies. Buffon em sua obra Histoire naturelle (iniciada em 1749, composta de 36 volumes) argumentava que Novo e Velho Mundo tiveram conexão no passado possibilitando livre trânsito de animais. O mesmo aconteceria com África e América do Sul. Já em “Épocas da Natureza”, considerado o primeiro grande corpo teórico para se explicar mudança da forma no tempo e no espaço, postulou sete épocas de criação, tentando conciliar suas ideias com as da Teologia cristã e, portanto, salvar a sua cabeça. Na primeira época, onde relata a formação da Terra e dos planetas, postula que a Terra surgiu de uma bola de fogo. Era completamente desabitada. Por resfriamento gradual chegou a condição atual. E considerando a taxa de resfriamento, concluiu que esta resfriaria por completo por volta de 160.000 anos. Sendo assim, na época em que Buffon escreveu seu livro, a Terra teria aproximadamente 75.000 anos! Faltariam cerca de 93.000 anos para o Apocalipse. Não é de se estranhar que suas ideias entraram em conflito com aquelas difundidas pela Igreja que sustentava a idade da Terra em torno de alguns milhares de anos. Na segunda época, Buffon explica que as montanhas e continentes surgiram por enrugamento em decorrência do resfriamento da superfície da Terra. Após, 25.000 anos depois, as águas começaram a se condensar e a cair sobre a superfície da Terra através de chuvas torrenciais. Na terceira época, os mares cobriram todos os continentes. Daí encontrarmos, segundo Buffon, fósseis nas montanhas. Estes fósseis seriam o testemunho dos primeiros animais criados. Nesta época, o bloco euro-asiático estava unido com a América do Norte. Aos poucos o mar superficial é sorvido por espaços no interior da Terra e em consequência disso, os continentes emergiram. A vida terrestre criada no topo de uma montanha no continente euroasiático pôde então dispersar e ocupar outras regiões do planeta recém-emersas. Na quarta época, relata a ação de vulcões moldando a paisagem. Na quinta época, apareceriam os animais boreais. Os fósseis indicariam a direção da rota de dispersão. Na sexta época ocorreu a separação completa dos blocos Euroasiático e da América do Norte. E, por fim, na sétima época, surgiu o homem na Ásia, berço das mais antigas civilizações. Buffon influenciou vários pré-evolucionistas (transformistas), entre eles Lamarck, seu protegido, e Eramsus Darwin, o avô de Charles Robert Darwin. Um dos pesquisadores mais admirados por Charles Darwin foi o Barão de Humboldt (1769- 1859) que faleceu, curiosamente, no ano do lançamento de Origem das espécies(Figura 21E). Figura 21E. Geographie plantarum de Humboldt. Detalhe para a zonação da montanha com diferentes assembléias de plantas. Humboldt teve uma preocupação maior com a quantificação dos fatores que se distribuem com a altitude. Melhor que outros, demonstrou que há um paralelo entre sucessão altitudinal e latitudinal nas associações vegetais. A distribuição das espécies de plantas da base ao topo de uma montanha se apresenta em zonas climáticas distintas. Em releitura das cinco zonas climáticas de Parmênides, introduziu a ideia de associações vegetais com clima e outros fatores abióticos, que contribuiu muito para o desenvolvimento do conceito moderno de bioma. O botânico suíço Augustin Pyrame De Candolle (1778-1841) (Figura 22) foi o primeiro autor a distinguir claramente os objetivos da biogeografia ecológica da biogeografia histórica. Em sua Géographie Botanique, de 1820, chamou estudo das estações aquele referente às condições ambientais (solo, clima, altitude, temperatura) que determinam a permanência de uma espécie Por outro lado, indicou que há um estudo alternativo, referente às causas históricas (origem, distribuição gradual, condições geográficas e geológicas, ou seja, aquelas que não mais existem no tempo atual) para explicar o aparecimento das espécies onde estão e o grau de endemicidade. É o que chamou de estudo das habitações. Ele também, de forma pioneira, dividiu a Terra em 20 diferentes províncias fitogeográficas, de acordo com o grau de endemicidade e história dos diferentes grupos vegetais. Salientou que há regiões botânicas reconhecidas “essencialmente”, ou seja, com base em uma ou várias espécies “aborígenes” (próprias) e outras, reconhecidas “legitimamente”, por conter um conjunto único de espécies, mas nenhuma “aborígene”. Ele desenvolveu ainda mais estes observações até chegar ao conceito de endemismo, “aquelas espécies que crescem numa única região”. Ele criticou a ideia de degeneração ao longo do tempo e do espaço introduzida por Buffon, uma vez que espécies transplantadas de um lugar para outro com condições favoráveis, não se modificam, crescem tranquilamente. E ainda, defendeu causas históricas para o endemismo, porque mesmo tendo condições para vingar em lugares distantes com condições de clima e solo favoráveis, elas nunca se encontram lá em estado selvagem. De Candolle difundiu a proposta de que haveria várias áreas de criação. Isto inspirou zoólogos na tentativa de dividir a Terra em centros de criação para os animais. Figura 22E. Augustin Pyrame De Candolle (1778-1841). Retirado de http://www.elhogarnatural.com/Botanicos.htm. O barão Georges Cuvier (1769-1832) (Figura 23E) que acreditava que as espécies eram permanentes e imutáveis postulava que ao longo da história da Terra ocorreram grandes catástrofes ou revoluções e renovação de fauna e flora com novas criações divinas. Para Cuvier foram quatro grandes eventos de criação. Mais tarde, o naturalista francês Alcide D’Orbigny (1802-1857) acrescentou que foram 27, com base na história geológica dos moluscos (Figura 23E). Figura 23E. A) Georges Cuvier (1769-1832), retirado de https://todayinsci.com/C/Cuvier_Georges/CuvierGeorges-Quotations.htm; B) Alcide D’Orbigny (1802-1857), retirado de https://www.britannica.com/biography/Alcide- Dessalines-d-Orbigny. A grande maioria dos antigos geólogos do século XIX e início do século XX acreditava que os continentes sempre estiveram na mesma posição em que se encontram nos mapas atuais. O máximo que admitiam era a elevação ou abaixamento do nível do mar, possibilitando menor oumaior extensão continental. Uns, rotulados de extensionistas, recorriam a hipótese de existência de antigas pontes de terra intercontinentais, então submersas. Outros, rotulados de permanenticistas, apostavam na chance e no potencial diferencial de cada espécie para dispersar. Sendo assim, a explicação de padrões biogeográficos por dispersão saltatória fazia total sentido no contexto de época. Assim, os organismos funcionariam como os componentes dinâmicos da paisagem enquanto que o espaço geográfico seria praticamente estático ou permanente. Esta é a ideia de espaço absoluto. Pode-se dizer que a aceitação da ideia de espaço absoluto vingou tendo em vista a ampla influência do geólogo escocês Charles Lyell (1797-1875). Em seu livro Princípios de Geologia estabeleceu as bases do uniformitarismo cuja proposta maior, o atualismo, é a de que os fenômenos que ocorreram no passado podem ser explicados por processos identificados no presente. Não há necessidade de invocar o sobranatural tal como o catastrofismo e criações sucessivas de Cuvier. Ele também rejeitou definitivamente o modelo da Ilha-montanha primordial de Linnaeus uma vez que nunca se demonstrou a existência de um oceano universal e que desde a primeira aparição de terra firme ocorreram muitas substituições completas de plantas e animais, demonstrando-se cada vez mais o fato da extinção. As espécies surgiriam e se extinguiriam no tempo geológico paulatinamente. Lyell acreditava que as mudanças que ocorrem no tempo geológico são, via de regra, graduais, lentas e contínuas. Em contraste com Cuvier, sustentava que não ocorreram períodos destacados de criação nem de extinção. As grandes mudanças se explicam pelo acúmulo de mudanças pequenas. Eventos repentinos e devastadores, como inundações e terremotos, são episódicos e de ação local. Para a biogeografi,a Lyell sustentava que como regra geral tem-se a existência de áreas com identidade biótica própria e que a dispersão como causa seria verificada em casos excepcionais. No entanto, a causa da existência das áreas de endemismo foi colocada de lado. A B O geólogo americano James Dana (1813-1895) foi um dos pioneiros da Zoogeografia Marinha. Usou principalmente isotermas, coordenadas geográficas e variação das correntes marítimas para melhor estabelecer os limites das regiões (“províncias”) e subregiões. Dividiu os oceanos em cinco grandes reinos: Americano (Ocidental), incluindo América ocidental e oriental; Afro-Europeu, costa da África ocidental e Europa; Oriental, incluindo as costas da África oriental, Índias orientais, Ásia oriental e meridional e Pacífico; Ártico e Antártico. Figura 24E. Regiões florísticas globais inspirada em A. De Candolle (seg. Good, 1964). Phillip L. Sclater (1829-1913) reconheceu padrões biogeográficos, dividindo a Terra em seis grandes regiões biogeográficas, com base na distribuição de grupos de aves. Mas chamou a atenção para o fato de que não basta o reconhecimento dessas divisões; seria importante uma tentativa de explicá-las. Dada três áreas, duas estão mais relacionadas entre si do que com a terceira. Era a introdução do método comparativo na biogeografia, tal qual se verificaria no século XX, com Willi Hennig, na Sistemática Biológica. No entanto, o que se viu desde então foi uma preocupação maior com a delimitação e subdivisão de regiões pelos naturalistas com base nos seus grupos taxonômicos de interesse. Sclater dividiu o globo terrestre nos seguintes reinos zoogeográficos (“ornitogeográficos”): Creatio neogeana (regiões Neotropical e Neártica) e Creatio palaeogeana (regiões Etiópica, Indiana ou Oriental, Australiana e Paleártica). Estabeleceu os limites entre estas regiões. Indicou também a porcentagem de espécies endêmicas para cada uma delas (Figura 25E). Figura 25E. Regiões zoogeograficas de P. Sclater (seg. R. Von Ihering, 1939). Alfred Russel Wallace (1823-1913) reuniu as informações até então disponíveis sobre a distribuição geográfica de vários animais, principalmente vertebrados terrestres, condensando-as em uma publicação – The geographical distribution of animals with a study of the relations of living and extinct faunas as elucidating the past changes of the earth’s surface -, de 1875, que se tornou referência durante muitos anos e que continha sua proposta de classificação zoogeográfica. Ele usava indistintamente os critérios de similaridade e diferença, ainda exclusividades de ocorrência e ausências como critérios válidos no reconhecimento destas regiões. Wallace era originalmente extensionista, acreditava que as áreas deveriam ser reconhecidas levando-se em consideração eventos do passado geológico. Fez algumas correções no modelo de Sclater na tentativa de melhor fixar os limites (zonas de transição) e ainda propôs subdivisões. É famosa a sua tentativa de melhor caracterização da zona de transição entre as regiões Oriental e Australiana, posteriormente conhecida Linha de Wallace traçada entre Bali (região Oriental) e as ilhas Celebes e Lombok, na região Australiana. Esta curiosamente é definida em função da presença de táxons que não podem ser atribuídos nem a região Oriental nem para a Australiana e que apresenta características intermediárias, ou seja, sobreposição de elementos biogeográficos diferentes em associação com rarefação progressiva ao longo de gradientes opostos (Figura 26E). Curiosamente, Wallace antes da publicação de Origem das Espécies de Darwin, por várias vezes indicou vicariância como fator relevante para a origem de novas espécies, ao promover disjunção de populações aparentadas que sofreriam divergência e diferenciação ao longo do tempo. A aceitação do darwinismo por parte de Wallace, por outro lado, condenou a biogeografia a explicações no cenário permamentista, com a dispersão saltatória e aspectos ecológicos como carros-chefe. Joseph Daton Hooker (1817-1911) combinou explicações por dispersão e vicariância para explicar padrões de distribuição de plantas. Era um extensionista, partidário das pontes de terra que ocorreriam em função de flutuações no nível do mar. Mesmo amigo de Darwin, que era permanenticista, foi um dos pioneiros em apontar que hipóteses de vicariância são boas alternativas para as de dispersão. A influência de De Candolle, Hooker, Sclater, Dana e Wallace foi imensa na história da biogeografia descritiva. Passou a ser comum a divisão da Terra em unidades biogeográficas. Houve proposta de aglutinação das seis grandes regiões em grandes reinos. Assim, alguns autores propuseram uma Lemurogeia (regiões Etiópica mais Oriental, com base no compartilhamento de vários grupos de prossímios), Arctogeia (também chamado Holártico, ou seja, Neártica mais Paleártica, com base na presença de ursos) e Didelfogeia (Neotropical mais Australiana, com base nos marsupiais). Outros acharam por bem um arranjo com Notogea (Australiana), Neogea (Neotropical) e Arctogea (resto do mundo). Figura 26E. Mapa mostrando várias pontes de terra transcontinentais como era costume entre os extensionistas. Segundo Hermann Von Ihering, em C. Delgado de Carvalho (1913). Para Charles Robert Darwin (1809-1882), permanenticista, as biotas seriam o resultado de convergência de histórias particulares (via dispersão) de táxons dentro de um contexto de espaço absoluto. O estudo biogeográfico para ele residia na identificação de centros de origem e a proposição de uma rota de dispersão com base em aspectos ecológicos e na capacidade de dispersão. A partir do centro de origem, gradualmente as espécies mais adaptadas deslocariam as menos adaptadas até o limite de distribuição do táxon. Para ele, ecologia seria a chave para desvendar padrões biogeográficos e os fósseis seriam essenciais no reconhecimento da rota de dispersão.Muito antes da publicação de Origem das Espécies, notamos iniciativas pioneiras para explicar o processo de formação de novas espécies via isolamento geográfico e que certamente inspiraram Charles Darwin e Wallace. Talvez a mais antiga e contundente explicação tenha sido a da Christian Leopold von Buch (1774-1853), um paleontólogo alemão, amigo de Von Humboldt, que em um livro de 1825, Physikalische Beschreibung des Canarischen, sobre a fauna e a flora das Ilhas Canárias, descreveu sucintamente o processo de especiação geográfica: “Os indivíduos de um gênero se expandem sobre os continentes, se deslocam até lugares distantes, formam variedades (segundo as diferenças das localidades no alimento e no solo) que, devido a sua segregação (isolamento geográfico) não podem cruzar-se com outras variedades e deste modo retornar ao tipo principal original. Finalmente, estas variedades se tornam constantes e se transformam em espécies distintas. Posteriormente, podem tornar a alcançar o limite de outras variedades que se transformaram de forma análoga e as duas não se cruzam e se comportam como duas espécies verdadeiras diferentes”. Mais tarde, em 1868, Moritz Wagner (1813-1887) chegou a conclusões similares e indicou duas espécies intimamente relacionadas distribuídas em áreas geográficas disjuntas como vicariantes. Ele descreveu: “uma espécie incipiente surgirá quando uns poucos indivíduos transgredirem os limites de sua área de distribuição” e “a formação de uma nova raça nunca acontecerá sem uma longa e continua separação dos colonizadores em relação a outros membros da espécie”. As ideias de Darwin e Wallace inspiraram o desenvolvimento de uma escola de pensamento em biogeografia tendo como base centro de origem e dispersão saltatória: a escola da biogeografia histórica dispersionista. O dispersionismo pode ser sintetizado em cinco princípios: Os táxons surgem em áreas restritas da superfície terrestre (centro de origem), a partir da qual ocorre especiação subsequente. O centro de origem pode ser estimado de acordo com critérios específicos. Dentro do ponto de vista darwinista, as espécies novas evoluem e se dispersam, deslocando as mais primitivas para a periferia do centro de origem, de forma que os táxons mais modernos se encontram mais próximos do centro de origem e os mais antigos distantes do mesmo. Os animais e as plantas conseguem atingir áreas mais distantes por dispersão em função de suas capacidades individuais. O registro fóssil é imprescindível para o esclarecimento da história no tempo e no espaço, de forma que os fósseis mais antigos estão próximos do centro de origem. Deve-se levar em conta que o fenômeno da dispersão, ou translocação geográfica, pode ser abordado em diferentes níveis de generalidade, com diferentes significados biológicos: dispersão organísmica - relativa aos mecanismos intrínsecos (adptativos) que permitem o espalhamento de um organismo individual em dada área; dispersão específica - expansão da área de distribuição de um táxon ao nível de espécie; dispersão da biota - expansão da área de distribuição de táxons pela sobreposição de uma barreira (i.e., dispersão saltatória) ou pela ausência dela (i.e., geodispersão). Figura 27E. Centro de origem e rota de dispersão das antas no tempo geológico (segundo Mathew, 1915). Considerando que dispersão é uma realidade no nível de organismo, os biogeógrafos dispersionistas extrapolaram, postulando rotas intercontinentais e transoceânicas para as espécies recentes e extintas. A rota tem início em um centro de origem. Porém, os critérios para sua determinação são controversos e, muitas vezes contraditórios. Entre eles, destacam-se: Área de maior diversidade taxonômica e ecológica Área de maior abundância de indivíduos Local onde se encontra a espécie mais recente do grupo (método darwinista) Local onde se encontram os fósseis mais antigos do grupo Local onde se encontram indivíduos de maior tamanho Direção indicada por rotas de migração anuais (e.g., para aves migratórias) Continuidade e direção de clinas (variações graduais de um caráter no espaço geográfico) Área na qual se encontra o táxon mais basal ou primitivo (i.e., método de Hennig) Figura 28E. Interpretações diferentes quanto à determinação do centro de origem, segundo Hennig (com as espécies mais basais no cladograma) e para Darwin (com as mais avançadas). Danielle Rosa (1857-1944) foi um zoólogo italiano que formalizou depois de Darwin uma teoria coerente, alternativa, de evolução orgânica, a teoria da Hologênese. Assumia que a evolução era determinada por causas internas e que se espelhava na divisão dicotômica que se observa no desenvolvimento do embrião. Esta era refletida numa assimétrica relação filogenética, com ramo retardado e avançado da dicotomia envolvendo ancestral e seus descendentes. As causas internas poderiam ser hoje explicadas por mecanismos determinados geneticamente pelo kit herdado com todas as restrições e potencialidades para a mudança morfológica. Rosa postulava que na história geográfica e uma espécie, ao invés da assumir que a espécie ancestral surgiria num pequeno ponto da superfície terrestre, ela teria distribuição cosmopolita. A partir de então passaríamos a observar os descendentes em áreas cada vez menores, numa história moldada por dispersão e eventos geológicos. Suas ideias influenciariam, mais tarde, a formalização de propostas alternativas para sistemática biológica (com Willi Hennig e seu cladismo) e para a biogeografia histórica. O paleomastozoólogo George Gaylord Simpson (1902-1984), um dos dispersionistas mais famosos, reconheceu três tipos de rotas de dispersão para grupos de espécies com base no grau de similaridade faunística: corredor: São aspectos geográficos que facilitam a dispersão; ocorrem quando as condições ecológicas em cada extremidade da área de distribuição são similares, de forma que o livre fluxo é favorecido ao longo dessa área, contribuindo para uma maior homogeneidade (alta similaridade); filtro: onde a mescla de condições ecológicas favoráveis e desfavoráveis restringiria o livre fluxo e somente formas bem adaptadas teriam condições de alcançar os extremos, contribuindo para uma baixa similaridade, como por exemplo, o istmo do Panamá e o Saara; páreo (sweepstake route): onde a distância e as condições ecológicas nas regiões intermediárias seriam muito restritivas, de modo que a chance de cruzar a(s) barreira(s) seria muito rara. Aos poucos, vários problemas foram detectados com o dispersionismo clássico: Se toda disjunção é explicada por dispersão, então padrões biogeográficos vicariantes nunca serão descobertos; Biota é resultante somente do somatório de potencialidades de dispersão em larga escala de linhagens individuais; Vários critérios, muitas vezes contraditórios, para se determinar o centro de origem; Biogeografia do vácuo: admite-se que podem existir áreas inicialmente mais vazias de fauna e flora; Falta de predizibilidade já que se baseiam em narrativas para a história biogeográfica de cada grupo taxonômico. O dispersionismo perdurou e foi refinado dentro do contexto da biogeografia ecológica, no final da década de 1960, com o modelo quantitativo de Biogeografia de Ilhas, iniciada por Robert MacArthur e Edward Wilson, e ainda em voga. A colonização de ilhas segue uma curva similar àquela do crescimento de uma população, daí a grande relação com a teoria da biologia populacional. A composição está em um constante estado de fluxo e a quantidade de espécies nas ilhas é menor que as das áreas continentais mais próximas. Em dado tempo, pode haver uma alta reposição com alta porcentagem de extinçãopor emigração balanceada pela imigração. A quantidade de espécies no equilíbrio permanece constante. Um dos maiores impulsos para a identidade da biogeografia histórica moderna foi a aceitação do paradigma da Teoria de Deriva Continental por Tectônica de Placas. Já nos tempos de Darwin, o padre Antonio Snider- Pellegrini, em 1858, tinha reunido evidências geológicas e paleontológicas sustentando a proposta de separação dos continentes (Figura 29). Ele foi primeiro a figurar explicitamente condição pré e pós separação. Somente no início do século XX a ideia seria retrabalhada, com mais evidências, por F.B. Taylor, nos Estados Unidos, e Alfred Wegener, na Alemanha. Figura 29E. Primeira ilustração da deriva de continentes, segundo Snider (1858). No final da década de 1940, Léon Croizat (1894-1982) (Figura 30E), botânico italiano, desenvolveu um método próprio, intitulado pan-biogeografia (Figura 31E), para a recuperação de padrões biogeográficos replicados (chamados traços generalizados) por elementos de biotas, explicando-os de forma coerente segundo processos históricos subjacentes. Nesse contexto, ele resgatou o conceito de vicariância como uma alternativa para a dispersão. Argumentava que vicariância revela história comum. Então, hipóteses baseadas em vicariância seriam testáveis, enquanto que aquelas baseadas em dispersão, não. Nesse contexto, distinguiu duas fases na história biogeográfica de uma biota: mobilismo e imobilismo. Na primeira, imperaria a dispersão; na segunda, a vicariância. Croizat se posicionou contra a aceitação de centros de origem e rotas promovidas por dispersão saltatória. A dispersão admitida por Croizat é a que hoje chamamos de geodispersão. Figura 30E. Léon Croizat (1894-1982), retirado de http://www.azquotes.com/author/23441- Leon_Croizat. Para Croizat, evolução é constituída de três vetores: forma, espaço e tempo. Por forma, subentende- se todo e qualquer atributo intrínseco de um organismo capaz de sofrer transformação ao longo do tempo. Em contrapartida, as áreas onde esses organismos são encontrados também se transformam. As mudanças nos atributos e as áreas que abrigam organismos estão interligadas. Daí Croizat chamá-las form-making ou de diferenciação da forma. Para ele, Terra e sua biota evoluem em conjunto, como um imenso organismo, antecipando a hipótese Gaia de James Lovelock. Sendo assim, o conceito de espaço para Croizat era bastante diferente daquele assumido por Darwin e seus seguidores. Para Croizat, espaço é propriedade da matéria. Quando se altera o espaço, muda a matéria. É o que chamamos de espaço relativo. Com a introdução desse conceito em biogeografia, Croizat pôs em cheque a hipótese vigente de uma Terra cuja história seria independente daquela dos seres vivos, decorrente da aceitação do espaço absoluto. A relevância das ideias de Léon Croizat está para a Biogeografia como as do entomólogo alemão Willi Hennig (1913-1976) está para a Sistemática Biológica. Croizat libertou a biogeografia do ranço dispersionista, enquanto que Hennig (1966) libertou a sistemática da busca por "elos perdidos". E a integração das ideias de Croizat e de Hennig contribuiu para uma biogeografia com forte metodologia explícita embutida. Figura 31E. Mapa-múndi mostrando, segundo método manual pan-biogeográfico, traços generalizados indicando relações históricas entre diferentes biotas de áreas continentais. Nós biogeográficos (áreas complexas indicadas pela convergência de traços) aparecem como círculos amarelos numerados. No final da década de 1970, três pesquisadores, Gareth Nelson, Norman Platnick e Donn Eric Rosen, do American Museum of Natural History, lideraram um movimento revolucionário visando integrar o Cladismo de Willi Hennig com a Pan-biogeografia de León Croizat tendo a filosofia de Karl Popper como pano de fundo. Com isso surgiu a Biogeografia Vicariante. Para saber mais... BROWNE, J. 1983. The Secular Ark. New Haven and London: Yale University Press. GALLO, V. & FIGUEIREDO, F.J. 2004. Paleobiogeografia. pp. 247-266. In: Carvalho, I.S. (ed.) Paleontologia. Rio de Janeiro, Ed. Interciência. GEORGE, W. 1963. Animal Geography. London: Heinemann. GEORGE, W. 1969. Animals and Maps. London: Secker & Warburg. NELSON, G. & N. PLATNICK. 1981. Systematics and Biogeography: Cladistics and Vicariance. New York: Columbia University Press. PAPAVERO, N.; D.M. TEIXEIRA & L.R. PRADO. 2013. História da Biogeografia: Do Gênesis à primeira metade do século XIX. Rio de Janeiro: Technical Books.. WILLIAMS, D.M. & M. EBACH. 2008. Foundations of Systemarics and Biogeography. New York: Springer
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