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História do Brasil Luís Bustamante 1 História do Brasil Luís Bustamante 2 Índice: 1. A Expansão Marítima Portuguesa ............................................................................ 7 1.1 A recuperação européia no século XV ............................................................. 7 1.2 A Formação Política de Portugal...................................................................... 7 1.3 O périplo africano............................................................................................. 9 1.4 O caminho das especiarias.............................................................................. 11 1.5 O império marítimo português ....................................................................... 12 2 Os Primeiros Tempos da Colonização ................................................................... 15 2.1 Os povos indígenas antes da chegada dos europeus....................................... 15 2.2 O período pré-colonial (1500-1532)............................................................... 16 2.3 As Capitanias Hereditárias ............................................................................. 17 2.4 O Governo Geral ............................................................................................ 18 2.5 Os jesuítas na Colônia .................................................................................... 19 2.6 A invasão francesa do Rio de Janeiro............................................................. 19 3 Economia e Sociedade no Brasil Colônia .............................................................. 21 3.1 Controvérsias sobre a sociedade colonial ....................................................... 21 3.2 Estado e Igreja na Colônia.............................................................................. 21 3.3 A Escravidão Colonial.................................................................................... 22 3.3.1 A Escravidão dos Índios ......................................................................... 22 3.3.2 A Escravidão dos Africanos ................................................................... 23 3.3.3 Ideologia e Economia da Escravidão...................................................... 24 3.3.4 A Vida dos Escravos .............................................................................. 25 3.4 Economia Colonial ......................................................................................... 26 3.5 A Economia Canavieira.................................................................................. 28 3.5.1 A Sociedade Açucareira ......................................................................... 30 3.5.2 A pecuária no sertão ............................................................................... 31 4 O Brasil no Século XVII ........................................................................................ 32 4.1 O Brasil no Tempo dos Filipes (1580-1640) .................................................. 32 4.1.1 O Fim da Dinastia de Avis ..................................................................... 32 4.1.2 A Conquista do Norte do Brasil ............................................................. 32 4.1.3 As Missões Jesuítas no Centro Sul ......................................................... 33 4.2 O Brasil Holandês........................................................................................... 34 4.2.1 A Guerra dos Oitenta Anos .................................................................... 34 4.2.2 A Guerra do Açúcar no Nordeste ........................................................... 34 4.2.3 O período de Nassau............................................................................... 35 4.2.4 A Restauração Pernambucana ................................................................ 36 4.3 As Bandeiras Paulistas ................................................................................... 36 4.3.1 As Expedições de Apresamento Indígena .............................................. 36 4.3.2 O Papel da Escravidão Indígena............................................................. 37 4.3.3 A Conquista Territorial do Interior......................................................... 38 5 O Brasil no Século XVIII ....................................................................................... 40 5.1 Sociedade e Economia da Mineração............................................................. 40 5.1.1 A Colonização das Minas ....................................................................... 40 5.1.2 As Minas e o Império Português ............................................................ 40 5.1.3 A economia brasileira durante a mineração. .......................................... 41 5.1.4 A Economia Mineira .............................................................................. 42 5.1.5 O Barroco Mineiro ................................................................................. 42 História do Brasil Luís Bustamante 3 5.1.6 A Economia de Abastecimento .............................................................. 43 5.2 A Crise do Império Português ........................................................................ 43 5.2.1 A Crise do Antigo Regime ..................................................................... 43 5.2.2 Os Tratados de Limites........................................................................... 44 5.2.3 As Reformas de Pombal ......................................................................... 45 5.3 As Sedições na Colônia. ................................................................................. 46 5.3.1 As Luzes e a Contestação do Absolutismo............................................. 46 5.3.2 A Inconfidência Mineira......................................................................... 47 5.3.3 A Conjuração dos Alfaiates.................................................................... 49 6 Independência e Primeiro Reinado......................................................................... 51 6.1 A Corte Portuguesa no Brasil ......................................................................... 51 6.1.1 A Transferência da Corte........................................................................ 51 6.1.2 A Política Joanina................................................................................... 51 6.1.3 Transformações culturais........................................................................ 53 6.1.4 A Revolução Pernambucana................................................................... 54 6.2 A Independência da Brasil.............................................................................. 55 6.2.1 A Revolução Liberal do Porto................................................................ 55 6.2.2 O Processo da Independência ................................................................. 56 6.2.3 A Guerra da Independência .................................................................... 58 6.2.4 O reconhecimento internacional da Independência................................ 59 6.3 O Primeiro Reinado ........................................................................................ 60 6.3.1 A Transição............................................................................................. 60 6.3.2 A Confederação do Equador................................................................... 61 6.3.3 A Guerra da Cisplatina ........................................................................... 62 6.3.4 Abdicação de Dom Pedro I..................................................................... 63 7 O Segundo Reinado ................................................................................................64 7.1 O Período Regencial ....................................................................................... 64 7.1.1 O Avanço Liberal ................................................................................... 64 7.1.2 O Regresso Conservador ........................................................................ 66 7.2 As Revoltas do Período Regencial ................................................................. 66 7.2.1 A Cabanagem ......................................................................................... 67 7.2.2 A Revolta dos Malês .............................................................................. 67 7.2.3 A Sabinada.............................................................................................. 68 7.2.4 A Balaiada .............................................................................................. 68 7.2.5 A Guerra dos Farrapos............................................................................ 69 7.2.6 A Permanência da Unidade .................................................................... 70 7.3 O Governo Pessoal de Dom Pedro II ............................................................. 71 7.3.1 A Maioridade.......................................................................................... 71 7.3.2 A Revolta Liberal de 1842...................................................................... 72 7.3.3 A Revolução Praieira.............................................................................. 72 7.3.4 Parlamentarismo às Avessas................................................................... 73 7.4 Café, Ferrovias e Imigração............................................................................ 74 7.4.1 A Expansão do Café ............................................................................... 74 7.4.2 Modernização Capitalista ....................................................................... 75 7.4.3 A Cafeicultura no Oeste Paulista............................................................ 76 7.4.4 Os Imigrantes.......................................................................................... 77 7.5 A Guerra do Paraguai ..................................................................................... 78 7.5.1 As Interpretações da História ................................................................. 78 História do Brasil Luís Bustamante 4 7.5.2 Relações Internacionais no Prata............................................................ 79 7.5.3 A Ofensiva Paraguaia ............................................................................. 80 7.5.4 A Guerra de Posições ............................................................................. 81 7.5.5 A Ofensiva do Império ........................................................................... 81 7.5.6 Conseqüências do Conflito..................................................................... 82 7.6 A Abolição...................................................................................................... 82 7.6.1 O Fim do Tráfico Negreiro..................................................................... 82 7.6.2 O Fim da Escravidão .............................................................................. 83 7.7 A Proclamação da República.......................................................................... 86 7.7.1 A Crise do Império ................................................................................. 86 7.7.2 O Republicanismo .................................................................................. 86 7.7.3 A Crise com a Igreja............................................................................... 87 7.7.4 A Crise Militar........................................................................................ 88 7.7.5 O Golpe Republicano ............................................................................. 89 8 A Primeira República ............................................................................................. 91 8.1 A República da Espada................................................................................... 91 8.1.1 Primeiros Momentos da República......................................................... 91 8.1.2 A Constituição de 1891 .......................................................................... 92 8.1.3 O Encilhamento ...................................................................................... 93 8.1.4 O Governo Deodoro da Fonseca ............................................................ 93 8.1.5 O Governo Floriano Peixoto .................................................................. 94 8.1.6 A Revolução Federalista......................................................................... 94 8.1.7 A Revolta da Armada ............................................................................. 95 8.2 Economia e Política na Primeira República ................................................... 96 8.2.1 A Política dos Governadores .................................................................. 96 8.2.2 A Política dos Coronéis .......................................................................... 96 8.2.3 O Café com Leite.................................................................................... 97 8.2.4 A Crise Financeira .................................................................................. 99 8.2.5 Os Planos de Valorização do Café ....................................................... 100 8.2.6 As Fronteiras Nacionais ....................................................................... 100 8.3 Indústria e Imigração .................................................................................... 102 8.3.1 A Grande Imigração ............................................................................. 102 8.3.2 Mudanças na Agricultura...................................................................... 103 8.3.3 Industrialização..................................................................................... 103 8.3.4 A Borracha na Amazônia ..................................................................... 104 8.4 Movimentos Sociais na Primeira República................................................. 105 8.4.1 Os Movimentos Messiânicos................................................................ 105 8.4.2 Canudos (1893-1897) ........................................................................... 107 8.4.3 Contestado (1911-1915) ....................................................................... 108 8.5 Movimentos Sociais Urbanos....................................................................... 109 8.5.1 A Reforma Urbana do Rio de Janeiro .................................................. 109 8.5.2 A Reforma Sanitária e a Revolta da Vacina ......................................... 110 8.5.3 A Revolta da Chibata............................................................................ 111 8.5.4 O Anarquismo ...................................................................................... 112 8.5.5 A Greve de 1917................................................................................... 113 8.5.6 O Partido Comunista do Brasil............................................................. 114 8.6 O Nascimento do Samba .............................................................................. 115 8.6.1 As origens ............................................................................................. 115 História do Brasil Luís Bustamante 5 8.6.2 O chorinho ............................................................................................ 116 8.6.3 O samba do Rio de Janeiro ...................................................................117 8.7 O Tempo dos Tenentes ................................................................................. 118 8.7.1 Dissidências na Política das Oligarquias .............................................. 118 8.7.2 Os Levantes Tenentistas ....................................................................... 119 8.7.3 A Coluna Prestes .................................................................................. 121 8.8 A Revolução de 1930 ................................................................................... 121 8.8.1 A Revolução de 1923 ........................................................................... 121 8.8.2 O Partido Democrático ......................................................................... 122 8.8.3 A Crise do Café .................................................................................... 123 8.8.4 A Ruptura do Café com Leite............................................................... 124 8.8.5 A marcha da Revolução........................................................................ 124 9 A Era Vargas ........................................................................................................ 127 9.1.1 O Governo Provisório........................................................................... 127 9.1.2 A Revolução de 1932 ........................................................................... 129 9.1.3 A Constituição de 1934 ........................................................................ 130 9.1.4 O Integralismo ...................................................................................... 131 9.1.5 O Levante Comunista de 1935 ............................................................. 132 9.1.6 A Repressão Política............................................................................. 133 9.1.7 O Golpe do Estado Novo...................................................................... 134 9.2 A Era do Rádio ............................................................................................. 134 9.2.1 A Idade de Ouro do Samba................................................................... 136 9.3 O Estado Novo ............................................................................................. 137 9.3.1 O Trabalhismo ...................................................................................... 138 9.3.2 O Controle da Opinião Pública............................................................. 140 9.3.3 A Política Industrial.............................................................................. 142 9.3.4 A Política Externa................................................................................. 143 9.3.5 A Invasão Cultural Norte-Americana................................................... 144 9.3.6 O Brasil na Guerra................................................................................ 145 9.3.7 A Queda do Estado Novo ..................................................................... 146 10 O Período Democrático (1945-1964) ............................................................... 149 10.1 Democracia e Radicalização Política (1945-1954) ...................................... 149 10.1.1 A Democratização ................................................................................ 149 10.1.2 O Governo Dutra .................................................................................. 150 10.1.3 A Volta de Vargas ................................................................................ 151 10.1.4 A Morte de Vargas ............................................................................... 153 10.1.5 O Golpe Legalista................................................................................. 154 Os Anos JK (1956-1961).......................................................................................... 155 Cinqüenta Anos em Cinco.................................................................................... 156 10.1.6 A Crise Financeira ................................................................................ 157 10.1.7 A Sucessão de JK ................................................................................. 157 10.2 A Crise da Democracia (1961-1964)............................................................ 158 10.2.1 O Governo Jânio Quadros .................................................................... 158 10.2.2 Os Movimentos Sociais ........................................................................ 159 10.2.3 A Política Institucional ......................................................................... 160 10.2.4 O Período Parlamentarista .................................................................... 161 10.2.5 O Governo Jango .................................................................................. 162 10.2.6 O Golpe Militar de 1964....................................................................... 162 História do Brasil Luís Bustamante 6 10.2.7 A questão do “populismo”.................................................................... 163 11 A Ditadura Militar (1965-1985) ....................................................................... 165 11.1.1 A Estrutura do Regime ......................................................................... 165 11.1.2 O Governo Castelo Branco................................................................... 165 11.1.3 1968, O Ano Rebelde ........................................................................... 167 11.1.4 O Início da Luta Armada ...................................................................... 168 11.1.5 O AI-5................................................................................................... 169 11.2 Os Anos de Chumbo (1968-1974)................................................................ 169 11.2.1 A Junta Militar e a Tortura ................................................................... 169 11.2.2 O Governo Médici ................................................................................ 170 11.2.3 O Milagre Econômico .......................................................................... 171 11.2.4 O Ufanismo .......................................................................................... 172 11.2.5 A Imprensa e a Censura........................................................................ 173 11.3 A Crise da Ditadura (1974-1985) ................................................................. 173 11.3.1 Abertura Lenta e Gradual ..................................................................... 173 11.3.2 Política Econômica de Geisel ............................................................... 176 11.3.3 Renascimento do Movimento Operário................................................ 177 11.3.4 O Governo Figueiredo e o Agravamento da Crise ............................... 177 11.3.5 A Continuidade da Abertura................................................................. 178 11.3.6 A Campanha das Diretas ...................................................................... 179 11.3.7 A Eleição de Tancredo e Sarney........................................................... 179 História do Brasil Luís Bustamante 7 1. A Expansão Marítima Portuguesa 1.1 A recuperação européia no século XV Até o final do século XV, nada prenunciava que a Europa iria dominar o mundo nos quatrocentos anos seguintes. Na época da descoberta da América, outras regiões do Velho Mundo, como China, Índia e Islã, possuíam economias mais dinâmicas, populações maiores, centros urbanos mais importantes e técnicas mais avançadas do que as européias. O fato que transformou a Europa no centro do poder mundial foi a conquista do continente americano. Essa conquista resultou de sua expansãoeconômica, demográfica e tecnológica, ao mesmo tempo em que as reforçou. A descoberta e a colonização do Brasil por Portugal foi parte desse processo: um capítulo a mais do domínio da América pelos europeus. No século XIV, antes da grande expansão marítima, uma grave crise ameaçou seriamente a sobrevivência da civilização européia. Essa crise teve varias dimensões e causas, entre as quais se destaca um período excepcional de invernos longos e frios que, por vários anos, atingiram o continente, provocando quebra das colheitas e fome. Além disso, sobreveio uma série de outras catástrofes, como a Peste Negra, devastadora epidemia que exterminou um terço da população do continente; as invasões dos nômades mongóis, que desorganizaram a produção agrícola e as relações de comércio; e a Guerra dos Cem Anos, que opôs as dinastias governantes da Inglaterra e França. Tais desastres simultâneos quase levaram a Europa ao colapso. No entanto, ao iniciar o século XV, com o fim da epidemia, da ameaça mongol e da guerra, e com a melhora das condições climáticas, a situação de desvantagem relativa da Europa começou a ser revertida. A população voltou a crescer, as cidades se repovoaram, e o comércio tornou-se novamente ativo. A recuperação comercial contou com dois pólos de dinamismo: a Liga Hanseática, associação de cidades mercantis em torno do Mar Báltico, ao norte; e as cidades do Mar Mediterrâneo, ao sul, em especial duas cidades-Estado italianas, Veneza e Gênova. Os comerciantes da Liga Hanseática obtinham matérias primas do extremo norte do continente, como madeiras e minério de ferro, e as revendiam para o restante da Europa. Essas trocas eram intermediadas por cidades como Frankfurt, Bruges, Antuérpia e Londres. Os mercadores italianos, por sua vez, compravam especiarias, seda, marfim e porcelanas nas cidades islâmicas do Mar Mediterrâneo, e os revendiam no norte do continente. Nessa época, Lisboa, capital do reino de Portugal, teve grande crescimento, por causa de sua posição intermediária na navegação entre o Mediterrâneo e o Norte da Europa. Ali se instalaram mercadores e banqueiros venezianos e genoveses que contribuíram para tornar a cidade um ativo centro de comércio. 1.2 A Formação Política de Portugal O desenvolvimento do comércio em Lisboa e no Porto, no século XV, não é a única explicação para o pioneirismo marítimo de Portugal. Também contribuíram outros fatores, ligados à formação política do país. O Estado português surgiu na luta contra os muçulmanos, que haviam dominado a Península Ibérica no século VIII. No ano de 1128, Afonso Henriques, um dos nobres 1: Veneza, imagem de Bolognino Zaltieri, 1565. História do Brasil Luís Bustamante 8 guerreiros que lutavam contra os mouros, rompeu com a coroa de Leão e Castela, com a qual tinha relação de vassalagem, e foi aclamado primeiro rei de Portugal. Seu feudo, o Condado Portucalense, tornou-se a porção original do território português. Durante o reinado de Dom Afonso e de seus sucessores, por quase duzentos anos, os portugueses mantiveram-se em guerra simultânea contra dois inimigos, os castelhanos e os mouros. Tal situação de beligerância permanente subordinou o Estado português à autoridade do monarca, que também era o supremo chefe militar. A submissão da nobreza e do território a uma única autoridade monárquica era um fato singular na Europa Ocidental daquela época. O Estado português, precocemente centralizado, possuía características incomuns ao restante da Europa. Os nobres só obtinham terras por meio da doação pessoal do rei que, em alguns casos, podia tomá-las de volta. Diferente do que ocorria em outras partes do continente, onde cada domínio senhorial tinha suas próprias leis fundamentadas nos costumes, em Portugal as leis eram únicas, aplicadas pelo rei ou por seus prepostos nos concelhos das cidades. Além disso, a maior parte das terras do reino pertencia ao soberano (terras reguengas), e não à nobreza. Por isso, muitos estudiosos, entre eles o sociólogo brasileiro Raymundo Faoro, acreditam não ter existido um verdadeiro feudalismo em Portugal. Faoro propôs chamar o sistema social e político português da Idade Média de patrimonialismo, pois, ao invés do emaranhado de relações contratuais envolvendo o rei e a nobreza, típicas do feudalismo, ali era como se o reino fosse patrimônio pessoal do monarca. O espírito de cruzada, isto é, a crença na guerra como missão religiosa, foi uma característica ideológica marcante de Portugal, presente desde seus primórdios até a colonização do Brasil. O fato de o Estado português ter surgido na luta contra os muçulmanos, chamados de infiéis por não professarem a religião cristã, deu-lhe uma justificativa religiosa para sua existência e para as guerras de conquista que se seguiram. A Revolução de Avis foi um conflito ocorrido entre 1383 e 1385, que opôs duas linhagens da dinastia governante de Portugal. Além de ter consolidado o regime absolutista, esta revolução influiu diretamente nas grandes navegações dos séculos XV e XVI. A guerra começou por causa de uma luta sucessória entre o rei de Castela, que pretendia anexar Portugal, e João, filho bastardo do rei Pedro I e mestre da ordem religiosa de Avis. A nobreza proprietária de terras aliou-se ao pretendente castelhano, enquanto os comerciantes, os concelhos das cidades e a população mais pobre lutaram ao lado de João. A guerra terminou em 1385 com a vitória do Mestre de Avis e a sobrevivência de Portugal como Estado independente. Quase toda a antiga nobreza morreu durante a guerra, tendo sido substituída por comerciantes, fidalgos cavaleiros e plebeus, nobilitados pelo príncipe vencedor. A ascensão ao trono do príncipe bastardo, com o nome de Dom João I, marcou o início da dinastia de Avis, 2 - Dom João, Mestre de Avis, primeiro rei da dinastia de Avis (1385-1580). 3 - reconstituição de uma caravela portuguesa do século XV História do Brasil Luís Bustamante 9 que comandou a grande aventura oceânica de Portugal. A guerra civil consolidou a convergência de interesses entre os mercadores das cidades e o rei. Essa aliança foi mais um dos fatores que possibilitaram a expansão ultramarina do século XV. 1.3 O périplo africano A centralização do Estado, o surgimento precoce do absolutismo, a aliança entre os mercadores e a monarquia e o espírito de cruzada são alguns dos fatores que contribuíram para o pioneirismo marítimo português. Contudo, se o contexto do século XV não for compreendido, tais razões, vistas isoladamente, não fazem sentido. Naquela época, a Europa passava por uma fase de crescimento econômico e demográfico, com reativação das rotas comerciais, desenvolvimento das cidades e acumulação de capital por mercadores e banqueiros, em especial italianos e alemães. A expansão portuguesa foi, dessa maneira, parte dessa expansão maior da Europa. No final do século XIV, os portugueses adotaram e aperfeiçoaram várias tecnologias criadas por outras civilizações eurasiáticas. Instrumentos de navegação como a bússola, o quadrante, o astrolábio e a balestrilha, todos invenções chinesas, foram trazidos até a Europa pelos italianos. Cartas de navegação árabes foram aprimoradas, com acréscimo de novos conhecimentos, por cartógrafos genoveses e portugueses. A caravela, fundamental à expansão marítima, foi uma invenção portuguesa que resultou do aperfeiçoamento de barcos usados na navegação do Mediterrâneo. Nesse caso, os portugueses combinaram a vela triangular ou latina, desenvolvida pelos árabes, com a vela redonda européia. O resultado foi a invenção de uma embarcação pequena, rápida e fácil de manobrar, capaz de navegar em ziguezague contra o vento. A primeira grandeexpedição militar portuguesa fora da Europa, considerada por muitos como o início da aventura ultramarina, foi a conquista do porto árabe de Ceuta, no norte da África, em 1415. Esta cidade situa-se próxima ao Estreito de Gibraltar, passagem entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico. Era o ponto final das caravanas que atravessavam o deserto do Saara, trazendo marfim, escravos e, sobretudo, ouro das regiões mais distantes da África. A tomada de Ceuta foi liderada pelo príncipe Dom Henrique, filho de Dom João, e contou com dezenas de nobres cavaleiros, que buscavam honrarias e saques de guerra. Essa expedição, como quase todas as que vieram depois, foi financiada por banqueiros genoveses estabelecidos em Lisboa. Depois da conquista, mercadores portugueses, especialmente judeus, instalaram-se em Ceuta, para ter maior acesso à riqueza trazida pelas caravanas. O Estado português, por meio de tributos cobrados sobre os comerciantes, também 4 - O infante Dom Henrique 5 - mapa português da costa ocidental da África, de 1470 História do Brasil Luís Bustamante 10 obtinha uma parte da riqueza gerada pelo comércio. Essa articulação entre Estado, nobreza guerreira, banqueiros italianos e mercadores judeus esteve presente em todas as demais expedições de navegação e conquista, até o século XVI. O contato com as caravanas despertou, entre os portugueses, o desejo de chegar até a fonte do “ouro do Sudão”, isto é, do ouro trazido pelos árabes do outro lado do Saara. O acesso direto a essa riqueza daria muito poder a Portugal, pois a África era a fonte quase exclusiva do metal para a Europa. No século XV, o ouro era essencial para comprar especiarias, sedas e porcelanas do Oriente, pois os asiáticos não tinham interesse em quaisquer outros bens produzidos pelos europeus. Com esse objetivo, logo após a tomada de Ceuta, os portugueses começaram a circunavegação do continente africano. Além da busca por riquezas, a Coroa, o clero e a nobreza procuravam pelo Reino do Preste João, um mitológico reino cristão que existiria em terras africanas, além do Islã. Os portugueses acreditavam que, uma vez encontrado, poderiam fazer aliança com ele numa cruzada para retomar a Terra Santa dos infiéis. Esse fato demonstra que a mentalidade medieval ainda era dominante entre os portugueses, e que, nas viagens marítimas, as motivações religiosas não estavam separadas da busca por riquezas. As conquistas eram vistas como guerra santa. O saque, o tributo sobre os lucros e o domínio pessoal sobre terras e povos eram os prêmios justos que os nobres receberiam pelas vitórias. Embora a ampliação do comércio fosse um incentivo essencial para as expedições, os nobres não tomavam parte diretamente da atividade mercantil. O comércio era considerado indigno e, por isso, deixado a cargo dos judeus e italianos. O infante Dom Henrique foi personagem central dos descobrimentos portugueses, desde a conquista de Ceuta, em 1415, até sua morte, em 1460. Era dirigente da Ordem de Cristo, criada em Portugal para substituir a antiga Ordem dos Cavaleiros Templários, da época das Cruzadas. A Ordem de Cristo, subordinada diretamente ao rei de Portugal e coordenada por Dom Henrique, foi responsável por organizar todas as expedições marítimas e a colonização das novas terras entre os séculos XV e XVI, inclusive o Brasil. Esse fato mostra, mais uma vez, que as viagens e conquistas marítimas eram concebidas como cruzadas, embora isso não diminua a importância dos interesses mercantis. As expedições portuguesas também se aventuraram pelo alto mar. Em 1419, navegadores portugueses descobriram a Ilha da Madeira, a 660 km da costa africana, no meio do Oceano Atlântico. Em 1439, o arquipélago dos Açores, ainda mais distante, foi descoberto e concedido como capitania ao infante Dom Henrique. Para incentivar o povoamento dessas ilhas, Portugal adaptou antigos dispositivos medievais, como o sistema de 7 - A viagem de Vasco da Gama 6 - desenho da feitoria de Arguim, construída pelos portugueses. História do Brasil Luís Bustamante 11 donatarias e as sesmarias (doações de grandes porções de terra para cultivo). No século XVI, essas instituições foram transplantadas para o Brasil. Assim, as ilhas atlânticas funcionaram como verdadeiros laboratórios para a posterior colonização do território brasileiro. Em 1434, depois de 15 expedições fracassadas, o comandante português Gil Eanes conseguiu um grande feito: ultrapassou o temível Cabo Bojador, na costa africana. Esse acidente geográfico era, até então, o limite sul dos navegadores europeus. Além dos fortes ventos que o varriam, brumas permanentes impediam que fossem vistos os bancos de areia e pedra que ali existiam, o que tornavam freqüentes os naufrágios. A ultrapassagem do Bojador permitiu aos portugueses explorar toda a costa norte ocidental africana. Puseram-se em contato com povos nativos e caravanas, de quem passaram a comprar diretamente ouro, escravos e outros bens. Em pontos estratégicos da costa, a Coroa portuguesa ergueu feitorias (núcleos de comércio) cercadas por muralhas e guardadas por canhões e soldados, onde os africanos faziam escambo com os mercadores portugueses. Em 1445, ergueram a feitoria de Arguim, no Cabo Branco e, em 1482, uma grande fortaleza, São Jorge da Mina, na Costa do Ouro. O tráfico marítimo de escravos africanos começou em 1442, quando a primeira carga negreira chegou ao porto de Lisboa. Os primeiros escravos foram obtidos em incursões de apresamento pelo interior do continente. Porém, algum tempo depois, os portugueses não se deram mais ao trabalho de capturá-los: puseram-se em contato com os traficantes locais e passaram a comprá-los. A escravidão era bastante difundida em todo o continente africano bem antes da chegada dos europeus. Por isso, a presença de compradores portugueses no litoral apenas fez aumentar a intensidade de práticas que já existiam, como o apresamento e o tráfico de escravos. Pela ideologia de cruzada que motivava as navegações, a escravidão negra era justificada como resultado de “guerra justa”, ou seja, como os africanos não eram cristãos, era considerado legítimo escravizá-los. Em Portugal, os escravos eram utilizados em trabalhos públicos, domésticos, no cultivo de açúcar – que começou a ser praticado nas ilhas atlânticas em 1470 –, ou vendidos para as cidades italianas. 1.4 O caminho das especiarias Foi durante o reinado de D. João II (1481-1495) que os portugueses buscaram o caminho marítimo para as Índias. No início desse período, os navegadores portugueses já haviam chegado até o Golfo da Guiné, próximo à linha do Equador, na costa ocidental africana. Em 1488, um emissário do rei português, Pero da Covilhã, percorreu por terra a Índia, Arábia e Etiópia (identificada como o Reino do Preste João), fazendo chegar informações a Lisboa. Graças a elas, os portugueses descobriram que, se conseguissem alcançar as Índias pelo 8 - cultivo de pimenta na costa do Malabar, na Índia. Gravura do século XV. Parte do mundo que cabia a Portugal Parte do mundo que cabia à Espanha Linha de Tordesilhas 1494 9 - divisão do mundo pelo Tratado de Tordesilhas (1494) História do Brasil Luís Bustamante 12 contorno da África, teriam acesso direto à fonte das especiarias. Especiarias eram temperos exóticos, como o açafrão, a noz moscada, gengibre e, principalmente, pimenta da Índia. Muito apreciadas e valorizadas na Europa, eram consideradas artigos de luxo, usadas para conservar o sabor dos alimentos. Seu alto preço decorria de sua raridade, pois só eram cultivadas nas regiões quentes do clima de monções, como nacosta ocidental da Índia e nas Ilhas Molucas, na Indonésia. Além da Europa, também a China e o mundo islâmico apreciavam esses gêneros. Desde a Antiguidade, uma intrincada rede mercantil, que se estendia pelo Oceano Índico e o interior da Ásia, transportava especiarias em juncos chineses, caravanas, barcos indianos, árabes e galeras venezianas, ligando as poucas áreas produtoras aos muitos centros consumidores. Na Europa, eram distribuídas com exclusividade pelos venezianos, que as traziam de cidades como Cairo e Damasco, pontos finais das caravanas que vinham da Ásia. Em 1487, uma importante conquista deu aos portugueses a certeza de que teriam, em breve, o sonhado acesso às riquezas das Índias. A expedição comandada por Bartolomeu Dias dobrou o Cabo das Tormentas, local de encontro das correntes marítimas do Atlântico e Índico e ponto extremo da África, rebatizado de Cabo da Boa Esperança. Contudo, o navegador não prosseguiu viagem até a Índia, por recusa de sua tripulação. Somente dez anos depois, Vasco da Gama completou a viagem até a Índia. A rota usada por este comandante foi mais rápida que a de Bartolomeu Dias. Ao invés de navegar ao longo da costa africana, cruzou o Atlântico até próximo da costa brasileira, a favor dos alísios do norte e, em seguida, levado pelos ventos de oeste, chegou ao Cabo da Boa Esperança. Esse percurso foi chamado de “a volta do mar”. Em seguida, indo em direção ao norte, na costa oriental da África, Vasco da Gama conheceu as grandes cidades mercantis de Sofala e Melinde. Com base em informações de pilotos árabes, chegou a Calicute, na Índia, no dia 17 de abril de 1498. Nessa cidade, um dos maiores entrepostos mercantis do Oceano Índico, foi recebido pelo samorim (governante local), que pouco se interessou pelas mercadorias trazidas pelos portugueses. 1.5 O império marítimo português A descoberta da América por Cristóvão Colombo, em 1492, à frente de uma frota espanhola, pôs a Espanha na corrida pelo caminho das Índias. O papa Alexandre VI, que era espanhol, publicou, em 1493, a bula Inter Coetera, dividindo todas as terras não cristãs, descobertas ou por descobrir, entre as duas grandes potências marítimas, Portugal e Espanha. Pela bula papal, a divisão do mundo seria feita por um meridiano traçado a 100 léguas a oeste da ilha de Cabo Verde. A Portugal caberiam todas as terras situadas a leste da linha, enquanto à Espanha caberia a parte a oeste. O rei João II protestou contra a divisão, pois acreditava existirem terras ao sul das ilhas descobertas por Colombo. Por isso, no ano seguinte, Espanha e Portugal assinaram o Tratado de Tordesilhas, retificando a divisão papal. Por esse tratado, nova partilha foi feita por um meridiano traçado a 370 léguas a oeste da ilha de Cabo Verde. Dessa maneira, sem que soubessem, os reis ibéricos estavam repartindo o território da América do Sul entre as duas coroas. 10 - A primeira missa no Brasil, óleo de Vítor Meirelles. História do Brasil Luís Bustamante 13 Em 1500, partiu de Lisboa uma segunda expedição para as Índias, comandada por Pedro Álvares Cabral. A armada de Cabral, equipada com dez naus e três caravelas, desviou-se muito para Oeste na “volta do mar”, provavelmente de forma intencional, pois na viagem de Vasco da Gama foram observados indícios de terra naquele rumo. O navegador encontrou, assim, a costa do Brasil, aportando no sítio da atual cidade de Santa Cruz Cabrália (BA) em abril. O verdadeiro objetivo da armada de Cabral, no entanto, era a Índia, aonde o navegador chegou em setembro do mesmo ano. Em seguida, carregou suas naus com especiarias e voltou a Portugal. Nas primeiras décadas do século XVI, no entanto, a nova terra descoberta pouco interessou a Portugal. O domínio do comércio de especiarias da Ásia era muito mais importante, pois lhe dava grande vantagem em relação às demais nações européias. Quando da chegada dos portugueses, as rotas de comércio no Oceano Índico eram controladas por cidades-Estado indonésias, indianas e árabes. Os portugueses enviaram expedições armadas contra elas, e quase todas acabaram dominadas. Entre 1505 e 1507, conquistaram Sofala e Moçambique, na costa leste da África, localidades ricas em marfim e escravos e escalas obrigatórias na rota das especiarias. Em 1510, tomaram Goa, que se tornou o maior centro de comércio da Índia. Anos depois, adquiriram, após negociação com o soberano local, outra cidade indiana, Diu. Em 1511, os portugueses apoderaram-se de Málaca, porto situado no estreito que é passagem obrigatória entre os oceanos Índico e Pacífico. Em todos estes lugares, construíram feitorias protegidas por fortalezas, para que não fossem retomados pelos nativos. Por volta de 1530, o tráfego no Índico já estava quase todo sob controle lusitano. 11 - O Império Marítimo Português Como civilizações tão avançadas, como a Índia e os reinos islâmicos, puderam ser vencidos por um país tão pequeno como Portugal? Em primeiro lugar, porque não havia, no Índico, Estados centralizados que controlassem toda a atividade mercantil. As rotas asiáticas de comércio eram mantidas por uma multiplicidade de pequenos reinos e cidades-Estado, cuja resistência aos portugueses foi muito tênue e fragmentada. Além disso, na Índia, os Estados do interior do subcontinente se interessavam pouco pelo comércio marítimo. Na cultura hindu, a navegação era considerada atividade impura, reservada às castas inferiores. Por isso, os soberanos indianos não acreditavam que valesse a pena defender as rotas oceânicas das investidas lusitanas. História do Brasil Luís Bustamante 14 A partir de meados do século XVI, Portugal estendeu sua rede mercantil até a China e Japão. Nesses países, contudo, enfrentou a oposição de Estados poderosos, protegidos por armadas e exércitos superiores aos de Portugal. Incapazes de dominar o comércio marítimo, como fizeram no Índico, tiveram que obter concessões dos governos locais para participar do comércio regional. Assim, com permissão do Imperador da China, fundaram a feitoria de Macau, em 1557, e se estabeleceram em Nagasaki, no Japão, em 1560. Barcos portugueses passaram a fazer o comércio de seda e prata entre Japão e China. Nessa época, o Império Marítimo Português atingiu o apogeu, estendendo-se pela Europa, América, África e Ásia e pelos três oceanos. História do Brasil Luís Bustamante 15 2 Os Primeiros Tempos da Colonização 2.1 Os povos indígenas antes da chegada dos europeus Quando os portugueses chegaram ao Brasil, a população nativa, estimada em um milhão de habitantes, era formada por quatro troncos étnico- linguísticos: tupi-guaranis, jês, aruaks e karibs. Dentre eles, os tupi-guaranis e os jês (chamados de tapuias pelos tupis) constituíam a maior parte da população. Os tupi-guaranis eram originários da bacia amazônica, de onde migraram, a partir do ano 1000, em direção ao sul, pelos vales do rio Guaporé, Chaco e Pantanal do Mato Grosso. Dividiram-se em dois ramos: os guaranis, que povoavam os atuais territórios do Paraguai, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e os tupis, que se espalharam pelo litoral brasileiro, de São Paulo até a Amazônia, e pelo vale do rio São Francisco. A migração tupi confrontou os jês, habitantes mais antigos dessas áreas, que recuaram para as porções mais interiores do território brasileiro. Os tupis organizavam-se em tribos, que ora se aliavam, ora travavam guerras entre si. As guerras tinham função ritual e eram muito freqüentes. Ocorriam, por exemplo, para que os homens pudessem obter mulheres fora de sua tribo. Entre determinados grupos, era comum a antropofagia ritual dos inimigos capturados em combate. Os povos que viviam no Brasilnão eram estratificados em classes sociais. A única divisão do trabalho que havia era sexual: enquanto as mulheres se incumbiam da agricultura, cerâmica e tecelagem, os homens cuidavam da guerra e da caça. Viviam em aldeias semi- sedentárias, nas quais eram construídas grandes moradias (ocas), cada uma delas ocupada por uma família. As ocas cercavam um grande pátio central, onde eram realizadas danças cerimoniais e rituais religiosos. Em torno da aldeia, eram construídas paliçadas, para protegê-la dos ataques de tribos hostis. Os chefes eram escolhidos entre os guerreiros mais corajosos. Os tupis cultivavam milho, feijão, amendoim, mandioca e abóbora, em clareiras abertas por queimadas no meio da floresta, e armazenavam suas colheitas em grandes vasos de cerâmica. Não Tupinambá Tu pin am bá Tupinambá Guaranis Guaranis Mundurucu Manau Pareci Yanomami Tupinambá Tu pin am bá Tupinambá Guaranis Guaranis Mundurucu Manau Pareci Yanomami Kayapó do Sul Botocudo Aimoré Kaingang Bororo Xavante Acroá Timbira Tabajara Cariri Kayapó do Sul Botocudo Aimoré Kaingang Bororo Xavante Acroá Timbira Tabajara Cariri Povos tupi-guaranis Povos jês 12 - etnias indígenas no Brasil na época da chegada dos europeus 13 - tupinambás realizando o ritual da antropofagia. Gravura de Theodor de Bry (1564) História do Brasil Luís Bustamante 16 dominavam a metalurgia e, por isso, a derrubada das matas era feita com fogo e machados de pedra. Plantavam nessas áreas abertas por três ou quatro anos. Em seguida, abandonavam-nas em favor de novas clareiras e reiniciavam o ciclo de cultivos. Não domesticavam animais, e complementavam sua alimentação com caça e coleta de frutas, raízes e folhas das matas e cerrados. Por habitarem o litoral, os tupis foram o primeiro povo nativo a entrar em contato com os portugueses. Ao tomar conhecimento da existência dos índios, os europeus travaram uma grande discussão religiosa e filosófica sobre como enquadrar essa nova humanidade, que não era citada na Bíblia ou nos textos clássicos dos gregos. Ordens religiosas, como a Companhia de Jesus, tendiam a ver nos índios almas puras, “papéis em branco”, nas palavras do jesuíta Manuel da Nóbrega. Nessa concepção, os índios seriam um ramo da humanidade isento de pecados, vivendo em liberdade e harmonia com a natureza edênica dos trópicos, e que, por isso, mereciam a salvação pela catequese. Por isso, o Papa proibiu a escravização dos índios em 1537. Essa concepção influenciou, posteriormente, os iluministas dos séculos XVII e XVIII, em suas idéias sobre o “estado de natureza”, isto é, a liberdade primordial da humanidade. Muitos colonizadores, por outro lado, tendiam a considerar os índios como subumanos ou mesmo diabólicos, por causa de costumes como a nudez e a antropofagia. No entendimento desses colonos, a natureza não-humana dos índios justificava sua escravização e extermínio. 2.2 O período pré-colonial (1500-1532) Ao desembarcar na costa brasileira, em 1500, a armada comandada por Pedro Álvares Cabral incluiu a nova terra no Império Português, cuja extensão global já havia sido definida pelo Tratado de Tordesilhas. No entanto, a colonização do novo território só começou três décadas depois, em 1532. Logo após tomar conhecimento da existência de terras a oeste do Atlântico, a Coroa portuguesa enviou, em 1501, a primeira expedição de reconhecimento. Comandada por André Gonçalves, contava com o piloto genovês Américo Vespúcio. Gonçalves e Vespúcio percorreram 760 léguas da costa, cartografando e dando nomes aos acidentes geográficos que encontraram no trajeto, pelos quais, desde então, tornaram-se conhecidos, como Bahia de Todos os Santos e Rio de Janeiro. A Terra de Santa Cruz era usada, de início, como escala na carreira da Índia, como eram conhecidas as viagens anuais de Portugal ao Oriente, que começaram a ocorrer em 1500. Não havia, então, grande interesse em colonizar a nova terra, uma vez que a maior promessa de riqueza estava no comércio com as Índias. Não obstante, os portugueses começaram a extrair pau-brasil, madeira comum na Mata Atlântica que os europeus usavam para produzir corantes de tecidos. Os índios, cada vez mais munidos de machados e facões que recebiam dos europeus, abatiam as árvores e levavam os troncos para a costa, onde eram trocados por mais ferramentas e outros artefatos com os comerciantes. Estes eram, na maioria, cristão-novos (judeus convertidos), que recebiam concessões oficiais da Coroa para praticar a exploração. Um deles, Fernão de Noronha, deteve o monopólio da atividade até 1505 e recebeu, a título de sesmaria, o arquipélago que hoje leva seu nome. Para fazer escambo com os índios, os portugueses ergueram feitorias no Rio de Janeiro, Cabo Frio e Itamaracá. Desde 1504, a extração do pau-brasil também era praticada pelos franceses. Luís XII, rei da França, não aceitava a divisão do mundo entre as duas potências ibéricas. Por isso, não coibia, e até 14 - índios derrubando pau brasil, gravura de André Thevet História do Brasil Luís Bustamante 17 estimulava, os mercadores de seu país a visitar a costa brasileira em busca da matéria prima. Os franceses procuraram estabelecer boas relações com as tribos tupis, em especial com os tupinambás, que habitavam a costa do Rio de Janeiro e Recôncavo Baiano. Graças à sua colaboração, puderam manter-se em atividade por muito tempo, a despeito das expedições punitivas enviadas por Portugal. Em 1516, numa dessas expedições, a armada comandada por Cristóvão Jacques aprisionou três galeões franceses na costa da Bahia, além de ter afundado outras embarcações na foz do Rio da Prata. 2.3 As Capitanias Hereditárias A decisão da Coroa portuguesa de começar a colonizar o Brasil resultou da necessidade de encontrar novas fontes de recursos para compensar o déficit cada vez maior nas contas do Estado. A manutenção do imenso império marítimo, que se estendia do Japão às ilhas do Atlântico, gerava gastos elevados com armadas, fortalezas e a manutenção de centenas de burocratas e militares espalhados pelas mais de sessenta possessões portuguesas. Os problemas financeiros também eram agravados pelo luxo da corte de Lisboa e pelos altos salários e generosos privilégios recebidos pelos seus muitos burocratas, nobres e cortesãos. Além dos fatores financeiros, a decisão de dar início à ocupação do Brasil também considerou a presença ostensiva de traficantes franceses de pau-brasil no litoral. Os portugueses temiam perder para eles o território descoberto. Em 1531, Martim Afonso de Souza, nobre veterano das campanhas militares nas Índias, foi enviado à frente de uma expedição para dar início à colonização. Ao longo de sua viagem pela costa brasileira, construiu fortes, enviou entradas (expedições de reconhecimento) para o interior do território e, ao final de sua jornada, fundou São Vicente, a primeira vila do Brasil, no litoral do atual estado de São Paulo. Poucos anos depois, em 1534, a Coroa dividiu o território em quinze Capitanias Hereditárias, delimitadas por faixas lineares de terra perpendiculares ao meridiano de Tordesilhas e demarcadas a partir do litoral. Cada capitania foi cedida a um capitão ou donatário, em sua maioria militares da baixa nobreza e veteranos de missões na Índia. O sistema de capitanias já tinha um século de existência, pois havia sido usado na colonização dos arquipélagos dos Açores, na Ilha da Madeira e em Cabo Verde. No período colonial, as leis e os poderes das autoridades tinham a forma de delegações do poder pessoal do Rei aos seus súditos, efetivadas por documentos comocartas régias, forais e bandos. No Brasil, os donatários recebiam do soberano a Carta de Doação, por meio da qual eram estabelecidos seus direitos e obrigações. Por meio da Carta, obtinham a jurisdição sobre o território, o direito de condenar plebeus à morte, criar vilas e doar sesmarias. Por outro lado, eram-lhe 15 - Mapa das capitanias Hereditárias de 1586 História do Brasil Luís Bustamante 18 vedadas a venda ou alienação da capitania, e o Rei podia cancelar a doação quando quisesse. O Foral era um documento dirigido aos colonos, estabelecendo seus direitos e deveres perante o donatário e o Rei. As sesmarias eram grandes porções de terra, geralmente três por três léguas1 em quadro (quase 400 quilômetros quadrados), dadas a particulares, com a obrigação de que fossem cultivadas em cinco anos. Caso não fossem utilizadas, eram retomadas pelo capitão-geral e podiam ser doadas novamente a outro proprietário. Não havia restrições de sangue ou de nobreza para quem quisesse se tornar sesmeiro, isto é, dono de uma sesmaria. A única condição exigida era que fosse cristão. Até 1548, a maioria das capitanias não havia gerado povoamento ou atividades econômicas relevantes. Em algumas, os donatários e colonos sofreram ataques de índios, como no Espírito Santo, Bahia e Ilhéus, e foram expulsos. Noutros casos, como no litoral norte (Rio Grande, Ceará, Maranhão e Pará), os donatários nem sequer se interessaram em tomar posse das doações que, por isso, foram devolvidas à Coroa. Apenas duas capitanias, São Vicente e Pernambuco, prosperaram. O sucesso de São Vicente explica-se pelo acesso privilegiado que seu donatário, Martim Afonso de Souza, tinha aos recursos do Estado, graças ao prestígio pessoal que gozava junto à Corte. Além disso, a costa da capitania era povoada pelos índios tupiniquins, que se aliaram aos portugueses. Esse fator, em especial, foi o que possibilitou a sobrevivência de povoações permanentes, como as vilas de São Vicente, Santos e, a partir de 1554, São Paulo. No caso de Pernambuco, a prosperidade se deveu à fertilidade natural dos solos do litoral da Zona da Mata, conhecidos como solos de massapé, e pela proximidade geográfica com a Europa. Esses fatores favoreceram a agricultura da cana de açúcar e a atividade dos engenhos, iniciados dias depois da posse da capitania pelo donatário Duarte Coelho. 2.4 O Governo Geral Em 1548, o rei D. João III decidiu criar o Governo Geral do Brasil, no intuito de centralizar a administração da colônia. Contribuíram para essa decisão os déficits financeiros e o crescente endividamento do Reino, gerados pelos custos militares e administrativos do império marítimo, assim como o insucesso parcial da experiência das capitanias hereditárias. Além disso, a descoberta de ouro no Peru pelo espanhol Francisco Pizarro e, sobretudo, das riquíssimas minas de prata em Potosí, na atual Bolívia, em 1541, fizeram os portugueses acreditarem na possibilidade de localizarem metais preciosos na parte que lhes cabia da América do Sul. Tomé de Souza, ex-governador da Índia, foi nomeado primeiro governador geral do Brasil. Em 1549, chegou à Bahia à frente de uma expedição colonizadora com mais de 1.000 pessoas. No Recôncavo Baiano, fundou a cidade de São Salvador, para que se tornasse a sede do Governo Geral e do primeiro bispado do Brasil. Por meio de um Regimento, unificou as jurisdições de todas as capitanias, que passaram a se subordinar ao Governo. O documento também criava os cargos de ouvidor, responsável pela justiça; provedor mor, que supervisionava a arrecadação; e capitão mor, responsável pela guarda da costa. Logo depois da construção de Salvador, foram plantadas as primeiras lavouras de cana e erguidos os primeiros engenhos no Recôncavo. 1 Antiga medida portuguesa de distâncias, equivalente a 6,6 km. 16 - Salvador, estampa de Reys Boeck, 1624 História do Brasil Luís Bustamante 19 2.5 Os jesuítas na Colônia A Companhia de Jesus, fundada em 1540 pelo espanhol Ignácio de Loyola, tornou-se a principal ordem religiosa da Igreja Católica durante a Contra Reforma. Um de seus mandamentos mais importantes era a total obediência ao Papa, o que acabou por torná-la autônoma frente aos governos absolutistas da Europa. Os jesuítas eram muito disciplinados, e subordinavam-se a uma hierarquia semelhante à das organizações militares. Influenciados pela doutrina de Santo Tomás de Aquino, acreditavam na força da conversão pela palavra e iluminação divina. Seu objetivo era converter o maior número possível de fiéis e, assim, tornar a Igreja mais forte na luta contra a Reforma protestante. Os jesuítas acreditavam que a América, com sua grande população indígena, poderia se tornar uma grande fortaleza da fé católica. Por isso, tornou- se a principal frente missionária da Companhia. Para esses religiosos, os índios viviam em estado natural e eram puros e, por isso, suas almas mereciam a salvação. Sua conversão, ou catequese, deveria ser feita pela educação escolástica, o que fez dos colégios instituições centrais nas missões inacianas. Essas concepções relativas aos índios eram contrárias aos interesses dos colonos, que desejavam escravizá- los. Por esta razão, choques entre jesuítas e colonos foram comuns em todo o período colonial. A expedição do primeiro governador geral ao Brasil foi acompanhada por um grupo de missionários jesuítas, chefiados pelo padre Manuel da Nóbrega. No período do segundo governador geral, Duarte da Costa (1553-1558), Nóbrega e outro jesuíta, José de Anchieta, foram responsáveis pela primeira iniciativa de catequese dos índios, ao fundarem São Paulo, o primeiro núcleo colonial do interior do Brasil. São Paulo surgiu como um povoado em torno de um colégio no planalto do Piratininga, além da Serra do Mar, na capitania de São Vicente. A fundação de São Paulo e a catequese dos índios tupiniquins, que viviam na região, foram facilitadas pela ação de um náufrago português, João Ramalho, que se tornou chefe indígena ao se casar com a filha do cacique local, o chefe Tibiriçá. 2.6 A invasão francesa do Rio de Janeiro Como já foi visto, desde os primeiros anos do século XVI, navegadores franceses, em sua maioria comerciantes da Bretanha e Normandia, freqüentavam a costa brasileira em busca de pau-brasil. Contudo, foi somente em 1555 que o almirante Nicolas Durand de Villegagnon tomou a iniciativa de fundar uma colônia francesa no Brasil. O local escolhido foi a ilha de Seregipe, 17 - Nóbrega e Anchieta na cabana de Pindobuçu, quadro de Benedito Calixto 18 - ataque português à ilha de Seregipe. Gravura de 1560. História do Brasil Luís Bustamante 20 na entrada da Baía da Guanabara, pois ali viviam os índios tupinambás, aliados dos franceses. Nesse lugar, Villegagnon fundou um núcleo colonial denominado França Antártica. A colônia foi financiada por investidores privados, quase todos nobres franceses, embora contasse também com a simpatia e o apoio do rei da França, Henrique II. Naquela época, a Europa vivia o auge das guerras religiosas, e conflitos entre católicos e protestantes eram comuns na França. Nesse contexto, mais de 600 colonos calvinistas (huguenotes) foram atraídos para a colônia. A eles foram oferecidas liberdade de culto e a oportunidade de se livrarem das perseguições que sofriam. Os portugueses decidiram dar fim à colônia francesa durante o mandato do terceiro governador geral, Mem de Sá (1558-1572). Em 1559, uma expedição marítima foi enviada para destruir o núcleo da ilha de Seregipe, sob o comando do próprio governador. Dois mil combatentes, entre portugueses e índios tememimós, atacarama colônia francesa, que resistiu por dois dias antes de se render. Em seguida, Estácio de Sá, sobrinho de Mem de Sá, recebeu em doação a capitania do Rio de Janeiro, desmembrada da antiga capitania de São Vicente. Ali, em 1563, fundou a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, na entrada da Baía da Guanabara, para garantir a defesa contra novas incursões estrangeiras. Em 1567, um ataque dos franceses e tamoios destruiu o povoado, que foi, por isso, transferido para o Morro do Castelo, situado no interior da Baia da Guanabara. A nova localização possibilitava melhor defesa, por permitir a vigilância da entrada da baía. A derradeira batalha contra os franceses na região ocorreu em Cabo Frio, em 1575, quando 400 portugueses, aliados a 700 índios, esmagaram a Maison de Pierre, o último reduto francês. O episódio marcou também a destruição da Confederação dos Tamoios, a grande aliança tupinambá que apoiava os franceses. Mais de 1.500 índios morreram nessa batalha, a maioria deles executados impiedosamente pelos portugueses. História do Brasil Luís Bustamante 21 3 Economia e Sociedade no Brasil Colônia 3.1 Controvérsias sobre a sociedade colonial Nas décadas de 1970 e 1980, historiadores como Caio Prado Júnior e Fernando Novaes acreditavam que a colonização teria servido a um único propósito: a produção de riquezas para a metrópole portuguesa. Esse era, segundo esses autores, o “sentido” da colonização. Todo o dinamismo da colônia estaria subordinado à lógica da economia de exportação, cujo objetivo era a acumulação de capital na metrópole. O trinômio latifúndio, monocultura/mineração e escravidão resumiria a essência da experiência colonial: Nos últimos anos, essas idéias foram revistas e, em parte, superadas. Novas descobertas, feitas por autores como Ciro Flamarion Cardoso, João Fragoso e Manolo Florentino, mostraram que a vida colonial era muito diversificada e complexa e, por isso, não se resumia apenas à agricultura e mineração destinadas à exportação. Esses historiadores tiveram acesso a novos documentos do período colonial, que não eram antes acessíveis ou valorizados, como inventários post-mortem e arquivos guardados na Torre do Tombo, em Portugal. Segundo esses pesquisadores, a colônia contava com uma grande população livre, formada por libertos, brancos pobres, pequenos proprietários, agregados e comerciantes, que movimentavam uma complexa economia interna. Essa parte da sociedade colonial produzia gêneros essenciais, como alimentos, vestimentas, artefatos de couro, animais de transporte, que eram consumidos no próprio mercado interno. Embora a escravidão fosse a relação de trabalho dominante, coexistia com outras formas, como o trabalho familiar nas pequenas posses de terra, a parceria e o assalariamento periódico. A constatação dessa diversidade social e econômica no período colonial, da qual fazia parte setores com outras motivações que não a acumulação de capital pela metrópole, impede que se fale de um único “sistema colonial”: Esses autores mostraram que, na colônia, as diferenças regionais eram maiores, e a estrutura social mais diversificada, do que concebiam os autores marxistas da segunda metade do século XX. Essa mudança de concepção é parte de uma transformação maior do pensamento, que vem ocorrendo desde os anos 90 do século passado, na qual as grandes explicações sistemáticas estão sendo abandonadas em favor da admissão de que os fatos históricos têm múltiplas causas, cujos resultados são sempre singulares. No lugar de rotular períodos e experiências históricas (“feudalismo”, “sistema colonial”, “acumulação primitiva de capital”), a grande tarefa dos historiadores, hoje, é entender o que realmente se passou, com todas as cores, emoções e vida que cada acontecimento teve. 3.2 Estado e Igreja na Colônia No Brasil colonial, Igreja e Estado, embora estivessem ligados, eram instituições com poderes distintos. A Igreja era responsável pela maior parte do controle sobre a vida cotidiana das pessoas. O ensino, por exemplo, era ministrado exclusivamente por colégios mantidos por ordens religiosas, não existindo, portanto, escolas laicas. Outros aspectos da vida social, como batismo, 19 - Casa de Câmara e Cadeia em Porto Seguro (BA). História do Brasil Luís Bustamante 22 casamento e funerais, também eram regulados pela igreja. Era por meio desses rituais religiosos que os indivíduos passavam a ter existência oficial para a sociedade. O Padroado Real foi uma instituição criada em Portugal, pela Igreja de Roma, durante a expansão marítima. Por intermédio dele, o Papa delegou ao Rei a função de criar dioceses, nomear bispos e cobrar o dízimo devido à Ordem de Cristo. Para desempenhar essas funções, criou-se um órgão do Estado, denominado Mesa de Consciência e Ordens, à qual todo o clero secular (isto é, não ligado às ordens religiosas) se subordinava. Nas vilas e cidades, o poder local era exercido nas Câmaras Municipais, instituições que existiam desde a Idade Média e reproduzidas no Brasil. A construção de uma Casa de Câmara e Cadeia dava à localidade o status de vila. Assim, ela passava a ter direito a um termo (território municipal) demarcado. Não era o tamanho da população ou estrutura urbana o que diferenciava uma vila de uma cidade e, sim, o fato de que estas, diferente daquelas, sediavam dioceses ou bispados. Os vereadores das câmaras municipais eram escolhidos por votações das quais participavam apenas os homens bons, isto é, homens de posses que atestassem “pureza de sangue” (que não tivessem antepassados negros, indígenas, judeus ou árabes) e ausência de “defeitos mecânicos” (que não houvessem realizado trabalho braçal em nenhum momento de suas vidas). 3.3 A Escravidão Colonial A escravidão existiu no Brasil, e em grande parte do continente americano, por mais de três séculos. Foi a experiência que mais profundamente marcou a sociedade brasileira: criou riquezas, povoou o país, gerou uma rica mistura de culturas, mas também deixou uma herança de mentalidades arcaicas, banalização da violência e racismo, com a qual convivemos até hoje. A escravidão na América não foi inventada durante a colonização, mas resultou de práticas que já existiam na Europa, antes da descoberta do Novo Mundo. Embora não fosse a forma dominante de sujeição ao poder pessoal, não era estranha aos europeus da Idade Média. Por exemplo, escravos muçulmanos eram explorados nas minas e plantações comerciais mantidas pelas cidades italianas no Mediterrâneo. Neste e em todos os outros casos, a prática era justificada pelo fato de os escravos, capturados em guerras tidas como “justas”, não serem cristãos. Dentre as várias formas de servidão pessoal existentes na Europa, os portugueses optaram no Brasil pela escravidão por um motivo fundamental. Havia um paradoxo entre a enorme extensão de terras disponíveis e a falta de trabalhadores que se dispusessem voluntariamente a cultivá-las, submetendo-se ao poder de grandes proprietários. Noutras palavras, escravizar pessoas, obrigando- os a jornadas intensivas de trabalho, era a única maneira de gerar riqueza concentrada na vastidão do Novo Mundo. 3.3.1 A Escravidão dos Índios No início da colonização, os índios foram os primeiros a serem explorados como escravos. Os colonos os capturavam em expedições de apresamento, ou os negociavam com tribos inimigas, após terem sido aprisionados em guerras. A partir do final do século XVI, os africanos (negros da Guiné) foram, aos poucos, substituindo os índios (negros da terra). Todavia, a escravidão indígena ainda sobreviveu por muitos anos nas regiões mais pobres da colônia, como em São Paulo, que só começou a receber escravos africanos no século XVIII, e na Amazônia, onde, atéo início do 20 - Escravos índios. Litografia de Debret. História do Brasil Luís Bustamante 23 século XIX, ainda se faziam “descimentos” de índios capturados na floresta. Do final do século XVI em diante, o aumento da exploração econômica, em especial pela atividade da cana de açúcar, gerou uma demanda por escravos superior ao que a captura de indígenas poderia suprir. Por isso, aumentou o tráfico de escravos pelo Oceano Atlântico, e os africanos passaram a predominar sobre os nativos. Vários fatores explicam essa substituição, entre eles a alta mortalidade dos índios, provocada pelas doenças trazidas pelos colonizadores, e a destruição de sua organização social, econômica e cultural, nas guerras ou no convívio com os europeus. Por causa dessa verdadeira catástrofe demográfica e social, houve rápido decréscimo da população indígena do Brasil entre os séculos XVI e XIX, o que tornava cada vez mais difícil a captura de escravos nativos. Antes do contato com os europeus, os índios viviam da caça e coleta nas matas e cerrados, complementando parcialmente suas economias com uma agricultura rudimentar. Uma vez escravizados, não estavam adaptados, nem dispunham de preparo técnico, para trabalhar em monoculturas agrícolas ou exploração mineral. Por terem maior ligação com o território e os povos nativos, tendiam a fugir e resistir mais à escravização do que os africanos. Outro fator que inibiu a escravização dos índios foi a proteção que as ordens religiosas davam a eles, em especial a Companhia de Jesus. Conflitos entre jesuítas, que desejavam reduzir os índios em aldeias e evangelizá-los, e os colonos, que queriam escravizá-los, foram constantes entre os séculos XVI e XVIII. Os padres da Companhia, por exemplo, foram banidos de São Paulo pelos colonos, em 1640, por causa de sua recusa em ceder os índios das aldeias aos fazendeiros. No Maranhão, durante a Revolta de Beckman, em 1684, os jesuítas também foram expulsos pelos fazendeiros. Também a Coroa, influenciada pelos religiosos, tendia a criar leis que protegessem os índios. Em 1680, a escravidão indígena foi abolida por decreto real, mas a lei foi praticamente ignorada. Em 1758, o Marquês de Pombal determinou outra proibição, desta vez com maior efeito prático. 3.3.2 A Escravidão dos Africanos Os portugueses começaram a traficar escravos da África em 1442. Trazidos das feitorias de Arguim, Axim e São Jorge da Mina, eram vendidos em Portugal ou nas ilhas do Atlântico, em especial Madeira e Cabo Verde, onde se começava a praticar a agricultura da cana de açúcar. No Brasil, os primeiros escravos africanos foram trazidos em 1532, na expedição colonizadora de Martim Afonso de Souza. Continuaram a chegar, ainda em pequeno número, nos anos seguintes, junto com os primeiros povoadores. Somente a partir de 1570, estabeleceu-se o comércio negreiro regular entre o Brasil e a África. A preferência dos portugueses pelos africanos se devia, em primeiro lugar, ao fato da Coroa poder taxar o tráfico transatlântico e, assim, obter ganhos, o que era mais difícil quando os escravizados eram os índios. Em segundo lugar, a prática da escravidão já era antiga na África, muito anterior à chegada dos europeus. Ao estabelecer feitorias negreiras na costa, os portugueses incentivaram as expedições de captura, feitas por caçadores de escravos locais. Com isso, a partir do século XV, desenvolveu-se na África uma importante economia baseada no escambo de escravos. Alguns reinos negreiros tornaram-se muito poderosos, como Ashanti e Daomé, situados no Golfo da Guiné. Outro fator que contribuiu para a preferência européia pelos africanos foi sua destreza no manejo da agricultura, pecuária e metalurgia, uma vez que eram originários de sociedades nas quais essas práticas eram muito antigas. 21 - Castelo de São Jorge da Mina, no Gana. História do Brasil Luís Bustamante 24 Durante o século XVI, a maioria dos escravos trazidos para o Brasil veio da costa da Guine (Bissau, Cacheu) e da Costa da Mina. Desenvolveu- se, nos portos africanos, a prática do escambo, isto é, a troca direta de escravos por manufaturas produzidas na Europa (tecidos, ferramentas, armas de fogo) ou no Brasil (fumo e cachaça). Do início do século XVII em diante, a origem dos cativos se diversificou. Os portos da África Central e Meridional (Luanda, Benguela e Cabinda) tornaram-se os maiores exportadores, embora escravos também viessem de Moçambique, embarcados na “carreira da Índia”. A Costa da Mina, no entanto, manteve-se como o principal fornecedor para o Recôncavo Baiano até o século XIX. O trafico negreiro transatlântico, chamado de trato dos viventes ou infame comércio pelas crônicas da época, ocorria em condições subumanas. Isso ocorria porque o objetivo dos negreiros era realizar lucro máximo a cada carregamento. Assim, lotavam os porões dos navios com o maior número possível de cativos, mesmo que isso significasse a morte de muitos deles por sede, desnutrição ou doenças durante a travessia. Alguns estudos estimam em 15%, em média, os mortos ao final da viagem, em relação ao total de embarcados. Os principais portos por onde os escravos chegavam ao Brasil, no período colonial, eram Recife, Salvador, São Luis e Rio de Janeiro. Logo em seguida ao desembarque, os cativos eram colocados à venda em mercados, dos quais o Valongo, no Rio de Janeiro do século XIX, tornou-se o mais famoso. Algumas vezes, senhores de escravos os adquiriam diretamente nesses locais, porém o mais comum era que traficantes de outras regiões os comprassem, para revendê-los com lucro em outras partes do Brasil. O transporte, ou tráfico interno, era feito por barcos, ao longo da costa, ou por tropas de mulas, quando o destino era o interior do país. De 1570, quando o tráfico começou, até 1850, data de sua extinção, foram trazidos cerca de 4 milhões de africanos para o Brasil. 3.3.3 Ideologia e Economia da Escravidão Não houve nenhuma região do Brasil que não tenha tido escravidão. Diferente de outros países, como México e Estados Unidos, nos quais se limitou a determinadas partes do território, no Brasil a escravidão foi elemento central na formação da população, economia, mentalidades e cultura. Os escravos eram explorados em todos os tipos de atividade, desde as domésticas, passando pelo comércio, agricultura, pecuária, até a indústria. Correspondiam à parte motora da sociedade, isto é, a eles eram delegados todos os tipos de trabalho braçal. Por isso, o trabalho físico 22 - Navio negreiro. Gravura de Rugendas. 23 - Uma senhora e seus escravos em seu lar. Litografia de Debret. História do Brasil Luís Bustamante 25 era ideologicamente associado à escravidão e, por isso, considerado indigno, chamado de “defeito mecânico” nos documentos da época. Essa visão pouco dignificante do trabalho existia inclusive entre as pessoas pobres. Também elas, assim que podiam, adquiriam escravos para se livrarem da obrigação do esforço físico. Até mesmo os ex-cativos, uma vez alforriados, tratavam de economizar recursos para comprarem seus próprios escravos. Dessa forma, embora tenham existido grandes senhores de imensos plantéis humanos, o mais comum era a fragmentação da posse de escravos nas mãos de milhares de pequenos proprietários de um ou dois cativos. A escravidão, portanto, era um valor compartilhado por toda a sociedade colonial, e não apenas restrito à elite. As atividades econômicas mais lucrativas, tais como a agricultura de gêneros voltados para a exportação e a mineração do ouro, tendiam a concentrar maior número de escravos. Por isso, as regiões que tiveram as maiores populações de cativos no período colonial foram aquelas
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