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a produção do conhecimento no campo da educação especial organizadores josé geraldo silveira bueno katya mitsuko zuquim braghini kazumi munakata silvia márcia ferreira meletti .................................................................................................................................................................. Esta edição recebeu apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP. .................................................................................................................................................................. Todos os textos estão idênticos aos originais recebidos pela Editora e sob responsabilidade dos Autores e Organizadores. .................................................................................................................................................................. 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Alda Junqueira Marin (coord.) Profa. Dra. Adriane Knoblauch Prof. Dr. Antonio Flavio Barbosa Moreira Profa. Dra. Dirce Charara Monteiro Profa. Dra. Fabiany de Cássia Tavares Silva Profa. Dra. Geovana Mendonça Lunardi Mendes Profa. Dra. Graça Aparecida Cicillini Prof. Dr. José Geraldo Silveira Bueno Profa. Dra. Luciana de Souza Gracioso Profa. Dra. Luciana Maria Giovanni Profa. Dra. Maria das Mercês Ferreira Sampaio Profa. Dra. Maria Isabel da Cunha Prof. Dr. Odair Sass Profa. Dra. Paula Perin Vicentini Profa. Dra. Suely Amaral Mello .................................................................................................................................................................. SUMÁRIO Prefácio Rosalba Maria Cardoso Garcia Apresentação José Geraldo Silveira Bueno Katya Mitsuko Zuquim Braghini Kazumi Munakata Silvia Márcia Ferreira Meletti PARTE UM EDUCAÇÃO ESPECIAL COMO OBJETO DE PESQUISA HISTÓRICA Capítulo 1 Instituição e educação especial: perspectiva histórico-pedagógica Justino Pereira de Magalhães Capítulo 2 Os cegos, “esses infelizes”: sujeitos, instituições e circulação de conhecimentos pedagógicos (séculos XIX e XX) Helder Manuel Guerra Henriques PARTE DOIS PESQUISAS SOBRE O CAMPO PEDAGÓGICO 9 16 25 26 58 104 Capítulo 3 Inclusão escolar de alunos com deficiência intelectual e expectativas de aprendizagem: análise do documento oficial da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo Patrícia Tanganelli Lara Capítulo 4 Alfabetização de alunos com deficiência intelectual: um estudo sobre estratégias de ensino utilizadas no ensino regular Mirian Célia Castellain Guebert Capítulo 5 Avaliação diagnóstica nos alunos com baixo rendimento: ações colaborativas entre educação e saúde Viviane Ferrareto da Silva Pires PARTE TRÊS DEFICIÊNCIA, POLÍTICAS E MEIO SOCIAL Capítulo 6 Educação de adultos com deficiência intelectual grave: entre a exclusão social e o acesso aos direitos de cidadania Lucélia Fagundes Fernandes Noronha 105 145 166 195 196 Capítulo 7 Surdez, trajetórias sociais e a construção das identidades Carla Cazelato Ferrari Capítulo 8 Os Programas de Livro e as políticas públicas de acesso à leitura na perspectiva da educação especial Tatiana de Andrade Fulas PARTE QUATRO PESQUISAS COM BASE EM DADOS ESTATÍSTICOS OFICIAIS Capítulo 9 Indicadores sociais, escolarização de alunos com deficiência e a pesquisa educacional Silvia Márcia Ferreira Meletti Capítulo 10 Censo escolar da educação básica: uma análise das trajetórias de alunos com deficiência intelectual matriculados na rede municipal de Londrina-PR (2007-2015) Jéssica Germano 223 252 285 286 320 Capítulo 11 Escolarização de alunos com deficiência intelectual: as estatísticas educacionais como expressão das políticas de educação especial no Brasil (2007-2012) Ricardo Schers de Goes Capítulo 12 Deficiência, raça e gênero: uma análise de indicadores educacionais brasileiros Michelle Melina Gleica Del Pino Nicolau Pereira Capítulo 13 A filantropia e a segregação na educação especial: um olhar a partir dos indicadores educacionais brasileiros Natália Gomes dos Santos PARTE CINCO A PESQUISA BIBLIOGRÁFICA EM EDUCAÇÃO ESPECIAL Capítulo 14 O Repositório de Livros de Educação Especial das Bibliotecas Universitárias – LIEEB José Geraldo Silveira Bueno e Carla Cazelato Ferrari 341 371 399 426 427 Capítulo 15 Pesquisa bibliográfica: análise de resumos acadêmicos sob a teoria de Raymond Williams ‒ o ensino-aprendizagem de surdos no Brasil Geane Izabel Bento Botarelli Capítulo 16 Os caminhos percorridos que resultaram na tese intitulada “A produção acadêmica sobre deficiência intelectual: um balanço das teses defendidas entre 1993 e 2015” Pâmela Carolina Martins Tezzele Capítulo 17 Veiculação da produção científica sobre o autismo no Brasil: embates e tensões Katia Cristina Luz Capítulo 18 Análise da produção intelectual em Educação e Letras/Linguística: um balanço de teses e dissertações sobre o ensino-aprendizagem de inglês para alunos com deficiência Vinícius Neves de Cabral SOBRE OS AUTORES 447 474 506 536 558 a produção do conhecimento no campo da educação especial 9 PREFÁCIO Inicio manifestando minha alegria em escrever o prelúdio de uma importante publicação reunindo reflexões acerca da educação especial. A coletânea que tenho a honra de prefaciar conjuga elementos importantes para a pesquisa educacional, dentre as quais ressalto: 1) resulta de um evento de socialização de produção acadêmica, o VI Seminário Internacional: a produção do conhecimento no campo da educação especial organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC- SP; 2) proporciona o intercâmbio com pesquisas realizadas em outro país, no caso, Portugal; 3) reúne um conjunto de trabalhos produzidos por pesquisadores que, em sua extensa maioria, estão articulados mediante o grupo de pesquisa Processos de escolarização, desigualdades sociais e diversidade cultural (PUC-SP), liderado pelo professor José Geraldo Silveira Bueno; 4) boa parte dos trabalhos que a constituem é derivada de dissertações e teses. Em síntese, os textos em tela resultam de trabalho de produção sistemática e coletiva de conhecimento, sob a coordenação de um pesquisador experiente e fomentador de novas questões e horizontes à pesquisa educacional, guardando entre si características que marcam essa contribuição de forma singular. Outrossim, a produção intelectual do professor José Geraldo perpassa todos os textos, quer seja como referencial que contribuiu para as reflexões desenvolvidas, quer seja na condução impressa por sua orientação acadêmica. a produçãodo conhecimento no campo da educação especial10 Na atual conjuntura brasileira, permeada por cortes orçamentários para a área social, retração dos recursos para a área da educação e fomento à pesquisa, e com a ascensão de um pensamento conservador, considero uma demonstração de força e resistência persistir com a estratégia do trabalho coletivo, na universidade ou em qualquer outra instituição. A coletânea em tela, em seu conjunto, abraça demandas de suma importância e relevância acadêmica e social para a área da educação, ao mesmo tempo em que difunde um posicionamento político e teórico de reconhecer e afirmar a educação especial como campo de conhecimento e objeto de pesquisa. Já aprendemos com a história que em momentos como esses que estamos vivendo, aqueles que estão nas margens dos processos sociais são os primeiros a serem atingidos. Levar adiante a pesquisa acadêmica de forma coletiva e difundir o campo de conhecimento educação especial pode se revelar importante estratégia de luta pela educação pública para uma parcela significativa da população brasileira. Instigada pela defesa da educação especial como campo de conhecimento, que foi apreendida como um fio condutor dos trabalhos que constituem esta coletânea, realizei um estudo de pequena monta na base corrente de dados do Diretório de Grupos de Pesquisa - DGP do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.1 Efetuei duas buscas 1 Consulta em http://lattes.cnpq.br/web/dgp, realizada em 22 de maio de 2018. Os dados registrados são referentes ao ano de 2016. a produção do conhecimento no campo da educação especial 11 inserindo no campo “buscar grupos” o descritor “educação especial” utilizando como um primeiro filtro a “grande área” Ciências Humanas nas duas buscas: a primeira com um segundo filtro “área” – Educação e a segunda busca com um segundo filtro “área” – Psicologia. A opção pelo procedimento deve-se ao fato de que consultando os dados já sistematizados no próprio Diretório,2 identificamos que do total de 8.091 grupos registrados na grande área das Ciências Humanas, o maior contingente corresponde à área da Educação com 3.595 grupos, que representa 44,43% da grande área. Em segundo lugar, localizamos a área de História, com 912 grupos registrados, o que corresponde a 11,27% da grande área Ciências Humanas. A terceira área mais expressiva na grande área é a Psicologia com 884 grupos registrados (10,92%). As demais áreas das Ciências Humanas conforme a classificação do DGP/ CNPq (sociologia, geografia, filosofia, antropologia, ciência política, teologia e arqueologia) não foram consideradas nesse estudo, devendo ser exploradas em outra oportunidade. A área de História foi descartada do estudo no procedimento principal, o qual foi definido como a verificação do quantitativo de grupos de cada área a partir do descritor “educação especial”, uma vez que não foi localizado nenhum registro nessa busca. Localizei, a partir da busca com o descritor “educação especial”, 201 grupos registrados na área de Educação e 2 Consulta em http://lattes.cnpq.br/web/dgp/painel-dgp/, realizada em 22 de maio de 2018. Os dados registrados são referentes ao ano de 2016. a produção do conhecimento no campo da educação especial12 29 grupos na área da Psicologia, totalizando 230 grupos de pesquisa na grande área Ciências Humanas em atividade no Brasil com pesquisas nesse campo. Em uma segunda filtragem buscamos dentre os grupos já identificados, aqueles que contêm o termo “educação especial” em sua denominação, a partir da qual localizamos 59 grupos na área da educação e três grupos de pesquisa na área da Psicologia, totalizando 62 grupos com essa característica. Identificamos que 168 grupos mencionavam a educação especial como palavras-chaves, ou nas linhas de pesquisa ou ainda nas descrições das ações desenvolvidas pelos pesquisadores. Tais dados podem conduzir a uma análise de que somente 62 de 230 grupos se dedicam à pesquisa sobre educação especial como foco principal, a ponto de a denominação do grupo conter o termo específico. Por outro lado, os mesmos dados podem revelar que o campo da educação especial vem sendo mais pesquisado a partir dos aportes teóricos e metodológicos comuns à área da educação, constituídos pelos fundamentos da história, filosofia, sociologia, economia, psicologia. Os grupos analisados que não contém o termo “educação especial” em sua denominação ressaltam como foco principal de estudos, entre outros, a formação de professores, o currículo, a política educacional, a didática, o desenvolvimento humano, a aprendizagem, o que pode significar que a educação especial vem sendo absorvida nos grupos de pesquisa e nos programas de pós-graduação como um objeto de estudo com as características gerais da área da educação, mas com particularidades que são próprias a um campo de conhecimento. a produção do conhecimento no campo da educação especial 13 Inseridos nos processos de pesquisa da área da educação, os estudos apresentados na coletânea em foco contém diferentes abordagens atuando no campo de conhecimento da educação especial de forma ampla, a saber: bibliográfica, histórica, documental, pesquisa de campo, estudos de indicadores sociais e estatísticas educacionais, estudos de trajetórias sociais e estudantis. No desenvolvimento de tarefa tão importante, os pesquisadores debruçaram-se sobre dados quantitativos e qualitativos, mobilizaram produções acadêmicas e análises diversas, aglutinados por temas que contém em si uma agenda de pesquisas. A partir da leitura dos 18 capítulos que compõem as cinco partes da coletânea de textos, dentre as muitas temáticas problematizadas, elencamos aquelas que consideramos presentes de forma transversal, aqui expostas em seis agrupamentos: 1 A questão institucional: história das instituições educacionais, o conflito assistencial e educacional, a manutenção de atendimentos segregados mediante as políticas de perspectiva inclusiva, a filantropia como parte da política pública, a educação especial pública na escola regular; 2 O currículo: o desafio da diversidade/diferença/ expectativas de aprendizagem, o dilema adaptações/ diferenciações curriculares no processo de escolarização; a produção do conhecimento no campo da educação especial14 3 Os/as professores/as: papéis destinados aos professores e às professoras no campo da educação especial; a natureza e a qualidade do intercâmbio entre professores da educação especial e demais docentes; 4 Acesso à cultura formal: alfabetização e interação com a linguagem escrita, a produção de material de leitura/ diversidade humana, acesso à cultura letrada; 5 Objetivação ensino/aprendizagem: resultados de aprendizagem/qualidade de ensino, avaliação diagnóstica/desempenho individual considerado individualmente ou socialmente; 6 Estudantes: incorporação de estudantes com deficiência no sistema escolar, relação presença no ambiente escolar/particularidades, conflito direito à igualdade/ direito à diferença, relação identidade social/trajetória social, tematização da deficiência e da escolarização das pessoas com deficiência face aos processos de produção da desigualdade social associada às questões de raça e gênero. Nossa intenção não foi reduzir a produção em apreciação a seis agrupamentos temáticos, mas demonstrar a fertilidade dos estudos nela contemplados, os quais, ao mesmo tempo articulam elementos clássicos do debate educacional com questões contemporâneas da área. Já do ponto de vista teórico, os estudos que constituem esse trabalho têm em comum o esforço a produção do conhecimento no campo da educação especial 15 de reiterar a importância de a educação especial, como campode conhecimento, ser pensada mediante referenciais sociológicos, imprimindo dessa forma uma marca, uma forma própria de ler o fenômeno estudado, o que singulariza sua contribuição. Como comentário final, mas não menos importante, ressalto a análise crítica presente em todo o texto acerca dos resultados educacionais e escolares das políticas de educação especial na perspectiva inclusiva no Brasil sem ferir o princípio do direito à educação escolar, reafirmando a necessidade histórica de acesso aos processos de escolarização, à cultura humana que se acessa mediante a escola, sem perder de vista que tais processos se realizam numa sociedade desigual. Generosamente, o Programa de Pós-Graduação em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, mediante a produção desse trabalho, se faz presente nesse momento, honrando a sua história de contribuições acadêmicas e políticas, ao oferecer um rico e abrangente material de estudo que poderá fomentar densos debates entre aqueles que se propõem a fazer avançar o campo de conhecimento da educação especial. ROSALBA MARIA CARDOSO GARCIA Viña del Mar, Chile, Maio de 2018. a produção do conhecimento no campo da educação especial16 APRESENTAÇÃO O livro A produção do conhecimento no campo da educação especial é o resultado das investigações acadêmicas oriundas de três diferentes grupos de pesquisas que trabalham com o tema da educação especial e que compuseram o quadro de intercâmbios, nacionais e internacionais, agrupados no “VI Seminário Internacional: a produção do conhecimento no campo da Educação Especial”, acontecido nos dias 19, 20 e 21 de fevereiro de 2018, sob o financiamento da FAPESP e do CNPq. Este evento dá continuidade a uma sequência histórica de Seminários Internacionais promovidos pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade (EHPS), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que desde 1995, tem realizado encontros acadêmicos de altíssimo nível, cujas temáticas envolveram questões que contribuem para o adensamento da pesquisa em educação. Nesses encontros foram discutidos temas como o “Banco Mundial e as políticas educacionais” (I Seminário - 1995), sobre o impacto do órgão no adensamento da lógica do campo econômico na educação; “Novas Políticas Educacionais” (II Seminário – 1996), dando enfoque aos impactos das reformas educacionais, destacando o papel do Estado na elaboração de tais políticas; “Escola e Cultura” (III Seminário – 2008), estudando a escola nas suas recíprocas relações com a cultura, integrado por debates sobre diversidade cultural e currículo; “A escola, desigualdades, diversidades” (IV Seminário – a produção do conhecimento no campo da educação especial 17 2011), preocupado com a constituição e organização das práticas educativas em relação aos problemas oriundos das condições sociais e econômicas da população e da diversidade cultural que caracteriza a sociedade contemporânea; “Educação e Regimes Ditatoriais: 50 anos do golpe militar no Brasil” (V Seminário – 2014), que analisou as consequências de regimes autoritários para a sociedade em geral e, especialmente, para a educação e para a cultura, rememorando o golpe militar no Brasil ocorrido em 1964. Intelectuais de diferentes países passaram pelos respectivos seminários, fortalecendo os debates sobre o campo educacional, tais como: Michael Apple (EUA), José Gimeno Sacristán (Espanha), Christian Laville (Canadá), Anne-Marie Chartier (França), José Luiz Coraggio (Argentina), Thomas Popkewitz (EUA), Munanga Kabengele (Brasil), Bernard Lahire (França), Clarice Nunes (Brasil), Pablo Pineau (Argentina), Antón Costa (Espanha), Circe Bittencourt (Brasil), Alda Junqueira Marin (Brasil), Thomas Skrtic (EUA), Noam Chomsky (EUA), Manuel Antonio Garreton (Chile), Carolina Kaufmann (Argentina), Paolo Bianchini (Itália), Maria Ligia Coelho Prado (Brasil), Dalmo Dallari (Brasil) e muitos outros. No ano de 2018 o “VI Seminário Internacional: A produção do conhecimento no campo da educação especial” reuniu um conjunto de textos a partir do trabalho de pesquisadores efetivado pela parceria entre o PEPG-EHPS com a Universidade Estadual de Londrina (UEL) e centros internacionais de conhecimento, tais a produção do conhecimento no campo da educação especial18 como a Universidade de Lisboa e o Instituto Politécnico de Portalegre (Portugal). Vemos aqui o trabalho do Prof. Dr. José Geraldo Silveira Bueno, com 25 anos de uma trajetória de estudos, pesquisas e formação de doutores e mestres na área da educação especial, a partir de seu trabalho na linha de pesquisa “Processos de escolarização, desigualdades sociais e diversidade”. Verifica-se também a rica interlocução acadêmica constante com a Profa. Dra. Silvia Marcia Ferreira Meletti (UEL) por sua atuação concentrada na educação escolar e nas políticas educacionais, com ênfase na Educação Especial, principalmente no estudo de indicadores educacionais. O Prof. Dr. Kazumi Munakata, que com o projeto “A educação dos sentidos na escola contemporânea brasileira (séculos XIX-XX): projetos, práticas, materialidades”, tem aberto um caminho de pesquisas, na história da educação, no sentido de pensar como se faz a educação de quem está desprovido de um ou mais sentidos. O livro, portanto, apresenta o trabalho conjunto de grupos de pesquisa, sociólogos e historiadores da educação, que, por meio da interlocução interdisciplinar e do debate acadêmico, procurou dar força analítica às investigações nesse campo de pesquisa e criar novos horizontes de investigação. O debate tanto analisou as questões políticas e sociais que visam ampliar as oportunidades educacionais de sujeitos marginalizados socialmente, quanto criticou a característica seletiva da escola brasileira, que, em sua trajetória conservadora, visa à manutenção das condições sociais de dominação. Aqui, vemos a educação especial sendo discutida por a produção do conhecimento no campo da educação especial 19 diferentes caminhos: educação de alunos com deficiência intelectual e com necessidades educacionais especiais; expectativas em relação as suas aprendizagens; análises de documentos oficiais, estatísticas; estudos sobre as estratégias de ensino utilizadas no ensino regular; a exclusão social e o acesso aos direitos de cidadania; indicadores sociais; análises das iniciativas políticas; análise histórica de materiais didáticos, estado da arte da produção acadêmica no Brasil; um panorama da literatura educacional ocupada com o tema etc. O seu conteúdo está dividido em categorias formuladas para o Seminário, tratando de: • Educação especial como objeto de pesquisa histórica; • Pesquisas sobre o campo pedagógico; • Deficiência, políticas e meio social; • As pesquisas com base em dados estatísticos oficiais; • A pesquisa bibliográfica em educação especial. Abrindo a coletânea, temos os estudos sobre a educação especial como objeto de pesquisa histórica com a participação de dois convidados internacionais. O primeiro trabalho é do professor Justino Pereira de Magalhães, que faz uma perspectiva histórico-pedagógica da relação entre Instituição, pensada como educação fundamental e como reeducação, e a educação especial. Levando em conta a ascensão da cultura escrita, centrada no triângulo antropomórfico formado por cérebro, mão e visão, o que tornou notórios os condicionamentos de natureza cognitiva e fisiológica, o texto explica a a produção do conhecimento no campo da educação especial20 criação de métodos e sistemas de comunicação verbal especializada, para cegos e para surdos, gerando novas manifestações de escrita e a linguagem gestual. Ao final, apresentatanto a crise do que o autor chama de instituição e a percepção da “evolução substantiva e semântica” da Educação Especial, nas últimas décadas. O segundo trabalho é do professor Helder Manuel Guerra Henriques, que procura compreender quais modelos pedagógicos e culturais relacionados com o ensino dos cegos circularam entre o Brasil e Portugal, na transição entre os séculos XIX e XX. Sua base documental foi encontrada na primeira instituição portuguesa, fundada em 1863, a acolher crianças, jovens e adultos cegos, conhecido como Asilo de Cegos de Castelo de Vide. Em relação ao campo pedagógico, visando compreender a inclusão escolar de alunos com deficiência intelectual e expectativas de aprendizagem, temos aqui a análise do documento Referencial de Avaliação sobre a Aprendizagem do Aluno com Deficiência Intelectual (RAADI) em cotejamento com orientações destinadas aos alunos considerados normais, investigado por Patrícia Tanganelli Lara. Logo em seguida, Mirian Célia Castellain Guebert apresenta análise sobre os processos de alfabetização de alunos com deficiências em salas de ensino regular. Por fim, a avaliação diagnóstica nos alunos com baixo rendimento, tendo como campo empírico a rede pública do município de Santo André, é analisada por Viviane Ferrareto da Silva Pires. As discussões sobre deficiência, políticas e meio social foram introduzidas pela análise de Lucélia a produção do conhecimento no campo da educação especial 21 Fagundes Fernandes Noronha a respeito da educação de adultos com deficiência intelectual grave, entre os processos de exclusão social e o acesso aos direitos de cidadania. Já a pesquisadora Carla Cazelato Ferrari apresenta um estudo sobre as trajetórias sociais de surdos e a construção de suas identidades. A autora mostra como as condições objetivas de pessoas surdas revelam trajetórias diversificadas, bem como a construção de identidades sociais distintas, levando-as até mesmo a utilizar diferentes formas de comunicação, como a língua oral ou a língua de sinais. A investigação de Tatiana de Andrade Fulas mostra os Programas de Livros e as políticas públicas de acesso à leitura na perspectiva da Educação Especial. No texto, vê-se que a legislação é insuficiente para resolver as questões de acessibilidade, principalmente no que diz respeito aos editais dos Programas de Livros, já que os títulos em Braille e Libras, disponibilizados pelo governo federal, formam um acervo mínimo em comparação ao acervo disponível para alunos sem deficiência. Os indicadores sociais, escolarização de alunos com deficiência e a pesquisa educacional são estudados por Silvia Marcia Ferreira Meletti e abre a série de pesquisas que consideram os dados estatísticos oficiais. No caso, foram analisadas as recomendações dos organismos internacionais no que se refere à educação de pessoas com deficiência e a política de educação especial vigente no Brasil. Resulta do estudo que o acesso desta população a qualquer tipo de escola não está garantido e que formas de atendimento segregado a produção do conhecimento no campo da educação especial22 marcam a educação especial no Brasil. Em seguida, Jéssica Germano fez uma análise geral dos microdados do Censo Escolar da Educação Básica do município de Londrina de modo a perceber como é inconstante a trajetória de alunos com deficiência na cidade, pelos registros de ausência de aulas, instabilidade na frequência das matrículas, falta de registros escolares etc. Em outro estudo, Ricardo Schers de Goes apresenta a escolarização de alunos com deficiência intelectual, principalmente a partir das estatísticas educacionais. Faz um panorama sobre a expansão das matrículas de alunos com deficiência intelectual no ensino regular em regiões do Brasil em relação aos alunos com necessidades educacionais especiais (NEE), evidenciando a influência da categoria nos resultados dos levantamentos estatísticos no Brasil. O trabalho de Michelle Melina Gleica Del Pino Nicolau Pereira investiga os indicadores educacionais brasileiros, no que se refere às matrículas de pessoas com deficiência visual, auditiva, física e intelectual na educação básica, no ano de 2012, com base nos dados do Censo Escolar, em relação a gênero e raça. Para fechar este quadro, Natália Gomes dos Santos estudou a filantropia e a segregação na educação especial, analisando os dados de instituições especiais deste tipo, por dependência administrativa, categoria da escola especial, tipo de necessidade educacional especial e etapa de ensino. A autora destaca a predominância da filantropia nos serviços da área, o que acaba por justificar o estímulo financeiro para a manutenção desses espaços. a produção do conhecimento no campo da educação especial 23 O Repositório de Livros de Educação Especial das Bibliotecas Universitárias, pesquisa feita por José Geraldo Silveira Bueno e Carla Cazelato Ferrari, abre o bloco sobre a pesquisa bibliográfica em educação especial. Este trabalho teve por objetivo apresentar o resultado do levantamento, organização e classificação de livros que se voltaram especificamente para a educação especial, constantes dos acervos de diversas bibliotecas universitárias brasileiras. Resulta dessa ação um banco de dados on line de acesso livre à pesquisa em geral. Logo em seguida, Geane Izabel Bento Botarelli mostra a sua pesquisa bibliográfica a partir da leitura de resumos acadêmicos sobre o ensino-aprendizagem de surdos no Brasil, tomando-os como um gênero literário à maneira pensada por Raymond Williams. Dois pesquisadores, Pâmela Carolina Martins Tezzele, e logo em seguida, Vinicius Neves de Cabral estão preocupados com a produção acadêmica, no sentido de apresentar balanços sobre a produção na área. A primeira autora tem como foco a deficiência intelectual a partir do levantamento de teses e dissertações defendidas entre 1993 e 2015, estando elas concentradas nas área de Educação, Saúde e Psicologia. O segundo autor pesquisou 178 programas de pós-graduação da áreas de Educação e Letras/Linguística com o intuito de entender como é apresentado o ensino-aprendizagem de Inglês para alunos com deficiência. Ainda neste grupo, vemos o trabalho de Katia Cristina Luz que percebeu a ocorrência de uma luta simbólica entre a medicina e a psicologia na busca de caracterização do que significa o autismo a produção do conhecimento no campo da educação especial24 e as consequências sociais de ampliação do termo para “transtorno do espectro do autismo”. BOA LEITURA! os organizadores PARTE UM EDUCAÇÃO ESPECIAL COMO OBJETO DE PESQUISA HISTÓRICA a produção do conhecimento no campo da educação especial26 CAPÍTULO 1 INSTITUIÇÃO E EDUCAÇÃO ESPECIAL: PERSPECTIvA HISTÓRICO-PEDAGÓGICA Justino Pereira de Magalhães Pensar e rePresentar a diferença Pensar a diferença é, antes do mais, representá-la. E tal como sucede com outros objectos epistêmicos, também com a diferença humana “le langage de la science est en état de révolution sémantique permanente” (BACHELARD, 1971, p. 192). A epistemologia da diferença humana envolve uma dupla perspectiva: compreensão e explicação como manifestação do humano; contemplação e ação (teoria e prática), como campo científico e técnico. A educação tem sido referente fundamental para a caracterização da diferença. A deficiência é um domínio do campo da educação. Pensar e representar a diferença humana, na dupla acepção de simbolizar e agir, é uma operação de comparação e aplicação da norma; mas é também integrar e projetar quadros de ação. A noção de mutação é fundamental para entender a evolução na caracterização e nas modalidades de diferenciação, acolhimento, socialização, integração. Há uma semânticada deficiência, mas só muito lentamente tem vindo a ser superado o binômio normais e anormais, e mais lentamente a confusão entre anormalidade e deficiência. A deficiência e a integração são a produção do conhecimento no campo da educação especial 27 categorias com história; a inclusão é fundamentalmente sociopolítica. Em que medida o enfoque na inclusão tem condicionado a história da integração? Esta dúvida metódica decorre de um conjunto de princípios que os especialistas têm vindo a equacionar, nomeadamente quando pensam o institucional escolar. No quadro escolar, a inovação pedagógica vem possibilitando a inclusão, através de diferentes modos de integração, combinando as dimensões política, sociocultural, institucional, científica, pedagógica. De modo necessariamente sumário, é possível estabelecer uma diacronia que inclui noções básicas de reeducação. Na viragem do século XIX e primeiras décadas do século XX, foram implementados novos sistemas de educação, em regime de instituição, congregando, entre outros domínios científico-pedagógicos, a psicologia, a sociologia, a didática. Até aos anos 80 do século XX, o regime de instituição foi prevalecente, dando curso a pedagogias de educação especial e de reeducação. Desde a década de 1980 que tem estado em curso uma evolução substantiva e semântica da educação especial, no sentido de integração por inclusão, nomeadamente através da aproximação entre neurociências e cognição e de uma criteriosa utilização das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC). Neste contexto, David Rodrigues adverte que a inclusão não decorre diretamente da evolução da integração (RODRIGUES, 2006). Também José Geraldo Bueno tem chamado a atenção para a complexidade e as contradições subjacentes ao movimento de participação- a produção do conhecimento no campo da educação especial28 exclusão, pois que este movimento tem estado baseado na “homogeneização para a produtividade” (BUENO, 2011, p. 76). Mônica Kassar, por sua vez, chama a atenção para a conveniência de equacionar, em simultâneo, deficiência, integração e inclusão (KASSAR, 2012). Com efeito, à continuidade histórica da produtividade decorrente da industrialização e da terciarização, acentuada pela evolução tecnológica e pelo urbanismo, vieram associar-se a prevalência dos elementos intelectual e cerebral e, mais recentemente, também a computadorização. O desenvolvimento da cultura escrita como informação, comunicação e participação, acentuado pela escolarização, tornou legítima a utilização do Quociente Intelectual como diferenciador e instrumento de racionalidade pedagógica. No que reporta à educação especial, há ainda outra continuidade, que é o institucional escolar. Desde o movimento iluminista e literácito, iniciado no século XVIII, a integração escolar possibilitou o reconhecimento dos indivíduos como sujeitos; a participação cívica; a atividade produtiva. A integração escolar, enquanto habilitação literácita e instituição educativa, trouxe aproximações à inclusão. Neste sentido, a instituição educativa, ainda que frequentemente reduzida a institucionalização, assume pleno significado quando interpretada nos planos estrutural e conjuntural. Houve diferentes modalidades, tempos e circunstâncias de institucionalidade, combinando o uniforme e o específico, o transversal e o circunstancial. A inclusão dá sentido à integração, pois que estar integrado é ser parte. a produção do conhecimento no campo da educação especial 29 É estar preparado e assumir um papel ou mesmo uma função. Em consequência, as virtualidades da integração poderão não ser inteiramente obtidas com a inclusão. Enquanto não diferenciação, a inclusão dá sentido à integração, mas, paradoxalmente, a aparente facilidade que subjaz a alguns ambientes de inclusão pode redundar em debilidade educativa. A psicanálise a as convenções sobre direitos humanos foram os principais meios para a melhoria das sequências processuais e para as mutações na semântica da deficiência. No passado recente, também o desenvolvimento e a aplicação das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) têm favorecido alterações no domínio da diferença. No plano histórico-pedagógico, a semântica da deficiência contempla a sequência de diferenciar/categorizar; caracterizar/integrar; conhecer/incluir. da semântica da diferença Tomando a educação e, muito especificamente, o educacional escolar como norma, ação e gradação, a diferença humana, particularmente para os segmentos populacionais escolarizáveis, tem sido apresentada sob modalidade escalar, seccionando um eixo de contiguidade e progressão. Esta progressão privilegia a relação entre o desenvolvimento intelectual e o pedagógico. A diferença humana foi pensada de modo distinto, em diferentes tempos históricos, sendo possível assinalar linhas de continuidade, mas também reconhecer e levar em consideração rupturas e transformações. a produção do conhecimento no campo da educação especial30 Associada à combinação histórico-pedagógica, há uma semântica da diferença humana que inclui distintos aspectos e mutações, tendo em atenção as circunstâncias temporais, sociais, políticas. Em traços breves, o século XVIII ficou assinalado pelo reconhecimento da escola como meio de aculturação e modelação nas práticas da leitura e da escrita; no reconhecimento da participação literácita; na configuração de perfis letrados e profissionais associados à cultura escrita. A busca de normalidade fez evidenciar o anormal, mas o campo da anormalidade permaneceu mergulhado no sincretismo. Para os cegos e para os surdos-mudos, foram entretanto implementadas modalidades de participação na produção material e na economia. Desde o século XVIII foram criadas e formalizadas linguagens e métodos de aculturação, formação e integração. O institucional escolar foi referente e medida. Rompendo com o sincretismo, no decurso do século XIX foram introduzidas as noções de distinção e classificação, ligadas a ciências médicas, higienismo, fisiologia, psicologia, ciências jurídicas, pedagogia, antropometria. A configuração fisiológica e a capacidade cerebral foram tomadas como referência e base de classificação. Mas foram o desenvolvimento mental e, particularmente, a capacidade intelectual que, desde os primeiros anos do século XX, passaram a constituir o principal fator de separação, diferenciação, gradação. Com a aplicação da psicologia experimental, associada à pedagogia científica, foram criados meios e implementados instrumentos de observação, medição, a produção do conhecimento no campo da educação especial 31 diagnóstico e experimentação. A pedagogia científica integrava, entre outras inovações, a lei dos Centros de Interesse, estruturada por Édouard Claparède; os estádios de desenvolvimento, estruturados por Jean Piaget; a interação entre pensamento e linguagem tal como tinha sido teorizada por Leontiev Vigotsky; a estrutura de um currículo básico, aplicando a pedagogia dos Centros de Interesse de Ovide Decroly. A escala métrica de idade mental criada por Binet, em 1905, devidamente revista em 1908 e publicada por Simon em 1911 (Escala de Binet-Simon), era composta de trinta testes agrupados por idades. Para além do reconhecimento de graus de deficiência profundos, foi também utilizada para distinguir graus de oligofrenia. Em 1912, o psicólogo alemão William Stern fez uso do termo Quociente de Inteligência (QI) para medir a relação entre idade mental e idade cronológica (cf. COSTA, 1945-1946, p. 24). Em 1916, o psicólogo norte-americano Lewis Terman, ao rever a Escala de Binet-Simon – no que ficou conhecido como Revisão Stanford (RS), dado ser patrocinada pela Universidade Stanford –, fez correspondero QI a um índice de desenvolvimento mental expresso em 1.000 QI. A aplicação do Quociente Intelectual veio permitir uma gradação que foi utilizada para distinguir o fisiológico e o intelectual, mas, sobretudo, para graduar o Desenvolvimento Intelectual. Na sequência, outros coeficientes foram criados, como a Constante Pessoal de Yerkes (cf. COSTA, 1945-1946, p. 19-63). Ao adaptar a Escala de Desenvolvimento Intelectual, Terman fez a seguinte aplicação: QI superiores a 140 – a produção do conhecimento no campo da educação especial32 quase gênio ou gênio; de 120 a 140 – inteligência muito superior; de 110 a 120 – inteligência superior; de 90 a 110 – inteligência normal ou média; de 80 a 90 – atrasado, raramente classificável de debilidade mental; de 70 a 80 – zona marginal de deficiência, que abrange, por vezes, casos classificáveis de atrasados e, com frequência, de debilidade mental; inferiores a 70 – debilidade mental definida. Segundo Terman, as subdivisões da debilidade mental compreendem: de 50 a 70 ‒ cretinismo; 20 ou 25 a 50 – imbecilidade; inferiores a 20 ou 25 – idiotia (apud COSTA, 1945-1946, p. 27). À luz da Escala de Binet, a debilidade mental era problema escolar nos níveis compreendidos entre 50 e 70 (cf. PLANCHARD, 1982, p. 308-309). O Quociente Intelectual constituiu o instrumento fundamental na caracterização dos deficientes e na orientação de terapias e quadros curriculares. Foi assumido por políticas e regulamentos de diferentes países. A barreira dos 70-80 QI estabelecia a principal separação. Assim, por exemplo, na Suécia, havia, por meados do século XX, escolas especiais que acolhiam cerca de 2.500 crianças com QI entre 40 e 70. E havia quinhentas classes especiais frequentadas por 6 mil crianças cujo QI oscilava entre 70 e 80 (cf. CARLOS, 1947-1948, p. 189). A distinção entre escola especial e classe especial (também dita de aperfeiçoamento) é aqui determinante, pois que frequentemente a escola especial era internato, com localização e configuração próprias. Na Dinamarca, na sequência da lei de 20 de maio de 1933, foram criadas, no âmbito do Ministério do Trabalho e dos Assuntos Sociais, Comissões de a produção do conhecimento no campo da educação especial 33 Assistência: aos débeis mentais; aos cegos; aos surdos; aos epilépticos (cf. CARLOS, 1947-1948, p. 109). Foi também criada uma comissão para assistência a crianças difíceis, subnormais e normais. No âmbito de cada comuna, havia uma comissão de proteção à infância, a quem cabia dar encaminhamento a situações de carência familiar ou de deficiência somática ou psíquica. Desde finais do século XIX e, com maior intensidade, a partir das primeiras décadas do século XX, pensar o sistema escolar era também pensar a temática da deficiência, como objeto específico e à luz da pedagogia científica. Escrevendo em 1915, Faria de Vasconcelos, que havia fundado e dirigido a Escola Nova de Bierges (Bélgica) – instituição que Adolphe Ferrière considerou modelo de Escola Nova, consignou de forma peremptória: “Numa Escola Nova aplica-se rigorosamente o princípio de que nenhuma criança com deficiência é aceite para bem de todos” (VASCONCELOS, 2015, p. 217). E, na sequência, explicitava que todos os alunos eram admitidos a título provisório. Em Portugal, também Victor Fontes (que veio a ser o diretor do Instituto Aurélio da Costa Ferreira, destinado à Saúde Mental Infantil), numa conferência proferida em 1935, a convite da Liga Portuguesa de Profilaxia Social, fez uso das denominações crianças normais e crianças anormais e foi categórico no seu juízo: “A convivência e o ensino em comum de normais e anormais é prejudicial para ambos” (FONTES, 1939, p. 212). Pensar a escola é pensar a instituição educativa. O escolar era referente fundamental. De acordo com a a produção do conhecimento no campo da educação especial34 definição consignada por Raymond Boudon e François Boudon (1982), no Dictionnaire Critique de Sociologie, “Les institutions désignent toutes les activités régies par des anticipations stables et réciproques” (apud DUBET, 2008, p. 115). Integrado na instituição, o educando concilia internalidade e sociabilidade, objetivação e subjetividade. Ao dominar as tensões da experiência escolar, o aluno torna-se autor da sua própria educação: “En ce sens, l’école se transforme comme bien d’autres mondes sociaux, ceux de la famille ou du travail par exemple, en transférant les mécanismes de socialisation des institutions vers les individus” (DUBET, 2008, p. 17). A instituição concilia as noções de acolhimento (proteção), educação e reeducação. No fundamental, a instituição educativa é instituição total. Este era o sentido que o internato assumia enquanto Escola Nova. Deste modo, tomando a instituição como base da educação, cuja institucionalização corresponde e perpassa a longa modernidade, falar de diferença humana e equacionar a educação diferenciada é necessariamente analisar e historiar as modalidades de instituição. Assim, para caracterizar a diferença, ao desenvolvimento intelectual e à pedagogia torna-se necessário acrescentar o institucional educativo. Até o final da Segunda Guerra Mundial, as caracterizações, as terapias e as pedagogias decorreram sob o signo da especificidade e da segmentação. Deste modo, constituíam modalidade de integração. A institucionalização era a modalidade mais frequente, correspondendo a uma das seguintes configurações, enunciadas num crescente de a produção do conhecimento no campo da educação especial 35 institucionalidade: classe especial (aperfeiçoamento); escola especial (frequentemente em regime de internato para crianças deslocadas); internato (internato-escola); internato-oficina; internato vitalício. Estas modalidades de institucionalização permanecem em vigor até a atualidade, em praticamente todos os países, como informa a Organização Mundial de Saúde no Report de 2011. Na sequência do prolongamento escolar, associado à escola compreensiva e dando curso aos objetivos de participação cívica e econômica plenas, começava, por meados do século, a ser equacionada a temática da inclusão, em particular da inclusão escolar. Para alguns sistemas educativos, nomeadamente para os mais desenvolvidos, a inclusão constituiria uma otimização da integração social, cívica, profissional. O institucional escolar era um racional, modelo e meio. Desde as primeiras décadas da segunda metade do século XX que, quer ao nível das convenções internacionais, quer no interior dos sistemas nacionais de educação, equacionar a inclusão não mais deixou de ser também equacionar a desigualdade e a exclusão, mormente em relação à escola. Para o Brasil, em dezembro de 1961 foi finalmente promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que consagrava o conceito “Educação de Excepcionais”. Um pouco por todo o mundo dito desenvolvido, a década de 1980 ficou marcada por um grande investimento na formação profissional e numa ampliação dos benefícios sociais, quer diretamente aos deficientes, quer a empresas e instituições que lhes dessem emprego. O ano de 1981 foi declarado Ano Internacional a produção do conhecimento no campo da educação especial36 do Deficiente. Em 1983, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) consagrou a Convenção 159 à readaptação profissional e emprego de pessoas deficientes. As décadas de 80 e 90 do século XX ficaram marcadas pela convergência entre a ação dos particulares e a do Estado. A integração correspondeu, em boa parte, a um processo individual e grupal, que contou com caracterização, especialização, formação, participação. A integração está condicionada aos próprios indivíduos. Todavia, desfocada da integração, a inclusão, em virtude daabrangência e da descaracterização, pode secundarizar o programa formativo e trazer novas desigualdades. A inclusão passa pela capacitação dos indivíduos, no que é fundamental a cultura escrita e, particularmente, a literacia escolar, pois que constitui base de uma cidadania responsável, autônoma, comprometida, ética. Relevante tem sido também a efetiva participação dos indivíduos na produção material. Permanece, no entanto, o desafio de uma teoria democrática que contemple um multiculturalismo crítico, pois que a pertença e a existência numa determinada identidade grupal e cultural não garante a efetividade dessa experiência e menos a plena realização do humano; configura uma identidade e um conhecimento, mas não um (re)conhecimento, ficando comprometida a condição de capabilidade, tão cara a Ricoeur (2004, p. 215-236). A representação identitária, a idealização e a autonomização decorrem da oportunidade social e das potencialidades científicas e técnicas, aplicadas ao quadro pedagógico, à economia, à produção material. a produção do conhecimento no campo da educação especial 37 Há neste quadro um primado ético, que não é possível abordar aqui. inovação Pedagógica e integração O princípio fundamental da inovação pedagógica e científica, entre finais do século XIX e meados do século XX, radicou na melhoria do acesso e na generalização do educacional escolar básico. Centrada na escola, a inovação pedagógica foi possibilitando que o maior número de indivíduos tivesse acesso e pudesse fruir do normativo e do currículo escolar. Em consequência, as inovações pedagógicas eram aplicadas ao ensino regular e ao ensino especial. O desafio da anormalidade influenciou a pedagogia científica. Parte fundamental da inovação pedagógica foi resultado de experiências que serviram simultaneamente o ensino regular e o ensino especial, não deixando de se questionar em que medida o ensino especial não serviu de ensaio e de experimentação, com objetivo de generalização. A inovação pedagógica também foi orientada para a vulgarização do núcleo curricular básico, junto de diversos públicos. No essencial, aquilo que veio sendo designado como novos métodos foi a criação de modos e processos facilitadores de ensino-aprendizagem. Se o ensino normalizado continha desafios, não era desafio menor proporcionar uma educação anormal que pudesse ser levada aos anormais? (perguntava, em 1911, Émile Bellot no verbete “Arriérés”). A inovação pedagógica, a produção do conhecimento no campo da educação especial38 quando não partiu explicitamente do incidente e do problemático, como sucedeu com Makarenko ao fundar uma cooperativa-fábrica para crianças e jovens delinquentes, visou à melhoria geral do ensino. O sistema orgânico e pedagógico-didático, criado por Decroly, abria ao ensino ativo e intuitivo. Conciliava o holístico e o sincrético, combinava forma e globalidade, favorecia a análise e a recomposição. Partindo do local e do concreto para o abstrato e, enfim, graduando a aproximação à realidade (nomes, ligação, relação, simbolização) através da disposição gradual dos centros de interesse, servia o ensino normal e o ensino especial. Favorecia a generalização de uma norma aceitável reificada num medium cultural como currículo escolar. A inovação pedagógica tornou-se fundamental para a própria realização escolar. Com efeito, a escola promove a aculturação escrita, mas, correlativamente, determina a norma linguística e esta tem repercussão na comunicação oral e escrita. Assim, em face da normalização linguística e escolar, surgem alinhamentos, mas também irregularidades e dificuldades de diversa ordem, seja na adaptação e na conformação gestual, seja na incapacidade ou no retardamento em aprender, seja, por fim, na impossibilidade de adaptação e na incapacidade para aprender. A dislexia é uma anomalia gerada no universo da aculturação escrita. A inovação pedagógica permitiu divulgar e facilitar o acesso ao conhecimento formal e à inserção escolar através de melhorias pedagógicas e técnicas; melhorias no método; adequação curricular. Em torno da escola foram a produção do conhecimento no campo da educação especial 39 criadas novas estruturas pedagógicas, nomeadamente, as escolas especiais e as classes de aperfeiçoamento. Houve pedagogos que encontraram analogias entre tomar como referência a criança normal e o anormal adulto. E houve pedagogos que procuraram responder às dificuldades da aprendizagem de modo progressivo e abrangente como sucedeu com as pedagogias de Maria Montessori e de Ovide Decroly. No que reporta ao método, à materialidade, à plasticidade, os itens e os requisitos pedagógicos são fundamentalmente os mesmos, para o ensino regular e para o ensino especial, mas pensados, representados, aplicados de modo especial. As propostas pedagógicas de Fröebel serviram à educação sensorial e abriram à lição de coisas como reconhecimento do meio, nomeação, seriação e progressiva abstração. A exercitação entre o sensorial e o simbólico, através dos dons, das formas e de jogo normalizado, surge referida em relatórios de meados do século XX, sobre instituições de ensino especial, belgas e suecas (CARLOS, 1947- 1948, p. 192). A pedagogia de Decroly, especificamente a perspectiva global ideovisual e os centros de interesse, associados à intuição e à indução, foi utilizada por instituições de ensino especial da Bélgica, da Holanda, da Suécia, da Suíça. As virtualidades da pedagogia de Decroly faziam-se sentir na organização do ambiente escolar por centros de interesse e no ensino de um mínimo de ler, escrever, contar, através do método global (CARLOS, p. 99, 101, 105, 107, 137, 192). A ambiência, a gradação e a harmonia gestual, cultivadas por Maria Montessori, serviram para a aquisição de mobilidade e a produção do conhecimento no campo da educação especial40 coordenação motora e sensorial. As virtualidades desta pedagogia surgem referidas nalgumas cooperativas italianas (CARLOS, p. 164). Também as pedagogias de projeto, como a experiência de Dalton, serviram para comunidades escola-oficina, em contextos de município. Assim sucedia com a Escola Municipal de Amsterdã (A. H. Gerhard-School), destinada a crianças psicopatas de inteligência normal ou acima do normal (CARLOS, p. 132). Esta escola estava articulada com uma fábrica e com estabelecimentos comerciais. Na Suécia, os métodos de Vinetka e de Haase foram utilizados no ensino especial, nomeadamente no ensino do cálculo (CARLOS, p. 192). A inovação técnica e pedagógica foi, com efeito, racional, condição e meio de diversificação para manter no sistema regular de ensino a generalidade dos públicos infantojuvenis e para valorizar a escola como fator de desenvolvimento. Assumindo-se como fonte de literacia, a escola gerou coletivos. Na França, secundando iniciativas entretanto implementadas noutros países, a lei de 15 de abril de 1909 combinava a utilização da Escala de Binet-Simon e o elemento pedagógico-escolar. Os alunos foram distribuídos por segmentos. O fator pedagógico emergiu como referência e modo de intervenção. Aquela lei, no artigo 12, fez reconhecer a categoria de Arriérés Scolaires – crianças que, atingida a idade escolar, os pais e educadores recusavam ou retardavam a inscrever na escola; ou crianças que, entrando na escola, os professores iam observando e sinalizando como alunos retardados em relação ao ritmo dos outros (apud NATHAN & DUROT, a produção do conhecimento no campo da educação especial 41 1914, p. 126). Os alunos assim referenciados eram submetidos à observação de uma comissão formada pelo inspetor municipal, o diretor ou mestre de uma escola de aperfeiçoamento, um médico escolar. Esta comissão fixava o grau deeducabilidade e o aluno era encaminhado para uma escola de aperfeiçoamento, cuja pedagogia incidia no método intuitivo. A integração escolar através da especialização não preveniu inteiramente as desigualdades e também não assegurou que o racional escolar, enquanto método e potencial cognitivo e formativo, orientado para a prossecução dos estudos, fosse assimilado de modo uniforme. O movimento de universalização escolar, obtida em meados do século XX, deu lugar a um ciclo histórico-pedagógico de crítica sobre o modelo que se revelou limitado em face da diversificação do institucional escolar. Nas últimas décadas do século XX, esta crise tornou-se correlativa de certa desvalorização institucional e da massificação das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação. Tais instabilidades e mudanças tiveram manifesta repercussão na transformação das pedagogias de integração em pedagogias de inclusão. A escola está profundamente associada à cultura escrita e constitui o principal meio de modernização da sociedade contemporânea. Tradicionalmente, foi o referente para a determinação e a caracterização da diferença humana e muito particularmente da deficiência. As necessidades educacionais especiais (NEE) são determinadas e caracterizadas em função do educacional escolar. Nos planos global, nacional e local, as principais a produção do conhecimento no campo da educação especial42 declarações de princípio e linhas programáticas, políticas, pedagógicas, sociais, desenvolvimentistas, foram definidas e convencionadas tendo a escola no horizonte. A associação entre escolarização e desenvolvimento acentuou-se com as noções de utilidade e produtividade, já referidas. Desde meados do século XX que o investimento em capital humano forçou a investimentos na formação profissional. A adaptação e as melhorias psicopedagógicas fizeram com que, no campo da educação e no âmbito da formação profissional, os processos de predição, prevenção, compensação assumissem maior pertinência. O desenvolvimento da economia, associado à melhoria técnica e a novos modos de produção e profissionalização, trouxe maior seletividade e mais oferta de atividades produtivas e de serviços a que podiam concorrer também os indivíduos com deficiência, quando devidamente preparados no plano escolar e profissional. A crise do modelo e do institucional escolar a partir das últimas décadas do século XX, enquanto, por um lado, vem forçando à diversidade, nos planos etnocultural, pedagógico-didático, em parte apoiada nas Novas Tecnologias de Informação e Comunicação, por outro, acentua a normalização e a conformação, como condições para novos quadros de flexibilidade. Observa- se que a quebra de prestígio escolar torna menos radical a noção e as consequências da educação especial, inclusive em termos de estigma pessoal e social. No entanto, esta constatação envolve um paradoxo, pois que toda a perda de investimento científico e educativo não deixa de gerar novas desigualdades. a produção do conhecimento no campo da educação especial 43 instituição e educação esPecial Na transição do século XIX, consentânea, como referido, com a emergência e a constituição das Ciências Sociais e Humanas, as orientações científicas e pedagógicas convergiam no sentido de aprofundamento do diagnóstico e previsão do ensino e da terapia a ministrar. Da combinação do elemento científico com o elemento pedagógico resultou um princípio orientador de institucionalização, adequando a pedagogia à especificidade dos casos. Recorde-se que, na França, nos termos do artigo 12 da lei de 1909, que previa a criação de classes de aperfeiçoamento, seriam formadas comissões compostas pelo inspetor primário municipal, o diretor ou mestre de uma escola de aperfeiçoamento e um médico. Cabia a estas comissões determinar quais as crianças que seriam mantidas nas escolas públicas e quais as que seriam admitidas na escola de aperfeiçoamento. Seria convidado um representante da família para acompanhar o exame da criança e preparado um dossiê de que constassem as dificuldades de diagnóstico e de prevenção. Os critérios pedagógicos e médicos eram acompanhados da aplicação de testes psicológicos. Nos Estados Unidos da América, a psicometria fazia parte da psicologia experimental. Por toda a Europa, estavam então em curso deliberações políticas favoráveis à implementação de pedagogias diferenciadas que incluíam internatos, escolas especiais, classes de aperfeiçoamento. Estas pedagogias tinham implicações na formação de professores. Numa a produção do conhecimento no campo da educação especial44 conferência que proferiu em Paris, em 1914, V. H. Friedel, inspetor para o ensino especial, fez um balanço do ensino especial na Europa e nos Estados Unidos. Informou que o modelo das escolas de aperfeiçoamento alemãs, em que a criação de classes de aperfeiçoamento acompanhava o ensino regular e era obra dos municípios, estava a ser adotado pelos países do Norte da Europa e nos Estados Unidos (FRIEDEL, 1914, p. 338). Em Portugal, a criação de programas discriminados para os diferentes “tipos” de crianças não foi estabelecida nas primeiras décadas do século XX. No entanto, as instituições foram se organizando em função de diferentes categorias de deficiência: deficientes mentais, visuais, auditivos, motores. Durante o século XIX, tinha havido iniciativas de diverso tipo destinadas ao ensino de cegos e de surdos-mudos. Na década de 20 do século XIX foi criado o Instituto de Surdos-Mudos e Cegos, confiado a Aron Borg, e que, depois, foi integrado à Casa Pia de Lisboa. No início do século XX havia em Portugal dois asilos para cegos, dois institutos para cegos, dois institutos para surdos (ALVES, 2012). Em 1913, por impulso de Aurélio da Costa Ferreira, entrou em funcionamento, na Casa Pia de Lisboa, um “Curso Normal” destinado à formação de professores. Nessas primeiras décadas do século passado, não obstante o avanço da ciência, permanecia alguma indeterminação no tratamento pedagógico entre delinquência e deficiência (cf. MARTINS, 2014, 2016). Em 1935, o Instituto Aurélio da Costa Ferreira foi submetido a um plano de remodelação, vindo a reabrir a produção do conhecimento no campo da educação especial 45 em 1942 sob a direcção de Victor Fontes. Funcionava como Dispensário de Higiene Mental para todo o país. Na sequência do decreto-lei de 3 de agosto de 1946, foram criadas as primeiras “classes especiais junto das escolas primárias”, sob orientação daquele Instituto, que, equipado com modernos meios de diagnóstico, passou a receber, em consulta, crianças de todo o país. Entre 1942 e 1963 ali foi publicado o boletim A Criança Portuguesa. Antes disso, em 1941, entrara em funcionamento uma Escola de Reeducação – Albergaria de Lisboa, que acolhia cem rapazes e quarenta moças. Na primeira metade do século XX e até aos anos 1960, associada à melhoria da capacidade de diagnóstico, a prática educativa habitual foi a de criar instituições especializadas. Na generalidade dos países, a assistência à infância deficiente e à infância com problemas de conduta constituía um setor especializado, exigindo técnicos e serviços especialmente preparados. A formação de professores das classes especiais, auxiliares e assistentes tinha vindo a merecer particular atenção. Eram preparados através de cursos e seminários, contando depois com períodos de experimentação. Em regra, eram os médicos da família, o médico escolar ou o professor primário que assinalavam as primeiras anomalias nas crianças. Os diferentes países europeus dispunham de instituições de terapêutica e reeducação de crianças com anomalias mentais. Os internatos destinados a crianças difíceis recebiam um número de crianças que oscilavaentre os 25 e os 70 internados, nos casos da Dinamarca e da Suécia, variando a produção do conhecimento no campo da educação especial46 os níveis mentais entre QI 70 e 140. Frequentemente, os deficientes com QI inferior a 50 ficavam toda a vida nos internatos. Os internatos para os portadores de baixos QI eram grandes instituições de tipo hospitalar. Para os casos em que houve reeducação, as instituições tendiam a preparar a saída dos internos, procurando uma ocupação e acompanhando os egressos durante os dois ou três primeiros meses. Em final da década de 1940, havia na Bélgica trinta internatos de educação especial, inspecionados pelo Ministério da Justiça. O governo tinha criado um Fundo Comum para a Educação Especial, que dispunha de uma comissão em cada província. Os pedidos de admissão eram dirigidos aos presidentes das comunas. Algumas congregações religiosas dispunham de Institutos de Educação Especial, nomeadamente para o gênero feminino. A Dinamarca dispunha de internatos particulares e de classes especiais – em Copenhague, havia 137 classes especiais. Todas as escolas, incluindo as regulares, se beneficiavam de médico escolar e de enfermeira escolar. Na Holanda, havia 150 escolas especiais e dez internatos especializados. Os diagnósticos eram realizados por centros médico-pedagógicos. Na Inglaterra, na sequência do Educational Act de 1944, foram criadas 11 categorias de deficientes: cegos; com acuidade diminuída; surdos; com acuidade auditiva diminuída; débeis; diabéticos; com atrasos intelectuais; epiléticos; inadaptados; com deficiências físicas (estropiados); com defeitos na fala. As crianças cegas, surdas, epiléticas, estropiadas e afásicas deveriam ser educadas a produção do conhecimento no campo da educação especial 47 em escolas especiais. As crianças cegas e epiléticas deveriam ser preferentemente educadas em internatos. Em Portugal, havia então 14 classes especiais junto das escolas de Lisboa e duas no Porto. A partir da década de 60 do século XX, o Estado Português, através do Instituto de Assistência a Menores, criou uma série de estabelecimentos destinados à reeducação e à integração de crianças com deficiência. Entre 1965 e 1970, foram criados ou remodelados os seguintes estabelecimentos: 8 para deficientes visuais; 10 para deficientes auditivos; 11 para deficientes mentais. Medicina, Pedagogia e Psicologia cruzavam-se em abordagens interdisciplinares do fenômeno e dos diferentes casos. Em meados da década de 1970, estavam já em funcionamento duzentos estabelecimentos para deficientes: 74 de iniciativa particular e 124 de iniciativa do Estado. A noção de educação especial surgiu na sequência do Warnock Report (cf. COSTA, 1981). A educação especial, que tradicionalmente havia sido objeto de declarações de direitos, proclamações, regulamentos, passou mais recentemente a ser objeto, também e fundamentalmente, de convenções, de que são particularmente notórios os casos dos Estados Unidos da América e do Brasil. Para os Estados Unidos da América, a noção de convenção está subjacente ao IDEA (Individuals with Disabilities Education Act), cujas versões datam de 1975, 1978 e 2004. Este quadro político- educativo tem repercussão no FAPE (Free Appropriate Individualized Education Program). De IDEA faz parte uma revisão das categorias de deficiência (Disability – a produção do conhecimento no campo da educação especial48 14 categories). Para o Brasil, assume relevo a aprovação do documento Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008). Assim, pois, da combinação do elemento científico com o elemento pedagógico resultou um princípio orientador de institucionalização, adequando a pedagogia à especificidade dos casos. As categorias utilizadas para caracterizar a deficiência tinham vindo a mudar. Havia contestação em face da utilização de certas categorias, dado serem redutoras na caracterização dos indivíduos. Correlativamente, era necessário combater a noção de espectro. Estando a escola destinada a acolher todas as crianças, foi em face da escola que, uma vez mais, esta questão se levantou de modo consequente. A lenta transferência do enfoque no indivíduo para o enfoque no ecossistema (material, sociocultural, comunitário) em que o indivíduo cresce e se educa tem sido determinante para as questões de inclusão. Busca de novo Paradigma De modo sumário, pode-se concluir que o referente escolar foi tomado em consideração desde o século XVIII e, com ele, foi sendo sistematicamente retomada a questão da capacidade mental. Na longa duração, houve uma constelação de princípios e critérios que foi sendo mantida, ainda que se observem mutações na prevalência de um ou mais daqueles critérios. Há, assim, uma sequência formada por trabalho, socialização, Quociente Intelectual (classificação e gradação escolar), a produção do conhecimento no campo da educação especial 49 integração (institucional e profissional), inclusão, aceitação/preparação ambiental e grupal. Estão em destaque: revolução científica e social; escola (o institucional escolar) e inovação pedagógica; psicanálise e subjetivação; convenção político-educativa. Desde finais do século XIX que a noção de atrasados (arriérés) resulta e é acentuada em função da escola. O primado da escola foi reforçado pela psicometria: “En langage scolaire [les arriérés] ce sont les écoliers qui, pour une cause quelconque, trouvent notablement en retard, dans leurs études, sur leurs camarades de même âge” (BELLOT, 1911, p. 105). O atraso escolar, “l’arriération”, levou à distinção entre dois grandes grupos: os educados fora da escola e os atrasados. Entre os estabelecimentos educativos não escolares, em regra internatos, contavam-se hospícios destinados a idiotas, epiléticos, anormais incuráveis; asilos-escola (educação especial) destinados a cegos e a surdos-mudos; escolas-oficina. Entre os atrasados (“arriérés”) era possível distinguir os deficientes intelectuais (diminuídos) e os instáveis (temperalmente inquietos). A partir das últimas décadas do século XIX foram sendo criadas, para os atrasados escolares, escolas especiais e classes de aperfeiçoamento. Projeções feitas com base na Escala de Binet permitiram inferir que, na população europeia, seria esperado que, para povoações com cerca de 50 mil habitantes, houvesse um internato para alguns deficientes e uma escola de aperfeiçoamento para cada um dos gêneros. Ciclicamente, a modalidade “internato” suscitou reservas. Escrevendo, em 1911, sobre Arriérés a produção do conhecimento no campo da educação especial50 scolaires, Émile Bellot admitia que o internato não era o ideal, pois que não é bom que um deficiente instável fique perpetuamente em contato com o espectáculo da anormalidade de que padece. Ao contrário, era necessário multiplicar os contatos com a infância normal, “pour qu’il y trouve exemple et secours” (BELLOT, 1911, p. 104). Concluía, então, que a experiência tinha demonstrado que tudo há a ganhar com as classes de aperfeiçoamento. O sistema de classes anexas com acompanhamento médico era preferível ao internato. Fundamental era, no entanto, que, quer fosse em internato, quer fosse em pequenas escolas, as classes especiais fossem tratadas com uma pedagogia adequada no que reportava à distribuição do tempo, programas, métodos. Para cegos e surdos-mudos, cedo a questão continuou centrada na linguagem, na socialização, na formação profissional. Entretanto, o modelo alemão de classes de aperfeiçoamento, contíguas às classes regulares, foi adotado na generalidade dos países. Após a Segunda Guerra Mundial, a debilidade e a educação especial tornaram-se objeto de novos avanços científicos e de abundante bibliografia.A noção de perfil psicológico assente na multifactorialidade também foi aplicada ao deficiente. A educação especial foi assumida em diferentes países. Foi criado um ensino mais prolongado para diminuídos motores, para os amblíopes e para diminuídos mentais que tivessem sofrido dificuldades no ensino regular. O ensino especial foi também prolongado para cegos ou surdos, bem como para crianças com deficiências da fala (LABREGèRE, s.d., p. 435). a produção do conhecimento no campo da educação especial 51 Nos anos 70 do século XX, enquanto, por um lado, foram desenvolvidos exames minuciosos com intenção de programar uma intervenção educativa especializada, por outro, foi sendo desenvolvida uma sensibilidade pedagógica ecológica. Essa orientação tendeu a substituir a intervenção terapêutica no paciente por uma intervenção junto e a partir dos meios (familiares, grupo, classe), com o intento de maior integração dos diminuídos na escola regular. A educação especial tornou-se matéria de convenção e adequação, nos planos político, normativo e curricular. As políticas escolares compreensivas, subsequentes à Segunda Guerra Mundial, haviam ficado associadas à inovação pedagógica. Aquém de meados do século XX, a situação alterou-se rapidamente, no sentido de um ensino especial. Em 1968 foi aprovada a Declaração dos Direitos Gerais e Particulares do Deficiente Mental. A década de 1980 ficou marcada por um grande investimento na educação especial e na formação profissional, como referido. Entre 7 e 10 de junho de 1994, reuniram-se em Salamanca, na Espanha, representantes de 92 governos e de 25 organizações internacionais. Foi aprovada a Declaração de Salamanca que proclamou o princípio de uma “Escola para Todos”. Na base desta declaração estava o argumento de que o “handicap é uma noção relativa; existe num contexto preciso; difere em consonância com as condições socioeconômicas e culturais; evolui no tempo” (AFONSO, 1997, p. 36). Como objetivo central foi proclamado o da “plena inclusão”, que envolve “combater as atitudes discriminatórias, criar a produção do conhecimento no campo da educação especial52 comunidades de acolhimento, construir uma sociedade integradora e conseguir uma educação para todos” (AFONSO, p. 35). Superando um diagnóstico clínico tendente a classificar o tipo de deficiência, na atualidade ganharam nova visibilidade a perspectiva integrada do percurso de vida do sujeito; a relação com o contexto em que se insere; as competências cognitivas; o perfil emocional; as manifestações de participação e responsabilidade pessoal, comunitária, humana. A dialética entre integração e inclusão não está todavia resolvida. Se a integração constituiu um desafio à educação especial, continuando muitos países a manter a diversidade de instituições criadas, a inclusão pode trazer algum recuo em matéria de compromisso social e estatal. Não é, porém, essa a intenção subjacente às convenções internacionais, que consignam uma revisão da integração à luz do primado da inclusão, como bem salientam as teses de conceituados especialistas, com relevo para as de David Rodrigues e José Geraldo Bueno. É sob o signo da diferença que deve ser abordada a educação inclusiva, como adverte Mônica Kassar (2012). Num outro estudo de que é coautora, Mônica Kassar privilegia a dialética entre deficiência, inclusão, integração (cf. KASSAR & MAGARIO, 2017). Em síntese, mais do que uma questão de semântica, trata-se de um novo paradigma centrado na pessoa como ser total, que tome em atenção o contexto e o meio, que retire o máximo benefício do avanço científico, técnico, pedagógico para a capacitação do indivíduo. Reconhecimento e capacitação formam o binômio a produção do conhecimento no campo da educação especial 53 fundamental da integração; o aprofundamento da integração é fundamental para fazer avançar a inclusão. concluindo De fato, a solução continua associada à inovação, nos planos pedagógico, científico, técnico, cultural. A Sociedade da Informação e do Conhecimento se assenta numa tecnologia de acesso e processamento do conhecimento – as Tecnologias de Informação e Conhecimento. Uma cidadania humanista e democrática não pode deixar de reequacionar o complexo: literacia escolar (humanística, científica, técnica), inovação, sociedade. A literacia escolar tem sido chave para o binômio inovação-inclusão, mas permanece o desafio de conciliar diversidade e normatividade escolar. Tal desiderato só será solúvel com a revalorização da instituição educativa. Falar de inovação pedagógica e do institucional escolar é também, e de novo, trazer os professores ao centro – paladinos de humanitude; inventores de estratégias didáticas e pedagógicas; construtores de pessoalidades; edificadores do humano. O institucional escolar é determinante na correlação integração- inclusão. Equacionar e idealizar um programa democrático centrado no sujeito, na linha de Jürgen Habermas ou na linha de John Rawls, ou ainda na base da capabilidade, como ressalvou Paul Ricoeur, é privilegiar as capacidades de informação, comunicação, argumentação, participação. É tomar a cultura escrita e, a produção do conhecimento no campo da educação especial54 particularmente, a literacia escolar como base de uma cidadania responsável, autônoma, comprometida, ética. Cada ser humano comporta a sua especificidade e a educação é o percurso interminável de tornar-se pessoa, desafiando a humanitude. Meio fundamental para a integração, o institucional escolar confere identidade, habilita para a participação, sedimenta a personalização. A crise do escolar e o aligeiramento da integração não favorecem a inclusão. Enfim, são séculos a lidar com a diferença e a aprofundar os caminhos da igualdade humana. Por isso, não ficará mal recordar aqui as palavras ditas pela raposa ao principezinho, na história de Antoine de Saint-Exupéry: “Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que a fez tão importante”. referências AFONSO, J. A. O Ensino Especial. Pais, Deficientes e Organizações. Porto: Estratégias Criativas, 1997. ALVES, M. C. 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World Report Disability. Disponível em: <http://www.who.int/disabilities/world_ report/2011/report.pdf>. a produção do conhecimento no campo da educação especial58 CAPÍTULO 2 OS CEGOS, “ESSES INFELIzES”: SUJEITOS, INSTITUIÇõES E CIRCULAÇÃO DE CONHECIMENTOS PEDAGÓGICOS (SÉCULOS XIX E XX) helder Manuel guerra henriques introdução A modernidade pode ser interpretada como um período de mudança e adaptação relativamente a uma forma tradicional de estar na vida, tendencialmente substituída por uma nova organização social, justificada pelos princípios da racionalidade do Homem, que a partir do século XVIII, inspirada no Iluminismo, procurou, através do Estado, padronizar hábitos, comportamentos e valores utilizando para o efeito saberes, técnicas e mecanismos específicos adequados à individualidade, com o objetivo maior de construir uma determinada normalidade social coletiva. A este propósito Giddens afirma que “a modernidade altera radicalmente a natureza da vida social cotidiana e afeta os aspectos mais pessoais da nossa experiência” (1994, p. 1). Neste sentido, concretiza que as transformações envolvidas na modernidade, tanto na sua extencionalidade, quanto na sua intencionalidade, “são mais profundas que a maioria dos tipos de mudança característicos dos períodos precedentes” (GIDDENS, 1994, p. 10). a produção do conhecimento no campo da educação especial 59 Ao longo da modernidade, verificamos a emergência e a consolidação da figura do Estado-nação e do seu interesse em estar cada vez mais próximo das populações. Esta proximidade, mais não significa do que uma forma de vigiar os indivíduos e controlar a sociedade como um todo. Para que este controle intencional se pudesse verificar foi atribuído à escola um lugar central no processo de organização da sociedade ocidental (HENRIQUES & VILHENA, 2015). A escola que transmite um conjunto importante de conhecimentos mas que, através dos seus agentes, cumpre um papel de entidade normalizadora e moralizadora da sociedade. No decorrer da modernidade, a escola serviu a esse propósito de padronizar os sujeitos e torná-los socialmente adequados. Na esteira de Michel Foucault, Ribeiro (2009) afirma mesmo que: A escola, peça fundamental da máquina de reprodução social, que continuadamente orienta as capacidades dos alunos para as competências exigidas pela norma, constrói-se como um espaço de fabricação de indivíduos capazes de assentarem a sua conduta na submissão aos interesses do Estado (RIBEIRO, 2009, p. 54). Este processo de reprodução e normalização social, referido no excerto do texto anterior, levado a efeito, com maior intensidade prática, a partir do século XVIII, colocou em evidência um conjunto de sujeitos que não correspondiam ao padrão social da época e que, por isso, eram considerados pessoas diferentes. a produção do conhecimento no campo da educação especial60 Assim, simultaneamente, verificou-se uma tendência centrípeta em termos da padronização dos sujeitos e, concomitantemente, observou-se uma tendência centrífuga em face de um conjunto de sujeitos que se “localizavam” ao centro: referimo-nos a todos os sujeitos considerados diferentes e que, de alguma forma, podiam constituir um perigo à nova ordem pública instalada e em processo de consolidação. É neste contexto que podemos incluir todos aqueles considerados como uma “anomalia social”, isto é, crianças e jovens desiguais. Remetendo à escala de Decroly, simplificada por Diniz (2004), estamos a falar de (1) anormais, por defeito ou lesão orgânica (aleijados, atrofiados etc.); (2) anormais, por defeito sensorial (cegos, surdos-mudos etc.); (3) anormais, por defeito mental (idiotas, imbecis etc.); (4) anormais, por defeito das faculdades afetivas (loucos morais); (5) anormais, por defeitos particulares do sistema nervoso (epiléticos etc.); (6) anormais, por deformação operada pelo meio (DINIZ, 2004, p. 250). Como se percebe, estamos perante grupos de sujeitos devidamente identificados, classificados e, na sequência, institucionalizados de acordo com a tipologia da “anomalia social” de modo a responder aos anseios e receios de uma população considerada normal. Mas coloca-se a seguinte questão: afinal, como se pode definir a anormalidade? Podemos afirmar a dificuldade em definir uma fronteira clara e objetiva relacionada com o conceito de anormalidade. Contudo, este é um conceito fluido, líquido e que pode ter variáveis no espaço e no tempo a produção do conhecimento no campo da educação especial 61 que dificultam a consensualização, pelo menos numa perspetiva “universalista”, de uma “definição total” do conceito. Esta questão é, desde logo, colocada em 1905 por Claparède, quando afirma que: Para os filósofos, moralistas, o normal é aquele que é como deve ser; é o bom, o justo. […] Para os biólogos, o normal possui duas acepções: uma acepção empírica; normal é o que se encontra mais frequentemente na espécie […]; e uma acepção teleológica, para a qual é normal o que concorre para a conservação do indivíduo ou da espécie” (CLAPARèDE, 1905, p. 229, tradução nossa). Assim, numa tentativa muito simplista de definir o conceito plural que estamos a tratar, consideramos, neste texto, que os anormais são todos aqueles que constituem um corpo estranho à sociedade e que, por consequência, provocam ansiedade, receios, medo ou angústias, sensação de incontrolabilidade da ordem pública junto dos sujeitos que cumpremos desígnios da regularidade. É o caso de todos aqueles, por exemplo, que por dificuldades sensoriais eram considerados anormais. Neste caso, é a condição biológica, hereditária ou adquirida, que instiga o olhar diferente da sociedade e que, por sua vez, constrói a partir dessa condição um conjunto de teias discursivas capazes de etiquetar os indivíduos devido à ausência de um dos sentidos, às dificuldades inerentes dessa condição e ao olhar produzido sobre esses quasi- marginais. a produção do conhecimento no campo da educação especial62 A visibilidade destes “seres estranhos” potenciam a estigmatização em relação ao que apresenta traços diferentes do conjunto padronizado apresentando-se e constituindo-se, a partir desse momento, uma relação desigual entre o “eu – normal” e o “outro – diferente”. O olhar diferenciado sobre a figura do “outro” conjuga- se, desde logo, com uma noção de perigo que deve ser imediatamente controlado, potenciando a figura do preconceito. A este propósito Boto (2011), apoiando- se em Bobbio (1992, p. 203), fala-nos desta ideia que, segundo a autora, remete-nos à intolerância, à discriminação “contra alguém que, por razões físicas, etárias, sexuais ou raciais, é percebido como desigual” (BOTO, 2011, p. 32). Deste modo, Boto (2011) é peremptória quando afirma que “o preconceito é, por sua vez, um conjunto de opiniões que são acolhidas de modo acrítico passivo pela tradição, pelo costume ou por uma autoridade cujos ditames são aceitos sem discussão” (BOTO, 2011, p. 32). Esta constatação que a historiadora e filósofa da educação faz nos remete imediatamente à ideia de estigma. De fato, quando pensamos em grupos de pessoas diferentes, ao longo da história, e mesmo no tempo presente, imediatamente emergem matrizes culturais cristalizadas que fazem a maioria da população assumir uma posição de receio em face do elemento que pode ser “diferente” fisicamente pela ausência de um dos sentidos (como exemplo, cegos e surdos-mudos). Como afirma Goffman (1988), esta visão preconceituosa ou estigmatizada pode surgir por a produção do conhecimento no campo da educação especial 63 referência a um atributo específico, como a falta de visão, “que [torna o indivíduo] diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável” (GOFFMAN, 1988, p. 12). Ainda assim, esta ideia de estigma permite, por outro lado, a compreensão de todo um universo de relações, discursos e narrativas que envolvem aquele que é considerado “diferente” ou que transporta uma “anomalia social”. De acordo com Rangel e Louzada (2015), as relações sociais das pessoas “diferentes” com as regulares, no âmbito do pensamento moderno, caraterizam-se pela ideia de imperfeição, ineficiência, improdutividade, pobreza ou mendicância (RANGEL & LOUZADA, 2015, p. 115). Estamos, portanto, a verificar que o cego, esse elemento estranho à sociedade, constrói a sua identidade por referência àquilo que julga que a sociedade pensa dele e da sua imperfeição. É neste sentido que Amado (2008) considera, na sua abordagem, o binómio perfeição-imperfeição, afirmando que os cegos. São diferentes do conceito de homem completo, entenda-se, na total propriedade das suas capacidades. Estão excluídos da possibilidade de comunicar pela leitura e escrita, de se deslocar em autonomia, de exercer uma função social activa [...] (AMADO, 2008, p. 27-28). Construído este excerto de texto introdutório, colocamos as seguintes questões de partida: como se a produção do conhecimento no campo da educação especial64 lidou com essas crianças e jovens anormais, por “defeito sensorial”, nomeadamente os cegos, principalmente na transição entre as centúrias de oitocentos e de novecentos? De que modo se procurou a sua normalização? Que protagonistas podemos realçar? Que lugar ocupou nesse processo o conhecimento científico, em particular a Pedagogia? Que influências recebeu o ensino dos cegos em Portugal? Colocadas as questões orientadoras, prosseguimos o nosso trabalho ancorados, do ponto de vista teórico, ao campo da História da Educação e, em particular, da História Social da Infância. Utilizamos um conjunto de autores de referência para iluminar os nossos problemas (BOTO, 2011; CARVALHO & Ó, 2010; FERNANDES, 1989, 2004; HENRIQUES & VILHENA, 2015; FOUCAULT, 2008; GOFFMAN, 1988; ALVES, 2012; AMADO, 2007, 2012; RANGEL & LOUZADA, 2015; entre outros). Este trabalho é alimentado por um corpus documental que podemos definir em três níveis: fontes de arquivo, onde assumem destaque livros de atas, livros de matrículas, livros de correspondência, entre outros; imprensa, com destaque para o Jornal dos Cegos (1895-1920); e fontes oriundas de uma biblioteca pedagógica, assim como imagens fotográficas da época, ilustrativas do discurso. Optamos por circunscrever o nosso objeto de estudo ao espaço geográfico português, utilizando, para o efeito, o exemplo do Asilo de Cegos de Castelo de Vide, no distrito de Portalegre (Portugal). A abordagem metodológica é baseada nos princípios da análise socio-histórica, a produção do conhecimento no campo da educação especial 65 onde procuramos verificar o estado da arte, colocar os problemas, identificar as fontes, recolher os dados, interpretá-los, analisá-los e pô-los em formato de texto. Defendemos que o Asilo de Cegos de Castelo de Vide integrou o movimento filantrópico oitocentista e procurou, através da constituição de uma escola profissional, impulsionar a educação dos cegos em Portugal, tornando-se um importante palco de apropriação de ideias pedagógicas, baseado numa formação sobretudo profissional desse público, onde estão presentes diversas influências estrangeiras. o cego nas franjas da sociedade: o caminho da normalização No contexto da modernidade, o processo de adequação social provocou a emergência da diferença. Foram postos em evidência os grupos de sujeitos “diferentes”, como é o caso dos cegos, objeto de estudo deste trabalho, ou dos surdos-mudos. Era necessário encontrar formas de ir ao encontro destes seres humanos “diferentes” daquilo que era considerado normal, isto é, a propriedade dos cinco sentidos. Neste caso, é a ausência de um dos sentidos, hereditária ou adquirida, que torna este grupo diferente e com potencial de “anormalidade”. É esta característica potencial que permite ao conjunto social regular, de acordo com Foucault (2008), agir sobre o seu corpo de um modo legitimado e aplicar “certos exercícios de poder”, entre os quais a tentativa de corrigir, ou pelo menos de oferecer a oportunidade àquele ser humano a produção do conhecimento no campo da educação especial66 diferente de tornar-se útil e produtivo de acordo com uma sociedade liberal, nova, marcada pelos princípios da racionalidade e do progresso. A segunda metade do século XVIII e o século XIX foram os momentos ideais para se desenvolver um movimento racional de filantropia, em lugar do espírito caritativo anterior, na civilização ocidental. É no interior deste movimento humanitário e de filantropia que encontramos as principais respostas institucionais para o acolhimento de cegos, em Portugal, na modernidade. Em associação com este movimento, verificamos o desenvolvimento dos princípios médico- higienistas, propícios à emergência e à consolidação de novos saberes que encontraram na infância e na cegueira uma possibilidade de mapear o corpo “e os territórios da alma” (CARVALHO & Ó, 2009.). Em articulação, a Pedagogia surgiu como elemento maior com capacidade de analisar, classificar e exercer um poder corretivo, mas sobretudo produtivo, de modo a transformar estes seres quasi-marginais em sujeitos, socialmente, quasi-normais.Na sequência, ao longo da modernidade a emergência da diferença exigiu uma resposta rápida e eficaz em face daqueles que eram considerados elementos estranhos à sociedade, todavia com um potencial de utilidade social. É neste contexto que se integra o grupo que pretendemos analisar: aqueles que não possuíam um sentido, nomeadamente a visão, tendo sido encontradas, para estes “seres diferentes”, soluções institucionais capazes de responder às necessidades a produção do conhecimento no campo da educação especial 67 psicológicas e biológicas dos cegos e, por outro lado, à necessidade de conhecer mais e melhor esse ser que não era considerado regular. Rangel e Louzada (2015) são esclarecedoras quando afirmam que as instituições asilares criadas assumiram o trabalho como um mecanismo de emancipação social, de recolhimento das mazelas sociais, isolando os cegos no interior de muros, “em função da promessa de bem-estar social feito pela revolução política e científica moderna” (RANGEL & LOUZADA, 2015, p. 115). Acrescentam que deste modo se chega ao higienismo “em associação plena entre o político e o científico; o disciplinamento de toda a sociedade por meio de mecanismos que operam em sentido macro, o institucional, e, no sentido micro, nos corpos dos sujeitos” (RANGEL & LOUZADA, 2015,p. 115-116). É deste modo, na relação entre o Estado, a ciência, as instituições e os sujeitos, que se constrói uma teia de regimes de verdade que propõe tomar o corpo do sujeito, interná-lo num contexto técnico-institucional e aplicar- lhe, por via da ciência, as normas sociopolíticas e morais emanadas pelo Estado. Este processo foi aplicado na vida da população cega ou que possuía outra anomalia que podia pôr em causa a ordem e a regularidade impostas socialmente. Os contextos técnico-institucionais assumem-se como plataformas de intensidade política, biológica, psicológica, moral e, também, educacional. O movimento filantropo, em articulação com o Estado e os saberes emergentes, constituiu circunstância bastante para a “invenção” de vários a produção do conhecimento no campo da educação especial68 contextos técnico-institucionais em que circularam diversos saberes (morais, científicos etc.), capazes de aproximar da perfeição ‒ leia-se de alguém que possui todos os sentidos ‒ o grupo dos cegos. Como sabemos, o ensino dos cegos encontra-se, na origem, associado a Valentin Haüy (1745-1822), na França, que numa perspectiva filantrópica constituiu, em Paris, o Instituto dos Jovens Cegos, no ano de 1784. De acordo com Alves (2012), este era um “instituto modelar [que] viria a transformar-se num centro de inovação, porquanto seria o aluno Luís Braille (1809-1852), cego desde os três anos, que criaria um código de pontos em relevo denominado de sistema Braille, hoje difundido por todo o globo” (ALVES, 2012, p. 347). Além de Paris, encontramos outras instituições de referência no ensino dos cegos com destaque para Madri, Londres, Milão ou, do outro lado do Atlântico, no caso brasileiro, o Instituto Benjamin Constant. O Jornal dos Cegos, em setembro de 1898, apresenta um conjunto de dados relevantes sobre as diversas instituições que existiam em todo o mundo dedicadas ao ensino e recolhimento deste grupo cujo título é “Instituto de Cegos – Escolas, Officinas e Asylos existentes no mundo em 1898 – Aos quaes foi distribuído o número impresso em relevo do Jornal dos Cegos commemorativo do IV centenário do descobrimento da Índia” (JORNAL DOS CEGOS, nº 35, p. 273-284, 1898). Neste artigo Branco Rodrigues identifica 368 instituições que tinham como objetivo lidar com os cegos. a produção do conhecimento no campo da educação especial 69 Curiosamente, identifica no caso português apenas dois estabelecimentos que, na verdade, eram parte integrante um do outro: “331. Castello de Vide – Asylo de Nossa Senhora da Esperança, para cegos e cegas, instituído em 1863. Escola para Creanças cegas. 332. Castello de Vide – Officinas Branco Rodrigues, instituídas em 1895, para creanças cegas” (JORNAL DOS CEGOS, nº 35, p. 283, 1898)1. 1 Na verdade, Branco Rodrigues omite a existência de um importante estabelecimento dedicado ao ensino dos cegos em Portugal: o Asilo-Escola António Feliciano Castilho, fundado em 1888 na cidade de Lisboa. Cf. Amado, M. R. (2007). Escritos em Branco. Rupturas da Ciência e da Pedagogia no Portugal Oitocentista – O ensino para cegos no Asilo-Escola António Feliciano Castilho (1888-1930). Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Tabela 1 – Identificação do número de estabelecimentos existente no mundo em 1898 de acordo com Branco Rodrigues País Número de Institutos País Número de Institutos Alemanha 47 Itália 18 Austrália 2 México 1 Áustria 12 Noruega 4 Bélgica 9 Portugal 2 Brasil 1 Rússia 22 Canadá 3 Suécia 7 Dinamarca 3 Suíça 4 Egito 1 Estados Unidos 48 Total 368 França 39 Grã-Bretanha: Escócia 7 Inglaterra 104 Irlanda 8 Espanha 9 Holanda 7 Fonte: Jornal dos Cegos, nº 35, p. 283, setembro de 1898. a produção do conhecimento no campo da educação especial70 os contextos técnico-institucionais Para cegos em Portugal: entre o asilar e o educativo A arte de governar o outro tornava-se um exercício mais difícil com aqueles que não se encontravam no espectro da regularidade. Como afirma Amado (2007), seguindo a sua afiliação teórica foucaultiana: O anormal, o louco, o excluído são, no entanto, mais difíceis de gerir. Não era possível alguém ser louco e culpado, como controlar? Passou a ser necessária a utilização de uma análise, de um conhecimento, de um parecer técnico para situar o diferente e poder controlá-lo. A normalização possível (AMADO, 2007, p. 28). O controlo sobre o sujeito diferente, ao longo da modernidade, concretizou-se, em grande medida, pela figura da institucionalização. Uma forma de isolar esses indivíduos e de mais facilmente se perceberem determinados comportamentos e o seu potencial de desvio em face do instituído. Era necessário encontrar espaços e mecanismos capazes de responder a esta ansiedade social onde os diferentes saberes pudessem observar, classificar, propor exercícios de poder capazes de produzir uma determinada normalidade. Ao longo do século XIX encontramos um conjunto de iniciativas, de matriz asilar, dedicadas àqueles que não possuíam visão e que passamos, sumariamente, a identificar e a caracterizar. No contexto da modernidade, a primeira instituição que surgiu em Portugal dedicada, em parte, ao a produção do conhecimento no campo da educação especial 71 recolhimento e ao ensino dos cegos foi o Instituto de Surdos-Mudos e Cegos. De acordo com Fernandes (1989) (texto republicado por Felgueiras e Ferreira em 2004), “apenas por volta de 1822 começa o problema da educação de crianças deficientes a colocar-se na política educativa” (FERNANDES, 2004, p. 706). Nesta época, afirmava-se a necessidade de criar “cadeiras oficiais de instrução de crianças surdas-mudas” (FERNANDES, 2004, p. 706). Apenas no ano seguinte, em 1823, foi criado o primeiro estabelecimento oficial dedicado ao ensino de surdos-mudos e cegos em Portugal. Apesar das dúvidas, terá sido sob o patrocínio régio, no âmbito do movimento filantrópico da época, que terá sido criado tal instituto. A criação do Instituto de Surdos-Mudos e Cegos esteve ligada à vinda para Portugal dos irmãos Borg: Pedro Aron Borg e José Hermano Borg. Pedro Borg tinha fundado uma instituição similar na Suécia, ajudado pelo seu irmão, e essa experiência poderia constituir uma mais-valia para a edificação do novo projeto sociopedagógico português (FERNANDES, 2004, p. 707). Intervenientesportugueses também estiveram ligados a este instituto, como José Crispim da Cunha, que foi professor e ainda diretor da instituição. No seguimento de Fernandes (2004), a organização pedagógica assentava-se no princípio da diferenciação do gênero, uma vez que “João Hermano Borg ocupava- se da seção feminina e Crispim da Cunha da seção masculina” (FERNANDES, 2004, p. 715). O ensino neste estabelecimento encontrava-se dividido entre a parte da manhã e a parte da tarde. Na a produção do conhecimento no campo da educação especial72 primeira metade do dia, assumia preferência a instrução literária (das 8h30 até às 10h e das 11h ate às 13h); na segunda metade do dia, apostava-se na formação de matriz profissional, com destaque para os diversos ofícios manuais. Poucos anos depois do seu início, no contexto político difícil de final da década de 20 da centúria de oitocentos, o Instituto de Surdos-Mudos e Cegos vê-se a braços com dificuldades financeiras e com um projeto de integração à Casa Pia de Lisboa, acabando por sucumbir aos discursos vigentes sobre a onerabilidade do instituto e terminando esta breve experiência oficial de “educação especial” em Portugal. Depois da primeira experiência institucional dirigida ao recolhimento e ensino de surdos-mudos e cegos em Portugal, apenas em 1863 vamos encontrar, no Alentejo, em Castelo de Vide, outra instituição: o Asilo de Cegos de Castelo de Vide. É sobre esta instituição que procuraremos construir um retrato mais alargado. Figura 1 – vista panorâmica de Castelo de vide (1914) Fonte: Arquivo da Fundação de Nossa Senhora da Esperança (AFNSE). a produção do conhecimento no campo da educação especial 73 O Asilo de Cegos de Castelo de Vide foi instituído no Alto Alentejo, em Castelo de Vide, sob a invocação de Nossa Senhora da Esperança, por João Diogo Juzarte Sameiro, natural daquela localidade, cuja inauguração aconteceu em 20 de julho de 1863. O instituidor deixou 90 contos de réis para garantir o seu objetivo principal, que era o recolhimento de cegos de ambos os sexos, com vantagem para os habitantes originários daquela região. Em 20 de novembro de 1866 os primeiros estatutos foram confirmados por Carta Régia de D. Luís. O Asilo de Cegos de Castelo de Vide, nos seus primeiros anos de vida, define-se essencialmente pelo seu caráter assistencialista (asilar). Nos seus estatutos do período oitocentista podemos verificar que “os fins d’este instituto são unicamente prestar consolação e socorro aos infelizes cegos, seja qual for o sexo e a edade” (1885, art. 2º). A admissão dos cegos implicava um escrutínio que a direção do asilo deveria fazer. Pode- se ler que “para qualquer cego ser admittido no asylo deverá primeiramente provar perante a direção d’elle: 1º Figura 2 ‒ Asilo de Cegos de Castelo de Vide (Desenho e gravura de Caetano Alberto). Fonte: Jornal dos Cegos, nº 34, p. 269, agosto de 1898. a produção do conhecimento no campo da educação especial74 Pobreza absoluta. 2º Morigeração. 3º Que não padece moléstia alguma contagiosa, em consequência da qual se arrisque a saúde dos outros asylados” (1885, art. 3°). Como podemos inferir, os tempos iniciais da vida deste estabelecimento de recolha de cegos ficaram marcados por uma visão essencialmente assistencialista. A ideia era isolar, esconder estes sujeitos que eram considerados “infelizes”, dada a ausência de um dos seus sentidos: a visão. A sua entrada na instituição implicava a construção de um cadastro que permitia à direção concluir se era, ou não, pertinente tornar-se um sujeito institucionalizado. Nesta fase não verificamos a importância dada às questões educativas, todavia a ciência está bem presente. Note-se que era necessária a presença de um médico, em regra o médico municipal, que averiguava dois aspetos: o primeiro, se efetivamente era ou não cego, ou se possuía baixa visão; o segundo tinha a ver com as doenças infectocontagiosas que poderiam desenvolver-se no quadro institucional. Até o ano de 1880 os dados solicitados eram os seguintes: nome, filiação, idade, Figura 3 – Matrícula da asilada nº 1 (1863). Fonte: AFNSE ‒ Livro de Matrículas nº 1. a produção do conhecimento no campo da educação especial 75 naturalidade, estado civil, profissão, data de admissão e um campo para as observações. Depois de 1880 verifica- se a introdução de um novo campo que se prende às questões do corpo, onde se questiona se o sujeito foi ou não vacinado. Entre 1863 e 1895, nesta primeira fase de matriz assistencialista, encontramos 201 registos no Livro de Matrículas. A maioria dos asilados eram pessoas com idade avançada (cerca de setenta anos de idade), naturais da vila de Castelo de Vide ou do distrito de Portalegre, eram maioritariamente viúvo/as (embora também tenhamos verificado a existência de um conjunto significativo de pessoas solteiras), sem recursos e suporte familiar, acabavam os seus dias naquele contexto institucional. Encontramos também algumas crianças de tenra idade que deram entrada na instituição e que ali se mantiveram durante vários anos. Percebemos que algumas dessas crianças, no último quartel do século XIX, eram encaminhadas para o Asilo-Escola António Feliciano Castilho, dado que nesta fase do Asilo de Cegos de Castelo de Vide o ensino não era ainda uma prioridade. Neste contexto institucional havia uma vertente disciplinar muito forte. Todos deviam respeitar os espaços a que, no interior do asilo, estavam destinados. Caso não o fizessem, ou desobedecessem a algum dos funcionários ou regentes, eram castigados, por exemplo, com períodos de reclusão ou até mesmo a expulsão, como aconteceu frequentemente nos primeiros anos de atividade. a produção do conhecimento no campo da educação especial76 um asilo-escola: a escola Profissional Branco rodrigues O final da centúria de oitocentos ficou marcado pela emergência de um novo paradigma, mais inclusivo, para os cegos. A educação ganhou uma importância central no processo de “normalização” do sujeito portador de cegueira. A perceção de que a educação podia ter um papel decisivo na conquista de maior autonomia pessoal e social e desenvolvimento intelectual e profissional encontrou um enorme suporte na figura do tiflólogo Branco Rodrigues, em conjunto com o médico Aniceto de Oliveira Xavier, o padre António José Ferreira da Trindade, o tesoureiro José da Assumpção Mimoso e, ainda, os vogais do asilo Henrique do Carmo Gonçalves e António José Repenicado, o regente padre Severino Diniz Porto, entre outros. José Cândido Branco Ro- drigues foi um dos protago- nistas mais relevantes para o desenvolvimento do ensino dos cegos em Portugal. Com origem em famílias liberais e burguesas, percorreu um conjunto significativo de países com o intuito de co- Figura 4 – José Cândido Branco Rodrigues(1861-1926). Figura 4 – José Cândido Branco Rodrigues(1861-1926). a produção do conhecimento no campo da educação especial 77 nhecer mais e melhor o problema da cegueira e as possi- bilidades de ensinar esse grupo de sujeitos. Branco Ro- drigues nasceu em Lisboa, em 1861, falecendo em 1926. O motivo do interesse de Branco Rodrigues pelas pro- blemáticas que estamos a discutir neste texto prende-se, segundo Alves (2012), ao falecimento do seu avô José Rodrigues, que esteve cego na parte final da sua vida durante, aproximadamente, 15 anos (ALVES, 2012, p. 348). Esta circunstância terá, pelo menos assim indica a literatura, contribuído para dedicar a sua vida “à causa dos cegos” (ALVES, 2012, p. 348). O tiflólogo português frequentou, embora não concluindo, a Universidade de Coimbra. Esta circunstância, porém, não constituiu um problema, tendo se tornado umdos mais influentes e ativos lutadores em prol dos cegos, chegando mesmo a influenciar os políticos da época de modo a estabelecer “o ensino official dos cegos no nosso paiz” (JORNAL DOS CEGOS, nº 1, p. 3, 1895). Em 1895 Branco Rodrigues visitou o Asilo de Cegos de Castelo de Vide. Ali teve a oportunidade de verificar o trabalho realizado pelo regente Severino Diniz Porto que, desde 1894, promovia um trabalho notável “para os cegos de menor edade, que existiam naquelle asylo” (JORNAL DOS CEGOS, nº 3, p. 17, 1896). De acordo com o próprio Branco Rodrigues, nesta instituição foram aplicados “os mais modernos processos de ensino e obteve brilhantes resultados a ponto de levar ao lyceu de Portalegre dois alumnos que alcançaram, no anno passado, distinção no exame de instrucção primária. Para este anno já tem preparados mais tres alumnos” a produção do conhecimento no campo da educação especial78 (JORNAL DOS CEGOS, nº 3, p. 17, 1896). Também o livro de visitas da época apresenta esse contato inicial de Branco Rodrigues com o Asilo de Cegos de Castelo de Vide, publicado posteriormente no Jornal dos Cegos: Eu que acabo de visitar officialmente os principaes estabelecimentos de ensino e de protecção que existem na Europa, destinados aos cegos, posso, com verdadeiro orgulho pátrio, confessar que vim encontrar no meu paiz um instituto que me maravilhou, não só pelas condições em que foi fundado, como também pelos assombrosos resultados que tem obtido com a recente introducção de ensino literario e musical (JORNAL DOS CEGOS, nº 9, p. 66, 1896). O contato de Branco Rodrigues com esta instituição e com o próprio Severino Diniz Porto constituiu o início de um projeto sociopedagógico que havia de ter seguimento com o apoio do industrial António José Repenicado. Branco Rodrigues, através do periódico Jornal dos Cegos, também fundado por si, documenta-nos sobre esse novo projeto realizado no interior de Portugal: a fundação da primeira Escola Profissional para Cegos, cujo “benemérito fundador quis que fosse dado o nome de – Branco Rodrigues” (JORNAL DOS CEGOS, nº 3, p. 17, 1896). Para Branco Rodrigues era necessário encontrar novas formas de olhar para os cegos, e para isso refere que: Não basta dar-lhes a alimentação do corpo, é preciso mais aos cegos, talvez, do que aos videntes, cultivar- a produção do conhecimento no campo da educação especial 79 lhes o espírito e dar-lhes um modo de vida, como agora acaba de ser posto em prática pelo benemérito director, António José Repenicado (JORNAL DOS CEGOS, nº 9, p. 67, 1896). Na verdade, é neste momento que a instituição transita de um caráter asilar, assistencialista e caritativo para uma dimensão de natureza educativa, onde o interesse central era a autonomia e a utilidade do sujeito cego, em particular das crianças, no interior de uma comunidade, à semelhança do que acontecia em algumas das instituições existentes na Europa. Esta direcção, porém, pensou que as creanças que lá estavam asyladas precisavam mais do que isso: precisavam luz n’aquelles cerebros, condemnados a viver nas mais horriveis trevas; precisavam trabalho, que os livrasse da ociosidade que os torturava; precisavam de ter esperança em um futuro mais risonho do que aquelle que lhes podia dar um asylo de inválidos (JORNAL DOS CEGOS, nº 10, p. 78, 1896). Nesta instituição de matriz asilar, em 1896 contavam- se 11 alunos do sexo masculino e 3 do sexo feminino. Aos alunos que haviam concluído a instrução primária ensinava-se Francês, Geografia, História, Língua Portuguesa e Matemática. Contavam, ainda, com uma aula de Música. Vicente Marçal, professor de música, desenvolvia um “prodigioso trabalho”, tornando-se mesmo “assombroso” o elevado número de “partituras a produção do conhecimento no campo da educação especial80 que a fanfarra dos alumnos cegos desempenha, com uma mestria e perfeição que causa verdadeiro espanto” (JORNAL DOS CEGOS, nº 3, p. 18, 1896). Apesar do papel de Severino Diniz Porto na promoção da educação literária e musical dos alunos cegos, “nunca poderiam melhorar de situação, se não fosse a idea nobre do benemérito instituidor da Escola Profissional Branco Rodrigues” (Jornal dos Cegos, nº 3, janeiro de 1896, p. 18), António José Repenicado. Assim, a criação da nova escola e das respectivas oficinas permitiu ao cego “trabalhar, o producto do seu trabalho pertence-lhe e, como o asylo lhe satisfaz todas as suas necessidades, o cego pode economisar o que ganhar, pode juntar um peculio, e com esse peculio pode sahir de asylo” e, consequentemente, “constituir família e fruir de todas as felicidades do lar doméstico” (JORNAL DOS CEGOS, nº 3, p. 19, 1896). O trabalho surge neste contexto como um elemento de dignidade da vida humana, sobretudo para aqueles que não possuíam um sentido. Assim, trabalhar, tornar- se produtivo, constitui uma forma de procurar entrar no universo da normalidade, tal como a constituição de uma família. Todavia, esse desígnio apenas poderia ser alcançado através de um conhecimento plural ‒ conhecimento literário, musical e profissional. A Escola Profissional Branco Rodrigues, em Castelo de Vide, parece inspirar-se em várias instituições estrangeiras visitadas por Branco Rodrigues. Aliás, no terceiro número do Jornal dos Cegos, de janeiro de 1896, onde é publicado um texto sobre o começo dessa a produção do conhecimento no campo da educação especial 81 escola, surge imediatamente outro texto sobre a Escola Braille em Saint-Mundé, nos arredores de Paris, onde “o cego é considerado como um operário, e deve, com o producto do seu trabalho, pagar todas as suas despesas” (JORNAL DOS CEGOS, nº 3, p. 20, 1896). A organização do espaço do Asilo de Cegos de Castelo de Vide consistia já numa separação por idades e gênero. No rés do chão encontravam-se os dormitórios e o refeitório para os cegos do sexo masculino. As camaratas eram adequadas aos cegos de diversas idades e aqui se encontravam “os adultos completamente separados das creanças” (JORNAL DOS CEGOS, nº 10, p. 74, 1896). Neste contexto institucional as crianças deveriam usar um uniforme composto por uma “blusa de riscado azul e branco. Todos possuem uma medalha com a effigie de Nossa Senhora da Esperança” (JORNAL DOS CEGOS, nº 10, p. 74, 1896). Em 1896, o asilo era frequentado por 12 rapazes e 3 moças, embora no total fossem computados 43 cegos e a sua capacidade máxima fosse de 100 sujeitos institucionalizados. Figura 5 – à esquerda representações do sistema Braille no Jornal dos Cegos; do lado direito, exemplo do funcionamento do Cubarithmo. Fonte: Jornal dos Cegos, nº 4 e 5, fevereiro e março de 1896, p. 25 e 33. a produção do conhecimento no campo da educação especial82 Do ponto de vista pedagógico, o ensino dos cegos, impulsionado pelo padre Severino Diniz Porto no Asilo de Cegos de Castelo de Vide, baseava-se no sistema Braille “o único universalmente adoptado em todas as escolas de cegos do mundo” (JORNAL DOS CEGOS, nº 10, p. 79, 1896). De acordo com Branco Rodrigues: O mechanismo d’este alphabeto é simplicissimo, e todas as pessoas que o queiram aprender para o ensinar aos cegos, ou ler o que elles escrevem, podem fazê-lo com grande facilidade; tem sobre todos os outros caracteres que foram usados pelos cegos [...] a vantagem de poder ser escripto assás rapidamente por meio de um punção e de uma pauta especial (JORNAL DOS CEGOS, nº 4, p. 26, 1896). No que respeita à comunicação entre cegos e “videntes” “usa-se o systema empregado no Instituto Nacional dos Cegos de Paris, que é um dos melhores que se tem descoberto” (o sistema Braille-Ballu) (JORNAL DOS CEGOS, nº 4, p. 26, 1896). Por seu lado, o ensino da arithmetica utilizava o Cubarithmopara facilitar o cálculo, “uma maravilhosa e recente invenção de M. Martin, actual diretor do Instituto de Paris” (JORNAL DOS CEGOS, nº 4, p. 26, 1896). Além disso, todos os alunos aprendiam a língua materna, uma língua estrangeira (o francês), a geometria, a história [as disciplinas liceais], acrescentando ainda a formação musical que contribuía para a aprendizagem a produção do conhecimento no campo da educação especial 83 de um instrumento e para a “fanfarra dirigida por um hábil professor, D. Vicente Marçal”2. De acordo com o regulamento do Asilo de 1902, o cotidiano dos cegos era preenchido de uma forma bastante disciplinada. Promovia-se o princípio da mente sã em corpo são. Para o efeito, era essencial o banho, o convívio social, o respeito e o cumprimento de um conjunto de normas e deveres. O dia a dia das crianças cegas era marcado pela disciplina, destacando- se o levantar pelas seis horas da manhã, no inverno, e pelas cinco horas da manhã no verão. Deviam também 2 Dom Vicente Marçal, de origem espanhola, era considerado um artista e “benemérito professor de música do Instituto dos Cegos, d’aquella vil- la” (Jornal dos Cegos, nº 43, p. 341 ss., maio de 1899). Deve-se a este professor “o grau de adiantamento dos alunos d’aquelle pio estabelec- imento, que pode rivalisar com as melhores instituições congéneres do estrangeiro, pela completa educação literária, profissional e musical, que ali é ministrada às creanças cegas”. Dirigia a fanfarra do Asilo de Cegos de Castelo de Vide e “durante as festas do Centenário da Índia teve o pú- blico da capital ocasião de apreciar o seu prodigioso trabalho” (Jornal dos Cegos, nº 43, p. 341 ss., maio de 1899). Figura 6 – Alunos cegos (à esquerda) em formação musical para tocar na Fanfarra do Asilo; (à direita) Alunos cegos em momento de aprendizagem de um ofício mecânico nas oficinas da Escola Profissional Branco Rodrigues em Castelo de vide (1896). Fonte: AFNSE. a produção do conhecimento no campo da educação especial84 frequentar uma missa diária, de caráter obrigatório, no coro da igreja anexa. No refeitório eram obrigados a fazer silêncio e a andar com a cabeça descoberta. Depois, faziam novamente as orações, e também no final do dia. Cabia ao asilado a função de fazer a sua própria cama, “depois de lavada pelo ar”. Do ponto de vista pedagógico, o regulamento de 1902, falava da obrigatoriedade da frequência da instrução primária, das vantagens da aprendizagem e da formação musical, assim como da necessidade de aprender um ofício de modo a garantir a sua subsistência futura. A este propósito, da aprendizagem de um ofício, Branco Rodrigues publica um texto em 1897 intitulado “A primeira educação das creanças cegas”, em que afirmava a importância do trabalho na possibilidade de atingir a felicidade dessas crianças, argumentando que: Não há creança nenhuma cega a quem os seguintes conselhos deixem de ser applicaveis. Se os paes seguirem taes conselhos, seus filhos poderão chegar um dia a ganhar honradamente a sua vida. Se os não seguirem, seus filhos serão infelizes quando reconhecerem que são entes inuteis por não poderem ganhar a vida pelo trabalho. Essas creanças acusarão seus paes por não lhes terem dado a primeira educação, e por terem sido a verdadeira causa da sua desgraça (BRANCO RODRIGUES, 1897, p. 153). No seguimento deste conselho, Branco Rodrigues estabelece o modo como a criança cega devia adquirir a a produção do conhecimento no campo da educação especial 85 sua autonomia. Segundo o tiflólogo, a criança cega devia ser ensinada a andar “na mesma idade em que se ensinam as que têm vista”. De igual modo, a criança cega devia ser ensinada a vestir-se, a despir-se sozinha, a lavar-se e a assoar-se, uma vez que “tudo isto pode a creança cega fazer com tanta facilidade como a que tem vista”. No mesmo sentido, a criança devia habituar-se a comer sozinha com os respetivos talheres, primeiro o garfo e depois a faca, e acrescenta que “este ensino deve ser bastante minucioso, visto a creança não poder imitar os gestos das outras pessoas”. Na perspetiva do seu corpo, também deveria ser habituado a posições saudáveis, não devendo, por exemplo, “costumar-se a esfregar os olhos, a balouçar a cabeça, a estar curvadas”. Afirma Branco Rodrigues a importância de a criança cega brincar, devendo as crianças ser ensinadas a jogar através da estimulação do uso do tato e do ouvido, acrescentando que “os jogos das escondidas e da cabra-cega são muito bons, se o cego tiver duas ou três pessoas para jogar com elle”. Também devem ser estimulados os passeios ao ar livre de forma a evitar uma vida sedentária. No que diz respeito, especificamente, à educação destas crianças, refere que: A creança deve aprender o mais cedo possível a tornar- se útil em casa, encarregando-se de trabalhos que possa executar, especialmente de trabalhos manuaes, como crochet, rendas etc. Ainda que estes trabalhos não possam ser aproveitados, servirão contudo para desenvolver a destreza das mãos. Educaremos a a produção do conhecimento no campo da educação especial86 creança cega como sendo destinada a viver entre pessoas com vista e como devendo, pelos seus hábitos, pelo seu trabalho, differir d’ellas o menos possível. Deve-se falar muitas vezes à creança cega, porque, como ella não pode ler na physionomia de seus paes a ternura de que é objecto, tem necessidade de ouvir a sua voz mais amiudadamente do que qualquer outra creança. [...]. Podemos dar à creança cega a instrução moral e religiosa, na mesma idade que as ministramos às que têm vista. [...] É mais importante do que para as que têm vista estarem sempre occupadas, quer seja com brinquedos, quer seja com o trabalho. [...]. Exercitaremos muito a memória da creança cega [...]. Como os cegos não podem fazer idea das coisas materiaes senão pelo tacto, devemos fazer com que elles apalpem em todas as direções os objectos que quizermos tornar conhecidos [...]. Quando a creança cega tenha attingido a idade em que as crianças com vista começam a frequentar a escola, ensinala-emos então a ler e a escrever (BRANCO RODRIGUES, 1897, p. 155) O excerto anterior coloca a criança cega sempre em relação com os padrões considerados normais. A criança cega é aquela que não deve ser diferenciada pela ausência de um dos sentidos. Antes, devem ser criadas as condições necessárias para o desenvolvimento dos outros sentidos dessas crianças. Neste processo, percebe-se a importância da pedagogia – das lições de coisas ‒ através dos objetos que permitissem atingir a produção do conhecimento no campo da educação especial 87 esse desígnio. A valorização do tato é considerada fundamental no processo de aprendizagem deste grupo. Atualmente, encontramos ainda na herdeira da instituição asilar, associado, por exemplo, ao ensino da geografia, quadros parietais construídos propositadamente para que as crianças cegas tivessem a oportunidade de conhecer a pátria onde nasceram. Verificamos também a existência de uma importante coleção de ornitologia que serviu para desenvolver as capacidades das crianças cegas através do tato. A Universidade de Coimbra e o Museu de Lisboa foram os principais beneméritos que possibilitaram a constituição desta relevante coleção ornitológica constituída entre o último quartel do século XIX e o começo do século XX. Assim, como afirma Amado (2008), o ensino dos cegos constituiu um pilar fundamental com vista à autonomia dos sujeitos institucionalizados e à sua integração social: Figura 7 – à esquerda quadro parietal em relevo para o ensino da geografia; à direita, elemento que integra atualmente a coleção de ornitologia da Fundação de Nossa Senhora da Esperança, herdeira do Asilo deCegos de Castelo de vide (Portugal). Fonte: AFNSC. a produção do conhecimento no campo da educação especial88 De qualquer forma, era primordial o ensino porque era este que daria a autonomia ao internado, quer através do domínio do saber, quer através da mera aprendizagem social correcta, deixando de ser um excluído e intelectualmente desconsiderado. O ensino profissional, esse, era um investimento muito directo na autonomia e rendimentos próprios dos alunos e sua demonstração e rentabilização social imediata (AMADO, 2008, p. 109). A articulação entre o ensino de natureza intelectual com a aprendizagem de um oficio constituíam os elementos fundamentais ao processo conducente à normalização do indivíduo, onde as novas metodologias pedagógicas e a utilização de um alfabeto de circulação internacional – o sistema Braille –, assim como o trabalho, constituíram elementos relevantes para a inclusão social daqueles sujeitos. a circulação do conhecimento: o Periódico e as BiBliotecas de cegos – Breves incursões exPloratórias Um dos aspectos mais relevantes da ação de Branco Rodrigues teve a ver com a incorporação de “atualidades pedagógicas” em Portugal relacionadas com o ensino dos cegos. Para o efeito, utilizou dois mecanismos: o primeiro, que consistiu na criação de um periódico dedicado aos problemas e necessidades dos cegos; e, o segundo, numa perspectiva mais institucional, que a produção do conhecimento no campo da educação especial 89 passou pela criação de bibliotecas específicas para o ensino dos cegos. Relativamente ao primeiro aspecto podemos referir que o Jornal dos Cegos: Revista de educação e ensino intellectual e profissional dos cegos foi fundado por José Cândido Branco Rodrigues em 1895, e constituiu um importante instrumento de valorização da “causa dos cegos” em Portugal. Afirma o tiflólogo que, com este periódico, poderia “informar os [...] leitores, do movimento, hoje importante, de todas essas associações e escolas. Tratarei de todas as questões relativas à educação, ensino intelectual e profissional dos cegos” (JORNAL DOS CEGOS, nº 1, 1895). Podemos identificar duas importantes fases do periódico: a fase do começo, que pode ser enquadrada temporalmente entre 1895 e 1902, onde o Jornal dos Cegos assumia uma periodicidade mensal. Como afirmam Henriques & Almeida (no prelo): Os primeiros sessenta e dois números, que abrangiam um intervalo de tempo de Novembro de 1895 a Dezembro de 1900, têm numeração e paginação continuadas perfazendo no seu nº 62 quinhentas e duas páginas. De Janeiro de 1901 a Dezembro de 1902, a numeração, quer dos fascículos quer das páginas, recomeça do nº 1 a cada novo ano, embora não exista indicação formal de que se trata de uma nova série. Cada número avulso tinha o custo de 3$500 e o preço da assinatura anual era de 500 réis. Até ao n.º 50, o escritório e a redação funcionaram na Livraria Catholica, Rocio-Lisboa, a produção do conhecimento no campo da educação especial90 tendo a partir do nº 51 a redação sob a responsabilidade da Livraria J. A. Pacheco, Rocio-Lisboa. Em Janeiro de 1902 a redação voltou à Livraria Catholica. A impressão foi sempre feita na Typographia Casa Portugueza, 139, São Roque, em Lisboa. Nesta primeira fase do periódico os lucros da sua venda revertiam a favor do Asilo de Cegos de Castelo de Vide. Não é por acaso que grande parte do periódico diz respeito ao que acontecia naquela instituição, dada a ligação que Branco Rodrigues possuía com a mesma. Neste período podemos encontrar no periódico assuntos relacionados com a educação das crianças cegas, instituições de cegos e muita bibliografia e contribuições de origem estrangeira que inspiravam a ação cotidiana de Branco Rodrigues, que procurou incorporar essas “novidades” em Portugal e, em concreto, em Castelo de Vide. Figura 8 – A primeira página do primeiro número publicado em novembro de 1895. à direita uma visão parcial da biblioteca dos cegos existente atualmente na Fundação de Nossa Senhora da Esperança em Castelo de vide (Portugal). a produção do conhecimento no campo da educação especial 91 A segunda fase da vida deste periódico, sobretudo a partir de 1903, foi marcada pela mudança da periodicidade do jornal e pelo gradual afastamento de Branco Rodrigues de Castelo de Vide. O Jornal dos Cegos passou a ser publicado anualmente e Branco Rodrigues abraçou novos projetos, tendo assumido a criação de novos institutos de cegos em Portugal, nomeadamente em Lisboa e no Porto. No geral, acompanhamos Castelo (2005) quando afirma que este periódico teve a preocupação, entre outras, de publicar “estudos vários de natureza científica [constituindo uma] das preocupações deste jornal que analisa a cegueira sob múltiplos aspectos (físico, psicológico, afetivo e intelectual), divulgando em simultâneo, os respectivos meios de combate tanto do ponto de vista clínico como profiláctico” (cf. CASTELO, 2005, ficha nº 327). O segundo elemento fundamental para ampliar o conhecimento dos cegos foi a criação de bibliotecas nas diversas instituições onde Branco Rodrigues passou. Desde logo, através do Jornal dos Cegos, dá-nos conta, por duas vezes, de catálogos de livros das Bibliotecas de Lisboa e do Porto. Apresenta em 1907 o “Catálogo das Bibliotecas das Escolas de Cegos de Lisboa e do Porto”, a que acrescenta no ano seguinte (1908) o catálogo de “Obras Manuscritas e Impressas em Relevo”, retomando a publicação deste “inventário” em 1915, com a designação de “Catálogos da Biblioteca dos Cegos – Livros em Relevo Pelo Sistema Braille”. Nestas publicações identificamos centenas de livros: clássicos da literatura portuguesa (Alexandre Herculano, Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco, a produção do conhecimento no campo da educação especial92 Júlio Dinis, Luís de Camões ou António Feliciano de Castilho); livros de origem portuguesa dedicados à infância (Adolfo Coelho ou António Xavier Pereira Coutinho); obras de autores portugueses especializados na problemática dos cegos (José Cândido Branco Rodrigues), entre muitos outros. Verificou-se, também, uma presença muito relevante de obras de origem estrangeira: publicações francesas (obras publicadas pela Associação Valentin Hauy; obras de La Fontaine, Maurice de La Sizeranne, Adolphe Ribaux ou Alexandre Dumas), publicações espanholas (Miguel de Cervantes Saavedra, Fernán Caballero) ou publicações italianas (Mascagni, Dante, Barbè, Adriani). No entanto, o conjunto que nos parece mais significativo, revelando a sua importância para a educação dos cegos, corresponde ao conjunto de obras dedicadas à música. A título de exemplo, verifica-se no “Catálogo da Biblioteca Musical do Instituto de Cegos de Lisboa” um conjunto de compositores clássicos de grande importância cujas obras eram essencialmente para serem acompanhadas com instrumentos musicais (principalmente o piano). Destacam-se os nomes de Chopin, Strauss, Beethoven, entre muitos outros. De acordo com Alves (2012), a Biblioteca da Escola do Estoril, em 1915, possuía mais de 1.500 exemplares. Segundo a autora: As obras literárias totalizavam 977 volumes. No que respeitava à temática musical, esta encontrava- se catalogada por obras para ópera, valsas, minuete, a produção do conhecimento no campo da educação especial 93 sonatas, adágios, marchas, entre muitas outras, destinadas ao Piano, num total geral de 277; para o Canto, um total de 206 volumes e para Órgão estavam inventariadas, marchas nupciais, fúnebres, ofertório, canto pastoral e prece a Nossa Senhora, entre outras, um total de 98 volumes (ALVES, 2012, p. 398). Em Castelo de Vide, também se iniciou a constituição da Biblioteca da Escola Profissional Branco Rodrigues,em meados da década de 90 do século XIX. De acordo com os dados recolhidos, além de Branco Rodrigues, assumiu um papel de relevo, na constituição da biblioteca do asilo de Castelo de Vide, Maria da Madre de Deus Figura 9 – Dona Maria de Madre de Deus Pereira Coutinho. Fonte: Jornal dos Cegos, vol. XXI, p. 1, 1917. a produção do conhecimento no campo da educação especial94 Pereira Coutinho3, considerada “a primeira typhlologa portugueza, que tantos serviços tem prestado à causa dos cegos, a maior propagandista do Systema Braille no nosso paíz [...]” (JORNAL DOS CEGOS, nº 36, p. 287, 1898). O seu interesse pelas problemáticas dos cegos prende-se, de acordo com o redator do Jornal dos Cegos (vol. XXI, 1917), com o fato de ter ficado cega aos 15 anos de idade. Esta circunstância permitiu que dirigisse a sua ação para a escrita de “inúmeros livros pelo sistema Braille, copiando as obras escolhidas dos mais célebres autores” (vol. XXI, p. 2, 1917). As primeiras referências que encontramos relacionadas com a constituição da Biblioteca de Castelo de Vide dizem respeito ao conjunto de livros que a tiflóloga Maria da Madre de Deus ofereceu, escritas em Braille “pelo seu próprio punho”, para a Biblioteca dos Cegos de Castelo de Vide. Foram essas obras escolhidas pela benemérita: Compêndio de Doutrina Cristã, Método de Leitura e Escrita de Branco Rodrigues (2 exemplares), Le génie du Christianisme, de Chateaubriand (extratos), Orações a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e a São José, Relógio da Paixão, ou como se obtém o amor de Deus, Pio Exercício da Agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo, Orações pelas almas do Purgatório, livro de contos, Octilia, lenda flamenga, trechos de autores portugueses em prosa e verso, última corrida de touros em Salvaterra de Rebello da Silva, O poder do arrependimento, A festa 3 Maria da Madre de Deus Pereira Coutinho, de origem aristocrata, nasceu em 3 de fevereiro de 1859 e faleceu em 18 de maio de 1917. a produção do conhecimento no campo da educação especial 95 e a caridade, de Thomaz Ribeiro, Leituras populares (extratos) e Poesias, de João de Lemos. Percebe-se o sentido moralista, de inspiração cristã, que estas obras incorporam e que podiam ser transmitido aos cegos. Além das obras referidas verificamos que ainda hoje existem, no espaço onde estão os livros, títulos que foram transcritos para o Braille por Maria da Madre de Deus Pereira Coutinho, de que são exemplo os livros Meditações sobre o Evangelho, de autoria de Bossuet (transcrito em 18 de outubro de 1898), Os Lusíadas – Canto Primeiro, de Luís de Camões (transcrito em 1899), ou mesmo um artigo intitulado “Ensino dos Cegos em Castello de Vide” de autoria de Branco Rodrigues. Nesta biblioteca podemos encontrar um conjunto muito diversificado de exemplares com origem estrangeira (Alemanha, Itália, França, Espanha). Aliás, os livros mais antigos incorporados na biblioteca do Asilo são de origem francesa e datam das décadas de 60 e 80 do século XIX. Identificamos a obra de J. Guadet intitulada Tableau Chronologique de L’Histoire Ancienne depuis les premiers temps jusqu’à la destruction de l’empire, escrito por “M. Le Ministre de l’instruction publique que pour l’enseignement des lycées”, e o Livre de lecture et d’instruction pour l’adolescent – Devoir et travail (1885), de autoria de G. Bruno, transcrito por L. Braille no âmbito do Instituto Nacional dos Jovens Cegos de Paris. Estes livros apresentam uma especificidade que tem a ver com a importância da “universalização” do sistema Braille a produção do conhecimento no campo da educação especial96 naquela época. Ambos começam com uma folha onde se estabelece a relação entre o alfabeto “normal” e a sua transcrição. Nesta biblioteca também verificamos a existência de um conjunto de livros produzidos no Brasil, segundo o sistema Braille, que constituem, logo depois dos livros produzidos em Portugal, no Centro de Produção para o Livro dos Cegos (Porto), o principal núcleo com origem estrangeira. Na verdade, esse núcleo é constituído por livros de influências diversas, mas impressos em relevo em São Paulo, pela Fundação para o Livro do Cego no Brasil. Identificamos cerca de uma centena de livros produzidos em São Paulo, muitos deles enviados como “Oferta da Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura do Município de São Paulo em colaboração Figura 10 – à esquerda encontramos um exemplar de um dos livros do século XIX onde podemos verificar a existência de uma primeira folha explicativa do sistema Braille; do lado direito, temos um conjunto de volumes escritos em braille que constituíam a obra A cabana do Pai Tomás, de autoria de Harriet Beecher Towe. Fonte: AFNSE. a produção do conhecimento no campo da educação especial 97 com a Fundação para o Livro do Cego no Brasil”, encontrando-se neste momento na Fundação de Nossa Senhora da Esperança, herdeira do antigo Asilo e da respetiva biblioteca. Através desses livros identificamos um conjunto de autores que marcam presença no núcleo de obras brasileiras, transcritas para o sistema Braille, e que contribuíram para o ensino dos cegos naquela instituição. Evidenciam-se, a título de exemplo, autores como José Alencar, Rubens Rodrigues dos Santos, Francisco Marins, Maria Clarice Villac (Violeta Maria), Raimundo de Menezes, Francisco de Barros Júnior, Afrânio Peixoto ou Jorge Amado. Os romances assumem um lugar relevante no conjunto de livros identificados. Muitos dos livros desse gênero literário também se encontravam associados a determinados territórios do Brasil como o Paraná, Ceará ou, por exemplo, São Paulo (no caso paulista, destacamos o trabalho de Rubens Rodrigues dos Figura 11 – Exemplo de duas obras existentes na biblioteca do Asilo de Cegos de Castelo de vide de origem brasileira. Do lado esquerdo obra de Francisco de Ramos Júnior; do lado direito, obra de Afrânio Peixoto. Fonte: AFNSE. a produção do conhecimento no campo da educação especial98 Santos, publicado originalmente no periódico O Estado de S. Paulo, intitulado “Diário de um Flagelado das Sêcas”)4. Verifica-se também a existência de coletâneas de poesias, obras relacionadas com contos policiais ou edições generalistas associadas especificamente ao conto brasileiro5. Este é um primeiro esboço relacionado com a biblioteca que chegou até nós e com o lugar que ocupou na formação daqueles que passaram no Asilo de Cegos de Castelo de Vide. A existência desta biblioteca, e a aposta na sua constituição logo desde o final do século XIX, revela um projeto maior que foi assumido para auxiliar, por um lado, e permitir a emancipação, por outro, o público que servia à instituição. Outros olhares podem, e devem, ser construídos. considerações finais Atualmente os estudos relacionados com a inclusão/ exclusão social têm assumido uma enorme importância na clarificação dos processos relacionados com a aprendizagem daqueles que não eram considerados “normais” ao longo da modernidade (CURA GONZALEZ, 2012). Neste período, quebraram-se lógicas tradicionais e impuseram-se novas formas de 4 A obra referida é constituída por um conjunto de reportagens publicadas a partir de 20 de julho de 1958 no periódico e, posteriormente, em livro. 5 Por exemplo, Joias da Poesia Brasileira, obra organizada por Cecília Sack. a produção do conhecimento no campo da educação especial 99 entender, representar e projetar a sociedade ocidental e, em particular, o lugar da infância nessa sociedade. Potenciou-se a emergência de “diversas infâncias” e de políticas e contextos técnico institucionais adequados à tipologia e à singularidade de cada criança considerada diferente. Como afirma Padilla Arroyo (2016), há hoje um “interés crecientepor este sector de la infancia” (PADILLA ARROYO, 2016, p. 23), que permite discutir a relação entre o Estado, os movimentos filantrópicos e sociais, os sujeitos e as instituições com o propósito de normalizar aquele que é “diferente”. A emergência da visibilidade dos problemas da infância que não possui, por exemplo, uma determinada capacidade sensorial, como é o caso dos cegos, constituiu uma oportunidade para se discutir os mecanismos normalizadores sobre estes sujeitos, mas também para pensar os contextos em que foram colocados e os meios utilizados para se tornarem seres úteis e produtivos. Ao longo do texto identificamos duas dimensões articuladas entre si e objetivadas na instituição em análise. A primeira dimensão diz respeito a uma fase inicial do Asilo de Cegos de Castelo de Vide, onde se assumiu a preocupação central de recolher cegos da região de modo a retirá-los da miséria, da mendicidade e de se tornarem potenciais ameaças à ordem pública instituída. Esta primeira fase foi caraterizada, essencialmente, por uma visão assistencialista em face do público em questão. A segunda dimensão é caraterizada pela emergência da educação no contexto institucional de Castelo de Vide. Mais do que recolher as crianças e os jovens cegos, a produção do conhecimento no campo da educação especial100 a criação da Escola Profissional Branco Rodrigues tornou possível oferecer as condições necessárias para se adequarem a uma sociedade em transformação. Esse processo de normalização foi conduzido por vários protagonistas, onde se destaca a ação de José Cândido Branco Rodrigues, de Severino Diniz Porto ou António Repenicado, que potenciaram o ensino dos cegos em Portugal e trouxeram um conjunto de influências estrangeiras através de viagens realizadas pelo próprio Branco Rodrigues, da criação de um jornal próprio dedicado à causa dos cegos ou da constituição de bibliotecas nos asilos fomentando a circulação do conhecimento cultural e pedagógico sobre os cegos e as formas de normalizar este grupo, tornando-o mais apto a viver em sociedade no decorrer do arco temporal analisado. Na Escola Profissional Branco Rodrigues, além da formação de cariz intelectual ou literária, apostou- se na formação musical e na aprendizagem de ofícios manuais capazes de potenciar a “felicidade” dos cegos e de desenvolver a sua autonomia pessoal e social, assim como abrir a possibilidade de constituir uma família. A pedra angular deste texto é exatamente a possibilidade de inclusão dessas pessoas, aparentemente condenadas a uma vida “infeliz”, através da educação, e, em concreto, de uma educação manual/profissional/ oficinal, alcançarem uma vida normalizada, útil e produtiva no interior de uma sociedade que procurava vigiar e controlar, por qualquer circunstância, todos aqueles que eram considerados diferentes e potencialmente perigosos. a produção do conhecimento no campo da educação especial 101 referências6 ALVES, M. C. Educação Especial e Modernização Escolar: Estudo histórico-pedagógico da educação de Surdos-Mudos e de Cegos. 491 p. Tese (Doutorado) ‒ Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, 2012. AMADO, M. C. Escritos em Branco Rupturas da Ciência e da Pedagogia no Portugal Oitocentista: O Ensino dos Cegos no Asilo-escola António Feliciano de Castilho (1888-1930). Dissertação (Mestrado) ‒ Universidade de Lisboa, 2007. AMADO, M. C. 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O presente capítulo tem como tema a expectativa de aprendizagem que a escola pública municipal de São Paulo tem de alunos com deficiência intelectual inseridos em classes do ensino regular, a partir da análise de um documento norteador intitulado Referencial de Avaliação sobre a Aprendizagem do Aluno com Deficiência Intelectual (RAADI) – Ensino Fundamental I (SãO PAULO, 2008a), baseado nas Orientações Curriculares – Proposição de Expectativas de Aprendizagem – Ensino Fundamental I (SãOPAULO, 2007) para a avaliação da aprendizagem. Com base nas contribuições de Vygotsky (1997, 2007, 2009), em especial, no que diz respeito aos conceitos a produção do conhecimento no campo da educação especial106 de zona de desenvolvimento proximal e exploração da capacidade de abstração dos alunos com deficiência intelectual, o texto apresenta considerações sobre a irreversibilidade das limitações dos alunos com deficiência intelectual contidas nas expectativas de aprendizagem. Políticas de inclusão Para a área da educação Embora o direito a uma educação de qualidade para todos e a preocupação com as questões relacionadas às pessoas com deficiência tenham surgido desde a promulgação de nossa primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1961), não se pode negar que, após a promulgação da Constituição Federal (BRASIL, 1988), ocorreu o incremento da efetivação da educação como “direito de todos”, por meio do acesso praticamente universal ao ensino fundamental. Da mesma forma, no inciso III do artigo 208 temos o “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino” (BRASIL, 1988), que passou a ser uma das prioridades efetivas das políticas educacionais, como comprovam os números oficiais do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP): em 1987, resumiam-se a 159.492 mil matrículas (75.122 em classes comuns do ensino regular e 84.370 em escolas e classes especiais) e, em 2013, alcançaram a cifra de 843.342 (648.921 em classes comuns do ensino regular e 194.421 em escolas ou classes especiais). O último Censo Escolar, publicado em fevereiro de 2017, a produção do conhecimento no campo da educação especial 107 indicava que 82% dos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades/ superdotação estão incluídos nas classes comuns. Em 2001, o Conselho Nacional de Educação – CNE, atendendo aos dispositivos legais que regulam a sua ação, publicou a Resolução CNE/CEB n° 2, de 11 de setembro de 2001, instituindo as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, normatizando a educação dos alunos que apresentem “necessidades educacionais especiais”, determinando, em seu artigo 2°, que: os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos, cabendo às escolas organizar-se para o atendimento aos educandos com necessidades educacionais especiais, assegurando as condições necessárias para uma educação de qualidade para todos (BRASIL, 2001). Considera ainda que, por educação especial, modalidade da educação escolar, entende-se um processo educacional definido por uma proposta pedagógica que assegure recursos e serviços educacionais especiais, organizados institucionalmente para apoiar, complementar, suplementar e, em alguns casos, substituir os serviços educacionais comuns, de modo a garantir a educação escolar e promover o desenvolvimento das potencialidades dos educandos que apresentam necessidades educacionais especiais, em todas as etapas e modalidades da educação básica (BRASIL, 2001). a produção do conhecimento no campo da educação especial108 Apesar da resolução, como não poderia deixar de ser, por constitucional, abrir a possibilidade de atendimento em salas e classes especiais, determina em seu artigo 7°, também, que o “atendimento aos alunos com necessidades educacionais especiais deve ser realizado em classes comuns do ensino regular, em qualquer etapa ou modalidade da Educação Básica” (BRASIL, 2001). A partir da publicação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), foram elaborados o Decreto nº 6.571/08 e a Resolução nº 4/2009, que instituem as diretrizes operacionais para o atendimento educacional especializado na educação básica, operacionalizando a nova política educacional. Por meio das Diretrizes do Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade de Educação Especial (BRASIL, 2009), as questões da inclusão escolar dos alunos com deficiência têm recebido atenção especial por parte dos municípios no que se refere à identificação, elaboração e organização de recursos pedagógicos e de acessibilidade para a participação ativa dos alunos nas atividades escolares. A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL. MEC. SEESP, 2008) redundou em um conjunto de ações, com destaque para o Programa de Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais, o Programa Educação Inclusiva: direito a diversidade e o Programa Incluir que, segundo o ministério, têm por objetivo a expansão dos fundamentos inclusivos na política de Educação Especial no Brasil. a produção do conhecimento no campo da educação especial 109 Garcia e Michels (2011), entre outros autores, encaram o Programa de Implantação de Sala de Recursos Multifuncionais como um dos programas mais importantes da atual política de educação especial, definido como o lócus por excelência do Atendimento Educacional Especializado (AEE). Embora a ênfase da ação da sala de recursos multifuncionais recaia, fundamentalmente, sobre o atendimento de alunos por professor especializado, a abrangência do Atendimento Educacional Especializado é, segundo as normas vigentes, muito mais ampla, tal como determinam os incisos do artigo 13 da Resolução CNE/ CEB nº 04/2009: I – identificar, elaborar, produzir e organizar serviços, recursos pedagógicos, de acessibilidade e estra- tégias considerando as necessidades específicas dos alunos público-alvo da Educação Especial; II – elaborar e executar plano de Atendimento Educacional Especializado, avaliando a funcionalidade e a aplicabilidade dos recursos pedagógicos e de acessibilidade; III – organizar o tipo e o número de atendimentos aos alunos na sala de recursos multifuncionais; IV – acompanhar a funcionalidade e a aplicabilidade dos recursos pedagógicos e de acessibilidade na sala de aula comum do ensino regular, bem como em outros ambientes da escola; V – estabelecer parcerias com as áreas intersetoriais na elaboração de estratégias e na disponibilização a produção do conhecimento no campo da educação especial110 de recursos de acessibilidade; VI – orientar professores e famílias sobre os recursos pedagógicos e de acessibilidade utilizados pelo aluno; VII – ensinar e usar a tecnologia assistiva de forma a ampliar habilidades funcionais dos alunos, promovendo autonomia e participação; VIII – estabelecer articulação com os professores da sala de aula comum, visando à disponibilização dos serviços, dos recursos pedagógicos e de acessibilidade e das estratégias que promovem a participação dos alunos nas atividades escolares (BRASIL, 2009, art. 13). Portanto, esse professor tem muitas atribuições, cabendo a ele a interlocução entre a mediação pedagógica, na sala de recursos, com o aluno com deficiência, e a articulação com o professor da sala de aula comum, priorizando os processos de aprendizagem e desenvolvimento desse aluno. Nesse sentido, Lopes (2010), quando indica adequação curricular como um caminho para a efetivação do direito do aluno com deficiência intelectual ter acesso às atividades escolares, além de enfatizar a sala de recursos como serviço de apoio da educação especial, refere-se ao trabalho que deve ser executado pelo professor especializado na capacitação docente para inclusão. Ao investigar a “capacitação dos professores” da ou para a educação especial no estado do Paraná, a autora aponta que ele contemplava um número limitado de docentes de cada Núcleo Regional de Educação: a produção do conhecimento no campo da educação especial 111 Os professoresao participarem de um evento assumiam a responsabilidade de socializar os conteúdos recebidos com os seus pares no município e, algumas vezes, até mesmo na região. O que deve ser questionado, tendo em vista que, os professores, ao retornarem de tais eventos, enfrentavam dificuldades para realizar o repasse, dada a necessidade de retomar suas atividades cotidianas próprias de suas funções nas escolas (LOPES, 2010, p. 87). A autora utiliza o termo capacitação dos professores para apontar as ações de formação continuada ou de educação continuada. Marin (1995), ao apresentar algumas reflexões sobre a terminologia referente à educação continuada ao longo dos anos, adverte quanto aos termos utilizados e explicita que a capacitação pode remeter ao seu significado de convencimento ou da persuasão e comenta: Os profissionais da educação não podem, e não devem, ser persuadidos ou convencidos de ideias; eles devem conhecê-las, analisá-las, criticá-las, até mesmo aceitá-las, mas mediante o uso da razão. [...] pelo convencimento ou pela persuasão, estará ocorrendo doutrinação, no sentido pejorativo do termo, ou seja, inculcação de ideias, processos e atitudes como verdades a serem simplesmente aceitas. A adoção dessa concepção desencadeou entre nós, inúmeras ações de “capacitação” visando à “venda” de pacotes educacionais ou propostas fechadas aceitas acriticamente em nome da inovação e da suposta melhoria (MARIN, 1995, p. 17). a produção do conhecimento no campo da educação especial112 A formação continuada de professores na área da educação especial é um tema que merece debate crítico diante das necessidades presentes no cotidiano escolar, principalmente quanto ao acesso dos alunos com deficiência intelectual ao currículo escolar. Moscardini (2011), em sua investigação sobre o processo de inclusão escolar dos alunos com deficiência intelectual, observou as atividades realizadas pelos alunos que frequentavam o ensino fundamental e o Atendimento Educacional Especializado (AEE), destacando o distanciamento existente entre o ensino fundamental e o AEE, o que impossibilitava a estruturação de propostas comuns de trabalho que pudessem contribuir para o desenvolvimento cognitivo do aluno com deficiência. De acordo com a pesquisa realizada, o autor comenta: nota-se uma clara discrepância quanto ao norteamento atribuído às dinâmicas traçadas nessas realidades, haja vista que enquanto a SRM1 procura instituir práticas que busquem desenvolver nas crianças a sua autonomia, gabaritando esses sujeitos com as habilidades acadêmicas necessárias para que façam frente às demandas inerentes à atividade escolar, o ensino fundamental toma como foco central das suas iniciativas a aprendizagem de conhecimentos científicos, procurando promover a assimilação desses conteúdos pelos sujeitos com deficiência intelectual (MOSCARDINI, 2011, p. 133). 1 O autor se refere à sala de recursos multifuncionais (SRM). a produção do conhecimento no campo da educação especial 113 Da mesma forma, Effgen (2011) analisa as possibilidades de articulação entre o currículo escolar e a escolarização de alunos com deficiência e transtornos globais do desenvolvimento em processos de inclusão escolar, nos anos iniciais do ensino fundamental, verificando a necessidade de formação continuada como uma ação para a implementação de práticas pedagógicas inclusivas e reflexões sobre a articulação do Atendimento Educacional Especializado com a sala de aula de ensino comum. Como se pode notar, esses estudos procuram evidenciar o intercâmbio entre o professor da sala de AEE e o professor regente de classe, especialmente no que se refere à adoção de adaptações curriculares compatíveis com as características dos alunos com necessidades educacionais especiais. Quanto ao Atendimento Educacional Especializado, Bueno (2012) afirma que a educação especial, concebida como Atendimento Educacional Especializado, enfatizada por meio de salas de recursos multifuncionais, centra suas atividades nas manifestações e dificuldades originárias da deficiência (BUENO, 2012, p. 295). O autor critica a centralidade no atendimento individual e a pouca importância ao trabalho colaborativo com o professor regente da classe comum. Embora o Ministério da Educação, por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais/Adaptações a produção do conhecimento no campo da educação especial114 Curriculares/Estratégias para a Educação de Alunos com Necessidades Educacionais Especiais (BRASIL, 1997) resguarde o caráter de flexibilidade e dinamicidade que o currículo escolar deve ter, para atender todos, o documento das Adaptações Curriculares não atinge o nível operacional da sala de aula comum. Considerando as políticas de inclusão escolar e as alternativas construídas pelos municípios, visando qualificar as práticas pedagógicas dos professores em sala de aula, com o público de alunos com deficiência intelectual, a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, por meio da equipe de educação especial, elaborou o Referencial sobre Avaliação de Aprendizagem na área da Deficiência Intelectual (RAADI) (SãO PAULO, 2008a) com o objetivo de oferecer ao professor subsídios e indicativos, com base nas Orientações Curriculares e Expectativas de Aprendizagem do Ensino Fundamental – Ciclo I, para que busque alternativas de avaliação da aprendizagem a partir da base curricular do ensino fundamental. Nessa perspectiva, o ensino escolar é concebido como favorecedor do desenvolvimento e pode levar a criança a um estágio mais complexo de interação, comportamento e funcionamento intelectual. [...]. Cabe à escola criar as condições necessárias para o desenvolvimento do aluno e para a superação de seu próprio limite (SãO PAULO, 2008a, p. 23). De acordo com esse documento, a escola tem a tarefa de levar os alunos com deficiência intelectual à a produção do conhecimento no campo da educação especial 115 inserção cultural, significando suas atitudes, sua fala, seu desenho, suas produções e sua aprendizagem (SÃO PAULO, 2008a), cabendo à escola e aos professores Aproximá-los dos outros, não afastá-los; levá-los ao conhecimento, não negar-lhes; conhecer seus processos de aprendizagem e sua peculiaridade, enfatizarem suas competências e suas conquistas e não compará-los e diminuí-los [em] frente aos outros (SãO PAULO, 2008a, p. 26). A possibilidade de acesso ao currículo escolar pelo aluno com deficiência intelectual, matriculado na escola regular, remete às questões das potencialidades de cada um por meio da mediação pedagógica e o resultado da avaliação realizada por meio do documento orientador RAADI. Em 2013, a Rede Municipal de Ensino de São Paulo implementa a Reorganização Curricular através do Programa Mais Educação São Paulo. Em janeiro de 2014 é publicado o documento “Programa Mais Educação São Paulo – Subsídios para sua implementação” (SãO PAULO, 2014). Com o objetivo de “servir de referência aos planejamentos e à elaboração dos Projetos Político- Pedagógicos das Unidades Educacionais” (SãO PAULO, 2014, p. 8), o documento orienta a atual política educacional fundamentando as práticas pedagógicas, apresentando uma reflexão sobre o currículo e a inclusão. Conforme o documento “Programa Mais Educação São Paulo – Subsídios para sua implementação”, a a produção do conhecimento no campo da educação especial116 discussão curricular está fundada em uma palavra principal: inclusão. A inclusão em termos pedagógicos é fundamental para a inclusão de educandos com deficiência e a antecede. A inclusão aqui compreendida se organiza em torno de três questões: consideração de tempos, ritmos e características dos educandos. Sem considerar essas questões paraTODOS, não há inclusão possível de educandos com deficiência. Não é possível estabelecer mediação sem saber com quem se está falando – e esse é o grande desafio da educação contemporânea. Para tanto, é necessário estabelecer na Unidade Educacional um ambiente de investigação cognitiva, que se debruce sobre a seguinte questão: Como o educando – criança, jovem ou adulto – pensa, representa, se comunica, faz relações e abstrai? (SÃO PAULO, 2014, p. 11). Compreendendo o currículo como um movimento em um “processo socio-histórico cultural”, considera a avaliação para a aprendizagem, que deve ocorrer continuamente durante os ciclos de aprendizagem. Esse documento conta com 21 Notas Técnicas que explicitam as orientações para a implementação da nova política. A Nota Técnica nº 9, intitulada “Avaliação dos Estudantes com Deficiência, Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD) e Altas Habilidades/ Superdotação, Matriculados na Rede Municipal de Ensino (RME) de São Paulo”, não apresenta um novo modelo ou plano para a avaliação dos alunos público- a produção do conhecimento no campo da educação especial 117 alvo da educação especial, reconhecendo a escola como detentora de um saber acumulado sobre o tema, ressaltando que a Rede Municipal de Ensino produziu documentos específicos: RAADI – Referencial sobre Avaliação da Aprendizagem na área da Deficiência Intelectual no Ensino Fundamental I e II. No entanto, todos os estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, têm direito à avaliação para aprendizagem, com respeito à diversidade, inerente à condição humana. O Referencial pode ser utilizado como norteador das ações para avaliação, não apenas dos estudantes com deficiência intelectual, mas também dos que têm outras deficiências/ TGD, respeitadas suas especificidades, sempre que se julgar apropriado e eficiente, podendo a Unidade Educacional buscar outros instrumentos que melhor atendam às necessidades do aluno e/ou seu Projeto Político-Pedagógico. O RAADI é um documento com importante valor teórico, sendo que a leitura e a problematização dos artigos introdutórios, bem como das orientações para elaboração de relatórios descritivos, podem ser úteis para auxiliar a documentação do processo avaliativo destes estudantes (SãO PAULO, 2014, p. 92). O documento amplia a avaliação, por meio do RAADI, para todos os alunos com deficiência e/ou Transtorno Global do Desenvolvimento, apesar de sua especificidade na área da deficiência intelectual. a produção do conhecimento no campo da educação especial118 Portanto, a escola possui um papel importante para o desenvolvimento dos alunos com deficiência intelectual, inseridos, hoje, dentro de uma política nacional de inclusão escolar. Considerando, portanto, que as orientações estabelecidas pela RME-SP procuram operacionalizar as estratégias de ensino voltadas para alunos com deficiência intelectual inseridos em classes do ensino regular e de que a responsabilidade pelo apoio ao professor regente de classe cabe ao professor da sala de recursos multifuncionais, subsidiadas pelas orientações contidas no RAADI. Baseados na perspectiva histórico-cultural, indagamos se o Referencial sobre Avaliação da Aprendizagem na área da Deficiência Intelectual (SãO PAULO, 2008a) oferece subsídios efetivos para a prática docente a fim de que se dê o desenvolvimento do pensamento abstrato dos alunos com deficiência intelectual, inseridos em classes do ensino regular. Assim, é premente compreender a função da escola na perspectiva da teoria vygotskiana. a escola e o aluno com deficiência intelectual na PersPectiva de vygotsky Segundo a Associação Americana de Incapacidades Intelectuais e do Desenvolvimento (AAIDD, 2006), a deficiência intelectual é uma incapacidade caracterizada por uma limitação significativa no funcionamento intelectual e no comportamento adaptativo, expressa em habilidades conceituais, sociais e práticas, originada antes dos 18 anos de idade. a produção do conhecimento no campo da educação especial 119 De acordo com a AAIDD (2006), a incapacidade relaciona-se a uma limitação pessoal, que representa desvantagem substancial em relação ao funcionamento em sociedade. De acordo com Milanez (2008), a incapacidade deve ser considerada dentro de um contexto ambiental, de fatores pessoais e da necessidade de suportes individualizados. Conforme a autora: O funcionamento intelectual geral é definido pelo quociente de inteligência (QI ou equivalente) obtido mediante avaliação com um ou mais testes de inteligência padronizados e de administração individual. Um funcionamento intelectual significativamente abaixo da média é definido como um QI de cerca de 70 ou menos (aproximadamente dois desvios-padrão abaixo da média). [...] Portanto, é possível diagnosticar a deficiência intelectual em indivíduos com QIs entre 70 e 75, que exibem déficits significativos no comportamento adaptativo. O funcionamento adaptativo pode ser influenciado por vários fatores, incluindo educação, motivação, características de personalidade, oportunidades sociais e vocacionais e transtornos mentais e condições médicas gerais, que podem coexistir com a deficiência intelectual (MILANEZ, 2008, p. 46). Apesar de o sistema da AAMR ser adotado como referência para classificar a deficiência intelectual, Vygotsky (2007, p. 100) questiona os testes diagnósticos defendendo a ideia de que o aprendizado humano pressupõe a produção do conhecimento no campo da educação especial120 uma natureza social específica e um processo através do qual as crianças penetram na vida intelectual daqueles que as cercam. Para o autor, portanto, o uso de testes Determina o nível de desenvolvimento mental no qual o processo educacional deveria se basear e cujos limites não deveriam ser ultrapassados. Esse procedimento orientava o aprendizado em direção ao desenvolvimento de ontem, em direção aos estágios de desenvolvimento já completados. O erro deste ponto de vista foi descoberto mais cedo na prática do que na teoria (VYGOTSKY, 2007, p. 101). Vygotsky (2007) critica os estudos que consideravam as “crianças mentalmente retardadas”2 incapazes de ter pensamentos abstratos, em que o ensino deveria se basear no uso de métodos concretos: Demonstrou-se que o sistema de ensino baseado somente no concreto – um sistema que elimina do ensino tudo aquilo que está associado ao pensamento abstrato – falha em ajudar as crianças retardadas a superar as suas deficiências inatas, além de reforçar essas deficiências, acostumando as crianças exclusivamente ao pensamento concreto e suprindo, assim, os rudimentos de qualquer pensamento abstrato que essas crianças ainda possam ter (VYGOTSKY, 2007, p. 101). 2 Vygotsky (2007) apresentava o termo crianças mentalmente retardadas, hoje designadas crianças com deficiência intelectual. a produção do conhecimento no campo da educação especial 121 O autor considera que a escola não deveria medir esforços para levar as crianças com deficiência intelectual à elaboração de pensamentos abstratos, desenvolvendo nelas o que está intrinsecamente faltando no seu próprio desenvolvimento, e, desse modo, “o concreto passa agora a ser visto somente como um ponto de apoio necessário e inevitável para o desenvolvimento do pensamento abstrato – como um meio, e não como um fim em si mesmo” (VYGOTSKY, 2007, p. 102). Assim, Vygotsky (2007) discorre sobre o “bom aprendizado” que não deve estar baseado nos níveis de desenvolvimento que já foram atingidos, mas naqueles que se adiantam ao desenvolvimento, por meio da zona de desenvolvimento proximal. Neste aspecto, o autor indica que “o aprendizado desperta vários processosinternos de desenvolvimento, que são capazes de operar somente quando a criança interage com pessoas em seu ambiente e quando em cooperação com seus companheiros” (VYGOTSKY, 2007, p. 103). O autor aponta que o aprendizado não é desenvolvimento, entretanto, O aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental e põe em movimento vários processos de desenvolvimento que, de outra forma, seriam impossíveis de acontecer. Assim, o aprendizado é um aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e especificamente humanas (VYGOTSKY, 2007, p. 103). a produção do conhecimento no campo da educação especial122 O autor enfatiza que o desenvolvimento nas crianças nunca acompanha o aprendizado escolar da mesma maneira, existindo, portanto, relações dinâmicas altamente complexas entre os processos de desenvolvimento, que devem estar baseadas no conceito de zona de desenvolvimento proximal, sendo esta conceituada como a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 2007, p. 97). A zona de desenvolvimento proximal contém funções que estão em processo de maturação, assim, “aquilo que é zona de desenvolvimento proximal hoje será o nível de desenvolvimento amanhã – ou seja, aquilo que uma criança pode fazer com assistência hoje, ela será capaz de fazer sozinha amanhã” (VYGOTSKY, 2007, p. 98). Na perspectiva de Vygotsky, a educação tem um papel prático no desenvolvimento das crianças com deficiência intelectual, demandando um trabalho criativo, de organização e formas especiais, apontando como tarefa do docente em desenvolver não uma única capacidade de pensar, como a observação, a atenção, a memória, o juízo etc., mas “muitas capacidades particulares de pensar em campos diferentes; não em reforçar a nossa capacidade geral de prestar atenção, mas em desenvolver diferentes a produção do conhecimento no campo da educação especial 123 faculdades de concentrar a atenção sobre diferentes matérias” (VYGOTSKY, 2005, p. 31). O autor adverte que, apesar das crianças com deficiência intelectual apresentarem pouca capacidade de pensamento abstrato, os docentes não devem limitar o seu ensino aos meios visuais. Um sistema de ensino baseado apenas em meios visuais não auxilia a criança a superar uma capacidade natural, mas consolida tal incapacidade: A criança atrasada, abandonada a si mesma, não pode atingir nenhuma forma evolucionada de pensamento abstrato; e precisamente por isso a tarefa concreta da escola consiste em fazer todos os esforços para encaminhar a criança nesta direção, para desenvolver o que lhe falta (VYGOTSKY, 2005, p. 38). Vygotsky enfatiza que é necessário utilizar os aspectos visuais na aprendizagem, mas que esta deve considerar uma etapa do desenvolvimento do pensamento abstrato, “como meio e não como um fim em si”. A criança com deficiência intelectual não se apresenta de forma homogênea, assim o atraso no desenvolvimento não pode ser posto em um mesmo plano, porque se constitui de uma estrutura complexa. O autor saliente que Hay que esclarecer cuál es el retraso cultural frente al que nos encontramos, cuál es su estructura, cuales son el significado y los mecanismos de los procesos de construcción de esta estructura, cuál es la conexión a produção do conhecimento no campo da educação especial124 dinámica de sus síntomas singulares, de los complejos con los que se conforma el cuadro del retraso mental del niño y la diferencia entre los tipos de niños mentalmente retrasados (VYGOTSKY, 1997, p. 144). A influência de um ambiente propício à aprendizagem e a atuação do professor, com uma ação pedagógica intencionada, com o estabelecimento de vínculos, a troca de experiências, a coletividade perante o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, caracteriza para o autor os processos compensatórios da personalidade em formação das crianças com deficiência intelectual. A criança é capaz de realizar muito mais por meio de um trabalho em colaboração do que por si mesma. Em colaboração, a criança apresenta resultados mais significativos e consegue superar suas dificuldades, resolvendo com mais facilidade todas as tarefas previstas: La mayor o menor posibilidad que tiene el niño para pasar de lo que puede hacer por sí mismo a lo que es capaz de hacer en colaboración constituye el síntoma indicador más sensible para caracterizar la dinámica del desarrollo y del éxito en su actividad mental. Coincide plenamente con la zona de su desarrollo próximo. (VYGOTSKY, 2001, p. 240). Os espaços educativos devem considerar o aluno com deficiência intelectual com potencial criativo, sem restringir o currículo a situações somente concretas, para a produção do conhecimento no campo da educação especial 125 possibilitar a aquisição dos conhecimentos científicos e revelar as peculiaridades do pensamento infantil. o documento e a metodologia de Pesquisa A metodologia de pesquisa adotada caracteriza-se pelo estudo e, consequentemente, análise do documento Referencial sobre Avaliação da Aprendizagem na área da Deficiência Intelectual – Ensino Fundamental I (SãO PAULO, PMSP, 2008a), e das Orientações Curriculares – Proposição de Expectativas de Aprendizagem – Ensino Fundamental I (SãO PAULO, SME, 2007), realizada com base nas contribuições de Vygotsky, em especial a exploração da capacidade de abstração dos alunos com deficiência intelectual. Para a análise documental e a organização técnica da coleta e classificação dos dados, este artigo se apoiou nas contribuições de Bardin (2011), em especial no que se refere à representação condensada da informação, que permite, “por classificação em palavras-chave, descritores ou índices, classificar os elementos de informação dos documentos, de maneira muito restrita” (BARDIN, 2011, p. 52). Bardin (2011) complementa que a indexação é regulada segundo uma escolha adaptada ao sistema e ao objetivo da documentação em causa. Por meio de uma entrada que serve de pista, as classes permitem dividir a informação, constituindo as “categorias de uma classificação, na a produção do conhecimento no campo da educação especial126 qual estão agrupados os documentos que apresentam alguns critérios comuns, ou que possuem analogias no seu conteúdo” (BARDIN, 2011, p. 52). Portanto, os procedimentos para a análise dos dados seguiram as etapas de classificação-indexação, por meio da representação condensada da informação, conforme os objetivos elencados na pesquisa. Os componentes analisados na pesquisa foram categorizados segundo o critério léxico (BARDIN, 2011), cuja classificação das palavras se deu levando- se em conta “o seu sentido, com emparelhamento dos sinônimos e dos sentidos próximos” (BARDIN, 2011, p. 147). Para realizar esta classificação foram utilizados os conceitos de Lentidão e Redução advindos dos objetivos presentes nas Orientações Curriculares e aqueles solicitados no Referencial de Avaliação dos alunos com deficiência intelectual inseridos nas salas de aula comum. fontes de Pesquisa Esta pesquisa teve como fonte o Referencial sobre Avaliação da Aprendizagem na área da Deficiência Intelectual – Ensino Fundamental I (RAADI) (SãO PAULO, 2008a), estando este baseado nas Orientações Curriculares – Proposição de Expectativas de Aprendizagem – Ensino Fundamental I (SãO PAULO, 2007). A fim de realizar a análise das expectativas de aprendizagem, que a Secretaria Municipal de Educaçãode São Paulo tem dos alunos com deficiência a produção do conhecimento no campo da educação especial 127 intelectual, inicialmente o estudo analisou o Programa de Orientações Curriculares. Os documentos municipais não estavam sincronizados com a perspectiva nacional, que apresenta como conteúdo do currículo uma base nacional comum e uma parte diversificada que devem considerar “a realidade local, as necessidades dos alunos, as características regionais da sociedade, da cultura e da economia”, conforme o artigo 12 da Resolução CNE/ CEB (BRASIL, 2010): Art. 12 Os conteúdos curriculares que compõem a base nacional comum e a parte diversificada têm origem nas disciplinas científicas, no desenvolvimento das linguagens, no mundo do trabalho, na cultura e na tecnologia, na produção artística, nas atividades desportivas e corporais, na área da saúde e ainda incorporam saber como os que advêm das formas diversas de exercício da cidadania, dos movimentos sociais, da cultura escolar, da experiência docente, do cotidiano e dos alunos (BRASIL, 2010). Apresenta os componentes curriculares que devem se articular com as áreas de conhecimento de Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas, contudo não restringe anualmente o conteúdo que deve ser trabalhado e alcançado. Diante de um Programa tão singular, que objetivava reorientar o currículo da escola ano a ano, a partir de 2007 a SME-SP realizou um intensivo programa de formação em serviço para a sua implementação. Em parceria com a produção do conhecimento no campo da educação especial128 as Diretorias de Orientação Técnica Regionais – atual Divisão Pedagógica –, os Coordenadores Pedagógicos das Unidades Escolares foram convocados no horário de trabalho para participar de reuniões de formação. Estes Coordenadores Pedagógicos eram formados com o propósito de preparar e orientar os professores nas escolas para a efetiva implementação do Programa. O Programa de Orientação Curricular do Ensino Fundamental da Secretaria Municipal de Educação, por meio das 13 Diretorias Regionais de Educação, envolvendo representantes da rede de ensino que, por sua vez, eram assessorados por especialistas nas diferentes áreas/níveis de ensino, resultou na produção das Orientações Curriculares – Proposição de Expectativas de Aprendizagem do Ensino Fundamental I (SãO PAULO, 2007), com o objetivo de garantir a aprendizagem de todos os alunos em todas as áreas do conhecimento, e apresentou, de forma descritiva, como o professor deveria trabalhar para alcançar as expectativas de aprendizagem destinadas aos alunos com deficiência intelectual, planejadas para cada ano escolar. Ao citar a questão da avaliação nas diferentes áreas do conhecimento, o documento apresenta a proposta de uma avaliação formativa que busca qualificar o ensino e a aprendizagem, pois exige a participação das instituições e todos os envolvidos, enfatiza aspectos qualitativos, institui movimentos de superação das dificuldades sob o olhar complexo das relações que se dão no âmbito escolar. Avaliar para a produção do conhecimento no campo da educação especial 129 descobrir e propor soluções. Avaliar para compreender os processos pedagógicos implicados no ensino (SãO PAULO, 2007, p. 135). Apesar de não especificar os instrumentos de avaliação que o professor deve utilizar, o documento enfatiza o “olhar atento e a observação acurada” para encontrar as melhores estratégias pedagógicas. Assim enfatiza que “Não se trata de saber se ele dominou este ou aquele tópico, mas se o conjunto dessas aprendizagens resultou num uso eficaz da língua para a comunicação” (SÃO PAULO, 2007, p. 136). A política de avaliação implementada pela Secretaria Municipal de Educação, como condição necessária para a tomada de decisões em termos de (re)definições de ações, estabelecia indicadores para avaliar os processos e impactos das ações por meio da Prova São Paulo e do Programa de Acompanhamento e Avaliação dos programas desenvolvidos. Na área da educação especial, o aspecto analisado no Programa de Orientação Curricular do Ensino Fundamental da Secretaria Municipal de Educação voltou-se às ações de apoio pedagógico e apoio à inclusão com vistas a promover a equidade de direitos, e, consequentemente, o aprendizado a todos os educandos com ou sem deficiência (SÃO PAULO, 2008b). Em 2008, criou-se um grupo de trabalho para a elaboração do Referencial sobre Avaliação da Aprendizagem na área da Deficiência Intelectual (RAADI), tomando como base todas as ações que a produção do conhecimento no campo da educação especial130 estavam sendo desenvolvidas no Programa de Orientação Curricular. A implementação do RAADI, para a avaliação de todos os alunos com deficiência intelectual inseridos nas salas de aula comum, concretizou-se após a publicação do Decreto Municipal nº 51.778/2010. O documento apresenta indicadores e referenciais de adaptação curricular, com o objetivo de atender às necessidades do processo de avaliação da aprendizagem de alunos com deficiência intelectual inseridos na sala de aula comum. O RAADI (SãO PAULO, 2008a) está organizado da seguinte forma: Introdução; Parte I: Conceito de Deficiência Intelectual: novas perspectivas; Parte II: As implicações da Teoria Histórico-Cultural na área da Deficiência Intelectual; Parte III: A escolarização e Avaliação na área da Deficiência Intelectual; Parte IV: Terminalidade Específica: algumas considerações; Parte V: Referencial sobre Avaliação de Aprendizagem na área da Deficiência Intelectual e Bibliografia. Os indicadores avaliativos presentes no Referencial da Aprendizagem são compostos por três áreas: a Instituição Escolar: Análise da Necessidade de Adequações Específicas ‒ esta parte consta da análise das seguintes dimensões: a instituição escolar e a análise do contexto de aprendizagem; as Áreas do desenvolvimento do aluno com deficiência intelectual: aspectos da percepção, motricidade, desenvolvimento verbal, memória e desenvolvimento socioafetivo; e as Áreas curriculares do 1º ao 5º ano: a partir das expectativas de aprendizagem a produção do conhecimento no campo da educação especial 131 geral, e conta com os componentes curriculares de Língua Portuguesa, Matemática, Natureza e Sociedade, Artes e Educação Física. Na área Avaliação da Instituição escolar é realizada uma pesquisa sobre o aluno e suas necessidades dentro da unidade escolar. Ela se subdividide em três partes: I – Conhecimento prévio sobre o aluno; II – Definição das necessidades específicas do aluno; e III – Definição do cronograma de ações. Já no item Avaliação do Contexto de aprendizagem, são analisados também três aspectos: I – Sala de aula; II – Recursos de ensino e aprendizagem; e III – Estratégias metodológicas. Para realizar a análise da aquisição do conteúdo escolar dos alunos com deficiência intelectual, a área Áreas Curriculares, que abarca os componentes curriculares de Língua Portuguesa, Matemática, Natureza e Sociedade, o professor deve utilizar uma legenda diante das expectativas presentes na avaliação: RS – realiza satisfatoriamente; RP – realiza parcialmente; CA – realiza com ajuda; NAG – conteúdo não apresentado ao grupo; NAA – conteúdo não apresentado ao aluno; NR – não realiza. Como o foco central deste estudo foi o de analisar as orientações contidas no Referencial sobre Avaliação da Aprendizagem na área da Deficiência Intelectual – Ensino Fundamental I (SãO PAULO, SME, 2008a), cotejando- as com aquelas contidas nas Orientações Curriculares – Proposição de Expectativas de Aprendizagem – Ensino Fundamental I, esta pesquisa analisou 1.096 expectativas de aprendizagem, em que se efetuou o cruzamento entre a produçãodo conhecimento no campo da educação especial132 os anos escolares e a quantidade de excertos de cada área dos dois documentos. Para a apresentação neste artigo, foi realizada a seleção de dois excertos, pela restrição do espaço, sobre os quais se realizou a análise das concepções presentes no RAADI, baseada nas contribuições de Vygotsky. O documento considera a multidimensionalidade, em seus diferentes contextos, para possibilitar a inserção de alunos com deficiência intelectual no currículo escolar, considerando e prevendo os níveis de apoio pedagógico que se farão necessários durante o processo de aprendizagem. Com o objetivo de ampliar o universo de análise conceitual da deficiência intelectual, levando-se em conta a prática social e os níveis de apoio necessários para garantir o desenvolvimento do aluno com deficiência, a Parte II do documento baseia-se teoricamente na Teoria Histórico-Cultural de Vygotsky. Apresentando as contribuições de Vygotsky quanto ao conceito de zona de desenvolvimento real e proximal, enfatiza a importância da mediação do outro para o desenvolvimento da pessoa com deficiência intelectual, responsabilizando a escola por criar estratégias pedagógicas para o desenvolvimento do aluno a fim de que este supere seus limites. Considerando o sujeito histórico, inserido culturalmente no mundo, o documento apresenta a importância de dar significado às atividades dos alunos com deficiência intelectual, assim como a sua fala, seu desenho, suas produções e sua aprendizagem. a produção do conhecimento no campo da educação especial 133 O RAADI avalia tanto o potencial de aprendizagem dos alunos com deficiência intelectual quanto sua evolução no decorrer do ano escolar. Pela restrição do espaço, e porque são representativos dos demais para compreender as expectativas de aprendizagem que a Secretaria Municipal de Educação tem do aluno com deficiência intelectual, na seção Discussão e Resultados será apresentada a análise do cotejamento realizado quanto à produção escrita das expectativas presentes nas Orientações Curriculares e no RAADI. discussão e resultados Como o foco central deste estudo foi o de analisar as orientações contidas no Referencial sobre Avaliação da Aprendizagem na área da Deficiência Intelectual – Ensino Fundamental I (SãO PAULO, SME, 2008a), cotejando-as com aquelas contidas nas Orientações Curriculares – Proposição de Expectativas de Aprendizagem – Ensino Fundamental I, a pesquisa analisou 1.096 expectativas de aprendizagem, em que se efetuou o cruzamento entre os anos escolares e a quantidade de excertos de cada área dos dois documentos. Para essa apresentação foram selecionados dois excertos: produção oral e produção escrita. Nas expectativas de Aprendizagem – produção oral, quanto a exploração oral e produção oral, o quadro abaixo apresenta as expectativas de aprendizagem contidas nas Orientações Curriculares e aquelas presentes no Referencial sobre Avaliação da Aprendizagem na área da Deficiência Intelectual. a produção do conhecimento no campo da educação especial134 Em relação ao desenvolvimento da Escuta e Produção Oral, por meio da exploração de diferentes gêneros textuais, espera-se que os alunos reconheçam textos de diferentes gêneros e que os recontem, apropriando- Quadro 1 – Cotejamento dos excertos das Orientações Curriculares e do Referencial sobre Avaliação da Aprendizagem na área da Deficiência Intelectual (RAADI) quanto a produção oral Orientações Curriculares RAADI 1º Ano P54 – Reconhecer textos de diferentes gêneros, apropriando-se das características do texto-fonte. Expectativas conforme os gêneros indicados para o 1º Ano P29 – Recontar contos de repetição, apropriando-se das características do texto- fonte (Esfera literária (prosa) – conto tradicional, conto acumulativo, literatura infantil). P54* – Recontar textos de diferentes gêneros, com o apoio do professor, colega ou figuras, percebendo as características do texto-fonte. 2º Ano P54 – Recontar textos de diferentes gêneros, apropriando-se das características do texto-fonte. Expectativas conforme os gêneros indicados para o 2º Ano P41 – Recontar contos tradicionais, apropriando-se das características do texto- fonte (gêneros focalizados em sequências didáticas/projetos: Conto Tradicional). P54* – Recontar textos de diferentes gêneros, com o apoio do professor, colega ou figuras, percebendo as características do texto-fonte. 3º Ano P54 – Recontar textos de diferentes gêneros, apropriando-se das características do texto-fonte. Expectativas conforme os gêneros indicados para o 3º Ano P48 – Recontar contos tradicionais, apropriando-se das características do texto- fonte. P54* – Participar do recontar textos de diferentes gêneros, com o apoio do professor, colega ou figuras, percebendo as características do texto-fonte. 4º Ano P54 – Recontar textos de diferentes gêneros, apropriando-se das características do texto-fonte. Expectativas conforme os gêneros indicados para o 4º Ano P49 – Recontar fábulas, apropriando-se das características do texto-fonte. P54* – Participar do recontar textos de diferentes gêneros, com o apoio do professor, colega ou figuras, percebendo as características do texto-fonte. 5º Ano P54 – Recontar textos de diferentes gêneros, apropriando-se das características do texto-fonte. Expectativas conforme os gêneros indicados para o 5º Ano P66 – Recontar lendas e mitos, apropriando-se das características do texto- fonte. P54* – Participar do recontar textos de diferentes gêneros, com o apoio do professor, colega ou figuras, percebendo as características do texto-fonte. Fonte: Elaboração da autora. a produção do conhecimento no campo da educação especial 135 se das características do texto-fonte que pode advir de um conto tradicional, acumulativo, da literatura infantil, entre outros. As expectativas de aprendizagem do RAADI também se referem ao reconto de textos de diferentes gêneros, com o apoio do professor, colega ou figuras, percebendo as características do texto-fonte. O documento apresenta a necessidade da presença do professor para que o aluno com deficiência intelectual alcance esta expectativa de aprendizagem escolar. O RAADI apresenta expectativas de trabalho coletivo, com o apoio do professor para recontar as histórias. Assim como diz Vygotsky (1997), a maior ou menor possibilidade de ter a criança, para passar do que pode fazer por si mesmo e o que é capaz de fazer em colaboração, constitui o sintoma indicador para caracterizar a dinâmica do desenvolvimento e do êxito em sua atividade mental, coincidindo plenamente com a zona de desenvolvimento proximal. Do ponto de vista do ensino, o apoio deve ser oferecido para não ser mais necessário, ou seja, o aluno deve superar a necessidade deste apoio e, desse modo, realizar as atividades propostas. As crianças com deficiência intelectual apresentam limitações para a abstração, contudo elas necessitam de mecanismos de formação de conceitos abstratos para se adaptarem. Vygotsky (1997) alerta que as limitações alcançam um maior grau quando seu mecanismo de formação de conceitos está dominado por um pensamento concreto, em situações concretas. a produção do conhecimento no campo da educação especial136 Para a formação de conceitos complexos é necessário o apoio para que isso seja desenvolvido. Neste aspecto, o RAADI apresenta em suas expectativas para os alunos com deficiência intelectual a ajuda e o auxílio do professor ou dos alunos e expõe a necessidade de momentos de trabalho em grupo como no terceiro ano, por exemplo. Vygotsky ressalta que um trabalho criativo e inspirador pode ocorrer através de uma composição coletiva.Ao apresentar o trabalho realizado por Tolstói, Vygotsky (2009) relata que as crianças compunham, criavam as figuras dos personagens, descreviam a aparência deles, uma série de detalhes. A criança, conforme o autor, brincava quando compunha. A produção do texto coletivo é uma das etapas para a construção de um texto de forma independente, contudo não há a expectativa de que os alunos com deficiência intelectual apresentem sozinhos alguma produção. Eles sempre terão o apoio para que isto seja possível. Quadro 2 – Cotejamento dos excertos das Orientações Curriculares e do Referencial sobre Avaliação da Aprendizagem na área da Deficiência Intelectual (RAADI) quanto a produção escrita Orientações Curriculares RAADI 1º Ano P24 – Produzir novo texto a partir de modelo, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção, ditando-o ao professor ou escrevendo de acordo com sua hipótese de escrita. Expectativas conforme os gêneros indicados para o 1º Ano P 25 – Produzir novo conto de repetição a partir de declaque de modelo, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção, ditando-o ao professor ou escrevendo de acordo com a hipótese de escrita (Esfera literária (prosa) – conto tradicional, conto acumulativo, literatura infantil). P34 – Produzir nova parlenda a partir de modelo, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção, ditando-o ao professor ou escrevendo de acordo com a hipótese de escrita (Esfera literária (verso) – cantiga, trava-língua, adivinha, trova). P24* – Registrar o texto produzido (receita, bilhete, lista) a partir da produção coletiva e com base no texto produzido, mesmo que não fielmente. 2º Ano P24 – Produzir novo texto a partir de modelo, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção, ditando-o ao professor ou escrevendo de acordo com sua hipótese de escrita. Expectativas conforme os gêneros indicados para o 2º Ano P17 – Produzir novo verbete a partir de modelo, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção, ditando-o ao professor ou escrevendo de acordo com a hipótese de escrita. P46 – Produzir nova cantiga a partir de modelo, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção, de acordo com sua hipótese de escrita. P24* – Registrar o texto produzido (receita, bilhete, lista) a partir da produção coletiva e com base no texto produzido, mesmo que não fielmente. 3º Ano P24 – Produzir novo texto a partir de modelo, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção, ditando-o ao professor ou escrevendo de acordo com sua hipótese de escrita. Expectativas conforme os gêneros indicados para o 3º Ano P52 – Produzir novo poema a partir de modelo levando em conta o gênero e o seu contexto de produção. P24* – Registrar o texto produzido (receita, bilhete, lista) a partir da produção coletiva e com base no texto produzido, mesmo que não fielmente. 4º Ano P24 – Produzir novo texto a partir de modelo, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção, ditando-o ao professor ou escrevendo de acordo com sua hipótese de escrita. Expectativas conforme os gêneros indicados para o 4º Ano P43 – Produzir fábulas a partir de P24* – Registrar o texto produzido (receita, bilhete, lista) a partir de modelo oferecido pelo professor. a produção do conhecimento no campo da educação especial 137 Quadro 2 – Cotejamento dos excertos das Orientações Curriculares e do Referencial sobre Avaliação da Aprendizagem na área da Deficiência Intelectual (RAADI) quanto a produção escrita Orientações Curriculares RAADI 1º Ano P24 – Produzir novo texto a partir de modelo, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção, ditando-o ao professor ou escrevendo de acordo com sua hipótese de escrita. Expectativas conforme os gêneros indicados para o 1º Ano P 25 – Produzir novo conto de repetição a partir de declaque de modelo, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção, ditando-o ao professor ou escrevendo de acordo com a hipótese de escrita (Esfera literária (prosa) – conto tradicional, conto acumulativo, literatura infantil). P34 – Produzir nova parlenda a partir de modelo, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção, ditando-o ao professor ou escrevendo de acordo com a hipótese de escrita (Esfera literária (verso) – cantiga, trava-língua, adivinha, trova). P24* – Registrar o texto produzido (receita, bilhete, lista) a partir da produção coletiva e com base no texto produzido, mesmo que não fielmente. 2º Ano P24 – Produzir novo texto a partir de modelo, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção, ditando-o ao professor ou escrevendo de acordo com sua hipótese de escrita. Expectativas conforme os gêneros indicados para o 2º Ano P17 – Produzir novo verbete a partir de modelo, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção, ditando-o ao professor ou escrevendo de acordo com a hipótese de escrita. P46 – Produzir nova cantiga a partir de modelo, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção, de acordo com sua hipótese de escrita. P24* – Registrar o texto produzido (receita, bilhete, lista) a partir da produção coletiva e com base no texto produzido, mesmo que não fielmente. 3º Ano P24 – Produzir novo texto a partir de modelo, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção, ditando-o ao professor ou escrevendo de acordo com sua hipótese de escrita. Expectativas conforme os gêneros indicados para o 3º Ano P52 – Produzir novo poema a partir de modelo levando em conta o gênero e o seu contexto de produção. P24* – Registrar o texto produzido (receita, bilhete, lista) a partir da produção coletiva e com base no texto produzido, mesmo que não fielmente. 4º Ano P24 – Produzir novo texto a partir de modelo, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção, ditando-o ao professor ou escrevendo de acordo com sua hipótese de escrita. Expectativas conforme os gêneros indicados para o 4º Ano P43 – Produzir fábulas a partir de P24* – Registrar o texto produzido (receita, bilhete, lista) a partir de modelo oferecido pelo professor. provérbios, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção. P57 – Em duplas ou coletivamente, produzir em versos fábulas ou contos conhecidos, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção. 5º Ano P23 – Produzir texto levando em conta o gênero e o seu contexto de produção. Expectativas conforme os gêneros indicados para o 5º Ano P7 – Produzir roteiro levando em conta o gênero e o seu contexto de produção. P42 – Produzir notícia de fato relevante, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção. P71 – Produzir poema, levando em conta o gênero e o seu contexto de produção. P23* – Produzir texto simples, com apoio, levando em conta o gênero (receita, lista, bilhete) com base em sua hipótese de escrita. Fonte: Elaboração da autora. a produção do conhecimento no campo da educação especial138 Neste excerto de produção escrita verifica-se a necessidade de um planejamento para os alunos com deficiência intelectual inseridos na sala de aula comum completamente diferente daqueles alunos ditos normais. Os alunos com deficiência intelectual continuarão com as atividades de receita, lista e bilhete durante todo o Ensino Fundamental. A produção escrita é bem mais abstrata. Conforme Vygotsky, “a escrita representa grandes dificuldades por possuir leis próprias, que se diferenciam parcialmente das leis da oralidade e ainda são pouco acessíveis para a criança” (VYGOTSKY, 2009, p. 64). O autor complementa que “ao aprender a escrever, a criança precisa se desligar do aspecto sensorial da fala e substituir palavras por imagens de palavras” (VYGOTSKY, 2008, p. 123). Os alunoscom deficiência intelectual apresentam limitações para a abstração, contudo ela necessita de mecanismos de formação de conceitos abstratos para a sua adaptação. Vygotsky (1995) alerta que as limitações alcançam um maior grau quando seu mecanismo de formação de conceitos está dominado por um pensamento concreto, em situações concretas. Para a formação de conceitos complexos é necessário o apoio para que isso seja desenvolvido. Neste aspecto o RAADI apresenta em suas expectativas para os alunos com deficiência intelectual a ajuda e o auxílio do professor ou dos alunos e expõe a necessidade de momentos de trabalho em grupo como no terceiro ano, por exemplo. a produção do conhecimento no campo da educação especial 139 considerações finais A elaboração e a disseminação, pela rede de ensino da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, de um documento que traz a adaptação curricular para o ensino de alunos com deficiência intelectual, incluídos no ensino regular, constitui-se em uma iniciativa tida como um avanço no que se tem produzido em relação a propostas dessa natureza, na medida em que teve como base uma proposta curricular específica para a rede em geral. O documento propõe a verificação de um conjunto de exigências organizativas, que devem estar no centro das ações diante da necessidade dos alunos com deficiência intelectual, como, por exemplo, a análise do número de alunos na classe em que o aluno será ou está matriculado, o suporte pedagógico especializado e a metodologia e didática do professor para que os alunos possam aprender. Para este artigo foi selecionado dois excertos de expectativas de aprendizagem específicas de linguagem escrita dos cinco anos escolares a que se destinam, por meio do quadro que coloca lado a lado as expectativas das Orientações Curriculares e do RAADI (Quadro 2). Quanto ao desenvolvimento do pensamento abstrato na área curricular para os alunos com deficiência intelectual, fica definido que ele deve ser alcançado com apoio e só podem expressar esse aprendizado por meio da linguagem oral (Quadro 1). Sendo assim, verifica- se que as suas possíveis insuficiências cognitivas não a produção do conhecimento no campo da educação especial140 os impedem de incorporar conteúdos cada vez mais complexos. Fica a cargo do professor o caminho para desenvolver processos de mediação que, ao longo do tempo, levem à aquisição de forma autônoma, o que dispensaria o apoio. Então, mais do que um problema de ordem cognitiva dos alunos, parece que a baixa aprendizagem reside nos processos pedagógicos utilizados nesta área. Portanto, se a formulação de expectativa de aprendizagem de determinado conteúdo escolar indica que ela só se concretizará com apoio do professor ou de colegas não deficientes, e não se faz qualquer menção à possibilidade de responder sem esse apoio, isto contraria a base teórica que sustenta o RAADI, quanto à zona de desenvolvimento proximal em que “o que a criança é capaz de fazer hoje em cooperação, será capaz de fazer sozinha amanhã” (VYGOTSKY, 2009, p. 129). referências AAMR – American Association on Mental Retardition. Retardo Mental: definição, classificação e sistemas de apoio. Porto Alegre: Artmed, 2006. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Tradução Luís Antero Reto, Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70, 2011. BRASIL. Lei n° 4.024 de 20 de dezembro de 1961. Fixa as diretrizes e bases da Educação Nacional. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, 27 dez. 1961. a produção do conhecimento no campo da educação especial 141 BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Senado. 1988. BRASIL. Câmara de Educação Básica. Parecer CNE/CEB nº 17/2001, de 3 de julho de 2001. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Especial. Brasília: MEC, 2001. BRASIL, Ministério da Educação Secretaria de Educação Especial. Decreto nº 6.571/08. Institui a política de financiamento e regulamenta a organização para o atendimento educacional especializado dos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. Secretaria de Educação Especial. Brasília: MEC/SEESP, 2008. BRASIL. Ministério da Educação. Resolução n° 04/09. Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial, 2009. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. 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Orientações Curriculares ‒ Proposição de Expectativas de Aprendizagem para o Ensino Fundamental – CICLO I. 2007. a produção do conhecimento no campo da educação especial 143 SãO PAULO (Município). Prefeitura do Município de São Paulo. Secretaria Municipal de Educação. Referencial sobre Avaliação de Aprendizagem na área da Deficiência Intelectual – Ensino Fundamental I. 2008a. SãO PAULO (Município). Prefeitura do Município de São Paulo. Secretaria Municipal de Educação. Educação: Fazer e Aprender na Cidade de São Paulo. 2008b. SãO PAULO (Município). Prefeitura do Município de São Paulo. Secretaria Municipal de Educação. Decreto Municipal nº 51.778, de 14 de setembro de 2010. Institui a Política de Atendimento de Educação Especial, por meio do Programa Inclui, no âmbito da Secretaria Municipal de Educação. Diário Oficial do Município,15 set. 2010. SãO PAULO (Município). Prefeitura do Município de São Paulo. Secretaria Municipal de Educação. Programa Mais Educação São Paulo. 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Moscou: Editorial Pedagógica, 2001. a produção do conhecimento no campo da educação especial 145 CAPÍTULO 4 ALFABETIzAÇÃO DE ALUNOS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL: UM ESTUDO SOBRE ESTRATÉGIAS DE ENSINO UTILIzADAS NO ENSINO REGULAR mirian célia castellain gueBert introdução A pesquisa teve por finalidade identificar as estratégias de ensino utilizadas por professores de alunos diagnosticados com deficiência intelectual, incluídos em sala de aula no Ensino Fundamental e que estão em processo de alfabetização. A opção por estudar as estratégias utilizadas pelos professores para ensinar deficientes intelectuais na escola regular se dá pelo fato de considerar que a deficiência intelectual se caracteriza pelo significativo atraso em seu processo cognitivo. Ademais, quanto às recomendações oficiais (Brasil 1997; Brasil, 1998; Brasil, 2007), autores consagrados como Carvalho (2004), Stainback (1999), Pacheco (2006), González (2008) indicam que, para um rendimento escolar satisfatório, esses alunos necessitam de estratégias e de organização curricular diferenciadas, podendo utilizar adaptações curriculares que levem em consideração as características cognitivas dos alunos. A Declaração de Salamanca (1994) reconhece que todos podem aprender juntos, em uma escola que a produção do conhecimento no campo da educação especial146 possibilite a aprendizagem de todos os alunos, considera fundamental a participação dos pais, a formação dos professores e as organizações das pessoas com deficiência, na pronta identificação de como aprender melhor e quais estratégias de intervenção atendem às necessidades educacionais nas escolas integradoras no Brasil denominadas inclusivas. Tanto a Declaração de Salamanca (1994) quanto a LDBEN (BRASIL, 1996), embora não determinem que as pessoas com deficiências tenham que, obrigatoriamente, ser atendidas nas escolas regulares, definem que a inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais no ensino regular seja a forma preferencial nas escolas regulares. No entanto, reconhecem que a inclusão escolar demanda modificações intensas na política educacional. Não se pode negar que um dos aspectos enfatizados é a modificação da organização escolar refletida nas práticas pedagógicas desenvolvidas no interior das escolas, para que todos possam aprender, independentemente de suas características. Os documentos indicam que as necessidades educativas especiais devem incorporar uma “pedagogia centrada no aluno” – logo, as organizações escolares devem efetuar adaptações necessárias para cada aluno, com o objetivo de que eles tenham sucesso em sua vida acadêmica. Para tanto, os programas de ensino devem ser adaptados às necessidades dos alunos e não o contrário. Por consequência, as escolas devem oferecer opções curriculares que atendam diferentes interesses e necessidades. a produção do conhecimento no campo da educação especial 147 O documento denominado Parâmetros Curriculares Nacionais – Adaptações Curriculares, publicado pelo MEC em 1998, a partir do que considera como “significativas experiências pedagógicas desenvolvidas no país”, indica providências e recomendações a serem utilizadas pelo sistema escolar brasileiro, objetivando a qualidade no processo de escolarização de todos os alunos (BRASIL. MEC, 1998). Em primeiro lugar, na perspectiva de “Educação Para Todos”, recomenda que a escola deva enfrentar o desafio de “garantir o acesso e a apropriação do saber, com vistas a atingir as finalidades da educação escolar”. Enfatiza, ainda, que há necessidade de concretizar o caráter de flexibilidade e dinamização do currículo escolar, e que este favoreça a interatividade e a eficiência que precisa ser alcançada por todos os alunos e pela escola (BRASIL. MEC, 1998). Nesta perspectiva, a escola tem como função desenvolver práticas que apontem alternativas para lidar com as necessidades específicas dos alunos, a partir das adaptações razoáveis, isto é, com tratamento diversificado dentro do mesmo currículo, “respeitando a diversidade, mantendo a ação pedagógica para que todos os alunos possam aprender juntos”. O documento considera que a aprendizagem escolar está diretamente vinculada ao currículo, organizado para orientar os níveis de ensino e as ações docentes. Desta forma, as orientações oficiais recomendam que a escola regular modifique não apenas as atitudes e as expectativas em relação a esses alunos, mas se organize a produção do conhecimento no campo da educação especial148 para se constituir como escola real – que dê conta das especificidades dos alunos que atende, promovendo sua aprendizagem e seu desenvolvimento integral – por meio da flexibilização curricular, com a identificação das necessidades pedagógicas e com rede de apoio que favoreça o processo educacional. Esta flexibilidade curricular constitui possibilidade de atuar perante as dificuldades de aprendizagem dos alunos. Não se trata de um novo currículo e sim um currículo “dinâmico, com planificações pedagógicas e ações eficazes dos docentes”, tendo como critérios para esta adaptação: o que o aluno deve aprender; como e quando aprender; que formas de organização do ensino são mais eficientes para o processo de aprendizagem; como e quando avaliar o aluno (BRASIL. MEC, 1998, p. 33). Entendendo que o processo de educação é uma prática social, e que a escolarização é uma necessidade cultural, este processo deve ser organizado para atender às características dos alunos, por meio de estratégias que possibilitem a aprendizagem como resultado de um processo de mediação junto a todos os alunos. Ao planejar as atividades a serem desenvolvidas com os alunos com deficiência, outro aspecto a ser considerado são os trabalhos simultâneos, cooperativos e participativos, respeitando o grau de intensidade da programação curricular, chamados de rede de apoio. Neste sentido, a definição das adaptações curriculares são “carregadas de significados”, apesar de constituírem modificações pequenas no currículo, facilmente a produção do conhecimento no campo da educação especial 149 realizadas pelos professores no planejamento das atividades docentes e constituírem ajustes do contexto normal da sala de aula – pois é fundamental que o aluno aprenda o conteúdo elaborado, para que a escola cumpra sua função social e curricular e os envolvidos possam obter sucesso em sua escolarização (BRASIL. MEC, 1998). Estas modificações englobam o planejamento e a atuação do docente, selecionando, organizando e introduzindo estratégias específicas, assim como realizando alterações didáticas, organizando ações diferenciadas em sala de aula, que devem respeitar as características de cada aluno em seu processo de escolarização. Ao considerar que o currículo é vivo e que implica formas de ensinar e de avaliar os diferentes conteúdos, o professor deve reconhecer que adaptações metodológicas precisam ser realizadas. Nesse processo, deve situar o aluno no grupo a que pertence, por meio da adoção de métodos e técnicas de ensino específicas, com apoio de recursos físicos para realizar as atividades propostas, que devem favorecer o trabalho cooperativo com iguais possibilidades de execução, já que o processo se diz inclusivo. A adaptação curricular só se concretizaráa partir da premissa de um currículo funcional – em que a aprendizagem ocorre de forma gradual, significativa e sistematizada, para que a escola possibilite que todos aprendam juntos –, mas são necessárias medidas pedagógicas possíveis, que visem ao atendimento das a produção do conhecimento no campo da educação especial150 necessidades educacionais, para que os alunos com características diferentes possam aprender. Em 2007 o Ministério da Educação publicou a coleção denominada “Atendimento Especializado – Deficiência Intelectual”. O documento defende a escola como instituição formal, em que todo o processo de mediação favoreça a construção do conhecimento de forma intencional e deliberada, e na qual tanto os professores quanto os alunos devem conhecer os objetivos explícitos do processo de escolarização – sendo que estes objetivos devem ser perseguidos considerando o tempo escolar (ano letivo) e o planejamento (desenvolvimento da aula), para que o professor possa ensinar e o aluno possa aprender. Para garantir um processo de escolarização como este, é necessário que os professores façam escolhas metodológicas, definam recursos didáticos relevantes para a realização do trabalho coletivo, considerando também as características dos alunos com deficiência em seu processo de escolarização (BRASIL. MEC, 2007). Segundo a publicação, estas escolhas representam a busca de soluções e, neste sentido, a adaptação de currículos e de atividades para o processo avaliativo deve ser considerada, quando os currículos e as atividades se referem a alunos com deficiência intelectual. Ao assumirem o caráter substitutivo da educação especial, as práticas adaptativas funcionam como reguladores externos para as aprendizagens, ao estarem subsidiadas por procedimentos de ensino que buscam atender às necessidades dos alunos com a produção do conhecimento no campo da educação especial 151 deficiência intelectual, submetendo-os aos processos de escolarização. Como se pode perceber, ambos os documentos recomendam que as estratégias desenvolvidas pelos professores em sala de aula devem garantir que todos os alunos aprendam, independentemente de suas características, entre eles os caracterizados como deficientes intelectuais. Por outro lado, quando propuseram adaptações curriculares e de procedimentos didáticos como uma possibilidade na escolarização dos alunos com deficiência intelectual, as recomendações do Ministério da Educação (BRASIL. MEC, 1998; BRASIL. MEC, 2007) permaneceram no âmbito geral, sem algum detalhamento preciso que ofereça aos professores subsídios para definir “o que fazer” efetivamente no sentido de propiciar meios para que esses alunos aprendam na escola regular. Para Carvalho (2000), o que necessita ser modificado no processo de escolarização é a postura dos profissionais ante a deficiência – que levem em conta as características individuais, principalmente dos alunos que apresentam algum tipo de necessidade específica em seu aprendizado. No entanto, cabe à escola a responsabilidade para garantir o processo de aprendizagem para todos os alunos, respeitando as diferenças, o que implica seu reconhecimento com base na percepção do outro como sujeito da aprendizagem. Entretanto, o reconhecimento das diferenças nos processos de aprendizagem envolve inúmeras e complexas barreiras existentes na organização a produção do conhecimento no campo da educação especial152 do processo de escolarização. As mais significativas são de cunho atitudinal, mas também incidem “no currículo e nas adaptações curriculares, na avaliação contínua do trabalho, na intervenção psicopedagógica e na qualificação da equipe de educadores” (CARVALHO, 2000, p. 77). Ao estabelecer o elo entre o não saber e o saber elaborado, entre o planejamento e as práticas pedagógicas, as adaptações curriculares não devem ser entendidas como um conjunto de conhecimentos que a escola deve transmitir aos alunos, mas como um conjunto de experiências que a escola (como instituição formal) dispõe aos alunos, para potencializar o seu desenvolvimento. Neste sentido, para Carvalho (2000) as adaptações curriculares são encaradas como modificações realizadas pelos professores intencionalmente organizadas, de um lado, e, de outro, de forma quase espontânea, por meio da dinâmica das ações que envolvem a prática docente na sala de aula, visando responder às necessidades de cada aluno. Em um currículo flexível e aberto às adaptações é condição fundamental para atender às necessidades educativas de qualquer aluno – condição sine qua non para a equalização das oportunidades a todos que buscam uma escola de qualidade. Todas essas orientações parecem demonstrar que, para que a aprendizagem do conteúdo escolar seja acessível ao aluno com deficiência intelectual, é preciso que ocorram adaptações didáticas que levem em consideração as a produção do conhecimento no campo da educação especial 153 dificuldades inerentes aos seus déficits intelectuais. Nessa perspectiva e, considerando a aprendizagem da língua escrita como um dos requisitos básicos para a progressão a níveis mais altos de escolaridade, constata- se a necessidade de identificar as estratégias utilizadas por professores no processo de alfabetização de alunos com deficiência intelectual. a Pesquisa A pesquisa implicou coleta de dados sobre a prática docente, para identificar as estratégias de ensino utilizadas por professores alfabetizadores em suas salas de aula. Devido ao dinamismo de uma aula, optou-se por utilizar a observação direta, com registro por meio de gravações que seguiram a seguinte sistemática: a) Duas gravações semanais de 30 minutos das atividades desenvolvidas pelo professor, por meio da técnica de “Plano Geral (PG)” (BRASIL, MENMOCINE, 2010); b) Transcrição das gravações, registrando-se especialmente as estratégias utilizadas pelo professor; c) Organização do material coletado, por meio de categorias estabelecidas a posteriori (BARDIN, 1994), que congregaram as estratégias e as práticas de ensino. A partir das categorias estabelecidas, os dados coletados foram analisados para cotejamento em dois eixos: atividades para os alunos e a relação entre conteúdo e forma. Em cada categoria, procurou-se a produção do conhecimento no campo da educação especial154 identificar a estratégia de ensino predominante nas práticas pedagógicas desenvolvidas em sala de aula. Os dados foram descritos considerando: a) a cena; e b) a prática do professor e a identificação da estratégia predominante – como podem ser verificados nas cenas abaixo descritas. considerações soBre o camPo emPírico A escolha do campo empírico é uma questão de pesquisa a ser considerada, pois os problemas enfrentados têm de ser equacionados sem, no entanto, influir sobre seus objetivos mais amplos. A negativa de duas escolas para a realização da coleta de dados provocou em mim uma mistura de decepção e preocupação. Decepção porque, ao escolher uma escola reputada como de boa qualidade, com indicações de trabalho diferenciado com alunos com deficiência intelectual, minha expectativa era a de que a instituição e o professor se sentiriam valorizados. Entretanto, não foi o que ocorreu, pois nas três primeiras instituições, por motivos distintos, não obtive autorização para ali realizar a minha investigação. E preocupação por considerar que a falta de um campo empírico bem ajustado aos meus objetivos poderia prejudicar a minha investigação. A terceira instituição que procurei abriu suas portas, e as gravações iniciais parecem mostrar que o trabalho de alfabetização efetuado pela professora selecionada é, efetivamente, de muito boa qualidade, o quepermitiu a produção do conhecimento no campo da educação especial 155 analisar se este trabalho basta para que um aluno com deficiência intelectual se beneficie efetivamente de um processo de ensino qualificado. Foi possível obter respostas para minhas indagações – as adaptações que a professora faz para esse aluno, como se efetiva o serviço de apoio e que resultados são alcançados? Com relação ao procedimento de coleta de dados – as videogravações –, a experiência inicial me mostrou que o campo de pesquisa se torna ideal quando viabiliza as coletas dos dados. No entanto, sabe-se que o trabalho científico se dará pela análise que se fizer com estes dados. Embora parte das práticas pedagógicas atuais se caracterize por uma classificação e estruturas precárias, de todo um discurso ideológico sobre a não imposição de padrões pedagógicos preestabelecidos, tal como Bernstein (1988) demonstra em relação ao ensino pré-escolar e anos iniciais do Ensino Fundamental, o dinamismo da sala de aula não pode ser analisado, segundo ele, de forma dicotômica (pedagogia visível × pedagogia invisível), pois elas se completam. Este é um cuidado a se tomar quando descrever as estratégias observadas. Ao contrário, esses conceitos devem ser utilizados como ferramentas teóricas que permitam, dentro desse dinamismo, classificar essas estratégias como contendo classificação e estrutura mais ou menos precária ou mais ou menos adequada. Com base nas argumentações acima, e considerando as recomendações oficiais em relação a modificações curriculares e adoção de a produção do conhecimento no campo da educação especial156 procedimentos didáticos, elas são gerais e pouco operacionais; a escolarização é a base em que se assenta todo o ensino posterior e que pouco tem se investigado sobre esse tema; que parece haver um conflito entre as práticas pedagógicas atualmente em uso (caracterizadas mais como invisíveis do que como visíveis); que para o aluno com deficiência intelectual, por suas próprias limitações, a falta de uma classificação e estrutura mais explícita possa tornar o ensino sem sentido para ele. A pesquisa está em fase inicial de coleta de dados, as estratégias serão observadas e analisadas com o roteiro elaborado, em duas gravações de 30 minutos por semana, combinada com os profissionais que atuam no campo da pesquisa. Há necessidade de refletir junto à professora sobre suas práticas e para a realização das adaptações nas atividades a serem propostas ao aluno, objetivando sua escolarização. Cena 1 A turma responde as atividades previamente descritas no quadro, e que foram lidas e explicadas pela professora. A atividade proposta tinha como objetivo interpretar o texto lido em conjunto pela turma. No quadro estavam escritas três questões referentes ao texto. Foi solicitado aos alunos que respondessem às questões em seus cadernos. A professora manteve sob seu controle as ações a serem desenvolvidas pelos educandos, e como estratégia identificou-se a cópia e a releitura do texto para atender ao solicitado, evidenciando a interpretação a produção do conhecimento no campo da educação especial 157 da pergunta, relacionando-a às informações obtidas na leitura do texto. A atividade proposta contraria a recomendação oficial de que as atividades devem ser colaborativas. Ao potencializar desenvolvimento e aprendizagem por meio da linguagem e da interação, nega também a teoria de Vygotsky. A prática da professora expressa um modelo de planejamento que privilegia o conteúdo, não se preocupando com as diferentes formas de aprender de seus alunos. Não há nenhuma adaptação curricular evidenciada, ou adequação dos processos metodológicos. Cena 2 A aula se inicia com a solicitação da professora aos alunos para se organizarem em duplas. A professora retomou a organização das tarefas, relendo a organização do dia, escrita no quadro, assinalando as atividades que já haviam realizado, assim como o que ainda precisavam fazer. A professora realiza diariamente a hora do conto. A professora iniciou a leitura de um capítulo do livro, selecionado pela turma no início do semestre. Ao terminar a leitura, solicitou aos alunos que escrevessem um texto a partir da leitura realizada, e orientou a turma para terem ótimas ideias, dizendo que ajudaria com um banco de palavras, que escreveu no quadro. Os alunos iniciaram suas produções. Um aluno perguntou à professora se poderia iniciar o texto com um a produção do conhecimento no campo da educação especial158 personagem falando, a professora aproveitou a questão para explicar o uso do travessão e letras maiúsculas, apresentando as regras da Língua Portuguesa. Nesta cena, percebe-se o fato de a professora retomar a atividade lembrando o que deveriam fazer. A cena também evidencia que a contextualização favorece a relação de teoria e prática, ao associar conceitos gramaticais e sua utilização na produção dos alunos. Utilizou, porém, a oralização e demonstração da escrita para os alunos, e não avançou a respeito da função da escrita – apenas esclareceu a necessidade de os alunos utilizarem adequadamente as regras da língua portuguesa em sua produção, negando o que deve ser entendido por alfabetização. Para Ferreiro (1995), a escrita pode ser considerada uma representação da linguagem quando envolve um processo de diferenciação dos elementos e relações reconhecidas no objeto a ser apresentada, quando concebida como um código de transcrição que transforma as unidades sonoras em unidades gráficas, e assim a escrita coloca a percepção visual e auditiva em evidência. Logo, sua aprendizagem não pode ser mecânica, ou não se pode considerar somente os aspectos gráficos destas produções. Neste sentido, as produções dos alunos devem ser entendidas como resultado do processo de construção de significados de códigos, que unificam a linguagem escrita, possibilitando aprendizagem e desenvolvimento do processo de alfabetização. Tfouni define: a produção do conhecimento no campo da educação especial 159 Alfabetização refere-se à aquisição da escrita enquanto aprendizagem de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem. Isto é levado a efeito, em geral, por meio do processo de escolarização e, portanto, da instrução formal. A alfabetização pertence, assim, ao âmbito do individual. O letramento, por sua vez, focaliza os aspectos socio-históricos da aquisição da escrita. Entre outros casos, procura estudar e descrever o que ocorre nas sociedades quando adotam um sistema de escritura de maneira restrita ou generalizada: procura ainda saber quais práticas psicossociais substituem as práticas “letradas” em sociedades ágrafas (TFOUNI, 1988, p. 9). Há uma diferença entre saber ler e escrever, ser alfabetizado, e viver na condição ou estado de quem sabe ler e escrever, ser letrado. Ou seja, uma pessoa que aprende a ler e a escrever, que se torna alfabetizada e que passa a fazer uso da leitura e da escrita, ao se envolver nas práticas sociais de leitura e de escrita – que a torna letrada – é diferente de uma pessoa que ou não sabe ler e escrever porque é analfabeta, ou porque, sabendo ler e escrever, não faz uso da leitura e da escrita, ou seja, ela é alfabetizada, mas não é letrada, não vive no estado ou na condição de quem sabe ler e escrever e também pratica a leitura e a escrita. Assim, embora alfabetizar e letrar sejam duas ações diferentes, não devem ser encaradas como completamente distintas, ao contrário: o ideal seria alfabetizar letrando. Ou seja: ensinar a ler e a escrever a produção do conhecimento no campo da educação especial160 no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo queo indivíduo se torne, ao mesmo tempo, alfabetizado e letrado. O processo de letramento envolve dois fenômenos bastante diferentes, a leitura e a escrita, sendo cada um deles constituído de uma multiplicidade de habilidades, comportamentos, conhecimentos. Nesta perspectiva, a leitura se caracteriza por um conjunto de habilidades e comportamentos que se estende desde simplesmente decodificar sílabas ou palavras, até ler uma obra completa. A escrita implica um conjunto de habilidades e comportamentos que se estendem desde simplesmente escrever o próprio nome até escrever uma tese de doutorado. Assim, uma pessoa pode ser capaz de escrever, mas não ser capaz de escrever uma argumentação defendendo um ponto de vista. Segundo Soares (1998), há duas condições indicadas para que esse processo se concretize. A primeira condição é que haja escolarização real e efetiva e o acesso à escolaridade se amplie, para termos mais pessoas sabendo ler e escrever e, com a extensão da permanência na escola, possamos almejar um pouco mais do que simplesmente a mera alfabetização e possamos ter um efetivo processo de letramento. A segunda condição é que haja disponibilidade de material de leitura: material impresso posto à disposição, livrarias, preço acessível de livros, jornais e revistas, ampliação do número de bibliotecas, além de uma transformação efetiva das práticas desenvolvidas pelas escolas. a produção do conhecimento no campo da educação especial 161 Em relação ao processo de alfabetização de alunos com deficiência, como aspecto relevante poder-se-ia argumentar que não difere da aquisição da leitura e da escrita pelos demais educandos. Contribuições teóricas como as de Vygotsky (1994) se opõem à perspectiva rígida que considera impossível a aprendizagem acadêmica de alunos com deficiência intelectual. Para Vygostsky (1994), a escrita ocupou um lugar restrito na prática escolar, em relação ao papel fundamental que desempenha no processo de desenvolvimento cultural da criança. Ou seja, este autor afirma que as práticas escolares ensinam a desenhar letras e a construir palavras com elas, mas não se ensina a linguagem escrita. A linguagem escrita é pouco estudada como um sistema particular de símbolos e signos, e cujo domínio é um ponto crítico em todo o desenvolvimento cognitivo e cultural da criança. Do ponto de vista pedagógico, as estratégias utilizadas para ensinar a escrita não permitem a observação desta transição, mas afirma-se que o desenvolvimento da linguagem escrita na criança ocorre pelo deslocamento do desenho de coisas para o desenho de palavras. Assim, é necessário que o ensino esteja organizado de forma que a leitura e a escrita se tornem significativas para as crianças, e que seu uso tenha relevância. Por outro lado, quanto ao aspecto social encontramos o sociólogo Bernstein (1984), que descreve dois conceitos teóricos que podem contribuir de forma a produção do conhecimento no campo da educação especial162 significativa para a análise de práticas docentes no que se refere ao conteúdo: a classificação e a estrutura. Para ele, classificação se refere às relações entre os conteúdos do currículo, em especial a diferenciação entre conteúdos: quanto mais forte ou muito marcada a classificação, mais os conteúdos se isolam uns dos outros, e quanto mais débil ou flexível a classificação, as fronteiras são menos marcadas, menos nítidas. Em contraposição, a estrutura se refere ao contexto em que se comunica o conhecimento, à clareza com que se distingue o que pode e o que não pode ser comunicado: estrutura forte, quando é mínimo o grau de controle de professores e alunos sobre a situação pedagógica, e estrutura fraca, quanto maior a autonomia de professores e alunos sobre a situação pedagógica. Estes conceitos remetem a análises das práticas docentes quanto à relevância da organização curricular e sua aplicabilidade junto aos alunos que estão em seus processos de escolarização, especificamente na construção da leitura e escrita. considerações Com base nas argumentações, pode-se afirmar que, em relação à organização curricular e à adoção de procedimentos didáticos, as recomendações oficiais são gerais e pouco operacionais. O aprendizado de leitura e escrita é a base em que se assenta todo o ensino posterior e pouco tem se investigado sobre esse tema. Neste sentido, parece haver a produção do conhecimento no campo da educação especial 163 um conflito entre as práticas pedagógicas atualmente em uso (atividades individuais e em grupos, cópias para responder a questões sem possibilidade de argumentação, produções de textos sem significados sociais para o aluno e para o professor, controle de ações dos professores sobre seus alunos): negam a formação para a cidadania e a autonomia e desconsideram as diferenças do capital cultural de cada aluno, bem como suas características cognitivas e de aprendizagens. As cenas descritas são apenas uma amostra do que se observou em um ano de pesquisa. Evidenciam que professores – que se dizem inclusivos – utilizam em sala de aula estratégias que os alunos não percebem como diferenciadas. Isso os isola, deixa-os como únicos em suas especificidades, nega suas potencialidades e limitações, e exclui a variedade de conhecimentos pedagógicos essenciais e necessários para possibilitar o letramento dos alunos. Considera-se ainda que não basta formação acadêmica aos professores para que possibilitem a aprendizagem de todos os alunos. É necessária sua tomada de consciência, há necessidade de que o professor realize mediação adequada. Este educador deve ser um observador, crítico e estudioso de sua prática, no intuito de aprimorar sua atividade profissional, potencializando o desenvolvimento e a aprendizagem de todos os envolvidos no processo de escolarização. Os dados estimulam novas investigações a respeito de como os estilos de ensino dos professores influenciam a aprendizagem dos alunos, como os alunos aprendem a produção do conhecimento no campo da educação especial164 quando não há mediação adequada, e ainda o que é inclusão escolar se os alunos estão em processos individuais, com mediações coletivas, negando suas características individuais. referências BRASIL. Lei n° 9.394/1996. Institui as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC/SEESP, 1996. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Parâmetros curriculares nacionais: adaptações curriculares. Brasília: MEC/SEESP, 1998. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Programa de capacitação de recursos humanos: deficiência intelectual. Brasília: MEC/SEESP, 1997. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Deficiência intelectual: atendimento educacional especializado. Brasília: MEC/SEESP, 2007. BARDIN, L. Análise do conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1994. CARVALHO, R. Removendo barreiras para aprendizagem educação inclusiva. Porto Alegre: Mediação, 2000. CARVALHO, G. O diagnóstico da deficiência intelectual no contexto de inclusão: uma proposta de avaliação psicopedagógica contextualizada e interventiva. Dissertação (Mestrado) ‒ Universidade de Brasília, 2001. a produção do conhecimento no campo da educação especial 165 CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE NECESSIDADES EDUCATIVAS ESPECIAIS. Declaração de Salamanca e linha de ação sobre necessidades educativas especiais. Salamanca: UNESCO/Ministerio de Educación y de la Ciencia, 1994. FERREIRO, E.B.M Reflexões sobre alfabetização. 20ª ed. São Paulo: Cortez, 1995. SOARES, M. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 17ª ed. São Paulo: Ática, 2001. SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.TFOUNI, L. V. Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. Campinas: Pontes, 1988. VYGOSTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. a produção do conhecimento no campo da educação especial166 CAPÍTULO 5 AvALIAÇÃO DIAGNÓSTICA DE ALUNOS COM BAIXO RENDIMENTO: AÇõES COLABORATIvAS ENTRE EDUCAÇÃO E SAúDE ViViane Ferrareto da silVa Pires introdução Este estudo originou-se da dissertação de mestrado defendida em 2016, no Programa de Estudos Pós- Graduados em Educação: História, Política, Sociedade, da PUC-SP, decorrente de minha atividade profissional como técnica educacional de rede municipal de ensino de Santo André, no Estado de São Paulo. Nela pude constatar o número expressivo de alunos que apresentavam baixo rendimento escolar e, dessa forma, encaminhados para avaliação no serviço de saúde, resultando em diagnósticos de patologias distintas, especialmente como deficientes intelectuais. Bueno (2004) relata que, em geral, busca-se identificar nas características individuais dos alunos as causas de suas dificuldades no processo de escolarização, pois a visão mais disseminada nos meios educacionais é de que a escola cumpre seu papel e se alguns alunos não conseguem aprender, devem ser encaminhados aos serviços de saúde para que se verifique que tipo de problema apresentam. a produção do conhecimento no campo da educação especial 167 A apreciação que os professores fazem dos estudantes está intimamente ligada aos instrumentos utilizados para avaliação diagnóstica e aos mecanismos de ensino criados historicamente, cujos sistemas de classificação escolar acabam por legitimar a classificação social. Os instrumentos empregados no registro do desempenho escolar dos alunos nem sempre expressam seus reais conhecimentos e dificuldades, sendo também a manifestação da dicotomia entre ensino e aprendizagem (Bueno & Giovinazzo Jr., 2010, p. 98-99). A pesquisa foi realizada no município de Santo André, localizado na Grande São Paulo, no período de 2012 a 2014. A coleta dos dados se baseou em três fontes de documentação: 1. Relatório descritivo de Encaminhamento elaborado pelos professores, em que eles relatam a situação que justifica o encaminhamento para avaliação clínica; 2. Escala de Avaliação de Sintomas (SNAP) e de Comportamento (TDAH), preenchidas tanto pelos professores como pelos pais e/ou responsáveis. É importante destacar que tanto o relatório descritivo de Encaminhamento quanto as duas escalas são enviados à equipe de saúde no primeiro dia de avaliação e entregues para o profissional que fará a anamnese; 3. Procedimentos e informações dos exames realizados pela equipe clínica multidisciplinar que resultaram nos diagnósticos concluídos. a produção do conhecimento no campo da educação especial168 Os profissionais da saúde que realizaram o diagnóstico faziam parte de convênio entre a Secretaria de Educação do Município e a Faculdade de Medicina do ABC, que constituem o Centro de Atendimento Educacional Multidisciplinar (CAEM), cujo acompanhamento e suporte ficava a cargo do Centro de Atenção ao Desenvolvimento Educacional (CADE), da Secretaria Municipal de Educação. inclusão escolar × fracasso escolar A inclusão escolar de alunos com deficiência passou a ser uma proposição internacional a partir da promulgação da Declaração de Salamanca, fruto da Conferência Mundial sobre necessidades educativas especiais em 1994 e que, apesar de basicamente centrada na educação de alunos com deficiências, considera que o termo necessidades educativas especiais congrega um universo muito mais amplo de crianças. Nesse sentido, inclui os alunos com deficiência dentro de um amplo espectro, na medida em que coloca nessa categoria crianças provenientes de diferentes condições culturais, econômicas, sociais, psíquicas e físicas. Se por um lado isto pôde contribuir para que se ampliasse a visão da deficiência – para além dos impedimentos por ela produzidos, com a incorporação de questões de classe, raça e gênero –, por outro, permitiu que um número significativo de alunos com baixo rendimento escolar fossem diagnosticados como “deficientes”. a produção do conhecimento no campo da educação especial 169 Moysés e Collares (2011) sustentam que, no Brasil, uma das causas do fracasso escolar é atribuída às famílias, sendo outra causa a expansão quantitativa de acesso à escola, a partir dos anos 1970, assim como pelos processos mais atuais de redução da reprovação/repetência escolar (sistema de ciclos, progressão continuada etc.) que então produziram o processo de medicalização do fracasso escolar, que, “de um problema pedagógico e político, de ordem institucional, constitui grande obstáculo à transformação das práticas que regem o cotidiano escolar e à superação do fracasso” (MOYSÉS & COLLARES, 2011, p. 31). Ou seja, ao invés de os procedimentos dos especialistas servirem para a delimitação efetiva das características dos alunos (negativas, mas também as positivas) – de forma a contribuir para o trabalho pedagógico –, têm servido para a reiteração da visão do professor, na medida em que estão centrados, única e exclusivamente, na busca do “problema”, redundando na patologização de alunos que perturbam o ambiente escolar: Na verdade, sob o manto da excepcionalidade são incluídos indivíduos com características as mais variadas, cujo ponto fundamental é o desvio da norma, não a norma abstrata, que determina a essência a-histórica da espécie humana, mas a norma construída pelos homens nas suas relações sociais (BUENO, 2004, p. 61, destaque do autor). a produção do conhecimento no campo da educação especial170 Na identificação histórica dos alunos que apresentam dificuldades relacionadas ao aprendizado dos conteúdos acadêmicos, bem como aos comportamentos valorizados e esperados pela escola, esse panorama parece permanecer, razão pela qual procuramos nas contribuições de Vygotsky (1983, 1998 e 2007) embasamento teórico para o desenvolvimento da pesquisa. Uma das contribuições mais significativas desse autor foi o fato de não considerar o ambiente uma variável controlável, mas considerar as relações sociais como elas mesmas, constitutivas do sujeito psicológico, que não podem ser abstraídas, pois na abstração dessas relações o sujeito não é apreendido, porque suas expressões psicológicas exteriorizadas são sempre necessariamente sociais na medida em que a vida psíquica é a expressão da vida social (Vygotsky, 2007). Para ele, tanto o instrumento quanto o signo possuem função mediadora, pois enquanto o instrumento é o condutor da atividade humana sobre o objeto da atividade, o signo constitui o meio da atividade interna dirigido para o controle do próprio indivíduo. Neste sentido, a função psicológica superior é, exatamente, a combinação entre o instrumento e o signo na atividade psicológica. Mas o desenvolvimento das funções psíquicas não é fruto de um desenvolvimento individual, pois as funções psicológicas superiores se originam das relações sociais entre indivíduos: no início do processo de desenvolvimento são fundamentalmente interpessoais e somente após o estabelecimento de relações sociais a produção do conhecimento no campo da educação especial 171 significativas essas funções são internalizadas pelos indivíduos. Partindo desse princípio, Vygotsky (2007) considera que o pensamento tipicamente humano se constrói a partir da relação entre o indivíduo e o objeto, mediado pela ação do outro (interpessoal), que ele denominou como “nível de desenvolvimento real”. É na relação com o outro, pelos processos de mediação, que a criança se desenvolvepsiquicamente até conseguir realizar essa mesma operação de forma autônoma, alcançando o que ele denominou como “nível de desenvolvimento potencial”. A distância entre esses dois níveis foi por ele cunhada como “zona de desenvolvimento proximal”. Assim é que, se é verdade que a aprendizagem depende do desenvolvimento, sua perspectiva interacionista obriga a que se considere que a aprendizagem influi decisivamente nos níveis de desenvolvimento. Ora, isso nos reporta à zona de desenvolvimento proximal, pois ao se avaliar o nível de desenvolvimento mental de um indivíduo por meio de testes padronizados, está se determinando o que ele já tem de apropriação de determinados conhecimentos, o que consegue fazer sozinho, ou seja, verifica-se o nível de desenvolvimento real, o tempo e a dificuldade na realização de determinada operação, sem que a ele sejam dadas oportunidades para que, pela mediação, a partir de seu conhecimento prévio, consiga realizar o proposto. a produção do conhecimento no campo da educação especial172 Verifica-se assim a possibilidade de se repensar muitos dos encaminhamentos realizados por professores para avaliar estudantes que apresentam baixo rendimento escolar como se esse problema específico fosse inerente aos alunos e não estivesse atrelado ao seu processo de aprendizagem, com os conteúdos próprios da educação formal. Por meio do exposto anteriormente, verificamos que os alunos com problemas de ajustamento (leia-se deficiência ou outros fatores) desafiam esta constituição já estabelecida, podendo ser veladamente excluídos do processo de aprendizagem no cotidiano da escola, nos vários ambientes escolares, nas relações e demais ações pedagógicas que permeiam a aprendizagem: As histórias desses indivíduos, verificáveis em suas anamneses e em seus relatórios escolares, são as histórias de suas deficiências, de suas dificuldades, de seus fracassos, de suas crises emocionais e de suas atitudes sociais inadequadas, enquanto que suas vidas, fora disso, nada são, nada valem, nada representa (BUENO, 2004, p. 51-52). Com a argumentação apresentada, pretendemos mostrar que a relação entre a caracterização de alunos com problemas escolares e o consequente processo diagnóstico realizado pelos serviços de saúde merece ser colocada sob crivo crítico, tema da presente investigação, bem como os procedimentos realizados para tal esclarecimento. a produção do conhecimento no campo da educação especial 173 o camPo emPírico selecionado e o Procedimento avaliativo Em 2014 o município onde se deu a pesquisa possuía 33.392 alunos matriculados na rede municipal nas modalidades de Creche, Educação Infantil, Ensino Fundamental I e Educação de Jovens e Adultos (EJA), entre os quais 905 (2,5%) eram classificados como alunos com deficiência1. Nesta rede de ensino, o processo de avaliação de “alunos-problema” se iniciava pelo encaminhamento efetuado pelo professor, com base em relatório no qual indicava a situação do aluno, bem como duas escalas por ele preenchidas: TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade), elaborada por Benczik (2000), e SNAP (sigla com as iniciais de seus autores: Swanson, Noolan e Pelham), da Universidade da Califórnia, que justificariam seu encaminhamento para o diagnóstico clínico. A partir desse encaminhamento, os profissionais da saúde que atuavam no Centro de Atendimento Educacional Multidisciplinar (fonoaudiólogo, neurologista, neuropsicólogo, psicólogo, psicopedagogo) realizavam as avaliações específicas, ao cabo das quais a equipe se reunia sob a direção de uma coordenadora, 1 Esse número é relativamente reduzido, o que parece evidenciar o esforço da municipalidade em não estender para todo e qualquer aluno a marca das “dificuldades de aprendizagem”. No entanto, quando inicialmente caracterizado como tal, os procedimentos parecem indicar um processo intenso de medicalização do baixo rendimento escolar. a produção do conhecimento no campo da educação especial174 que mediava as discussões dos casos avaliados, e cujo diagnóstico era concluído na terceira semana após o início dessa avaliação no CAEM, em uma reunião à qual compareciam os responsáveis pelo estudante, o Assistente Pedagógico (AP) da escola e o Professor Assessor de Educação Inclusiva (PAEI). Procedimentos da Pesquisa Inicialmente decidiu-se por realizar a pesquisa no período de 2007 a 2014. Entretanto, após conversa informal com a coordenadora do CAEM, verificou- se que, embora este convênio tenha sido firmado em 2007, as avaliações foram realizadas nas dependências da Faculdade de Medicina do ABC (com consequente arquivamento nessa instituição) até julho de 2012. Somente após este período, com a constituição do CAEM, as avaliações passaram a ser realizadas em prédio próprio da Prefeitura Municipal, onde passaram a ser arquivados os prontuários dos alunos com toda a sua documentação. Ao se constatar a dificuldade de acesso à documentação correspondente aos anos de 2007 a 2011 – por encontrar- se nos arquivos da Faculdade de Medicina do ABC, cujas exigências burocráticas inviabilizariam sua utilização em razão do tempo disponibilizado –, o período delimitado foi reduzido. Isto porque, além da facilidade de acesso à documentação no CAEM, a coordenação desse serviço informou que o processo avaliativo continuava o mesmo desde o início do convênio, sendo utilizadas as mesmas escalas, os mesmos relatórios e registros. a produção do conhecimento no campo da educação especial 175 Dessa forma, os dados referentes ao novo período compõem uma massa crítica suficiente para análise, assim como a possibilidade de estudo de uma série histórica de três anos. A coordenadora da equipe de avaliação do CAEM pôde esclarecer como ocorria o processo de avaliação, assim como informou sobre a documentação utilizada e os registros decorrentes deste conjunto de informações escritas. O procedimento inicial consistiu no levantamento do número de alunos encaminhados para avaliação diagnóstica no CAEM e as queixas a eles relacionadas. Observou-se que havia pouca variação com relação às queixas, sendo elas preferencialmente relacionadas à dificuldade escolar, à aprendizagem e ao comportamento. As informações como o nome dos alunos, número dos prontuários, ano de cada avaliação e escola que frequentavam encontravam-se em formato digital em uma única planilha. As informações relativas à idade e às dificuldades apresentadas foram encontradas nos arquivos. As demais informações necessárias para a pesquisa estavam nos relatórios finais com os diagnósticos. No entanto, muitos deles não estavam digitalizados. Posteriormente verificou-se a necessidade de ampliar a coleta de dados, acrescentando-se o campo “Observação” – para registrar os alunos que estavam sendo reavaliados após determinado período de intervenção terapêutica, para verificação do potencial cognitivo ou diagnóstico diferencial. a produção do conhecimento no campo da educação especial176 A partir da coleta inicial dos diagnósticos, verificou- se a necessidade de acrescentar ao campo “Diagnóstico” a identificação constante na CID – Classificação Internacional de Doenças (OMS, 2011), distinguindo os que faziam ou não parte dessa padronização. Todas essas informações constantes das fontes supracitadas foram inseridas em software de tratamento estatístico: número do prontuário, ano da avaliação, idade, sexo, escolaridade, escola, queixa, avaliação psicológica, avaliação fonoaudiológica, avaliação psicopedagógica, diagnóstico e encaminhamentos, que redundaram em tabelas e gráficos que constituíram a matéria-prima desta pesquisa. a análise dos dados A análise dos dados foi realizada tendo como baseconceitual de referência a abordagem de Vygotsky (2007), na perspectiva de que o desenvolvimento e a aprendizagem estão inter-relacionados e ocorrem através de processos de interação com o outro e mediação no espaço social, o que implicaria abordagem pedagógica que, além de descrever as dificuldades da criança, deveria incorporar a ação do outro como constituinte do desenvolvimento do que o autor denomina forma de pensamento tipicamente humano. Segundo Vygotsky, a cultura exerce uma função que reverbera no desenvolvimento. Assim, por meio da ação pedagógica e pela mediação e qualificação do currículo, conhecendo o aluno o professor poderia dar outro a produção do conhecimento no campo da educação especial 177 significado ao chamado baixo rendimento e priorizar a aprendizagem. aPresentação e análise dos resultados No período estudado foram encaminhados para avaliação diagnóstica 593 alunos. Destes, 41 não compareceram e 27 não concluíram a avaliação, razão pela qual foram retirados da amostra. Resultaram então 525 alunos. Os não comparecimentos após o encaminhamento representam 4,5% dos alunos, demonstrando o interesse das famílias em auxiliar na solução dos problemas escolares de seus filhos. Isto se contrapõe a uma visão bastante disseminada pelos educadores das redes oficiais de ensino: a de que as famílias não se envolvem nas questões escolares. Esses encaminhamentos envolveram alunos a partir dos 2 anos de idade até a fase adulta, com grande concentração na faixa etária dos 6 aos 10 anos (67,7%), faixa etária que compreende o início do processo de escolarização, no que se refere principalmente à alfabetização e à matemática. Do total dos encaminhamentos, 372 estudantes eram do sexo masculino, correspondendo a 2,4 meninos para cada menina encaminhada – muito superior às estimativas, que calcula essa proporção em 1,5 menino para cada menina encaminhada2. Apenas na faixa etária 2 Percentuais indicados pelo Laboratório de Neurociências da Universidade de São Paulo (SãO PAULO, USP, 2015). a produção do conhecimento no campo da educação especial178 correspondente ao EJA o sexo feminino foi o mais encaminhado. Entretanto, a população feminina desse município também é maior nessa faixa etária. A apresentação e análise dos resultados foram efetuadas por meio de quatro eixos de análise: 1) As queixas dos professores; 2) Os diagnósticos psicológicos; 3) As escalas de caracterização do TDAH; e 4) Os diagnósticos de deficiência intelectual. As queixas dos professores A Tabela 1 apresenta as queixas por meio das quais os professores identificaram os problemas de seus alunos no relatório de encaminhamento para a equipe clínica. Constatou-se que nos relatórios foram apontadas principalmente dificuldades de comportamento e escolares (56%), seguidas pelas de aprendizagem Tabela 1 ‒ Distribuição dos encaminhamentos por tipos de dificuldades relatadas na queixa Dificuldade Quant. % Cons. Comportamento 231 28,3 28,3 Escolares 225 27,6 Aprendizagem 157 19,3 Linguagem oral e escrita 82 10,1 67,6 Funções básicas 82 10,1 Desenvolvimento 4 0,5 Suspeita de autismo 2 0,2 4,1Reavaliação 32 3,9 TOTAL 815* 100 Fonte: Dados do CAEM (2012 a 2014). Tabela elaborada pela autora. * O total das queixas é superior ao número de alunos porque as queixas de muitos relatavam mais de uma dificuldade. a produção do conhecimento no campo da educação especial 179 (19,3%) e de linguagem e funções básicas (10,1% cada). No entanto, se considerarmos que as categorias – que os docentes denominam “escolares”, “aprendizagem”, “linguagem oral e escrita”, “funções básicas” e “desenvolvimento” – reportam-se à relação ensino- aprendizagem, pode-se verificar que as queixas se voltam expressivamente para o baixo desempenho de alunos nas atividades acadêmicas (67,6%), seguidas ao longe pelas de “comportamento” (28,3%). Se distribuirmos essas incidências conforme a progressão escolar dos alunos, elas se modificam expressivamente, de acordo com os dados apresentados na Tabela 2 a seguir. Em termos de curva tendencial, pode-se verificar que, nas três categorias de dificuldades relatadas (comportamento, escolares e aprendizagem), envolvendo 624 classificações designadas pelos professores (praticamente 80% do total), ocorreu um crescimento expressivo dos 2 aos 10 anos de idade, com decréscimo significativo a partir daí. Ou seja, a maior parte das queixas relatadas ocorreu quando os alunos já estavam em idade para cursar Tabela 2 ‒ Dificuldade relatada na queixa e agrupamentos por idade Faixa etária Dificuldade 2 a 4 anos 5 e 6 anos 7 a 10 anos 11 a 14 anos Acima de 15 TOTAL Comportamento 25 55 136 11 4 231 Escolares 1 33 167 17 9 227 Aprendizagem 1 16 128 18 3 166 Linguagem oral e escrita 13 25 39 4 1 82 Funções básicas 5 9 52 2 0 68 Desenvolvimento 2 1 1 1 1 6 Hipótese de autismo 0 1 1 0 0 2 TOTAL 47 140 524 53 18 782 Fonte: Dados do CAEM (2012 a 2014). Tabela elaborada pela autora. a produção do conhecimento no campo da educação especial180 o Ensino Fundamental I, com 431 do total de 524 encaminhamentos (70%). Além disso, enquanto os dados sobre problemas de comportamento mostram um crescimento menos acentuado (o dobro dos encaminhamentos na idade pré- escolar em relação à idade correspondente à creche e menos de três vezes da idade correspondente ao Ensino Fundamental I em relação à da pré-escola), o aumento dos encaminhamentos relacionados às queixas de dificuldades escolares ou de aprendizagem foram mais exponenciais: nas dificuldades escolares – 33 vezes mais incidente na idade pré-escolar do que na creche e 5 vezes maior na faixa etária correspondente ao Ensino Fundamental I em relação à da pré-escola; dificuldades de aprendizagem: 16 vezes mais incidente na idade pré- escolar do que na creche e 9 vezes maior na faixa etária correspondente ao Ensino Fundamental I em relação à da pré-escola. Por fim, o número de encaminhamentos de alunos acima dos 15 anos é muito reduzido, não permitindo alguma análise tendencial de incidência. Mas soa estranho que, numa rede de ensino com diversos recursos, somente tenham sido notadas as dificuldades de 18 alunos em idade correspondente ao Ensino Médio e EJA – em faixa etária que também incluiu alunos adultos. Os diagnósticos psicológicos Uma das expressões mais evidentes da medicalização do baixo rendimento escolar diz respeito aos instrumentos a produção do conhecimento no campo da educação especial 181 de avaliação utilizados pelo campo da psicologia, evidenciados na Tabela 3 abaixo. Esses dados evidenciam que o diagnóstico psicológico foi firmado basicamente por meio das duas Escalas Weschler de Inteligência (WISC ou WAIS, conforme a idade do aluno), assim como pela Escala de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), acima dos 80%, com os percentuais de utilização dos demais instrumentos evidenciando um uso residual. Se suprimirmos os 81 prontuários em que não se obteve informações, o uso dos testes padronizados entre um total de 444 alunos supera esse total (436 + 16 + 5 = 457), evidenciando que boa parte dos demais testes – que não o WISC ou o WAIS – foi aplicada como complemento destes últimos. Além disso, estes resultados parecem evidenciar que as avalições dinâmicas aplicadas somente em 45 alunos também serviram de complemento a esses mesmos testes padronizados. Segundo Nascimento e Figueiredo (2002): Tabela 3 ‒ Distribuição das avaliações psicológicas pelo tipo de procedimento principal Fonte: Dados do CAEM (2012 a 2014). Tabela elaborada pela autora. PROCEDIMENTO PRINCIPAL Total de Alunos Quant. % WISC III ou WAIS Escala de TDAH 525 436434 83,0 82,7525 Escala Columbia e Escala Vineland 525 16 3,0 Outros testes 525 5 0,9 Observações lúdicas associadas à história de vida 525 45 8,6 Sem resposta 525 81 15,4 a produção do conhecimento no campo da educação especial182 Instrumentos como as Escalas Weschsler de Inteligência, que estão entre os mais investigados e usados, são geralmente adaptados para outros países. A prática corrente de adaptar instrumentos desenvolvidos e normatizados em uma determinada cultura para uso em outra não está circunscrita somente a pesquisas transculturais, mas também para uso intracultural (Hambleton & Bollwark, 1991). Como afirmam Van de Vijver e Hambleton (1996), o processo de adaptação de testes psicológicos apresenta dificuldades, muitas das quais relacionadas às diferenças entre a cultura de origem do teste e a cultura para onde ele está sendo adaptado, sendo que, quanto maior a distância cultural, maior o número de dificuldades em se obter uma versão que seja equivalente (NASCIMENTO & FIGUEIREDO, 2002, p. 605). Crítica mais contundente sobre o uso de testes psicométricos é apresentada por Sass, para quem a psicometria é discutida como conhecimento científico da psicologia, deliberadamente aplicado para exercer o controle social do sujeito, e o conjunto de estímulos ou itens aos quais o indivíduo deve responder – o teste propriamente dito – constitui um dos fatores. Especificamente, entende-se a psicometria como um elemento importante da tecnologia – aqui admitida como modo de produção, “como a totalidade dos instrumentos, dispositivos e invenções que caracterizam a era da máquina, é assim, ao mesmo tempo, uma forma a produção do conhecimento no campo da educação especial 183 de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes, um instrumento de controle e dominação” (Marcuse, 1999, p. 73) – e um componente decisivo da racionalidade tecnológica, típica da sociedade industrial e administrativa, visto que a formação de indivíduos adaptados a tal racionalidade constitui também um fator tecnológico e condição para pôr em funcionamento e garantir a reprodução do sistema social (SASS, 2011, p. 973). Da mesma forma, Castorina acrescenta que a naturalização das aquisições cognitivas nas intervenções acadêmicas e na intervenção profissional da vida psíquica poderia estar em continuidade com uma naturalização mais primitiva. [...] As práticas psicológicas que envolvem a naturalização têm um preciso efeito ideológico: deixam nas sombras os processos e dispositivos sociais envolvidos (CASTORINA, 2005, p. 27).(Tradução da autora). do Por fim, mesmo no campo da psicologia, o uso massivo de testes padronizados de inteligência deve ser encarado com reservas, porque, segundo Vygotsky (2007), medem o pensamento fossilizado, isto é, situações-problema solucionadas pela criança de forma autônoma, ou seja, correspondentes ao seu nível de desenvolvimento. a produção do conhecimento no campo da educação especial184 As escalas de caracterização do TDAH Além de uma parte inicial de identificação do aluno, a escala TDAH é subdividida em quatro campos, dentro dos quais são dispostas alternativas variadas que detalham cada uma das possíveis dificuldades: 1. Déficit de atenção – itens 1 a 16; 2. Hiperatividade/Impulsividade – itens 17 a 28; 3. Problemas de aprendizagem – itens 29 a 42; e 4. Comportamento antissocial – itens 43 a 49. O preenchimento dos itens desses quatro campos é feito por meio de escala Lickert, com as seguintes alternativas: DT – Discorda Totalmente, D – Discorda; DP - Discorda Parcialmente; CP – Concorda Parcialmente; C – Concorda; e CT – Concorda Totalmente. Além dos dados de identificação, na parte inicial foi incluída uma questão com cinco alternativas, para o professor indicar a que mais se aproxima do tipo de problema identificado: “é agitado”; “apresenta dificuldades de atenção/concentração”; “apresenta dificuldades para aprender”; “apresenta todas as questões anteriores”; “não apresenta nenhuma das anteriores”. Embora a última alternativa permita que o professor não indique nenhuma das alternativas anteriores, a própria disposição das quatro questões anteriores dirige o foco do professor para determinado tipo de problema sem nenhuma qualificação – como, por exemplo, se em todas as atividades de classe ou em situações específicas, a produção do conhecimento no campo da educação especial 185 se em momentos mais controlados ou em espaços mais livres etc. No segundo campo, denominado Déficit de Atenção, os dez primeiros itens procuram avaliar atitudes positivas dos alunos (organização do material, respostas coerentes, acompanha o ritmo da sala, atenção durante as explicações etc.). No entanto, se o professor está encaminhando o aluno para uma avaliação externa, parece evidente que é bem grande a possibilidade de o professor indicar que o estudante apresenta dificuldades em algumas delas. A Hiperatividade e a Impulsividade são avaliadas no terceiro campo e se relacionam a comportamento agitado, instável, déficit no sistema inibitório e baixo controle dos impulsos. Neste campo há 12 alternativas, sendo 9 de comportamentos considerados inadequados e 3 adequados, sendo que a ordem aqui é inversa à do campo anterior: primeiramente são apresentados os comportamentos inadequados para, ao final, serem expostos os três itens considerados adequados, estes muito mais genéricos do que os comportamentos inadequados. Os dois últimos campos parecem induzir ainda mais a caracterização negativa dos alunos, pois, se o professor está encaminhando determinado alunos para essa avaliação, com certeza é porque avalia que ele apresenta “problemas de aprendizagem” ou “de comportamento”. A escala SNAP foi elaborada a partir dos sintomas do Manual de Diagnóstico e Estatística – IV Edição (DSM-IV), da Associação Americana de Psiquiatria, e é composta por 26 questões. a produção do conhecimento no campo da educação especial186 Segundo os autores da adaptação da escala para o português, existem vários questionários que utilizam os referidos critérios da DSM-IV e que são usados para rastreio, avaliação da gravidade e frequência de sintomas e acompanhamento de tratamento, podendo ser respondidos por pais e/ou professores. Dentre eles, destacam-se o ADHD Rating Scale9, o Questionário de Conners10 e o SNAP-III11 e IV12. Todos esses questionários têm em comum a utilização de escores quantitativos (também chamados de qualificadores), isto é, escores de gravidade para cada um dos sintomas arrolados, ao invés do simples cômputo da presença dos sintomas. Em geral, quando é utilizada uma escala de 4 pontos, a média obtida para a população geral cai entre zero (not at all, rarely) e 1 (just a little). (MATTOS et al., 2006, p. 290-291). Apesar de procurarem valorizar a escala – por permitir ao respondente qualificar o comportamento do aluno desde a negativa completa até a mais evidente (“nem um pouco”, “um pouco”, “bastante”, “sempre”) –, fica claro que qualquer criança mais ativa deverá se encaixar em alguns desses comportamentos. A análise dos conteúdos constantes nas escalas TDAH e SNAP revelou que não há contextualização dos comportamentos elencados, bem como preocupação na verificação de intercorrências sociais que possam induzir determinados comportamentos. Outra observação dessas escalas, com relação à forma de aplicação, é que deve a produção do conhecimento no campo da educação especial 187 ser preenchida somente para alunos que o professor pretende encaminhar para avaliação diagnóstica. Ou seja, se o professor considera que o aluno apresenta problemas que justifiquemo seu encaminhamento, é claro que o professor deve, mesmo que de forma inconsciente, se prender muito mais às questões que indicam comportamentos considerados inadequados. Além disso, se o critério para caracterização do TDAH é o comportamento dos colegas, mas se ele é aplicado somente aos alunos a serem encaminhados para avaliação, fica evidente que essa comparação é feita de forma extemporânea e muito pouco precisa. Enfim, pode-se afirmar que os instrumentos utilizados induzem os professores a caracterizar os alunos de forma completamente descontextualizada, e considerar que o problema está nas suas características pessoais, constituindo elemento fundamental para sua patologização. Os diagnósticos de deficiência intelectual Com relação aos procedimentos de diagnóstico utilizados pelas três especialidades da equipe multiprofissional, constatou-se, em todas elas, a utilização maciça de testes padronizados. Segundo Vygotsky (2007), esse tipo de teste não leva em consideração as possibilidades que os processos de mediação pedagógica têm de influenciar no desenvolvimento infantil, naquela que ele denominou como zona de desenvolvimento proximal. a produção do conhecimento no campo da educação especial188 Por outro lado, fica evidente que os alunos diagnosticados com deficiência intelectual não deveriam se enquadrar nos casos mais graves, na medida em que os professores precisaram conviver com eles para levantarem suspeitas de problemas pessoais que estariam interferindo na escolarização. Na Tabela 4 são apresentados os dados sobre esses diagnósticos, cotejados com a quantidade de encaminhamentos efetuados. Com referência aos alunos diagnosticados como deficientes intelectuais, a constatação inicial foi a da elevada incidência em relação à população encaminhada: atingiu praticamente 22% do total, número muito superior às estimativas mais tradicionais – como, por exemplo, a de Dunn (apud BUENO, 2004, p. 129)3, que afirmava que essa deficiência representava 4% do total de todas as excepcionalidades. 3 Embora citada por Bueno em 2004, a obra de Dunn foi traduzida e publi- cada no Brasil em 1971 e na categoria de excepcionais incluía os alunos com deficiência intelectual, da fala, da audição, da visão, ortopédicos, além dos distúrbios de aprendizagem, emocionais e os superdotados. Tabela 4 ‒ Distribuição dos diagnósticos de deficiência intelectual por ano Ano Encaminhamento Diagnóstico/DI % 2012 240 31 12,9 2013 117 38 32,5 2014 168 46 27,4 TOTAL 525 115 21,9 Fonte: Dados do CAEM (2012 a 2014). Tabela elaborada pela autora. a produção do conhecimento no campo da educação especial 189 Se os estudos e estimativas mostram que em situações de normalidade não há razão plausível que justifique o aumento de deficiências – a não ser em períodos específicos de eventos concretos como, por exemplo, quando se disseminou o uso da talidomida ou nas epidemias de meningite –, pode-se afirmar que o processo de patologização de alunos com baixo rendimento escolar se intensificou. Na Tabela 5, a seguir, verifica-se a distribuição do diagnóstico de Deficiência Intelectual por etapa e modalidade de ensino. Tabela 5 ‒ Diagnóstico de deficiência intelectual por faixa etária Idade Quant. % 4 3 2,6 5 6 5,2 6 11 9,6 7 14 12,2 8 19 16,5 9 23 20,0 10 8 7,0 11 13 11,3 12 5 4,3 13 3 2,6 14 2 1,7 15 1 0,9 16 2 1,7 17 1 0,9 Adulto 4 3,5 TOTAL 115 100 Fonte: Dados do CAEM (2012 a 2014). Tabela elaborada pela autora. a produção do conhecimento no campo da educação especial190 Há elevada concentração de alunos diagnosticados como Deficientes Intelectuais quando frequentavam o 2º ciclo do Ensino Fundamental, ou seja, 3º, 4º e 5º anos, totalizando 59,2%. Esse dado intriga, na medida em que esses alunos não foram encaminhados para avaliação nos primeiros anos de escolarização, incluindo a Educação Infantil, permitindo supor ser mais um problema de baixo rendimento escolar do que de deficiência. Vale a pena destacar, também, a incidência de diagnósticos de deficiência intelectual em alunos com mais de 12 anos de idade, incluindo aqui quatro adultos, ou seja, é paradoxal que uma rede que se funda na máxima de igualdade de oportunidades constate que 18 alunos sejam identificados como tal, o que redunda em duas possibilidades: ou os diagnósticos estão equivocados ou houve negligência do sistema de ensino em não efetuar esse diagnóstico em idade mais precoce. considerações finais Os dados apresentados e analisados acima evidenciam que tanto o processo de encaminhamento de alunos caracterizados pelos docentes como “problemas”, quanto os diagnósticos dos serviços de saúde expressam o movimento de patologização do fracasso escolar, na medida em que todos os 525 alunos encaminhados foram diagnosticados como apresentando algum tipo de problema, quer sejam de ordem física, comportamental ou de aprendizagem e, entre eles, 115 foram classificados como alunos com deficiência intelectual. a produção do conhecimento no campo da educação especial 191 Cabe ressaltar, nestas considerações finais, que tanto os educadores como os profissionais clínicos da rede de ensino investigada expressam compromisso efetivo com a qualidade do ensino e acreditam que a relação entre a escola e o sistema de saúde contribuem para o melhor atendimento de alunos com problemas. Ou seja, não se pretende aqui avaliar especificamente esses órgãos, mas tomá-los como expressão de uma perspectiva que tem se mostrado hegemônica em grande parte dos países tanto do Norte quanto do Sul, tal como afirma Castorina ao estabelecer relação entre a atividade acadêmica e profissional da psicologia e a sociedade calcada na mercadoria: [...] na vivência dos agentes sociais, os fenômenos psicológicos também lhe aparecem como determinado por causas internas., excluindo suas relações com a sociedade e sua história. Pode-se hipotetizar que a estrutura de nossa sociedade coisifica não só as atividades sociais propriamente ditas, mas também os fenômenos psicológicos que estão inextricavelmente associados com o contexto cultural e as práticas sociais (CASTORINA, 2005, p. 26). (Tradução da autora). Com base nessa argumentação, o autor conclui que, no caso das crianças “deficitárias”, a naturalização de suas dificuldades oculta a distribuição do capital cultural ou das medidas sociais que influem sobre seu acesso a produção do conhecimento no campo da educação especial192 diferencial a este capital. Isto é, o que estes mecanismos interferem nas suas dificuldades. Em síntese, tanto a origem como os efeitos da naturalização permanecem em grande parte desconhecidos para os próprios psicólogos (CASTORINA, 2005, p. 27). (Tradução da autora). Para finalizar este artigo, cabe reiterar a assertiva de Skrtic (1996), de que avanços no conhecimento prático da relação entre processos de escolarização e fracasso escolar parecem não pôr em xeque o que ele cunhou como “conhecimento teórico”, na medida em que as bases fundamentais permanecem as mesmas: as possibilidades de aprendizagem e de sucesso escolar, de todo e qualquer aluno, decorrem unicamente de dons individuais. referências BENCZIK, E. Manual da Escala de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade: versão para professores. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. BUENO, J. G. Educação especial brasileira: integração/ segregação do aluno diferente. São Paulo: EDUC, 2004. BUENO, J. G. & GIOVINAZZO Jr., C. A. A relação entre práticas pedagógicas e o baixo rendimento. In: MARIN, A. & BUENO, J. G. (org.), Excluindo sem saber. Araraquara (SP): Junqueira & Marin/ Brasília, DF: CNPq, p. 95-120, 2010. a produção do conhecimento no campo da educação especial 193CASTORINA, J. A. 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É importante ressaltar que, no momento atual, há uma tendência mundial que defende a inclusão escolar para todas as pessoas, sem restrição. No Brasil, essa posição é representada por autores como Sassaki (2006) e Mantoan (2008), entre outros. Segundo Sassaki (2006), uma escola inclusiva parte do pressuposto de que toda criança poderá estudar nela, que deverá estar disposta a se modificar para aceitar qualquer pessoa, buscando novas formas de ensinar, avaliar e designar atividades. Em síntese, seu papel é o de se adaptar aos alunos, e não esperar que os alunos a ela se adaptem. Em consonância, Mantoan (2008) considera que os caminhos até então percorridos para que a escola a produção do conhecimento no campo da educação especial 197 brasileira acolha todos os alunos, indistintamente, têm se chocado com o caráter excludente, segregativo e conservador do nosso ensino. A autora afirma que a inclusão questiona não somente as políticas e organização da educação especial e da regular, mas também o próprio conceito de integração. Ela é incompatível com a integração, já que prevê a inserção escolar de forma radical, completa e sistemática. Todos os alunos, sem exceção, devem frequentar as salas de aula do ensino regular (MANTOAN, 2006, p.19). Em contraposição, para Bueno (2009) a educação inclusiva, por sua vez, não se efetuará simplesmente por decreto, sem que se avaliem as reais condições que possibilitem a inclusão gradativa, contínua, sistemática e planejada de crianças com necessidades educativas especiais nos sistemas de ensino. Deve ser gradativa, para que os sistemas de ensino possam ir se adequando às novas determinações, construindo novas práticas políticas, institucionais e pedagógicas, que garantam melhorias na qualidade de ensino para todos os alunos, não só para o alunado com necessidades educativas especiais. Deve ser contínua no sentido tanto da ampliação constante do processo de inclusão, como na garantia de sua efetividade, considerando as realidades e necessidades concretas do alunado, de professores e escolas, para que não se baseie novamente nas dificuldades genéricas de alunos, professores e escolas. a produção do conhecimento no campo da educação especial198 A inclusão dos alunos com deficiência na rede regular de ensino – sem uma reestruturação de suas práticas políticas, institucionais e pedagógicas – pode redundar em fracasso, pois este sistema apresenta problemas graves de qualidade, expressos pelos altos níveis de analfabetismo funcional, repetência, evasão e baixos níveis de aprendizagem. Nessa perspectiva, acredita-se que a maior parte das pessoas com deficiência tem condição de ser incluída na rede regular de ensino. No entanto, uma pequena parcela dessa população – adultos e jovens que apresentam limitações extremas em sua capacidade adaptativa, e que praticamente não reúnem condições para executarem tarefas simples do dia a dia – pode não apresentar condições de usufruir dos benefícios da escola tal como ela está configurada, considerando idade e série. Ao defender a igualdade de direitos e a cidadania dessas pessoas, não se pretende que lhes sejam oferecidas as mesmas oportunidades de acesso à escolarização formal ou de acesso ao mercado de trabalho. Propõe-se que seja assegurado o acesso a serviços de qualidade, capazes de atender às suas necessidades, para que vivam com dignidade e melhor qualidade. Não se trata também de se opor à inclusão escolar e social da pessoa com deficiência, pois continua a ser um importante princípio norteador na sociedade a possibilidade de essas pessoas levarem uma vida o mais parecida possível com a das pessoas comuns. Reitera-se, porém, que a inclusão escolar da pessoa com deficiência pode ser tratada como um direito para quem possa se a produção do conhecimento no campo da educação especial 199 beneficiar, e não um dever ao qual todos devem aderir sem discutir, sem questionar. São muitas as discussões a respeito de legislações e documentos norteadores das propostas de educação inclusiva. Entre divergências e convergências de ambiguidades interpretativas, entretanto, parece evidente que, de alguma forma, esse material contempla a individualidade e reconhece a necessidade de diferentes ambientes de ensino, cuja tônica central é o atendimento de todos os alunos, preferencialmente, na rede regular de ensino, tal como dispõem a Declaração de Salamanca (Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais Especiais, 1994), a Constituição Federal (BRASIL, 1988) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996). Considerando que, de acordo com os princípios básicos dos direitos humanos, todo ser humano tem direito às condições básicas de vida, não bastaque uma proposta educacional voltada a essa população garanta sua presença no ambiente escolar: deve-se proporcionar seu desenvolvimento e aprendizagem, contribuindo decisivamente para a melhoria de sua qualidade de vida. Mediante o exposto acima, configura-se o seguinte problema de pesquisa: O acesso à cidadania – no sentido de garantir os direitos humanos de jovens e adultos com deficiência intelectual grave – é ampliado com a organização estrutural e práticas educativas correntes de instituição especializada, como espaço único de vida e interação social. a produção do conhecimento no campo da educação especial200 Nessa perspectiva o estudo teve por objetivo: Descrever, classificar e analisar as práticas sociais e educativas levadas a efeito em instituição especializada, na educação de pessoas com deficiência intelectual grave, que aí residem, no sentido de verificar se propiciam autonomia a esses residentes e, consequentemente, a ampliação de seu acesso aos direitos humanos. A coleta de dados foi realizada por meio dos seguintes procedimentos: 1. Análise dos documentos organizadores da instituição e das propostas, relatórios e avaliações de atividades educacionais e sociais; 2. Levantamento e análise das trajetórias desses educandos, envolvendo as distintas atividades em que se envolveram/envolvem no dia a dia da instituição, que evidenciam suas possibilidades e limites de aprendizagem; 3. Levantamento, descrição e análise de atividades específicas (práticas educativas) propostas pela instituição a diferentes residentes, evidenciando os objetivos da proposta, aplicação, tempo e resultados; 4. Levantamento, descrição e análise de atividades recreativas fora do espaço institucional, procurando evidenciar a dinâmica da atividade, o comportamento e participação dos residentes e a estrutura e preparação da instituição para realização. Esta investigação foi levada a efeito em entidade filantrópica criada em 1971 pela iniciativa de um grupo a produção do conhecimento no campo da educação especial 201 de pais de pessoas com deficiência intelectual grave, sob a justificativa de criar um espaço institucional que pudesse favorecer o desenvolvimento de seus filhos, bem como propiciar-lhes bem-estar e segurança. A escolha de uma instituição privada não deve e não pode ser entendida como uma defesa da filantropia. Ela foi utilizada como campo empírico desta investigação em razão das adequadas condições estruturais e de funcionamento, e pela absoluta ausência do Estado na manutenção de espaços educacionais qualificados voltados a essa população. Os dados foram analisados com base nas contribuições teóricas de Martuccelli, Cury e Bittar, no que tange aos direitos de cidadania e educação; nas perspectivas teóricas de Martins, com respeito à exclusão e inclusão social; e, nas concepções de Vygotsky sobre desenvolvimento e aprendizagem. deficiência intelectual grave e PossiBilidades de aPrendizagem A partir de 1992, a Associação Americana de Deficiência Mental (AAMR/AAIDD) passou a considerar a deficiência intelectual não mais como um traço absoluto da pessoa que a tem, mas como uma das características que tem ao interagir com o seu meio ambiente físico e humano. Por sua vez, o ambiente deve se adaptar às necessidades especiais dessa pessoa, provendo-lhe o apoio intermitente, ilimitado, extensivo ou permanente de que ela necessita para funcionar nas áreas de habilidades a produção do conhecimento no campo da educação especial202 adaptativas: comunicação, cuidado pessoal, habilidades sociais, vida familiar, uso comunitário, autonomia, saúde e segurança, funcionalidade acadêmica, lazer e trabalho. Sob essa perspectiva, considera-se com deficiência intelectual grave o sujeito que apresenta necessidades de apoio permanente para desenvolvimento de habilidades adaptativas. Nesse sentido, se pretendemos analisar práticas educativas concretas voltadas a pessoas com deficiência intelectual grave, em instituição especializada, para verificar até que ponto elas oferecem oportunidade para a ampliação de seus direitos humanos e de cidadania, há que se levar em consideração seus limites e possibilidades intelectuais, perspectiva para a qual são importantes as contribuições de Vygotsky (1997, 1983, 2003). direitos humanos, educação, inclusão social e exclusão social Na perspectiva de Martins (2009), não existe exclusão social, pois os problemas estão na inclusão, já que, para ele, todas as pessoas estão, de alguma forma, incluídas no meio social. Para o autor, as situações consideradas como de exclusão nada mais são do que ajustamento econômico, social e político: o que se denomina “exclusão” é “na verdade, o contrário da exclusão. Vocês chamam de exclusão aquilo que constitui o conjunto das dificuldades, dos modos e dos problemas de uma inclusão precária, instável e marginal” (MARTINS, 1999, p. 26). a produção do conhecimento no campo da educação especial 203 Segundo Cury (2005), políticas inclusivas supõem uma adequação efetiva ao conceito avançado de cidadania determinado pelo ordenamento jurídico do país; compreendendo a educação escolar como um espaço privilegiado para reafirmar a expansão do conceito para além dos direitos políticos de votar e ser votado, colocando-o à luz dos direitos humanos, nesse sentido, cidadania e nação são construções históricas, mas não são objetos de uma relação imanente e ontológica. Ainda segundo esse autor, avançar no conceito de inclusão supõe a generalização e a universalização de um conceito contemporâneo de direitos humanos, cujo lastro transcende o liame tradicional e histórico entre cidadania e nação: “colocar políticas inclusivas à luz da espécie humana é pô-las sob a guarda dos direitos humanos, cujo espectro e âmbito de aplicabilidade incorporam e transcendem os direitos dos cidadãos em seus espaços nacionais” (CURY, 2005, p. 12). Tal como afirma Bobbio(2004), “direitos do homem são aqueles cujo reconhecimento é condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoa humana, ou para desenvolvimento da civilização” (BOBBIO, 2004, p. 17). Entender cidadania, para além da existência de direitos políticos, é uma questão preliminar importante para a construção desta reflexão. Segundo Bittar (2006), em decorrência da tradição moderna, a ideia de cidadania trouxe importantes aquisições para a experiência histórica das democracias, mas em parte não contemplou certas indagações que, constantemente, incomodam as práticas políticas: “Num a produção do conhecimento no campo da educação especial204 conceito mais político-jurídico tradicional, ser parte de um Estado soberano, cuja adesão lhe concede um certo status, bem como votar e poder ser votado, são as únicas condições para a definição de cidadania” (BITTAR, 2006, p. 2). Deve-se, portanto, superar a dimensão tradicional do conceito de cidadania, buscando superar suas limitações e deficiências, expandindo-o no sentido dos grandes dilemas políticos e contemporâneos, dos grandes desafios históricos desejados dos direitos humanos. Os direitos das pessoas com deficiência vêm ganhando força na sociedade, de um lado pelos movimentos sociais em prol das minorias exploradas e expropriadas e, de outro, pelas próprias exigências da sociedade moderna de, continuamente, necessitar de indivíduos mais bem qualificados para exercer até atividades laborais muito simples. Apesar de os documentos internacionais e de a legislação e normas nacionais considerarem que existem determinadas deficiências que impedem uma inclusão escolar qualificada, formaram-se duas correntes entre os estudiosos: uma que defende a inclusão total e radical (SASSAKI, 2006; MANTOAN, 2006, 2008) e outraque, apesar de defender a inclusão escolar, considera que determinados sujeitos não reúnem condições para usufruir o que a escola regular pode oferecer (BUENO, 1999, 2008; MENDES, 2006). Entretanto, nenhuma dessas correntes tem se voltado ao estudo de pessoas com graves deficiências intelectuais, características das quais decorrem prejuízos a produção do conhecimento no campo da educação especial 205 quase intransponíveis para o aprendizado de habilidades sociais básicas e de conteúdos escolares. Assim, cabe pôr em discussão o que se entende por direito à educação. Segundo Cury (2008), a educação escolar veio se constituindo como um dos direitos mais importantes da cidadania por suas funções maiores, quais sejam: ensino, aprendizagem e cidadania. Ele problematiza uma das questões centrais da cidadania: a relação entre o direito à igualdade e o direito à diferença: A dialética entre o direito à igualdade e o direito à diferença na educação escolar como dever do Estado e o direito do cidadão não é uma relação simples. De um lado é preciso fazer a defesa da igualdade como princípio de cidadania, da modernidade e do republicanismo. A igualdade é o princípio tanto da não discriminação quanto ela é o foco pelo qual homens lutaram para eliminar os privilégios de sangue, de etnia, de religião ou crença. Ela é o norte pelo qual as pessoas lutam para ir reduzindo as desigualdades e eliminando as diferenças discriminatórias. Mas isso não é fácil, já que a heterogeneidade é visível, é sensível, é imediatamente perceptível, o que não ocorre com a igualdade (CURY, 2002, p. 255). Dessa forma, a defesa da diferença não pode negar o direito à igualdade pois, em uma sociedade democrática, qualquer forma de discriminação sempre deve ser proibida. No entanto, parece absurdo pensar em igualdade absoluta, com a imposição de leis sobre todas as pessoas em todas as situações. a produção do conhecimento no campo da educação especial206 Nesse sentido, apesar de reconhecer que o direito à diferença não pode deixar de ser levado em conta, o autor considera que “um tratamento diferenciado só se justifica perante uma situação objetiva e racional e cuja aplicação considere o contexto mais amplo” (CURY, 2002, p. 256). Para ele, o direito à diferença baseia-se no princípio da equidade, de forma que, como já se afirmava na Antiguidade Clássica, uma das formas de se fazer justiça é “tratar desigualmente os desiguais”: [...] a equidade não é uma suavização da igualdade. Trata-se de conceitos distintos porque estabelece uma dialética com a igualdade e a justiça, ou seja, entre o certo justo e o equitativo. Esse é o momento do equilíbrio balanceado que considera tanto as diferenças individuais de méritos quantos as diferenças sociais. Ela visa, sobretudo, à eliminação de discriminações (CURY, 2005, p. 15). No Brasil, a polêmica instaurada a respeito da inclusão de alunos com deficiência na escola regular tem sido muito forte entre aqueles que propugnam por uma inclusão total, como Mantoan (2006, 2008) e Sassaki (2006), e aqueles para quem a abertura de possibilidades de ensino especial, em determinados casos, é aceita (BUENO, 1999, 2008; MENDES, 2006). O fato é que, tanto a Constituição Federal quanto a LDBEN, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como as recomendações internacionais a produção do conhecimento no campo da educação especial 207 como a Declaração de Salamanca, em casos excepcionais permitem o encaminhamento de alunos para sistemas especiais. Quem tem usufruído dessas possibilidades? No caso das deficiências sensoriais e físicas não neurológicas, com certeza as empresas privadas e profissionais prestadores de serviços de saúde, aliados a escolas privadas de elevada qualidade e correspondente custo financeiro. No caso das deficiências intelectuais e físicas de fundo neurológico mais graves, esse atendimento está distribuído entre instituições filantrópico-assistenciais e raríssimas instituições residenciais, de alto custo de manutenção e, portanto, dirigidas às camadas sociais de alto poder aquisitivo. método Esta investigação não pretende discutir se a instituição especializada pode ou não atender de forma mais qualificada pessoas com deficiência mental grave. Pretende, sim, utilizar a instituição como campo empírico de pesquisa, visando analisar as práticas sociais e educacionais ali desenvolvidas, no sentido de acesso aos direitos de cidadania de pessoas com prejuízos de cognição graves e evidentes, que podem expressar seus limites e que impedem sua inclusão no ensino regular. Nesse sentido, em primeiro lugar procuramos caracterizar o processo pelo qual foram obtidos os dados (para análise) das práticas sociais e educativas a produção do conhecimento no campo da educação especial208 desenvolvidas na instituição, bem como o desempenho desses sujeitos no sentido de verificar suas potencialidades e limitações. Para tanto, procuramos caracterizar o campo empírico em que ocorreu a investigação, seguido pela caracterização dos residentes e, por fim, os procedimentos de coleta de dados utilizados. descrição do camPo emPírico A investigação foi levada a efeito em uma entidade filantrópica criada em 1971, pela iniciativa de um grupo de pais de pessoas com deficiência intelectual grave, sob a justificativa de constituir um espaço institucional que pudesse favorecer o desenvolvimento de seus filhos, bem como propiciar-lhes bem-estar e segurança. A orientação inicial de seus fundadores foi a de implantar o sistema de MINICOMUNIDADE – pequenos lares para deficientes mentais profundos –, com no máximo 12 residentes em cada um. A ideia era de que funcionaria como um lar-escola, onde os internos passariam praticamente toda a sua vida, com raros momentos de visitas de familiares e praticamente nenhum retorno à residência familiar. caracterização dos sujeitos No momento de realização da pesquisa (2012), a instituição atendia oito residentes, dos quais eram três homens e cinco mulheres, com idades entre 30 e 55 a produção do conhecimento no campo da educação especial 209 anos. Três deles foram encaminhados para a instituição em 1971 e aí residem desde essa época. Os outros cinco residentes ingressaram na instituição respectivamente em 1982, 1984, 1999, 2008 e 2011. Procedimentos de coleta de dados Conforme a proposta da pesquisa, foram utilizados fundamentalmente os registros existentes na instituição, uma vez que praticamente todas as atividades desenvolvidas são anotadas pelos profissionais que trabalham com os residentes. Então, por meio de análise de conteúdo, procurou-se compreender o fenômeno estudado para além dos seus significados imediatos. A localização dos documentos que compõem o corpus do estudo seguiu as seguintes etapas: • levantamento preliminar dos registros e relatórios da instituição; • leitura exaustiva dos relatórios e registros da instituição, tanto com relação à sua organização, quanto com relação aos residentes; e • seleção, organização e descrição dos documentos, que compõem o corpus deste estudo. No início de 2010, na configuração das primeiras proposições e elaboração do projeto de pesquisa, foi feito um levantamento dos registros e relatórios nos arquivos da instituição, no intuito de verificar se o acervo permitiria trabalhar nessa perspectiva. a produção do conhecimento no campo da educação especial210 A leitura exaustiva dos documentos, bem como a seleção, organização e descrições do corpus do estudo configuraram-se, no decorrer de 2012. No intuito de buscar respostas às perguntas norteadoras desse estudo foi organizado um conjunto de dados subdivididos em dois eixos: • primeiroeixo – padrão de vida dos residentes na instituição; • segundo eixo – atividades educativas desenvolvidas pela instituição. A intenção era de que o material coletado em cada um desses eixos fosse organizado em categorias que expressassem, de um lado, a qualidade de vida dos sujeitos e, de outro, as atividades desenvolvidas, considerando tanto a finalidade e procedimentos utilizados, quanto o desempenho dos sujeitos. Padrão de vida dos residentes Para evidenciar o padrão de vida dos residentes na instituição, optamos por organizar e apresentar informações oriundas das seguintes fontes: A – A programação da rotina diária da instituição e dados dos relatórios da psicopedagoga responsável pelo andamento geral da instituição; B – Dados dos relatórios individuais diários dos residentes, escritos ao final de cada dia pela atendente educacional a produção do conhecimento no campo da educação especial 211 (cuidadora) responsável pelo plantão. O objetivo principal é informar as atendentes educacionais que assumem o plantão noturno e o plantão do dia seguinte sobre as atividades desenvolvidas e os comportamentos dos residentes, para que se possa dar continuidade ao trabalho desenvolvido. Nesta pesquisa, apresentaremos apenas três relatórios sobre residentes diferentes e dias diferentes, tomados aleatoriamente. C – Episódios relatados nos registros de ocorrências também foram aleatoriamente tomados. Neles são registradas as manifestações de agressão, autoagressão, variações no quadro geral de comportamento – relatadas por profissional presente na situação. A rotina diária da instituição evidencia um elevando padrão de vida dos residentes. Embora segregados e submetidos a uma rotina rígida, eles recebem cuidados praticamente individualizados. Há sempre algum funcionário para ajudá-los nas atividades que eles não têm como executar com independência e há supervisão nas que conseguem fazer sozinhos – com o objetivo de manter a integridade de cada um. A alimentação é balanceada, incluindo o que há de mais inovador acerca de nutrição funcional, priorizando produtos orgânicos, grãos, sem glúten e o mais natural possível. A cada seis meses a nutricionista solicita exames de todos os residentes e, a partir dos resultados, os cardápios são reformulados de acordo com a necessidade nutricional de cada um. Há também uma preocupação com os alimentos que podem influenciar o a produção do conhecimento no campo da educação especial212 comportamento dos residentes ou provocar alteração de humor. Há que se considerar que pouquíssimos brasileiros têm o privilégio de usufruir de um cardápio tão variado e nutritivo – tanto pelo elevado custo, quanto pela necessidade de uma rotina, disponibilidade de tempo, organização e disciplina para seguir rigorosamente as orientações de tal educação alimentar. Buscar mantê-los ocupados na maior parte do tempo – tanto nas atividades laborais mais simples como cuidar de si, nas atividades rotineiras da casa, atividades individuais ou em grupo, propostas pelos técnicos e educadores – podem propiciar autonomia aos sujeitos, ainda que limitada. A rotina da instituição e as atividades propostas são elaboradas e acompanhadas por uma equipe multidisciplinar, composta por profissionais da saúde e educação, com formação e experiência em deficiência intelectual – aspecto relevante, já que muitas queixas em relação à educação inclusiva referem-se ao despreparo e à falta de formação dos profissionais. Algumas atividades programadas ocorrem fora do espaço institucional. Existem também passeios e saídas periódicas para consultas a médicos e dentistas, exames e visitas a familiares. Em relação às visitas de familiares aos residentes, não há restrição de dia e horário por parte da instituição, mas a maioria delas ocorre nos fins de semana e datas festivas. Os dados revelam uma engrenagem, um sistema voltado exclusivamente para as necessidades dessas pessoas. Esse sistema parece oferecer o que as famílias a produção do conhecimento no campo da educação especial 213 contemporâneas – nas quais cada um de seus membros tem inúmeros afazeres – não têm condições de oferecer. Isso talvez explique a opção de encaminhar para uma instituição especializada um membro familiar que apresente deficiência intelectual grave. relatórios diários individuais Com relação à qualidade de vida e autonomia dos residentes, os relatórios individuais mostram uma rotina diária e o elevado padrão de vida dos residentes. Descrevem um ambiente acolhedor e agradável, além do cuidado individual, amparo e apoio dos atendentes sempre que necessário. Percebe-se o empenho em desenvolver as possibilidades de cada um. Ao retomar essa rotina, cada residente reconhece o espaço como seu, sua casa. Do ponto de vista das atividades educativas, percebe- se o empenho em desenvolver as possibilidades de cada um, considerando suas limitações, e procurando oferecer a mediação necessária. As atividades são propostas com vistas aos possíveis ganhos em autonomia, mediante a participação e o envolvimento do residente. relatórios de ocorrências Os relatórios de ocorrências mostram que na instituição, embora o ambiente seja acolhedor e agradável, é também marcado por momentos de tensão e acontecimentos peculiares. a produção do conhecimento no campo da educação especial214 Nas ocorrências relatadas, há intervenções imediatas dos profissionais, com a preocupação evidente em manter a integridade física e psicológica de todos. Mas também revela que os profissionais têm equilíbrio, formação adequada e afeto. Além de proteção e cuidado, percebe- se um esforço em ouvir e acolher as manifestações dos residentes e seus desejos, expressos nas mais diversas formas de comunicação com o mundo que os cerca. atividades educativas (formalizadas) e desemPenho dos residentes Há de se considerar, então, que os dados evidenciam aprendizagem, desenvolvimento e autonomia, ainda que construídos lentamente, por intermédio da mediação dos profissionais. Percebe-se que alguns residentes recebem as atividades propostas com flexibilidade e interesse e as reconhecem como benefício – a proposição de novas atividades é feita com justificativas, são contextualizadas e não determinadas pela rigidez curricular burocratizada. atividades não rotineiras As atividades de rotina diária fora da instituição e atividades não rotineiras evidenciaram ganhos terapêuticos e de lazer, e mostraram também que a instituição busca ampliar o quanto possível o convívio social dos residentes. No entanto, por mais que se fale que estamos vivendo um momento privilegiado, com a a produção do conhecimento no campo da educação especial 215 mobilização da sociedade para incluir todas as pessoas, os dados apresentados pela instituição parecem indicar que isso ainda é algo distante. Considerando a trajetória de cada um dos residentes, os relatos e comentários dos familiares e dos profissionais que participaram da atividade – descrevendo o comportamento dos residentes – é possível afirmar que o trabalho da instituição contribui significativamente para o desenvolvimento da autonomia, o que redunda em ampliação, mesmo que pequena, dos direitos humanos e de cidadania desses sujeitos. considerações finais A opção pelo tema constituiu-se um desafio, pois, com mais de dez anos de trabalho com pessoas com deficiência intelectual grave – e simultaneamente refletindo sobre esse trabalho por meio do conhecimento acadêmico (na graduação, no mestrado e no doutorado) –, foi possível acompanhar avanços acerca da inclusão escolar da pessoa com deficiência. Se por um lado a legislação e documentos norteadores da proposta indicavam possibilidadesde diversos ambientes de ensino – ressaltando que deve ocorrer, preferencialmente, na rede regular –, por outro lado, no meio acadêmico cristalizaram-se duas correntes teóricas: uma que defende a inclusão como um direito, mas que vislumbra uma educação de qualidade para todas as pessoas, e outra que defende a inclusão total e incondicional, blindada às críticas, a produção do conhecimento no campo da educação especial216 transformando debates em embates, desconsiderando possibilidades de discussão e, principalmente, embutindo na sociedade a proposta de educação inclusiva como unanimidade, transformando-a num tema recorrente e polêmico. Assim, foi de fundamental importância a possibilidade de produzir algum conhecimento acerca da educação especial para além dos estudos amplamente difundidos e constantemente pesquisados sobre a inclusão da pessoa com deficiência no ensino regular. Os dados revelaram que as pessoas com deficiência, da instituição pesquisada, vivem em ambiente segregado e não frequentam a rede regular de ensino, porém têm um elevado padrão de vida e estão inseridos em uma rotina diária, voltada exclusivamente ao atendimento de suas necessidades, visando à ampliação de acesso aos seus direitos humanos e à cidadania. Sendo assim, não estão excluídos socialmente – muito pelo contrário, têm uma qualidade de vida muito melhor que milhões de brasileiros. Sobre esses aspectos, é possível uma aproximação com as considerações de Martins (2009), ao definir exclusão social como um conceito vazio. O autor afirma que o discurso atual sobre exclusão é, basicamente, um equívoco. Diz ainda que há uma fetichização conceitual da exclusão, elegendo-a como uma palavra mágica que explicaria tudo. Sendo assim, torna-se um conceito insuficiente e equivocado: “O conceito é inconceitual, impróprio e distorce o próprio problema que pretende explicar” (MARTINS, 1999, p. 27). a produção do conhecimento no campo da educação especial 217 Desse modo, podemos deslocar o eixo da discussão de segregação como sinônimo de exclusão, para discutir que estar socialmente incluído pode ir além do estar junto, de frequentar o mesmo espaço educacional. Pode ser, talvez – dependendo das limitações e condições de vida do sujeito –, a possibilidade de se desenvolver, de aprender e viver dignamente, tendo seus direitos humanos garantidos. referências AMERICAN ASSOCIATION ON MENTAL RETARDATION. Mental retardation: definition, classification, and systems of support. Washington, DC, USA: AAMR, 1992. AMERICAN ASSOCIATION ON MENTAL RETARDATION. Mental retardation: definition, classification, and systems of supports. Washington, DC, USA: AAMR, 2002. ASSOCIAÇãO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. 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O reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais – Libras, pela Lei n° 10.436 (BRASIL, 2002), como meio legal de comunicação e expressão oriunda das comunidades surdas, o Decreto n° 5.626 (BRASIL, 2005), que regulamenta a inclusão desta língua como disciplina obrigatória em cursos de nível médio e superior de formação de professores, além da regulamentação da profissão do tradutor intérprete pela Lei n° 12.319 (BRASIL, 2010), deflagram a 1 O ensino bilíngue para surdos constitui-se no Brasil pelo aprendizado da língua portuguesa somente em modalidade escrita e da Língua Brasileira de Sinais, tal como a legislação destacada no parágrafo seguinte. a produção do conhecimento no campo da educação especial224 mobilização em prol dos indivíduos que utilizam a Libras como forma prioritária de comunicação. Apesar de hegemônicos – tanto o movimento dos surdos em prol de uma cultura e identidade próprias, caracterizadas pela utilização da língua de sinais, quanto o movimento acadêmico que procurou dar sustentação teórica a essa perspectiva – encontraram opositores, seja por surdos que defendem a oralização, seja por pesquisadores que colocam em xeque a visão da surdez como diferença que se expressa por uma cultura própria, apartada e antagônica à cultura ouvinte2. Cabe levar em conta que aqueles que sinalizam compõem somente uma parcela das pessoas com perda auditiva profunda ou severa bilateral3. É dizer, nem todos os indivíduos surdos comunicam-se por meio da Libras, o uso da fala e leitura labial constitui- se como modo de comunicação eficiente entre um grupo significativo de indivíduos surdos4. Cabe entender, também, que tanto a modalidade linguística visual- motora quanto a falada estiveram atreladas à educação 2 Para maiores detalhes sobre a corrente socioantropológica, consultar Skliar (1996, 1997), Perlin (2005), entre outros. Para a vertente que se contrapõe a essa visão, ver Bueno (1998, 2011), Mendonça (2007), entre outros. 3 As perdas auditivas profunda ou severa bilateral correspondem a graus de perda acima de 70 decibéis, o que impossibilita o entendimento da fala. Para maiores informações consultar Russo et al., (2009). 4 Tal informação poderá ser comprovada com a apresentação dos resulta- dos da pesquisa nas páginas seguintes. a produção do conhecimento no campo da educação especial 225 escolar de indivíduos surdos. Isto é, historicamente a educação de pessoas surdas esteve envolvida com a expectativa do sujeito em adquirir uma língua e se comunicar por meio dela. Para alguns, tal expectativa encaminhou-se para a língua oral, para outros, os sinais. Diante de tal cenário, a tese de doutorado cujo escrito tem por referência procurou compreender de que forma as condições sociais expressas em trajetórias diversificadas favoreceram a construção de identidades sociais distintas, tendo como parâmetro a decisão desses indivíduos em utilizar preferencialmente a língua oral ou a língua de sinais. Tendo por base a perspectiva de estudos críticos da educação de pessoas surdas, a partir da iniciativa de Bueno (1998), considera-se a surdez como deficiência e não somente como uma diferença, pois a perda da audição acarreta impedimentos auditivos importantes para a vida social, assim como não constitui a única marca na composição da identidade de uma pessoa surda porque, para qualquer sujeito (surdo ou não), marcas como condição de classe, raça, gênero, local de moradia e espaço social percorrido na trajetória de vida compõem elementos que se inscrevem na construção social da identidade. São levados em consideração para esta produção textual os dados e análise dos depoimentos pessoais de três5 mulheres surdas, no que se refere a determinada 5 A pesquisa, na íntegra, é composta por dois procedimentos de coleta de dados: foram coletadas informações de 24 pessoas surdas por meio de a produção do conhecimento no campo da educação especial226 época em que traçaram o início de suas trajetórias e o momento histórico-político, assim como os espaços sociais onde constituíram suas trajetórias. Trata-se, então, de parte dos achados da pesquisa já mencionada que toma para análise a construção social da identidade de indivíduos surdos por meio dos conceitos de trajetória e estratégia, cunhados por Bourdieu (1996), utilizando como procedimento sua organização em estações. Tal escolha se deu por Bourdieu definir trajetória a partir da crítica que estabeleceu aos estudos que se utilizam dos procedimentos denominados história de vida, cujo entendimento sobre o conceito está calcado em uma trajetória singular e na sucessão de acontecimentos relacionados. Utilizando-se de uma metáfora para demonstrar o equívoco do procedimento citado, o autor expõe que é como “tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações” (BOURDIEU, 1996, p. 189). De outro modo, define trajetória como uma série de posições ocupadas, sucessivamente, por um indivíduo ou grupo, em um espaço social. Elucidando que, imersos em uma “trama de relações, práticas e significados sociais” – que presta à sua existência a ideia de unidade – os indivíduos também podem, ao longo da vida, deslocar- se no espaço social. É dizer que o que lhe confere à um questionário on-line que traçou os perfis sociais desses indivíduos; após essa primeira etapa foram selecionados seis desses sujeitos para entrevistas de suas trajetórias sociais. a produção do conhecimento no campo da educação especial 227 existência a ideia de unidade são os mecanismos sociais, os quais tendem a estabelecer que certa ação ou postura, inscrita no mundo social, seja associada à identidade individual (BOURDIEU, 1996, p. 189). Assim, os acontecimentos biográficos definem-se antes como alocações e como deslocamentos no espaço social, isto é, mais precisamente, nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição dos diferentes tipos de capital que estão em jogo no campo considerado (BOURDIEU, 1996, p.74). Do mesmo modo, o conjunto de posições simultaneamente ocupadas por um indivíduo socialmente instituído e em um dado tempo exerce a função de sustentar o conjunto de atributos e atribuições que permitem ao agente intervir eficientemente em diferentes campos (BOURDIEU, 1996). A experiência e compreensão do que é o mundo social manifesta-se na prática. É no domínio prático da estrutura social que se dá o sentido à posição social ocupada e os limites do que se pode permitir a si mesmo. Isso quer dizer que, de “maneira mais geral, o espaço de posições sociais se retraduz em um espaço de tomadas de posição pela intermediação do espaço de disposições (ou do habitus)” (BOURDIEU, 1996, p. 21, grifo do autor). Os agentes sociais não são partículas que podem ser movimentadas mecanicamente por forças externas. São, na verdade, detentores de capitais que, conforme a produção do conhecimento no campo da educação especial228 as trajetórias e posições que ocupam socialmente (em virtude do volume e estrutura de capital), possuem uma inclinação a orientar-se ativamente para a preservação da distribuição do capital ou pela subversão dessa distribuição. Tal formulação não possui o sentido generalizador que atribui a todos os pequenos possuidores de capital virem a ser agentes sociais revolucionários, muito menos seu inverso, mas pode possibilitar entender o espaço social em seu conjunto (BOURDIEU & WACQUANT, 2005). É dentro desta ótica que Bourdieu (1996, p. 61) se refere aos processos de escolarização como um “modo de reprodução estatística”, ou seja, de tendência predominante de sucesso e fracasso escolar em relação à origem e trajetória social de cada um, alertando que os interesses de pais e filhos estão direcionados (aquém da consciência) a evitar a desclassificação social. Para isso conduzem inúmeras estratégias que possuem por finalidade manter a posição, segundo sua origem. Para tanto, o sentido real das estratégias reside no senso prático, no sentido do jogo, “como domínio prático da lógica ou da necessidade imanente de um jogo, que se adquire pela experiência de jogo e que funciona aquém da consciência e do discurso” (BOURDIEU, 1996, p. 79). Para dar maior precisão ao conceito, o autor estabelece uma distinção entre regra, tal qual Lévi- Strauss argumentava, e estratégia, no significado que ele procura estabelecer, na medida em que com essa não distinção “corre-se o risco de cair em um dos paralogismos mais funestos das ciências humanas, a produção do conhecimento no campo da educação especial 229 aquele que consiste em tomar, segundo a velha fórmula de Marx, ‘as coisas da lógica pela lógica das coisas’” (BOURDIEU, 1996, p. 79). Sobretudo, tendo como princípio básico que norteou a pesquisa ultrapassar a perspectiva de que a trajetória se restringe única e exclusivamente a um percurso linear, individual e relativamente organizado e planejado, serão expostos a caracterização das três mulheres surdas entrevistadas e dos espaços sociais, a organização da análise por estações e as considerações pertinentes aos resultados apresentados. a trajetória social como Processo de construção de identidades Tendo em vista a base teórica adotada e o objetivo de analisar a construção social da identidade de indivíduos surdos, os acontecimentos biográficos descritos expressam-se primeiro como alocações, mas também como deslocamentos no espaço social (BOURDIEU, 1996, p. 74). Nesse sentido, serão abordados dados relativos à caracterização de três indivíduos (com os nomes fictícios Aline, Jaci e Lúcia), bem como às características dos lugares que apresentam tanto singularidades próprias de cada localidade como regularidades relacionadas às estruturas e aos mecanismos dos espaços sociais e presentes nas condições objetivas de existência dos indivíduos – compõem o espaço de coexistência de posições sociais e princípios de pontos de vista. a produção do conhecimento no campo da educação especial230 Primeiro, cabe citar a mais jovem dentre os sujeitos entrevistados. Aline é uma jovem branca de 20 anos, surda profunda desde o nascimento, falante e implantada, estudante de moda, solteira, moradora da região central da cidade de São Paulo, filha única de pais de uma fração da classe média, frequentadora dos encontros de implantados e de grupos de discussão feminista. Seus familiares mantiveram, durante sua infância e adolescência, residência na mesma localidade, no bairro Santa Cecília, que em períodos históricos anteriores foi uma região que reunia casarões de cafeicultores e a sede do governo do Estado de São Paulo, mas durante o período vivido por Aline a área já apresentava certa degradação nos edifícios e vias e grande concentração de moradores sem-teto (SãO PAULO, 2013b). Assim, recorrer ao bairro vizinho de Higienópolis para os estudos em uma escola particular de alto padrão e lazer com acesso a lojas, cinema e shopping, são escolhas inquestionáveis de sua família, mesmo que para isso sua mãe tivesse que trabalhar inclusive aos sábados. Em geral, Aline demonstra usufruir mais do bairro vizinho, por conta também da proximidade geográfica – de aproximadamente 800 metros de sua residência – do que de onde realmente reside, preferindo situar-se como moradora de Higienópolis e não do bairro Santa Cecília. Em seus relatos evidencia-se que sua origem social remete a uma ascendência de classe média. Seu pai atua profissionalmente como analista de sistemas e a mãe, como gerente de loja. Ambos acessaram o nível de ensino a produção do conhecimento no campo da educação especial 231 superior, mas a mãe acabou não conseguindo concluí-lo por conta da gestação de Aline e pelo adensamento dos custos financeiros que desfavoreceu tal investimento. De todo modo, é possível entender que as condições sociais de origem expressam que Aline pertence a um estrato superior da classe média, com ambos os pais exercendo ocupações valorizadas, residindo em um bairro, mas situando-se no bairro vizinho caracterizado como de população dessa camada social, expressa, por exemplo, pelo shopping Pátio Higienópolis ali situado. Jaci é uma senhora branca de 64 anos, falante, não utiliza aparelho de amplificação sonora e faz leitura labial. Sua composição familiar de origem era formada por cinco pessoas, sendo duas irmãs mais novas, pai procurador da Justiça e mãe professora. Mãe de dois filhos, hoje adultos, tornou-se viúva antes dos 30 anos, e mesmo já tendo se aposentado até o momento da pesquisa, ocupa-se como bibliotecária, função que exerceu por toda a vida. Nasceu no município de São Caetano do Sul, região do ABC Paulista, mas durante o período de sua primeira infância a família se mudou para o bairro da Aclimação e logo depois para Moema, local onde firmaram residência. Nessa mesma época inicia-se na região a construção do Parque do Ibirapuera e alguns anos depois o shopping que leva o mesmo nome. Assim, o bairro vai se constituindo como uma das mais importantes áreas de cultura e lazer da cidade, além de ser considerada uma região nobre devido ao alto padrão de custo dos prédios, residências e comércio que ali se instalaram – a produção do conhecimento no campo da educação especial232 lojas de calçados e vestuário de marcas internacionais e restaurantes de renome. A mudança da família para Moema deu-se com a compra de uma casa no bairro por causa da proximidade com a escola especial em que Jaci estudava, com o trabalho do pai proporcionando um cotidiano mais agradável e menos desgaste nos trajetos diários, e também por ser um local que foi se estabelecendo de acordo com as expectativas e necessidades da família. Jaci e sua mãe frequentavam um cinema que ficava a poucos metrosde sua residência, por exemplo. Sobretudo, entende-se que as condições sociais de origem de Jaci expressam que pertencia a uma família de classe média da segunda metade do século XX, com ambos os pais exercendo ocupações valorizadas, residindo em um bairro que foi se estabelecendo, em sincronia com sua trajetória socioeducacional, em uma região altamente valorizada. Já Lúcia é uma mulher de 34 anos, a única pessoa entrevistada que se autodeclara parda, surda profunda desde o nascimento, usuária da língua de sinais, casada, mãe de dois filhos (um ouvinte e um surdo), moradora do município de Mauá, quinta filha de um conjunto de nove irmãos, e instrutora de Libras em uma escola estadual em Santo André. Como parte da região do Grande ABC, Lucia viveu sua infância e adolescência no bairro Jardim Zaíra, um dos mais populosos do município de Mauá. Localizado em região de mata atlântica, o município está em processo de estruturação de uma política de desenvolvimento a produção do conhecimento no campo da educação especial 233 sustentável, uma vez que abriga várias nascentes de rios, como o Tamanduateí, e diversas áreas de proteção ambiental permanente. É relevante citar que na região a política de loteamento centrava-se em vender terrenos a preços baixos e fornecer material suficiente para o início da construção de uma casa popular (DIAS, 2012). Esta localidade, que nas últimas décadas enfrenta sérios problemas sociais originados pela ocupação desordenada, aliada à falta de planejamento urbano, possui áreas irregulares, sem saneamento básico e ausência de investimentos em infraestrutura. Lá é onde Lúcia tem acesso aos bens de consumo (alimentação, vestuário etc.) necessários para o seu cotidiano, permanecendo no local após o casamento (BRASIL, 2016b). Seu pai trabalhou como operador-chefe de uma empresa multinacional de produção de automóveis. Hoje é aposentado. Sua mãe se ocupava do lar e dos filhos. Ambos os pais completaram o ensino primário e ginasial (Ensino Fundamental). Tiveram nove filhos, sendo quatro ouvintes e cinco surdos. Lúcia é a quinta filha. Em seus relatos ela declara que seu grupo familiar chegou a apresentar dificuldades para a própria subsistência. Casou-se aos 25 anos. Tem dois filhos, um com 9 anos, ouvinte, e o outro com 6, surdo. As condições sociais de origem expressam que Lúcia pertenceu a uma família de classe popular, com o pai exercendo ocupação qualificada e a mãe se dedicando aos afazeres domésticos e aos cuidados com os filhos, residindo em bairro periférico caracterizado pela ausência ou inconsistente infraestrutura básica. a produção do conhecimento no campo da educação especial234 estações: moema, higienóPolis e jardim zaíra Para Jaci, Aline e Lúcia o local de moradia na infância constituiu-se como espaço de identificação e permanência por toda a vida. Quando a família de Jaci se transferiu de São Caetano do Sul para o bairro de Moema, este local estava em plena formação, com iniciativas imobiliárias voltadas exclusivamente para os estratos superiores das camadas médias, o que correspondia exatamente às expectativas e necessidades de seu grupo social, tanto que, já na sua juventude, tornou-se um dos bairros mais valorizados da cidade. Durante a infância e juventude ela e sua mãe frequentavam um cinema a poucos quarteirões de sua casa; fez aulas de datilografia no bairro e o comércio local atendia às necessidades da família. Casou-se anos mais tarde e fixou residência na mesma região, bem perto do local onde trabalhou a vida toda. No caso de Aline, residir em um bairro central um tanto degradado não a fazia se situar como moradora desse espaço, pois, dada sua origem familiar, identificava-se e usufruía dos serviços oferecidos no bairro vizinho. Ela acabava se deslocando para o bairro de Higienópolis para os estudos e lazer não somente por haver proximidade geográfica, mas também pela aproximação social que dava a seu grupo familiar a possibilidade efetiva de manutenção do status familiar. É na relação social, mas também na relação com certo espaço social reificado que os agentes se constituem como tais, na medida em que os bens e serviços a produção do conhecimento no campo da educação especial 235 (culturais, sociais etc.) são apropriados por esses sujeitos (BOURDIEU, 2012). Assim como Jaci, Lúcia residiu a vida toda no mesmo bairro, no município de Mauá. No entanto, a falta de infraestrutura fez com que ela, em alguns momentos da vida, precisasse se deslocar para outras regiões para ter acesso ao ensino especializado e trabalho. Esses deslocamentos não representaram para Lúcia motivação suficiente para que mudasse o local de sua moradia. Permaneceu na mesma região após o casamento, e declarou que sua escolha se deu porque ali lhe é muito familiar. Mais do que isso, levando em conta as chances efetivas de sua condição social, suas possibilidades somente permitiriam se transferir para outro local muito parecido com aquele ao que está habituada. Assim, racionaliza essa impossibilidade afirmando que está habituada ao local onde mora, valorizando-o: “É um lugar tranquilo, pois nasci e cresci ali, o cheiro é familiar”, o que contrasta com a realidade efetiva do Jardim Zaíra. Cabe entender que o espaço social, além de organizar as representações e práticas dos agentes, vincula-se às suas propriedades determinantes, distinguindo e agrupando as pessoas em suas afinidades, desejos, simpatias, em suas disposições. Assim, a proximidade no espaço social engendra uma possibilidade objetiva, uma pretensão em existir como classe, como grupo social. Contudo, as distâncias ou aproximações também se constituem pelo espaço social reificado, a produção do conhecimento no campo da educação especial236 isto é, pelo espaço físico objetivado. Cada agente, como um ser tangível, está situado em um ponto do espaço físico, em um lugar cujas propriedades (sociais, culturais e outras) podem ser apropriadas, de acordo com sua posição em relação aos demais lugares (BOURDIEU, 1996, 2012). Deste modo, o espaço social se manifesta diversamente, em oposições espaciais, e funciona sob o modo de “simbolização espontânea” desse espaço, definindo-se pela exclusão mútua de posições: Não há espaço, em uma sociedade hierarquizada, que não seja hierarquizado e que não exprima as hierarquias e as distâncias sociais, sob uma forma (mais ou menos) deformada e, sobretudo, dissimulada pelo efeito de naturalização que a inscrição durável das realidades sociais no mundo natural acarreta [...]. (BOURDIEU, 2012, p. 160, grifos do autor). Para Lúcia de um lado, e Jaci e Aline de outro, permanecer no mesmo espaço geográfico é identificar- se como parte integrante desse espaço. Assim, a posição social dessas três mulheres revela-se pelo lugar do espaço físico em que estão, aspecto ainda mais manifesto no caso de Aline por se situar, de fato, no bairro vizinho em vez de naquele de sua residência. Para dar continuidade aos resultados serão abordadas as experiências escolares e a condição da surdez vivenciada em grupos familiares de classe média, como são os casos de Aline e Jaci. a produção do conhecimento no campo da educação especial 237 a surdez em família de classe média e as exPeriências escolares No caso de Aline, nascida em 1996 e única filha do casal, a surdez foi percebida depois do primeiro ano de vida e possui causa indefinida, somente a suspeita familiar de alguma doença, também não definida, contraída pela mãe durante a gestação. Aline iniciou o trabalho de linguagem logo que a família descobriu sua surdez, o que se tornou uma prática rotineira durante sua infância e juventude. Duas vezes por semana a família de Aline a levava até a fonoaudióloga,para um atendimento particular de 45 minutos em cada sessão. A escolha do treino oral se deu pela orientação da própria fonoaudióloga e pelas expectativas da família com relação à sua inserção social. Os atendimentos com a fonoaudióloga, além de serem frequentes, eram reforçados pela mãe no tempo livre, em casa. Dessa forma, a leitura e o treino de fala tornaram-se atividades corriqueiras na vida de Aline, pois para seus pais a escolha pela fala proporcionaria mais recursos sociais do que os sinais. “Quando eu conheci a minha fono, ela disse pros meus pais: ‘Se fosse o meu filho eu ensinaria a falar. É muito mais difícil do que fazer a linguagem de sinais’. O meu pai ficou meio em dúvida, porque ele trabalhava na escola de surdos, só que fazia só um ano nesse emprego, tinha acabado de entrar, e como tem festa de final de ano e festa junina na escola, aí ele conhecia o a produção do conhecimento no campo da educação especial238 pessoal. Meus pais ficaram na dúvida, no começo, se eu devia estudar lá, mas eu fui crescendo e perceberam que valeu muito a pena eu ter feito a oralização. Se eu tivesse uma filha eu ia escolher a oralização também, eu acho que tem mais recursos, do que só com a Libras” (Aline). Assim, a oralização representou para Aline um trabalho a longo prazo, contínuo e árduo, sobretudo compensador. “Pra falar tem todos os fonemas, tem todo um esquema e pra escrever era mais [...] Só que é uma coisa estranha, eu não me lembro de quando começou, parecia que eu sempre soube ler. Depois que eu aprendi mesmo, foi muito fácil” (Aline). Aos 19 anos recorre à cirurgia de implante coclear, mesmo com algumas limitações financeiras e não sendo a idade mais indicada para o procedimento6, retornando ao trabalho de linguagem para que sua comunicação fosse aprimorada. 6 Conforme orientações dispostas na página eletrônica do Grupo de Im- plante Coclear do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – um dos grupos pioneiros na cirurgia do implante coclear no Brasil, que desenvolve estudo e acompanhamento de novecentas pessoas implantadas atualmente –, quanto mais precoce- mente o surdo for implantado melhores serão os resultados na audição e fala. Tais informações estão dispostas no site: <http://www.implanteco- clear.org.br/textos.asp?id=5>. a produção do conhecimento no campo da educação especial 239 Com relação à escolarização, Aline realizou todo o percurso escolar de base em uma instituição particular muito tradicional e de qualidade reconhecida, localizada no bairro de Higienópolis. Além do período de aulas que correspondia à série na qual estava matriculada, Aline permanecia na escola no contraturno, momento em que fazia aulas de ballet, inglês e artes, realizava lições de casa, esclarecia dúvidas, assim como brincava com os demais alunos com jogos tradicionais e atividades recreativas dirigidas: jogo de taco, circuitos com bolas, perna de pau etc. Na adolescência a família passou a buscar outros tipos de investimento escolar, como o curso de inglês em uma escola específica para o ensino de línguas, que frequentou por dois anos. O que a impulsionou, anos mais tarde, a estudar de forma independente outras línguas, como a língua russa. Com a alta no treinamento de fala aos 16 anos, a família passou a recorrer às aulas de reforço. A necessidade desse recurso se fez imprescindível, mesmo com o evidente interesse de Aline pelo aprendizado escolar, pois no Ensino Médio a prática dos professores em priorizar a explicação oral em momento de aula dificultava dar continuidade ao estudo fora da sala de aula, bem como as provas passaram a conter questões dos vestibulares de anos anteriores, o que reforçou a necessidade de apoio. Aline concluiu o Ensino Médio e está se profissionalizando em moda, cursando a graduação em uma faculdade particular com pouca tradição no ensino superior, mas com importante renome como instituição de ensino básico. a produção do conhecimento no campo da educação especial240 Com relação a Jaci, única pessoa surda da família, sua perda auditiva deveu-se a um antibiótico que a mãe tomou durante a gravidez. Desde a tenra infância até os dias atuais passou por intenso treinamento oral diário no meio familiar. Seus pais estavam sempre atentos a sua fala, compreensão das palavras, significados que eram comunicados. Falar corretamente era essencial para a socialização de Jaci, de tal modo que a fez ser capaz de oralizar e se concentrar na leitura labial sem ser cansativo, já que a comunicação com as mãos não era apreciada pelos familiares. Você tinha vontade de fazer gestos ou sinais? “Mamãe não gostava. Papai, quando estava no hospital, quase morrendo, falava assim: ‘Pronuncia o acento certo’. Me corrigiu até o último dia. Minha filha às vezes fala: ‘Se a vovó estivesse aqui ela ia brigar com você’. Meus filhos me corrigem, minhas irmãs me corrigem. [...] É bom. A base para pronunciar uma palavra, pra falar inglês, como pronuncia o ‘r’. Elas me ajudam bastante” (Jaci). Você conhecia a associação de surdos nessa época? “A mamãe não deixava eu ir na Associação, porque era só Libras. O nível não era muito bom. A mamãe achava melhor eu ir na ACM, então ia lá por causa da ginástica, natação, fazia amizades com moços, moças” (Jaci). a produção do conhecimento no campo da educação especial 241 As relações de amizade de Jaci estiveram continuamente atreladas aos contatos do meio familiar, como primos, amigos da escola e do clube esportivo a que a família era associada, privilegiando o contato com ouvintes e surdos falantes. Mais do que não gostar dos gestos ou sinais, o uso deste recurso de comunicação era entendido por sua família como inadequado para seus descendentes. Jaci menciona de forma positiva a relação entre o treino de fala e o esforço empreendido para isso, sendo reconhecido por ela como satisfatório comparado a outros aprendizados, como a alfabetização. Cabe entender que seu treino de fala se dava em conjunto com a escolarização na instituição especializada, também muito reforçado em momentos de descontração e lazer no ambiente familiar. Jaci frequentou o ensino especializado durante os anos de 1955 a 1966, até completar o ensino primário e ginasial (Ensino Fundamental) com 14 anos, e ser encaminhada ao próximo nível de ensino, na época chamado ensino colegial. Não por acaso, Jaci fazia parte de um grupo privilegiado de alunos do ensino especializado, os quais tinham aulas extras de leitura. “De vez em quando tinha aula de leitura na biblioteca, mas era só para um grupo, não era pra toda a escola. Eram as primeiras classes, eram privilegiados. Uma menina que tava na outra sala era filha de uma senhora que ficou casada com o diretor da escola. A escola tinha muitos problemas financeiros, muitos alunos não podiam pagar. Dona Renata financiava a escola todo a produção do conhecimento no campo da educação especial242 ano, ela tirava dinheiro do próprio bolso pra não ficar no vermelho. Por isso que meu pai era voluntário. A minha mensalidade era mais cara que o salário da minha mãe como professora. Era muito cara” (Jaci). A mãe de Jaci ocupava-se frequentemente em esclarecer e fornecer apoio a seus aprendizados. Na adolescência o empenho aplicado na preparação para o vestibular deu ensejo a Jaci ter acesso ao ensino superior em colocação de destaque. estações: 1960 e 1990 Jaci e Aline são as com maior distanciamento em relação à idade, e consequentemente, à geração, visto que o nascimento e descoberta da surdez de Jaci ocorreu quarenta anos antes do nascimento de Aline. No caso de Jaci, em meados dos anos 1960, estudar em determinada escola especial privada significava, alémde frequentar uma instituição de ensino reconhecida e mantida por famílias das camadas superiores da cidade, fazer parte de um grupo selecionado de alunos que recebiam aulas extras de leitura, passar a estudar em tempo integral para que ela e os colegas tivessem maior rendimento escolar, corresponder ao intenso investimento cultural e econômico de sua família, chegando a ganhar uma medalha de melhor aluna. Essa medalha teve um forte impacto emocional em Jaci, que lembrou com emoção do cartão que seu pai lhe presenteou em reconhecimento por seu esforço. a produção do conhecimento no campo da educação especial 243 Observa-se também o intenso processo de manutenção da herança cultural familiar que mobilizou os familiares a buscarem diminuir a marca da deficiência auditiva – com treinos e correções diárias de linguagem, além da valorização do contato social entre pares da mesma fração de classe (porção dominante da classe média) –, favorecendo inclinar-se a um destino social adequado ao padrão moral-religioso católico no qual é valorizada a constituição e manutenção do núcleo familiar. Esse padrão, aliado à profissão de nível superior, puderam garantir o sentido esperado de sua trajetória. Ao trabalhar durante quarenta anos no mesmo emprego, Jaci foi capaz de se manter no status social de seu grupo familiar, pois seu local de trabalho ainda possui muito prestígio social, além de permitir-lhe atender às exigências e responsabilidades que seu grupo social atribuía à função de mãe. Assim, estudar em determinada escola especial privada estabeleceu-se como uma estratégia para evitar sua desclassificação social em relação ao seu grupo familiar, explicitada também na preocupação da mãe em fornecer complementos educacionais para que ela tivesse um futuro garantido. É interessante, ainda, verificar que não havia nenhuma preocupação mais acentuada sobre uma possível desclassificação de suas duas irmãs ouvintes, pois para a família era “natural e previsível” que uma trajetória comum e sem percalços seria percorrida por elas, como aconteceu. Assim, mesmo que de forma pouco consciente, a distinção entre a ação familiar sobre as três irmãs e os resultados alcançados a produção do conhecimento no campo da educação especial244 mostram que esse estrato social se apropria de meios bastante adequados para superar as possibilidades de desclassificação de uma filha que possui uma marca biológica considerada negativa. Para o grupo familiar de Aline o investimento na escolarização da filha se distingue do que foi estabelecido pela família de Jaci, pois em meados dos anos 1990 as escolas especializadas para surdos passavam por um redirecionamento na perspectiva socioeducacional, do oralismo para o bilinguismo. O ano de nascimento de Aline é muito significativo no âmbito da educação de surdos, pois se comemoravam os dez anos da mudança de nome e perspectiva da Federação Nacional de Educação e Integração dos Deficientes Auditivos (FENEIDA) para se tornar a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS)7, mostrando que se intensificava a mobilização que passava a defender a língua de sinais. Tanto é que, dois anos depois, em 1999, se fez público o manifesto “A educação que nós surdos queremos”, que tinha em uma de suas pautas principais o direito de toda criança surda aprender a língua de sinais8. 7 A FENEIS é a organização de surdos mais atuante na defesa do reconhe- cimento e manutenção de uma comunidade surda usuária exclusivamente da língua de sinais, que expressaria a existência de uma comunidade surda constituída por uma “cultura surda” apartada da “cultura ouvinte”. Maiores informações em <http://www.feneis.com.br/>. 8 O manifesto “A educação que nós surdos queremos” pode ser encon- trado na íntegra no site <http://docslide.com.br/documents/a-educa- cao-que-nos-surdos-queremos.html>. a produção do conhecimento no campo da educação especial 245 Mais do que isso: o pai de Aline mantinha contato com a efervescente conjuntura do movimento pela afirmação da língua de sinais, uma vez que trabalhava em uma escola privada para surdos quando descobriu a surdez da filha. Tanto é que a família ficou em dúvida inicialmente, mas acabou escolhendo a oralização como meio de aquisição de linguagem para a filha. Tal direcionamento deveu-se às possibilidades da família, pois a surdez foi descoberta ainda no primeiro ano de vida (a precocidade é um fator relevante para o aproveitamento do treino de linguagem) e a família detinha condições objetivas para que a opção se realizasse, assim como pelos interesses associados que a posição social lhes inspirou, confirmados por Aline ao declarar que a oralização proporciona mais recursos do que a Libras. Assim, a inserção da filha em uma escola de ensino regular qualificada, associada ao trabalho contínuo de oralização, constituiu-se como estratégia capaz de proporcionar sua efetiva incorporação em seu grupo social. Por meio da produção ou apropriação dos meios simbólicos existentes, deve-se entender que a cultura pode tornar-se uma forma de capital, pois para cada forma de capital cultural há um valor atribuído, conforme os diferentes tipos de mercado (familiar, escolar, profissional etc.). Em decorrência, entende-se que a posse do capital cultural legítimo significa distinguir-se socialmente e elevar sua posição no espaço social, que é também poder usufruir de vantagens nas disputas por prestígio social. Sobretudo, quando a transmissão do a produção do conhecimento no campo da educação especial246 capital cultural ocorre domesticamente é que as famílias garantem o mais determinante dos investimentos educativos (BOURDIEU, 2015a,b). Os grupos familiares de Jaci e Aline investiram intensamente na aquisição de capital cultural, principalmente em ambiente familiar onde o trabalho de linguagem oral era reforçado pelos pais no incentivo ao diálogo cotidiano, no acesso a diversas leituras e legendas e nas correções de pronúncia e uso das palavras. algumas considerações Ao serem recolhidos alguns dados das trajetórias sociais de três mulheres surdas, ressaltadas em estações, a análise evidenciou que a posição social do grupo familiar de origem, a época em que a surdez foi constatada e as estratégias de investimento cultural e linguístico estabeleceram-se como fatores relevantes para a manutenção ou reclassificação de suas posições sociais. As duas estações destacadas ilustram, em parte, a ideia que a pesquisa possibilitou afirmar: a constituição da identidade social de indivíduos surdos não se dá somente por uma única marca, mesmo quando essa se refere a uma deficiência ou à aquisição de linguagem por meio de uma modalidade de língua diferente. Pessoas surdas com diferentes posições nos estratos sociais percorrem trajetórias sociais distintas, pois tal percurso se estabelece conforme a relação entre as forças dos espaços sociais e o indivíduo. a produção do conhecimento no campo da educação especial 247 De acordo com os resultados analisados é possível afirmar: a constituição da identidade social e o uso preferencial pela língua de sinais ou língua oral se dá no decorrer da trajetória social da pessoa surda, de acordo com a posição social que ela ocupa em determinados espaços sociais e momento histórico- político. Nesse sentido, pode-se constatar que a apropriação e uso predominante da língua de sinais não foi o único elemento que constituiu a identidade social desses indivíduos com deficiência auditiva severa e profunda, assim como a apropriação e uso predominante da língua oral também não foi o único vetor responsável por uma inserção social mais qualificada. Reconhecer que a língua de sinais é natural a toda e qualquer pessoa surdaé atribuir a diferentes pessoas, pertencentes a diferentes grupos sociais, características unificadoras, deixando de levar em conta que pessoas – surdas ou ouvintes – possuem construções identitárias distintas que se alteram ou se cristalizam no decorrer de suas trajetórias. Mais do que isso, procurar estabelecer identidade social unitária como escolha pessoal é uma das táticas ideológicas constituídas na luta de classes, com o gosto (ou preferência) tomado como natural, extraído de sua aparência e eficácia, convertendo as diferenças reais contidas nos modos de aquisição da cultura em diferenças da natureza. Ao se tomar, formalmente, sujeitos de diferentes estratos sociais como iguais ante a escola, e a cultura, a produção do conhecimento no campo da educação especial248 imputa-se também “à desigualdade dos dons ou à aspiração desigual à cultura a representação desigual das diferentes camadas sociais nos diferentes níveis de ensino”, que, ao fim e ao cabo, está a serviço da legitimação dos privilégios de uns sobre outros (BOURDIEU & PASSERON, 2015, p. 45). Por fim, ainda sob a guarida do sociólogo francês e seus colaboradores, cabe aqui firmar posição em relação aos limites da investigação social, dado que O modelo teórico é inseparavelmente construção e ruptura já que é necessário ter rompido com as semelhanças fenomenais para construir as analogias profundas e já que a ruptura com as relações aparentes pressupõe a construção de novas relações entre as aparências. [...] a experimentação vale o que vale a construção que ela coloca à prova e o valor heurístico e probatório de uma construção depende do grau em que ela permite romper com as aparências e, por conseguinte, conhecer as aparências ao reconhecê-las como aparências (BOURDIEU; CHAMBOREDON & PASSERON, 2004, p. 74). Reafirmo aqui a intenção da investigação cujos dados parciais foram apresentados, de procurar, por meio da construção das estações, evidenciar que os relatos dos entrevistados expressam apenas as aparências do que eles acreditam ser as suas trajetórias, mas que demandam a construção de categorias que permitam ultrapassá-las. a produção do conhecimento no campo da educação especial 249 referências BOURDIEU, P. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Tradução Mariza Corrêa. Campinas: Papirus, 1996. BOURDIEU, P. Efeitos de lugar. In: BOURDIEU, P. (coord.). A Miséria do Mundo. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 159- 166. BOURDIEU, P. Futuro de classe e causalidade do provável. In: NOGUEIRA, M. A. & CATANI, A. (org.), Escritos de Educação. 16ª ed. Petrópolis: Vozes, 2015a, p. 89-142. (Ciências Sociais da Educação). BOURDIEU, P. Classificação, desclassificação, reclassificação. In: NOGUEIRA, M. A. & CATANI, A. (org.), Escritos de Educação. 16ª ed. Petrópolis: Vozes, 2015b, p. 163-204. (Ciências Sociais da Educação). BOURDIEU, P. & PASSERON, J.-C. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Tradução Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle. Florianópolis: Editora UFSC, 2015. BOURDIEU, P. ; CHAMBOREDON, J.-C. & PASSERON, J.-C., Ofício de Sociólogo: Metodologia da pesquisa na sociologia. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2004. BOURDIEU, P. & WACQUANT, L. Una invitación a la sociologia reflexiva. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005. a produção do conhecimento no campo da educação especial250 BRASIL. Decreto n° 5.626, 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais ‒ Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. BRASIL. Lei n° 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais ‒ Libras e dá outras providências. BRASIL. Lei n° 12.319, 2010. Regulamenta a profissão do tradutor intérprete em Língua Brasileira de Sinais. BRASIL. 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Duas leis importantes para a educação de cegos e surdos se somam a esse período: a Lei nº 9.610/1998, que consolida a legislação dos direitos autorais e inclui o sistema Braille como uma das formas de reprodução que não infringe o direito do autor; e a Lei n° 10.436/2002, que reconhece a Língua brasileira de sinais (Libras) como meio de expressão e comunicação dos surdos. O acesso à leitura sempre foi o ponto-chave na história da educação dos cegos, tema bastante debatido entre filósofos, pensadores da educação, religiosos e diretores dos institutos de cegos de todo o mundo nos idos dos séculos XVIII e XIX, florescendo uma vívida criação de tipos de letras em relevo para impressão de a produção do conhecimento no campo da educação especial 253 livros, até culminar no invento do código de pontos por Louis Braille. Ter domínio da leitura e de um método de escrita eram o ponto central na educação dos cegos. Na história da educação dos surdos, entretanto, a pedra de toque sempre foi o modo de comunicação mais adequado a ser-lhes ensinado: a língua de sinais ou a oralização (ou a combinação de ambos), e o bilinguismo (língua de sinais e a língua dominante do país). Os primeiros indícios desse debate começaram no século XVI, ganhando força nos séculos XVIII e XIX com os congressos internacionais,e não estaríamos errados em afirmar que perduram até os dias de hoje. O domínio da leitura e da escrita, habilidades fundamentais para quem vive em uma sociedade letrada, cuja língua dominante é a língua portuguesa, não é uma realidade na educação da maioria dos surdos brasileiros. Embora o Brasil tenha avançado bastante em relação às políticas de afirmação dos direitos das pessoas com deficiência, sabe-se que a implementação das prescrições não ocorre no mesmo ritmo. Neste artigo pretendemos analisar a articulação entre a legislação que contempla a acessibilidade de leitura e os editais dos Programas do Livro, com a efetiva distribuição de obras em braille e Libras1 nas escolas da rede pública de ensino, partindo das seguintes questões: Que tipo de obras têm sido produzidas para os alunos cegos e 1 Embora as políticas públicas abordem os diferentes graus de defi- ciência visual e auditiva, o escopo do nosso trabalho está centrado na cegueira e na surdez. a produção do conhecimento no campo da educação especial254 surdos? Como os editais tratam a questão do acesso à leitura? Quem produz esses materiais didáticos? Como tem sido o processo de seleção, compra e distribuição de livros? De que maneira o mercado editorial tem respondido a tal demanda? Para tentar responder a essas perguntas, o procedimento de pesquisa adotado foi a análise documental das seguintes fontes: legislação sobre acessibilidade de materiais didáticos, editais dos Programas do Livro, Guias dos Livros Didáticos, listas das obras adquiriras pelo Ministério da Educação (MEC), documentos produzidos pelos órgãos responsáveis pelas diretrizes da educação especial e dados da Imprensa Braille do Instituto Benjamin Constant (IBC). Além disso, houve pesquisa no acervo das bibliotecas do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), da Biblioteca Nacional, do IBC, e da Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação (DERDIC). os Programas do livro e a acessiBilidade Os Programas do Livro são compostos de duas ações: o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), instituído pelo Decreto nº 91.542/1985, responsável pela distribuição de livros didáticos para os alunos de todos os níveis e modalidades da rede pública; e o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), criado em 1997 para a compra de obras pedagógicas, periódicos e livros de literatura a a produção do conhecimento no campo da educação especial 255 fim de compor o acervo da biblioteca escolar. Ambos os programas são estruturados por um rigoroso processo de seleção e avaliação − realizado por uma comissão técnica formada por professores de universidades públicas −, aquisição e distribuição das obras, sob responsabilidade do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)2. Em 1985 articulou-se um projeto de lei que obrigasse as editoras a imprimir em braille uma parte da tiragem de todos os livros publicados. Após dez anos tramitando no Congresso Nacional, o projeto foi vetado e incorporado à legislação sobre os direitos autorais de 1998, com a ressalva de que não configuraria violação dos direitos do autor a impressão de livros em braille. Deste modo, abria- se a oportunidade para o uso da lei nos Programas do Livro. A primeira iniciativa do MEC para produção de livros em braille do PNLD ocorreu em 1999, em parceria com o Instituto Benjamin Constant (IBC), centro de referência nacional na área da deficiência visual, sendo o primeiro estabelecimento para 2 O presidente Michel Temer, por meio do Decreto nº 9.099 de 18 de julho de 2017, implementou as seguintes mudanças nos Programas do Livro: a nomenclatura passou a ser Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), integrando a aquisição de obras didáticas, pedagógicas, periódicos e de literatura no mesmo edital, extinguindo assim o PNBE. A reposição dos livros didáticos passa a ser de quatro anos (ante os três anos da regra anterior), e a avalição pedagógica deixa de ser feita pelas universidades públicas, passando para as mãos de professores que se inscreverem no site do MEC para tal função (BRASIL, 2017). Essas mudanças entraram em vigor a partir do PNLD 2019, razão pela qual não estão sendo consideradas em nossa análise. a produção do conhecimento no campo da educação especial256 cegos fundado na época do Brasil Império, vinculado diretamente ao ministério. A proposta foi adaptar e transcrever para o braille vinte livros didáticos aprovados no PNLD para atender, de forma experimental, alunos cegos matriculados no ensino regular. Foram produzidos livros de 1ª a 4ª série, conforme mostra a Tabela 1. Em virtude dos diversos obstáculos encontrados durante a produção das obras, a equipe responsável deparou com a necessidade da elaboração de uma normatização da grafia braille que abrangesse as múltiplas linguagens presentes nos livros didáticos, como gráficos, tabelas, fotos, caça-palavras, tirinhas, mapas, entre outros. O resultado desse trabalho gerou dois documentos oficiais que são referência na produção de qualquer material em braille no Brasil: Normas técnicas para a produção de textos em braille (1999) e Grafia braille para língua portuguesa (2002). Em busca de uma tecnologia que auxiliasse a produção dos livros, a Imprensa Braille do IBC fez uma parceria com o Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro para a criação do software Braille Fácil, um editor de texto que permite a visualização do texto em braille na tela do computador, agilizando a produção do livro impresso (SANTOS et al., 2014). Com a experiência adquirida no projeto-piloto, o instituto aumentou gradativamente o volume de obras: entre 2000 e 2001, adaptou 90 títulos didáticos de 1ª a 4ª série (Tabela 2). a produção do conhecimento no campo da educação especial 257 as novas Políticas de incentivo à leitura Em 2003, com a nova gestão do governo federal, mudanças profundas são implementadas nas políticas públicas de incentivo à leitura. A promulgação da Lei nº 10.753, que institui a Política Nacional do Livro, define como base as seguintes diretrizes em seu artigo 1º: Tabela 1 Livros didáticos em braille produzidos pelo IBC (1999) Disciplina 1ª série 2ª série 3ª série 4ª série Total Língua Portuguesa - 1 1 - 2 Matemática - 1 1 - 2 Ciências 1 4 2 1 8 Estudos Sociais* 5 1 2 - 8 Total 6 7 6 1 20 *Embora na lista do IBC conste como Estudos Sociais, referem-se às disciplinas de História e Geografia. Fonte: Elaboração da autora a partir dos dados disponíveis em: <http://www.ibc.gov.br>. Acesso em: 22 fev. 2015. Tabela 2 Livros didáticos em braille produzidos pelo IBC (2000-2001) Disciplina 1ª série 2ª série 3ª série 4ª série Total Língua Portuguesa 5 7 6 5 23 Matemática 2 2 3 3 10 Ciências 6 6 5 6 23 História e Geografia* 13 8 7 6 34 Total 26 23 21 20 90 *A lista do IBC traz apenas os títulos das coleções agrupados em História e Geografia, não sendo possível identificar os volumes separadamente. Fonte: Elaboração da autora a partir dos dados disponíveis em: <http://www.ibc.gov.br>. Acesso em: 22 fev. 2015. a produção do conhecimento no campo da educação especial258 II ‒ o livro é o meio principal e insubstituível da difusão da cultura e transmissão do conhecimento, do fomento à pesquisa social e científica, da conservação do patrimônio nacional, da transformação e aperfeiçoamento social e da melhoria da qualidade de vida; III ‒ fomentar e apoiar a produção, a edição, a difusão, a distribuição e a comercialização do livro; [...] IX ‒ capacitar a população para o uso do livro como fator fundamental para seu progresso econômico, político, social e promover a justa distribuição dosaber e da renda; [...] XII ‒ assegurar às pessoas com deficiência visual o acesso à leitura (BRASIL, 2003). Neste mesmo ano é ampliado o atendimento do PNLD, incluindo alunos do Ensino Médio e da Educação de Jovens e Adultos, e por meio da Resolução nº 24 do MEC/ FNDE, que dispõe sobre a impressão de livros em braille dos Programas do Livro, é aprovado o auxílio técnico e financeiro para a produção em mútua cooperação com instituições privadas sem fins lucrativos. Entre 2003 e 2004, por meio de uma parceria com a Fundação Dorina Nowill para Cegos, o IBC aumentou a produção de livros didáticos em braille, dessa vez ampliando o atendimento para alunos de 1ª a 8ª série, totalizando 128 títulos (Tabela 3). Pela primeira vez, foram incluídos no lote de livros paradidáticos do PNBE intitulado “Literatura a produção do conhecimento no campo da educação especial 259 em Minha Casa”, sendo trinta títulos do programa de 2001 (4ª série) e quarenta da edição de 2002 (4ª e 5ª série)3. A implementação da Política Nacional do Livro causou forte impacto no mercado editorial, uma vez que a proposta de capacitação e formação de leitores passava pelo consumo de literatura na escola. Conforme mostra a Tabela 4, é possível perceber que a partir dos anos 2003 e 2004 houve um substancial aumento na compra de paradidáticos, tanto em valores financeiros como em número de livros adquiridos, além da ampliação no atendimento ao incluir alunos da Educação de Jovens e Adultos, Educação Infantil e Ensino Médio. Ademais, mudanças no formato do edital permitiram a pulverização de editoras participantes, rompendo com o monopólio dos grandes grupos editoriais4. 3 Embora os livros do programa Literatura em Minha Casa fossem des- tinados aos alunos de 4ª e 5ª série, na lista do IBC vários títulos foram direcionados aos alunos cegos de 5ª a 8ª série. 4 Nos anos de 2001 e 2002 foram contempladas, em média, sete editoras. A partir de 2003, este número se ampliou para mais de setenta editoras. Tabela 3 Livros didáticos em braille produzidos pelo IBC (2003-2004) Disciplina 1ª série 2ª série 3ª série 4ª série 5ª série 6ª série 7ª série 8ª série Total Língua Portuguesa 4 6 6 6 7 7 7 7 50 Matemática 2 2 2 2 2 2 2 2 16 Ciências 1 3 3 3 2 2 2 2 18 História 2 4 4 4 3 2 2 4 25 Geografia 1 3 3 3 3 2 2 2 19 Total 10 18 18 18 17 15 15 17 128 Fonte: Elaboração da autora a partir dos dados disponíveis em: <http://www.ibc.gov.br>. Acesso em: 22 fev. 2015. a produção do conhecimento no campo da educação especial260 Os editais dos Programas do Livro passaram a Tabela 4 Programa Nacional Biblioteca da Escola ‒ PNBE (1998 a 2014) Ano de distribuição Livros adquiridos Investimento total Atendimento 1998 3.660.000 R$ 29.830.886,00 1ª a 8ª série 1999 3.924.000 R$ 24.727.241,00 1ª a 4ª série 2000 577.400 R$ 15.179.101,00 Professores 2001 60.923.940 R$ 57.638.015,60 4ª e 5ª série (Literatura em Minha Casa) 2002 21.082.880 R$ 19.633.632,00 4ª série (Literatura em Minha Casa) 2003/2004* 47.582.518 R$ 87.073.760,30 4ª a 8ª série, EJA, Professores, Bibl. Mun. 2005 5.918.966 R$ 47.268.337,00 1ª a 4ª série 2006 7.233.075 R$ 46.509.183,56 5ª a 8ª série 2008** 8.601.932 R$ 65.283.759,50 Ed. Infantil, 1ª a 4ª série, EJA 2009 10.389.271 R$ 74.447.584,30 5ª a 8ª série, Ensino Médio 2010 1.241.458 R$ 9.869.621,25 Educação Especial 2010 10.660.701 R$ 48.766.696,45 Ed. Infantil, 1ª a 4ª série, EJA 2010 204.220 R$ 3.051.046,80 Dicionário Volpi 2011 5.585.414 R$ 70.812.088,00 6º ao 9º ano, Ensino Médio 2011 6.983.131 R$ 59.019.172,00 Professor 2012 10.485.353 R$ 81.797.946,11 Ed. Infantil, 1º ao 5º ano, EJA 2013 7.426.531 R$ 86.381.384,21 6º ao 9º ano, Ensino Médio 2013 12.106.780 R$ 104.601.156,59 PNBE do Professor 2013 14.885.649 R$ 57.072.470,94 Periódicos 2014 19.394.015 R$ 92.362.863,86 Ed. Infantil, 1º ao 5º ano, EJA 2014*** 14.885.649 R$ 58.477.152,20 Periódicos *Em 2003 foram criados vários projetos dentro do PNBE: Literatura em Minha Casa (4ª a 8ª série), Palavra de Gente (EJA), Casa de Leitura (bibliotecas em 3.659 municípios), Biblioteca do Professor. **A partir de 2007 foi alterada a nomenclatura do PNBE. Até 2006 o nome do programa se referia ao ano de aquisição. Em 2007, passou a referir-se ao ano de atendimento. *** Em 2015, 2016 e 2017 não houve compra de livros de literatura por meio do PNBE. Fonte: Elaboração da autora a partir dos dados disponíveis em: <http://www.fnde.gov.br/programas/biblioteca-da-escola/biblioteca-da-escola-historico>. Acesso em: 22 fev. 2015. a produção do conhecimento no campo da educação especial 261 incorporar a legislação de acessibilidade de leitura gradativamente. No ano de 2004 foram lançados dois editais para aquisição de obras para 1ª a 4ª série com as seguintes prescrições: o PNBE 2005 incluiu uma cláusula em que a Secretaria de Educação Especial (SEESP) ficaria responsável por indicar as obras passíveis de adaptação ao braille, devendo as editoras assinar um termo de autorização, uma vez que a edição adaptada não entraria no cômputo da compra realizada pelo MEC/FNDE; e o edital do PNLD 2007 determinava que a SEESP indicaria, no Guia do Livro Didático, as obras passíveis de adaptação para a escolha do professor5. Embora tal indicação não tenha constado do Guia, o IBC deu continuidade ao trabalho de produção de livros didáticos em braille, conforme mostram as Tabelas 7 e 8. Importante observar que a legislação em prol da acessibilidade de leitura abarcava apenas a deficiência visual e os livros em braille. A população surda, embora tenha conquistado o reconhecimento da Libras como língua de comunicação e expressão em 2002, seria incluída na discussão do acesso a materiais didáticos somente no Decreto n° 5.625/2005, cujo capítulo a respeito do uso e da difusão da Libras e da língua 5 Os editais do PNBE são publicados, em média, um ano antes da dis- tribuição dos livros nas escolas. Já os editais do PNLD são lançados com três anos de antecedência, em média, para que a seleção e avaliação sejam feitas a tempo de o MEC/FNDE produzir o Guia do Livro Didático, com a resenha das obras aprovadas, para que os professores escolham os livros, em geral no ano anterior à distribuição. a produção do conhecimento no campo da educação especial262 portuguesa traz a seguinte prescrição: “disponibilizar equipamentos, acesso às novas tecnologias de informação e comunicação, bem como recursos didáticos para apoiar a educação de alunos surdos ou com deficiência auditiva” (BRASIL, 2005). Nesse ínterim, uma iniciativa da editora Arara Azul, de Petrópolis, chamou a atenção para tal lacuna. Com financiamento do Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), por meio do edital Tecnologia na Pequena Empresa − TPE, de 2002, a editora criou um projeto para produzir dez títulos clássicos da literatura brasileira em Português- Libras no suporte livro com CD-ROM. O trabalho se desenvolveu ao longo de três anos e contou com a parceria da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS), com o apoio do Ministério da Cultura e da SEESP/MEC, e com patrocínio da empresa IBM por meio da Lei Rouanet. Durante sua execução, foi criado um ambiente virtual com um fórum de discussões para que professores de vários estados pudessem avaliar os CDs e enviar suas sugestões e críticas, uma vez que se tratava de um projeto experimental e inédito de adaptação de textos literários para a língua de sinais. Ao fim do processo, com todos os ajustes possíveis incorporados à edição dos CDs, foram adquiridos em 2006 pelo MEC 15 mil coleções, distribuídas em 8.315 escolas, beneficiando 36.616 alunos surdos de todo o Brasil e totalizando um investimentode 660 mil reais por meio da verba do PNBE (RAMOS, 2013). a produção do conhecimento no campo da educação especial 263 As discussões suscitadas por este projeto vinham ao encontro das reivindicações dos movimentos sociais que pleiteavam o acesso dos surdos à educação, com a presença de intérpretes de Libras em sala de aula e o ensino da língua portuguesa escrita como segunda língua, promovendo uma educação bilíngue. O decreto de 2005 supriu essa demanda ao incluir a língua de sinais como disciplina curricular nos cursos de licenciatura e a criação de cursos de graduação para a formação de professores de Libras. Ainda no ano de 2005, o edital do PNLD 2008 para obras de 5ª a 8ª série incluiu uma cláusula que mexeu com o mercado editorial: “O processo de adaptação, transcrição e impressão dos livros em braille, bem como dos livros em caracteres ampliados das obras adquiridas pelo FNDE, ficará a cargo dos detentores de direitos autorais” (BRASIL, 2005b, p. 11). O edital trazia apenas esta cláusula, sem especificar prazos, multas ou punições em caso de descumprimento. Não se sabe se houve uma possível negociação com MEC/FNDE para eximir os editores de tal obrigação, tampouco há registros sobre o pagamento de livros didáticos em braille nas relações de compras do FNDE. Esta cláusula não voltou a constar do demais editais do PNLD, nos fazendo concluir que o ônus pela produção dos livros em braille aprovados neste edital recaiu sobre o IBC, uma vez que a lista de obras impressas do instituto inclui o ano de 2008. Nos editais do PNBE e do PNLD publicados em 2006 não constam cláusulas sobre acessibilidade. Podemos inferir dois fatos que justifiquem essa ação: a contínua a produção do conhecimento no campo da educação especial264 produção de livros didáticos em braille pelo IBC, conforme vemos nas Tabelas 7 e 8; e a recente aquisição das obras de literatura em Libras. Outro fato relevante é que, no ano de 2006, a editora Arara Azul propôs ao MEC a produção de um livro didático em Libras, algo nunca realizado em nenhum país, segundo Ramos (2013). A obra escolhida foi Trocando ideias: alfabetização e projetos, da editora Scipione, inserida nas compras do PNLD 2008. Em 2007, foram distribuídos 16.500 exemplares da obra para alunos surdos das classes de alfabetização. um novo ciclo de mudanças A partir de 2008, novas diretrizes de acessibilidade surgem nos Programas do Livro. O edital do PNLD 2011, para aquisição de obras para os anos finais do Ensino Fundamental, incluiu a seguinte cláusula: 7.1 As editoras ficam autorizadas a realizar a produção e a distribuição das suas obras aprovadas, com vistas à educação especial, no formato Libras, diretamente ou mediante contratação de instituição parceira, com aquisição assegurada pelo FNDE no âmbito do PNLD 2011, sujeita a regulação e contratação específicas (BRASIL, 2008, p. 8). A inserção da cláusula de Libras, num primeiro olhar, parece ser uma conquista para a acessibilidade dos alunos surdos. Contudo, o que esta cláusula traz nas a produção do conhecimento no campo da educação especial 265 entrelinhas é a isenção de responsabilidade do MEC em fornecer tais livros às escolas, uma vez que remete ao modelo que vinha sendo desenvolvido pela editora Arara Azul. Ou seja, deixa a cargo das editoras produzir ou não livros didáticos em Libras, às suas próprias expensas, em conjunto com alguma instituição especializada na educação de surdos. Se tal produção ocorresse, o MEC/ FNDE garantiria a compra de tais obras. Não houve essa produção espontânea naquele ano, e os termos desta cláusula se mantiveram em todos os editais seguintes, incluindo o publicado em 2017. Nessa época, já estava em andamento a produção de mais alguns livros didáticos em Libras pela editora Arara Azul com aval do MEC. Em 2009 foi adaptada a Coleção Pitanguá, da editora Moderna, composta por livros de 1ª a 4ª série das disciplinas de Português, Matemática, História, Geografia e Ciências, totalizando vinte volumes. O ambicioso trabalho durou quase dois anos e contou com a participação de 24 profissionais surdos e ouvintes dos estados do Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Também incluídos no PNLD 2008, a entrega nas escolas ocorreu apenas no ano seguinte, quando a produção foi finalizada. Em 2011, foram adaptados quatro volumes da Coleção Porta Aberta, da editora FTD, com obras de 1º e 2º ano nas disciplinas de Português e Matemática; e no mesmo ano foram adquiridos pelo MEC 11 mil exemplares do Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue, publicado pela Edusp (RAMOS, 2013; BRASIL, 2015). Desde 2011 não houve novas publicações de livros didáticos em Libras. a produção do conhecimento no campo da educação especial266 Um detalhe importante no edital do PNLD 2011 (5ª a 8ª série) é que, ao incluir a cláusula de Libras, foi excluída a cláusula sobre a impressão em braille. Em 2008, já estava em fase de testes o software Mecdaisy, desenvolvido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro a partir do modelo norte-americano Daisy, que possibilita a geração de livros digitais falados e sua reprodução em áudio sintetizado ou gravado. Esse software, lançado oficialmente em 2009, foi criado como uma alternativa para os livros do Ensino Fundamental II, cuja impressão em braille é mais volumosa e custosa. No edital de livros de literatura também houve um fato marcante: em janeiro de 2008 foi publicado, no Diário Oficial da União, o PNBE Especial, para aquisição de “obras de orientação pedagógica aos docentes da Tabela 5 Livros didáticos e paradidáticos produzidos em Libras Disciplina Série 2006 2007 2009 2011 Total Biblioteca escolar 5ª a 8ª série 10 - - - 10 Alfabetização 1ª e 2ª série - 1 - - 1 Português 1ª a 4ª série - - 4 2* 6 Matemática 1ª a 4ª série - - 4 2* 6 Ciências 1ª a 4ª série - - 4 - 4 História 1ª a 4ª série - - 4 - 4 Geografia 1ª a 4ª série - - 4 - 4 Total 10 1 20 4 35 * Livros apenas para 1º e 2º anos. Fonte: Elaboração da autora a partir dos dados de Ramos (2013). a produção do conhecimento no campo da educação especial 267 educação especial bem como de obras de literatura infantil e juvenil para os alunos com necessidades educacionais especiais sensoriais” (BRASIL, 2008c, p. 69). Poderiam ser inscritos livros com textos em verso – poemas, quadras, parlendas, cantigas, trava-línguas, adivinhas; textos em prosa – pequenas histórias, novelas, contos, crônicas, textos de dramaturgia, memórias, biografias; livros de imagens e de histórias em quadrinhos. Os formatos acessíveis dispostos no edital eram braille, Libras, áudio e caractere ampliado, com previsão de aquisição de 180 obras, sendo 60 para Educação Infantil; 60 para Ensino Fundamental; e 60 para Ensino Médio, estando contemplados nessa quantidade os livros de orientação pedagógica. Neste programa, o processo de inscrição e avaliação das obras não é divulgado publicamente; os professores não participam da escolha dos livros – são os próprios avaliadores que selecionam as obras –; e a tiragem a ser comprada é determinada pelo FNDE/MEC com base no Censo Escolar. Em geral, os editais do PNBE são bastante disputados pelas editoras de paradidáticos, que produzem obras especialmente para a concorrência pública e usam seus diversos CNPJs para inscrever o maior número possível de títulos por selo editorial. Consequentemente, a quantidade de obras inscritas é sempre bastante superior à cota a ser comprada pelo MEC. Neste edital em particular, entretanto, somente 75 obras foram adquiridas, menos da metade pretendida pelo MEC. Por ter sido o primeiro edital de obras acessíveis, é possível que as editoras estivessem despreparadas, razão pela a produção