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Socialismo e suas historias peculiares Experiencias de um jovem brasileiro em Cuba Maikel Ramthun

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Prévia do material em texto

Socialismo	e	suas	histórias	peculiares
Experiências	de	um	jovem	brasileiro	em	Cuba
Maikel	Ramthun
Copyright	–	Direitos	autorais
Essa	obra	não	deverá	ser	reproduzida	ou	comercializada,	total	ou	parcialmente	sem	a	autorização	do
autor.
Disclaimer
Antes	 que	 comece	 o	 mimimi,	 quero	 deixar	 claro	 que	 o	 objetivo	 desse	 livro	 não	 é	 levantar	 bandeira
política	nem	corroborar	ou	refutar	fatos	históricos.	Tampouco	tenho	como	objetivo	julgar	ou	incriminar
quem	quer	que	seja.	Esta	obra	não	é	um	livro	de	história	ou	de	geografia,	sendo	as	datas	e	locais	exatos
dos	acontecimentos	pouco	importantes	neste	contexto.
Alguns	avisos	antes	de	começar:	se	você	pretende	ler	este	livro	pensando	em	discutir	política,	procure
outra	leitura.	Aqui	apenas	conto	algumas	experiências	que	vivi	quando	era	um	adolescente,	e	as	faço	de
acordo	ao	meu	ponto	de	vista	da	época.	Tentar	argumentar	e	discutir	 ideologias	e	posições	políticas	e
partidárias	 contando	 “causos”,	 seria	 demasiadamente	 raso.	 Antes	 que	 interpretem	 de	 forma	 errônea
achando	que	estou	sendo	ingrato	e	que	estou	cuspindo	no	prato	que	comi,	deixo	claro	que	ter	vivido	em
Cuba	foi	uma	das	experiências	mais	enriquecedoras	e	que	me	trouxe	mais	crescimento	em	toda	a	minha
vida.	Faria	tudo	de	novo.
Aos	 mais	 sensíveis,	 aviso	 que	 irei	 utilizar	 linguagem	 extremamente	 coloquial,	 e	 por	 vezes	 chulas.
Palavras	de	baixo	calão	estarão	presentes,	assim	como	gírias.	O	objetivo	de	ter	escrito	dessa	forma,	foi
incorporar	o	jovem	imaturo	que	eu	era	na	época	que	esses	relatos	foram	vividos.	Caso	você	se	incomode
com	este	tipo	de	linguajar,	posso	recomendar	meu	outro	livro:	O	médico	que	fingia	ser	fotógrafo.	Neste
eu	utilizo	um	palavreado	mais	formal.
A	primeira	parte	do	livro	pode	ser	um	pouco	maçante,	mas	foi	necessária	para	contextualizar	minha	ida
para	Cuba	 e	 como	 cheguei	 lá.	 Caso	 esteja	 entediado,	 não	 desista	 da	 leitura,	 pule	 ao	 capítulo	 2	 onde
começo	a	contar	algumas	histórias.	Penso	que	você	irá	gostar.
Por	último,	 todas	as	histórias	aqui	contadas	são	reais	e	vividas	por	mim	nos	cinco	anos	que	morei	em
Cuba,	 porém,	 tomei	 a	 liberdade	 de	 modificar	 e	 omitir	 alguns	 nomes,	 lugares	 e	 situações,	 já	 que	 a
exposição	exata	dos	eventos	e	das	pessoas	poderia	trazer	um	grande	prejuízo	a	vários	amigos.
Quem	já	viveu	em	Cuba,	sabe	do	que	estou	falando.	Segue	o	jogo.	
Sumário
Disclaimer
Propaganda
Mexendo	os	pauzinhos
Dá	pra	voltar
Me	deixa	ficar	aqui
CAPITULO	2	–	Histórias	diversas
Cozinheiro	fora	da	lei
Pessoas	enjoadas	para	comer	são	suas	melhores	amigas
Salão	de	beleza	caseiro
Os	bagos	de	Fidel
Propaganda	enganosa	já	de	manhã
Os	eufemismos
E-mail	bisbilhotado
Velozes	e	furiosos
Puxando	ferro	(ou	ferrugem)
Minha	conversão
A	Odebrecht	é	aqui
Jeitinho	brasileiro...	ou	libanês
Alô,	sou	eu,	tchau
Não	vai	ter	golpe,	mas	teve
Pablo,	o	contrabandista
Os	eventos	de	fachada
Amigo	é	amigo
Cliente	inconveniente
O	papelzinho
Deixa	crescer!
Os	leões	em	cima	da	carne
Saudade	do	Brasil?
Nossa	vã	filosofia
Corra	Lola,	corra!!
Medicina	por	amor
A	advertência
Hans,	o	marido	da	mulher	do	Pepe
Dá-me	uma	televisão,	e	eu	te	levarei	para	onde	queiras
A	lei	foi	feita	pra	se	cumprir
Ronc	Ronc
Verdades	inconvenientes
Voldemort
Melhor	matar	do	que	discordar
Salvando	vidas
Criatividade
Hello	darkness	my	old	friend
Paraíso	proibido
Prisão	ao	ar	livre
Complexo	de	inferioridade
Taxista	amigo	da	família
Não	força,	vai
Unanimidade
É	penta!!
As	motos	“doadas”
Instrumento	de	trabalho
Complemento	de	renda
Nem	tudo	era	ruim
Considerações	finais
Sobre	o	autor
Me	segue	lá
Propaganda
Lá	estava	eu	com	dezoito	anos	recém	completados,	gol	bolinha	na	garagem,	namorada	gatinha,	festa	com
os	 amigos	 todo	 final	 de	 semana.	O	que	mais	 eu	 poderia	 querer?	Queria	 começar	 logo	 a	 faculdade	 de
medicina.	Acontece	que	eu	só	fui	decidir	que	queria	fazer	medicina	lá	nos	48	do	segundo	tempo.	Aí	meu
amigo,	você	pode	ser	o	cara	mais	gênio	do	mundo,	mas	se	não	sentou	a	bunda	na	cadeira	e	comeu	os
livros	durante	pelo	menos	um	ano,	não	tem	chances	de	passar.	E	foi	o	que	aconteceu	no	final	do	terceirão.
Decidi	tarde,	e	tomei	nabo	nas	provas	de	vestibular.	Em	alguns	fiz	média	para	passar	nos	outros	cursos.
Grande	porcaria,	todo	mundo	que	não	passa	em	medicina	fala	a	mesma	coisa:	“ah,	se	fosse	engenharia	de
não	sei	o	que	eu	passava”.
Bom,	desde	moleque	eu	tinha	o	sonho	de	morar	fora	do	Brasil.	Como	meus	pais	não	tinham	grana	para	me
bancar	 um	 intercâmbio,	 esse	 sonho	 ficou	 ali	 guardado	 durante	 um	 bom	 tempo.	 Eis	 que	 quando	 eu	 ia
começar	o	cursinho	pra	valer,	dessa	vez	sabendo	o	que	queria	da	vida,	surge	uma	reportagem	no	globo
repórter	falando	sobre	a	maravilhosa	medicina	de	Cuba.	Cara,	que	negócio	fenomenal.	Um	país	daquele
tamanho,	 oprimido	 pelos	 EUA,	 conseguindo	 encontrar	 a	 cura	 de	 uma	 porrada	 de	 doenças	 fodas	 que
castigavam	muita	gente.	Pensei	comigo.	Eu	quero	estudar	nesse	lugar.
Mexendo	os	pauzinhos
Fui	conversar	com	meu	velho	sobre	esse	sonho	de	estudar	 fora.	Na	 real,	 só	comentei	com	ele	sobre	a
reportagem	 que	 tinha	 visto	 na	 TV,	 mas	 na	 época	 nem	 imaginava	 que	 estudantes	 estrangeiros	 podiam
estudar	lá.	Aí	sabe	aqueles	negócios	que	parecem	que	eram	pra	ser?	Aquelas	paradas	de	destino,	sei	lá.
A	filha	de	um	amigo	do	meu	pai	já	estava	no	segundo	ano	de	medicina	em	Cuba.	Na	hora	implorei	pra	ele
conversar	com	esse	amigo	e	descobrir	como	funcionava	toda	a	burocracia	para	que	eu	também	pudesse
meter	o	pé	na	estrada	e	vazar	do	Brasil.
Talvez	você	me	pergunte:	por	que	você	resolveu	largar	uma	vida	mansa	no	Brasil	para	ir	embora	para
aquela	porcaria	de	país?	Bom,	primeiramente,	como	eu	havia	dito,	era	um	sonho	estudar	fora.	Segundo,
na	época	do	cursinho,	uns	dois	caras	me	procuraram	na	porta	daquelas	empresas	que	organizam	viagem
para	vestibular,	me	oferecendo	vagas	em	diversas	universidades	do	país.	Cheguei	a	conversar	com	um
dos	 malucos,	 e	 ele	 tinha	 um	 baita	 esquema.	 Um	 dos	 esquemas	 consistia	 em	 escutas	 eletrônicas
sofisticadas,	 (os	 dois	 filhos	 desse	 cara	 estudavam	 medicina	 e	 passaram	 no	 vestibular	 desse	 jeitinho
bacana),	outro	método	era	através	de	laranja,	que	falsificava	uma	identidade	e	se	passava	por	você	para
fazer	a	prova.	Fiquei	com	raiva	de	tudo	aquilo	e	no	final	das	contas	falei	que	não	tinha	interesse.	Lembro
até	hoje	de	ter	dito	ao	meu	pai	o	seguinte:	pai,	se	eu	fizer	um	negócio	desses,	nunca	vou	me	sentir	feliz,
vou	sempre	ter	a	sensação	de	que	sou	uma	fraude.
Não	tô	contando	isso	pra	que	vocês	pensem	que	eu	era	um	bastião	da	ética.	No	meio	do	livro	eu	até	vou
mostrar	que	já	fiz	um	monte	de	cagadas.	Mas	quando	se	tratava	de	estudo,	eu	era	cabreiro	até	na	hora	de
passar	cola.
Por	essas	e	outras	resolvi	que	não	queria	mesmo	saber	de	estudar	um	ano	inteiro	para	o	vestibular,	com
aquela	sensação	de	estar	sendo	trouxa	e	passado	para	trás	naqueles	esquemas	mirabolantes.
Para	 os	 burros	 que	 já	 devem	 estar	 de	 mimimi:	 eu	 sei	 que	 esses	 esquemas	 são	 a	 minoria	 dos	 casos.
Inclusive	hoje	sou	professor	de	medicina	de	uma	universidade	pública	bem-conceituada,	e	conheço	meus
alunos	e	o	tanto	que	ralaram	para	passar	na	prova.	Então,	larga	o	mimimi	e	vamos	que	vamos.
Voltando	ao	assunto	de	mexer	os	pauzinhos	para	que	eu	fosse	para	Cuba,	fui	atrás	dos	requisitos,	curso	de
espanhol,	 papelada	 e	 todas	 as	 demais	 burocracias.	 Tenho	 uma	 relativa	 facilidade	 para	 idiomas,	 aliás,
acredito	 que	 isso	 se	 deva	 ao	 fato	 de	 ser	 tagarela.	 Preciso	 falar	 rápido	 e	 falar	muito	 sempre.	 Fiz	 um
intensivão	 no	 espanhol,	 fazia	 aulas	 duas	 vezes	 por	 dia,	 cinco	 dias	 por	 semana.	Nesse	meio	 tempo	 ia
mexendo	 com	 a	 papelada	 (na	 época	 não	 existia	 esse	 negócio	 que	 tem	hoje	 em	dia	 de	 precisar	 ser	 de
algum	movimento	social	ou	de	algum	partido	de	esquerda).	Até	que	um	dia	chegou	uma	carta	lá	em	casa
dizendoque	eu	havia	sido	aprovado	e	que	começaria	a	estudar	medicina	no	tão	sonhado	país.	Show	de
“buela”!
Dá	pra	voltar?
Chegou	o	dia	de	ir	embora.	Meu	pai	foi	até	Guarulhos	comigo	e	confesso	que	foi	bem	foda	me	despedir.
O	voo	da	Cubana	de	Aviación	era	famoso	pelos	aviões	velhos,	pelo	atendimento	ruim,	pelas	comissárias
de	bordo	mal-educadas	e	por	ostentar	o	título	de	segunda	companhia	aérea	mais	perigosa	do	mundo.	Que
orgulho.	Passei	a	viagem	pensando	que	eu	poderia	entrar	para	a	história	como	um	dos	que	participou	da
conquista	do	título	de	primeira	companhia	aérea	mais	perigosa.	É	tetra!!!
Quando	cheguei	no	aeroporto	de	Havana,	o	primeiro	choque	que	tomei	foi	com	o	calor	infernal	que	fazia,
a	despeito	do	ar	condicionado.	O	segundo	choque	foi	com	o	espanhol	 rápido	e	difícil	de	entender	dos
caras.	Na	minha	 cabeça	mandei	meu	 professor	 de	 espanhol	 praquele	 lugar,	 já	 que	 aquele	 dissimulado
vivia	me	elogiando	nas	aulas,	dizendo	que	meu	espanhol	era	fantástico.
Ao	 sair	 da	 zona	 de	 desembarque,	 fui	 abordado	 por	 uma	 penca	 de	 cubanos,	 cada	 um	me	 pedindo	 uma
coisa,	e	outros	me	oferecendo	transporte.	Lembro	que	um	dos	caras	me	pediu	um	sabonete.	Nessa	hora	eu
olhei	 para	 trás	 e	 tive	 vontade	 de	 voltar	 correndo.	O	que	 não	 adiantaria	 já	 que	 os	 voos	 da	Cubana	 de
Aviación	para	o	Brasil	só	aconteciam	uma	vez	por	semana.	Se	um	parente	fosse	morrer	no	Brasil,	você
tinha	que	avisar	o	cara	pra	não	fazer	isso	de	sábado	a	quarta.	Já	que	só	tinha	voo	de	volta	na	sexta.
Bom,	 fui	devidamente	 instruído	a	procurar	uma	cubana	que	era	meio	que	chefona	dos	estrangeiros	que
estudavam	 em	 Cuba.	 Seu	 nome	 era	 Carmen	 Maria.	 Não	 foi	 muito	 difícil	 de	 encontrá-la,	 já	 que	 se
destacava	no	aeroporto	uma	senhora	negra,	acima	do	peso,	com	um	batom	vermelho	bem	forte,	rodeada
de	estrangeiros	que	lhe	entregavam	presentes.	Desconfiei	daquela	galera	toda	entregando	mimos	para	ela,
enquanto	 o	 idiota	 aqui	 estava	 de	 mãos	 vazias.	 Foi	 ali	 que	 percebi	 que	 mesmo	 no	 país	 socialista,	 o
esquema	de	propina	e	agrados	funciona	de	forma	até	mais	forte	do	que	no	Brasil.	Quando	me	apresentei
sem	nenhum	presente	na	mão,	ela	me	olhou	com	uma	cara	feia,	procurou	meu	nome	na	lista	e	me	deu	uma
má	notícia:	o	carro	que	me	 levaria	para	a	cidade	onde	eu	 iria	morar,	 já	 tinha	saído.	Beleza	né?	Eu	 lá
naquele	 calor	 dos	 infernos,	 sem	 conhecer	 ninguém,	 com	 uma	 porrada	 de	 gente	 me	 pedindo	 coisas,
descubro	que	fui	abandonado	no	aeroporto.
Bom,	não	podiam	me	deixar	ali	plantado,	então	me	colocaram	em	um	“ônibus”	e	me	mandaram	para	outro
estado	junto	com	uma	galera	de	vários	países.	Escrevi	ônibus	entre	aspas	porque	o	negócio	era	feio.	Era
um	ônibus	velho,	com	um	furo	no	piso	que	dava	pra	ver	o	asfalto,	com	bancos	de	plástico	e	metal	bem
piores	do	que	esses	ônibus	urbanos	que	temos	nas	cidades	brasileiras.	Pior,	o	desgraçado	não	passava	de
50km/h	 e	 estragou	 três	 vezes	 durante	 a	 viagem.	O	 trecho	 de	 281	 quilômetros	 que	 percorremos,	 durou
umas	10	horas.
Enquanto	percorríamos	a	estrada,	 eu	 só	via	outdoors	com	propaganda	socialista	enaltecendo	os	heróis
nacionais	e	mato,	muito	mato.	As	poucas	construções	avistadas	estavam	caindo	aos	pedaços.	Era	tudo	tão
diferente	daquela	reportagem	do	globo	repórter	que	eu	só	conseguia	repetir	uma	frase	na	minha	cabeça:	o
que	é	que	estou	fazendo	aqui.
Me	deixa	ficar	aqui
Cheguei	na	universidade,	que	não	era	aquela	que	eu	iria	ficar.	Dividi	o	quarto	com	dois	caras.	Um	deles
se	chamava	Adolfo,	e	foi	com	quem	eu	me	identifiquei	logo	de	cara.	O	outro,	se	chamava	Ricardo,	era	um
caipirão	metido	a	besta	daqueles	que	tem	papai	fazendeiro	e	adora	meter	uma	marra.	Não	preciso	dizer
que	com	ele	eu	não	fiz	muita	questão	de	puxar	assunto.
O	 quarto	 da	 universidade	 era	 parecido	 com	 uma	 cela	 de	 presídio.	 Tinha	 duas	 camas	 beliches,	 um
chuveiro	 (melhor	 dizendo,	 um	 cano	 na	 parede)	 e	 duas	 paredes	 finas	 que	 te	 cobriam	 até	 o	 peito.
Privacidade	zero.	Mas	vou	confessar	uma	coisa,	apesar	de	ser	um	quarto	meio	ruim,	eu	estava	numa	vibe
revolucionária	e	no	fundo	achava	tudo	maravilhoso.	No	outro	dia	conhecemos	um	pouco	da	universidade,
então	 fui	 falar	 com	 uma	 das	 chefonas	 para	 que	 conversasse	 com	 a	 Carmen	 Maria	 pedindo	 uma
autorização	 para	 poder	 ficar	 por	 lá	mesmo,	 já	 que	 eu	 havia	me	 enturmado	 e	 havia	 gostado	 do	 lugar.
Lembra	do	único	estrangeiro	que	não	levou	presente	pra	ela?	Pois	é,	esse	imbecil	sou	eu.	Óbvio	que	a
Carmen,	madrinha	de	todos	os	estrangeiros	(que	pagavam	“pedágio”)	cagou	para	meu	pedido,	e	naquela
mesma	manhã	um	carro	 russo	da	década	de	70	veio	me	pegar	na	 faculdade.	Lá	vou	eu	para	mais	uma
viagem	interminável.
CAPITULO	2	–	Histórias	diversas
Depois	de	tanto	blábláblá	introdutório,	afinal,	eu	precisava	pelo	menos	dar	uma	pincelada	para	explicar
como	fui	parar	lá,	aqui	começo	com	as	histórias	que	pude	viver	e	presenciar	durante	os	cinco	anos	que
morei	em	Cuba.
Mais	uma	vez	reforço	que	alguns	nomes	serão	mudados,	assim	como	os	lugares	que	ocorreram.	Os	dados
políticos	históricos	e	geográficos	oficiais	vocês	podem	ler	na	Wikipédia	ou	em	qualquer	outro	veículo	de
comunicação.	Aqui	 começarei	 a	 relatar	 as	 coisas	 engraçadas,	 tristes,	 vergonhosas	 e	 peculiares	 que	 eu
pude	presenciar,	e	a	narrativa	baseia-se	no	meu	ponto	de	vista	unicamente.	Vamos	comigo!
Cozinheiro	fora	da	lei
Quando	eu	vinha	de	férias	para	o	Brasil,	uma	das	coisas	que	eu	fazia	era	encher	duas	malas	com	comida
para	levar	para	Cuba.	Lá	a	comida	era	escassa	mesmo	para	nós	estrangeiros	que	pagávamos	pela	nossa
estadia	e	alimentação.	Jantávamos	lá	por	seis	da	tarde,	que	era	o	horário	que	voltávamos	do	hospital	ou
da	 faculdade	morrendo	 de	 fome,	 e	 lá	 pelas	 dez	 da	 noite,	 enquanto	 estávamos	 estudando,	 o	 estômago
reclamava.	Aí	você	tinha	algumas	opções:	pegar	a	bicicleta	e	ir	até	um	posto	de	gasolina,	em	uma	loja	de
conveniências,	 e	 pagar	 um	 valor	 absurdo	 em	 um	 pão	 borrachudo	 esquentado	 no	 micro-ondas	 (só
lembrando	que	na	 época	 essas	 lojas	de	 conveniência	 só	vendiam	a	dólar	 americano,	 e	nosso	 real	 não
valia	grande	coisa),	ou	você	podia	passar	 fome.	O	que	eu	 fazia?	Além	de	 sonhar	com	a	maravilha	da
comida	 delivery	 existente	 nos	melhores	 países	 capitalistas,	 eu	 cozinhava	 um	dos	 trocentos	 pacotes	 de
miojo	que	eu	levava	na	mala.	Tínhamos	um	daqueles	“rabo	quente”	para	ferver	a	água,	e	cozinhávamos
no	chão	do	quarto	mesmo.	Esse	tipo	de	dispositivo	altamente	tecnológico	era	proibido	em	Cuba,	já	que	a
energia	lá	era	racionada.	Mas	a	fome	me	transformou	em	um	gângster,	e	eu	cometia	essa	ilegalidade	com
muita	frequência.
Cuba	me	transformou	em	criminoso.
Pessoas	enjoadas	para	comer	são	suas	melhores	amigas					
Saca	só	como	funcionava	o	esquema	de	comida	lá	na	casa	dos	estudantes	estrangeiros:	de	manhã,	serviam
um	pão	minúsculo	(e	ruim,	nada	nem	perto	do	pãozinho	francês	da	potencia	capitalista	chamada	Brasil),
com	um	pouco	de	manteiga,	e	uma	xicara	de	café	com	leite.	O	leite	utilizado	nesse	café,	era	em	pó.	Só
que	eles	diluíam	muito	pouco	leite	para	um	caminhão	pipa	de	água.	Com	o	café	era	a	mesma	coisa.	Então
o	que	você	tinha	na	verdade	era	quase	um	“café	homeopatia”.	O	bagulho	vinha	tão	diluído	que	dava	pra
ver	o	fundo	da	xícara.	O	café	da	manhã	era	esse	e	ponto	final,	não	dava	pra	repetir	o	pão,	nem	o	café	com
leite.	Dose	única	por	pessoa.
Aí	depois	desse	banquete,	pegávamos	a	bicicleta	e	pedalávamos	uns	quatro	quilômetros	até	o	hospital.
Lá	no	hospital	evoluíamos	os	pacientes,	passávamos	visita	com	o	professor,	tudo	normal	como	manda	o
figurino	 de	 uma	 faculdade	 de	 medicina.	Meio	 dia,	 pegávamos	 a	 bike	 outra	 vez,	 e	 mandávamos	 mais
quatro	quilômetros	até	a	casa	dos	estudantes	estrangeiros	para	almoçar.	O	nível	de	fome	era	do	tipo	“se
mexer	 comigo	 te	mato	 esfaqueado”.	Aí	 o	 almoço	 era	mais	 ou	menos	 assim:	Um	prato	 com	 feijão	 sem
tempero,arroz	duro	com	pedaços	de	pedra,	um	ovo	 frito.	Às	vezes	o	ovo	 frito	era	 substituído	por	um
pedaço	de	presunto.	Ou	às	vezes	por	um	pequeno	pedaço	de	frango.	Cara,	aquilo	ali	para	um	jovem	de
dezoito	anos	que	já	tinha	pedalado	de	manhã	e	já	tinha	trampado,	era	só	um	aperitivo.	Saíamos	da	mesa
com	fome.	Depois	do	almoço	o	esquema	se	repetia:	bike	até	o	hospital,	aula	a	 tarde	toda,	e	às	seis	da
tarde	bike	de	novo	até	a	casa	para	jantar.	A	janta?	Igualzinha	o	almoço.	Não	à	toa	no	meu	primeiro	ano	de
faculdade	eu	voltei	para	o	brasil	com	13	quilos	a	menos.
Conforme	foi	passando	o	tempo,	eu	descobri	uma	coisa	importantíssima:	tinha	umas	gurias	lá	na	casa	que
eram	enjoadas	para	comer.	Então	o	esquema	era	simples,	você	sentava	do	lado	delas	e	ficava	igual	um
abutre.	Assim	que	elas	davam	umas	garfadas	na	comida,	e	faziam	cara	feia,	você	tinha	alguns	centésimos
de	 segundo	 para	 perguntar:	 você	 não	 vai	 comer	 essa	 ervilha?	 Bingo,	 era	 a	 forma	 de	 você	 ao	menos
ingerir	um	pouco	mais	de	calorias.	Eu	já	tinha	até	minha	fornecedora	oficial	de	comida,	uma	menina	gente
finíssima	(e	bem	magrela)	chamada	Jane.	Minha	maior	tristeza	foi	quando	a	Jane	começou	a	namorar	um
dos	caras	da	casa,	e	aí	a	comida	acabava	indo	pra	ele.	Quem	mandou	eu	ter	sido	lerdo.	Se	soubesse	que
meu	 esquema	 de	 comida	 iria	 acabar	 de	 uma	 hora	 pra	 outra,	 eu	 tinha	 pedido	 ela	 em	 casamento	 já	 no
primeiro	ano.	Vacilei.
Salão	de	beleza	caseiro
Um	belo	dia	eu	estava	chegando	da	faculdade	um	pouco	mais	cedo	do	que	o	habitual,	quando	entro	no
meu	quarto	e	vejo	uma	das	funcionárias	da	casa	dos	estudantes	lavando	o	cabelo	na	minha	pia.
Na	hora	ela	 ficou	 toda	sem	jeito,	e	me	deu	um	migué	dizendo	que	estava	 lavando	o	cabelo	ali,	pois	o
administrador	da	casa	não	permitia	que	lavassem	o	cabelo	no	banheiro	dos	funcionários.
Sorri	pra	ela,	falei	que	não	tinha	problema	nenhum,	e	que	ela	podia	lavar	o	cabelo	lá	numa	boa.	Inclusive
saí	do	quarto	para	que	ela	ficasse	à	vontade.
Na	minha	ingenuidade	eu	não	me	toquei	do	que	acabava	de	presenciar.
Um	 tempo	depois	 percebi	 que	meu	xampu	 estava	 bastante	 “aguado”.	 Sacou	qual	 foi?	Os	 coitados	 dos
cubanos	não	tinham	grana	para	comprar	xampu,	já	que	só	eram	vendidos	em	dólar	nas	lojas.	Um	adendo:
mas	qual	é	a	moral	dessas	 lojas	vendendo	 tudo	caro	e	em	dólar,	 já	que	os	cubanos	não	podiam	pagar
pelos	produtos?	Bom,	Cuba	fica	pertinho	da	Flórida,	o	que	fez	com	que	milhares	e	milhares	de	cubanos
se	 arriscassem	nas	 águas	 perigosas	 e	 infestadas	 de	 tubarões	 para	morar	 em	 solo	 americano.	Cada	 um
desses	desertores	visita	a	família	regularmente,	e	traz	o	bolso	recheado	de	dólares	para	gastar	com	eles
na	ilha.	Essas	 lojas	funcionam	mais	ou	menos	como	uma	forma	de	 trazer	dólares	(dinheiro	sujo	 ianque
capitalista)	de	volta	a	Cuba	desses	malditos	traidores	da	revolução	que	foram	embora	do	melhor	país	do
mundo.	Bom,	voltando	ao	assunto	do	xampu,	a	pobre	funcionária	que	não	tinha	condições	de	comprar	seu
próprio	 xampu,	 furtava	 o	 meu	 e	 lavava	 o	 cabelo	 escondida.	 Triste,	 mas	 o	 sistema	 de	 lá	 acabou
transformando	 grande	 parte	 da	 população	 em	 contraventores.	A	 única	 coisa	 que	 eu	 pude	 fazer	 depois
dessa,	foi	dar	um	xampu	de	presente	para	a	mulher.	Eu	nem	tinha	muito	cabelo	mesmo.
Os	bagos	de	Fidel
Essa	para	mim	é	uma	das	histórias	mais	icônicas	que	eu	pude	vivenciar	lá	em	Cuba.	E	olha	que	vi	muita
bizarrice	 por	 lá.	 Acontece	 que	 essa	 história	 que	 irei	 contar,	 reflete	 mais	 ou	 menos	 a	 hipocrisia
generalizada	que	assola	o	país.
Era	 uma	 tarde	 quente	 e	 ensolarada,	 e	 lá	 estávamos	os	 alunos	 da	 faculdade	 em	um	dos	muitos	 eventos
políticos	que	éramos	obrigados	a	participar	(contarei	mais	sobre	essa	obrigação	em	outras	histórias	do
livro).	 O	 mimimi	 era	 sempre	 o	 mesmo.	 Povo	 metendo	 o	 pau	 nos	 Estados	 Unidos,	 exaltando	 a	 ilha
maravilhosa	de	Cuba,	e	falando	sobre	mil	e	uma	teorias	da	conspiração,	sobre	como	Fidel	escapava	de
todas	as	tentativas	de	assassinato,	e	como	ele	era	fodão.
Naquele	dia,	uma	amiga	da	minha	turma,	que	era	uma	menina	sempre	envolvida	com	as	coisas	do	partido
e	muito	socialista	e	revolucionária,	estava	com	o	microfone	no	alto	do	palanque	discursando.	Seu	nome
era	desses	comuns	entre	os	cubanos	de	sua	idade,	nomes	começados	com	“Y”.	Para	quem	não	conhece,
fica	a	dica	do	blog	“Generacion	y”	da	escritora	e	blogueira	Yoani	Sanchez.	Voltando	ao	assunto,	lá	estava
minha	amiga	“y”	proferindo	um	monte	de	baixarias	contra	os	imperialistas	estadunidenses,	e	exaltando	o
homem	da	barba	(e	não	era	Papai	Noel).	Nunca	esqueço	da	frase	que	ela	soltou	aos	berros,	chamando	os
americanos	 pra	 porrada,	 que	quase	 se	 ouvia	 em	Miami:	 “pueden	venir,	 pues	 a	 nuestro	 comandante,	 le
roncan	 los	 cojones”.	 Pra	 quem	não	manja	muito	 desse	 palavreado	 chulo,	 ela	 falou	 algo	que	 no	Brasil
significaria	 mais	 ou	 menos	 o	 seguinte:	 que	 os	 americanos	 podiam	 cair	 pra	 dentro,	 porque	 nosso
comandante	 Fidel	 era	 um	 cara	 macho	 que	 botava	 o	 pinto	 na	 mesa.	 Aplausos	 se	 ouviram,	 gritaria.	 A
menina	era	um	mito	dentre	os	jovens	comunistas	de	Cuba.
Tá	bom,	mas	porque	você	disse	que	essa	história	era	uma	das	mais	icônicas?	Simples,	porque	hoje	em
dia	essa	minha	amiga	“Y”,	mora	em	Miami	com	a	família.	Se	rendeu	ao	império	maldito.	Inclusive	está
no	 Facebook	 e	 adora	 postar	 fotos	 dos	 filhos	 participando	 das	 tradições	 ianques	 como	 thanksgiving	 e
halloween.
Vejam,	não	estou	recriminando	a	menina.	Acho	que	a	melhor	coisa	que	ela	fez	na	vida	foi	ter	caído	fora
daquele	inferno	cubano.	O	ponto	onde	quero	chegar	aqui,	é	o	da	hipocrisia	que	a	grande	maioria	vivia.
Assim	 como	 ela,	 conheci	 vários	 “comunistas”	 que	 fugiram	 de	 lá	 na	 primeira	 oportunidade.	 Saíram
debaixo	dos	cojones	de	Fidel	e	correram	para	as	terras	do	tio	Sam.			
Propaganda	enganosa	já	de	manhã
Durante	 a	 faculdade,	 ficamos	 conhecendo	 um	 tal	 de	 “matutino”,	 que	 basicamente	 consistia	 em	 uma
pequena	reunião	rápida	com	os	alunos	daquela	turma,	para	que	um	deles	comentasse	sobre	as	principais
notícias	do	dia.	Então	o	negócio	funcionava	assim:	chegávamos	ao	hospital,	nos	reuníamos	primeiro	com
o	 professor	 para	 lista	 de	 presença,	 organizar	 as	 tarefas	 do	 dia	 e	 discutir	 inicialmente	 os	 casos	 da
enfermaria,	antes	de	irmos	examinar,	evoluir,	prescrever	e	fazer	as	discussões	de	caso	à	beira	do	leito.
Assim	que	terminávamos	essa	parte	importante,	vinha	o	lazarento	do	matutino.	Ah,	mas	por	que	você	está
falando	mal	de	uma	coisa	boa?	Afinal,	informação	é	algo	importante.	Então,	tô	falando	mal	porque	aquela
droga	 daquele	matutino	 nada	mais	 era	 do	 que	 uma	 lavagem	 cerebral.	Assim	 como	o	 noticiário	 na	TV
cubana	parecia	um	passeio	na	Disney,	já	que	tudo	o	que	se	falava	era	das	maravilhas	do	pais	e	de	como	o
governo	 era	 foda,	 o	 matutino	 seguia	 a	 mesma	 linha.	 Noticias	 distorcidas,	 falava-se	 mal	 dos	 EUA,	 e
lambia-se	as	botas	de	Fidel	Castro.
Aquilo	me	 irritava	 profundamente,	 já	 que	 eu	 conseguia	 acesso	 à	 um	 e-mail	 diário	 com	 as	 principais
manchetes	da	CNN,	e	via	que	aquela	porcaria	toda	era	a	maior	balela.	E	olha	que	a	CNN	ainda	tem	uma
fama	de	ser	simpatizante	dos	regimes	de	esquerda.
Bom,	um	dia	foi	a	minha	vez	de	dar	as	notícias,	e	eu	fiz	questão	de	mandar	umas	três	manchetes	da	CNN
que	não	foram	muito	bem	vistas	pelos	X9	da	turma	(falarei	sobre	os	X9	em	outras	histórias).	Resultado?
O	X9	principal	encerrou	o	matutino	abruptamente,	 ficou	vermelho	de	raiva,	e	me	proibiu	de	participar
novamente	desse	importantíssimo	evento	matinal.
Fiquei	 com	 raiva	do	cara,	 e	 tive	vontade	de	 sair	na	mão	com	ele.	Mas	no	 final	das	contas,	depois	de
muito	tempo	eu	entendi	que	ele	não	fez	aquilo	por	amor	à	revolução,	nem	porque	ele	acreditava	naquela
baboseira,	mas	sim	porque	ele	se	cagou	nas	calças	de	medo.	Lá	em	Cuba,	é	melhor	matar	alguém	do	que
falar	mal	do	governo.	Aí	se	coloca	no	lugardo	maluco	que	foi	incumbido	de	ser	o	x9	da	turma.	Chega	um
estrangeiro	engraçadão	e	começa	a	cometer	uma	das	maiores	atrocidades	que	poderiam	ser	cometidas	lá
naquele	país:	usar	a	liberdade	de	expressão.	O	maluco	vai	deixar	quieto?	Claro	que	não,	era	o	pescoço
dele	e	não	o	meu	que	tava	em	jogo.
Fiquei	sabendo	que	esse	cara	também	vazou	de	Cuba.	E	para	minha	surpresa	ele	não	foi	para	a	Venezuela
e	nem	para	a	Coreia	do	Norte.	Quem	diria.
Os	eufemismos
Cuba	é	um	país	de	eufemismos.	Lá	palavras	como	ditadura,	liberdade	e	capitalismo	têm	significados	bem
diferentes	 do	 resto	 do	 mundo,	 e	 muitas	 expressões	 são	 mudadas	 para	 formas	 mais	 agradáveis	 aos
“ouvidos	da	revolução”.
Uma	das	vezes	que	isso	mais	me	deixou	com	embrulho	no	estômago,	foi	no	episódio	dos	cinco	agentes	de
inteligência	 cubanos	 que	 estavam	 nos	 Estados	 Unidos	 tentando	 se	 infiltrar	 em	 grupos	 anticastristas	 e
foram	descobertos.	Long	story	short,	os	caras	estavam	espionando	lá	no	EUA	a	mando	de	Fidel	Castro,	e
quando	 foram	 pegos,	 os	 julgamentos	 acabaram	 sendo	 muito	 duros,	 inclusive	 gerando	 críticas
internacionais.	A	despeito	de	tudo	isso,	os	caras	eram	espiões	e	ponto	final.	Acontece	que	em	Cuba,	ficou
proibido	 utilizar	 a	 palavra	 espião	 para	 este	 caso.	 “Espia”,	 que	 é	 a	 palavra	 em	 espanhol	 para	 esta
situação,	transformou-se	em	“los	héroes	prisioneros	del	império”.	Só	que	convenhamos,	é	bem	mais	fácil
falar	espião	do	que	“os	heróis	prisioneiros	do	império”.	Eis	que	o	idiota	aqui,	que	não	tem	lobo	frontal
funcionante	muitas	vezes,	e	que	costuma	perder	o	amigo	mas	não	a	piada,	fala	um	dia	na	frente	dos	X9	da
sala:	 ah,	 vocês	 viram	 as	 notícias	 dos	 espiões...	 eh...	 quer	 dizer...	 dos	 heróis	 prisioneiros	 do	 império
ontem?	 Cara,	 bastou	 essa	 brincadeirinha	 sossegada,	 que	 não	 fez	 mal	 a	 ninguém,	 pra	 merda	 tomar
proporções	maiores	do	que	eu	imaginava.
Na	hora	eu	nem	percebi	a	baita	da	cagada	que	eu	tinha	feito,	mas	uns	dias	depois,	voltando	pra	casa	de
bicicleta,	 vejo	 no	 sentido	 contrário	 também	 em	 sua	 bicicleta,	 um	 dos	X9	 do	 grupo	 (o	mais	 bonzinho
deles).	O	cara	 atravessou	a	pista	 com	a	bike	 e	me	 fez	parar.	Eu	não	entendi	direito	do	que	 se	 tratava
aquilo,	mas	o	que	aconteceu	em	seguida	foi	um	negócio	surreal.
De	 forma	 rápida	 e	 discreta,	 ele	 chegou	 do	 meu	 lado,	 no	 meio	 do	 canteiro	 central	 da	 rodovia	 onde
ninguém	 podia	 ouvir	 o	 que	 estávamos	 conversando,	 olhou	 para	 os	 dois	 lados	 rapidamente	 e	 me
interrompeu	enquanto	eu	o	estava	cumprimentando:	cara!!!	Eu	estou	voltando	agora	de	uma	 reunião	na
faculdade	 que	 foi	 convocada	 para	 te	 deportar	 do	 país.	 Por	 causa	 do	 teu	 bom	 histórico	 acadêmico,
resolveram	te	dar	mais	uma	chance,	mas	tá	todo	mundo	de	olho.	Veja	bem,	eu	entendo	tua	frustração	e	vou
te	dizer	uma	coisa.	Eu	também	odeio	esse	país,	e	acho	esse	sistema	uma	merda,	mas	eu	sei	que	a	única
forma	de	sair	daqui	é	ficando	quieto	e	obedecendo.	Então	vou	te	pedir	uma	coisa,	CALA	A	PORRA	DA
TUA	BOCA	e	para	de	falar	bosta	por	aí,	se	você	quiser	se	formar	médico!
Fiquei	estarrecido,	por	dois	motivos.	Um	pela	rapidez	com	que	eles	organizaram	uma	reunião	para	me
banir,	devido	a	uma	simples	brincadeira	idiota,	e	o	segundo	motivo	foi	por	ver	mais	um	dos	caras	que	eu
jurava	que	defendiam	aquela	hipocrisia	toda,	confessar	na	minha	frente	que	odiava	o	sistema	e	só	se	fazia
de	revolucionário	para	um	dia	fugir	de	lá.
A	partir	desse	dia	eu	me	 transformei	um	pouco	mais	em	cubano.	Engoli	minha	 liberdade	de	expressão
com	farinha,	e	calei	a	minha	boca.			
E-mail	bisbilhotado
Logo	que	 cheguei	 na	 ilha,	 uma	das	 coisas	que	 tentei	 desenrolar	 foi	 um	e-mail	 para	 falar	 com	a	minha
família,	já	que	as	ligações	telefônicas	eram	caríssimas,	não	existia	smartphone	nem	WhatsApp,	e	mesmo
que	existisse	eu	nunca	teria	acesso	já	que	em	Cuba	era	proibido	ao	cidadão	comum	ter	internet	em	casa.
Lógico	que	isso	era	uma	coisa	muito	boa	que	o	governo	fazia	pensando	no	bem-estar	de	seus	cidadãos,	já
que	 ao	 ter	 acesso	 a	 internet,	 estes	 poderiam	 entrar	 em	 sites	 e	 veículos	 de	 notícias	 que	mostrariam	 a
desgraça	do	mundo	capitalista,	e	isso	os	deixaria	triste.	Melhor	ficar	com	os	dois	canais	de	TV	estatais
que	passavam	só	contos	de	fadas	no	noticiário.
Bom,	conseguimos	um	e-mail	coletivo	para	todos	os	estudantes	estrangeiros	que	viviam	lá	na	época.	Para
acessá-lo	precisávamos	pegar	a	bike	e	ir	até	um	tal	centro	de	informações	que	era	possivelmente	o	único
lugar	 da	 cidade	 onde	 havia	 internet.	 Para	 que	 vocês	 tenham	 uma	 ideia,	 nem	 na	 faculdade	 tínhamos
internet.	Aliás,	não	existia	nem	máquina	de	xerox	na	faculdade.	Mas	isso	é	história	pra	daqui	a	pouco.
Então	íamos	a	esse	centro	de	informações	sempre	que	queríamos	ver	se	algum	familiar	havia	mandado	e-
mail.	Lá,	você	acessava	aquela	caixa	de	e-mail	coletiva,	e	pulava	os	que	não	eram	pra	você.	Se	quisesse
podia	até	ler	sobre	as	juras	de	amor	que	seu	colega	tinha	mandado	para	a	namorada	lá	em	outro	pais,	mas
não	fazíamos	isso.
Aliás,	nós	não	fazíamos,	mas	o	pessoal	do	centro	de	informações	sim.	Depois	de	um	tempo	morando	lá,
fomos	informados	que	todos	os	e-mails	que	recebíamos	eram	lidos	pelo	pessoal,	para	ver	se	não	havia
nada	 suspeito	 ou	 antirrevolucionário.	 Lá	 a	 coisa	 funcionava	 assim,	 onde	 quer	 que	 você	 fosse,	 tinha
alguém	de	olho.	Hoje	penso	que	deveria	ter	existido	naquela	época,	uma	versão	para	e-mail	do	“gemidão
do	WhatsApp”.	Pelo	menos	eu	ia	fazer	aqueles	caras	passarem	vergonha.
Velozes	e	furiosos
Teve	uma	vez	que	eu	me	senti	meio	rico	lá	na	ilha.	Foi	quando	minha	tia	e	minha	irmã	foram	me	visitar.
Foi	na	semana	de	férias	de	janeiro.	Aluguei	um	Fiat	Uno	azul,	mas	sem	escada	no	teto,	afinal,	não	queria
voar	né.	A	estrada	que	corta	o	país	é	bem	grande,	tem	três	pistas	na	maior	parte	do	tempo,	segundo	os
cubanos	 foi	 construída	 dessa	 forma	 para	 que	 aviões	 possam	 pousar	 em	 tempos	 de	 guerra.	 O	 negócio
apesar	de	largo,	é	bem	esburacado,	mas	mesmo	assim	dava	pra	usar	a	potência	daquela	máquina	chamada
Uno	Mille.
Foi	naquela	viagem	que	eu	virei	fugitivo	da	polícia	pela	primeira	vez	(sim,	teve	mais	de	uma,	vai	vendo
que	lá	pra	frente	eu	conto).	Estava	metendo	o	pau	no	Uno,	a	uns	145km/h,	quando	passei	por	um	policial.
Só	que	o	esquema	lá	é	diferente	daqui.	Os	caras	não	tinham	radar,	não	tinham	uma	forma	de	me	parar	em
um	posto	de	polícia	mais	 pra	 frente,	 e	 a	moto	que	o	 cara	 tinha	 era	velha	 e	 possivelmente	 estava	 com
pouca	gasolina.	Resultado?	Os	caras	tentam	te	parar	no	apito!	Sim,	o	maluco	fica	lá	escondido,	quando
você	passa	a	140	por	hora	ele	fica	soprando	o	apito	achando	que	você	vai	parar,	e	voltar	lá	pra	tomar
uma	multa.	Brother,	naquela	velocidade	da	luz	que	eu	tava	(entendam	minha	empolgação,	eu	só	andava	de
bike),	a	única	coisa	que	eu	via	era	o	vulto	do	policial	e	ouvia	o	apito	perdendo	força.	Ali	malandro,	era
pé	na	tábua	e	os	caras	nunca	mais	me	viam.	Me	senti	um	verdadeiro	criminoso.
Agora,	na	real,	tirando	a	parte	de	ser	criminoso	de	lado,	parar	para	um	policial	cubano	é	ter	a	certeza	do
cara	 te	esvaziar	a	carteira.	Ele	vai	 te	botar	um	 terror	danado,	a	hora	que	souber	que	é	estrangeiro	vai
fazer	de	tudo	para	conseguir	alguns	doletas.	Até	parece	um	outro	lugar	que	eu	conheço	bem.	
Puxando	ferro	(ou	ferrugem)
Teve	uma	época	que	eu	decidi	deixar	de	ser	frango,	e	resolvi	puxar	ferro	pra	ver	se	colocava	um	pouco
de	músculo	 na	minha	 carcaça.	 Imaginem	 um	 cara	 nada	 atlético,	 com	 um	 corpo	 ridículo,	 braços	 finos
iguais	dois	canudos,	pancinha	saliente	e	peitinhos	de	cadela	prenha.	Era	eu.
Através	dos	meus	contatos,	conheci	um	dos	caras	que	posteriormente	se	tornaria	um	dos	meus	melhores
amigos	de	toda	a	vida.	Esse	cara	empreendedor,	tinha	conseguido	uns	pedaços	de	ferro,	algumas	anilhas,
e	 acabou	 projetando	 e	montando	 sua	 própria	 academia	 clandestina	 nos	 fundos	 de	 casa.	 Era	 uma	 casa
extremamentesimples,	 onde	 viviam	 ele,	 a	 irmã	 e	 a	 mãe.	 Os	 quartos	 eram	 divididos	 por	 folhas	 de
compensado.	Casa	bem	pequena,	mas	tinha	a	vantagem	de	possuir	um	pátio	nos	fundos.
Bom,	na	academia,	apelidada	carinhosamente	por	nós	de	“No	genetics	Gym”,	já	que	a	galera	que	treinava
ali	tinha	uma	péssima	genética	para	fisiculturista,	tínhamos	alguns	aparelhos	rudimentares	transmissores
de	 tétano,	alguns	pesos,	um	chiqueiro	com	uma	porquinha	preta	 (sim,	dividíamos	espaço	com	ela)	que
conseguia	feder	mais	que	a	gente,	e	o	mais	legal	é	que	não	tínhamos	teto.	Sim,	treinávamos	sob	a	luz	do
sol,	ou	sob	a	chuva	dependendo	do	dia.	Pagávamos	2	dólares	por	mês	para	treinar	lá.
Aquilo	 sim	 era	 dedicação:	 todo	 mundo	 com	 comida	 racionada,	 sem	 suplementos,	 sem	 telhado	 na
academia,	sem	espelho	nas	paredes	pra	ficar	se	olhando,	sentindo	fedor	de	bosta	de	porco	no	ar.	O	dono
da	 academia	 que	 também	 fazia	 o	 papel	 de	 personal	 trainer,	 dizia	 na	 época	 que	 se	 o	 empresário	 e
fisiculturista	Joe	Weider	nos	visse	treinando,	possivelmente	iria	nos	resgatar	de	helicóptero	pois	ficaria
impressionado	com	nossa	garra.
Esse	meu	 amigo,	manjava	 tudo	 de	 treinos.	 Seu	maior	 arrependimento	 na	 vida	 foi	 o	 de	 ter	 amarelado
quando	 tinham	 planejado	 fugir	 para	 os	 Estados	 Unidos	 de	 balsa.	 Os	 amigos	 que	 foram,	 conseguiram
atravessar	o	mar	e	chegar	na	Flórida.	E	todos	eles,	até	os	de	Q.I.	menos	avantajado,	se	deram	bem	por	lá.
O	 que	 lhe	 consolava	 era	 que	 os	 amigos	 mandavam	 algumas	 revistas	 de	 fisiculturismo	 para	 que	 ele
pudesse	ficar	por	dentro	do	esporte.
O	grito	de	guerra	mais	pronunciado	lá	no	ginásio	era:	“Vai!!	Sem	comida!!”	Tínhamos	a	capacidade	de
transformar	a	desgraça	em	piada	e	até	mesmo	motivação.
Anos	depois,	já	pude	treinar	em	várias	academias	bacanas,	cheias	de	equipamentos	sofisticados,	e	sem	a
Peppa	Pig	para	dividir	o	espaço.	Mas	até	hoje	nunca	me	senti	tão	bem	e	tão	empolgado	para	treinar	como
naquele	lugar	sem	teto.		Aqueles	dois	dólares	mensais	que	eu	pagava	lá,	foram	muito	bem	gastos.
Minha	conversão
Lembro-me	bem	dos	fatos	que	fizeram	com	que	eu	me	convertesse.	Não	estou	falando	de	religião	(apesar
que	para	algumas	pessoas,	política	é	mais	 forte	que	crença	 religiosa),	Bom,	deixa	eu	me	explicar.	Fui
criado	em	uma	educação	de	esquerda.	Não	à	toa	escolhi	morar	em	cuba.	Nos	dois	primeiros	anos	eu	era
socialista.	Fã	do	Che	Guevara.	Amante	da	esquerda	e	a	porra	toda.	Fazia	parte	inclusive	de	uma	brigada
estrangeira	que	levava	o	nome	do	Che.	Vai	vendo.
O	que	acontece,	é	que	os	caras	conseguem	esconder	bem	durante	um	bom	tempo	todo	o	lixo	que	rola	por
lá.	Vejam,	eu	fui	me	decepcionar	com	o	socialismo	e	passar	a	não	acreditar	mais	nele,	no	terceiro	ano
vivendo	em	Cuba.
Entre	as	coisas	que	me	fizeram	sentir	uma	profunda	decepção	pelo	sistema,	e	que	já	descrevi	em	outras
histórias	desse	livro,	teve	uma	que	foi	talvez	a	gota	d’água,	e	vou	tentar	descrever.
No	 terceiro	ano	de	faculdade,	passamos	 todas	as	manhãs	do	ano	na	enfermaria	de	medicina	 interna	do
hospital,	cada	um	com	seus	pacientes.	Precisávamos	chegar	cedo,	conversar	com	os	pacientes	que	cada
um	 tinha	 ficado	 responsável,	 examinar,	 revisar	 a	 prescrição	 com	 o	 médico	 residente,	 escrever	 no
prontuário,	checar	os	exames,	etc.	Quando	era	um	paciente	novo,	era	um	Deus	nos	acuda,	pois	tínhamos
que	tirar	toda	a	história,	e	precisávamos	formular	pelo	menos	uma	hipótese	diagnostica	por	escrito	com
no	mínimo	três	diagnósticos	diferenciais,	que	tinham	que	ser	detalhados	também	por	escrito.	No	meio	da
manhã,	o	professor	chefe	da	enfermaria,	passava	visita	e	discutia	um	a	um	dos	casos	na	beira	do	leito	do
paciente.	 Foi	 naquele	 ano	 que	 eu	 me	 inclinei	 para	 a	 área	 clínica,	 pois	 achava	 aquela	 arte	 de	 fazer
diagnóstico	algo	muito	bacana.	Todo	esse	blábláblá	é	apenas	para	apresentar	a	vocês	a	minha	colega	de
turma,	Marcela	 (modifiquei	 o	 nome	 por	motivos	 que	 já	 citei	 anteriormente).	Marcela	 era	 uma	menina
bonitinha,	que	me	chamava	a	atenção.	Tinha	uns	traços	meio	árabes,	e	umas	pernas	fantásticas.	Pronto,	já
voltei	 ao	 foco	 do	 que	 estava	 escrevendo.	Marcela	 era	 uma	menina	meio	 negligente	 com	 a	 faculdade.
Chegava	atrasada	na	enfermaria,	 fingia	que	estava	 trabalhando	(essa	era	a	parte	que	mais	me	irritava),
correndo	 pra	 lá	 e	 pra	 cá	 com	 uma	 pilha	 de	 prontuários	 debaixo	 do	 braço,	 e	 sempre	 na	 hora	 das
discussões	à	beira	do	leito	ela	não	tinha	feito	nem	metade	do	trabalho	que	precisava.	Ela	era	preguiçosa,
só	que	sempre	tinha	uma	desculpa	pra	tudo,	nunca	assumia	a	culpa	e	nunca	tentava	melhorar.	Dentre	as
minhas	colegas	daquele	ano,	Marcela	era	a	mais	comunista	e	amante	do	regime,	o	que	era	motivo	de	riso
às	vezes,	até	mesmo	entre	as	amigas	cubanas.	Lembro	da	vez	que	ela	disse	que	Hugo	Chávez	era	lindo,	e
uma	das	amigas	falou:	lindo?	A	não	Marcela,	não	força	a	barra.
Lembro	dela	me	falando	uma	vez	de	um	evento	das	mulheres	comunistas,	com	aquelas	frases	clichês	e
batidas	que	a	gente	costumava	ouvir	na	TV	todos	os	dias.	E	numa	de	nossas	conversas,	ela	me	contou	que
a	mãe	trabalhava	para	o	partido	comunista	(eu	não	lembro	que	cargo	ela	tinha	na	época).	Até	aí	beleza.
Mas	 o	 que	 foi	 que	 a	Marcela	 disse	 ou	 fez,	 que	me	 levou	 a	 perder	 a	 crença	 no	 socialismo?	Bom,	 na
verdade	ela	não	fez	nada,	mas	uma	vez	eu	precisei	ir	até	sua	casa	para	pegar	um	livro,	e	foi	aí	que	eu	me
converti.	 Vejam,	 eu	 costumava	 frequentar	 a	 casa	 de	 vários	 amigos	 cubanos,	 e	 o	 que	 eu	 via,	 é	 que	 a
maioria	 deles	morava	muito,	muito	mal.	Salvo	os	que	 tinham	parente	 em	Miami,	 ou	os	que	viviam	na
ilegalidade,	a	maioria	morava	em	casebres	e	tinha	uma	TV	de	tubo	em	preto	e	branco.	A	mãe	da	Marcela
não	 tinha	parente	em	Miami,	mas	ela	“era	do	partido”.	Cara,	a	casa	da	menina	dava	de	dez	a	zero	em
qualquer	 residência	dos	meus	outros	amigos.	Geladeira	bacana,	TV	a	cores,	móveis	 legais,	e	pasmem,
carro	na	garagem.	Pode	parecer	besteira,	mas	aquilo	me	pareceu	tão	hipócrita,	que	fiquei	com	nojo.	As
mesmas	pessoas	que	defendiam	o	comunismo	com	unhas	e	dentes,	e	que	falavam	da	igualdade,	eram	as
que	se	beneficiavam	por	trabalhar	para	o	partido.	E	nesse	embalo	ia	Marcela,	cagando	para	a	medicina,
fazendo	a	faculdade	só	por	fazer,	cada	vez	mais	envolvida	nas	coisas	do	partido	comunista	para	poder
mamar	nas	tetas	do	governo	e	tirar	vantagem	assim	como	a	mãe	fazia.	Uma	irresponsável,	preguiçosa,	que
não	 assumia	 a	 culpa	 nunca	 e	 só	 tinha	 um	 objetivo	 na	 vida:	 continuar	 recebendo	 as	 benesses	 que	 uma
pequena	elite	recebia.	Nesse	ponto	Cuba	se	parecia	bastante	à	atual	bananolândia	em	que	vivemos.
E	esse	foi	o	tiro	de	misericórdia	no	último	suspiro	que	eu	tinha	de	admiração	pelo	socialismo.
A	Odebrecht	é	aqui					
Com	o	passar	dos	anos,	fui	cada	vez	mais	percebendo	que	as	coisas	em	Cuba	só	funcionavam	na	base	da
propina	e	da	ilegalidade.	Só	que	eu	era	um	cara	turrão.	No	fundo,	eu	era	sim	um	revolucionário,	porque
eu	 não	 conseguia	 compactuar	 com	 aquilo	 e	 não	 conseguia	 ficar	 calado.	 Mas	 deixa	 eu	 confessar	 um
negócio,	lá	no	meu	último	ano	eu	entrei	no	jogo.
Apesar	de	morarmos	na	mesma	casa,	alguns	estudantes	tinham	privilégios	que	eu	não	tinha.	Travesseiro
nos	 quartos	 (passei	 um	 ano	 sem	 travesseiro,	 dormindo	 em	 uma	 blusa	 enrolada),	 chuveiro	 elétrico	 no
banheiro	(era	proibido	em	Cuba,	mas	os	caras	tinham)	enquanto	eu	tinha	só	um	cano	na	parede	que	saía
um	fio	de	água	gelada.	
Esses	 caras	 que	 conseguiam	 as	 coisas,	 viviam	 “emprestando”	 grana	 para	 o	 administrador	 da	 casa,
traziam	presentes	de	seus	respectivos	países,	davam	garrafas	de	bebida	para	o	cara.
Eu	como	me	recusava	a	entrar	nesse	jogo,	e	era	muito	orgulhoso,	só	ficava	me	fodendo	e	dando	murro	em
ponta	de	faca.
Já	no	quinto	ano	que	eu	estava	lá,	desisti	e	resolvi	me	render	ao	esquema.	Trouxe	alguns	presentes	para	o
chefe	da	casa	quando	voltei	de	férias	do	Brasil.	Tudocoisa	simples,	mas	que	já	fez	todo	o	jogo	mudar.
Em	menos	de	duas	semanas	depois	de	levar	as	propinas,	digo,	os	presentes,	eu	consegui	chuveiro	elétrico
no	quarto,	consegui	 travesseiro,	e	algumas	outras	 regalias.	Fora	que	o	cara	começou	a	me	 tratar	 super
bem	(antes	ele	só	me	olhava	com	cara	de	bunda).
É	duro	admitir,	mas	aquele	ano	foi	bem	mais	suave	para	mim.	Aí	você	vê	que	não	importa	qual	sistema
está	implementado,	o	ser	humano	é	um	filho	da	puta.	A	diferença	é	que	uns	são	filhos	da	puta	de	direita	e
outros	filhos	da	puta	de	esquerda.	No	final	todo	esgoto	vai	pro	mesmo	ralo.
Jeitinho	brasileiro...	ou	libanês
Tinha	 uma	 época	 que	 entrar	 em	 Cuba	 virou	 um	 tormento	 lá	 no	 aeroporto.	 Os	 caras	 estavam	 fazendo
marcação	cerrada	em	cima	das	malas	que	vinham	de	fora,	e	confiscavam	praticamente	todos	os	aparelhos
eletrônicos	ou	elétricos	que	os	turistas	tentavam	botar	pra	dentro.	As	questões	aqui	eram	duas	principais:
não	deixar	passar	equipamentos	que	consumissem	muita	energia	elétrica,	já	que	era	uma	coisa	escassa	e
racionada	lá	no	país,	e	também	não	deixar	passar	aparelhos	de	DVD	ou	de	vídeo	cassete	(sim,	tinha	disso
ainda	na	época).	Motivo	de	confiscar	os	aparelhos	de	DVD	juntamente	com	os	discos	que	eram	trazidos
de	fora?	Não	permitir	que	a	população	tivesse	acesso	a	conteúdo	antirrevolucionário.	O	governo	sabia
que	ao	restringir	internet,	e	ao	ter	apenas	dois	canais	de	TV	estatais	com	toda	a	programação	controlada,
era	um	pouco	mais	 fácil	 enganar	o	povo	e	 fazer	 lavagem	cerebral	para	 se	manter	no	poder.	Se	o	cara
tivesse	um	aparelho	de	DVD,	poderia	ter	acesso	àquele	conteúdo	maldito	do	capitalismo	opressor,	e	aí	já
viu	né.	Bom,	 lembra	que	eu	contei	que	 trazia	duas	malas	cheias	de	comida?	Com	trocentos	pacotes	de
miojo	e	tal?	Pois	é,	minha	mãe	arrumava	minha	mala	de	um	jeito	que	cabia	tipo	um	universo	numa	casca
de	noz.	Até	os	pacotinhos	de	suco	instantâneo	ela	dobrava	ao	meio	pra	economizar	espaço.	A	mala	era
praticamente	uma	mina	terrestre,	uma	vez	que	eu	encostasse	nela	pra	abrir,	explodia	aquela	porra	toda	de
coisas	lá	de	dentro,	e	nunca	mais	eu	colocava	de	volta.	Pois	bem,	minha	mala	recebeu	uma	marcação	na
etiqueta	 para	 ser	 inspecionada.	 Tudo	 isso	 graças	 a	 uma	 sanduicheira	 elétrica	 velha	 que	 eu	 estava
trazendo.	Meu,	eu	tava	realmente	cagando	praquela	sanduicheira	velha.	Meu	desespero	foi	ter	visto	como
os	caras	inspecionavam	a	mala	da	galera.	Neguinho	pegava	as	coisas	e	ia	jogando	em	cima	do	balcão,
fuçavam	até	dentro	dos	sapatos,	iam	fazendo	aquela	montanha	de	coisas	e	no	final,	você	tinha	que	se	virar
pra	botar	tudo	de	novo	na	mala	e	cair	fora.	Eu	tava	ferrado
Só	que	eu	não	contava	com	a	astúcia	de	um	carinha	que	morava	lá	na	mesma	casa	que	eu.	O	bicho	era
brasileiro	de	família	Libanesa,	que	conseguia	dar	nó	até	em	pingo	d’água.	O	cara	percebeu	que	conseguia
sair	do	aeroporto	só	com	uma	das	malas	sem	a	etiqueta	marcada.	Assim	quando	passava	pelos	guardas,
eles	 olhavam	 a	 etiqueta	 normal,	 e	 deixavam	 seguir.	Acontece	 que	 não	 tinha	 uma	 fiscalização	 rigorosa
para	quem	voltava	ao	salão	de	desembarque.	Então	esse	cara	bolou	um	esquema	que	para	ele	era	óbvio,
mas	 que	 para	 o	 burrão	 aqui	 foi	 uma	 baita	 jogada	 de	 cinema.	 Ele	 saía	 com	 a	 mala	 de	 etiqueta	 sem
marcação.	Lá	fora	deixava	a	mala	com	um	amigo,	arrancava	essa	etiqueta	e	colocava	no	bolso.	Uma	vez
de	volta	ao	saguão,	tirava	a	etiqueta	marcada	da	mala	que	seria	inspecionada,	e	colava	aquela	limpa	para
passar	com	a	mala	suspeita	livremente	pelos	guardas.
E	assim	dei	meu	jeitinho	brasileiro,	ou	melhor,	libanês,	para	entrar	com	a	sanduicheira	velha	no	pais	sem
que	revirassem	todas	as	minhas	coisas.	Cuba	me	transformava	cada	vez	mais	em	criminoso.
Alô,	sou	eu,	tchau		
Alguns	 itens	básicos	de	consumo	 lá	em	Cuba	 tinham	preços	exorbitantes,	 assim	como	alguns	 serviços.
Some-se	a	isso	o	fato	do	preço	ser	em	dólar,	em	uma	época	que	o	real	desvalorizou	a	ponto	de	um	doleta
chegar	a	custar	4	realitos.	Um	dos	negócios	que	caia	nessa	categoria	“valor	de	um	rim”,	eram	os	cartões
telefônicos	 para	 ligações	 internacionais.	 Tínhamos	 um	 de	 dez	 dólares	 que	 te	 permitia	 falar	 durante	 a
eternidade	 de	 dois	 minutos	 e	 quarenta	 segundos	 com	 o	 Brasil.	 Além	 disso	 a	 ligação	 tinha	 um	 delay
importante,	então	você	falava,	a	pessoa	só	ouvia	depois	de	alguns	segundos,	 ficava	mudo,	e	depois	de
mais	uns	segundos	você	ouvia	a	resposta.
Eu	 comprava	 um	 cartão	 desses	 de	 vez	 em	 quando	 para	 ligar	 pra	 namorada	 no	 Brasil.	 Vocês	 devem
imaginar	 que	 com	 dois	 minutos	 e	 uns	 quebrados,	 não	 dava	 pra	 entrar	 em	 nenhum	 assunto	 mais
aprofundado,	 então	 a	 ligação	 era	 sempre	 aquele	 negócio	 esquisito:	 Oi,	 tudo	 bem,	 como	 está,	 tô	 com
saudade,	tô	aqui	fazendo	não	sei	o	que,	o	cartão	tá	acabando,	beijos,	te	amo,	tchau.
Aí	 uma	 época	 lá,	 um	 brasileiro	 (tinha	 que	 ser	 né)	 descobriu	 que	 se	 você	 solicitasse	 uma	 ligação
internacional,	de	um	telefone	fixo	a	cobrar	para	um	celular	pré-pago	no	Brasil,	a	ligação	completava	e
nem	 você	 nem	 a	 pessoa	 do	 outro	 lado	 pagavam	 a	 conta.	 Velho,	 o	 passatempo	 da	 galera	 na	 casa	 dos
estudantes	era	ficar	falando	no	telefone	o	dia	inteiro.	Fazia	fila	no	negócio.	A	qualquer	hora	do	dia	que
você	passasse	lá	tinha	alguém	fazendo	juras	de	amor	pra	namorada	ou	pro	namorado	lá	do	outro	lado	do
mundo.	Teve	um	sem	noção	uma	vez	que	até	ficou	no	telefone	tocando	violão	para	a	namorada.	Me	recuso
a	contar	que	esse	sem	noção	fui	eu.
Como	alegria	de	pobre	dura	pouco,	o	pessoal	da	companhia	 telefônica	cubana	descobriu	o	esquema	e
começaram	a	 recusar	 as	 ligações	 para	 celulares	 pré-pagos.	Acabou	 a	 brincadeira,	 e	 todos	 voltamos	 a
vender	as	córneas	para	poder	comprar	um	cartão	e	 ter	aquele	papo	cabeça	de	dois	minutos	de	vez	em
quando.	Pelo	menos	até	outro	brasileiro	descobrir	um	esquema	alternativo.	Era	só	malandragem.
Não	vai	ter	golpe,	mas	teve
Falei	de	um	monte	de	falcatruas	que	a	galera	aprontava	lá	né.	Mas	quando	o	quesito	era	“dar	o	golpe”	os
cubanos	também	eram	criativos.	Lembram	do	Uno	Mille	que	eu	aluguei?	Pois	é,	eu	paguei	com	dólares
que	 havia	 comprado	 no	 banco	 do	 brasil	 na	 época,	 tudo	 certinho	 como	manda	 o	 figurino.	Alguns	 dias
depois	de	 ter	devolvido	o	carro	na	 locadora,	dois	 funcionários	de	 lá	aparecem	no	portão	da	casa	dos
estudantes	querendo	falar	comigo.	Um	deles	 tirou	uma	folha	de	papel	do	bolso,	com	uma	fotocópia	de
uma	nota	de	cem	dólares,	e	um	carimbo	meio	migué	escrito	“falsa”.	O	cara	com	todo	seu	ar	teatral	me
disse	que	infelizmente	uma	das	notas	que	eu	havia	usado	pra	pagar	o	carro	era	falsificada,	e	que	caso	eu
quisesse	 poderia	 resolver	 ali	 mesmo	 com	 eles.	 Velho,	 até	 hoje	 não	me	 conformo	 o	 quanto	 fui	 burro.
Engoli	a	história	dos	estelionatários,	catei	uma	nota	de	cem	conto	no	meu	armário,	e	entreguei	na	mão	dos
caras.
Quando	contei	pro	meu	velho	 sobre	o	ocorrido,	 ele	 falou	 inconformado:	 filho,	os	 caras	 te	passaram	a
perna.
Mas	nada	como	um	dia	após	o	outro	né?	Uns	meses	depois	fiquei	sabendo	que	os	mesmos	caras	foram
presos	em	um	esquema	de	estelionato	e	se	ferraram	na	cadeia.	Mentira,	nenhum	dos	dois	se	ferrou	e	cada
um	aproveitou	a	grana	que	me	roubaram.	Só	achei	que	os	dois	na	cadeia,	seria	uma	forma	mais	legal	de
terminar	 essa	 história	 com	uma	baita	 lição.	No	 fundo	 a	 única	 lição	 que	 ficou,	 é	 que	 eu	 fui	 trouxa	 pra
cacete.
Pablo,	o	contrabandista
Não,	não	era	o	Pablo	Escobar.	Esse	era	um	gordinho	bochechudo	com	bigode	ruivo	que	parecia	aqueles
personagens	de	desenho	animado.	Conheci	o	Pablo	na	igreja.	Ele	era	alguma	coisa	importante	lá	dentro.
Ministro,	diácono	ou	sei	 lá	como	chamava	aquilo.	No	final	da	missa	o	cara	veio	 lá	puxar	papo	com	a
gente	(os	cubanos	adoravam	fazer	um	networking	com	os	estrangeiros),	e	usando	de	todo	aquele	ambiente
santo,	o	“irmão”	Pablo	me	ofereceu	seus	serviços.	O	gordinho	vendiacamarão	e	 lagosta	a	preços	bem
acessíveis.	A	primeira	vez	que	fui	em	sua	casa	comprar	a	iguaria,	estranhei	toda	a	discrição	com	a	qual
ele	 me	 atendeu.	 Inclusive	 estava	 preocupado	 para	 que	 os	 vizinhos	 não	 sentissem	 cheiro	 de	 camarão.
Lembro	que	ele	disse	sorrindo,	daquele	jeito	bonachão,	para	que	eu	não	espalhasse	que	ele	vendia	frutos
do	mar.	Segundo	ele,	não	queria	ficar	conhecido	como	“Pablo	do	camarão”.
Com	um	tempo	morando	lá	em	Cuba,	descobri	que	boa	parte	dos	cubanos	fazia	a	vida	desviando	comida
dos	 hotéis.	E	 era	 o	 que	Pablo	 fazia.	Ele	 retirava	 o	 “dízimo”	do	 hotel	 em	 camarões,	 e	 vendia	 para	 os
estrangeiros.
Aqui	 eu	 me	 tornava	 um	 receptador	 de	 produtos	 roubados.	 Cuba	 me	 transformou	 em	 um	 verdadeiro
gângster.	Mas	o	camarão	ficou	uma	delícia.
Os	eventos	de	fachada
Uma	das	coisas	que	descobri	sendo	um	“insider”	lá	no	governo	comunista,	foram	os	eventos	de	fachada.
Tá	ligado	naqueles	discursos	de	Fidel,	que	reúnem	caralhadas	de	milhares	de	pessoas	em	uma	praça,	e
todo	mundo	vai	lá	apoiar	e	balançar	a	bandeirinha?	Tudo	fake.	Como	assim?	Na	verdade,	tinha	mesmo
toda	aquela	galera	lá	balançando	bandeiras,	não	eram	efeitos	especiais	de	Hollywood.	Mas	o	negócio	é
que	todos	que	estavam	lá,	eram	obrigados	a	estar.
Lembro	de	uma	vez	que	o	próprio	Fidel	ia	até	a	cidade	onde	eu	morava	dar	um	discurso.	Nas	semanas
antes	do	evento,	todos	os	dias	éramos	lembrados	na	faculdade,	que	tínhamos	obrigação	de	ir.	Até	lista	de
chamada	 tinha,	 e	 aquilo	ali	 contava	como	atividade	curricular	obrigatória.	Nas	empresas	era	a	mesma
coisa.	Todos	os	funcionários	eram	obrigados	a	ir,	sob	pena	de	represália	e	punição.
O	esquema	que	se	armava	era	um	negócio	gigantesco.	Uma	porrada	de	ônibus	e	caminhões	passava	nas
escolas,	 faculdades,	 empresas	 e	bairros	para	pegar	 a	galera	 e	 levar	para	 a	praça.	Vinha	gente	 até	das
cidades	vizinhas.	Uma	das	queixas	dos	cubanos	na	época,	é	que	faltava	combustível	para	alimentar	a	rede
elétrica	e	mesmo	o	transporte	público	e	privado,	em	consequência	disso	passávamos	por	apagões	de	12	a
14	horas.	Mas	combustível	para	armar	toda	aquela	lambança	não	faltava.	Era	o	governo	socialista	mais
preocupado	com	a	sua	propaganda	do	que	com	a	população.
Uma	coisa	curiosa:	 todo	mundo	ganhava	uma	bandeirinha	de	cuba	para	ficar	balançando	na	praça,	mas
lembro	de	uma	orientação	que	me	deram,	que	eu	não	devia	balançar	a	bandeira	de	lado	como	é	o	normal
de	 se	 fazer,	 e	 sim	 para	 frente	 e	 para	 trás.	 Motivo?	 Segundo	 eles,	 balançar	 de	 lado	 poderia	 dar	 a
impressão	de	que	eu	estava	fazendo	sinal	de	“negativo”	para	o	discurso	do	homem	da	barba.		Balançar	de
frente	por	outro	lado,	dava	uma	impressão	de	que	eu	estava	concordando.	Tá	bom	de	lavagem	cerebral
pra	você	ou	quer	mais?
Amigo	é	amigo
Uma	 coisa	 muito	 bacana	 de	 Cuba,	 é	 que	 eu	 fiz	 alguns	 dos	 melhores	 amigos	 da	 minha	 vida	 por	 lá.
Obviamente	 com	 toda	 a	 escassez	 que	 havia,	 você	 tinha	 que	 diferenciar	 quem	queria	 ser	 seu	 amigo	de
verdade,	e	quem	só	queria	se	aproveitar	da	sua	situação	de	estrangeiro	para	descolar	algum	benefício.
Dentre	os	bons	amigos	que	fiz	posso	citar	alguns:	Evelio,	Michel,	Salinas,	Abraham,	Coello.
Abraham,	ou	Abe	como	costumávamos	chamá-lo,	era	um	cara	peculiar.	Inteligentíssimo,	introvertido,	de
poucas	palavras,	mas	quando	abria	a	boca	pra	falar	era	algo	sempre	extremamente	válido.	Coisa	pra	se
anotar
Lembro	de	um	episódio	que	passamos	juntos	e	que	ficou	marcado	em	minha	vida.	Eu	estava	atrás	de	uns
livros	 com	o	 conteúdo	programático	da	 faculdade.	Só	que	 esses	 livros	 eram	 tipo	 cabeça	de	bacalhau.
Ninguém	nunca	viu.	Na	verdade,	eu	já	tinha	conseguido	alguns,	e	precisava	de	mais	dois	ainda.	Pegamos
nossas	bikes	e	saímos	bater	nas	casas	dos	professores	tentando	encontrar	os	benditos	livros	que	faltavam.
Em	 cada	 porta	 que	 batíamos,	 recebíamos	 a	 informação	 de	 que	 poderíamos	 encontrar	 os	 livros	 com
fulano,	ou	no	lugar	tal.	Virou	quase	que	uma	caça	ao	tesouro,	e	percorremos	a	cidade	inteira	de	bicicleta
naquele	 dia.	 Abe	 que	 não	 tinha	 obrigação	 nenhuma	 de	 me	 ajudar	 com	 aquilo,	 fez	 questão	 de	 me
acompanhar.
Um	dos	últimos	destinos	que	nos	encaminharam,	foi	para	uma	livraria	pública	em	um	recanto	da	cidade,
só	que	para	nosso	azar	(ou	melhor,	para	meu	azar),	ela	estava	fechada.	Subimos	na	janela	para	bisbilhotar
lá	dentro,	 e	para	minha	 surpresa,	 lá	no	 fundo	das	prateleiras,	 estavam	os	 livros.	Só	 tinha	um	pequeno
porém:	 eu	 não	 sabia	 se	 lá	 no	 meio	 deles	 realmente	 estavam	 aqueles	 que	 eu	 precisava,	 já	 que	 pela
distância,	apenas	conseguia	reconhecer	a	capa,	mas	era	impossível	identificar	quais	volumes	estavam	lá.
Eu	 já	 estava	 desanimado	 e	me	 programando	 para	 voltar	 outro	 dia	 até	 lá,	 quando	 a	 livraria	 estivesse
aberta.	Mas	Abe	não	era	um	cara	que	desistia	fácil,	e	teve	uma	ideia	genial.	Fomos	até	sua	casa,	catamos
um	par	de	binóculos	velhos	que	ele	tinha	guardado,	e	voltamos	até	a	livraria.
Lá	da	janela,	como	se	fossemos	dois	malucos,	ficamos	olhando	de	binóculos	para	dentro	da	livraria	para
tentar	ler	e	identificar	se	entre	aqueles	livros	que	estavam	expostos	lá	no	fundo,	encontravam-se	os	que
eu	tanto	almejava.	Infelizmente	não	estavam	lá.
Mandei	um	e-mail	para	meu	velho	dizendo	que	não	tinha	conseguido	os	livros	(era	ele	quem	estava	me
cobrando	aquele	material),	e	acabei	levando	uma	baita	de	uma	bronca.	Meio	triste	e	desolado,	me	sobrou
apenas	ficar	conformado	com	toda	aquela	situação	e	agradecer	ao	Abe	por	ter	me	acompanhado.
Com	 todo	o	cansaço,	ele	ainda	 foi	 capaz	de	proferir	 algumas	palavras	e	conselhos	para	me	encher	de
ânimo,	e	fez	questão	de	dizer	que	havia	curtido	nossa	aventura.
No	 final	 do	 dia	 nos	 despedimos,	 e	 ele	 foi	 de	 volta	 para	 sua	 casa	 levando	 os	 binóculos.	 Até	 hoje
considero	o	cara	um	dos	meus	maiores	Brothers.	Afinal,	amigo	é	amigo.
Cliente	inconveniente
Se	 tem	uma	coisa	que	o	socialismo	sabe	fazer	como	ninguém,	é	acabar	com	a	cultura	de	satisfação	do
cliente	 e	 bom	 atendimento.	 Era	 incrível	 como	 lá	 em	Cuba,	mesmo	 nas	 lojas	 em	 que	 se	 comprava	 em
dólar,	 e	 mesmo	 você	 sendo	 estrangeiro,	 o	 tratamento	 era	 semelhante	 ao	 das	 repartições	 públicas
brasileiras	 daquelas	 onde	 o	 cara	 tá	 lá	 batendo	 ponto	 há	 30	 anos	 sem	 ter	 tesão	 nenhum	 pelo	 trabalho.
Parecia	que	estavam	fazendo	um	favor	em	te	atender.
Lembro	de	uma	vez	que	fomos	a	uma	lanchonete,	que	era	péssima	e	só	servia	porcaria,	mas	que	era	o	que
tinha	de	melhor	por	lá,	chamada	“el	rápido”.	Não	preciso	dizer	que	o	nome	não	fazia	jus	ao	atendimento.
Meu	amigo	chegou	no	balcão	e	pediu	alguma	coisa	que	eu	não	lembro,	e	em	seguida	pediu	um	chocolate
que	estava	a	uns	dois	passos	de	onde	estava	a	moça	que	atendia.	Ela	entregou	a	comida	para	ele,	e	então
chegou	a	minha	vez	na	fila.	Eu	falei	que	queria	um	chocolate	também.	O	que	se	passou	aí	foi	algo	surreal.
Cheguei	a	pensar	que	estava	sendo	filmado	e	tratava-se	de	alguma	pegadinha.	A	moça	do	balcão	gritou
comigo	me	dando	a	maior	bronca:	se	você	viu	que	teu	amigo	pediu	um	chocolate,	por	que	não	mandou	eu
pegar	dois	de	uma	vez?	Vai	me	fazer	ir	até	lá	pegar	outro!!	Sério,	esse	“ir	até	lá”,	era	os	dois	passos	que
ela	precisava	dar	para	alcançar	o	outro	chocolate.	Eu	fechei	a	cara	e	avisei	que	neste	caso	não	iria	querer
nada.
A	moça	até	se	sentiu	mal	e	acabou	tentando	remediar	a	situação,	mas	fui	irredutível	e	não	comprei	nada.
No	final	das	contas	mantive	o	orgulho	intacto,	e	também	a	fome,	já	que	fiquei	sem	comer.	Como	eu	era
burro.
O	papelzinho
Certa	vez,	fomos	a	um	restaurante	chinês.	Assim,	lá	em	Cuba	tinham	alguns	estabelecimentos	estatais	que
vendiam	 coisas	 na	moeda	 local,	mas	 que	 na	maior	 parte	 do	 tempo	 estavam	 fechados	 por	 escassez	 de
produtos.	Quando	por	algum	milagre	do	universo	eles	abriam,	a	galera	ia	em	peso	lá	e	em	poucos	dias
acabava	tudo.	Aí	era	mais	alguns	meses	fechado.
Bom,o	 restaurante	 chinês	 abriu.	Não	 que	 tivesse	 grande	 coisa,	mas	 pelo	menos	 dava	 pra	 comer	 algo
diferente.	Fomos	em	seis	amigos,	e	quem	nos	atendeu	foi	uma	tiazinha	com	uma	baita	cara	de	ódio.	Você
podia	 sentir	 o	 quanto	 ela	 estava	 puta	 da	 vida	 por	 ter	 que	 trabalhar,	 já	 que	 possivelmente	 nas	 últimas
semanas	como	não	havia	comida	no	restaurante,	ela	pode	ficar	de	boa.
Bom,	ela	chegou	com	uma	caneta	e	um	pedacinho	de	papel	e	anotou	nossos	pedidos	ali.	Esse	papelzinho
cabia	na	palma	da	mão	dela.	Todos	nós	pedimos	suco	de	laranja,	e	assim	que	tomei	meu	primeiro	copo
de	suco,	chamei	a	tia	para	pedir	mais	um.	Quando	ela	começou	a	anotar	meu	pedido	naquele	papel,	outro
amigo	pediu	um	repeteco	do	suco,	e	já	na	sequência	um	terceiro	amigo	também	disse	que	queria	mais	um.
Nessa	hora	 a	 tiazinha	parou	de	 escrever	 e	 deu	uma	baita	 bronca	na	gente:	 vocês	 ficam	pedindo	muita
coisa	e	agora	não	cabe	no	papel!	Não	vou	trazer	nada!		Cara,	juro	pra	vocês.	A	tia	simplesmente	virou	as
costas	e	deixou	todo	mundo	sem	suco.
Acabamos	rindo	da	situação	e	fomos	comer	no	outro	restaurante	concorrente	da	esquina.	Lógico	que	não
né,	lá	não	existia	outro	restaurante,	nem	concorrência,	nem	papelzinho	extra.	Saímos	de	lá	com	sede.
Deixa	crescer!
A	primeira	vez	que	fui	cortar	o	cabelo	em	Cuba	foi	um	desastre.	Não	há	explicação	para	tamanha	falta	de
senso	estético	daquele	barbeiro.	Parecia	que	ele	tinha	sido	contratado	como	responsável	pelo	meu	trote
de	vestibular.
Passado	esse	episódio	fatídico,	conheci	um	carinha	que	mandava	muito	bem	na	tesoura.	O	salão	dele	era
repleto	 de	 caras	 do	 gueto,	 que	 falavam	 um	 espanhol	 praticamente	 ininteligível	 e	 que	 gostavam	 de
desenhar	 o	 símbolo	 da	Nike	 no	 cabelo.	 Lembro	 que	 só	 comecei	 a	 entender	 de	 verdade	 as	 conversas
daqueles	malucos	depois	de	mais	de	um	ano	morando	lá.
Certa	vez	eu	estava	na	capital,	e	resolvi	que	iria	cortar	o	cabelo	em	um	lugar	mais	foda.	Tinha	um	hotel
chique	lá,	e	eu	decidi	morrer	em	uma	grana	mais	alta	para	que	um	dos	profissionais	do	local	desse	um
trato	na	minha	juba.	Vale	lembrar	que	na	época	eu	tinha	mais	cabelo	e	deixava	ele	mais	comprido.
Quando	sentei	na	cadeira	do	cara,	ele	olhou	meu	cabelo,	olhou	de	novo,	analisou,	e	me	disse:	por	que
você	não	deixa	crescer	mais?	Falei	que	não	queria,	que	preferia	 cortar	mais	 curto.	Pois	o	 cara	 sem	a
mínima	vontade	de	trabalhar,	deu	duas	tesouradas	no	meu	cabelo,	cortando	um	milímetro	da	ponta	dele,
olhou	pra	mim	e	disse:	pronto!
Foi	o	corte	de	cabelo	mais	 rápido	e	mais	 caro	da	minha	vida.	Precisei	 chegar	 em	casa	e	 aparar	mais
umas	pontas	sozinho	com	uma	tesoura	dessas	de	cortar	papel.
Reclamar?	Não.	Em	Cuba	o	cliente	nunca	tem	razão.
Os	leões	em	cima	da	carne
Logo	 que	 cheguei	 em	 Cuba,	 o	 pessoal	 de	 lá	 me	 contou	 que	 era	 proibido	 matar	 vacas	 no	 país.	 A
justificativa?	O	leite	era	muito	mais	importante	do	que	a	carne.	Sendo	assim,	raramente	comíamos	carne
bovina,	 e	 quando	 comíamos,	 era	 tão	 dura	 que	 certamente	 não	 tinham	 mesmo	 matado	 a	 vaca,	 ela
provavelmente	havia	morrido	de	velha.	Uma	vez	um	cubano	chegou	a	me	dizer	que	se	você	atropelasse
uma	vaca,	pegaria	mais	anos	de	cadeia	do	que	se	atropelasse	uma	pessoa.	Cuba	parecia	a	índia.	Lá	as
vacas	eram	sagradas.
Mas	de	vez	em	quando	descolávamos	uma	carninha,	e	em	raríssimas	ocasiões	fizemos	algo	que	lembrava
vagamente	um	churrasco	brasileiro.
Cara,	lembro	que	a	fome	era	tanta,	que	ficávamos	como	leões	em	cima	da	carne,	esperando	assar,	e	assim
que	ela	era	tirada	da	grelha	e	ia	para	a	mesa,	queimávamos	a	ponta	dos	dedos,	a	boca	e	o	esôfago,	já	que
se	você	esperasse	esfriar,	comia	menos.	Parecia	que	havíamos	saído	da	cadeia,	ou	que	tínhamos	ficado
em	uma	ilha	deserta	sem	carne	por	muito	tempo.	Quer	dizer,	essa	última	parte,	 tirando	o	“deserta”,	era
verdade.
Uma	vez	estávamos	lá	curtindo	um	desses	churrasquinhos,	quando	um	estudante	maconheiro	meio	maluco
que	estava	começando	o	primeiro	semestre	chegou	bêbado	onde	estávamos.	O	cara	era	tão	pirado,	que	a
impressão	que	eu	tinha	era	de	que	os	pais	tinham	mandado	ele	embora	do	Brasil	para	ter	uma	folga.	Bom,
voltando	ao	assunto,	o	maluco	apareceu	lá	no	churrasco	bêbado,	viu	que	o	negócio	já	tinha	começado,	e
não	sei	porque	cargas	d’água	se	sentiu	ofendido,	pois	não	havíamos	esperado	ele.	Velho,	o	cara	sabia	o
horário	que	o	negócio	ia	começar,	e	foi	o	único	que	atrasou.	Além	disso,	ainda	tinha	comida	o	suficiente
para	que	ele	pudesse	aproveitar.
Mas	ele	não	quis	aproveitar,	sabe	o	que	ele	fez?	Virou	a	mesa	de	carne	no	chão.	Existem	algumas	coisas
que	você	não	pode	fazer	na	vida.	Por	exemplo:	mexer	com	a	namorada	do	chefe	do	morro,	enfiar	o	dedo
na	tomada,	pular	do	avião	sem	paraquedas,	e,	jogar	no	chão	a	comida	de	um	grupo	de	caras	esfomeados.	
Nosso	amigo	mais	gordinho	tomou	aquilo	como	uma	ofensa	pessoal,	e	deu	uma	surra	no	cara,	que	saiu	de
lá	esbravejando	e	com	o	nariz	sangrando.	Nós	nessa	situação	fizemos	o	que	era	mais	prudente,	e	o	que
qualquer	pessoa	 faria:	 juntamos	a	 carne	do	chão,	demos	uma	 limpada	na	bermuda,	 e	 comemos.	Assim
agem	os	leões.
Saudade	do	Brasil?
Uma	coisa	que	notei	nos	meus	anos	morando	em	Cuba,	é	que	o	nepotismo	é	disseminado.	Nas	casas	de
estudante	que	eu	morei	e	conheci,	os	funcionários	eram	sempre	parentes	de	alguém	importante	do	partido
ou	da	universidade.	Na	primeira	casa,	o	administrador	era	marido	da	reitora,	a	cozinheira	era	cunhada
dela,	o	motorista	era	irmão	de	uma	das	chefonas	lá	da	faculdade,	e	assim	caminhava	o	esquema.	Certa
vez,	numa	das	inúmeras	vezes	em	que	faltou	água	no	meu	quarto,	eu	saí	cedinho,	umas	6	da	manhã,	para
escovar	os	dentes	na	pia	lá	de	fora.	Quando	eu	estava	escovando	os	dentes,	olhei	pelo	canto	da	parede	da
casa	e	enxerguei	o	administrador	enchendo	de	carne	o	porta	malas	do	carro	do	motorista	(aquele	que	era
irmão	 da	 chefona	 da	 faculdade).	Mas	 enchendo	mesmo!	Lembra	 que	 eu	 comentei	 sobre	 a	 escassez	 de
alimentos	na	casa	dos	estudantes,	e	de	como	nos	serviam	mínimas	porções	de	comida?	Ali	eu	enxergava
um	dos	motivos	disso	acontecer.
Mas	é	lógico	que	eles	não	estavam	roubando	né,	afinal,	ali	era	todo	mundo	socialista.	Provavelmente	eles
só	 iam	 levar	aquela	carne	 toda	para	distribuir	 entre	os	mais	pobres.	Se	bem	que	me	disseram	que	em
cuba	não	tem	pobre.	Então	pode	ser	que	eu	tenha	apenas	delirado.	Sabe	como	é	né,	muito	estudo	faz	a
gente	ver	coisas.
Nossa	vã	filosofia
Uma	das	matérias	que	tínhamos	nos	primeiros	anos	de	faculdade,	era	filosofia.	Na	época,	eu	ainda	era	um
ferrenho	 defensor	 do	 sistema	 socialista	 e	 acreditava	 em	 tudo	 aquilo.	 As	 aulas	 eram	 basicamente	 um
ensaio	para	lavar	o	cérebro	da	moçada	e	fazer	com	que	eles	defendessem	e	acatassem	todas	as	decisões
do	governo.	Aprendíamos	que	a	criança	na	barriga	da	mãe	ainda	não	era	um	ser	humano	pois	não	havia
iniciado	 seu	 processo	 de	 socialização	 (para	 justificar	 o	 aborto	 livre	 e	 indiscriminado	 em	 Cuba).
Aprendíamos	 que	 era	 sim	 possível	 chegar	 a	 um	 socialismo	 utópico,	 onde	 tudo	 era	 de	 todos,	 e	 todos
éramos	iguais.	Aprendíamos	que	Cuba	era	o	melhor	lugar	do	mundo	para	se	viver,	e	que	o	império	ianque
era	uma	droga.
Sinceramente,	apesar	de	ainda	ser	socialista	nessa	época,	achava	aquelas	aulas	um	tanto	quanto	maçantes,
e	não	concordava	com	tudo	o	que	a	professora	dizia.	Só	que	aprendi	muito	rápido	uma	coisa:	se	você	não
concordasse,	 era	 melhor	 fingir	 do	 que	 argumentar.	 Vi	 amigos	 cubanos	 levarem	 notas	 baixas	 por
discordarem	de	alguns	absurdos	que	eram	falados	em	sala.	E	veja,	quando	eles	discordavam,	o	faziam
com	 argumentos	 muito	 inteligentes	 e	 bem	 fundamentados.	 Não	 interessava.	 Ou	 você	 dizia	 amém
cegamente	para	tudo	o	que	te	enfiavam	goela	abaixo,	ou	ia	mal	na	matéria.
Eu	era	um	aluno	estrelinha.	Tinha	notas	altas	na	faculdade,	e	não	queria	de	forma	alguma	manchar	minha
média	com	uma	nota	baixa	naquela	matéria	que	eu	nem	consideravaassim	tão	fundamental.	O	que	eu	fiz?
Criei	um	algoritmo	pessoal	que	me	fazia	ir	bem	em	todas	as	aulas	e	avaliações	de	filosofia,	independente
do	tema,	mesmo	sem	estudar.	O	algoritmo	consistia	em	começar	elogiando	e	corroborando	tudo	o	que	a
professora	falou,	em	seguida	meter	o	pau	no	Brasil	(que	na	época	tinha	um	presidente	tucano)	e	nos	EUA.
E	finalizar	exaltando	o	governo	e	o	país	de	Cuba,	como	se	fosse	a	terra	dos	sonhos	de	qualquer	pessoa.
Era	infalível.	Funcionava	para	qualquer	tema,	e	assim	eu	não	precisava	estudar	filosofia,	e	usava	o	tempo
para	matérias	que	considerava	mais	interessantes	como	fisiologia	e	anatomia.
Ainda	bem	que	essas	 aulas	 aconteceram	nos	primeiros	dois	 anos	de	 faculdade,	 enquanto	 eu	 ainda	não
tinha	me	decepcionado	com	o	socialismo.	Se	tivesse	sido	depois,	possivelmente	eu	teria	reprovado.
Corra	Lola,	corra!!
Uma	noite,	estava	voltando	pra	casa	de	bicicleta,	junto	com	meu	amigo	e	colega	de	quarto	Japa,	e	íamos
batendo	papo	pelo	caminho.	A	rua	que	nos	levava	até	a	casa	era	na	verdade	uma	rodovia	bastante	escura.
Logo	depois	que	passamos	por	uma	ponte,	em	uma	curva	fechada,	dois	caras	mal-encarados	saíram	de
trás	 de	 uns	 arbustos	 e	 correram	 em	 nossa	 direção.	 Em	 cuba,	 era	 extremamente	 comum	 os	 roubos	 de
bicicleta,	e	nós	que	 trabalhávamos	no	hospital	e	víamos	com	muita	 frequência	pessoas	com	ferimentos
graves	de	facão,	já	sabíamos	até	as	armas	que	os	bandidos	costumavam	usar.
No	 calor	 do	momento	 e	 pensando	 em	 salvar	 a	minha	 vida,	 pulei	 da	 bicicleta	 ao	mesmo	 tempo	 que	 a
joguei	em	direção	ao	ladrão.	Gritei	pro	Japa:	larga	a	bicicleta	e	corre!!
Quando	 eu	 comecei	 a	 correr	 em	 fuga	 desesperada,	 vi	 que	 o	 cara	 correu	 atrás	 de	mim.	 Eu	 podia	 ser
péssimo	para	esportes	com	bola,	mas	eu	corria	rápido	como	um	demônio	na	época	de	faculdade.	Meti
sebo	nas	canelas	e	corri	como	se	não	houvesse	amanhã.	O	Japa	era	um	cara	baixinho	de	pernas	curtas	e
acabou	ficando	pra	trás.	Tive	a	certeza	de	que	o	segundo	bandido	já	o	havia	matado.		Apesar	da	profunda
tristeza	que	senti,	decidi	que	eu	devia	continuar	correndo	para	salvar	minha	vida,	já	que	não	havia	mais
nada	a	ser	feito	pelo	pobre	falecido	Japonês.	Acontece	que	o	desgraçado	do	bandido	não	desistia,	e	por
mais	 que	 eu	 corresse	 ele	 continuava	 atrás	 de	 mim.	 Já	 fiquei	 imaginando	 como	 seria	 ruim	 ser
esquartejado,	ou	estuprado,	sei	 lá.	Alguns	passos	a	frente,	vejo	o	quartel	da	polícia.	Não	tive	dúvidas,
comecei	a	gritar	por	socorro	em	espanhol:	auxiliooooooooo	policiaaaaaaa!!!	Gritava	e	corria,	gritava	e
corria,	até	perceber	que	a	gritaria	estava	prejudicando	meu	fôlego,	então	decidi	apenas	correr.	Mais	um
tempinho	de	corrida,	 e	um	carro	de	policia	vem	na	direção	contrária	com	a	 sirene	 ligada.	Pensei:	 é	 a
minha	salvação.
Para	minha	 surpresa	 o	 carro	 parou	 na	minha	 frente,	 e	 dele	 saiu	 um	 policial	 brutamontes,	 que	 também
começou	 a	 correr	 atrás	 de	 mim.	 Só	 nesse	 momento	 pensei	 que	 algo	 estava	 estranho	 e	 decidi	 parar.
Quando	 parei,	 tanto	 o	 bandido	 quando	 o	 policial,	 me	 agarraram	 e	 me	 dominaram.	 Resulta	 que	 o	 tal
bandido	não	era	tão	bandido	assim.	Era	um	policial	a	paisana.	Quando	olho	para	trás,	vi	que	o	Japa	ainda
estava	vivo.	Tomei	uma	bronca	 federal	 do	policial,	 que	me	xingou	por	 eu	 ter	 corrido.	Eu	ainda	 tentei
argumentar	dizendo	que	eu	corri	pois	ele	não	havia	se	identificado.	Ele	de	forma	muito	gentil	 só	pediu
para	que	eu	calasse	a	boca	e	não	tentasse	ensinar	como	deveria	fazer	seu	trabalho.
Desfeito	 o	mal-entendido,	 fomos	 liberados.	Minhas	 pernas	 quase	 não	obedeciam.	Foi	 um	dos	maiores
sustos	que	tomei	na	vida.
Acredito	que	hoje,	mais	de	dez	anos	após	o	ocorrido,	o	cara	ainda	é	zoado	no	quartel	da	polícia	por	ter
tomado	um	baita	de	um	couro	na	corrida	para	o	Usain	Bolt	brasileiro.
Medicina	por	amor
Um	 dos	 maiores	 mitos	 do	 mundo	 é	 o	 tal	 do:	 “medicina	 por	 amor”.	 Ninguém	 exerce	 a	 medicina	 ou
qualquer	outra	profissão	“por”	amor.	No	máximo	o	fazemos	“com”	amor,	já	que	como	todos	nós	sabemos,
amor	não	paga	as	contas.
Cuba	é	muito	famosa	por	exportar	médicos	em	missões	solidárias	para	diversos	países.	Só	que	o	que	a
maioria	não	sabe,	é	que	os	médicos	que	topam	ir	nessas	missões	não	o	fazem	por	amor	à	profissão,	mas
sim	porque	vão	receber	no	mínimo	dez	vezes	mais	do	que	receberiam	caso	ficassem	trabalhando	na	ilha.
Fora	 isso,	 havia	 um	 programa	 de	 incentivo	 do	 governo	 para	 os	 médicos	 que	 iam	 a	 outros	 países
trabalharem	nessas	missões,	não	só	do	ponto	de	vista	financeiro.	Por	exemplo,	o	médico	que	fosse	a	uma
missão	internacional,	ao	retornar	teria	prioridade	para	escolher	a	área	em	que	iria	fazer	especialização.
Além	disso,	durante	essas	missões,	muitos	recebiam	presentes	dos	cidadãos	locais,	e	na	hora	de	voltar
pra	casa	era	 feita	uma	certa	“vista	grossa”	no	aeroporto	para	que	pudessem	entrar	com	seus	gadgets	e
presentes.	Quem	aqui	não	lembra	da	seleção	brasileira	de	futebol	em	1994,	em	seu	retorno	dos	Estados
Unidos.	Os	jogadores	vieram	carregados	de	muamba,	e	a	aduana	liberou	numa	boa	pelo	simples	fato	de
serem	celebridades.	Acontece	um	pouco	parecido	nesses	casos	dos	médicos	de	Cuba.
Muitos	acabam	usando	essas	missões	como	uma	ponte	para	pular	fora	de	Cuba	para	sempre.	É	só	ver	que
vários	dos	cubanos	que	vieram	pelo	programa	“Mais	Médicos”,	fugiram	do	Brasil	para	os	EUA.	Outros
casaram	com	brasileiras	para	tentar	ficar	por	aqui.	Outros	pediram	asilo	político.
Lembro	de	uma	reportagem	na	TV,	de	uma	médica	cubana	metendo	o	pau	nos	médicos	do	Brasil,	dizendo
que	aqui	 só	queriam	saber	de	dinheiro	e	não	queriam	 trabalhar	por	amor.	Pois	bem,	vamos	a	algumas
continhas	 básicas	 para	 calcular	 esse	 “amor”.	 Os	 cubanos	 especialistas	 na	 época	 que	 eu	 morava	 lá,
ganhavam	vinte	e	cinco	dólares	de	salário	mensal.	Aqui	no	Brasil,	o	programa	“mais	médicos”	pagava
dez	mil	reais	de	salário,	porém,	dessa	grana,	apenas	dois	mil	reais	iam	para	o	médico,	enquanto	oito	mil
reais	 iam	 para	 Cuba	 (dizem	 as	 más	 línguas	 que	 parte	 desses	 oito	 contos	 aí,	 voltava	 para	 os	 nossos
queridos	políticos,	mas	são	apenas	teorias	da	conspiração	e	não	irei	entrar	nesse	mérito).	Então	ao	invés
de	ganhar	vinte	e	cinco	dólares	por	mês,	nossa	amiga	muito	amorosa	passava	a	ganhar	dois	mil	realitos.
Convertendo	isso	para	valores	atuais	de	cotação	do	dólar,	a	nossa	amiga	que	só	trabalha	por	amor	e	que
indiretamente	chamou	os	médicos	brasileiros	de	mercenários,	estava	ganhando	20	vezes	mais	no	Brasil.
É	muito	amor	né.	Some-se	a	isso	àqueles	benefícios	que	comentei	anteriormente,	os	presentes,	e	mesmo	a
possibilidade	de	 comprar	produtos	mais	baratos	no	Brasil	 para	 levar	de	volta	 a	Cuba,	 e	 conseguimos
explicar	esse	amor	tão	grande.	All	we	need	is	love.
A	advertência
Certa	vez	em	uma	aula	de	microbiologia,	estávamos	lá	entretidos	com	bactérias	e	afins,	quando	no	meio
da	 classe	 um	dos	 alunos	 se	 levantou,	 pediu	 licença	 ao	 professor	 e	 foi	 até	 a	 frente.	Todo	mundo	 ficou
olhando	sem	entender	muito	bem	o	que	acontecia.	Lá	da	frente	da	sala,	esse	colega	de	turma	anuncia	que
iria	fazer	um	comunicado	importante.	Em	seguida,	chama	pelo	nome	a	um	dos	meus	amigos	cubanos,	e
pede:	fulano,	venha	até	aqui.
Todos	os	olhares	se	dirigiram	até	o	pobre	coitado,	que	atravessou	a	sala	de	cabeça	baixa.	Quando	chegou
lá,	o	outro	aluno,	que	era	nosso	amigo	de	turma,	falou	em	tom	agressivo	que	nosso	colega	estava	sendo
advertido	na	frente	de	todos	os	alunos,	por	ter	cometido	uma	infração	muito	grave.	Sabem	o	que	foi	que	o
cara	 fez?	 Ele	 não	 compareceu	 em	 um	 daqueles	 comícios	 fakes	 obrigatórios	 que	 eu	 havia	mencionado
anteriormente	aqui	no	livro.
Aquilo	foi	um	show	de	humilhação	pública.	Escracharam	o	moleque	lá	na	frente,	e	ainda	exigiam	que	ele
se	 desculpasse	 com	 a	 turma	 por	 não	 ter	 ido	 (como	mero	 expectador	 diga-se	 de	 passagem)	 a	 um	 ato
político.	 O	 cara	 pediu	 desculpas	 morrendode	 vergonha.	 Não	 bastando,	 pediram	 para	 que	 ele	 se
justificasse	diante	da	turma,	e	contasse	a	todos	o	motivo	de	não	ter	ido.	Cara,	o	negócio	aconteceu	em	um
final	 de	 semana,	 e	 o	moleque	preferiu	 ficar	 com	a	namorada	 em	casa	 sem	 fazer	 nada	do	que	 ir	 até	 lá
escutar	 meia	 dúzia	 de	 baboseiras.	 Justo	 não?	 Pois	 lá	 isso	 não	 era	 permitido.	 O	 cara	 com	 os	 olhos
marejados	 (de	 pura	 raiva),	 disse	 que	 não	 tinha	 justificativa	 e	 que	 simplesmente	 não	 havia	 conseguido
comparecer.	Terminaram	aquela	sessão	de	tortura	psicológica	com	um	ultimato:	caso	você	falte	em	mais
algum	evento,	estará	automaticamente	expulso	da	faculdade.
O	governo	de	Cuba	era	realmente	um	queridão	né.
Hans,	o	marido	da	mulher	do	Pepe		
Título	confuso	não?	Deixa	eu	tentar	explicar.	Com	aquela	crise	eterna	lá	no	país,	jovens	que	sonhavam
com	 bens	 de	 consumo,	 e	 que	 não	 tinham	 muita	 esperança	 de	 conquistar	 os	 seus	 sonhos,	 acabavam
terceirizando	as	namoradas.	Era	praticamente	uma	forma	mais	refinada	de	ser	cafetão.	Funcionava	assim:
Pepe,	um	jovem	cubano	descolado,	que	adorava	roupas	da	moda	e	novas	tecnologias,	namorava	Maria,
uma	menina	com	um	rosto	lindo	de	traços	delicados	e	um	corpo	escultural.	Maria	era	o	sonho	de	qualquer
cara	da	cidade.	Para	conseguir	manter	suas	roupinhas	da	moda,	Pepe	fazia	um	trato	com	Maria,	que	era
deveras	peculiar.	Ele	a	apresentava	a	algum	turista	estrangeiro,	na	maioria	das	vezes	um	senhor	de	meia
idade	de	etnia	alemã.	O	senhorzinho	obviamente	se	encantava	por	Maria,	e	os	dois	se	casavam.	Maria	ia
morar	na	Alemanha,	mas	continuava	sendo	oficialmente	a	namorada	de	Pepe,	afinal,	os	dois	se	amavam.
Durante	sua	estadia	na	Alemanha,	Maria	usava	a	grana	que	o	tiozinho	lhe	fornecia,	para	comprar	roupas
novas,	 tênis	e	presentes	para	Pepe.	Normalmente	nas	 férias	ela	vinha	para	Cuba	uma	semana	antes	do
marido,	e	naqueles	dias	ela	e	Pepe	viviam	uma	verdadeira	 lua	de	mel.	Pepe	 feliz	com	suas	 roupas	da
moda,	e	com	seu	novo	aparelho	CD	player,	desfilava	pelas	 ruas	da	cidade	de	mãos	dadas	com	Maria.
Com	todo	esse	esquema,	vinha	aquela	frase	estranha:”	-	Ei	Juan,	vamos	chamar	o	Pepe	e	a	Maria	para
tomar	uma	cerveja	hoje?	–	Puts,	Pedro,	a	Maria	não	vem.	Falei	com	o	Pepe	e	ele	vem	sozinho,	porque
o	marido	da	mulher	dele	está	chegando	hoje	da	Alemanha”.
O	importante	é	andar	na	moda,	não	é?
Dá-me	uma	televisão,	e	eu	te	levarei	para	onde	queiras
Lembram	do	cara	libanês	que	dava	nó	até	em	pingo	d’água?	Pois	dessa	vez	o	cara	descolou	um	esquema
forte.	Com	toda	sua	lábia	e	habilidade,	conseguiu	ficar	amigo	da	Carmen	Maria.	Sim,	aquela	mesma	dos
presentinhos	 no	 aeroporto.	Mas	 agora,	 o	 buraco	 era	 mais	 embaixo.	 O	 cara	 queria	 porque	 queria	 ser
transferido	 para	 a	 capital	 do	 país.	 Normalmente	 tinha	 que	 rolar	 uma	 influência	 muito	 grande	 para
conseguir	tal	façanha,	pois	as	vagas	eram	extremamente	limitadas	e	frequentemente	reservadas	aos	caras
com	 influência	 politica	 forte.	 Pois	 bem,	 numa	 bela	 tarde	 de	 sol	 do	 caribe,	 o	 rapaz	 aparece	 com	 um
pequeno	agrado	na	casa	da	dona	Carmen	Maria.	Nada	mais	nada	menos	que	uma	TV	a	cores	novinha,
com	 controle	 remoto	 e	 tudo.	 Rapaz,	 a	 partir	 daí	 o	 céu	 era	 o	 limite.	 Não	 só	 ele	 foi	 transferido	 para
Havana,	como	começou	a	exercer	sua	influência	por	lá	para	levar	mais	gente.	Só	que	ele	não	levava	de
graça.	Quem	quisesse	ir	tinha	que	pagar	um	“pedágio”.	Não	era	barato,	e	ainda	era	em	dólar.
Tá	aí	uma	mentalidade	empreendedora	e	com	visão	de	 futuro.	O	cara	 investiu	em	uma	TV,	e	virou	um
agente	de	transferências	para	a	capital.	Tem	meu	respeito.
A	lei	foi	feita	pra	se	cumprir	
Uma	 coisa	 que	 me	 impressionou	 uma	 vez,	 foi	 o	 quão	 ágil	 os	 caras	 eram	 para	 seguir	 as	 ordens	 do
comandante	 em	 chefe	 Fidel	 Castro.	 Certa	 vez,	 cansado	 de	 tanto	 carinha	 vagabundo	 sem	 estudar	 nem
trabalhar,	 que	 ficavam	 perambulando	 pelas	 praças	 pedindo	 grana	 ou	 tentando	 fazer	 negócios	 com	 os
turistas	(negócios	=	prostituição,	venda	de	charutos	roubados,	etc.),	Fidel	apareceu	em	rede	nacional	e
avisou,	 que	 todos	 aqueles	 que	 estivessem	 pela	 cidade	 no	 outro	 dia	 sem	 fazer	 nada,	 ou	 aqueles	 que
estivessem	sem	documentos,	seriam	presos.	Cara,	no	outro	dia	passei	pelo	centro	de	bicicleta	e	não	tinha
nenhum	dos	malucos	que	costumavam	ficar	por	lá.	Foi	um	negócio	quase	que	automático.	Paguei	pau.
Alguns	meses	depois	encontrei	um	dos	meninos	com	quem	eu	costumava	conversar	lá	na	praça.	Comentei
que	ele	nunca	mais	tinha	aparecido,	e	ele	me	contou	que	foi	preso	por	estar	em	um	parque	sem	fazer	nada,
na	manhã	seguinte	ao	pronunciamento	de	Fidel.	Havia	passado	aqueles	meses	preso	no	campo	cortando
cana.
Percebi	que	a	palavra	“cana”	se	aplicava	de	forma	literal	para	os	presos	de	Cuba.
Viva	la	revolución.
Ronc	Ronc
Sabe	quando	você	tem	aquela	coceira	 lá	na	garganta,	que	dá	vontade	de	fazer	aquele	barulho	parecido
com	o	que	a	Peppa	Pig	faz	no	desenho,	pra	parar	de	coçar?	Então,	coçar	a	garganta	com	ruídos	suínos
estranhos	 na	 frente	 dos	 outros	 não	 é	 problema	 para	 os	 cubanos.	 Eles	 fazem	 isso	 de	 forma	 rotineira	 e
natural.	Pode	ser	dentro	da	sala	de	aula,	no	ônibus,	no	cinema,	qualquer	hora	é	hora.
Uma	vez	 uma	 amiga	minha	 começou	 a	 fazer	 esses	 ruídos	 nada	 agradáveis	 do	meu	 lado.	Eu	 lancei	 um
olhar	torto	pra	ela	e	reclamei.	Ela	estranhou	e	me	deu	de	ombros.	Fui	obrigado	a	falar	que	não	entendia
aquela	mania	 de	 ficar	 fazendo	 ruídos	 estranhos	 com	 a	 garganta	 em	 público.	A	 resposta	 da	menina	 foi
simples	e	direta:	a	garganta	tá	coçando,	aí	eu	coço	ué.
Não	tive	argumentos	para	rebatê-la.	Só	torci	para	que	o	mesmo	conceito	não	se	aplicasse	para	coceira
em	outros	lugares	menos	apropriados.
Verdades	inconvenientes
Lembra	lá	no	começo	do	livro,	que	eu	comentei	sobre	a	reportagem	na	TV	que	contava	das	maravilhas	da
medicina	 cubana,	 e	de	 como	eles	haviam	achado	a	 cura	para	várias	doenças.	Além	disso,	 as	 taxas	de
mortalidade	infantil	são	baixíssimas.	Pois	bem,	muita	propaganda.
A	 realidade	 era	 bem	 mais	 nua	 e	 crua.	 Nos	 hospitais	 faltava	 de	 tudo.	 Reaproveitávamos	 luvas	 que
deveriam	 ser	 descartáveis,	 utilizávamos	 seringas	 e	 agulhas	 também	 reaproveitáveis	 que	 eram
esterilizadas	 inúmeras	 vezes,	 nos	 virávamos	 com	 o	 que	 tínhamos	 na	 mão.	 Com	muita	 frequência	 nas
visitas	e	discussões	de	caso	a	beira	de	leito,	ouvíamos	coisas	como:	o	tratamento	dessa	doença	é	feito
com	tal	medicamento,	mas	nós	não	temos,	então	damos	esse	outro	que	não	tem	tanta	eficácia.
Sobre	o	milagre	das	“curas”	das	doenças	diversas	com	os	medicamentos	exclusivos	de	Cuba,	novamente
uma	falácia.	Tratavam-se	de	doenças	autoimunes	que	com	muita	frequência	 têm	remissões	espontâneas.
Tudo	o	 que	 se	 falava	 era	 baseado	 em	“experiência”.	 Infelizmente	 quando	 falamos	de	 uma	 intervenção
terapêutica,	experiência	é	o	pior	nível	de	evidência	possível.	Qualquer	um	que	saiba	um	pouquinho	sobre
medicina	baseada	em	evidências,	descobre	que	não	há	nenhum	trabalho	de	qualidade	que	confirme	a	tal
cura	que	eles	tanto	propagam.	Ao	procurar	nos	periódicos	científicos	internacionais,	nada	se	encontra.	E
os	 poucos	 estudos	 disponíveis,	 que	 foram	 feitos	 e	 publicados	 em	 Cuba	 mesmo,	 têm	 um	 desenho	 e
metodologia	 completamente	 falhos	 (estudos	 sem	 grupo	 controle,	 sem	 randomização,	 não	 cegos).
Conversa	pra	boi	dormir.
Sobre	a	mortalidade	infantil,	não	querendo	tirar	o	mérito	dos	caras,	mas	o	que	eu	via	lá	pessoalmente,
eram	 muitas	 indicações	 de	 abortamento.	 Qualquer	 intercorrência	 na	 gestação,	 lá	 vinham	 eles
recomendando	 que	 se	 interrompesse.	 Parece	 óbvio	 né,	 que	 se	 você	 só	 levar	 até	 o	 fim	 as	 gestações
selecionadas	 e	 sem	 nenhum	 risco	 ou	 intercorrência,	 a	 sua	 estatística	 de	 mortalidade	 infantil	 ficará
excelente,	 já	 que	 os	 fetos	 abortados	 não	 entram	 nela.	 Em	 pouco	 tempo	 de

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