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Socialismo e suas histórias peculiares Experiências de um jovem brasileiro em Cuba Maikel Ramthun Copyright – Direitos autorais Essa obra não deverá ser reproduzida ou comercializada, total ou parcialmente sem a autorização do autor. Disclaimer Antes que comece o mimimi, quero deixar claro que o objetivo desse livro não é levantar bandeira política nem corroborar ou refutar fatos históricos. Tampouco tenho como objetivo julgar ou incriminar quem quer que seja. Esta obra não é um livro de história ou de geografia, sendo as datas e locais exatos dos acontecimentos pouco importantes neste contexto. Alguns avisos antes de começar: se você pretende ler este livro pensando em discutir política, procure outra leitura. Aqui apenas conto algumas experiências que vivi quando era um adolescente, e as faço de acordo ao meu ponto de vista da época. Tentar argumentar e discutir ideologias e posições políticas e partidárias contando “causos”, seria demasiadamente raso. Antes que interpretem de forma errônea achando que estou sendo ingrato e que estou cuspindo no prato que comi, deixo claro que ter vivido em Cuba foi uma das experiências mais enriquecedoras e que me trouxe mais crescimento em toda a minha vida. Faria tudo de novo. Aos mais sensíveis, aviso que irei utilizar linguagem extremamente coloquial, e por vezes chulas. Palavras de baixo calão estarão presentes, assim como gírias. O objetivo de ter escrito dessa forma, foi incorporar o jovem imaturo que eu era na época que esses relatos foram vividos. Caso você se incomode com este tipo de linguajar, posso recomendar meu outro livro: O médico que fingia ser fotógrafo. Neste eu utilizo um palavreado mais formal. A primeira parte do livro pode ser um pouco maçante, mas foi necessária para contextualizar minha ida para Cuba e como cheguei lá. Caso esteja entediado, não desista da leitura, pule ao capítulo 2 onde começo a contar algumas histórias. Penso que você irá gostar. Por último, todas as histórias aqui contadas são reais e vividas por mim nos cinco anos que morei em Cuba, porém, tomei a liberdade de modificar e omitir alguns nomes, lugares e situações, já que a exposição exata dos eventos e das pessoas poderia trazer um grande prejuízo a vários amigos. Quem já viveu em Cuba, sabe do que estou falando. Segue o jogo. Sumário Disclaimer Propaganda Mexendo os pauzinhos Dá pra voltar Me deixa ficar aqui CAPITULO 2 – Histórias diversas Cozinheiro fora da lei Pessoas enjoadas para comer são suas melhores amigas Salão de beleza caseiro Os bagos de Fidel Propaganda enganosa já de manhã Os eufemismos E-mail bisbilhotado Velozes e furiosos Puxando ferro (ou ferrugem) Minha conversão A Odebrecht é aqui Jeitinho brasileiro... ou libanês Alô, sou eu, tchau Não vai ter golpe, mas teve Pablo, o contrabandista Os eventos de fachada Amigo é amigo Cliente inconveniente O papelzinho Deixa crescer! Os leões em cima da carne Saudade do Brasil? Nossa vã filosofia Corra Lola, corra!! Medicina por amor A advertência Hans, o marido da mulher do Pepe Dá-me uma televisão, e eu te levarei para onde queiras A lei foi feita pra se cumprir Ronc Ronc Verdades inconvenientes Voldemort Melhor matar do que discordar Salvando vidas Criatividade Hello darkness my old friend Paraíso proibido Prisão ao ar livre Complexo de inferioridade Taxista amigo da família Não força, vai Unanimidade É penta!! As motos “doadas” Instrumento de trabalho Complemento de renda Nem tudo era ruim Considerações finais Sobre o autor Me segue lá Propaganda Lá estava eu com dezoito anos recém completados, gol bolinha na garagem, namorada gatinha, festa com os amigos todo final de semana. O que mais eu poderia querer? Queria começar logo a faculdade de medicina. Acontece que eu só fui decidir que queria fazer medicina lá nos 48 do segundo tempo. Aí meu amigo, você pode ser o cara mais gênio do mundo, mas se não sentou a bunda na cadeira e comeu os livros durante pelo menos um ano, não tem chances de passar. E foi o que aconteceu no final do terceirão. Decidi tarde, e tomei nabo nas provas de vestibular. Em alguns fiz média para passar nos outros cursos. Grande porcaria, todo mundo que não passa em medicina fala a mesma coisa: “ah, se fosse engenharia de não sei o que eu passava”. Bom, desde moleque eu tinha o sonho de morar fora do Brasil. Como meus pais não tinham grana para me bancar um intercâmbio, esse sonho ficou ali guardado durante um bom tempo. Eis que quando eu ia começar o cursinho pra valer, dessa vez sabendo o que queria da vida, surge uma reportagem no globo repórter falando sobre a maravilhosa medicina de Cuba. Cara, que negócio fenomenal. Um país daquele tamanho, oprimido pelos EUA, conseguindo encontrar a cura de uma porrada de doenças fodas que castigavam muita gente. Pensei comigo. Eu quero estudar nesse lugar. Mexendo os pauzinhos Fui conversar com meu velho sobre esse sonho de estudar fora. Na real, só comentei com ele sobre a reportagem que tinha visto na TV, mas na época nem imaginava que estudantes estrangeiros podiam estudar lá. Aí sabe aqueles negócios que parecem que eram pra ser? Aquelas paradas de destino, sei lá. A filha de um amigo do meu pai já estava no segundo ano de medicina em Cuba. Na hora implorei pra ele conversar com esse amigo e descobrir como funcionava toda a burocracia para que eu também pudesse meter o pé na estrada e vazar do Brasil. Talvez você me pergunte: por que você resolveu largar uma vida mansa no Brasil para ir embora para aquela porcaria de país? Bom, primeiramente, como eu havia dito, era um sonho estudar fora. Segundo, na época do cursinho, uns dois caras me procuraram na porta daquelas empresas que organizam viagem para vestibular, me oferecendo vagas em diversas universidades do país. Cheguei a conversar com um dos malucos, e ele tinha um baita esquema. Um dos esquemas consistia em escutas eletrônicas sofisticadas, (os dois filhos desse cara estudavam medicina e passaram no vestibular desse jeitinho bacana), outro método era através de laranja, que falsificava uma identidade e se passava por você para fazer a prova. Fiquei com raiva de tudo aquilo e no final das contas falei que não tinha interesse. Lembro até hoje de ter dito ao meu pai o seguinte: pai, se eu fizer um negócio desses, nunca vou me sentir feliz, vou sempre ter a sensação de que sou uma fraude. Não tô contando isso pra que vocês pensem que eu era um bastião da ética. No meio do livro eu até vou mostrar que já fiz um monte de cagadas. Mas quando se tratava de estudo, eu era cabreiro até na hora de passar cola. Por essas e outras resolvi que não queria mesmo saber de estudar um ano inteiro para o vestibular, com aquela sensação de estar sendo trouxa e passado para trás naqueles esquemas mirabolantes. Para os burros que já devem estar de mimimi: eu sei que esses esquemas são a minoria dos casos. Inclusive hoje sou professor de medicina de uma universidade pública bem-conceituada, e conheço meus alunos e o tanto que ralaram para passar na prova. Então, larga o mimimi e vamos que vamos. Voltando ao assunto de mexer os pauzinhos para que eu fosse para Cuba, fui atrás dos requisitos, curso de espanhol, papelada e todas as demais burocracias. Tenho uma relativa facilidade para idiomas, aliás, acredito que isso se deva ao fato de ser tagarela. Preciso falar rápido e falar muito sempre. Fiz um intensivão no espanhol, fazia aulas duas vezes por dia, cinco dias por semana. Nesse meio tempo ia mexendo com a papelada (na época não existia esse negócio que tem hoje em dia de precisar ser de algum movimento social ou de algum partido de esquerda). Até que um dia chegou uma carta lá em casa dizendoque eu havia sido aprovado e que começaria a estudar medicina no tão sonhado país. Show de “buela”! Dá pra voltar? Chegou o dia de ir embora. Meu pai foi até Guarulhos comigo e confesso que foi bem foda me despedir. O voo da Cubana de Aviación era famoso pelos aviões velhos, pelo atendimento ruim, pelas comissárias de bordo mal-educadas e por ostentar o título de segunda companhia aérea mais perigosa do mundo. Que orgulho. Passei a viagem pensando que eu poderia entrar para a história como um dos que participou da conquista do título de primeira companhia aérea mais perigosa. É tetra!!! Quando cheguei no aeroporto de Havana, o primeiro choque que tomei foi com o calor infernal que fazia, a despeito do ar condicionado. O segundo choque foi com o espanhol rápido e difícil de entender dos caras. Na minha cabeça mandei meu professor de espanhol praquele lugar, já que aquele dissimulado vivia me elogiando nas aulas, dizendo que meu espanhol era fantástico. Ao sair da zona de desembarque, fui abordado por uma penca de cubanos, cada um me pedindo uma coisa, e outros me oferecendo transporte. Lembro que um dos caras me pediu um sabonete. Nessa hora eu olhei para trás e tive vontade de voltar correndo. O que não adiantaria já que os voos da Cubana de Aviación para o Brasil só aconteciam uma vez por semana. Se um parente fosse morrer no Brasil, você tinha que avisar o cara pra não fazer isso de sábado a quarta. Já que só tinha voo de volta na sexta. Bom, fui devidamente instruído a procurar uma cubana que era meio que chefona dos estrangeiros que estudavam em Cuba. Seu nome era Carmen Maria. Não foi muito difícil de encontrá-la, já que se destacava no aeroporto uma senhora negra, acima do peso, com um batom vermelho bem forte, rodeada de estrangeiros que lhe entregavam presentes. Desconfiei daquela galera toda entregando mimos para ela, enquanto o idiota aqui estava de mãos vazias. Foi ali que percebi que mesmo no país socialista, o esquema de propina e agrados funciona de forma até mais forte do que no Brasil. Quando me apresentei sem nenhum presente na mão, ela me olhou com uma cara feia, procurou meu nome na lista e me deu uma má notícia: o carro que me levaria para a cidade onde eu iria morar, já tinha saído. Beleza né? Eu lá naquele calor dos infernos, sem conhecer ninguém, com uma porrada de gente me pedindo coisas, descubro que fui abandonado no aeroporto. Bom, não podiam me deixar ali plantado, então me colocaram em um “ônibus” e me mandaram para outro estado junto com uma galera de vários países. Escrevi ônibus entre aspas porque o negócio era feio. Era um ônibus velho, com um furo no piso que dava pra ver o asfalto, com bancos de plástico e metal bem piores do que esses ônibus urbanos que temos nas cidades brasileiras. Pior, o desgraçado não passava de 50km/h e estragou três vezes durante a viagem. O trecho de 281 quilômetros que percorremos, durou umas 10 horas. Enquanto percorríamos a estrada, eu só via outdoors com propaganda socialista enaltecendo os heróis nacionais e mato, muito mato. As poucas construções avistadas estavam caindo aos pedaços. Era tudo tão diferente daquela reportagem do globo repórter que eu só conseguia repetir uma frase na minha cabeça: o que é que estou fazendo aqui. Me deixa ficar aqui Cheguei na universidade, que não era aquela que eu iria ficar. Dividi o quarto com dois caras. Um deles se chamava Adolfo, e foi com quem eu me identifiquei logo de cara. O outro, se chamava Ricardo, era um caipirão metido a besta daqueles que tem papai fazendeiro e adora meter uma marra. Não preciso dizer que com ele eu não fiz muita questão de puxar assunto. O quarto da universidade era parecido com uma cela de presídio. Tinha duas camas beliches, um chuveiro (melhor dizendo, um cano na parede) e duas paredes finas que te cobriam até o peito. Privacidade zero. Mas vou confessar uma coisa, apesar de ser um quarto meio ruim, eu estava numa vibe revolucionária e no fundo achava tudo maravilhoso. No outro dia conhecemos um pouco da universidade, então fui falar com uma das chefonas para que conversasse com a Carmen Maria pedindo uma autorização para poder ficar por lá mesmo, já que eu havia me enturmado e havia gostado do lugar. Lembra do único estrangeiro que não levou presente pra ela? Pois é, esse imbecil sou eu. Óbvio que a Carmen, madrinha de todos os estrangeiros (que pagavam “pedágio”) cagou para meu pedido, e naquela mesma manhã um carro russo da década de 70 veio me pegar na faculdade. Lá vou eu para mais uma viagem interminável. CAPITULO 2 – Histórias diversas Depois de tanto blábláblá introdutório, afinal, eu precisava pelo menos dar uma pincelada para explicar como fui parar lá, aqui começo com as histórias que pude viver e presenciar durante os cinco anos que morei em Cuba. Mais uma vez reforço que alguns nomes serão mudados, assim como os lugares que ocorreram. Os dados políticos históricos e geográficos oficiais vocês podem ler na Wikipédia ou em qualquer outro veículo de comunicação. Aqui começarei a relatar as coisas engraçadas, tristes, vergonhosas e peculiares que eu pude presenciar, e a narrativa baseia-se no meu ponto de vista unicamente. Vamos comigo! Cozinheiro fora da lei Quando eu vinha de férias para o Brasil, uma das coisas que eu fazia era encher duas malas com comida para levar para Cuba. Lá a comida era escassa mesmo para nós estrangeiros que pagávamos pela nossa estadia e alimentação. Jantávamos lá por seis da tarde, que era o horário que voltávamos do hospital ou da faculdade morrendo de fome, e lá pelas dez da noite, enquanto estávamos estudando, o estômago reclamava. Aí você tinha algumas opções: pegar a bicicleta e ir até um posto de gasolina, em uma loja de conveniências, e pagar um valor absurdo em um pão borrachudo esquentado no micro-ondas (só lembrando que na época essas lojas de conveniência só vendiam a dólar americano, e nosso real não valia grande coisa), ou você podia passar fome. O que eu fazia? Além de sonhar com a maravilha da comida delivery existente nos melhores países capitalistas, eu cozinhava um dos trocentos pacotes de miojo que eu levava na mala. Tínhamos um daqueles “rabo quente” para ferver a água, e cozinhávamos no chão do quarto mesmo. Esse tipo de dispositivo altamente tecnológico era proibido em Cuba, já que a energia lá era racionada. Mas a fome me transformou em um gângster, e eu cometia essa ilegalidade com muita frequência. Cuba me transformou em criminoso. Pessoas enjoadas para comer são suas melhores amigas Saca só como funcionava o esquema de comida lá na casa dos estudantes estrangeiros: de manhã, serviam um pão minúsculo (e ruim, nada nem perto do pãozinho francês da potencia capitalista chamada Brasil), com um pouco de manteiga, e uma xicara de café com leite. O leite utilizado nesse café, era em pó. Só que eles diluíam muito pouco leite para um caminhão pipa de água. Com o café era a mesma coisa. Então o que você tinha na verdade era quase um “café homeopatia”. O bagulho vinha tão diluído que dava pra ver o fundo da xícara. O café da manhã era esse e ponto final, não dava pra repetir o pão, nem o café com leite. Dose única por pessoa. Aí depois desse banquete, pegávamos a bicicleta e pedalávamos uns quatro quilômetros até o hospital. Lá no hospital evoluíamos os pacientes, passávamos visita com o professor, tudo normal como manda o figurino de uma faculdade de medicina. Meio dia, pegávamos a bike outra vez, e mandávamos mais quatro quilômetros até a casa dos estudantes estrangeiros para almoçar. O nível de fome era do tipo “se mexer comigo te mato esfaqueado”. Aí o almoço era mais ou menos assim: Um prato com feijão sem tempero,arroz duro com pedaços de pedra, um ovo frito. Às vezes o ovo frito era substituído por um pedaço de presunto. Ou às vezes por um pequeno pedaço de frango. Cara, aquilo ali para um jovem de dezoito anos que já tinha pedalado de manhã e já tinha trampado, era só um aperitivo. Saíamos da mesa com fome. Depois do almoço o esquema se repetia: bike até o hospital, aula a tarde toda, e às seis da tarde bike de novo até a casa para jantar. A janta? Igualzinha o almoço. Não à toa no meu primeiro ano de faculdade eu voltei para o brasil com 13 quilos a menos. Conforme foi passando o tempo, eu descobri uma coisa importantíssima: tinha umas gurias lá na casa que eram enjoadas para comer. Então o esquema era simples, você sentava do lado delas e ficava igual um abutre. Assim que elas davam umas garfadas na comida, e faziam cara feia, você tinha alguns centésimos de segundo para perguntar: você não vai comer essa ervilha? Bingo, era a forma de você ao menos ingerir um pouco mais de calorias. Eu já tinha até minha fornecedora oficial de comida, uma menina gente finíssima (e bem magrela) chamada Jane. Minha maior tristeza foi quando a Jane começou a namorar um dos caras da casa, e aí a comida acabava indo pra ele. Quem mandou eu ter sido lerdo. Se soubesse que meu esquema de comida iria acabar de uma hora pra outra, eu tinha pedido ela em casamento já no primeiro ano. Vacilei. Salão de beleza caseiro Um belo dia eu estava chegando da faculdade um pouco mais cedo do que o habitual, quando entro no meu quarto e vejo uma das funcionárias da casa dos estudantes lavando o cabelo na minha pia. Na hora ela ficou toda sem jeito, e me deu um migué dizendo que estava lavando o cabelo ali, pois o administrador da casa não permitia que lavassem o cabelo no banheiro dos funcionários. Sorri pra ela, falei que não tinha problema nenhum, e que ela podia lavar o cabelo lá numa boa. Inclusive saí do quarto para que ela ficasse à vontade. Na minha ingenuidade eu não me toquei do que acabava de presenciar. Um tempo depois percebi que meu xampu estava bastante “aguado”. Sacou qual foi? Os coitados dos cubanos não tinham grana para comprar xampu, já que só eram vendidos em dólar nas lojas. Um adendo: mas qual é a moral dessas lojas vendendo tudo caro e em dólar, já que os cubanos não podiam pagar pelos produtos? Bom, Cuba fica pertinho da Flórida, o que fez com que milhares e milhares de cubanos se arriscassem nas águas perigosas e infestadas de tubarões para morar em solo americano. Cada um desses desertores visita a família regularmente, e traz o bolso recheado de dólares para gastar com eles na ilha. Essas lojas funcionam mais ou menos como uma forma de trazer dólares (dinheiro sujo ianque capitalista) de volta a Cuba desses malditos traidores da revolução que foram embora do melhor país do mundo. Bom, voltando ao assunto do xampu, a pobre funcionária que não tinha condições de comprar seu próprio xampu, furtava o meu e lavava o cabelo escondida. Triste, mas o sistema de lá acabou transformando grande parte da população em contraventores. A única coisa que eu pude fazer depois dessa, foi dar um xampu de presente para a mulher. Eu nem tinha muito cabelo mesmo. Os bagos de Fidel Essa para mim é uma das histórias mais icônicas que eu pude vivenciar lá em Cuba. E olha que vi muita bizarrice por lá. Acontece que essa história que irei contar, reflete mais ou menos a hipocrisia generalizada que assola o país. Era uma tarde quente e ensolarada, e lá estávamos os alunos da faculdade em um dos muitos eventos políticos que éramos obrigados a participar (contarei mais sobre essa obrigação em outras histórias do livro). O mimimi era sempre o mesmo. Povo metendo o pau nos Estados Unidos, exaltando a ilha maravilhosa de Cuba, e falando sobre mil e uma teorias da conspiração, sobre como Fidel escapava de todas as tentativas de assassinato, e como ele era fodão. Naquele dia, uma amiga da minha turma, que era uma menina sempre envolvida com as coisas do partido e muito socialista e revolucionária, estava com o microfone no alto do palanque discursando. Seu nome era desses comuns entre os cubanos de sua idade, nomes começados com “Y”. Para quem não conhece, fica a dica do blog “Generacion y” da escritora e blogueira Yoani Sanchez. Voltando ao assunto, lá estava minha amiga “y” proferindo um monte de baixarias contra os imperialistas estadunidenses, e exaltando o homem da barba (e não era Papai Noel). Nunca esqueço da frase que ela soltou aos berros, chamando os americanos pra porrada, que quase se ouvia em Miami: “pueden venir, pues a nuestro comandante, le roncan los cojones”. Pra quem não manja muito desse palavreado chulo, ela falou algo que no Brasil significaria mais ou menos o seguinte: que os americanos podiam cair pra dentro, porque nosso comandante Fidel era um cara macho que botava o pinto na mesa. Aplausos se ouviram, gritaria. A menina era um mito dentre os jovens comunistas de Cuba. Tá bom, mas porque você disse que essa história era uma das mais icônicas? Simples, porque hoje em dia essa minha amiga “Y”, mora em Miami com a família. Se rendeu ao império maldito. Inclusive está no Facebook e adora postar fotos dos filhos participando das tradições ianques como thanksgiving e halloween. Vejam, não estou recriminando a menina. Acho que a melhor coisa que ela fez na vida foi ter caído fora daquele inferno cubano. O ponto onde quero chegar aqui, é o da hipocrisia que a grande maioria vivia. Assim como ela, conheci vários “comunistas” que fugiram de lá na primeira oportunidade. Saíram debaixo dos cojones de Fidel e correram para as terras do tio Sam. Propaganda enganosa já de manhã Durante a faculdade, ficamos conhecendo um tal de “matutino”, que basicamente consistia em uma pequena reunião rápida com os alunos daquela turma, para que um deles comentasse sobre as principais notícias do dia. Então o negócio funcionava assim: chegávamos ao hospital, nos reuníamos primeiro com o professor para lista de presença, organizar as tarefas do dia e discutir inicialmente os casos da enfermaria, antes de irmos examinar, evoluir, prescrever e fazer as discussões de caso à beira do leito. Assim que terminávamos essa parte importante, vinha o lazarento do matutino. Ah, mas por que você está falando mal de uma coisa boa? Afinal, informação é algo importante. Então, tô falando mal porque aquela droga daquele matutino nada mais era do que uma lavagem cerebral. Assim como o noticiário na TV cubana parecia um passeio na Disney, já que tudo o que se falava era das maravilhas do pais e de como o governo era foda, o matutino seguia a mesma linha. Noticias distorcidas, falava-se mal dos EUA, e lambia-se as botas de Fidel Castro. Aquilo me irritava profundamente, já que eu conseguia acesso à um e-mail diário com as principais manchetes da CNN, e via que aquela porcaria toda era a maior balela. E olha que a CNN ainda tem uma fama de ser simpatizante dos regimes de esquerda. Bom, um dia foi a minha vez de dar as notícias, e eu fiz questão de mandar umas três manchetes da CNN que não foram muito bem vistas pelos X9 da turma (falarei sobre os X9 em outras histórias). Resultado? O X9 principal encerrou o matutino abruptamente, ficou vermelho de raiva, e me proibiu de participar novamente desse importantíssimo evento matinal. Fiquei com raiva do cara, e tive vontade de sair na mão com ele. Mas no final das contas, depois de muito tempo eu entendi que ele não fez aquilo por amor à revolução, nem porque ele acreditava naquela baboseira, mas sim porque ele se cagou nas calças de medo. Lá em Cuba, é melhor matar alguém do que falar mal do governo. Aí se coloca no lugardo maluco que foi incumbido de ser o x9 da turma. Chega um estrangeiro engraçadão e começa a cometer uma das maiores atrocidades que poderiam ser cometidas lá naquele país: usar a liberdade de expressão. O maluco vai deixar quieto? Claro que não, era o pescoço dele e não o meu que tava em jogo. Fiquei sabendo que esse cara também vazou de Cuba. E para minha surpresa ele não foi para a Venezuela e nem para a Coreia do Norte. Quem diria. Os eufemismos Cuba é um país de eufemismos. Lá palavras como ditadura, liberdade e capitalismo têm significados bem diferentes do resto do mundo, e muitas expressões são mudadas para formas mais agradáveis aos “ouvidos da revolução”. Uma das vezes que isso mais me deixou com embrulho no estômago, foi no episódio dos cinco agentes de inteligência cubanos que estavam nos Estados Unidos tentando se infiltrar em grupos anticastristas e foram descobertos. Long story short, os caras estavam espionando lá no EUA a mando de Fidel Castro, e quando foram pegos, os julgamentos acabaram sendo muito duros, inclusive gerando críticas internacionais. A despeito de tudo isso, os caras eram espiões e ponto final. Acontece que em Cuba, ficou proibido utilizar a palavra espião para este caso. “Espia”, que é a palavra em espanhol para esta situação, transformou-se em “los héroes prisioneros del império”. Só que convenhamos, é bem mais fácil falar espião do que “os heróis prisioneiros do império”. Eis que o idiota aqui, que não tem lobo frontal funcionante muitas vezes, e que costuma perder o amigo mas não a piada, fala um dia na frente dos X9 da sala: ah, vocês viram as notícias dos espiões... eh... quer dizer... dos heróis prisioneiros do império ontem? Cara, bastou essa brincadeirinha sossegada, que não fez mal a ninguém, pra merda tomar proporções maiores do que eu imaginava. Na hora eu nem percebi a baita da cagada que eu tinha feito, mas uns dias depois, voltando pra casa de bicicleta, vejo no sentido contrário também em sua bicicleta, um dos X9 do grupo (o mais bonzinho deles). O cara atravessou a pista com a bike e me fez parar. Eu não entendi direito do que se tratava aquilo, mas o que aconteceu em seguida foi um negócio surreal. De forma rápida e discreta, ele chegou do meu lado, no meio do canteiro central da rodovia onde ninguém podia ouvir o que estávamos conversando, olhou para os dois lados rapidamente e me interrompeu enquanto eu o estava cumprimentando: cara!!! Eu estou voltando agora de uma reunião na faculdade que foi convocada para te deportar do país. Por causa do teu bom histórico acadêmico, resolveram te dar mais uma chance, mas tá todo mundo de olho. Veja bem, eu entendo tua frustração e vou te dizer uma coisa. Eu também odeio esse país, e acho esse sistema uma merda, mas eu sei que a única forma de sair daqui é ficando quieto e obedecendo. Então vou te pedir uma coisa, CALA A PORRA DA TUA BOCA e para de falar bosta por aí, se você quiser se formar médico! Fiquei estarrecido, por dois motivos. Um pela rapidez com que eles organizaram uma reunião para me banir, devido a uma simples brincadeira idiota, e o segundo motivo foi por ver mais um dos caras que eu jurava que defendiam aquela hipocrisia toda, confessar na minha frente que odiava o sistema e só se fazia de revolucionário para um dia fugir de lá. A partir desse dia eu me transformei um pouco mais em cubano. Engoli minha liberdade de expressão com farinha, e calei a minha boca. E-mail bisbilhotado Logo que cheguei na ilha, uma das coisas que tentei desenrolar foi um e-mail para falar com a minha família, já que as ligações telefônicas eram caríssimas, não existia smartphone nem WhatsApp, e mesmo que existisse eu nunca teria acesso já que em Cuba era proibido ao cidadão comum ter internet em casa. Lógico que isso era uma coisa muito boa que o governo fazia pensando no bem-estar de seus cidadãos, já que ao ter acesso a internet, estes poderiam entrar em sites e veículos de notícias que mostrariam a desgraça do mundo capitalista, e isso os deixaria triste. Melhor ficar com os dois canais de TV estatais que passavam só contos de fadas no noticiário. Bom, conseguimos um e-mail coletivo para todos os estudantes estrangeiros que viviam lá na época. Para acessá-lo precisávamos pegar a bike e ir até um tal centro de informações que era possivelmente o único lugar da cidade onde havia internet. Para que vocês tenham uma ideia, nem na faculdade tínhamos internet. Aliás, não existia nem máquina de xerox na faculdade. Mas isso é história pra daqui a pouco. Então íamos a esse centro de informações sempre que queríamos ver se algum familiar havia mandado e- mail. Lá, você acessava aquela caixa de e-mail coletiva, e pulava os que não eram pra você. Se quisesse podia até ler sobre as juras de amor que seu colega tinha mandado para a namorada lá em outro pais, mas não fazíamos isso. Aliás, nós não fazíamos, mas o pessoal do centro de informações sim. Depois de um tempo morando lá, fomos informados que todos os e-mails que recebíamos eram lidos pelo pessoal, para ver se não havia nada suspeito ou antirrevolucionário. Lá a coisa funcionava assim, onde quer que você fosse, tinha alguém de olho. Hoje penso que deveria ter existido naquela época, uma versão para e-mail do “gemidão do WhatsApp”. Pelo menos eu ia fazer aqueles caras passarem vergonha. Velozes e furiosos Teve uma vez que eu me senti meio rico lá na ilha. Foi quando minha tia e minha irmã foram me visitar. Foi na semana de férias de janeiro. Aluguei um Fiat Uno azul, mas sem escada no teto, afinal, não queria voar né. A estrada que corta o país é bem grande, tem três pistas na maior parte do tempo, segundo os cubanos foi construída dessa forma para que aviões possam pousar em tempos de guerra. O negócio apesar de largo, é bem esburacado, mas mesmo assim dava pra usar a potência daquela máquina chamada Uno Mille. Foi naquela viagem que eu virei fugitivo da polícia pela primeira vez (sim, teve mais de uma, vai vendo que lá pra frente eu conto). Estava metendo o pau no Uno, a uns 145km/h, quando passei por um policial. Só que o esquema lá é diferente daqui. Os caras não tinham radar, não tinham uma forma de me parar em um posto de polícia mais pra frente, e a moto que o cara tinha era velha e possivelmente estava com pouca gasolina. Resultado? Os caras tentam te parar no apito! Sim, o maluco fica lá escondido, quando você passa a 140 por hora ele fica soprando o apito achando que você vai parar, e voltar lá pra tomar uma multa. Brother, naquela velocidade da luz que eu tava (entendam minha empolgação, eu só andava de bike), a única coisa que eu via era o vulto do policial e ouvia o apito perdendo força. Ali malandro, era pé na tábua e os caras nunca mais me viam. Me senti um verdadeiro criminoso. Agora, na real, tirando a parte de ser criminoso de lado, parar para um policial cubano é ter a certeza do cara te esvaziar a carteira. Ele vai te botar um terror danado, a hora que souber que é estrangeiro vai fazer de tudo para conseguir alguns doletas. Até parece um outro lugar que eu conheço bem. Puxando ferro (ou ferrugem) Teve uma época que eu decidi deixar de ser frango, e resolvi puxar ferro pra ver se colocava um pouco de músculo na minha carcaça. Imaginem um cara nada atlético, com um corpo ridículo, braços finos iguais dois canudos, pancinha saliente e peitinhos de cadela prenha. Era eu. Através dos meus contatos, conheci um dos caras que posteriormente se tornaria um dos meus melhores amigos de toda a vida. Esse cara empreendedor, tinha conseguido uns pedaços de ferro, algumas anilhas, e acabou projetando e montando sua própria academia clandestina nos fundos de casa. Era uma casa extremamentesimples, onde viviam ele, a irmã e a mãe. Os quartos eram divididos por folhas de compensado. Casa bem pequena, mas tinha a vantagem de possuir um pátio nos fundos. Bom, na academia, apelidada carinhosamente por nós de “No genetics Gym”, já que a galera que treinava ali tinha uma péssima genética para fisiculturista, tínhamos alguns aparelhos rudimentares transmissores de tétano, alguns pesos, um chiqueiro com uma porquinha preta (sim, dividíamos espaço com ela) que conseguia feder mais que a gente, e o mais legal é que não tínhamos teto. Sim, treinávamos sob a luz do sol, ou sob a chuva dependendo do dia. Pagávamos 2 dólares por mês para treinar lá. Aquilo sim era dedicação: todo mundo com comida racionada, sem suplementos, sem telhado na academia, sem espelho nas paredes pra ficar se olhando, sentindo fedor de bosta de porco no ar. O dono da academia que também fazia o papel de personal trainer, dizia na época que se o empresário e fisiculturista Joe Weider nos visse treinando, possivelmente iria nos resgatar de helicóptero pois ficaria impressionado com nossa garra. Esse meu amigo, manjava tudo de treinos. Seu maior arrependimento na vida foi o de ter amarelado quando tinham planejado fugir para os Estados Unidos de balsa. Os amigos que foram, conseguiram atravessar o mar e chegar na Flórida. E todos eles, até os de Q.I. menos avantajado, se deram bem por lá. O que lhe consolava era que os amigos mandavam algumas revistas de fisiculturismo para que ele pudesse ficar por dentro do esporte. O grito de guerra mais pronunciado lá no ginásio era: “Vai!! Sem comida!!” Tínhamos a capacidade de transformar a desgraça em piada e até mesmo motivação. Anos depois, já pude treinar em várias academias bacanas, cheias de equipamentos sofisticados, e sem a Peppa Pig para dividir o espaço. Mas até hoje nunca me senti tão bem e tão empolgado para treinar como naquele lugar sem teto. Aqueles dois dólares mensais que eu pagava lá, foram muito bem gastos. Minha conversão Lembro-me bem dos fatos que fizeram com que eu me convertesse. Não estou falando de religião (apesar que para algumas pessoas, política é mais forte que crença religiosa), Bom, deixa eu me explicar. Fui criado em uma educação de esquerda. Não à toa escolhi morar em cuba. Nos dois primeiros anos eu era socialista. Fã do Che Guevara. Amante da esquerda e a porra toda. Fazia parte inclusive de uma brigada estrangeira que levava o nome do Che. Vai vendo. O que acontece, é que os caras conseguem esconder bem durante um bom tempo todo o lixo que rola por lá. Vejam, eu fui me decepcionar com o socialismo e passar a não acreditar mais nele, no terceiro ano vivendo em Cuba. Entre as coisas que me fizeram sentir uma profunda decepção pelo sistema, e que já descrevi em outras histórias desse livro, teve uma que foi talvez a gota d’água, e vou tentar descrever. No terceiro ano de faculdade, passamos todas as manhãs do ano na enfermaria de medicina interna do hospital, cada um com seus pacientes. Precisávamos chegar cedo, conversar com os pacientes que cada um tinha ficado responsável, examinar, revisar a prescrição com o médico residente, escrever no prontuário, checar os exames, etc. Quando era um paciente novo, era um Deus nos acuda, pois tínhamos que tirar toda a história, e precisávamos formular pelo menos uma hipótese diagnostica por escrito com no mínimo três diagnósticos diferenciais, que tinham que ser detalhados também por escrito. No meio da manhã, o professor chefe da enfermaria, passava visita e discutia um a um dos casos na beira do leito do paciente. Foi naquele ano que eu me inclinei para a área clínica, pois achava aquela arte de fazer diagnóstico algo muito bacana. Todo esse blábláblá é apenas para apresentar a vocês a minha colega de turma, Marcela (modifiquei o nome por motivos que já citei anteriormente). Marcela era uma menina bonitinha, que me chamava a atenção. Tinha uns traços meio árabes, e umas pernas fantásticas. Pronto, já voltei ao foco do que estava escrevendo. Marcela era uma menina meio negligente com a faculdade. Chegava atrasada na enfermaria, fingia que estava trabalhando (essa era a parte que mais me irritava), correndo pra lá e pra cá com uma pilha de prontuários debaixo do braço, e sempre na hora das discussões à beira do leito ela não tinha feito nem metade do trabalho que precisava. Ela era preguiçosa, só que sempre tinha uma desculpa pra tudo, nunca assumia a culpa e nunca tentava melhorar. Dentre as minhas colegas daquele ano, Marcela era a mais comunista e amante do regime, o que era motivo de riso às vezes, até mesmo entre as amigas cubanas. Lembro da vez que ela disse que Hugo Chávez era lindo, e uma das amigas falou: lindo? A não Marcela, não força a barra. Lembro dela me falando uma vez de um evento das mulheres comunistas, com aquelas frases clichês e batidas que a gente costumava ouvir na TV todos os dias. E numa de nossas conversas, ela me contou que a mãe trabalhava para o partido comunista (eu não lembro que cargo ela tinha na época). Até aí beleza. Mas o que foi que a Marcela disse ou fez, que me levou a perder a crença no socialismo? Bom, na verdade ela não fez nada, mas uma vez eu precisei ir até sua casa para pegar um livro, e foi aí que eu me converti. Vejam, eu costumava frequentar a casa de vários amigos cubanos, e o que eu via, é que a maioria deles morava muito, muito mal. Salvo os que tinham parente em Miami, ou os que viviam na ilegalidade, a maioria morava em casebres e tinha uma TV de tubo em preto e branco. A mãe da Marcela não tinha parente em Miami, mas ela “era do partido”. Cara, a casa da menina dava de dez a zero em qualquer residência dos meus outros amigos. Geladeira bacana, TV a cores, móveis legais, e pasmem, carro na garagem. Pode parecer besteira, mas aquilo me pareceu tão hipócrita, que fiquei com nojo. As mesmas pessoas que defendiam o comunismo com unhas e dentes, e que falavam da igualdade, eram as que se beneficiavam por trabalhar para o partido. E nesse embalo ia Marcela, cagando para a medicina, fazendo a faculdade só por fazer, cada vez mais envolvida nas coisas do partido comunista para poder mamar nas tetas do governo e tirar vantagem assim como a mãe fazia. Uma irresponsável, preguiçosa, que não assumia a culpa nunca e só tinha um objetivo na vida: continuar recebendo as benesses que uma pequena elite recebia. Nesse ponto Cuba se parecia bastante à atual bananolândia em que vivemos. E esse foi o tiro de misericórdia no último suspiro que eu tinha de admiração pelo socialismo. A Odebrecht é aqui Com o passar dos anos, fui cada vez mais percebendo que as coisas em Cuba só funcionavam na base da propina e da ilegalidade. Só que eu era um cara turrão. No fundo, eu era sim um revolucionário, porque eu não conseguia compactuar com aquilo e não conseguia ficar calado. Mas deixa eu confessar um negócio, lá no meu último ano eu entrei no jogo. Apesar de morarmos na mesma casa, alguns estudantes tinham privilégios que eu não tinha. Travesseiro nos quartos (passei um ano sem travesseiro, dormindo em uma blusa enrolada), chuveiro elétrico no banheiro (era proibido em Cuba, mas os caras tinham) enquanto eu tinha só um cano na parede que saía um fio de água gelada. Esses caras que conseguiam as coisas, viviam “emprestando” grana para o administrador da casa, traziam presentes de seus respectivos países, davam garrafas de bebida para o cara. Eu como me recusava a entrar nesse jogo, e era muito orgulhoso, só ficava me fodendo e dando murro em ponta de faca. Já no quinto ano que eu estava lá, desisti e resolvi me render ao esquema. Trouxe alguns presentes para o chefe da casa quando voltei de férias do Brasil. Tudocoisa simples, mas que já fez todo o jogo mudar. Em menos de duas semanas depois de levar as propinas, digo, os presentes, eu consegui chuveiro elétrico no quarto, consegui travesseiro, e algumas outras regalias. Fora que o cara começou a me tratar super bem (antes ele só me olhava com cara de bunda). É duro admitir, mas aquele ano foi bem mais suave para mim. Aí você vê que não importa qual sistema está implementado, o ser humano é um filho da puta. A diferença é que uns são filhos da puta de direita e outros filhos da puta de esquerda. No final todo esgoto vai pro mesmo ralo. Jeitinho brasileiro... ou libanês Tinha uma época que entrar em Cuba virou um tormento lá no aeroporto. Os caras estavam fazendo marcação cerrada em cima das malas que vinham de fora, e confiscavam praticamente todos os aparelhos eletrônicos ou elétricos que os turistas tentavam botar pra dentro. As questões aqui eram duas principais: não deixar passar equipamentos que consumissem muita energia elétrica, já que era uma coisa escassa e racionada lá no país, e também não deixar passar aparelhos de DVD ou de vídeo cassete (sim, tinha disso ainda na época). Motivo de confiscar os aparelhos de DVD juntamente com os discos que eram trazidos de fora? Não permitir que a população tivesse acesso a conteúdo antirrevolucionário. O governo sabia que ao restringir internet, e ao ter apenas dois canais de TV estatais com toda a programação controlada, era um pouco mais fácil enganar o povo e fazer lavagem cerebral para se manter no poder. Se o cara tivesse um aparelho de DVD, poderia ter acesso àquele conteúdo maldito do capitalismo opressor, e aí já viu né. Bom, lembra que eu contei que trazia duas malas cheias de comida? Com trocentos pacotes de miojo e tal? Pois é, minha mãe arrumava minha mala de um jeito que cabia tipo um universo numa casca de noz. Até os pacotinhos de suco instantâneo ela dobrava ao meio pra economizar espaço. A mala era praticamente uma mina terrestre, uma vez que eu encostasse nela pra abrir, explodia aquela porra toda de coisas lá de dentro, e nunca mais eu colocava de volta. Pois bem, minha mala recebeu uma marcação na etiqueta para ser inspecionada. Tudo isso graças a uma sanduicheira elétrica velha que eu estava trazendo. Meu, eu tava realmente cagando praquela sanduicheira velha. Meu desespero foi ter visto como os caras inspecionavam a mala da galera. Neguinho pegava as coisas e ia jogando em cima do balcão, fuçavam até dentro dos sapatos, iam fazendo aquela montanha de coisas e no final, você tinha que se virar pra botar tudo de novo na mala e cair fora. Eu tava ferrado Só que eu não contava com a astúcia de um carinha que morava lá na mesma casa que eu. O bicho era brasileiro de família Libanesa, que conseguia dar nó até em pingo d’água. O cara percebeu que conseguia sair do aeroporto só com uma das malas sem a etiqueta marcada. Assim quando passava pelos guardas, eles olhavam a etiqueta normal, e deixavam seguir. Acontece que não tinha uma fiscalização rigorosa para quem voltava ao salão de desembarque. Então esse cara bolou um esquema que para ele era óbvio, mas que para o burrão aqui foi uma baita jogada de cinema. Ele saía com a mala de etiqueta sem marcação. Lá fora deixava a mala com um amigo, arrancava essa etiqueta e colocava no bolso. Uma vez de volta ao saguão, tirava a etiqueta marcada da mala que seria inspecionada, e colava aquela limpa para passar com a mala suspeita livremente pelos guardas. E assim dei meu jeitinho brasileiro, ou melhor, libanês, para entrar com a sanduicheira velha no pais sem que revirassem todas as minhas coisas. Cuba me transformava cada vez mais em criminoso. Alô, sou eu, tchau Alguns itens básicos de consumo lá em Cuba tinham preços exorbitantes, assim como alguns serviços. Some-se a isso o fato do preço ser em dólar, em uma época que o real desvalorizou a ponto de um doleta chegar a custar 4 realitos. Um dos negócios que caia nessa categoria “valor de um rim”, eram os cartões telefônicos para ligações internacionais. Tínhamos um de dez dólares que te permitia falar durante a eternidade de dois minutos e quarenta segundos com o Brasil. Além disso a ligação tinha um delay importante, então você falava, a pessoa só ouvia depois de alguns segundos, ficava mudo, e depois de mais uns segundos você ouvia a resposta. Eu comprava um cartão desses de vez em quando para ligar pra namorada no Brasil. Vocês devem imaginar que com dois minutos e uns quebrados, não dava pra entrar em nenhum assunto mais aprofundado, então a ligação era sempre aquele negócio esquisito: Oi, tudo bem, como está, tô com saudade, tô aqui fazendo não sei o que, o cartão tá acabando, beijos, te amo, tchau. Aí uma época lá, um brasileiro (tinha que ser né) descobriu que se você solicitasse uma ligação internacional, de um telefone fixo a cobrar para um celular pré-pago no Brasil, a ligação completava e nem você nem a pessoa do outro lado pagavam a conta. Velho, o passatempo da galera na casa dos estudantes era ficar falando no telefone o dia inteiro. Fazia fila no negócio. A qualquer hora do dia que você passasse lá tinha alguém fazendo juras de amor pra namorada ou pro namorado lá do outro lado do mundo. Teve um sem noção uma vez que até ficou no telefone tocando violão para a namorada. Me recuso a contar que esse sem noção fui eu. Como alegria de pobre dura pouco, o pessoal da companhia telefônica cubana descobriu o esquema e começaram a recusar as ligações para celulares pré-pagos. Acabou a brincadeira, e todos voltamos a vender as córneas para poder comprar um cartão e ter aquele papo cabeça de dois minutos de vez em quando. Pelo menos até outro brasileiro descobrir um esquema alternativo. Era só malandragem. Não vai ter golpe, mas teve Falei de um monte de falcatruas que a galera aprontava lá né. Mas quando o quesito era “dar o golpe” os cubanos também eram criativos. Lembram do Uno Mille que eu aluguei? Pois é, eu paguei com dólares que havia comprado no banco do brasil na época, tudo certinho como manda o figurino. Alguns dias depois de ter devolvido o carro na locadora, dois funcionários de lá aparecem no portão da casa dos estudantes querendo falar comigo. Um deles tirou uma folha de papel do bolso, com uma fotocópia de uma nota de cem dólares, e um carimbo meio migué escrito “falsa”. O cara com todo seu ar teatral me disse que infelizmente uma das notas que eu havia usado pra pagar o carro era falsificada, e que caso eu quisesse poderia resolver ali mesmo com eles. Velho, até hoje não me conformo o quanto fui burro. Engoli a história dos estelionatários, catei uma nota de cem conto no meu armário, e entreguei na mão dos caras. Quando contei pro meu velho sobre o ocorrido, ele falou inconformado: filho, os caras te passaram a perna. Mas nada como um dia após o outro né? Uns meses depois fiquei sabendo que os mesmos caras foram presos em um esquema de estelionato e se ferraram na cadeia. Mentira, nenhum dos dois se ferrou e cada um aproveitou a grana que me roubaram. Só achei que os dois na cadeia, seria uma forma mais legal de terminar essa história com uma baita lição. No fundo a única lição que ficou, é que eu fui trouxa pra cacete. Pablo, o contrabandista Não, não era o Pablo Escobar. Esse era um gordinho bochechudo com bigode ruivo que parecia aqueles personagens de desenho animado. Conheci o Pablo na igreja. Ele era alguma coisa importante lá dentro. Ministro, diácono ou sei lá como chamava aquilo. No final da missa o cara veio lá puxar papo com a gente (os cubanos adoravam fazer um networking com os estrangeiros), e usando de todo aquele ambiente santo, o “irmão” Pablo me ofereceu seus serviços. O gordinho vendiacamarão e lagosta a preços bem acessíveis. A primeira vez que fui em sua casa comprar a iguaria, estranhei toda a discrição com a qual ele me atendeu. Inclusive estava preocupado para que os vizinhos não sentissem cheiro de camarão. Lembro que ele disse sorrindo, daquele jeito bonachão, para que eu não espalhasse que ele vendia frutos do mar. Segundo ele, não queria ficar conhecido como “Pablo do camarão”. Com um tempo morando lá em Cuba, descobri que boa parte dos cubanos fazia a vida desviando comida dos hotéis. E era o que Pablo fazia. Ele retirava o “dízimo” do hotel em camarões, e vendia para os estrangeiros. Aqui eu me tornava um receptador de produtos roubados. Cuba me transformou em um verdadeiro gângster. Mas o camarão ficou uma delícia. Os eventos de fachada Uma das coisas que descobri sendo um “insider” lá no governo comunista, foram os eventos de fachada. Tá ligado naqueles discursos de Fidel, que reúnem caralhadas de milhares de pessoas em uma praça, e todo mundo vai lá apoiar e balançar a bandeirinha? Tudo fake. Como assim? Na verdade, tinha mesmo toda aquela galera lá balançando bandeiras, não eram efeitos especiais de Hollywood. Mas o negócio é que todos que estavam lá, eram obrigados a estar. Lembro de uma vez que o próprio Fidel ia até a cidade onde eu morava dar um discurso. Nas semanas antes do evento, todos os dias éramos lembrados na faculdade, que tínhamos obrigação de ir. Até lista de chamada tinha, e aquilo ali contava como atividade curricular obrigatória. Nas empresas era a mesma coisa. Todos os funcionários eram obrigados a ir, sob pena de represália e punição. O esquema que se armava era um negócio gigantesco. Uma porrada de ônibus e caminhões passava nas escolas, faculdades, empresas e bairros para pegar a galera e levar para a praça. Vinha gente até das cidades vizinhas. Uma das queixas dos cubanos na época, é que faltava combustível para alimentar a rede elétrica e mesmo o transporte público e privado, em consequência disso passávamos por apagões de 12 a 14 horas. Mas combustível para armar toda aquela lambança não faltava. Era o governo socialista mais preocupado com a sua propaganda do que com a população. Uma coisa curiosa: todo mundo ganhava uma bandeirinha de cuba para ficar balançando na praça, mas lembro de uma orientação que me deram, que eu não devia balançar a bandeira de lado como é o normal de se fazer, e sim para frente e para trás. Motivo? Segundo eles, balançar de lado poderia dar a impressão de que eu estava fazendo sinal de “negativo” para o discurso do homem da barba. Balançar de frente por outro lado, dava uma impressão de que eu estava concordando. Tá bom de lavagem cerebral pra você ou quer mais? Amigo é amigo Uma coisa muito bacana de Cuba, é que eu fiz alguns dos melhores amigos da minha vida por lá. Obviamente com toda a escassez que havia, você tinha que diferenciar quem queria ser seu amigo de verdade, e quem só queria se aproveitar da sua situação de estrangeiro para descolar algum benefício. Dentre os bons amigos que fiz posso citar alguns: Evelio, Michel, Salinas, Abraham, Coello. Abraham, ou Abe como costumávamos chamá-lo, era um cara peculiar. Inteligentíssimo, introvertido, de poucas palavras, mas quando abria a boca pra falar era algo sempre extremamente válido. Coisa pra se anotar Lembro de um episódio que passamos juntos e que ficou marcado em minha vida. Eu estava atrás de uns livros com o conteúdo programático da faculdade. Só que esses livros eram tipo cabeça de bacalhau. Ninguém nunca viu. Na verdade, eu já tinha conseguido alguns, e precisava de mais dois ainda. Pegamos nossas bikes e saímos bater nas casas dos professores tentando encontrar os benditos livros que faltavam. Em cada porta que batíamos, recebíamos a informação de que poderíamos encontrar os livros com fulano, ou no lugar tal. Virou quase que uma caça ao tesouro, e percorremos a cidade inteira de bicicleta naquele dia. Abe que não tinha obrigação nenhuma de me ajudar com aquilo, fez questão de me acompanhar. Um dos últimos destinos que nos encaminharam, foi para uma livraria pública em um recanto da cidade, só que para nosso azar (ou melhor, para meu azar), ela estava fechada. Subimos na janela para bisbilhotar lá dentro, e para minha surpresa, lá no fundo das prateleiras, estavam os livros. Só tinha um pequeno porém: eu não sabia se lá no meio deles realmente estavam aqueles que eu precisava, já que pela distância, apenas conseguia reconhecer a capa, mas era impossível identificar quais volumes estavam lá. Eu já estava desanimado e me programando para voltar outro dia até lá, quando a livraria estivesse aberta. Mas Abe não era um cara que desistia fácil, e teve uma ideia genial. Fomos até sua casa, catamos um par de binóculos velhos que ele tinha guardado, e voltamos até a livraria. Lá da janela, como se fossemos dois malucos, ficamos olhando de binóculos para dentro da livraria para tentar ler e identificar se entre aqueles livros que estavam expostos lá no fundo, encontravam-se os que eu tanto almejava. Infelizmente não estavam lá. Mandei um e-mail para meu velho dizendo que não tinha conseguido os livros (era ele quem estava me cobrando aquele material), e acabei levando uma baita de uma bronca. Meio triste e desolado, me sobrou apenas ficar conformado com toda aquela situação e agradecer ao Abe por ter me acompanhado. Com todo o cansaço, ele ainda foi capaz de proferir algumas palavras e conselhos para me encher de ânimo, e fez questão de dizer que havia curtido nossa aventura. No final do dia nos despedimos, e ele foi de volta para sua casa levando os binóculos. Até hoje considero o cara um dos meus maiores Brothers. Afinal, amigo é amigo. Cliente inconveniente Se tem uma coisa que o socialismo sabe fazer como ninguém, é acabar com a cultura de satisfação do cliente e bom atendimento. Era incrível como lá em Cuba, mesmo nas lojas em que se comprava em dólar, e mesmo você sendo estrangeiro, o tratamento era semelhante ao das repartições públicas brasileiras daquelas onde o cara tá lá batendo ponto há 30 anos sem ter tesão nenhum pelo trabalho. Parecia que estavam fazendo um favor em te atender. Lembro de uma vez que fomos a uma lanchonete, que era péssima e só servia porcaria, mas que era o que tinha de melhor por lá, chamada “el rápido”. Não preciso dizer que o nome não fazia jus ao atendimento. Meu amigo chegou no balcão e pediu alguma coisa que eu não lembro, e em seguida pediu um chocolate que estava a uns dois passos de onde estava a moça que atendia. Ela entregou a comida para ele, e então chegou a minha vez na fila. Eu falei que queria um chocolate também. O que se passou aí foi algo surreal. Cheguei a pensar que estava sendo filmado e tratava-se de alguma pegadinha. A moça do balcão gritou comigo me dando a maior bronca: se você viu que teu amigo pediu um chocolate, por que não mandou eu pegar dois de uma vez? Vai me fazer ir até lá pegar outro!! Sério, esse “ir até lá”, era os dois passos que ela precisava dar para alcançar o outro chocolate. Eu fechei a cara e avisei que neste caso não iria querer nada. A moça até se sentiu mal e acabou tentando remediar a situação, mas fui irredutível e não comprei nada. No final das contas mantive o orgulho intacto, e também a fome, já que fiquei sem comer. Como eu era burro. O papelzinho Certa vez, fomos a um restaurante chinês. Assim, lá em Cuba tinham alguns estabelecimentos estatais que vendiam coisas na moeda local, mas que na maior parte do tempo estavam fechados por escassez de produtos. Quando por algum milagre do universo eles abriam, a galera ia em peso lá e em poucos dias acabava tudo. Aí era mais alguns meses fechado. Bom,o restaurante chinês abriu. Não que tivesse grande coisa, mas pelo menos dava pra comer algo diferente. Fomos em seis amigos, e quem nos atendeu foi uma tiazinha com uma baita cara de ódio. Você podia sentir o quanto ela estava puta da vida por ter que trabalhar, já que possivelmente nas últimas semanas como não havia comida no restaurante, ela pode ficar de boa. Bom, ela chegou com uma caneta e um pedacinho de papel e anotou nossos pedidos ali. Esse papelzinho cabia na palma da mão dela. Todos nós pedimos suco de laranja, e assim que tomei meu primeiro copo de suco, chamei a tia para pedir mais um. Quando ela começou a anotar meu pedido naquele papel, outro amigo pediu um repeteco do suco, e já na sequência um terceiro amigo também disse que queria mais um. Nessa hora a tiazinha parou de escrever e deu uma baita bronca na gente: vocês ficam pedindo muita coisa e agora não cabe no papel! Não vou trazer nada! Cara, juro pra vocês. A tia simplesmente virou as costas e deixou todo mundo sem suco. Acabamos rindo da situação e fomos comer no outro restaurante concorrente da esquina. Lógico que não né, lá não existia outro restaurante, nem concorrência, nem papelzinho extra. Saímos de lá com sede. Deixa crescer! A primeira vez que fui cortar o cabelo em Cuba foi um desastre. Não há explicação para tamanha falta de senso estético daquele barbeiro. Parecia que ele tinha sido contratado como responsável pelo meu trote de vestibular. Passado esse episódio fatídico, conheci um carinha que mandava muito bem na tesoura. O salão dele era repleto de caras do gueto, que falavam um espanhol praticamente ininteligível e que gostavam de desenhar o símbolo da Nike no cabelo. Lembro que só comecei a entender de verdade as conversas daqueles malucos depois de mais de um ano morando lá. Certa vez eu estava na capital, e resolvi que iria cortar o cabelo em um lugar mais foda. Tinha um hotel chique lá, e eu decidi morrer em uma grana mais alta para que um dos profissionais do local desse um trato na minha juba. Vale lembrar que na época eu tinha mais cabelo e deixava ele mais comprido. Quando sentei na cadeira do cara, ele olhou meu cabelo, olhou de novo, analisou, e me disse: por que você não deixa crescer mais? Falei que não queria, que preferia cortar mais curto. Pois o cara sem a mínima vontade de trabalhar, deu duas tesouradas no meu cabelo, cortando um milímetro da ponta dele, olhou pra mim e disse: pronto! Foi o corte de cabelo mais rápido e mais caro da minha vida. Precisei chegar em casa e aparar mais umas pontas sozinho com uma tesoura dessas de cortar papel. Reclamar? Não. Em Cuba o cliente nunca tem razão. Os leões em cima da carne Logo que cheguei em Cuba, o pessoal de lá me contou que era proibido matar vacas no país. A justificativa? O leite era muito mais importante do que a carne. Sendo assim, raramente comíamos carne bovina, e quando comíamos, era tão dura que certamente não tinham mesmo matado a vaca, ela provavelmente havia morrido de velha. Uma vez um cubano chegou a me dizer que se você atropelasse uma vaca, pegaria mais anos de cadeia do que se atropelasse uma pessoa. Cuba parecia a índia. Lá as vacas eram sagradas. Mas de vez em quando descolávamos uma carninha, e em raríssimas ocasiões fizemos algo que lembrava vagamente um churrasco brasileiro. Cara, lembro que a fome era tanta, que ficávamos como leões em cima da carne, esperando assar, e assim que ela era tirada da grelha e ia para a mesa, queimávamos a ponta dos dedos, a boca e o esôfago, já que se você esperasse esfriar, comia menos. Parecia que havíamos saído da cadeia, ou que tínhamos ficado em uma ilha deserta sem carne por muito tempo. Quer dizer, essa última parte, tirando o “deserta”, era verdade. Uma vez estávamos lá curtindo um desses churrasquinhos, quando um estudante maconheiro meio maluco que estava começando o primeiro semestre chegou bêbado onde estávamos. O cara era tão pirado, que a impressão que eu tinha era de que os pais tinham mandado ele embora do Brasil para ter uma folga. Bom, voltando ao assunto, o maluco apareceu lá no churrasco bêbado, viu que o negócio já tinha começado, e não sei porque cargas d’água se sentiu ofendido, pois não havíamos esperado ele. Velho, o cara sabia o horário que o negócio ia começar, e foi o único que atrasou. Além disso, ainda tinha comida o suficiente para que ele pudesse aproveitar. Mas ele não quis aproveitar, sabe o que ele fez? Virou a mesa de carne no chão. Existem algumas coisas que você não pode fazer na vida. Por exemplo: mexer com a namorada do chefe do morro, enfiar o dedo na tomada, pular do avião sem paraquedas, e, jogar no chão a comida de um grupo de caras esfomeados. Nosso amigo mais gordinho tomou aquilo como uma ofensa pessoal, e deu uma surra no cara, que saiu de lá esbravejando e com o nariz sangrando. Nós nessa situação fizemos o que era mais prudente, e o que qualquer pessoa faria: juntamos a carne do chão, demos uma limpada na bermuda, e comemos. Assim agem os leões. Saudade do Brasil? Uma coisa que notei nos meus anos morando em Cuba, é que o nepotismo é disseminado. Nas casas de estudante que eu morei e conheci, os funcionários eram sempre parentes de alguém importante do partido ou da universidade. Na primeira casa, o administrador era marido da reitora, a cozinheira era cunhada dela, o motorista era irmão de uma das chefonas lá da faculdade, e assim caminhava o esquema. Certa vez, numa das inúmeras vezes em que faltou água no meu quarto, eu saí cedinho, umas 6 da manhã, para escovar os dentes na pia lá de fora. Quando eu estava escovando os dentes, olhei pelo canto da parede da casa e enxerguei o administrador enchendo de carne o porta malas do carro do motorista (aquele que era irmão da chefona da faculdade). Mas enchendo mesmo! Lembra que eu comentei sobre a escassez de alimentos na casa dos estudantes, e de como nos serviam mínimas porções de comida? Ali eu enxergava um dos motivos disso acontecer. Mas é lógico que eles não estavam roubando né, afinal, ali era todo mundo socialista. Provavelmente eles só iam levar aquela carne toda para distribuir entre os mais pobres. Se bem que me disseram que em cuba não tem pobre. Então pode ser que eu tenha apenas delirado. Sabe como é né, muito estudo faz a gente ver coisas. Nossa vã filosofia Uma das matérias que tínhamos nos primeiros anos de faculdade, era filosofia. Na época, eu ainda era um ferrenho defensor do sistema socialista e acreditava em tudo aquilo. As aulas eram basicamente um ensaio para lavar o cérebro da moçada e fazer com que eles defendessem e acatassem todas as decisões do governo. Aprendíamos que a criança na barriga da mãe ainda não era um ser humano pois não havia iniciado seu processo de socialização (para justificar o aborto livre e indiscriminado em Cuba). Aprendíamos que era sim possível chegar a um socialismo utópico, onde tudo era de todos, e todos éramos iguais. Aprendíamos que Cuba era o melhor lugar do mundo para se viver, e que o império ianque era uma droga. Sinceramente, apesar de ainda ser socialista nessa época, achava aquelas aulas um tanto quanto maçantes, e não concordava com tudo o que a professora dizia. Só que aprendi muito rápido uma coisa: se você não concordasse, era melhor fingir do que argumentar. Vi amigos cubanos levarem notas baixas por discordarem de alguns absurdos que eram falados em sala. E veja, quando eles discordavam, o faziam com argumentos muito inteligentes e bem fundamentados. Não interessava. Ou você dizia amém cegamente para tudo o que te enfiavam goela abaixo, ou ia mal na matéria. Eu era um aluno estrelinha. Tinha notas altas na faculdade, e não queria de forma alguma manchar minha média com uma nota baixa naquela matéria que eu nem consideravaassim tão fundamental. O que eu fiz? Criei um algoritmo pessoal que me fazia ir bem em todas as aulas e avaliações de filosofia, independente do tema, mesmo sem estudar. O algoritmo consistia em começar elogiando e corroborando tudo o que a professora falou, em seguida meter o pau no Brasil (que na época tinha um presidente tucano) e nos EUA. E finalizar exaltando o governo e o país de Cuba, como se fosse a terra dos sonhos de qualquer pessoa. Era infalível. Funcionava para qualquer tema, e assim eu não precisava estudar filosofia, e usava o tempo para matérias que considerava mais interessantes como fisiologia e anatomia. Ainda bem que essas aulas aconteceram nos primeiros dois anos de faculdade, enquanto eu ainda não tinha me decepcionado com o socialismo. Se tivesse sido depois, possivelmente eu teria reprovado. Corra Lola, corra!! Uma noite, estava voltando pra casa de bicicleta, junto com meu amigo e colega de quarto Japa, e íamos batendo papo pelo caminho. A rua que nos levava até a casa era na verdade uma rodovia bastante escura. Logo depois que passamos por uma ponte, em uma curva fechada, dois caras mal-encarados saíram de trás de uns arbustos e correram em nossa direção. Em cuba, era extremamente comum os roubos de bicicleta, e nós que trabalhávamos no hospital e víamos com muita frequência pessoas com ferimentos graves de facão, já sabíamos até as armas que os bandidos costumavam usar. No calor do momento e pensando em salvar a minha vida, pulei da bicicleta ao mesmo tempo que a joguei em direção ao ladrão. Gritei pro Japa: larga a bicicleta e corre!! Quando eu comecei a correr em fuga desesperada, vi que o cara correu atrás de mim. Eu podia ser péssimo para esportes com bola, mas eu corria rápido como um demônio na época de faculdade. Meti sebo nas canelas e corri como se não houvesse amanhã. O Japa era um cara baixinho de pernas curtas e acabou ficando pra trás. Tive a certeza de que o segundo bandido já o havia matado. Apesar da profunda tristeza que senti, decidi que eu devia continuar correndo para salvar minha vida, já que não havia mais nada a ser feito pelo pobre falecido Japonês. Acontece que o desgraçado do bandido não desistia, e por mais que eu corresse ele continuava atrás de mim. Já fiquei imaginando como seria ruim ser esquartejado, ou estuprado, sei lá. Alguns passos a frente, vejo o quartel da polícia. Não tive dúvidas, comecei a gritar por socorro em espanhol: auxiliooooooooo policiaaaaaaa!!! Gritava e corria, gritava e corria, até perceber que a gritaria estava prejudicando meu fôlego, então decidi apenas correr. Mais um tempinho de corrida, e um carro de policia vem na direção contrária com a sirene ligada. Pensei: é a minha salvação. Para minha surpresa o carro parou na minha frente, e dele saiu um policial brutamontes, que também começou a correr atrás de mim. Só nesse momento pensei que algo estava estranho e decidi parar. Quando parei, tanto o bandido quando o policial, me agarraram e me dominaram. Resulta que o tal bandido não era tão bandido assim. Era um policial a paisana. Quando olho para trás, vi que o Japa ainda estava vivo. Tomei uma bronca federal do policial, que me xingou por eu ter corrido. Eu ainda tentei argumentar dizendo que eu corri pois ele não havia se identificado. Ele de forma muito gentil só pediu para que eu calasse a boca e não tentasse ensinar como deveria fazer seu trabalho. Desfeito o mal-entendido, fomos liberados. Minhas pernas quase não obedeciam. Foi um dos maiores sustos que tomei na vida. Acredito que hoje, mais de dez anos após o ocorrido, o cara ainda é zoado no quartel da polícia por ter tomado um baita de um couro na corrida para o Usain Bolt brasileiro. Medicina por amor Um dos maiores mitos do mundo é o tal do: “medicina por amor”. Ninguém exerce a medicina ou qualquer outra profissão “por” amor. No máximo o fazemos “com” amor, já que como todos nós sabemos, amor não paga as contas. Cuba é muito famosa por exportar médicos em missões solidárias para diversos países. Só que o que a maioria não sabe, é que os médicos que topam ir nessas missões não o fazem por amor à profissão, mas sim porque vão receber no mínimo dez vezes mais do que receberiam caso ficassem trabalhando na ilha. Fora isso, havia um programa de incentivo do governo para os médicos que iam a outros países trabalharem nessas missões, não só do ponto de vista financeiro. Por exemplo, o médico que fosse a uma missão internacional, ao retornar teria prioridade para escolher a área em que iria fazer especialização. Além disso, durante essas missões, muitos recebiam presentes dos cidadãos locais, e na hora de voltar pra casa era feita uma certa “vista grossa” no aeroporto para que pudessem entrar com seus gadgets e presentes. Quem aqui não lembra da seleção brasileira de futebol em 1994, em seu retorno dos Estados Unidos. Os jogadores vieram carregados de muamba, e a aduana liberou numa boa pelo simples fato de serem celebridades. Acontece um pouco parecido nesses casos dos médicos de Cuba. Muitos acabam usando essas missões como uma ponte para pular fora de Cuba para sempre. É só ver que vários dos cubanos que vieram pelo programa “Mais Médicos”, fugiram do Brasil para os EUA. Outros casaram com brasileiras para tentar ficar por aqui. Outros pediram asilo político. Lembro de uma reportagem na TV, de uma médica cubana metendo o pau nos médicos do Brasil, dizendo que aqui só queriam saber de dinheiro e não queriam trabalhar por amor. Pois bem, vamos a algumas continhas básicas para calcular esse “amor”. Os cubanos especialistas na época que eu morava lá, ganhavam vinte e cinco dólares de salário mensal. Aqui no Brasil, o programa “mais médicos” pagava dez mil reais de salário, porém, dessa grana, apenas dois mil reais iam para o médico, enquanto oito mil reais iam para Cuba (dizem as más línguas que parte desses oito contos aí, voltava para os nossos queridos políticos, mas são apenas teorias da conspiração e não irei entrar nesse mérito). Então ao invés de ganhar vinte e cinco dólares por mês, nossa amiga muito amorosa passava a ganhar dois mil realitos. Convertendo isso para valores atuais de cotação do dólar, a nossa amiga que só trabalha por amor e que indiretamente chamou os médicos brasileiros de mercenários, estava ganhando 20 vezes mais no Brasil. É muito amor né. Some-se a isso àqueles benefícios que comentei anteriormente, os presentes, e mesmo a possibilidade de comprar produtos mais baratos no Brasil para levar de volta a Cuba, e conseguimos explicar esse amor tão grande. All we need is love. A advertência Certa vez em uma aula de microbiologia, estávamos lá entretidos com bactérias e afins, quando no meio da classe um dos alunos se levantou, pediu licença ao professor e foi até a frente. Todo mundo ficou olhando sem entender muito bem o que acontecia. Lá da frente da sala, esse colega de turma anuncia que iria fazer um comunicado importante. Em seguida, chama pelo nome a um dos meus amigos cubanos, e pede: fulano, venha até aqui. Todos os olhares se dirigiram até o pobre coitado, que atravessou a sala de cabeça baixa. Quando chegou lá, o outro aluno, que era nosso amigo de turma, falou em tom agressivo que nosso colega estava sendo advertido na frente de todos os alunos, por ter cometido uma infração muito grave. Sabem o que foi que o cara fez? Ele não compareceu em um daqueles comícios fakes obrigatórios que eu havia mencionado anteriormente aqui no livro. Aquilo foi um show de humilhação pública. Escracharam o moleque lá na frente, e ainda exigiam que ele se desculpasse com a turma por não ter ido (como mero expectador diga-se de passagem) a um ato político. O cara pediu desculpas morrendode vergonha. Não bastando, pediram para que ele se justificasse diante da turma, e contasse a todos o motivo de não ter ido. Cara, o negócio aconteceu em um final de semana, e o moleque preferiu ficar com a namorada em casa sem fazer nada do que ir até lá escutar meia dúzia de baboseiras. Justo não? Pois lá isso não era permitido. O cara com os olhos marejados (de pura raiva), disse que não tinha justificativa e que simplesmente não havia conseguido comparecer. Terminaram aquela sessão de tortura psicológica com um ultimato: caso você falte em mais algum evento, estará automaticamente expulso da faculdade. O governo de Cuba era realmente um queridão né. Hans, o marido da mulher do Pepe Título confuso não? Deixa eu tentar explicar. Com aquela crise eterna lá no país, jovens que sonhavam com bens de consumo, e que não tinham muita esperança de conquistar os seus sonhos, acabavam terceirizando as namoradas. Era praticamente uma forma mais refinada de ser cafetão. Funcionava assim: Pepe, um jovem cubano descolado, que adorava roupas da moda e novas tecnologias, namorava Maria, uma menina com um rosto lindo de traços delicados e um corpo escultural. Maria era o sonho de qualquer cara da cidade. Para conseguir manter suas roupinhas da moda, Pepe fazia um trato com Maria, que era deveras peculiar. Ele a apresentava a algum turista estrangeiro, na maioria das vezes um senhor de meia idade de etnia alemã. O senhorzinho obviamente se encantava por Maria, e os dois se casavam. Maria ia morar na Alemanha, mas continuava sendo oficialmente a namorada de Pepe, afinal, os dois se amavam. Durante sua estadia na Alemanha, Maria usava a grana que o tiozinho lhe fornecia, para comprar roupas novas, tênis e presentes para Pepe. Normalmente nas férias ela vinha para Cuba uma semana antes do marido, e naqueles dias ela e Pepe viviam uma verdadeira lua de mel. Pepe feliz com suas roupas da moda, e com seu novo aparelho CD player, desfilava pelas ruas da cidade de mãos dadas com Maria. Com todo esse esquema, vinha aquela frase estranha:” - Ei Juan, vamos chamar o Pepe e a Maria para tomar uma cerveja hoje? – Puts, Pedro, a Maria não vem. Falei com o Pepe e ele vem sozinho, porque o marido da mulher dele está chegando hoje da Alemanha”. O importante é andar na moda, não é? Dá-me uma televisão, e eu te levarei para onde queiras Lembram do cara libanês que dava nó até em pingo d’água? Pois dessa vez o cara descolou um esquema forte. Com toda sua lábia e habilidade, conseguiu ficar amigo da Carmen Maria. Sim, aquela mesma dos presentinhos no aeroporto. Mas agora, o buraco era mais embaixo. O cara queria porque queria ser transferido para a capital do país. Normalmente tinha que rolar uma influência muito grande para conseguir tal façanha, pois as vagas eram extremamente limitadas e frequentemente reservadas aos caras com influência politica forte. Pois bem, numa bela tarde de sol do caribe, o rapaz aparece com um pequeno agrado na casa da dona Carmen Maria. Nada mais nada menos que uma TV a cores novinha, com controle remoto e tudo. Rapaz, a partir daí o céu era o limite. Não só ele foi transferido para Havana, como começou a exercer sua influência por lá para levar mais gente. Só que ele não levava de graça. Quem quisesse ir tinha que pagar um “pedágio”. Não era barato, e ainda era em dólar. Tá aí uma mentalidade empreendedora e com visão de futuro. O cara investiu em uma TV, e virou um agente de transferências para a capital. Tem meu respeito. A lei foi feita pra se cumprir Uma coisa que me impressionou uma vez, foi o quão ágil os caras eram para seguir as ordens do comandante em chefe Fidel Castro. Certa vez, cansado de tanto carinha vagabundo sem estudar nem trabalhar, que ficavam perambulando pelas praças pedindo grana ou tentando fazer negócios com os turistas (negócios = prostituição, venda de charutos roubados, etc.), Fidel apareceu em rede nacional e avisou, que todos aqueles que estivessem pela cidade no outro dia sem fazer nada, ou aqueles que estivessem sem documentos, seriam presos. Cara, no outro dia passei pelo centro de bicicleta e não tinha nenhum dos malucos que costumavam ficar por lá. Foi um negócio quase que automático. Paguei pau. Alguns meses depois encontrei um dos meninos com quem eu costumava conversar lá na praça. Comentei que ele nunca mais tinha aparecido, e ele me contou que foi preso por estar em um parque sem fazer nada, na manhã seguinte ao pronunciamento de Fidel. Havia passado aqueles meses preso no campo cortando cana. Percebi que a palavra “cana” se aplicava de forma literal para os presos de Cuba. Viva la revolución. Ronc Ronc Sabe quando você tem aquela coceira lá na garganta, que dá vontade de fazer aquele barulho parecido com o que a Peppa Pig faz no desenho, pra parar de coçar? Então, coçar a garganta com ruídos suínos estranhos na frente dos outros não é problema para os cubanos. Eles fazem isso de forma rotineira e natural. Pode ser dentro da sala de aula, no ônibus, no cinema, qualquer hora é hora. Uma vez uma amiga minha começou a fazer esses ruídos nada agradáveis do meu lado. Eu lancei um olhar torto pra ela e reclamei. Ela estranhou e me deu de ombros. Fui obrigado a falar que não entendia aquela mania de ficar fazendo ruídos estranhos com a garganta em público. A resposta da menina foi simples e direta: a garganta tá coçando, aí eu coço ué. Não tive argumentos para rebatê-la. Só torci para que o mesmo conceito não se aplicasse para coceira em outros lugares menos apropriados. Verdades inconvenientes Lembra lá no começo do livro, que eu comentei sobre a reportagem na TV que contava das maravilhas da medicina cubana, e de como eles haviam achado a cura para várias doenças. Além disso, as taxas de mortalidade infantil são baixíssimas. Pois bem, muita propaganda. A realidade era bem mais nua e crua. Nos hospitais faltava de tudo. Reaproveitávamos luvas que deveriam ser descartáveis, utilizávamos seringas e agulhas também reaproveitáveis que eram esterilizadas inúmeras vezes, nos virávamos com o que tínhamos na mão. Com muita frequência nas visitas e discussões de caso a beira de leito, ouvíamos coisas como: o tratamento dessa doença é feito com tal medicamento, mas nós não temos, então damos esse outro que não tem tanta eficácia. Sobre o milagre das “curas” das doenças diversas com os medicamentos exclusivos de Cuba, novamente uma falácia. Tratavam-se de doenças autoimunes que com muita frequência têm remissões espontâneas. Tudo o que se falava era baseado em “experiência”. Infelizmente quando falamos de uma intervenção terapêutica, experiência é o pior nível de evidência possível. Qualquer um que saiba um pouquinho sobre medicina baseada em evidências, descobre que não há nenhum trabalho de qualidade que confirme a tal cura que eles tanto propagam. Ao procurar nos periódicos científicos internacionais, nada se encontra. E os poucos estudos disponíveis, que foram feitos e publicados em Cuba mesmo, têm um desenho e metodologia completamente falhos (estudos sem grupo controle, sem randomização, não cegos). Conversa pra boi dormir. Sobre a mortalidade infantil, não querendo tirar o mérito dos caras, mas o que eu via lá pessoalmente, eram muitas indicações de abortamento. Qualquer intercorrência na gestação, lá vinham eles recomendando que se interrompesse. Parece óbvio né, que se você só levar até o fim as gestações selecionadas e sem nenhum risco ou intercorrência, a sua estatística de mortalidade infantil ficará excelente, já que os fetos abortados não entram nela. Em pouco tempo de
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