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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia João Henrique Queiroz de Araújo Entre preservar e reformar: práticas e saberes psis no museu da Colônia Juliano Moreira Rio de Janeiro 2016 João Henrique Queiroz de Araújo Entre preservar e reformar: práticas e saberes psis no museu da Colônia Juliano Moreira Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientadora: Profª. Dra. Ana Maria Jacó Vilela Rio de Janeiro 2016 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que citada a fonte. ___________________________________ _______________ Assinatura Data A663 Araújo, João Henrique Queiroz de. Entre preservar e reformar: práticas e saberes psis no museu da Colônia Juliano Moreira / João Henrique Queiroz de Araújo. – 2016. 107 f. Orientadora: Ana Maria Jacó Vilela. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. 1. Psicologia Social – Teses. 2. Colônia Juliano Moreira – Teses. 3. Museu Bispo do Rosário – Teses. 4. Museu Nise da Silveira – Teses. I. Jacó Vilela, Ana Maria. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título. es CDU 316.6 João Henrique Queiroz de Araújo Entre preservar e reformar: práticas e saberes psis no museu da Colônia Juliano Moreira Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Aprovada em 29 de janeiro de 2016. Banca Examinadora: _______________________________________ Profª. Dra. Ana Maria Jacó Vilela (Orientadora) Instituto de Psicologia – UERJ _______________________________________ Profª. Dra. Cristiana Facchinetti Fundação Oswaldo Cruz _______________________________________ Prof. Dr. Walter Melo Junior Universidade Federal de São João del-Rei Rio de Janeiro 2016 DEDICATÓRIA Em memória de minha mãe, Maria Corina. AGRADECIMENTOS Realizar a escrita de uma dissertação é um trabalho árduo, mas que certamente se ameniza na medida em que vamos encontrando o suporte de familiares, de amigos, de colegas de curso, de companheiros de pesquisa e de demais pessoas que, afortunadamente, esbarramos no meio dessa jornada. Por isso, sinto-me na obrigação de agradecer a um conjunto de pessoas que, muitas vezes sem tomar consciência da sua importância neste processo que agora se finda, me proporcionaram o apoio necessário para a concretização de meus objetivos. Aos meus pais, Geraldo Henrique e Maria Corina, obrigado pelo carinho, incentivo e por acreditar na minha capacidade de alcançar o mestrado, apoiando-me incondicionalmente, sem recuos, desde a minha decisão de abandonar um emprego público para buscar, por meio da área acadêmica, minha realização pessoal. Meu coração é de vocês. Ontem, hoje e sempre. Gostaria de agradecer também aos meus demais familiares, irmãos, sobrinhos, tios, tias, primos e primas que estiveram próximos nos últimos dois anos. Entre estes, devo um agradecimento especial à prima Carolina Queiroz e à tia Regina Queiroz, pela amizade, antes de tudo. Obrigado, Profª. Ana Jacó, por ser, além de orientadora, uma amiga. Agradeço a você imensamente pelos conselhos, dicas, ensinamentos e, mais do que tudo, pelo incentivo que vem me dando desde a graduação. Lá do início! Você foi e sempre será um exemplo para mim. Agradeço às amigas de longíssima data, Priscila Borges e Priscila Insuela, por estarem ao meu lado em tantos acontecimentos da minha vida, bons e ruins, incluindo este tão precioso. Choraremos e comemoraremos ainda muitos e muitos momentos juntos! Muito obrigado também aos amigos Mariana Katona e Douglas Oliveira pelos momentos de alegria, pelo carinho e por assumirem, em muitos momentos, a função de “tomar conta de mim”. Obrigado aos amigos “psicoloucos” da turma 2008.1, do curso de psicologia da UERJ, por permitirem perdurar, até hoje, aqueles tão bons tempos vividos durante a graduação e por me incentivarem tanto a seguir o mestrado. Agradeço especialmente às minhas “amores”, Ivanilda Araújo, Adriana Oliveira e Danielle Senra. Muito obrigado, Bruno Carmelo, pelo suporte oferecido em vários momentos do processo de concretização deste trabalho. Aos amigos e colegas do Clio, agradeço pelas tantas trocas, formais e informais, que tivemos nos últimos dois anos. Muito obrigado, Leandro Barreiros, Lidiane Oliveira, Dayse Marie, Marcela Franzen, Filipe Degani, Adriana Amaral, Eugenia González, Isis e Charles. Tenham certeza que, sem vocês, nada disso seria possível. Como, claro, não poderia esquecer, muito obrigado também à super amiga, Maira Allucham, pelo carinho e pela disponibilidade para tantos, tantos e mais tantos momentos de conversas, de compartilhamento de angústias, mas, principalmente, de alegrias e de boas risadas. O mestrado se vai, você certamente fica. Agradeço especialmente aos professores Walter Mello e Cristiana Facchinetti pelas contribuições que deram a este trabalho desde a minha qualificação. Pela mesma razão agradeço ao professor Nilson Dória, mas também por ter enriquecido a minha graduação, por ter me oferecido a oportunidade de expandir meus conhecimentos sobre este campo de interseção entre a psicologia e a arte, assim como, pela amizade constituída ao longo desses anos. Aos três, muito obrigado pela disponibilidade. A Denise de Almeida Corrêa, Heimar Saldanha Camarinha e Maria Amélia Mattei, muito obrigado pela gentileza em oferecer as entrevistas que tanto enriqueceram esta pesquisa. Agradeço também a Thaís Duarte, quem tanto me auxiliou na realização desta etapa da pesquisa, acompanhando e dando suporte na realização das entrevistas e realizando a transcrição das mesmas. Por fim, agradeço ao Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea e ao Centro de Estudos do IMASJM, por terem aberto as portas destes espaços para a minha pesquisa. Muitíssimo obrigado, Raquel Fernandes, Bianca Bernardo, Sylvia Gonçalves e toda equipe, pela recepção, pela disponibilidade e todo o auxílio oferecido para a concretização deste trabalho. RESUMO ARAÚJO, João Henrique Queiroz de. Entre preservar e reformar: práticas e saberes psis no museu da Colônia Juliano Moreira. 2016. 107 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. No Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, antiga Colônia Juliano Moreira, instituição psiquiátricado Rio de Janeiro, encontra-se o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. Denominado até o ano 2000 de Museu Nise da Silveira, o museu da Colônia foi criado pela artista plástica Maria Amélia Mattei, em 1982, após encontrar pinturas abandonas em um salão do prédio da administração central. Desde então, o museu tem promovido uma aproximação entre as práticas e os saberes psis e a arte na área da saúde mental. Isto se deve principalmente ao fato de que este espaço acompanhou as transformações pelas quais passou a instituição em consequência do movimento da Reforma Psiquiátrica, iniciado no Brasil no final dos anos 1970. Neste cenário, o museu esteve inserido em um momento da História da Psicologia brasileira no qual houve uma intensa disputa entre velhos e novos conhecimentos. Realizou-se uma pesquisa histórica com a finalidade de levantar que práticas e saberes psis foram aqueles que engendraram a criação do museu e fomentaram as atividades que desenvolveu ao longo do tempo. Deste modo, este trabalho objetiva compreender o contexto e as influências que possibilitaram a existência de um museu de arte em uma instituição psiquiátrica. Para tanto, buscamos referências neste campo, como as experiências com arte que se consolidaram na área psi em torno da década de 1950, especialmente por meio dos trabalhos de Nise da Silveira e Osório César. Constatou-se também que na Colônia Juliano Moreira houve uma considerável produção de trabalhos artísticos realizados por internos no mesmo período em oficinas de praxiterapia, sendo estes, inclusive, o material que compôs o primeiro acervo do museu. Em um segundo momento, analisou-se o papel da cultura e da arte no interior do movimento da Reforma Psiquiátrica, buscando entender como a criação de um museu em uma instituição psiquiátrica se inseriu neste contexto. Por último, buscou-se compreender como estas práticas e saberes psis dialogaram com o Museu Bispo do Rosário e propiciaram que este viesse a se transformar em um museu de arte contemporânea. Palavras-chave: Colônia Juliano Moreira. Museu Bispo do Rosário. Museu Nise da Silveira. Práticas e Saberes Psis. Reforma Psiquiátrica. ABSTRACT ARAÚJO, João Henrique Queiroz de. Preserving and reforming: psychological pratices and knowledge at Colônia Juliano Moreira museum. 2016. 107 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. Bispo do Rosário Arte Contemporânea Museum can be found at Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, formerly known as Colônia Juliano Moreira, a psychiatric institution in Rio de Janeiro. Given the name Nise da Silveira Museum until the year 2000, the Colônia museum was created by artist Maria Amélia Mattei in 1982, following the discovery of abandoned paintings inside the central administration building. Since then, the museum has offered a link between psychological practice and psychological knowledge in what mental health is concerned. That can be justified by the fact that the museum witnessed the transformations that the institution went through after the Psychiatric Reform movement taking place in Brazil from the late 1970's. In that context, the museum had a role in Brazilian history of psychology, when old knowledge and new knowledge created an intense dispute against one another. A historical survey was organized in order to determine which psychological pratices and knowledge had actually been responsible for the creation of the museum and which ones had given the base for the activities taking place in the museum through the years. Therefore, this thesis aims to understand the context and the influences that had an impact on the creation of an art museum inside a psychiatric institution. In order to do so, references in this domain have been selected, such as artistic experimentation that became an established psychological practice in the 1950's, due mostly to Nise da Silveira's and Osório César's work. It should also be noted that Colônia Juliano Moreira has had a significant amount of artistic pieces made by mental patients in that same period through praxitherapy. Also, their work of art represented the first art collection of the museum. In a second part of the thesis, the role of culture and art was analyzed in the context of the Psychiatric Reform, searching to understand how a museum could be created inside a psychiatric institution at that time. Finally, this paper seeked to understand how the psychological practices and knowledge have established a dialogue with Bispo do Rosário Museum, allowing this institution to become a museum of contemporary art. Keywords: Colônia Juliano Moreira. Bispo do Rosário Museum. Nise da Silveira Museum. Psychological Practices and Knowledge. Psychiatric Reform. Entra-se na Colônia por um portão com a inscrição em latim - Praxis omnia vincit (O trabalho vence tudo) - que desperta tristes evocações fascistas. Mas logo depois, sobe-se uma escada e no segundo andar é o espanto. Zuenir Ventura LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CHPB Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena CJM Colônia Juliano Moreira COEP Coordenadoria de Ensino e Pesquisa CRIS Centro de Reabilitação e Integração Social Fhemig Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais Fundac Fundação Municipal de Cultura de Barbacena IMASJM Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira MAM Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro MNBA Museu Nacional de Belas Artes mBRAC Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea MII Museu de Imagens do Inconsciente MTSM Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental PASET Projeto Agropecuário Sócio-Econômico Terapêutico PUC-MINAS Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais SAPS Serviço de Alimentação da Previdência Social SNDM Serviço Nacional de Doenças Mentais STO Seção de Terapêutica Ocupacional UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................... 11 1 ARTE E PSIQUIATRIA NO BRASIL: A CONSOLIDAÇÃO DE UM CAMPO DE PRÁTICAS E SABERES .............................................................................. 19 1.1 O Museu de Imagens do Inconsciente ............................................................ 23 1.2 A Seção de Artes Plásticas do Juquery .......................................................... 31 1.3 A oficina de arte da Seção de Praxiterapia da CJM ....................................... 38 2 A DÉCADA DE 1980 E A RETOMADA DA ARTE E DA CULTURA NOS ESPAÇOS DAS PRÁTICAS E SABERES PSIS ................................................ 48 2.1 Dois estranhos, loucura e sociedade: ações culturais e artísticas como meio de conciliação .......................................................................................... 53 2.2 Subvertendo o espaço do manicômio: o museu como ruptura.................... 61 3 O MUSEU DA COLÔNIA JULIANO MOREIRA: DE NISE DA SILVEIRA A ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO ......................................................................... 67 3.1 Um museu chamado Nise da Silveira .............................................................. 70 3.2 O museu e a obra de Arthur Bispo do Rosário .............................................. 78 3.3 Um museu para quê?: ensino, pesquisa, trabalho e arte na CJM ................ 88 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................97 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 101 11 INTRODUÇÃO O presente trabalho visa levantar que tipos de práticas e saberes psis estiveram presentes na criação do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea (mBRAC), assim como compreender sua função dentro de uma instituição psiquiátrica. Inicialmente chamado de Museu Nise da Silveira, este estabelecimento foi fundado em 1982 e teve seu nome alterado para Museu Bispo do Rosário no ano 2000, incorporando a expressão “arte contemporânea” em 2002. O período histórico compreendido por esta pesquisa tem como limite o ano desta última mudança, quando o museu se assumiu como espaço de exposição e divulgação de artistas contemporâneos, introduzindo uma nova e inusitada proposta em um território antes dominado pela psiquiatria tradicional. O mBRAC encontra-se em funcionamento até hoje no Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira (IMASJM), antiga Colônia Juliano Moreira (CJM), no bairro de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro/RJ. O percurso histórico desenvolvido neste trabalho teve como ponto de partida a reflexão sobre as funções assumidas por um museu localizado em uma instituição psiquiátrica. Planejado inicialmente para estabelecer uma análise comparativa entre os museus com esta característica situados na região sudeste do Brasil, tais quais o próprio mBRAC, o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, o Museu Osório César, em São Paulo, e o Museu da Loucura, em Minas Gerais, esta proposta foi abandonada diante das limitações logísticas e materiais impostas, principalmente, pelo tempo de duração do mestrado. Foi preciso, então, direcionar os questionamentos iniciais para um destes espaços, o que culminou na escolha do mBRAC como objeto desta pesquisa. Tal escolha deu-se, primeiramente, pela verificação de que, ao contrário dos outros museus, foram encontradas pouquíssimas pesquisas sobre o museu situado na antiga CJM. Além disso, percebeu-se que a maior parte delas tendia a dar enfoque à biografia e à obra de Arthur Bispo do Rosário. Paradoxalmente, o outro ponto que auxiliou na sua escolha foi a visibilidade que este espaço tem adquirido junto ao público carioca nos dias atuais, com suas diversas exposições anuais e projetos junto à comunidade. Desta maneira, o mBRAC vem se constituindo como um equipamento cultural importante para a Zona Oeste da cidade. Assim, por esta trilha, decidiu-se realizar uma investigação histórica sobre o mBRAC buscando 12 inicialmente identificar as práticas e os saberes psis presentes no seu processo de criação. Para tanto, foi preciso reconhecer os atores envolvidos neste processo e, com base em suas contribuições, apreender tais práticas e saberes. No entanto, logo no início desta empreitada, constatou-se a dificuldade de alcançar este objetivo diante da descoberta de que o então chamado Museu Nise da Silveira havia sido criado por uma artista plástica e esta havia, durante um longo tempo, produzido e desenvolvido sozinha as atividades do museu. Visto isto, buscou-se junto ao Centro de Estudos do IMASJM encontrar documentos que levassem a identificar na história do museu vestígios de práticas e saberes psis que pudessem de alguma forma contribuir para a História da Psicologia. Tentativa esta interpretada, a princípio, como mal sucedida. Os registros documentais não deixavam dúvidas de que naquele espaço as atividades terapêuticas tiveram uma presença insignificante durante o período escolhido para a pesquisa: as primeiras duas décadas de existência do museu. Durante este período, ali foram desenvolvidas diversas atividades, como exposições; restauração, guarda e conservação de objetos artísticos; eventos culturais e recreativos; oficinas as mais diversas envolvendo materiais e técnicas artísticas. No entanto, nenhuma destas atividades parecia produto das práticas e saberes pelas quais se estava à procura e o museu aparentava ser um espaço em total dissonância com a instituição psiquiátrica. Foi, então, que o contexto histórico auxiliou a pensar neste problema: o museu havia sido criado já durante o movimento da Reforma Psiquiátrica e, portanto, a CJM, instituição onde estava localizado, passava durante o período compreendido pela pesquisa por um intenso processo de transformação. Logo, o entendimento sobre o que seriam as práticas e os saberes psis realizadas naquele espaço deveria levar em consideração as mudanças políticas, ideológicas e conceituais propostas por este movimento. Assim, foi possível verificar que os parâmetros iniciais formulados para a identificação das práticas e saberes psis no mBRAC estavam baseados ainda em uma noção fechada do campo, limitando-se ao exercício de determinadas técnicas relativas a algumas profissões, particularmente, as de psicólogo, psiquiatra e psicanalista. A nova compreensão de que o museu havia sido criado em uma instituição psiquiátrica em meio à Reforma Psiquiátrica por uma artista plástica a partir de seu encontro com pinturas produzidas por internos na década de 1950 e abandonadas 13 em um grande salão do prédio da administração, introduziu outra perspectiva nesta pesquisa. Ao voltar-se para as particularidades do contexto histórico em que o museu foi fundado, entendeu-se que o mBRAC surgiu tanto como continuidade de uma proposta de interseção entre as práticas e os saberes psis e a arte, consolidada no Brasil em meados do século XX, quanto como ruptura de uma estrutura institucional tornada obsoleta em consequência do discurso da Reforma Psiquiátrica, iniciada no final da década de 1970. Assim, inferiu-se que o museu emergiu de um cenário de disputas entre velhos e novos conhecimentos no campo psi e voltar-se para estas influências distintas passou a parecer tão importante quanto investigar as práticas e os saberes desenvolvidos em seu interior. Deste modo, decidiu-se iniciar a pesquisa efetuando um levantamento destas influências, com o objetivo de remontar a cadeia de práticas e saberes psis que engendraram a criação e as atividades desenvolvidas pelo mBRAC. Para tanto, antes de se debruçar sobre o período histórico visado inicialmente, são apontados dois momentos de valorização da produção artística de internos de instituições psiquiátricas no campo da psiquiatria Brasileira na segunda metade do século XX. O primeiro, em torno da década de 1950, caracteriza-se pela emergência de modelos alternativos às terapias organicistas na área da assistência psiquiátrica. O segundo momento, na década de 1980, deriva de um movimento de crítica à psiquiatria tradicional iniciado no final da década anterior e que buscou transformações mais amplas na forma de lidar com a loucura. Uma análise do primeiro momento colocou em destaque os trabalhos de Osório César (1895-1979), em São Paulo, e de Nise da Silveira (1905-1999), no Rio de Janeiro, ambos psiquiatras com forte influência da psicanálise em seus trabalhos (Frayze-Pereira, 1995; Ferraz, 1998; Andriolo, 2004; Bezerra Jr., 2011; Dionísio, 2012; Lima, 2012). Quanto a Osório César, este iniciou suas pesquisas sobre o que chamou de “expressão artística nos alienados” guiando-se por uma leitura psicanalítica de produções artísticas de internos com as quais deparou-se nas celas e pátios do Hospício do Juquery, ainda na década de 1920 (Andriolo, 2003). No entanto, é na década de 1950 que seu trabalho se institucionalizou por meio da Seção de Artes Plásticas, criada pelo psiquiatra Mário Yahn (1908-1977), mas da qual foi coordenador (Andriolo, 2004). Osório César foi um grande incentivador da produção artística de esquizofrênicos,pois, além de enxergar valor naquelas obras, 14 via nesta atividade uma forma de seus pacientes desenvolverem um trabalho com o qual poderiam sobreviver fora da instituição (Lima, 2009). No caso de Nise da Silveira, antes de desenvolver uma técnica terapêutica tendo a arte como instrumento, esta psiquiatra ficou conhecida por se recusar a utilizar os métodos de tratamento convencionais que encontrou ao reingressar ao hospital após o longo período em que esteve afastada de suas funções por razões políticas. Nesta época, haviam surgido novos métodos terapêuticos, como o choque elétrico, o coma insulínico e a lobotomia, os quais considerava violentos (Gullar, 1996; Melo, 2001). Ao conhecer o trabalho do Dr. Fábio Sodré, introdutor da Terapêutica Ocupacional na Seção Waldemar Shiller, do Centro Psiquiátrico Nacional, no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, Nise descobriu um método alternativo para o exercício de seu trabalho que condizia com sua ética profissional (Melo, 2001). Assim, no ano de 1946, conseguiu da direção do hospital uma verba para que reestruturasse a Seção de Terapêutica Ocupacional (STO), o que abriu espaço para que desenvolvesse uma metodologia de trabalho própria (Melo, 2001). A partir daí, instalou oficinas criativas onde os internos podiam se expressar, principalmente, através das técnicas de pintura e modelagem. Sua proposta tinha caráter terapêutico e pretendia oferecer a oportunidade para que os internos esquizofrênicos pudessem expressar conteúdos inconscientes (Melo, 2001). Apesar de valorizar a qualidade artística de muitos trabalhos, sua preocupação com o estudo das imagens a partir da psicologia analítica junguiana exigiu que toda a produção do ateliê da STO fosse preservada, o que culminou na criação do Museu de Imagens do Inconsciente (MII), em 1952 (Dias, 2003). A importância destes dois personagens neste contexto fica mais evidente diante do fato de que acabaram dando nome a dois museus localizados no sudeste do Brasil: o Museu Osório César, no Hospital Psiquiátrico do Juquery, em Franco da Rocha, São Paulo, e o próprio mBRAC, que foi denominado inicialmente de Museu Nise da Silveira. No entanto, apesar da referência a esses dois personagens se mostrar relevante, acredita-se que uma gama de outras práticas e outros saberes psis podem ter orientado a criação e o desenvolvimento das atividades do museu sobre o qual pretendemos realizar uma análise mais minuciosa. Isto porque, como já mencionado, as primeiras obras que fizeram parte do acervo do mBRAC foram produzidas na própria CJM, também durante a década de 1950, fato este que 15 deslocou a pesquisa para um campo ainda pouco explorado, visto não termos encontrado estudos sobre esta experiência. Isto exigiu também a realização de uma investigação sobre a Seção de Pintura do Setor de Praxiterapia desta instituição, por meio do levantamento de documentos juntos ao arquivo do Centro de Estudos do IMASJM. Em relação à década de 1980, verificamos que a Reforma Psiquiátrica, apesar de não ter sido um movimento uniforme, propiciou a introdução de atores de outros campos de saber nos espaços antes dominados pela psiquiatria tradicional (Amarante, 1995a; Tenório, 2002; Yasui, 2006; Bezerra Jr. 2011), podem ter provocado uma diversificação dos conhecimentos que orientaram as atividades no campo das práticas e saberes psis que dialogavam com a arte. Nesta conjuntura, entre diversas iniciativas culturais, verificamos o surgimento de museus em instituições psiquiátricas, fenômeno que ocorreu no Brasil com algum destaque na região sudeste do país (Andriolo, 2004). Isto significa dizer que a criação do museu da CJM se insere em um cenário onde a arte e a cultura se tornaram fortes aliados dos agentes da Reforma em seu intuito de desmistificar e desestigmatizar a loucura (Amarante, Freitas, Nabuco & Pande, 2012). O protagonismo de uma artista plástica na criação do museu situado em uma instituição psiquiátrica aponta que este contexto foi fundamental para a concretização deste acontecimento. Do mesmo modo, a posterior apropriação da imagem e do trabalho do artista-interno Arthur Bispo do Rosário, que viveu e produziu na CJM por quase cinquenta anos, pelo então Museu Nise da Silveira, parece dialogar com o discurso da Reforma, uma vez que a sua biografia passa a simbolizar a resistência à mortificação da individualidade em uma instituição total e a sua obra a transformação e ressignificação do manicômio (Corrêa, 1989). Desta maneira, ao mergulhar no universo histórico do mBRAC, é possível encontrar, no ato que antecede a sua fundação ou que mesmo a enseja, a relação entre dois campos de saber: as práticas e os saberes psis e a arte. No entanto, como visto, esta relação não tem um sentido único e nem se materializa em práticas e saberes padronizados, assim como não se conjuga de forma transparente, traduzível ou decifrável de modo imediato. Aparentemente, isto se deve à multiplicidade de trocas que estes dois campos de saber estabeleceram no Brasil no curso do século XX e às transformações ocorridas no interior das instituições psiquiátricas a partir do advento da Reforma. Por isso, acredita-se que a fundação 16 do mBRAC aponta mais questões do que respostas para o historiador que espreita esta instituição. A primeira dessas questões, levantada após esta contextualização, debruça- se sobre o sentido da existência de um museu de arte em uma instituição psiquiátrica. Assim, a pergunta inicial é: o que faz um museu de arte em uma instituição psiquiátrica? Esta pergunta revela uma indagação de quem se aproxima deste espaço com um olhar estrangeiro, ainda de fora, e, sem ainda acessar o espaço interno do museu, explora seu território. É por esse caminho, de fora para dentro, sob a perspectiva de quem realiza uma primeira e curiosa visita ao mBRAC, que se desdobrarão os capítulos deste trabalho. A intenção é proporcionar ao leitor uma experiência de visita ao museu, circunscrito em seu território. Esta narrativa se origina de uma metodologia que se baseia no entendimento de que escrever a história de uma instituição exige uma dupla aproximação com este objeto. Se por um lado os documentos oficiais nos ajudam a identificar os personagens, práticas e saberes que, ao longo do tempo, permitiram distinguir o tipo de instituição que nos propomos estudar, por outra via, é preciso apurar as condições históricas, políticas, sociais, culturais etc. que propiciaram o surgimento e a própria existência deste estabelecimento. Ou seja, para além de elaborar uma história da instituição-estabelecimento, é necessário também circunscrevê-la de modo que seja possível apreender como e por quais caminhos aquele espaço se instituiu (Jacó-Vilela & Portugal, 2014). Convenientemente, tiramos proveito destes dois significados da palavra – a instituição enquanto estabelecimento e enquanto ato de instituir – para maximizar a pesquisa histórica e voltarmo-nos não só para a investigação das instâncias forma- trajetória da instituição, mas também para o território no qual o museu se localiza. Em síntese, trataremos de fazer um mapeamento das condições que tornam o próprio objeto de análise um campo de interesse para o historiador. Esta postura parte da visão historiográfica que entende que não cabe ao historiador revelar o fato histórico, mas compreendê-lo (Bloch, 2001). Assim, ao invés de buscarmos a captura do objeto disperso no tempo através da construção de uma história recortada e linear, faremos um movimento inverso que, metaforicamente, consiste em um mergulho em um mar de múltiplas determinações. Afinando-se com as propostas do movimento daNova História, o ponto de impulso para este mergulho encontra-se no presente e, neste caso, a análise histórica pode ser enriquecida pela 17 proximidade entre o historiador e o seu objeto (Chartier, 2006). O impulso consiste nas questões que foram levantadas ao nos depararmos com o mBRAC na atualidade. Neste sentido, foram utilizados diversos recursos metodológicos com o objetivo de ampliar as perspectivas sobre a história do museu. Inicialmente, foi realizada uma revisão bibliográfica voltada para as práticas e saberes psis que dialogaram com a arte tanto no período em torno da década de 1950, quanto em consequência do movimento da Reforma Psiquiátrica. Além disso, a revisão buscou também levantar dados sobre a criação/institucionalização de museus localizados em instituições psiquiátricas a partir da década de 1980, pretendendo compreender as diversas funções que estes espaços assumiram. Isto permitiu conhecer melhor os trabalhos de Osório César e de Nise da Silveira, bem como realizar um estudo sobre a dimensão cultural da Reforma Psiquiátrica. Outro recurso utilizado foi a análise de produção bibliográfica dos números do Boletim da CJM, publicados entre 1948 e 1954, do catálogo da I Exposição de Pinturas e Arte Feminina Aplicada da CJM e demais documentos desta época. Foram analisados também outros documentos levantados junto ao Centro de Estudos do IMASJM referentes ao museu, compreendendo o período entre o início da década de 1980 e início dos anos 2000. Finalmente, realizamos entrevistas com alguns personagens relevantes na história do mBRAC, quais sejam: Heimar Saldanha Camarinha, diretor da CJM no período em que o museu foi criado; Maria Amélia Mattei, fundadora e diretora do museu até 1990; e Denise de Almeida Corrêa, diretora do museu entre 1990 e 1995. Outros personagens foram procurados com o objetivo de obter seus relatos, entre eles, o psiquiatra Pedro Gabriel Godinho Delgado, que esteve envolvido com a Coordenação de Ensino e Pesquisa da CJM (COEP) e em projetos relacionados ao Museu Nise da Silveira e alguns coordenadores de oficinas que atuaram neste espaço na segunda metade da década de 1990, porém, não foi possível estabelecer o contato. Para análise dos documentos, entrevistas e dos textos (livros, dissertações, artigos etc.), foi utilizada a metodologia proposta por Rosa, Huertas & Blanco (1996) para análise de discursos, por meio da qual se buscou investigar os contextos, as vozes de autores que aparecem de forma explícita ou implícita nos documentos, a 18 linguagem utilizada etc., de forma a propiciar uma compreensão e interpretação do texto. Desta forma, foi possível organizar esta dissertação em três capítulos, que sumarizamos a seguir. No Capítulo 1, buscamos compreender o contexto em que foram produzidas as primeiras peças do acervo do mBRAC por meio do levantamento das experiências que estabeleceram um diálogo entre as práticas e os saberes psis e a arte na década de 1950. Assim, são apresentados a trajetória e os trabalhos de Nise da Silveira, na STO e no MII, de Osório César, na Seção de Pintura do Juquery, assim como, realizamos uma investigação sobre o setor de pintura da Seção de Praxiterapia da CJM. Já no Capítulo 2, elaboramos um levantamento das ações no campo da saúde mental que, na década de 1980, inseridas no movimento da Reforma Psiquiátrica, buscaram desenvolver estratégias de desestigmatização da loucura por meio da cultura e da arte. Através da interpretação de que este momento sinaliza um resgate da interação entre as práticas e os saberes psis, a cultura e a arte, realizamos também uma discussão quanto aos processos de continuidade e ruptura dessas ações empreendidas na década de 1980 com aquelas que se consolidaram na década de 1950. Por fim, no Capítulo 3, apresentamos as particularidades da história do mBRAC, utilizando para isto da documentação obtida por meio de levantamento efetuado nos arquivos do Centro de Estudos do IMASJM. O texto é focado no período entre os anos de 1982 e 2002, que marcam, respectivamente, a fundação do museu e o momento em que este se assumiu como um museu de arte contemporânea. 19 1 ARTE E PSIQUIATRIA NO BRASIL: A CONSOLIDAÇÃO DE UM CAMPO DE PRÁTICAS E SABERES Figura 1 – Pórtico da entrada principal da CJM. Na parede da guarita consta a inscrição Praxis Ominia Vincit (o trabalho vence tudo) e, logo abaixo, letreiro do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea (acervo pessoal). No antigo portão de acesso principal da CJM, um letreiro com o nome do mBRAC divide espaço com o nome da instituição, revelando a importância deste equipamento cultural para aquele lugar que hoje está em plena fase de reestruturação, sendo transformado em um bairro. A existência de um museu e a concomitante visibilidade dada a ele em uma região que ainda abriga resquícios do que um dia foi um manicômio coloca-nos diante do desafio de pensar qual o significado deste espaço para uma instituição um dia dominada pelo saber psiquiátrico. 20 Porém, antes de nos debruçarmos sobre as especificidades do mBRAC e seu visível valor para a CJM, acredita-se ser necessário explorar o território histórico que possibilitou a sua criação. A proposta deste capítulo se baseia em buscar referências e justificativas para a existência deste espaço que parece fugir à lógica presente nos dispositivos disciplinares e de controle (Foucault, 2013/1975) criados, neste contexto, a partir do desenvolvimento da noção de doença mental, ainda no século XVIII (Foucault, 2012/1972). Assim, a pergunta que nos fazemos diante da imagem apresentada no início deste capítulo é: que fatores justificam a criação de um museu de arte em uma instituição psiquiátrica? Esta pergunta, apesar de nada mais ser do que outra forma de expressar a indagação já colocada na introdução, aponta para um contexto mais amplo e nos leva a questionar sobre o papel da arte no território das práticas e saberes psis. Para auxiliar a respondê-la, é fundamental mencionar um fato importante sobre a criação deste espaço, também já mencionado na introdução: o mBRAC foi criado a partir do encontro entre uma artista plástica e um conjunto de pinturas abandonadas em um salão do prédio da administração da CJM. Estes objetos foram os que compuseram o primeiro acervo do museu e, até mesmo, pode-se dizer, deram sentido à sua criação. A partir deste fato, levantam-se outras perguntas, mais objetivas, e que podem auxiliar a responder à questão colocada logo de início. Que pinturas eram essas? Em que contexto foram produzidas? Como esses trabalhos artísticos se inserem em uma instituição dominada por práticas e saberes psis? Voltar-se para estas outras perguntas exige um retorno no tempo, visto que logo encontramos relações entre aquelas obras e o desenvolvimento de oficinas artísticas no interior das instituições psiquiátricas em torno da década de 1950. A explicação para este momento histórico nos remete ao início do século XX e à relação que as práticas e os saberes psis estabeleceram com a terapêutica por meio do trabalho. Criada para ser uma colônia agrícola, a CJM, primeiramente denominada Colônia de Psicopatas de Jacarepaguá, foi fundada em 1924 sob o lema Praxis Omnia Vincit (expressão em latim que significa “o trabalho vence tudo”), tendo como principal atividade terapêutica o trabalho rural. Desde a instauração da República no Brasil, a criação deste tipo de instituição, que aliava o asilamento ao trabalho, teve grande adesão por parte do discurso médico. Esta adesão garantiu sua forte presença no campo das políticas públicas assistenciais, sendouma das 21 principais recomendações para o tratamento de alienados até meados do século XX (Venancio, 2011). A primeira instituição psiquiátrica deste tipo no país surgiu ainda no final do século XIX (Pereira, 2002). O Hospício do Juquery, primeira colônia agrícola do país, foi criado em 1898 por Franco da Rocha (1864-1933), em São Paulo. A construção do Hospício obedeceu às diretrizes do Congresso Internacional de Alienistas, realizado em 1889, em Paris (Pereira, 2002), que sugeria a criação de colônias agrícolas anexas aos asilos (Venancio, 2011). Deste modo, a criação deste tipo de instituição no Brasil foi orientada a partir da aproximação da recém-surgida psiquiatria brasileira com o alienismo francês, caracterizado, entre outras doutrinas, pelo tratamento moral (Pereira, 2002; Portocarrero, 2002; Venancio, 2003). A guinada cientificista da psiquiatria brasileira no campo da assistência, até então reduzida à prática asilar com inspiração na psiquiatria francesa e baseada no discurso leigo e religioso (Costa, 2006), emergiu da constituição de uma escola inspirada na psiquiatria alemã de Émil Kraepelin (1856-1926) (Venancio, 2003). Juliano Moreira (1873-1932), diretor do Hospício Nacional de Aliendados entre 1903 e 1930, foi um dos maiores propagadores das ideias de Kraepelin, que, baseando-se no modelo organicista, buscou a sistematização das entidades mórbidas mentais a partir de relações causais entre distúrbios somáticos e consequências mentais para a produção das classificações nosográficas (Venancio, 2003). No entanto, a ênfase na utilização do trabalho como método terapêutico tem como inspiração outra experiência proveniente da psiquiatria alemã: a “terapêutica ativa” de Hermann Simon (1867-1947). Apesar de ter sido elaborado na primeira década do século XX, este método só passou a ser conhecido no Brasil após a Primeira Guerra Mundial (Dias, 2003). O método consistia no combate dos fenômenos patológicos através da readaptação e reeducação do paciente a partir da oferta de trabalho individualizado e com grau de dificuldade crescente (Melo, 2001). O método de Simon foi amplamente divulgado e gradativamente incorporado às políticas de assistência aos alienados no Brasil a partir dos anos 1930. Ulisses Pernambucano (1892-1943), por exemplo, psiquiatra e diretor do Hospital da Tamarineira, criador da Colônia de Barreiros e formulador do Serviço de Assistência a Psicopatas de Pernambuco, utilizou em larga escala a laborterapia nos serviços sob sua influência durante a década de 1930 (Medeiros, 2001). Segundo Medeiros (2001), em conferência realizada no ano de 1938, Ulisses Pernambucano afirmou 22 que uma modelar assistência aos doentes mentais deveria contar, entre outras práticas, com o que chamou de “sistema de Simon”. Cabe salientar que esta maior aproximação da assistência psiquiátrica com a ciência no Brasil nas primeiras décadas do século XX não eliminou a preocupação com a dimensão moral do sujeito doente. Em um sentido oposto, a partir de Juliano Moreira, buscou-se por meio de explicações fisicalistas e organicistas tratar desta dimensão (Portocarrero, 2002; Venancio, 2003). Neste sentido, dentre outros discursos socialmente construídos e absorvidos pela prática psiquiátrica, o valor moral do trabalho passou a influenciar diretamente na concepção de normal e patológico. Ou seja, a psiquiatria passava a se incumbir de devolver à sociedade sujeitos tratados e curados, aptos para o trabalho (Resende, 2007). É neste contexto, reforçado pelo discurso higienista, que as colônias agrícolas se expandiram como modelo de assistência por vários estados brasileiros. No entanto, o uso do trabalho rural não era exclusivo e a laborterapia, de modo geral, começou a se diversificar e se afirmar como prática terapêutica, o que despertou o interesse pelo estudo da produção artística de internos em instituições psiquiátricas, ainda que nesta época este tipo de atividade não se realizasse em oficinas e espaços institucionalizados. Não obstante a isto, pode-se constatar, já na década de 1920, que a preocupação em oferecer explicações científicas para a produção artísticas de internos de instituições psiquiátricas se tornara premente. Ulisses Pernambucano foi o primeiro a elaborar estudos e ministrar conferências sobre o que chamou de “arte nos alienados” (Andriolo, 2004). No Rio de Janeiro, inspirado nas palestras de Pernambucano, Sílvio Moura defendeu sua tese de doutoramento na Faculdade de Medicina sobre a Manifestação artística nos alienados, em 1923 (Andriolo, 2004). Neste mesmo ano, Osório César (1895-1979) ingressou ainda como “primeiro estudante” no Hospício do Juquery, em São Paulo, e, dois anos depois, oficialmente como médico. Em 1924, publicou seu primeiro artigo, intitulado Arte primitiva nos alienados, na revista do Hospício do Juquery. Seu principal trabalho é o livro A expressão artística nos alienados, publicado em 1929, onde apresenta um estudo sobre as obras recolhidas pelos pátios e salas da instituição desde seu primeiro ano no hospital, baseando-se, entre outras teorias, na psicanálise freudiana (Andriolo, 2003). 23 Ainda que o interesse científico pela produção artística de internos de instituições psiquiátricas tenha sido notório nos anos 1920, é somente na segunda metade da década de 1940 que esta área de conhecimento ganhou alguma - ainda que discreta - visibilidade no campo médico, principalmente através do trabalho de Nise da Silveira (1905-1999). Desenvolvida em meio a críticas e certo desprezo da classe médica em geral, a experiência artística nos serviços de assistência aos alienados no Brasil adquiriu certa notoriedade a partir da criação do ateliê de pintura e modelagem da Seção de Terapêutica Ocupacional (STO) no antigo Centro Psiquiátrico Nacional, em 1946, e do Museu de Imagens do Inconsciente (MII), em 1952, sob a coordenação de Nise da Silveira (Gullar, 1996; Melo, 2001). No entanto, para além do prestígio de Nise, outras experiências podem ser verificadas neste período, caracterizando-o como um momento de consolidação do campo de diálogo entre as práticas e os saberes psis e a arte no Brasil. Na mesma época, mais especificamente no ano de 1949, foi criada a Seção de Artes Plásticas do Hospício do Juquery, no município de Franco da Rocha, em São Paulo (Ferraz, 1998; Lima, 2009). Vale pontuar que uma terceira experiência com arte se instituiu na CJM em torno da década de 1950. Porém, em razão da falta de pesquisas sobre este período, as informações se mostraram ainda incipientes. Para estuda-lo, apesar de este não ser o objeto principal desta pesquisa, foram levantados alguns dados por meio do uso das fontes já citadas na introdução. Estes serão apresentados no tópico “1.3.” deste capítulo. Antes disto, nos debruçaremos sobre as experiências promovidas por Nise da Silveira e Osório César com a finalidade de compreender melhor este contexto. 1.1 O Museu de Imagens do Inconsciente Ao efetuar um levantamento das experiências que travaram um diálogo entre arte e psiquiatria anteriores à fundação do mBRAC, parece inevitável se debruçar sobre os saberes e práticas psi que propiciaram a criação do primeiro museu de arte em uma instituição psiquiátrica no Brasil: o MII, criado na década de 1950. Além da relevância histórica deste acontecimento, durante quase vinte anos, o próprio mBRAC prestou uma homenagem à responsável pela criação daquele espaço, visto 24 que era chamado, até o ano 2000, de Museu Nise da Silveira. Esta homenagem parece bastante significativa no sentido de apontar alguns elementos que ajudam não só na compreensãoe elaboração da história da instituição, mas também a restituir o campo de práticas e saberes psis que antecederam a criação do mBRAC. Neste sentido é que se formula a ideia de continuidade de um projeto institucional, sinalizado aqui, principalmente, pela homenagem prestada à psiquiatra Nise da Silveira a partir da escolha do primeiro nome dado ao museu. Porém, há de se ter em mente que não se trata exatamente de produzir uma continuidade histórica entre estas duas instituições ou apontar para a simples repetição de práticas e saberes, uma vez que, como já afirmado, existem outros elementos envolvidos na criação do mBRAC que acenam para processos de ruptura. A sugerida continuidade não está no espaço em si, mas nas possíveis leituras que podem ser feitas a partir dele. Assim, entende-se por processos de continuidade a presença de elementos localizados em um espaço-tempo anterior à fundação do museu, mas que se manifestam em um determinado momento por meio de ações evocativas. Deste modo, a criação de um museu em uma instituição psiquiátrica, a valorização de trabalhos artísticos produzidos por internos e a própria referência ao nome da Dra. Nise da Silveira direciona a pesquisa histórica sobre o mBRAC para outros passados. Passados estes que dialogam com o objeto desta pesquisa e que podem ajudar a compreender a relação entre o museu e a instituição psiquiátrica. Iniciando a tentativa de mapear esta relação, acredita-se ser de fundamental importância voltar-se para o trabalho de Nise da Silveira e para o MII. Nise foi quem fundou o MII, em 1952, no Centro Psiquiátrico Nacional, sendo por essa e outras inúmeras razões considerada uma pioneira da psicologia brasileira (Melo, 2001). No entanto, é preciso dizer que o processo de criação do museu fora iniciado na década anterior, com a reformulação da STO, no hospital do Engenho de Dentro. Além da experiência na STO, alguns dados biográficos sobre Nise e as suas publicações ajudam a visualizar a forma como ela se contrapôs à racionalidade científica e aos métodos biológicos de tratamento da loucura que dominavam o campo da psiquiatria naquele período, assim como o trabalho que desenvolveu em razão deste posicionamento. Esta postura acabou assinalando o trabalho de Nise da Silveira, transformando-a em uma figura mítica para a Reforma Psiquiátrica, ainda que, cabe 25 ressaltar, suas ideias não tenham sido ainda hoje suficientemente debatidas (Melo & Ferreira, 2013). Por isso, prefere-se afirmar que a alusão ao seu nome no momento da inauguração do mBRAC não necessariamente revela uma adesão integral às suas práticas e seu pensamento. Apesar da cautela, acredita-se que compreender o trabalho desta psiquiatra auxilia a mapear o que pode ter sido absorvido ou aproveitado de suas ideias pela CJM na década de 1980. Pode-se dizer que a trajetória de Nise até o ano em que assumiu a STO é marcada por uma postura contestatória, o que lhe rendeu o título de “psiquiatra rebelde” (Gullar, 1996; Mello, 2014). Em 1936, foi afastada de suas funções no serviço público em razão da perseguição política aos comunistas durante o governo de Getúlio Vargas, chegando a ficar presa pelo período de um ano e três meses (Melo, 2009). Além de sua “rebeldia” política, ao reassumir sua vaga de servidora Federal, em 1944, entrou em conflito também com a prática de sua profissão (Gullar, 1996; Melo, 2001). Isto porque, durante os cerca de sete anos em que se manteve impedida de exercer a medicina no serviço público, novos métodos terapêuticos surgiram. O retorno de Nise a colocou diante de uma série de novas terapias organicistas, como o eletrochoque, o choque insulínico e a lobotomia (Gullar, 1996; Melo, 2001). A descoberta da paralisia geral progressiva, realizada por Antoine- Laurent Bayle (1799-1858), ainda no século XIX, havia proporcionado o desenvolvimento de novos métodos de tratamento das doenças mentais baseados em uma visão estritamente organicista das causas dos distúrbios mentais na primeira metade do século XX (Melo, 2001). Segundo Melo (2001), a partir desta descoberta, as noções de doença mental e anormalidade adquiriram uma explicação cerebral, o que tornou a terapêutica ocupacional - utilizada no Brasil desde a criação do Hospício Pedro II, na Praia Vermelha - uma técnica de menor valor, já que “pouco ou nada adiantaria participar de atividades que não alterariam a conformação patológica do cérebro” (Melo, 2001, p. 66). Ainda assim, foi a partir da terapia ocupacional que Nise encontrou um caminho para se contrapor à utilização daqueles métodos, os quais considerava extremamente violentos. Entre outros fatores que justificavam esta posição, as terapias biológicas em voga lembravam-lhe muito os métodos de tortura que presenciou na prisão (Melo, 2001). Por este motivo, o então diretor do Centro Psiquiátrico Nacional, Paulo Elejalde (1901-1959), ofereceu à Nise a coordenação da STO, único lugar onde 26 estes procedimentos não eram realizados, concedendo-lhe total liberdade para amplia-la e modifica-la (Gullar, 1996). Cabe ressaltar, pelas razões acima descritas, que a STO era um setor pouco valorizado no campo da psiquiatria da época. Segundo Melo (2001), “em meio ao pesado arsenal composto por choque elétrico, coma insulínico e lobotomia, a ocupação configurava-se como método subalterno” (Melo, 2001, p. 66). No entanto, Nise já havia demonstrado interesse pela terapia ocupacional desde a introdução deste tipo de tratamento pelo psiquiatra Fábio Sodré na Seção Waldemar Shiller, também no Engenho de Dentro (Melo, 2001). Ao assumir a STO, em 1946, fez diversas modificações nas práticas ali realizadas, dando especial ênfase às atividades expressivas (Gullar, 1996; Melo, 2001). Sob a sua coordenação, foram implantados dezessete núcleos de atividades que se contrapunham às atividades monótonas e reprodutivas que eram antes oferecidas e que se caracterizavam por atividades auxiliares aos serviços do hospital, como: “varrer o chão, juntar estopa, carregar a roupa das enfermarias até a lavanderia etc” (Melo, 2001). Com auxílio do artista plástico Almir Mavignier (1925-), até então secretário do Centro Psiquiátrico Nacional e realocado para a STO, Nise da Silveira conseguiu implantar um ateliê de pintura, além de outros núcleos de atividades expressivas (Silveira, 1981). Logo, as oficinas de desenho, pintura e modelagem se destacaram. Segundo Silveira (1981), O Atelier de pintura era inicialmente apenas um setor de atividade entre vários outros setores da Terapêutica Ocupacional, seção que estava sob minha responsabilidade no Centro Psiquiátrico Pedro II. Mas aconteceu que desenho e pintura espontâneos revelaram- se de tão grande interesse científico e artístico que esse atelier cedo adquiriu posição especial (Silveira, 1981, p. 13). O espaço chamou a atenção de um grupo de artistas e críticos de arte, que passaram a admirar o trabalho desenvolvido por Nise e a divulgar as obras dos artistas através da realização de diversas exposições1. Dentre estes, os artistas plásticos Ivan Serpa (1923-1973) e Abraham Palatinik (1928-), amigos de Mavignier, tornaram-se frequentadores assíduos da STO e o crítico de arte, Mário Pedrosa (1901-1981), tornou-se um grande incentivador e defensor do trabalho realizado pelos artistas do Engenho de Dentro (Silveira, 1981). Este último ajudou a fomentar 1 Segundo Andriolo (2004), destacam-se as exposições que ocorreram no MEC, em 1947; no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1949, intitulada 9 artistas do Engenho de Dentro; no próprio Museu de Imagens do Inconsciente, em 1956; na 16ª Bienalde São Paulo, em 1981, intitulada Arte Incomum, entre outras. 27 a aceitação dos trabalhos realizados pelos frequentadores dos ateliês da STO nos circuitos de arte por meio da valorização do caráter espontâneo e inconsciente da atividade artística, universalizando o processo de criação. Para Mário Pedrosa (1995/1947), estendida a todos os seres humanos, a vontade de arte se manifestaria “em qualquer homem de nossa terra, independente do seu meridiano, seja ele papua ou cafuzo, brasileiro ou russo, negro ou amarelo, letrado ou iletrado, equilibrado ou desequilibrado” (Pedrosa, 1995/1947, p. 46)2. O sucesso das oficinas e das exposições possibilitou a criação do MII, que tinha como objetivo guardar e preservar todos os trabalhos produzidos pelos internos, tendo em vista não só seu valor artístico, mas, principalmente, seu valor científico. O interesse de Nise pelo estudo das atividades expressivas executadas por esquizofrênicos ocorreu a partir de interrogações no campo da psicopatologia que se mostravam prementes a partir do agrupamento em série das pinturas (Silveira, 1981). O MII mostrou-se, então, uma necessidade para a reunião e organização daquele já volumoso material (Dias, 2003). Por mais que pareça simples a proposta adotada no MII, ela adquire complexidade, e ao mesmo tempo coerência, no projeto da psiquiatra. Nise da Silveira (1992) facilita o trabalho do pesquisador na busca de seus referenciais teóricos quando cita uma série de personalidades que atravessaram sua trajetória, tais quais: Sigmund Freud (1856-1939), Carl Jung (1875-1961), Hans Prinzhorn (1886-1933), Jean Dubuffet (1901-1985), Robert Volmat (1920-1998), Leo Navratil (1921-2006), e no Brasil, Mário Pedrosa e Osório César, entre outros. Segundo Dionísio (2012), “psiquiatria, psicanálise, fenomenologia e Gestalttheorie fazem parte de um repertório teórico multifacetado, sendo necessárias para circunscrever aquele fenômeno de arte observado pela primeira vez em 19473” (Dionisio, 2012, p. 115). É importante lembrar que a perspectiva fundante do MII recebeu grande contribuição da psicologia analítica de Jung, mas é preciso entender que “ela também tem raízes em obras de outros autores, filósofos e artistas, em especial na poética de Artaud, o qual Nise da Silveira considerou um mestre” (Frayze-Pereira, 2 Conforme nota do livro organizado por Arantes, O. (1995), onde consta a citação, o texto integral trata-se de “conferência pronunciada por ocasião do encerramento da exposição de pintura organizada pelo Centro Psiquiátrico Nacional, sob os auspícios da Associação dos Artistas Brasileiros na ABI, em 31 de março de 1947, publicada no Correio da Manhã, nos dias 13 e 21/04/47”. 3 Refere-se à exposição realizada no MEC, no Rio de Janeiro. 28 2003, s.p.). Em O Mundo das Imagens (1992), Nise declara que ninguém mais afirmou a importância do imaginário e sua seriedade como Antonin Artaud (1896- 1948) em sua carta4 aos médicos dos manicômios, destacando a seguinte pergunta feita pelo poeta: “Para quantos dentre vós o sonho do demente precoce (esquizofrênico), as imagens das quais ele é a presa são coisas diferentes de uma salada de palavras?” (Artaud citado por Silveira, 1992, p. 83). Diferentemente dos médicos para os quais Artaud direcionou a sua carta, Nise conseguiu perceber nas imagens que surgiam nas atividades expressivas oferecidas pelo ateliê a presença de uma linguagem pela qual podia entrar em contato com o mundo de seus pacientes: a linguagem do inconsciente. Esta se manifestava através das inúmeras imagens que surgiam nas oficinas, esteticamente ricas e criativas, contrastando com a pouca atividade dos pacientes fora do ateliê. Já próxima da psicanálise freudiana, o primeiro contato com aqueles trabalhos na STO fez com que Nise concluísse que pintar seria um método de ação e de defesa contra a inundação dos conteúdos do inconsciente (Silveira, 1981). A partir daí, compreendeu que “a principal função das atividades na Terapêutica Ocupacional seria criar oportunidade para que as imagens do inconsciente e seus concomitantes motores encontrassem formas de expressão” (Silveira, 1981, p. 13-14). Através da arte, a terapia ocupacional na STO mostrou-se capaz de estabelecer um canal de comunicação entre o terapeuta e o paciente. Por essa razão, utilizando a arte como ferramenta, Nise priorizou as atividades de livre expressão em acordo com o método de tratamento hiperativo postulado por Herbert Simon (1916-2001). Estabeleceu, assim, o critério de que as oficinas não deveriam ter como objetivo a qualidade da produção (Melo, 2009), ainda que o valor estético dos desenhos e pinturas tenha chamado a sua atenção e a de diversas pessoas. Permitindo que seus pacientes se expressassem livremente, foi possível perceber certas tendências nos trabalhos produzidos. Além da desintegração de formas, típicas das pinturas de esquizofrênicos e já observada por diversos autores, Nise se surpreendeu ao se defrontar com um fenômeno que considerou ainda mais inusitado. Havia nos trabalhos uma “constante tendência ao agrupamento, à simetria, à disposição de elementos díspares em torno de um centro e, sobretudo, o aparecimento de círculos mais ou menos regulares” (Silveira, 1981, p. 50). 4 A Carta aos médicos-chefes dos manicômios pode ser encontrada na íntegra em Willer, C. (org.) (1983). Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM, p. 97-98. 29 A organização em série dos trabalhos no MII facilitou a visualização deste fenômeno que Nise logo identificou como mandalas. Com conhecimento ainda insuficiente para entender o significado destas formas e em busca de respostas, escreveu uma carta a Jung em 1954, acompanhada de algumas fotografias de mandalas brasileiras (Silveira, 1981). A resposta de Jung veio confirmar a sua intuição: “as imagens do círculo pintadas em Engenho de Dentro eram realmente mandalas”! (Silveira, 1981, p. 52). Esse primeiro contato se desdobrou em uma estreita aproximação do trabalho de Nise com a psicologia analítica de Jung, levando-a a ir para Zurique realizar estudos no Instituto C.G. Jung, em 1957 (Silveira, 1981). Para Nise, ao contrário da psicanálise freudiana, que considerava reducionista, no sentido de buscar interpretações para o simbolismo das imagens tentando descobrir nelas elementos inconscientes disfarçados, a psicologia junguiana dava grande importância para as imagens, para as fantasias e para os delírios, enxergando nelas a própria representação dos processos psíquicos (Silveira, 1992). Desta rede complexa de saberes, pode-se inferir que o trabalho de Nise é fruto de um desenvolvimento contínuo que partiu não só da prática terapêutica e da organização dos trabalhos artísticos em um museu, mas também das pesquisas que desenvolveu a partir deste espaço. Seu pensamento pode ser considerado marcado por uma série de mudanças epistemológicas que culminaram na utilização da terapia ocupacional e na valorização, dentre outras abordagens, da perspectiva teórica junguiana enquanto instrumento para a elaboração de um método “não agressivo” de tratamento e estudo da esquizofrenia (Melo, 2009). Por mais que estes espaços multidisciplinares – a STO e o MII - tenham produzido uma atmosfera revolucionária nas práticas e nos saberes psis por meio de uma forte crítica à psiquiatria organicista da época, é preciso dizer que as mudanças introduzidas na clínica por Nise da Silveira a partir da adesão a um paradigma estético (Melo & Ferreira, 2013), em contraposição à lógica racionalista do hospital, não reduziram o carátercientífico de sua prática. Ocorre que, embora Nise apoiasse a divulgação dos trabalhos dos pacientes através de diversas exposições5, a STO e o MII sempre foram, antes de tudo, espaços de estudos e pesquisas no campo da 5 como as que ocorreram: no MEC, em 1947; no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1949, intitulada 9 artistas do Engenho de Dentro; no próprio Museu de Imagens do Inconsciente, em 1956; na 16ª Bienal de São Paulo, em 1981, intitulada Arte Incomum, entre outras. 30 psiquiatria e, posteriormente, da psicologia analítica junguiana. Segundo Melo (2001), “apesar de, por vezes, Nise se referir aos frequentadores dos ateliês de pintura e modelagem como artistas, preferia manter uma atitude discreta quanto à qualidade das obras produzidas” (Melo, 2001, p. 63). Isto não significa dizer que Nise ignorou o valor artístico destas produções. Pelo contrário, esteve profissionalmente comprometida com o valor significativo daquelas valiosas imagens para o estudo da esquizofrenia. O rigor científico do trabalho de Nise da Silveira é confirmado, entre outras formas, por sua participação em congressos internacionais de psiquiatria. Por exemplo, Nise da Silveira apresentou no 1º Congresso Latino-Americano de Saúde Mental, realizado em julho de 1954 - dois anos após a criação do MII - um estudo comparativo das pinturas realizadas por três internos, antes e depois da operação de lobotomia (Melo, 2001). O objetivo deste estudo era condenar a lobotomia enquanto método terapêutico por meio da demonstração de que os pacientes sujeitados a este procedimento sofriam um acentuado embotamento da afetividade e da criatividade. Três anos mais tarde, em 1957, em sua viagem para Zurique, levou pinturas e modelagens de vários frequentadores de seu ateliê para montar a exposição A Esquizofrenia em Imagens, realizada dentro de uma grande mostra de pinturas feitas por esquizofrênicos e que ocorreu em paralelo ao II Congresso Internacional de Psiquiatria, neste mesmo ano e cidade (Silveira, 1981). Além disso, enquanto espaços terapêuticos e de produção de pesquisas, a STO e o MII mantiveram uma relação com a estrutura institucional constituída pela psiquiatria científica, não escapando dos modelos diagnósticos. Apesar de Nise da Silveira ter proporcionado a criação de um espaço que rompia com a lógica manicomial, valorizando o afeto, a criatividade, a sensibilidade e, principalmente, a liberdade no processo de cura (Silveira, 1992), a clínica que desenvolveu estava direcionada para internos identificados como psicóticos (Melo & Ferreira, 2013). Assim, sua crítica ao modelo asilar e aos métodos terapêuticos que considerava agressivos não previa a exclusão dos parâmetros diagnósticos postulados pela psiquiatria da época. Portanto, outro critério básico estabelecido por Nise da Silveira para a realização da terapia ocupacional foi o de que os pacientes recebidos na STO deveriam ser encaminhados através de receita médica pelos médicos do Centro Psiquiátrico Nacional, mantendo, deste modo, um respaldo para que as atividades não fossem vistas como um passatempo (Melo, 2009). 31 Conclui-se, deste modo, que a criação do MII foi um marco na institucionalização da relação entre a psiquiatria e a arte no Brasil em razão de ter sido um local de pesquisa e estruturação de uma nova prática clínica, pautada no paradigma estético e na recusa à clínica psiquiátrica de base organicista; um espaço de criação e de liberdade que se contrapôs ao ambiente inóspito, frio e racional que caracterizava o hospital; um ambiente rico em trocas intelectuais que trouxe para a clínica saberes trazidos de outras áreas de conhecimento, especialmente do campo da arte; e um monumento à capacidade criativa e afetiva dos esquizofrênicos, vistos, até então, como sujeitos encarcerados em seus corpos doentes. Apesar de Nise não ter sido a primeira a traçar um diálogo entre a arte e a psiquiatria, privilegiou-se explorar inicialmente neste capítulo o MII pela relação imediata que a história do mBRAC estabelece com esta outra instituição, em razão de ter sido chamado de Museu Nise da Silveira até o ano de 2000. Porém, neste mergulho histórico que aqui se efetua, outras práticas e outros saberes psis se mostram de forma não tão evidente, porém, não menos relevantes para compreender a criação de um museu de arte em uma instituição psiquiátrica. Como dito, a valorização da arte produzida por internos destas instituições é um ponto chave para entender este fenômeno e o trabalho realizado por Osório César, iniciado na década de 1920, foi fundamental para que isto ocorresse no Brasil. 1.2 A Seção de Artes Plásticas do Juquery A experiência da Seção de Artes Plásticas do Juquery, criada pelo psiquiatra Mário Yahn, em 1949, e coordenada pelo Dr. Osório César a partir do início da década de 1950, ocorreu de forma um pouco diferente, uma vez que não se chegou a constituir no Hospício do Juquery um espaço adequado para preservação e catalogação da produção artística dos pacientes à época. Não menos importante em razão dessa característica, a história do ateliê de pintura do Juquery traz elementos fundamentais para a compreensão da interlocução entre as práticas e os saberes psis e a arte em hospitais psiquiátricos, principalmente em relação à valorização da produção plástica produzida por internos neste tipo de instituição. 32 Em função do trabalho de Osório César neste campo anteceder em algumas décadas a criação da Seção de Artes Plásticas, é preciso recuar um pouco no tempo para acompanhar sua trajetória, iniciada na década de 1920, e, assim, compreender melhor sua contribuição para este estudo. Antes de coordenar o ateliê de pintura do Juquery, Osório César cumpriu uma longa trajetória de diálogo com o campo da arte, desenvolvendo uma visão peculiar sobre as obras produzidas por seus pacientes. Em 1924, um ano após ingressar como “primeiro estudante” no Hospício do Juquery, publicou seu primeiro artigo tratando dos temas arte e loucura, intitulado A arte primitiva nos alienados: manifestação escultórica com caráter simbólico feiticista num caso de síndrome paranoide (1924). Este artigo, presente no periódico Memórias do Hospício do Juquery, publicação que visava ser um corolário da psiquiatria científica na década de 1920 (Lima, 2009), apresenta um estudo sobre esculturas produzidas por um interno do Juquery, realizando uma leitura nosográfica do caso em paralelo com uma interpretação dos símbolos presentes nas obras. Ao deter o olhar sobre o sumário da revista, criada pelo psiquiatra Antônio Carlos Pacheco e Silva (1898-1988), verifica-se que o artigo destoa completamente dos temas de interesse da psiquiatria científica da época, que privilegiava a anatomopatologia nos estudos diagnósticos (Lima, 2009), sinalizando o pioneirismo de Osório César neste campo. Embora outros psiquiatras brasileiros já tivessem antes voltado a atenção para a manifestação artística nos alienados – como os já mencionados, Ulisses Pernambucano, em Pernambuco e Silvio Moura, no Rio de Janeiro -, o médico do Juquery foi o único a dar continuidade a estes estudos e desenvolver uma extensa pesquisa sobre o tema (Andriolo, 2003). Osório César pode ser considerado, assim, um importante representante dos estudiosos que se voltaram para relação entre arte e a psiquiatria no Brasil, principalmente pela tentativa que fez de fugir à tendência patologizante dos trabalhos artísticos. Tendência esta que marcava o campo da psiquiatria europeia desde que esta ciência passou a se interessar pelas obras produzidas por loucos internadosem manicômios, ainda no século XIX (Lima, 2009). Não obstante esta área instável, onde arte e psicanálise se opunham à psiquiatria, neste artigo inaugural, onde trata da obra de “T., 32 anos, preto, soldado de polícia, casado, católico, brasileiro, procedente de cadeia pública” (César, 2007/1924, p. 119), interno do Hospício do Juquery e escultor, Osório César conseguiu estabelecer uma ponte profícua entre estes conhecimentos (Lima, 2009), 33 escapando de cair no abismo da incredulidade. A perspectiva que o ajudou a se estabelecer foi a psicanálise freudiana, que desde o início atravessou seu trabalho, aparecendo já no seu primeiro artigo sobre o tema, na passagem que o encerra: Freud estudando ‘uma recordação infantil de Leonardo da Vinci’, na análise de seu quadro, ‘Sant’Ana, a Virgem e o Menino’, chega a conclusões interessantes por intermédio da psicanálise. Leonardo quando pintou esse famoso quadro, reproduziu ocultamente entre as dobras do manto da Virgem, os caracteres de um corvo, que traduz, segundo Freud, uma recordação infantil, da vida do célebre pintor italiano, ou então ‘uma fantasia ulterior transportada por ele à sua meninice (César, 2007/1924, p. 129). A interpretação de elementos simbólicos sob a perspectiva psicanalítica nas obras encontradas por Osório César nos pátios e demais espaços do Hospício do Juquery, se tornou o ponto central de seu trabalho. No caso das duas esculturas produzidas por “T.”, César chegou à conclusão que determinados caracteres presentes nestes trabalhos, como a “deformação mórbida” em uma das imagens e o “realismo e beleza dada às mãos da estátua” em outra, revelavam a presença de uma “herança atávico-religiosa”, isto é, uma crença ancestral com origem nas religiões africanas, e de um “simbolismo sexual como recordação de práticas infantis”, se referindo à masturbação (César, 2007/1924). Além do referencial psicanalítico, outros saberes e práticas psi constituíram o instrumental teórico de Osório César. Segundo Andriolo (2003), além de Freud, o trabalho de Osório César foi inspirado também pela leitura de Prinzhorn e Vinchon, e pode ter tido ainda a influência de outros autores, como Fursac (1872-1942) e Morgenthaler (1883-1965) (Andriolo, 2003). Todas estas influências foram determinantes para que a pesquisa de César não entrasse no sistema de patologização dos trabalhos artísticos. A leitura de Prinzhorn, por exemplo, inseriu em seu trabalho a noção de que o ímpeto criador, presente em todos os homens, não estava ausente em indivíduos esquizofrênicos, sendo estes tão capazes de produzir arte quanto os sujeitos “normais” (Thomazoni & Fonseca, 2011). Por este caminho, Osório César passou a dar especial atenção para o que classificou como “arte primitiva”, associada à ideia de liberdade expressiva, característica de grande parte das obras produzidas pelos internos do Juquery. Percebeu também que alguns dos trabalhos artísticos apresentavam certa originalidade, harmonia e agradavam aos olhos por sua perfeição. No entanto, foram as produções grosseiras, falhas, icoerentes, ou seja, primitivas, que lhe interessaram 34 mais. No artigo de 1924, Osório César afirmou que “esta questão de moldes, de medidas, de ‘cannons’, é o enclausuramento, é a morte por assim dizer do artista criador”. E completa com a sua impactante frase: “A arte para ser genial tem que ser livre” (César, 2007/1924, p. 123). Deste modo, a postura de Osório César em relação aos trabalhos dos internos do Juquery é de suma importância para a sua inclusão nos circuitos de arte. Por meio de sua abordagem, colocou no mesmo patamar as obras realizadas pelos internos e aquelas produzidas por artistas profissionais, enxergando-as como expressão simbólica de fantasias e realização compensatória de desejos (Bezerra Jr. 2011). Isto se evidencia pelas comparações que fez entre esta arte dita primitiva e aquela produzida pela vanguarda artística da época, já que, diferentemente do que possa parecer, a ideia de arte primitiva não tinha para Osório César um valor pejorativo. Ao contrário, este conceito estava intimamente ligado com um valor buscado pelo movimento modernista na década de 1920. Tal movimento, caracterizado pela busca de inspiração artística nas manifestações populares brasileiras (Dias, 2003), se alinhava também com a ideia de primitivismo, notoriamente evocada, entre outras formas, pela concepção canibalista de arte proposta por Oswald de Andrade (1890-1954) em seu Manifesto Antropófago, de 1928, e que caracterizou uma das vertentes deste movimento. Em contraposição à tendência academicista, que se limitava à copia de modelos europeus, tanto no sentido da técnica quanto da temática na arte, Oswald de Andrade propôs uma produção artística que estivesse em comunicação com a cultura brasileira em sua faceta original, não colonizada. Afirmava o manifesto: “contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo” (Andrade, 1976/1928). Deste modo, o primeiro modernismo brasileiro estabeleceu como proposta a busca do novo e do moderno, mas, para tanto, deteve-se em temas genuínos e populares como forma de criar uma nova visão do brasileiro distinta da europeia (Facchinetti, 2000). Além desta característica, a vanguarda artística das primeiras décadas do século XX esteve interessada também no caráter sensível e espontâneo da arte, através da busca de “um novo modo de apreensão artística em que o inconsciente e a pulsão seriam valorizados” (Facchinetti, 2000, p. 134). Neste sentido, existiu um duplo movimento no qual uma determinada classe de artistas também passou a se interessar pela arte dos psicóticos (Thomazoni & Fonseca, 2011). Este foi o contexto que permitiu a Osório César elaborar estudos através do 35 método comparativo, utilizando para tanto a arte dos alienados e a produção plástica da vanguarda artística da época (Andriolo, 2006). Já em seu artigo de 1924, afirmava que: A estética futurista apresenta vários pontos de contato com a dos manicômios. Não desejamos com isso censurar essa nova manifestação de arte; longe disto. Achamo-la até muito interessante, assim como a estética dos alienados. Ambas são manifestações de arte e por isso são sentidas por temperamentos diversos e reproduzidos com sinceridade (César, 2007/1924, p. 123). Músico, crítico de arte e frequentador dos circuitos da arte moderna brasileira, Osório César era um grande conhecedor deste movimento (Lima, 2009; Bezerra Jr. 2011). Essa aproximação permitiu que suas ideias, ainda que não fossem tão marcantes na área da psiquiatria, ganhasse importância por meio de sua forte adesão no meio intelectual paulista, passando a ser conhecido entre estes como estudioso da psicanálise (Andriolo, 2003). Portanto, a psicanálise também contribuiu para esta assimilação dos estudos de Osório César pelos modernistas, visto que as ideias de Freud tiveram grande influência sobre este movimento, sendo ele inclusive uma das principais vias de entrada da teoria freudiana no Brasil no início do século XX6 (Lima, 2009). No entanto, ainda que não tenha se situado no centro das pesquisas na área da psiquiatria, que se voltavam especialmente para explicações anatomopatológicas dos distúrbios mentais (Lima, 2009), Osório César recebeu algum incentivo de seus pares. Dentre estes, o primeiro diretor do Hospício do Juquery, Dr. Franco da Rocha, escreveu uma crítica elogiosa aos seus estudos, ressaltando sua importância para o surgimento de uma nova forma de interpretar os delírios que se manifestavam nos insanos (Ferraz, 1998). O elogio se direcionava à sua mais destacada obra: o livro A expressão artística nos alienados, publicado
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