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 \j_[) <0 . / ' EO cJ ~ r~NVEST 008 • DA SUA ----------------------------·· ----------------+ DEIXE O EDITAL SENAI SESI DE INOVAÇÃO SER O SEGUNDO. • PRIMEIRA PAGINA -.DA MESA DO EDITOR Apicanha e o Universo A FERRAMENTA mais potente do mundo é essa massa gosmenta que fica entre as suas orelhas. Ela pesa o mesmo que uma picanha bovina, pode ser erguida com uma só mão, e ainda assim cabe um universo inteiro dentro dela. São 86 bilhões de neurônios, conectados entre si por 100 trilhões de sinapses, o que resulta num número infinito de caminhos diferen- tes para um impulso nervoso percorrer. Dessa infinitude emerge toda a espetacular diversidade humana. As pinturas rupestres de Lascaux,ostextos sagrados das religiões antigas, os afrescos da Capela Sistina, as leis de Newton, as sinfonias de Beethoven, as canções dos Beatles, os toques de bola de Pelé, o design do iPhone, o roteiro de Breaking Bad - cada Foto Ou lia uma dessas maravilhas surgiu na escuridão de algum cérebro humano. Inteligência, memó- ria, percepção, humor, amor, consciência, emoção, intuição. Cada uma das mais profundas capacidades que nos definem se origina ali. Ao longo da história, o cérebro humano desvendou os mais íntimos segredos da matéria, a lógica da vida, os confins do Universo, a bilhões de anos-luz daqui. É impres- sionante que um órgão de pou- co mais de 1 quilo na cabeça de um primata sem pelos de um planeta da periferia de uma galáxia qualquer tenha compreendido tanto. Mas é impressionante também que falte tanto para o cérebro humano compreender do próprio cérebro humano. Nossa complexa máquina de entender coisas é complexa demais até para ela própria. Aqui na SUPER, nosso trabalho é alimentar o seu cérebro. Natural que, ao longo dos anos, tenhamos produzido dezenas de grandes reportagens sobre o próprio cérebro e suas capacidades. As mais marcantes entre elas estão nesta edição. Espero que o seu cérebro goste. Denis Russo Burgierman DIRETOR DE RE DAÇÃO DENIS. BURGIERMAN@ABRIL.COM. BR EDITORA~ Abril Fundada t m 1950 VICTOR CIVITA ROBER'TO Cl\lTA 11901·19901 (19;6.2013) Conselho Editorial: Victor Ci\,ita Neto (Presidente/. Thomaz Sou1o Corrêa (Vicc·Presidenlc). Euripcdcs A cãn1ara. Giancarlo Civi la e José Rober1o Guzzo Pre1lde.nt e. Abril Míd~: Giancarlo Ci\'il3 Presidente Editora Abríl: Alexandre Caldini OirtlorCommial: Rogério Gabriel Comprido Dire.torade.Vt ndtls de Publicidade: Virginla Any Diretor de Vendas para Audlf nda: Dimas ~'l i cito Diretor de Marktt ing: Tiago Afonso DiretorõlOigital e Mobilt: Sandra Can·alho Diretor dtApoloEditorla l: Ed\\'ard Pimenta Diretor~·Suptrintendenl e:Aiccsandra Zapp:uoli Diretor dt Relb (.\o: Otnis Russo Bu~imtan Diretor de Ar1e: f abricio \liund~ R.tda:Ot-dMtfe: Ak:undrt \'tr'S~;n.mt Editores: Bruno GaranonL K.1rln llutck. Tbgo Jokur3 Editor de Arte: JorgtOll\'tiro. l>flJgnt:rs: Brurut Lor.t,FU\ tll Pes.soat lnat:l Kep;lll Rfpórte:r. úsmíb AlmtidJ Rl!dn SO<Wit.: luca.4i P415Cjual ~11uts Zlrruner Mmnin' Est.tgUrios: AM luísa Ftrnandts.l.ton.1tdo Ramlres SaniOSe lutai Muniz Rapli\IJI Prodt.rtor Grí lko: Andcr$on C. S.dC' Fam Col.lbora(.lo: Ale.undre Cal'\~lho (mi~) Altndimtnlo .o Leitor. Carolln.J C.uob~ 5.1ndt:~ l f3d!ch. Sonb Santos. W.tlkirb G10r;mo Poot Adrnini:nratrvo: Crisli.lt.e Ptrtir.a (cootdtrrudor.J). Dtbor:lh Sib'a (auxiliar admlnbtu1n'1). Grie'C' Kt!l) Al\"!:5 (aprtadlz) Gmn!t de "cg6dos Oigiuis: M:tmnnt t\~híhlta ~tntts eM Produto: Prdro \formo t Renata Comes de Agu1.1r ANfrtt.u de Produto; Ebuu~ Cnsll11.1 dos s.n,.. < l<o1>1m lkm.lnlo D<slgotn: O:mllo Bnp. 11:'-" M<mr>. SUnon< lllrWnOIO ~ Fdi;>< Tbirou< O......ol...,.n10: Aoo!"""' R<mto Poll Cah Fdu. llrnls \" Russo. Eduardo Bo~ Ftrr~n. Elton Prado bt~gUrios::: O;an1tl lto f \'inlou~ ArrvdJ www.Juptrin1eressan1e..com.br Para adquirir os dlrtUos dr rtprod uçio dr tutos e imagrns l.lt Superinltfth:tnlt, ~www.olbrikonteudo.(om.br oultguep.1nt(11)m0·1l81 . VENDAS DE PUBLICIDADE • And!fl \'rig.t (RJ). Ala SlnmJ ( lnltrrPnO!Ial~ AM \loltOO CMod.>. -~ • ~~ Cruuno ""- ll'o""""'~ lml.rb Sm.'b CTtmOiop ' Ttkoxn~ joa;u<s ~ I_.IL Raqod lo>;> CS.Ud<. E>porl< < f.t"'"<'c>L Sd.,. Soc.'111 (6rM de Conwmo). \\lWm I~ (l'raru.por.t t Mobi.i!d.WrJ VOIOAS PARA AU· Olb<CIA - M>l)oo G<>r..odo Cl'!oasioiL Cbõi> ObctdlltO.-N>çlo Ew><i'ft=.c.lSL Dl<.Cb \'>da CSACl. l<a. .. f:<!.., iCirnolaçlo \ ep,IX<SI)-1<1. U<l Si.'u C\"...W ~~ 0;1$). Mm» Tullo ArJ.bt tEszudío dt C~~ Ml t)' \ms (\ft1it.H Corpo:l:r\""11). RoCt110 0...4J> !Nus.""'~ " ".boa l"""' i\"Cid» ~~ MAJU(ffiliG - Aodr<• Abc:lon (\ 'fi). Alld:a Cosa (~r~ dt \!nado~ Ciw Al:Ddd.l!Ea'Df1,. Cuol1na Bt:r1t!lt (fftn· ln!Ju:i\. t\tib Ardpmt (U!OI)It~ ~Urda AQno (Abnl B!J 0~"). Ro:do P.d.n~ t\f.u\tt 1q t E\-mtos}. OIGifAL E MOIILE - Adria» Bonolooo ~!ttnc:u). Al.no:t l..o;lc1 (Tt"''\Jm. áü). \t&.-m Franmcdni llmrlrmmtaçio dt Tmdmc::m). Rodn,:u Muun\ (Rtdrs Soda") APOIO - ASRIL BRAHCEO COtlTENT - 0Jgmtr StTp;t. Ni\11 ~llllttllo, \lallhN Sh!n~ Patricia 1-llrgre.i\tS, Thitago Araújo PLAtU.JAMEIHO CONTROLE E OPERAÇ0ES - &hl)()ll Soarrs (Rt'Cti14S), José PauSo Rando (Marktting f Contrudo) DEOOC e ABRIL PWS- Ekrlltt Ftmri A!CUIISOS HUMANOS - Al<swxirll d< Cas!to ill<•tmokim<rl'> Orpnludonal}. \Urtto Nl.Sdmtnlo (Rt.muntração t Btnefinos), Milnzttc Ambr:m. Mkbdle Cosb t Rtpr\.3 Cordrito lCon.st~J:on.a lr.ltt'N). An.1 Kob.l (~udt t Stn"I\011 ~ e CormpondMcil: A\. d.u t\"I(Ots Cnida.s. m 1. 2tr ar.d.u, Plnhnto\, Slo P>ulo. SP. CEP05•25·90l. ld. (li) J03i·2000. PI.COdcladr SOo....., • ..,.,_ uobrt rtptt:S«~twtsdt~nolm.il eno E.cltrior.ll"'.-publbbrilrombc SUPERIU TERESSAIRE cdfçto n•lH (ISS!\ 01~· 17S9). ~o 29. n• 11. ê uma publicaçlo da Editora Abril1937 G+l Eip.ma S.A ~.\IU)' Inlctt:S3ntt~ r.\ tuilo lntMSSanle1. Espa· nha. Edi(6H antetiocn: Vmda etdu$1\'1.1. m bancu. pelo pctÇO da ühlma Ntç:\o tm bane~ Soli<il<ao"" """lriro. Dl>inbuld.J"" IOdo o p.úsprb DinopS.A. O.>lnbuldor:ll'odorul d< PllbUCI(Ilts. 5.lo 1\lulo. SUPERINT!JIESSAIITE não odml~ publiddadr otdaâon:!l Se...Aço .oAUNtltt: Gr~ Sio Pau5o:(11} S017·Z11l Dtmais kK,t,licbdts: OID0-77S·Z11Z-.• Ílw(.com ,,.n ,.Si.!Nr. Grow!t Uo hu~(11) J J.1 7·2121 DtrNk kK.IIicbdn: OI00-77S·Z&21 ~ninubril.com.br IWRU U I~ GIÚ.flCAASRIL A\'. Ot.a,iano Al\t:S dt Uma. .uoo. frt;utsia do Ó, CEP02909·900. Slo l~ulo. SP 11/(. !?fJ Abril MloiA s.A. Pmidrn1o: Giancarlo Ci\ila Din:to r·Suptrlntendtntt da Gro\fiu: Eduardo Costa Direlor d• Fin.~"'•s: Fábio PCirossi Gallo Dirt tora Jurldicil : Mariana ~lacia Diretora de Rtc.unos Humanos: Claudia Ribeiro Diretor de TI e Serviços Compartilhados: Claudio Prado www.abril.com.br ... CARDÁPIO I -+NO VEM BR O DE 2015 PERGUNTAS E RESPOSTAS 6 7 8 U M LA DO C UIDA DA RAZÃO , E OUTRO, DA EMOÇÃO ? SÓ USAMOS 10% O CÉREBRO COMEÇA A MORRER DEPOI S DOS 17 AN O S? ÚLTIMA PÁGINA 66 NA CABEÇA DOS BICHOS O ser humano está longe de ter o maior cérebro. o N ÚMERO INCRÍVEL 1_00 trilhões Número de conexões entre os neurônios no cérebro. P. 51 10 Inteligência O que é? Existe mais de um tipo? Será que os testes de Ql dizem mesmo quem tem mais? 16 Eu: quem é esse cara? Cientistas e fi lósofos afirmam: não existe consciência. Ou ela está em todo lugar. 24 As mentiras que o seu cérebro conta para você O que nós vemos não é real. E o que pensamos já foi decidido antes. 30 Minha vida sem foco Um relato pessoal do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. 44 A pílula da inteligência Repórter da SUPER tomou o modafinil por uma semana e conta como foi. 46 A cura pela palavra Veja quais são os tipos de psicoterapia e o que a ciência tem a dizer sobre eles. 56 Os maiores cérebros do mundo Os savants juntam problemas mentais sérios com superpoderes cerebrais. 62 Papo cabeça Será que a neurociência explica tudo? Alguns pesquisadores dizem que não. Capa Carlo Glovani , E VERDADE QUE UM LADO , DO CEREBRO CUIDA DA .._, RAZAO, E QUTRO, DA EMOCAO? M A IS OU M E NOS. M A I S P ARA M E NOS . Tradicio- nalmente, o lado esquerdo era relacionado a funções precisas; o direito, à criatividade. Mas, na prática, a coisa não é bem assim. Considere, por exemplo, o caso de dois rapazes acom- panhados pela neurocientista Mary Helen Immordi- no-Yang, da Universidade do Sul da Califórnia. Eles perderam metade de seus respectivos cérebros: um teve o hemisfério direito cirurgicamente retirado para controlar a epilepsia e o outro tirou o esquerdo, como prevenção a uma doença autoimune. Eles continuaram sendo capazes de andar, falar, raciocinar e interagir socialmente - o que seria impossível se houvesse uma divisão absoluta de tarefas entre os hemisférios cerebrais. "O que nós estamos vendo é que a atividade dos neurônios é sempre probabilística", diz Miguel Nico- lelis, neurocientista brasileiro da Universidade Duke (EUA) - e criador do exoesqueleto da Copa. "Não são sempre os mesmos neurônios que produzem a mesma ação." Ele acredita que a divisão tradicional deve cair, se mais pesquisas confirmarem a versatilidade do cérebro. 6 SUPER NOVEM BRO 2015 0 MITOS O cérebro é um órgão ainda misterioso, sobre o qual circulam concepções erradas e até lendas urbanas. Veja a seguir o que é mito ou realidade. o Ilustrações Guilherm e Oareuo P&R Nós só usamos 10% do cérebro? OLHA, VOCÊ PODE TER MUITOS DEFEITOS, mas está livre dessa culpa: os tais 10% são pura lenda. "Sabemos que grande parte do cérebro é utilizada. Isso explica por que até microlesões cerebrais podem causar danos graves e irreversíveis", diz o neurocientista e pesquisador do Hos- pital Sírio-Libanês, Erich Fonoff. Quantos por cento então? "Atribuir um percentual é leviano. Para isso, teríamos que saber o que são os 100%. Ainda não chegamos a esse nível". Especialistas dizem que o "mito dos 10%" surgiu entre os defensores da para normalidade. Para eles, utilizar 100% é exclusividade de quem levita, lê mentes e entorta garfos a distância, enquanto atividades do dia a dia limitam o resto de nós a apenas um décimo da "força do pensamen- to". Bom, não apenas o suposto cálculo foi puro chute, como a ciência nunca provou a existência de telepatia, telecinese e fenômenos afins. Mas e aqueles exercícios de aumentar a potência do cérebro? São mentira também? Nem todos. "O sistema ner- voso é plástico. Se for estimulado, aumenta o seu potencial colossalmente", diz o chefe do laboratório de Neurociências do Instituto de Biociências da USP, Gilberto Xavier. O CÉREBRO É CINZA? QUANDO SE FALA EM CÉREBRO, todo mundo logo pensa em "massa cinzenta". Tudo bem. pode conti- nuar se referindo ao cérebro assim. Afinal, o termo já entrou para o vocabulário popular. Além do mais, ele não está inteiramente incorreto. Existe uma parte do cérebro que até os neurologistas chamam de massa -ou substância- cinzenta. O nome veio de como ela foi descoberta: por anatomistas, em autópsias. Um cérebro morto é cinzento. Enquanto vivemos, no entanto, nosso cérebro não é cinza Se pudéssemos observar o órgão em pleno funcionamento, o que veríamos seria uma massa de coloração apenas esbranquiçada, bem clarinha e bri- lhante. "Essa aparência se deve aos fluidos e ao mate- rial gorduroso que envolve o cérebro humano", diz a médica Márcia Lorena Chaves, do Departamento de Neurologia Cognitiva da Academia Brasileira de Neu- rologia (Abneuro). Ainda que o órgão fosse partido ao meio e visto do lado de dentro, a cor cinza não daria as caras. No máximo, você observaria um tom levemente rosado, por causa da incrível vascularização sanguínea que irriga cada milímetro de nosso "disco rígido". Rigidez, por sinal, é outro mito sobre o cérebro humano. Muita gente acredita que ele seja mole e gos- mento, mas na verdade é bem firme- uma consistência semelhante à do tofu. )UNHO 2015 SUPER 7 P&R , E VERDADE , QUE O CEREBRO COMEÇA A MORRER AOS 27 ANOS? A DUR A RESPOSTA É S IM. Sob O aspecto neuroló- gico, a morte começa aos 27 anos. Quem descobriu foi o pesquisador Timothy Salthouse, da Universidade da Virginia, nos EUA. Em 2009, ele divulgou os resultados de um estudo que mediu as habilidades cognitivas de 2 mil pessoas. Segundo Salthouse, o cérebro humano atinge o auge aos 22 anos, fica estável até os 27 e, a partir daí, começa a declinar. Aos 30 anos, várias funções do cérebro já estão bem mais fracas. Isso acontece porque, do ponto de vista evolutivo, ao virar "trintão" você já deveria ter se reproduzido e completado seu ciclo de vida. Lembre-se, por exemplo, de que os homens das cavernas não viviam muito mais do que 30 anos - e que, pelo menos anatomicamente, nosso cérebro é igual ao deles. Mas não precisa entrar em pânico. Esse mesmo estudo revelou também que algumas habilidades, como a verbal, continuam se desenvolvendo até os 6o anos de idade. Para tudo aquilo que exige conhecimento cumulativo, seguimos ampliando nossa capacidade. E tem mais: a ciência tem cada dia mais controle sobre o envelheci- mento. Alguns cientistas afirmam até que, em 50 anos, nem vai haver mais definição para expectativa de vida, de tanto que as pessoas passarão a viver. 8 SUPER N OV EM BR O 201 5 LADEIRA ABAIXO Quando você completa 30 anos, seu cérebro já apresenta uma sensível queda de desempenho. MEMÓRIA -17% VELOCIDADE MENTAL -27,3% RACIOCÍNIO LÓGICO -37,5% o l lustr~ ç~o Gullharme O~rezzo O Clube e o EDC oferecem a você, Assinante Abril, vantagens exclusivas. Acesse www.clubedoassinanteabril.com.br e saiba mais. Se ainda não participa, faça o seu cadastro no s ite. É grátis! .Abril assinaturas A O que faz uma pessoa ser mais inteligente que outra? Quais são os limites do cérebro? Dá para aumentar o poder da sua mente? Você vai ver as respostas para essas e outras questões nas próximas páginas. E a viagem começa com a pergunta fundamental: o que é a inteligência? Texto Rodriqo Rezende Ilustrocõo Mariana Sal i mena GANHAR UMA PARtiDA de xadrez, escrever um ro- mance, compor uma sinfonia, convencer uma mul- tidão, contar a piada perfeita. São coisas que vêm tão rápido à mente quando se fala de inteligência quanto a imagem de um relógio se movendo ao pensarmos no tempo. Mas experimente gastar um ou dois minutos refletindo sobre o que há de comum entre essas ha- bilidades. De uma hora para outra, a ide ia clara que se tem da inteligência começa a se dissipar. Quanto mais se pensa, mais parece não haver ligação direta entre raciocínio matemático, criação de personagens e melo- dias ou talento para persuasão e comédia. Refletir sobre a inteligência desse ponto de vista gera uma sensação semelhante à que temos ao ouvir a pergunta "O que é o tempo?" Antes da pergunta, sabemos exatamente o que é. Depois dela, não sabemos mais. Se quisermos entender o que é a inteligência, é preciso contornar esse tipo de dificuldade. E uma boa estratégia para isso é ir direto à fonte: entender o cérebro. Agora mesmo uma tempestade elé trica se alastra pelo 1,4 quilo de massa gelatinosa aí atrás da sua testa. É esse movimento caótico de sinais por uma rede de 86 bilhões de neurônios que produz seus pensamentos. Das profundezas desse órgão, surge o que chamamos de inteligência. Mas, se você pensa que o processador de informações mais avançado do Universo foi pro- jetado de um jeito elegante, está enganado. O cérebro humano é uma obra feita nas coxas.-t NOVEMBRO 2015 SUPER~~ Uma obra que começou em vermes microscópicos, quando um punhado de células especializadas em enxergar se juntou numa das extremidades do bicho. Foi assim que surgiu o ancestral daquilo a que chamamos cabeça: um mero recep- táculo de células nervosas responsáveis por captar luz e mover o animal. Com o tempo, essa massa de neurônios, e a complexidade com a qual eles se conec- tam, cresceu. E aconteceu um milagre. Animais que reagiam automaticamen- te a estímulos exteriores passaram a se comportar de um jeito mais complexo e imprevisível. Em vez de responder cega- mente a qualquer estímulo, começaram a repetir apenas os movimentos mais eficazes na luta pela sobrevivência- por exemplo: em vez de caçar qualquer coisa que se mexesse, passaram a selecionar suas presas entre as mais nutritivas e fáceis de abater. Esse talento para iden- tificar acertos é a origem daquilo que chamamos aprendizagem. As vantagens que ela trouxe lançaram os seres vivos numa corrida em busca do maior e mais versátil cérebro. Mas os organismos que entraram na disputa enfrentaram um sério problema. Na evo- lução biológica, é impossível traçar um plano novo de construção de órgão do zero, pois herdamos as instw ções bási- cas para a obra, que estão nos genes dos nossos pais. O resultado disso é que o cérebro foi crescendo meio no improviso, com "puxadinhos" se amontoando a par- tir de uma estrutura básica. Essa é a ver- dadeira história do cérebro: uma sucessão de gambiarras bem feitas. E nem preci- samos ir longe para entender isso. Quem tenta se concentrar em fazer uma prova, mas ao mesmo tempo não consegue tirar os olhos da(o) mocinha( o) ao lado, expe- rimenta sentimentos e pensamentos tão pouco relacionados que aparentam ter sido juntados aleatoriamente uns com os outros. Foram mesmo. "Existe uma série imperfeita de conexões entre os sistemas cognitivos e emocionais", afirma o neurocientista Joseph Le Doux, da New York University. ''Essa situação é parte do preço que pagamos por termos capaci- dades que ainda não foram plenamente integradas ao nosso cérebro." Quantas são essas capacidades e como elas se relacionam são questões centrais para definir o que é a inteligência, mas ninguém ainda tem uma resposta exata para elas. Se você está em busca de um meio objetivo de medir a inteligência, TIPOS DE INTELIGÊNCIA A Teoria das Inteligências Múltiplas é um desafio à ideia de que o QI representa uma medida direta da inteligência. Segundo o psicólogo Howard Gardner, LÓG ICO- LINGUÍSTICA será obrigado a deixar o cérebro de lado e estudar uma área com mais de um século de tradição: a psicometria. O tamanho da inteligência Paris, começo do século 20. O psicólogo Alfred Binet recebe uma tarefa do mi- nistro da Educação da França: encon- trar um meio de prever quais crianças vindas do interior do país teriam mais possibilidade de enfrentar dificuldades na escola - o governo queria oferecer educação especial a elas. Em 1905, ele publica um teste de raciocínio verbal e matemático, com questões que testam a memória e o potencial de resolver pro- blemas de lógica. O objetivo de Binet era medir a capacidade de compreensão pura e simples, não o conhecimento prévio, colocando em pé de igualdade crianças que só sabiam capinar mato com as que recitavam Shakespeare. Pouco depois, o alemão Wilhelm Stem criou um sistema de pontuação-padrão para o teste e lhe deu o nome de Intelligenz-Quotient. Nascia o método mais bem-sucedido da história para medir a inteligência: o famoso teste de QI. E ele revoluciona- ria o que entendemos como inteligência. Até então a maior parte dos estudiosos MUSICAL ESPACIAL a nossa inteligência é o resultado de oito processadores mentais diferentes dentro do cérebro, cada um deles responsável por uma habilidade. -MATEMÁTICA Sensibilidade para Semelhante à inteligência Habilidade de reconhecer língua falada e escrita, lingu ística, só que e manipular padrões É a habilidade de resolver capacidade para relacionada a sons. no espaço. É útil para problemas a partir da aprender línguas e de É a habilidade de compor quem trabalha com lógica, realizar operações usar a lábia para e apreciar padrões a coordenação m otora matemáticas e investigar alcançar os próprios musicais. Bastante e tem de compreender questões científicas. objetivos. Encontrada rica em compositores, o mundo visual. Bastante desenvolvida em escritores, locutores cantores, dançarinos Bem desenvolvida em cientistas. e advogados. e maestros. em arquitetos. ~2 SUPER NOVEMBRO 2015 entendia o nosso intelecto a partir do conceito da tabula rasa- a ideia do filó- sofo John Locke de que a mente humana é uma folha em branco que vai sendo preenchida durante a vida. Com a ado- ção dos testes de QI, esse ponto de vista perdeu terreno - afinal, se uma criança semianalfabeta podia apresentar um QI maior que uma instruída, essa história de folha em branco era uma furada. E a inteligência passou a ser considerada cada vez mais como algo inato, como um mero produto do que está escrito nos genes. Uma pesquisa de 2015, feita pelo King's College, de Londres, revelou que nem mesmo a matéria estudada impor- ta. Avaliando 12.500 pares de gêmeos, eles descobriram que o desempenho em matemática, ciências humanas, línguas estrangeiras, negócios, informática e artes era afetado pelos mesmos genes, que respondiam por entre 54% e 65% na diferença dos resultados. "Descobrimos que mais da metade das diferenças no desempenho educacional das crianças, para todas essas disciplinas, era explicada por diferenças em seu DNA e não pela escola, família ou outras influências do ambiente", afirma a neurocientista Kaili Rimfeld, coordenadora do estudo. Esse tipo de experimento mostra que os genes responsáveis pela inteligência podem ser vistos como uma espécie de balde, e o aprendizado durante a vida, como a água que enche o balde. Ter mais educação vai levar você mais rápido a encher o balde de água. Mas, caso ele seja muito raso, não vai adiantar jogar muita água lá. Ou seja: nem toda a educação do mundo poderá tomar realmente brilhan- te alguém que nasceu com a inteligência apagada. Só que esse efeito tem um lado positivo: se você tiver vocação genética para ser um físico quântico ou coisa que o valha, tem como conseguir isso mesmo sem ter tido uma instrução excepcional na infância. Mas será mesmo que o QI é a melhor medida para a capacidade da mente humana? Mil e uma habilidades Alguns psicólogos acham que não, os testes de QI não dizem grande coisa. Uma importante ruptura veio na década de 1990, com o livro Inteligência Emocio- nal, do psicólogo Daniel Goleman. Ele ressaltou que habilidades como regular os próprios sentimentos, compreender emoções alheias, ser capaz de trabalhar em grupo e sentir empatia pelos outros Testes de QI são usados amplamente por cientistas . Mas será que são mesmo a medida universal da inteligência? Boa parte dos psicólogos diz que não . eram completamente ignoradas nos tes- tes de QI. O que não fazia sentido, já que essas habilidades deveriam fazer parte daquilo que chamamos de inteligência. Outra ofensiva veio do psicólogo Ho- ward Gardner, autor da Teoria das Inte- ligências Múltiplas. Ele se inspirou no modo como a neurociência vê o cérebro hoje: um conjunto de vários módulos dis- tintos, ou "puxadinhos", que evoluíram separadamente e hoje funcionam como processadores para funções específicas. Com isso em mente, Gardner concluiu que a inteligência não é um conceito -+ FÍSICO- SINESTÉSICA INTER PESSOAL INTRAPESSOAL NATURALISTA É o tipo de inteligência usada para resolver problemas e executar movimentos complexoscom o próprio corpo. Você a encontra em dançarinos, mímicos e esportistas. É a capacidade de entender as intenções dos outros. Bastante necessária a quem coordena e executa trabalhos em grupo. É encontrada em vendedores, políticos, professores, clínicos e atores. É a habilidade de olhar para dentro de si mesmo e entender as próprias intenções, objetivos e emoções. Necessária para encontrar erros no próprio raciocínio. Presente em psicólogos, filósofos e cientistas. É a sensibilidade para perceber e organizar fenômenos e padrões da natureza, como a diferença entre plantas quase idênticas. Costuma ser encontrada em biólogos e membros de tribos indígenas. N OVEMBRO 2015 SUPER 1.:J único, ind ivis ível, mas uma soma de várias habilidades - como raciocínio lógico-matemático, linguistico, espacial, musical, intrapessoal, interpessoal, mo- tor e naturalista (está na página anterior). Assim, a ide ia de colocar um Stephen Hawking, um Neymar e uma Cláudia Leitte em pé de igualdade no quesito inteligência deixou de soar estranha. Pela teoria de Gardner, cada um deles pode ser considerado especialista em um tipo de habilidade (respectivamente, a lógico- -matemática, a motora e a interpessoal). E por isso não daria para considerar qual- quer um deles menos genial que o outro. Talvez por parecer mais democrática que os testes de QI, a ideia de Gardner se tornou extremamente popular des- de que foi publicada, em 1983. Tanto que hoje é senso comum achar que ela está certa, e que o quociente de inteli- gência tradicional ficou ultrapassado. Mas no meio acadêmico é diferente: a Teoria das Inteligências Múltiplas ainda é vista como um patinho feio e enfrenta muitas críticas. Principalmen- te porque nem Gardner nem ninguém sabe ao certo como medir cada uma dessas habi lidades que formariam a inteligência. "Não fica claro se o con- ceito de inteligência de Gardner mede mais traços de personalidade e habili- dades motoras que faculdades mentais de fato", afirma Linda S. Gottfredson, professora de estudos educacionais da Universidade de Delaware. Ela é um dos muitos entusiastas do fator "g" (de "inteligência geral"). Segun- do essa teoria, baseada em estatísticas, a ideia de que várias habilidades cogni- tivas estejam disseminadas uniforme- mente pela população é falsa. Ou seja, não existem muitas pessoas excelentes em cálculo e ao mesmo tempo péssi- mas em redigir textos, ou com bom ouvido musical e pouca inteligência interpessoal. Se uma pessoa for boa em qualquer dessas habilidades, tende a ser boa também nas outras (como atestou a pesquisa genética do King's College, citada anteriormente.) Essa essência da teoria do fator g, porém, não é nova. Ela está por trás da 14 SUPER NOVEMBRO 2015 própria ideia do QI. Tudo bem que os testes não medem coisas como coorde- nação motora, mas é verdade que eles avaliam tipos diferentes de raciocínio. E a pontuação final vai levar em conta o seu desempenho em todos eles. Além disso, dá para comparar milhares de re- sultados de épocas e lugares diferentes, o que cria uma bela base estatística, se o ponto é saber qual é o tamanho da sua inteligência em relação à dos outros. Então, mesmo com suas limitações, os testes tradicionais continuam sendo ex- tremamente comuns no meio cientifico. "Ninguém duvida de que eles não ava- liam todos os aspectos importantes das funções mentais - não medem a cria- tividade ou a sabedoria, por exemplo. Mas o ponto é que isso não é o mesmo que afirmar que eles não servem para nada", afirma o psicólogo lan ). Deary, da Universidade de Edimburgo (Escócia). Mesmo assim, a necessidade de ex- pandir o conceito de inteligência para além das fronteiras dos testes de QI continua. Afinal, pouca gente duvida de que a criatividade, algo muito difícil de medir objetivamente, é um inegável sinal de inteligência. Diante dessa es- pécie de tilt dos testes mentais, o que dá para fazer? Com a palavra, Howard Gardner: "Nós, psicólogos, não somos mais os donos da inteligência, se é que algum dia já fomos. O que significa ser inteligente é uma questão filosófica profunda, que exige base em biologia, física e matemática". Ou seja, exige que voltemos ao lugar onde começamos essa história: para dentro do cérebro. Inteligência = demência? Para muitos neurologistas, a inteligên- cia é só um sinal de que você tem um cérebro com a "fiação" bem conectada. Quanto mais saudável ele for, mais coisas extraordinárias vai fazer. Mas espere ai. Às vezes o que acontece é justamente o contrário. É o que mostra um experi- mento sem paralelo feito na Austrália: pesquisadores lançaram pulsos eletro- magnéticos no crânio de pessoas para desligar partes do cérebro e observar o que acontecia com as capacidades cog- nitivas. E o resultado foi espantoso: as cobaias humanas começam a desenhar melhor, ter memória mais rápida, mais habilidade musical ou um raciocínio numérico mais apurado. A questão é: se partes do cérebro estavam sendo desligadas, por que a mente parecia funcionar melhor, e não pior? Não para por aí. Um estudo de 2015, da Universidade de Edimburgo (Escó- cia), revelou que há um maior risco de desenvolvimento de doenças rela- cionadas ao espectro do autismo em pessoas com os mesmíssimos genes ligados à inteligência. Na página 6o, essa ligação fica ainda mais clara. Lá você pode conhecer os cé- rebros mais fascinantes do planeta, ver- dadeiros telescópios para decifrar o que é a inteligência. E descobrir que, talvez, você tenha algo em comum com eles. 0 DHA SABH MA I S A /NTEL/GtNCIA - UM CONCEITO REFORMULAOO Howard Gardner, Objet iva. EDUCAR PARA CRESCER apresent a realização: Q Q Q Q www.educarparacre sce r.com.br .Abril (t) BANDEIRANTES e • r.A 7.\G M'~ z~~ UMCONPROWISSO .IY\-.\"""cC. COMASfrat.lHC:tA apoio: @ F A ciência desvendou de átomos a buracos negros, mas o ma1or mistério de todos continua onde sempre esteve: na sua cabeça. Afinal, o que é a consciência? mos bancos de dados sobre tudo o que você vê e sente, cer- to? Lá estão informações sobre todo mundo que você conhece. Então não seria nem um pouco surpreendente ela ter formado uma ficha sobre você mesmo, uma que você compila na me- mória desde os primeiros anos de vida Nesse sentido, a cons- ciência é um modelo inte.mo do mundo com um "eu" inseri- do. "O acesso a informações so- Texto Rodrigo R(!z_ende_ e Alexandre Versignossi Oesign Joono Amador Ilustrações de Thois Beltr:ome_ SABE AQUELA PESSOA que sempre mo- rou na sua cabeça e que você apelidou de "eu"? Então, imagine que um dia exista uma máquina que faça cópias perfeitas de você, com a sua cara, seu cérebro, suas memórias. Tudo. Será que a sua consciência vai parar lá também? Ou sua cópia ganha outro "eu"? Se você não conseguiu responder, fique tranquilo: nada é mais misterioso que esse cidadão aí dentro. Uma prova disso é o grande número de teorias que tentam explicar o que é a consciência. Muitas delas vão bem fundo no problema, mas batem de cabeça umas com as outras. Uns acham que ela nem existe. Outros, que está em todo lugar. Muitas perguntas continu- am sem resposta - e, como você pode ver nas colunas ao lado, nunca vão ter. Mas não faltam argumentos que nos deixem pelo menos mais perto de escla- recer o mistério. Prepare-se para conhe- cer esse "eu" que mora em você. Você, por você mesmo Afinal, o que é a consciência? Foi esse o problema enfrentado pelo linguista Ray )ackendoff, da Tufts University, e pelo fi lósofo Ned Block, da Universida- de de Nova York. Eles chegaram a dois significados fundamentais. Em primeiro lugar, consciênciaé o co- nhecimento que você tem de você mes- mo. Nossa cabeça consegue formar óti- bre esse 'eu' é fácil de reproduzir. Um robô que possa se reconhecer num espelho não seria mais difícil de construir do que um capaz de re- conhecer qualquer outra coisa", diz o neurocientista Steven Pinker, da Univer- sidade de Harvard, EUA, em seu já clás- sico livro Como a Mente Funciona. Outra parte é a forma com que o cére- bro acessa a infinidade de informações que tem lá dentro. Numa conversa, por exemplo, você pode falar do filme de on- tem, de alguém que está passando na sua frente, da chuva. Mas não tem como dis- correr sobre a velocidade com que seu sangue está correndo agora ou o jeito como enzimas estão sendo secretadas pelo seu estômago. Tudo o que você vê e boa parte do conteúdo da sua memória são o que sua cabeça pode acessar. O res- to fica "esconclido" no seu cérebro. Isso mostra que o sistema nervoso divide cla- ramente o que vai e o que não vai para a consciência. Então a gente fica com um outro jeito de definir o "eu": ele é tudo a que você pode ter acesso pela sua cabeça na hora. Ou, mais exatamente, tudo o que você precisa pensar para falar e fazer. Nesse processo, informações da parte consciente às vezes são escondidas. Quando você está aprendendo a dirigir, por exemplo, precisa pensar para trocar as marchas do carro. Operar o câmbio é uma preocupação que faz parte da cons- ciência do motorista de primeira via- gem. Depois de alguma experiência, a troca de marchas vira uma coisa auto- mática, tão inconsciente quanto a respi- ração e o trabalho das enzimas do estô- mago. E o "eu" fica liberado para matutar sobre o filme, os passantes, a chuva. Esevocêforum cérebro em um vidro? Por mais que os cientistas se esforcem para estudar a consciência, existem algumas perguntas rela· cionadas ao assunto que ainda não têm resposta. Como saber, por exemplo, que você não é um mero cérebro em um vidro de laboratório, e que essa revista, as suas mãos e o lugar em que você está sentado agora não passam de ilusões criadas por cientistas? Não é uma ideia absurda, por um simples motivo: não existem meios de responder a essa pergunta com um sim ou não. E é possível que nunca venham a existir. Demais perguntas desse tipo aparecerão nas colunas do resto da reportagem. Essas definições explicam alguma coisa, mas deixam muita coisa de fora. Não explicam questões que parecem simples, mas que são impossíveis de responder, do tipo: como é ser um be- souro, como seria estar morto, ou qual o sentido do "eu". E ai entram as teorias que mergulham fundo para resolver esses problemões. Bem fundo, até a parte irracional da nossa mente. Você, pela sua emoção Lembra o que acontece quando você toma um susto? Primeiro vem uma es- pécie de chacoalhão no seu corpo, de- pois um salto meio inconsciente e aí a sensação de medo. E não há nada que você possa fazer para evitar essa reação em cadeia. Aliás, para ser bem sincero, não existe nem um "você" presente nes- se processo todo. A consciência de que o susto aconteceu só vem depois dele. E talvez não seja à toa. Segundo um dos neurologistas mais respeitados do mundo, o português António Damásio, da University o f Southern California, o processo que te levou a perceber o sus- to reproduz a história evolutiva da mente, na qual a consciência é o último passo de todo o processo. -+ NOVEMBRO 2015 SUPER ~7 A primeira forma de pensamento na natureza não vinha com o "eu..- no pa- cote. Era só emoção. Para Damásio, a emoção é uma imagem mental forma- da por várias coisas ao mesmo tempo, tipo a dilatação da pupila, a descarga de adrenalina e a tensão muscular que acontecem na hora do susto. Quando a mente processa tudo isso junto e vê que tem algum perigo por perto, faz você dar um salto, por exemplo. Isso foi essencial para os animais primitivos na luta pela sobrevivência, já que permitiu reagir automaticamente a ameaças. Com o tempo, o cérebro aprendeu a lidar melhor com a tal emoção dos se- res vivos, criando um "eu" para admi- nistrá-la. Que vantagem isso dá? Sim- ples: imagine que você sempre tome um baita susto toda vez que vê uma barata. E que comece a trabalhar num lugar infestado delas. Em vez de passar a dia inteiro cheio de adrenalina e com a musculatura tensa, gastando um monte de energia à toa, você usa a consciência e se pergunta: "Por que eu tenho medo de barata?" E tenta arranjar um jeito de se livrar desse medo. Mas por que não é fácil controlar o medo e outros sentimentos que só atrapalham a sua vida? Exatamente porque a consciência é só a ponta do iceberg desse conjunto de reações ir- racionais e automáticas que deu ori- gem à mente. Para Damásio, a emoção e o sentimento compõem o grosso da mente, e não o pensamento, a razão. Essa teoria dá urna boa ideia da ori- gem da consciência. Afinal, ela é útil para o controle das emoções, e acaba aju- dando na sobrevivência. Mas por que tem de existir um "alguém" aí dentro de você? Não daria para a mente trabalhar no piloto automático? Alguns acham que é isso mesmo que ela faz, que não mora ninguém dentro da sua cabeça. Você, robô Você já leu esta linha. E esta também. Faz meio segundo que o seu cérebro processou cada uma dessas letras que você está lendo agora. Ele faz todo o trabalho antes que você tenha consci- ência do que está acontecendo, sem 1.8 SUPER NOVEMBRO 2015 perguntar nada. Sempre foi assim: todas as decisões da sua vida foram to- madas sem que você fosse consultado. Todas. Se neste momento você resolver jogar esta revista pela janela, saiba que seu cérebro já ordenou que você fizesse isso sem que a parte consciente da sua cabeça se desse conta. Essa é uma possibilidade aberta por pesquisas sobre o funcionamento do cérebro feitas pelo falecido neurocien- tista norte-americano Benjamin Libet, pioneiro dos estudos sobre a consci- ência. Entender o raciocínio dele é fá- ci l: levante seu braço agora mesmo. Levantou? Pois Libet concluiu que o impulso que seu cérebro acabou de enviar para erguer o seu braço partiu um pouco antes de você ter decidido levantá-lo. Você, o legítimo dono do membro, pode não passar de um figu- rante nesse processo. Mas espera um pouco. Se realmen- te não temos domtnio sobre nossas ações, somos o quê, então? Sinto lhe dizer, mas, segundo Richard Dawkins, professor emérito da Universidade de Oxford - que hoje pode ser famoso pela militância antirreligiosa, mas é (ironia) um dos "papas" da biologia moderna - você não passa de um robô, "ainda que um bem complexo". Essa posição tão simpática vem de uma ideia genial: a de que somos "má- quinas de sobrevivência" dos nossos ge- nes. "Máquinas" porque eles usam nos- sos corpos para se reproduzir e depois vão embora. Por essa visão, quem já teve o trabalho de arrumar parceiros sexuais e criar filhos pode morrer tranquilo por ter cumprido sua missão: ajudar suas moléculas de DNA a continuar sobre a Terra. E mais nada. Bom, se os genes são os chefes dos nossos corpos, quem man- da na nossa mente, nas nossas ideias? Para Dawkins, a diretoria aí não é forma- da exatamente pelo genes, mas pelos memes - pelo menos esse é o nome que o inglês inventou. Isso tem pouco que ver com as piadi- nhas de humor duvidoso na internet, que herdaram o nome por sua pretensão a se tomarem memes. Um meme, no sentido original, é basicamente uma Você vê o mesmo que eu? Como ter certeza de que as cores que você vê aí em cima são as mesmas que outra pessoa veria? E se a sensação que você tem do vermelho é idêntica à que eu tenho do verde? Para a física, o que chamamos de vermelho é apenas uma frequência de uma onda eletromagnética, mas nada garante quea representação mental dessa cor seja a mesma para nós dois. idéia, um conceito qualquer. Mas, note bem, eles têm vida própria. E estão na Terra com um objetivo único: se espa- lhar, igual os genes fazem. Quer ver um meme agora mesmo? Então pense em alguma música das Spice Girls - ou em qualquer uma que você gostava quando era mais novo. Se ela começa a tocar so- zinha na sua cabeça, é porque você está testemunhando um meme em ação. Se você resolver cantar a música e alguém que estiver do seu lado ficar com ela na cabeça, você está vendo um meme se re- produzir, passar de um corpo para outro. Como se fosse um gene! Ou uma carinha mal desenhada na internet. Essa lógica serve para tudo no mundo. Um filósofo, do ponto de vista "meméti- co", é o meio que uma biblioteca tem de produzir outras bibliotecas. E por aí vai. Vivemos numa "memosfera" carregada de ideias que lutam para se reproduzir. E em que lugar uma ideia tem me- lhores condições de procriar? Num cérebro humano. É ele quem tem o trabalho de espalhar ideias por aí, não é? Cérebros são o paraíso dos memes. Um conceito que esteja em várias ca- beças, entrando por muitas orelhas e saindo por muitas bocas, fica com chances melhores de crescer e de se reproduzir no "mundo das ideias". Para Dawkins, então, a mente é um emaranhado de memes em busca de um lugar ao Sol. E você, o dono do cé- rebro, não tem nada a ver com isso. A briga para ver o que se passa na sua cabeça é entre eles, caro robô. -+ r Se você achou isso difícil de engolir, não é o único. O filósofo Daniel Dennett, do Centro de Cognição da Universidade Tufts, nos EUA, também achou. Mas é uma ideia que se encaixa tão bem em outras teorias da biologia que até ele aca- bou engolindo. E criou uma explicação da consciência baseada nos memes. Para ele, o nosso cérebro é um ema- ranhado quase infinito de memes que estão agora mesmo no seu inconscien- te. O que eles fazem é ficar brigando uns com os outros lá no escuro até que um ganha vantagens sobre os outro se consegue "ver a luz". Quer dizer: ele emerge na sua cabeça em forma de uma ideia consciente, pronta para sair da sua boca e se reproduzir em outras cabeças. O modelo de Dennett é bastante complexo, mas tem uma essência sim- ples. Para ele, o cérebro tem dificuldade em lidar com o turbilhão de ideias que moram lá. Então a consciência não seria exatamente um meme qualquer que pula para fora, mas uma "máquina vir- tual" criada para controlar o jorro de ideias. uma espécie de "filtro" dos me- mes que estão enterrados em sua cabe- ça. E o nome que você dá para essa má- quina, enfim, é "eu", amigo robô. A conclusão, mais uma vez pouco animadora, é que a sua consciência não passa de ilusão. O que você chama de "eu", na verdade, é uma estratégia dos milhões de memes para se regularem. Tudo certo então? Claro que não. Uma teoria da consciência, pelo menos tão instigante quanto essa, fala exatamen- te o contrário. Vamos lá. Você, em todo lugar Se você está preocupado com a possibi- lidade de ser apenas um robô sem con- trole sobre si mesmo, chame o neuro- cientista e filósofo David Chalmers, da Universidade Nacional da Austrália. Para ele, esse tipo de argumento é coisa de gente preguiçosa. "A maneira mais fácil de desenvolver uma teoria da consciência é negar que ela existe", afir- ma ele em seu livro The Conscious Mind ("A Mente Consciente", inédito em por- tuguês). Chalmers, você vê, acredita que a consciência não seja só uma ilusão e bate de frente com Dennett, seu mais ferrenho rival acadêmico. Pense bem, a consciência é um fe- nômeno bastante poderoso, mas que ninguém sabe muito bem onde está. Mesmo sendo o centro da existência de todo mundo, nenhum cientista conse- guiu matar a charada e dizer de onde ela surge, ou sequer afirmar com certeza quais seres têm ou não consciência. Um jeito científico de tentar detec- tá-la é colocar animais na frente de um espelho para ver se eles conseguem se reconhecer. Por esse critério, bebês humanos de um ano não têm consci- ência. Os animais que passaram no teste até hoje são outros hominídeos (chimpanzés, bonobos e orangotangos, mas não gorilas), elefantes, golfinhos nariz-de-garrafa, orcas e, por incrível que pareça, a pega-rabuda (esse é o nome), um tipo de gralha europeia. Ainda assim, muitos cientistas contes- tam os resultados. Mas por enquanto não dá para ir mais longe. Para Chalmers, ninguém conseguiu achar a resposta por um motivo bem simples: ela estava embaixo do nariz de todo mundo. A consciência para ele é uma propriedade das coisas. De qual- quer coisa: de um ganhador do Nobel a um caixote, tudo tem consciência. Se, a essa altura, você já está seguran- do o seu chapéu e achando isso tudo um absurdo, pense de novo na ide ia. Largue o seu chapéu e tente responder. por que essa benção, essa força tão poderosa, só apareceria no cérebro humano? Não pa- rece muita pretensão nossa? É por isso que, para Chalmers, ela pode, sim, estar em tudo: seja numa pedra, num pedaço de papel ou numa estrela. O motivo pelo qual você nunca percebeu essa habilida- de neles é que existem diferentes graus de consciência. Para ele, quanto mais complexa for a atividade de uma coisa, quanto maior for o número de diferentes "e>..'Periências" que ela vivenda- em ou- tras palavras, quanto mais complexo for o objeto - maior sua "quantidade" de consciência. Um cérebro experimenta bilhões de impulsos elétricos por segun- do. É a coisa mais frenética do Universo conhecido. Então ele tem um grau alto Máquinas podem ter consciência? Imagine se a gente pudes- se tirar um dos neurônios do cara da foto aí ao lado e substituí-lo por um chip com as mesmas funções. O cérebro dele ia continuar funcionando, certo? Agora, imagine que continuamos trocando células por chips equiva- lentes. O resultado seria uma máquina idêntica ao nosso cérebro, mas ... ela teria alguma consciência? E seria essa consciência a mesma do cérebro original? de consciência. Já uma pedra não passa por muitas emoções ao longo da vida. A única coisa que ela faz é esfarelar com o tempo, bem devagarinho. Então seu grau de consciência seria minúsculo. Uma estrela, digamos, é grande e agitada por dentro, mas não faz nada de comple- xo: é só uma bolona que gera energia fundindo hidrogênio, uma rotina bas- tante tediosa. Então seu grau de consci- ência não seria lá essas coisas. Por esse ponto de vista, a consciên- cia é nada mais que uma propriedade do mundo físico, como a massa e a ve- locidade. Do mesmo jeito que uma coi- sa pode ser mais rápida ou mais pesada, ela também pode ser mais consciente que outra. Mas a teoria não faz sentido para todo mundo. Na verdade, Daniel Den- nett, o arqui-inimigo de Chalmers, acha tudo isso tão absurdo que se preocupa basicamente em tirar sarro da teoria. Dennett propõe a seguinte cena: um bebê brincando com um filhote de ca- chorro. O que os dois têm em comum? São fofos. E muito. Assim como a cons- ciência, a fofura é uma força poderosa, que pode estar em qualquer lugar e que é bem difícil de conceitualizar (tente, por exemplo, explicar o que é fofura sem usar -+ NOVEMBRO 201S SU PER 21 Há como medir o consciência? Aparelhos de ressonância JW.77:1:tí:t: magnética, tomografia e encefalograma são instrumentos com os quais os cientistas estudam a mente. Só que nenhum deles possibilita leitura direta do conteúdo da consciência de uma pessoa. A única a que um cientista tem acesso é a dele mesmo. O problema é que a ciência precisa de evidências do mundo físico para comprovar teorias. Se pensar a consciência a partir da própria consciência contraria os valores científicos fundamentaise extrapola os limites da ciência, como é possível explicá-la cientificamente? os dedos. Difícil, não?) "Já que é assim, por que não considerar a fofura uma pro- priedade fundamental da matéria?", disse o filósofo, em um artigo de 2004. O problema é que não existem meios de provar nem a teoria de um, nem a do outro. A biologia fica de mãos atadas na hora de debater a consciência. Mas a física talvez não. Você, atômico A gente pensa num cérebro como se fos- se um grande computador. É até natural. Afinal, os dois têm memória, processam informações e travam de vez em quando. Além disso, a estrutura do cérebro, com bilhões de neurônios, axônios e sinapses, lembra o emaranhado de fios e micro- chips que temos nas nossas máquinas. E existe um sinal elétrico correndo lá den- tro, seja na máquina, seja na cabeça. Mas existe uma coisa que os cérebros manjam e que computador nenhum consegue fazer: abstrações. Uma partida de xadrez, por exemplo, tem um número absurdo de caminhos diferentes. O que um computador faz na hora de jogar? Tenta um número enorme de jogadas até achar uma que tenha boas chances de sucesso. Já você, antes de cada lance, 22 SUPER NOVEMBRO 2015 pensa só nas três ou quatro jogadas mais sensatas. Mesmo sem perceber, você de alguma forma conseguiu tirar um senti- do do jogo e agir de acordo com alguma lógica -algo que fios, chips e eletricidade não conseguem fazer sozinhos. Outro ponto em que somos bem diferentes das máquinas é que nós nunca pensamos em apenas uma in- formaçãp por vez. Você pode até estar aqui processando as informações des- se texto, mas ao mesmo tempo está ligando essas ideias ao cheiro que você está sentindo, às memórias do que você fez nos últimos tempos, à sensa- ção do lugar em que você está e aos barulhos que está ouvindo. Cada mo- mento que você vive é processado ao mesmo tempo por vários neurônios, em diferentes partes do cérebro. É como se o mesmo sinal passasse por vários processadores intimamente li- gados, como se todos fossem um só. E é claro que um computador não consegue fazer uma reprodução exata disso. Mas por que não? Para responder essa pergunta, o matemático Roger Pen- rose, da Universidade de Oxford, Ingla- terra, buscou inspiração em um mundo quase tão estranho quanto nosso cére- bro: o da física quântica, que descreve o comportamento das coisas ultramicros- cópicas. Lembre-se do que acabamos de dizer sobre o cérebro: é uma máquina que processa informações como se elas estivessem em vários lugares ao mesmo tempo e que, de alguma forma, consegue extrair uma força maior, um sentido de tudo isso. É algo que poderia ser compa- rado a um elétron, por exemplo. Ele nunca está em um lugar definido. É como se estivesse sempre indeciso sobre onde ficar e, enquanto não "resol- ve", se mantém em vários lugares ao mesmo tempo. E, de alguma forma, é dessas interações que saem as leis da fí- sica com as quais lidamos no dia a dia. As estranhezas da física quântica não param por aí. As partículas podem se comportar como pequenos bonecos de vodu. Exatamente: se você "espetar" uma aqui, outra "sente a dor" em outro lugar, não importa a distância que se- pare as duas. Bizarro, não? O mesmo aconteceria no cérebro. Dentro da sua cabeça, tudo o que você sente e pensa está espalhado em áreas distantes. O que você vê agora é proces- sado perto da sua nuca, e as coisas de que você lembra ficam no meio do cérebro. Para Penrose, então, os sinais que os neurônios transmitem poderiam ficar em vários lugares ao mesmo tempo, que nem os elétrons dos experimentos quân- ticos, por uma fração de segundo. A jun- ção dessas pequenas flutuações resulta- ria no jeito como você e eu sentimos a cor azul e a sensação de segurar esse pa- pel simultaneamente. Em suma, ela for- maria a sensação do "eu". O problema é que nenhum desses argumentos fez a ideia de Sir Penrose ganhar crédito. Uns contestam a mate- mática da teoria. Outros falam que os fenômenos quânticos não poderiam existir dentro de um cérebro, um am- biente grande e quente que não dá con- dições para que os átomos se compor- tem de um jeito tão estranho. Tem ainda quem diga que Penrose só subs- tituiu um mistério por outro e não tem nada que tentar explicar o inexplicável. "Mas estou aberto para qualquer um que venha e me mostre que eu estou errado. E ainda estou esperando!", desa- fiou a matemático. Vai encarar? Com certeza, muita gente vai. Penro- se continuou trabalhando em sua teoria e, em 2013, ele e o anestesiologista Stuart Hameroff afirmaram com todas as letras que o cérebro é um "computador quân- tico". Uma máquina que mal existe ain- da. Mas essa é uma daquelas questões centrais a qualquer área da ciência - e que nunca vai morrer. Enquanto existir essa voz aí na sua cabeça que você se acostumou a chamar de "eu", existirá quem tente descobrir de onde ela vem, do que ela é feita. Quem sabe o "eu" de algum deles ainda desvende o seu? O PA~A SA3fH MAIS MENTE, CÉREBRO E COGNIÇÃO, João de Fernandes Teixeira, Vozes. O MISTÉRIO DA CONSCitNCIA. Antônio Damás io, Cia das Letras. CONTENT ANO CONSCIOUSNESS, Daniel Dennett, Rout ledge Classics. • Colaboraram Bianca Carneiro c Cris tina Kist. VOCÊ NÃO TOMA AS PRÓPRIAS DECISÕES - E BOA PARTE DO QUE VÊ NÃO É REAL. É APENAS UMA ILUSÃO CRIADA PELO SEU CÉREBRO, QUE PASSA PELO MENOS 4 HORAS POR DIA ENGANANDO VOCÊ. CONHEÇA OS TRUQUES QUE ELE APLICA - E SAIBA O QUE REALMENTE ACONTECE DENTRO DA MENTE . Texto Alexandre de Santi" Design Rafael Quick VOCÊ FICA CEGO 4 horas por d ia. Já foi enganado por um rótulo nesta semana. Tem preconceitos sobre todos os assuntos (por mais que ache que não). Toma decisões irracionais, que vão contra os seus interesses. Você não está no controle da própria mente. Mas não se preocupe: você é normal. Não é maluco e possui um cérebro perfeito, como o de qualquer outra pessoa. Só que ele inventa coisas para iludir você. Não é por mal. E só uma maneira de economizar energia. O cérebro humano é o objeto mais complexo do Universo. Tem 86 bilhões de neurônios, que podem formar 100 trilhões de conexões. Se fosse possível criar um computador com o mesmo número de circuitos do cérebro, ele consumiria uma quantidade absurda de eletricidade: 6o milhões de watts por hora, segundo uma estimativa de cientistas da Universidade Stanford. É o equivalente a quatro usinas de Itaipu trabalhando simultaneamente. Mas o cérebro humano gasta pou- quíssima energia - 20 watts, menos que uma lâmpada. E mesmo assim consegue fazer coisas extremamente sofisticadas, de que nenhum computador é capaz. Só que isso tem um preço. O seu cérebro não con- segue anal isar as situações de forma completamente racional, avaliando todas as variáveis envolvidas em cada caso. Para fazer isso, ele precisaria de ainda mais circuitos - e muito mais energia. Mas, ao longo da evolução, a natureza encontrou uma solução: o cérebro pode mentir para seu dono. Sim, mentir. Descartar informações, manipular raciocínios e até inventar coisas que não existem. Dessa forma, é possível s im- plificar a realidade- e reduzir drasticamente o nível de processamento exigido dos neurônios. "São efeitos colaterais do funcionamento normal do cérebro", diz Suzana Herculano-Houzel, neurocientista da Univer- sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). --+ NOVEMBRO 2015 SUPER 25 Tudo começa pela visão. Você não percebe, mas o cérebro edita o que você vê. Das 16 horas por dia que uma pessoa passa acorda- da, em média, 4 horas são preenchidas por imagens "artificiais"- que não foram captadas pelos olhos, e sim criadas pelo cérebro. O olho humano só cap- ta imagens com clareza em uma pequena parte, a fóvea, que tem l. milimetrode di- âmetro e fica no centro da retina. Então, para compor a linda imagem que você está vendo agora, os seus olhos estão constantemen- VOCÊ NÃO ENXERGA O QUE ESTÁ ACONTECENDO AGORA, MAS VÊ O FUTURO. QUE SEU CÉREBRO INVENTA. te em movimento. Eles focam determinado ponto e depois pulam para o ponto seguinte. Cada um desses saltos tem duração de 0,2 segundo. Quer comprovar isso na prática? Na próxima vez em que você estiver conversando com uma pessoa, preste atenção nos olhos dela. Você irá perceber que eles se movimentam o tempo todo para escanear vários pontos do seu rosto. O problema é que a cada pulo desses, enquanto os olhos estão se movendo para a próxima posição, o cérebro deixa de receber informação visual por 0,1 segundo. Durante esse tempo, você está cego. E, como nossos olhos fazem pelo menos 150 mil pulos todos os dias, o resultado são 4 horas diárias de cegueira involuntária. Você não percebe isso porque o cérebro preenche esses momentos com imagens artificiais, que dão a sensação de movimento contínuo. Mas que, na prática, você não viu. Tem mais: o que você enxerga não é o que está acontecendo - e sim o que vai acontecer no futuro. É sério. Isso acontece porque a informação captada pelos olhos não é processada imediatamente. Ela tem de passar pelo nervo óptico e só depois chega ao cérebro. O processo leva frações de segundo, e você não pode esperar- um atraso na visão pode fazer com que você seja atropelado ao atravessar a rua, por exemplo. Então, o que faz o cérebro? Inventa. Analisa os movimentos de todas as coisas e fabrica uma imagem que não é real, contendo a posição em que cada coisa deverá estar 0,2 segundo no futuro. Você não vê o que está acontecendo agora, e sim uma estimativa do que irá acontecer daqui a 0,2 segundo. As mentiras invadem a razão Com R$ 2,2o, você pode comprar um café e uma bala. O café custa R$ 2 a mais do que a bala. Quanto 26 S UPER NOVEMBRO 2015 custa a bala? Responda rápido. Vinte centavos, certo? Errado. Você acaba de ser enganado pelo próprio cérebro. Mas não está sozinho - m ais da metade dos estudantes de universidades prestigia- das como Harvard, MIT e Princeton responderam a essa mesma pergunta e também erraram (entre alunos de instituições menos badaladas, o índice de erro é ainda maior, cerca de 8o%). Essa chara- da é um dos exemplos citados no livro Thinking, Fast and Slow (Pensando, Rápido e Devagar, ainda sem versão em português), do psicólogo israelense Daniel Kahneman, que ganhou o Prêmio Nobel de Economia de 2002 por suas pesquisas sobre o comportamento humano. Para Kahneman, o cérebro tem dois tipos de pen- samento. O primeiro é rápido e intuitivo e confia na experiência, na memória e nos sentimentos para tomar decisões. O segundo é lento e analítico - e serve como uma espécie de guardião do primeiro. Se estamos decidindo sobre o que comer, podemos ficar em dúvida entre um sanduíche e um prato de feijão. Mas por que essas duas opções, justo elas, surgiram como as alternativas válidas para o mo- mento? Por que você não considerou um bacalhau com batatas? Por que não um sorvete de abacaxi? Porque o seu pensamento intuitivo já estava inclinado para optar pelo sanduba ou pelo feijão e restringiu previamente as escolhas, antes mesmo que você se desse conta de que estava chegando a hora de almoçar. Do contrário, passaríamos horas avaliando todas as possíveis opções de refeição - e morreríamos de fome. Se o pensamento intuitivo não existisse, seria extre- mamente difícil escolher uma roupa ou responder a perguntas banais, do tipo "como você está?" ou "gostou do filme?". De certa forma, o pensamento intuitivo é o que nos diferencia dos robôs. E é ele que permite ao cérebro processar informações na velocidade ne- cessária. "Ele é mais influente. É o autor secreto de muitas decisões e julgamentos que você faz", explica Kahneman no livro. Foi o pensamento intuitivo que apontou os R$ 0,20 como resposta para o enigma do café. Só que ele mentiu para você. A resposta certa é R$ 0,10. Se a bala custasse R$ 0,20, o café custaria R$ 2,20 - e o total daria R$ 2,40. Esse duelo entre os dois tipos de pensamento, o rápido-intuitivo e o lento-analítico, também tem uma explicação evolutiva. O córtex pré-frontal, região do cérebro responsável pelo processamento lógico, surgiu relativamente tarde na evolução da espécie humana -já as emoções e os instintos estavam com nossos ancestrais há muito mais tempo. Por isso elas são tão fortes e nos influenciam tanto. "A filosofia considera o ser humano um animal racional. Mas o que sabemos é que apenas em certas circunstâncias e __. à custa de muito esforço conseguimos ser racionais", afirma Vitor Haase, médico e professor de psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O pensamento intuitivo está sempre presente, até nas situações em que a racionalidade é suprema- menteimportante. Um estudo de pesquisadores das universidades de Ben Gurion, em Israel, e Columbia, nos EUA, analisou o comportamento de juízes que deveriam decidir sobre a liberdade condicional de presos (um processo rápido, que leva 6 minutos). Em média, somente 35% dos condenados ganhavam a condicional. Mas os cientistas perceberam que os juízes eram muito mais benevolentes depois de comer. Quando eles tinham acabado de fazer uma refeição, a taxa de aprovação subia para 65%. Com o passar do tempo, a fome vinha chegando, e a concessão de liberdade condicional ia cain- do. Minutos antes do próximo lanche, o índice de aprovação era quase zero. Decidir sobre liberdade condicional e julgar a própria felicidade são tarefas complexas. Para avaliar todas as variáveis envolvidas, muitas delas subjetivas, o cérebro tenderia a ficar sobrecarregado. Por isso, ele usa atalhos. "Os nossos problemas são resolvidos no piloto automático, por meio de soluções que a cultura já embutiu no nosso cérebro", diz Haase. Estudos têm revelado outra distorção: toda pes- soa sempre tende ao otimismo, mesmo quando não há motivos para isso. A pesquisadora Tali Sharot, da University College London, gravou a atividade cerebral de voluntários enquanto eles imaginavam situações banais - como tirar uma carteira de iden- tidade. Ela também pediu que os voluntários pen- sassem em coisas do passado. Os testes mostraram que as mesmas estruturas cerebrais são ativadas para recordar o passado e imaginar o futuro. Só que, ao imaginar o futuro, os voluntários criavam cenários magníficos - era o cérebro tentando colorir os eventos sem graça. "Cerca de 8o% das pessoas têm tendência ao otimismo, algumas mais do que outras", diz ela. Para Tal i, autora do livro Oplimism Bias (O Viés do Otimismo, ainda sem versão em português), o otimis- mo é sempre mais comum que o pessimismo - seja qual for a faixa etária ou o grupo socioeconômico da pessoa. Assim, nunca acreditamos que algo vá dar errado - mesmo quando o mais racional seria pensar que sim. "As taxas de divórcio, por exemplo, chegam a 40%, so%. Mas as pessoas que estão para casar sempre estimam suas chances de separação em o%", exemplifica Tali. Segundo ela, a inclinação natural ao otimismo também é um dos fatores que levaram à crise econômica global de 2008. "As pessoas achavam que o mercado continuaria subindo cada vez mais e ignoraram as evidências contrárias", afirma. Ele está no controle As manipulações criadas pelo cérebro afetam até a capacidade mais essencial do ser humano: tomar as próprias decisões. Quando você decide alguma coisa, na verdade o cérebro já decidiu -com uma antece- dência que pode chegar a 10 segundos. Uma experiência feita no Centro Bernstein de Neurociência Computa- cional, em Berlim, compro- vou que as nossas escolhas são resolvidas pelocérebro antes mesmo de chegarem à consciência. Voluntários foram colocados em frente a O SEU CÉREBRO DECIDE AS COISAS SOZINHO. DEZ SEGUNDOS ANTES QUE VOCÊ SEQUER PENSE. uma tela na qual era exibida uma sequência aleatória de letras. O voluntário tinha que escolher uma das letras e apertar um botão sempre que ela apareces- se. Os cientistas monitoraram o cérebro dos parti- cipantes durante o experimento. E chegaram a uma descoberta impressionante: 10 segundos antes de os voluntários escolherem uma letra, sinais elétricos correspondentes a essa decisão já apareciam nos córtices frontopolar e mediai, as regiões do cérebro ligadas à tomada de decisões. Cinco segundos antes de o voluntário apertar o botão, o cérebro ativava os córtices motores, que controlam os movimentos do corpo. Isso significa que, 10 segundos antes de você fazer conscientemente uma escolha, o seu cérebro já tomou a decisão para você - e até já começou a mexer a sua mão. "O indivíduo não é livre para escolher", afirma Re- nato Zamora Flores, professor de genética do com- portamento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O cérebro restringe previamente as suas possíveis opções e, pior ainda, escolhe uma delas antes mesmo que você se dê conta. É possível lutar contra isso. Lembra-se daquele outro tipo de pensamento, o lento-analitico? Basta colocá-lo em ação. E isso você consegue tendo calma, refletindo sobre as coisas e duvidando das suas escolhas e opi- niões. Os truques do cérebro são poderosos, mas não invencíveis. Agora que você sabe como funcionam, está muito mais preparado para lidar com eles- e se tornar realmente livre para tomar as próprias decisões. e PARA SABfH MAIS COMO A MENTE FUNCIONA, Steven Pinker, Companhia das Letras. RÁPIDO E DEVAGAR, Daniel Kahneman, Objetiva. NOVEMBRO 2015 SU PER 29 ATE NÇÃO M I N H A V I O A Esta reportagem demorou dois anos para ser escrita. E a culpa não é (só) da minha desorganização. Eu tenho Transtorno de Déficit de Atenção. Aqui você vai entender como meu cérebro funciona. Texto Rodrigo Rezende Fotos Somuel Esteves 3 0 SUPER NOVEM BRO 2015 BUZINA DE CARRo, latido de cachorro, choro de bebê, "Que horas são?", "Rola algo no Facebook?", "Que pro- grama de TV é esse?", "O que tem para comer?", "Por que alguém vai ler esta matéria mesmo?". Apenas 5 minutos sentado em frente ao computador e tudo isso já pas- sou pela minha cabeça. Tudo ao meu redor fala mais alto do que escrever este texto. Fecho a janela, checo o relógio, surfo na net, desligo a TV; como chocolate. Só então consigo voltar para explicar o que você ganha ao continuar lendo esta matéria: uma visão sobre como funciona uma mente inquieta. Nas próximas páginas, você vai enxergar o mundo pelos meus olhos. Bem- -vindo ao cérebro TDAH. A redação da SUPER não é exatamente o melhor lugar para manter a atenção. Pilhas de livros, revistas importadas nas paredes, gente falando ao telefone. Enquanto rabisco no bloquinho, o diretor de redação me explica a pauta: "Quero que você escreva sobre TDAH. Mas em primeira pessoa. Sua experiência pode ser interessante para o leitor". Topo imediatamente. Marcamos o prazo de um mês para entregar o texto que você lê agora. Prazo real de entrega: dois anos. Se você tem TDAH, não é difícil se identificar com a história acima. Ela ex- põe um dos traços mais característicos do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: dificuldade em gerenciar o tempo. O paciente TDAH também se reconhece facilmente na brincadeira de Douglas Adams, autor do Guia do Mo- chileiro das Galáxias: "Amo prazos de en- trega. Adoro o som que fazem quando passam voando pela minha janela". Somos tachados de avoados ou incapazes. Mas julgamentos como esses não explicam as nuances do TDAH. Eu perco as contas de quantas vezes chego atrasado a compro- missos e esqueço datas de aniversário. Ao mesmo tempo, tenho a capacidade de ler textos que me inte ressam por horas a fio nos ambientes mais caóticos possíveis. É bem provável que você conheça mais pessoas com esse perfil. Estima-se que um em cada 20 adultos apresente sintomas -t O cérebro de alguém com TDAH não consegue · los· filtrar os est•mu . recebe tudo ao mesmo tempo. BRO 2015 SUPER J1 NOVEM suficientes para ser diagnosticado com TDAH. Um estudo de 2012 estimou que o impacto da doença na produtividade dos EUA era de até US$ 138 bilhões por ano, com mais 56 bilhões no tratamento. Somando também os custos em crianças, a cifra chega a astronômicos U$ 266 bihões. Isso supera a depressão, cujo prejuízo foi medido em U$ 210 bilhões este ano. Por isso, entender o TDAH é uma tarefa cada vez mais importante. E é isso que eu fiz, procurando alguém que conhece o assun- to bem de dentro. Mais exatamente, de dentro de seu próprio cérebro. Uma pilha de exames com cérebros coloridos. É o que mais chama atenção na mesa da psiquiatra e autora de livros Ana Beatriz Barbosa. Mas não consigo tirar os olhos de um outro objeto: um bloco de anotações. Dentro dele, vejo a prova física do que já sabia antes: não sou o único com problemas de atenção na sala. Os rabiscos caóticos só podem ter vindo de um lugar: outro cérebro TDAH. Enquanto enche de riscos o seu blo- quinho, Ana Beatriz explica o que há de errado em nossas cabeças: "O defeito es- tá numa parte do cérebro chamada lobo frontal, que fica próxima à testa". O lobo frontal é uma espécie de gerente execu- tivo do cérebro. A função dele é coletar informações e enviar ordens em forma de impulsos elétricos para as outras partes do órgão. Mas, como todo bom gerente, exige um pagamento adequado para trabalhar. No caso, o pagamento é em dopamina, uma substância que regula a interação entre neurônios. Sem ela, os neurônios do lobo frontal não conseguem conversar direito. Quando isso acontece, o cérebro começa a funcionar como uma empresa sem CEO: ganha o setor que grita mais alto. Com medo da falência, a empresa cerebral ainda pode tentar criar uma espé- cie de caixa dois de dopamina. Aí começa uma busca desesperada por tudo que pro- move a produção do neurotransmissor. açúcar, sexo, nicotina, jogo, álcool, drogas ilegais. Entre 17% e 45% dos adultos com IDAH apresentam problemas com álcool. O risco de se viciar em drogas é o dobro. Mas como diagnosticar alguém assim? "Primeiro, é preciso sorte", diz a psiquiatra. "Pessoas com TDAH muitas vezes não 32 SUPER NOVEMBRO 2015 OS PREJUÍZOS DO TDAH SÃO ENORMES: ATÉ US$ 266 Bl AO ANO NOS ESTADOS UNIDOS. BEM MAIS DO QUE A DEPRESSÃO. têm ideia de que sofrem de uma doença". Sorte foi exatamente o que levou Ana Be- atriz a ser diagnosticada. Atrasada para um curso na Universidade Berkeley (EUA) -"Começava às 8h. Cheguei 9h15"-, foi obrigada a assistir à única palestra dispo- nível no horário. O palestrante era Russell Barldey, um dos pioneiros no estudo do TDAH. Ao ouvir os sintomas da doen- ça, Ana Beatriz não teve dúvidas: "Sou eu!". Logo que a palestra acabou, foi atrás de Barldey e pediu para fazer um teste psicológico. Ele voltou com o resultado positivo. Assim que começou a se tratar, Ana Beatriz, que cursou ao mesmo tempo Medicina, Física e Odontologia, conse- guiu pisar no freio da mente e seguir uma estrada só: especializou-se em TDAH e hoje é autora de best-sellers sobre o tema. Homo desatentus Savana africana, 30 mil a.C. Em um pe- queno grupo de Homo sapiens, alguém se esforça para entender a conversa. Não é tarefa fácil. Folhas balançando ao vento, pilhas de ossos ao lado, trilhas de ani- mais no chão. Tudo capta seu olhar. Mas o IDAH pode ter sido uma vantagem para nossos ancestrais. Na luta pela sobrevi- vência entre caçadores-coletores,levava vantagem quem possuía uma misteriosa habilidade presente no cérebro TDAH: o hiperfoco. Hiperfoco é uma capacidade de superconcentração característica de muitas mentes desatentas. Você já deve ter topado com gente assim: o menino que não para quieto, mas joga dez horas de videogame, ou a pessoa que não vai à aula, mas passa a tarde tocando violão. Seriam todos descendentes diretos doca- çador distraído, mas supereficaz. Para ele, um animal na savana é como um videoga- me ou um violão: algo que monopoliza o cérebro. Essa capacidade de ver uma presa e apagar o resto do mundo conferiu vanta- gens evolutivas. E possibilitou que os ge- nes do caçador TDAH chegassem até nós. "Estima-se que 8o% dos casos de TDAH têm origens genéticas", diz o psiquiatra da New York University Lenard Adler. Mas voltemos ao presente. Faz quatro horas que escrevo sem parar. Não batu- co na mesa, como de costume. Nenhuma janela aberta no navegador. Quem me conhece pode achar que estou possuído. E estou: por uma pílula. O mecanismo exato de funcionamento dos medicamen- tos para TDAH é desconhecido. Mas os efeitos mentais são bem familiares. Em alguns minutos, o cérebro, que funcionava como um rádio fora de estação, entra em sintonia. E o impossível se toma possível: executar uma só tarefa por vez. Ritalin, Aderall, Concerta, Venvanse. Esses formam a primeira linha de com- bate na guerra contra os problemas de atenção (e têm sido abusados por gente sem o transtorno, como "anabolizante" do cérebro). Mas essas armas não são exata- mente precisas. É possível, por exemplo, ingerir um medicamento com um alvo em mente e acertar outro: engolir uma pílula com a intenção de escrever um texto e terminar arrumando a gaveta de meias. Muito menos existe uma espécie de bomba atômica contra o TDAH: um medicamento que funcione com 100% dos pacientes. Para tratar o TDAH, ainda é ne- cessário alguém que entenda de estratégia de guerra: um psiquiatra capaz de testar os medicamentos adequados a cada caso. Mas agora a pergunta que realmente interessa: como saber se você tem TDAH? Se você chegou sem interrupções até aqui, a resposta mais provável é não. (Mas pode ser que sim. E você está em hiperfoco agora). A verdade é que só um profissional vai saber responder. Mas, se a resposta for sim, não se desespere. Afinal, um simples TDAH não impediu você de ler este tex= to até o final, não é mesmo? E nem me impedirá de escrever muitos outros. O PARA SABfR MAIS MENTES INQUIETAS Ana Beatriz Barbosa, Principium. ~ a: "' ... :I 111 "' ;; N o "' co ~ w > o z 36 SU PER NOVEMBRO 2015 MARIANA ALMEIDA É APENAS UM ANO mais nova que o irmão, Pedro. Na escola, ela não era brilhante, mas estudava um pouquinho todos os dias e conseguia manter as notas altas, enquanto ele ra- ramente era aprovado em alguma ma- téria sem fazer recuperação. Na família de gordinhos, Mariana lutava contra a balança, enquanto Pedro gastava a me- sada em biscoitos recheados. Quando ela arrumou o primeiro emprego, como secretária numa multi nacional, indicou Pedro para um cargo de office-boy. Mas o trabalho era puxado, o chefe era nervo- so, e ele não demorou a pedir demissão. Nos últimos dez anos, Pedro trabalhou numa padaria, foi garçom de um bar, alu- gou um carrinho de cachorro-quente, e agora está desempregado, mas pensando em comprar um táxi. Mariana continua na mesma empresa, onde foi promovida a secretária executiva, e vive empres- tando dinheiro para o irmão. Quando se encontram na casa da mãe aos domingos, ela fica na saladinha, enquanto ele se farta na macarronada, mas garante que naquela semana mesmo vai começar a jogar futebol com os amigos. Esta história talvez soe familiar para você: dois irmãos ou amigos que tiveram oportunidades muito parecidas na vida, mas seguiram caminhos completamente diferentes. O manual de uma vida bem- -sucedida não é segredo para ninguém - devemos comer verduras, praticar es- portes, man ter a calma no trabalh o, eco- nomizar dinheiro. Se algum dia você já fez uma lista de resoluções de ano-novo, é possível que alguns desses itens esti- vessem presentes nela. Mas é provável que muitos deles nunca tenham virado parte da sua rotina. Andar na linha não é tão simples quanto pode parecer à pri- meira vista: por trás das tentações há um intricado sistema cerebral que tenta Sentir prazer é tão viciante para o cérebro quanto usar drogas. Por isso é tão perigoso. o tempo inteiro nos levar para o mau caminho. Se vamos ceder às vontades ou não, depende do nosso autocontrole, um dos fatores mais decisivos para o desempenho da nossa vida. Por que falar "não"? A clássica imagem dos desenhos a ni- mados em que o personagem tem um anjo num ombro e um diabo no outro não é exagero. De acordo com as úl- timas pesquisas, é assim mesmo que nos comportamos diante das tentações. É realmente uma batalha o que acon- tece entre a vontade de sentir prazer imediato contra o esforço de adiá-lo. Algumas pessoas são naturalmente mais descontroladas do que outras, mas, de maneira geral, todos temos coisas que conseguimos manter nos trilhos e outras que descarrilam de vez em quando. Tem quem seja impecável no trabalho, por exemplo, mas não consiga levar uma dieta a sério. Ou quem pratique espor- tes regularmente, mas não aguente ser contrariado sem partir para a briga. Mas qual é o problema de ceder às tentações? Bem, a existência do futuro. Se você soubesse que vai morrer ama- nhã, não teria por que guardar dinheiro ou passar o sábado à noite estudando. Nem ficar comendo salada para não en- tupir as veias de colesterol aos 50 anos. Essas preocupações só fazem sentido porque imaginamos que vamos viver muitos anos ainda. "Seguir nossos im- pulsos seria adaptável biologicamente se nós fôssemos projetados para viver apenas por hoje. E sem preocupação com o bem-estar dos ou tros", defini- ram os psicólogos alemães Wilhelm Hofmann, Malte Friese e Fritz Strack no artigo Impulso e Autocontrole a Partir de uma Perspectiva Dual de Sistemas, de 2009. O homem não é o único animal que precisa lidar com a tentação do prazer imediato contra os pla- nos de futuro. (O joão-de-barro passa dias montando uma casi- nha no capricho, por exemplo, e as abelhas constroem colmeias complicadíssimas para armazenar alimento.) Mas nós somos os úni- cos com interesses e necessidades --+ muito mais complexos do que simples- mente comer e procriar. Queremos, por exemplo, ter uma vida em sociedade. Manter relações amigáveis seria pra- ticamente impossível se todo mundo resolvesse levar o hedonismo às últi- mas consequências. Fazer tudo o que dá na telha afasta as pessoas próximas. Por isso cada grupo na história da humanidade criou suas próprias leis e códigos morais parare- gular sexo, drogas, comida e jogos. Na Grécia Antiga, alguns prazeres eram socialmente aceitos e cultuados na figura do deus Dionís io, aquele das orgias e bebedeiras. Na Idade Média, por outro lado, quase todas as formas de prazer eram proibidas: as tentações deveriam ser pun idas com penitências, e todos viviam sob a ameaça da Inqui- sição (Está Já no fim do pai-nosso: "Não nos deixei cair em tentação, amém"). Mas o cerceamento do prazer está pre- sente em todas as sociedades humanas, de maneira mais ou menos radical. (No nosso mundo, essas regras se aplicam na hora de pegar a última empadinha do prato, por exemplo -todo mundo se controla para não fazer a desfeita com os outros.) Esse cuidado para regular as tentações faz sentido: poucas coisas são biologicamente tão poderosas quanto a sensação de prazer. Já é tentação Nos anos 1950, os psicólogos Peter Mi lner e Ja mes Olds, da Universi- dade McGill, no
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