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DA SUA
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DEIXE O EDITAL SENAI SESI DE
INOVAÇÃO SER O SEGUNDO.
• PRIMEIRA PAGINA -.DA MESA DO EDITOR
Apicanha
e o Universo
A FERRAMENTA mais potente
do mundo é essa massa
gosmenta que fica entre
as suas orelhas. Ela pesa
o mesmo que uma picanha
bovina, pode ser erguida com
uma só mão, e ainda assim
cabe um universo inteiro
dentro dela. São 86 bilhões
de neurônios, conectados entre
si por 100 trilhões de sinapses,
o que resulta num número
infinito de caminhos diferen-
tes para um impulso nervoso
percorrer. Dessa infinitude
emerge toda a espetacular
diversidade humana.
As pinturas rupestres de
Lascaux,ostextos sagrados
das religiões antigas, os
afrescos da Capela Sistina,
as leis de Newton, as sinfonias
de Beethoven, as canções dos
Beatles, os toques de bola de
Pelé, o design do iPhone, o
roteiro de Breaking Bad - cada
Foto Ou lia
uma dessas maravilhas surgiu
na escuridão de algum cérebro
humano. Inteligência, memó-
ria, percepção, humor, amor,
consciência, emoção, intuição.
Cada uma das mais profundas
capacidades que nos definem
se origina ali.
Ao longo da história,
o cérebro humano desvendou
os mais íntimos segredos da
matéria, a lógica da vida, os
confins do Universo, a bilhões
de anos-luz daqui. É impres-
sionante que um órgão de pou-
co mais de 1 quilo na cabeça
de um primata sem pelos de
um planeta da periferia de uma
galáxia qualquer tenha
compreendido tanto. Mas é
impressionante também que
falte tanto para o cérebro
humano compreender do
próprio cérebro humano.
Nossa complexa máquina
de entender coisas é complexa
demais até para
ela própria.
Aqui na SUPER,
nosso trabalho
é alimentar o seu
cérebro. Natural que,
ao longo dos anos,
tenhamos produzido
dezenas de grandes
reportagens sobre
o próprio cérebro
e suas capacidades.
As mais marcantes
entre elas estão nesta
edição. Espero que
o seu cérebro goste.
Denis Russo Burgierman
DIRETOR DE RE DAÇÃO
DENIS. BURGIERMAN@ABRIL.COM. BR
EDITORA~ Abril
Fundada t m 1950
VICTOR CIVITA ROBER'TO Cl\lTA
11901·19901 (19;6.2013)
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0;1$). Mm» Tullo ArJ.bt tEszudío dt C~~ Ml t)' \ms (\ft1it.H Corpo:l:r\""11). RoCt110
0...4J> !Nus.""'~ " ".boa l"""' i\"Cid» ~~ MAJU(ffiliG - Aodr<• Abc:lon
(\ 'fi). Alld:a Cosa (~r~ dt \!nado~ Ciw Al:Ddd.l!Ea'Df1,. Cuol1na Bt:r1t!lt (fftn·
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~ e CormpondMcil: A\. d.u t\"I(Ots Cnida.s. m 1. 2tr ar.d.u, Plnhnto\, Slo
P>ulo. SP. CEP05•25·90l. ld. (li) J03i·2000. PI.COdcladr SOo....., • ..,.,_ uobrt
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SUPERIU TERESSAIRE cdfçto n•lH (ISS!\ 01~· 17S9). ~o 29. n• 11. ê uma publicaçlo
da Editora Abril1937 G+l Eip.ma S.A ~.\IU)' Inlctt:S3ntt~ r.\ tuilo lntMSSanle1. Espa·
nha. Edi(6H antetiocn: Vmda etdu$1\'1.1. m bancu. pelo pctÇO da ühlma Ntç:\o tm bane~
Soli<il<ao"" """lriro. Dl>inbuld.J"" IOdo o p.úsprb DinopS.A. O.>lnbuldor:ll'odorul d<
PllbUCI(Ilts. 5.lo 1\lulo. SUPERINT!JIESSAIITE não odml~ publiddadr otdaâon:!l
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Dtmais kK,t,licbdts: OID0-77S·Z11Z-.• Ílw(.com
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...
CARDÁPIO I -+NO VEM BR O DE 2015
PERGUNTAS E RESPOSTAS
6 7 8
U M LA DO C UIDA DA
RAZÃO , E OUTRO,
DA EMOÇÃO ?
SÓ USAMOS 10% O CÉREBRO COMEÇA
A MORRER DEPOI S
DOS 17 AN O S?
ÚLTIMA PÁGINA
66 NA CABEÇA DOS BICHOS
O ser humano está longe de
ter o maior cérebro.
o
N ÚMERO
INCRÍVEL
1_00
trilhões
Número de
conexões
entre os
neurônios no
cérebro.
P. 51
10 Inteligência
O que é? Existe mais de um tipo? Será que os
testes de Ql dizem mesmo quem tem mais?
16 Eu: quem é esse cara?
Cientistas e fi lósofos afirmam: não existe
consciência. Ou ela está em todo lugar.
24 As mentiras que o seu
cérebro conta para você
O que nós vemos não é real. E o que
pensamos já foi decidido antes.
30 Minha vida sem foco
Um relato pessoal do transtorno de
déficit de atenção e hiperatividade.
44 A pílula da inteligência
Repórter da SUPER tomou o modafinil
por uma semana e conta como foi.
46 A cura pela palavra
Veja quais são os tipos de psicoterapia
e o que a ciência tem a dizer sobre eles.
56 Os maiores
cérebros do mundo
Os savants juntam problemas mentais
sérios com superpoderes cerebrais.
62 Papo cabeça
Será que a neurociência explica tudo?
Alguns pesquisadores dizem que não.
Capa Carlo Glovani
,
E VERDADE
QUE UM LADO
,
DO CEREBRO
CUIDA DA
.._,
RAZAO, E QUTRO,
DA EMOCAO?
M A IS OU M E NOS. M A I S P ARA M E NOS . Tradicio-
nalmente, o lado esquerdo era relacionado a funções
precisas; o direito, à criatividade. Mas, na prática, a
coisa não é bem assim.
Considere, por exemplo, o caso de dois rapazes acom-
panhados pela neurocientista Mary Helen Immordi-
no-Yang, da Universidade do Sul da Califórnia. Eles
perderam metade de seus respectivos cérebros: um teve o
hemisfério direito cirurgicamente retirado para controlar
a epilepsia e o outro tirou o esquerdo, como prevenção a
uma doença autoimune. Eles continuaram sendo capazes
de andar, falar, raciocinar e interagir socialmente - o que
seria impossível se houvesse uma divisão absoluta de
tarefas entre os hemisférios cerebrais.
"O que nós estamos vendo é que a atividade dos
neurônios é sempre probabilística", diz Miguel Nico-
lelis, neurocientista brasileiro da Universidade Duke
(EUA) - e criador do exoesqueleto da Copa. "Não são
sempre os mesmos neurônios que produzem a mesma
ação." Ele acredita que a divisão tradicional deve cair, se
mais pesquisas confirmarem a versatilidade do cérebro.
6 SUPER NOVEM BRO 2015
0
MITOS
O cérebro é um órgão
ainda misterioso,
sobre o qual circulam
concepções erradas e
até lendas urbanas.
Veja a seguir o que é
mito ou realidade.
o
Ilustrações Guilherm e Oareuo
P&R
Nós só usamos 10% do cérebro?
OLHA, VOCÊ PODE TER MUITOS DEFEITOS, mas está
livre dessa culpa: os tais 10% são pura lenda. "Sabemos
que grande parte do cérebro é utilizada. Isso explica por
que até microlesões cerebrais podem causar danos graves
e irreversíveis", diz o neurocientista e pesquisador do Hos-
pital Sírio-Libanês, Erich Fonoff. Quantos por cento então?
"Atribuir um percentual é leviano. Para isso, teríamos que
saber o que são os 100%. Ainda não chegamos a esse nível".
Especialistas dizem que o "mito dos 10%" surgiu entre
os defensores da para normalidade. Para eles, utilizar 100%
é exclusividade de quem levita, lê mentes e entorta garfos
a distância, enquanto atividades do dia a dia limitam o
resto de nós a apenas um décimo da "força do pensamen-
to". Bom, não apenas o suposto cálculo foi puro chute,
como a ciência nunca provou a existência de telepatia,
telecinese e fenômenos afins.
Mas e aqueles exercícios de aumentar a potência do
cérebro? São mentira também? Nem todos. "O sistema ner-
voso é plástico. Se for estimulado, aumenta o seu potencial
colossalmente", diz o chefe do laboratório de Neurociências
do Instituto de Biociências da USP, Gilberto Xavier.
O CÉREBRO É CINZA?
QUANDO SE FALA EM CÉREBRO, todo mundo logo
pensa em "massa cinzenta". Tudo bem. pode conti-
nuar se referindo ao cérebro assim. Afinal, o termo já
entrou para o vocabulário popular. Além do mais, ele
não está inteiramente incorreto. Existe uma parte do
cérebro que até os neurologistas chamam de massa
-ou substância- cinzenta. O nome veio de como ela
foi descoberta: por anatomistas, em autópsias. Um
cérebro morto é cinzento.
Enquanto vivemos, no entanto, nosso cérebro não
é cinza Se pudéssemos observar o órgão em pleno
funcionamento, o que veríamos seria uma massa de
coloração apenas esbranquiçada, bem clarinha e bri-
lhante. "Essa aparência se deve aos fluidos e ao mate-
rial gorduroso que envolve o cérebro humano", diz a
médica Márcia Lorena Chaves, do Departamento de
Neurologia Cognitiva da Academia Brasileira de Neu-
rologia (Abneuro). Ainda que o órgão fosse partido ao
meio e visto do lado de dentro, a cor cinza não daria as
caras. No máximo, você observaria um tom levemente
rosado, por causa da incrível vascularização sanguínea
que irriga cada milímetro de nosso "disco rígido".
Rigidez, por sinal, é outro mito sobre o cérebro
humano. Muita gente acredita que ele seja mole e gos-
mento, mas na verdade é bem firme- uma consistência
semelhante à do tofu.
)UNHO 2015 SUPER 7
P&R
,
E VERDADE
,
QUE O CEREBRO
COMEÇA
A MORRER
AOS 27 ANOS?
A DUR A RESPOSTA É S IM. Sob O aspecto neuroló-
gico, a morte começa aos 27 anos. Quem descobriu foi
o pesquisador Timothy Salthouse, da Universidade da
Virginia, nos EUA. Em 2009, ele divulgou os resultados
de um estudo que mediu as habilidades cognitivas de
2 mil pessoas. Segundo Salthouse, o cérebro humano
atinge o auge aos 22 anos, fica estável até os 27 e, a partir
daí, começa a declinar. Aos 30 anos, várias funções do
cérebro já estão bem mais fracas. Isso acontece porque,
do ponto de vista evolutivo, ao virar "trintão" você já
deveria ter se reproduzido e completado seu ciclo de vida.
Lembre-se, por exemplo, de que os homens das cavernas
não viviam muito mais do que 30 anos - e que, pelo
menos anatomicamente, nosso cérebro é igual ao deles.
Mas não precisa entrar em pânico. Esse mesmo estudo
revelou também que algumas habilidades, como a verbal,
continuam se desenvolvendo até os 6o anos de idade.
Para tudo aquilo que exige conhecimento cumulativo,
seguimos ampliando nossa capacidade. E tem mais: a
ciência tem cada dia mais controle sobre o envelheci-
mento. Alguns cientistas afirmam até que, em 50 anos,
nem vai haver mais definição para expectativa de vida,
de tanto que as pessoas passarão a viver.
8 SUPER N OV EM BR O 201 5
LADEIRA ABAIXO
Quando você completa 30 anos,
seu cérebro já apresenta uma
sensível queda de desempenho.
MEMÓRIA
-17%
VELOCIDADE MENTAL
-27,3%
RACIOCÍNIO LÓGICO
-37,5%
o
l lustr~ ç~o Gullharme O~rezzo
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assinaturas
A
O que faz uma pessoa ser mais inteligente que outra? Quais são os
limites do cérebro? Dá para aumentar o poder da sua mente? Você vai ver
as respostas para essas e outras questões nas próximas páginas.
E a viagem começa com a pergunta fundamental: o que é a inteligência?
Texto Rodriqo Rezende Ilustrocõo Mariana Sal i mena
GANHAR UMA PARtiDA de xadrez, escrever um ro-
mance, compor uma sinfonia, convencer uma mul-
tidão, contar a piada perfeita. São coisas que vêm tão
rápido à mente quando se fala de inteligência quanto a
imagem de um relógio se movendo ao pensarmos no
tempo. Mas experimente gastar um ou dois minutos
refletindo sobre o que há de comum entre essas ha-
bilidades. De uma hora para outra, a ide ia clara que se
tem da inteligência começa a se dissipar. Quanto mais
se pensa, mais parece não haver ligação direta entre
raciocínio matemático, criação de personagens e melo-
dias ou talento para persuasão e comédia. Refletir sobre
a inteligência desse ponto de vista gera uma sensação
semelhante à que temos ao ouvir a pergunta "O que é
o tempo?" Antes da pergunta, sabemos exatamente o
que é. Depois dela, não sabemos mais. Se quisermos
entender o que é a inteligência, é preciso contornar esse
tipo de dificuldade. E uma boa estratégia para isso é ir
direto à fonte: entender o cérebro.
Agora mesmo uma tempestade elé trica se alastra
pelo 1,4 quilo de massa gelatinosa aí atrás da sua testa.
É esse movimento caótico de sinais por uma rede de 86
bilhões de neurônios que produz seus pensamentos.
Das profundezas desse órgão, surge o que chamamos
de inteligência. Mas, se você pensa que o processador
de informações mais avançado do Universo foi pro-
jetado de um jeito elegante, está enganado. O cérebro
humano é uma obra feita nas coxas.-t
NOVEMBRO 2015 SUPER~~
Uma obra que começou em vermes
microscópicos, quando um punhado de
células especializadas em enxergar se
juntou numa das extremidades do bicho.
Foi assim que surgiu o ancestral daquilo
a que chamamos cabeça: um mero recep-
táculo de células nervosas responsáveis
por captar luz e mover o animal. Com
o tempo, essa massa de neurônios, e a
complexidade com a qual eles se conec-
tam, cresceu. E aconteceu um milagre.
Animais que reagiam automaticamen-
te a estímulos exteriores passaram a se
comportar de um jeito mais complexo e
imprevisível. Em vez de responder cega-
mente a qualquer estímulo, começaram
a repetir apenas os movimentos mais
eficazes na luta pela sobrevivência- por
exemplo: em vez de caçar qualquer coisa
que se mexesse, passaram a selecionar
suas presas entre as mais nutritivas e
fáceis de abater. Esse talento para iden-
tificar acertos é a origem daquilo que
chamamos aprendizagem.
As vantagens que ela trouxe lançaram
os seres vivos numa corrida em busca
do maior e mais versátil cérebro. Mas
os organismos que entraram na disputa
enfrentaram um sério problema. Na evo-
lução biológica, é impossível traçar um
plano novo de construção de órgão do
zero, pois herdamos as instw ções bási-
cas para a obra, que estão nos genes dos
nossos pais. O resultado disso é que o
cérebro foi crescendo meio no improviso,
com "puxadinhos" se amontoando a par-
tir de uma estrutura básica. Essa é a ver-
dadeira história do cérebro: uma sucessão
de gambiarras bem feitas. E nem preci-
samos ir longe para entender isso. Quem
tenta se concentrar em fazer uma prova,
mas ao mesmo tempo não consegue tirar
os olhos da(o) mocinha( o) ao lado, expe-
rimenta sentimentos e pensamentos tão
pouco relacionados que aparentam ter
sido juntados aleatoriamente uns com
os outros. Foram mesmo. "Existe uma
série imperfeita de conexões entre os
sistemas cognitivos e emocionais", afirma
o neurocientista Joseph Le Doux, da New
York University. ''Essa situação é parte do
preço que pagamos por termos capaci-
dades que ainda não foram plenamente
integradas ao nosso cérebro."
Quantas são essas capacidades e como
elas se relacionam são questões centrais
para definir o que é a inteligência, mas
ninguém ainda tem uma resposta exata
para elas. Se você está em busca de um
meio objetivo de medir a inteligência,
TIPOS DE INTELIGÊNCIA
A Teoria das
Inteligências
Múltiplas é um
desafio à ideia de
que o QI representa
uma medida direta
da inteligência.
Segundo o psicólogo
Howard Gardner, LÓG ICO- LINGUÍSTICA
será obrigado a deixar o cérebro de lado e
estudar uma área com mais de um século
de tradição: a psicometria.
O tamanho da inteligência
Paris, começo do século 20. O psicólogo
Alfred Binet recebe uma tarefa do mi-
nistro da Educação da França: encon-
trar um meio de prever quais crianças
vindas do interior do país teriam mais
possibilidade de enfrentar dificuldades
na escola - o governo queria oferecer
educação especial a elas. Em 1905, ele
publica um teste de raciocínio verbal e
matemático, com questões que testam a
memória e o potencial de resolver pro-
blemas de lógica. O objetivo de Binet era
medir a capacidade de compreensão pura
e simples, não o conhecimento prévio,
colocando em pé de igualdade crianças
que só sabiam capinar mato com as que
recitavam Shakespeare. Pouco depois, o
alemão Wilhelm Stem criou um sistema
de pontuação-padrão para o teste e lhe
deu o nome de Intelligenz-Quotient.
Nascia o método mais bem-sucedido
da história para medir a inteligência: o
famoso teste de QI. E ele revoluciona-
ria o que entendemos como inteligência.
Até então a maior parte dos estudiosos
MUSICAL ESPACIAL a nossa inteligência
é o resultado de
oito processadores
mentais diferentes
dentro do cérebro,
cada um deles
responsável por
uma habilidade.
-MATEMÁTICA Sensibilidade para Semelhante à inteligência Habilidade de reconhecer língua falada e escrita, lingu ística, só que e manipular padrões
É a habilidade de resolver capacidade para relacionada a sons. no espaço. É útil para
problemas a partir da aprender línguas e de É a habilidade de compor quem trabalha com
lógica, realizar operações usar a lábia para e apreciar padrões a coordenação m otora
matemáticas e investigar alcançar os próprios musicais. Bastante e tem de compreender
questões científicas. objetivos. Encontrada rica em compositores, o mundo visual.
Bastante desenvolvida em escritores, locutores cantores, dançarinos Bem desenvolvida
em cientistas. e advogados. e maestros. em arquitetos.
~2 SUPER NOVEMBRO 2015
entendia o nosso intelecto a partir do
conceito da tabula rasa- a ideia do filó-
sofo John Locke de que a mente humana
é uma folha em branco que vai sendo
preenchida durante a vida. Com a ado-
ção dos testes de QI, esse ponto de vista
perdeu terreno - afinal, se uma criança
semianalfabeta podia apresentar um QI
maior que uma instruída, essa história
de folha em branco era uma furada. E a
inteligência passou a ser considerada cada
vez mais como algo inato, como um mero
produto do que está escrito nos genes.
Uma pesquisa de 2015, feita pelo
King's College, de Londres, revelou que
nem mesmo a matéria estudada impor-
ta. Avaliando 12.500 pares de gêmeos,
eles descobriram que o desempenho em
matemática, ciências humanas, línguas
estrangeiras, negócios, informática e
artes era afetado pelos mesmos genes,
que respondiam por entre 54% e 65% na
diferença dos resultados. "Descobrimos
que mais da metade das diferenças no
desempenho educacional das crianças,
para todas essas disciplinas, era explicada
por diferenças em seu DNA e não pela
escola, família ou outras influências do
ambiente", afirma a neurocientista Kaili
Rimfeld, coordenadora do estudo.
Esse tipo de experimento mostra que
os genes responsáveis pela inteligência
podem ser vistos como uma espécie de
balde, e o aprendizado durante a vida,
como a água que enche o balde. Ter mais
educação vai levar você mais rápido a
encher o balde de água. Mas, caso ele seja
muito raso, não vai adiantar jogar muita
água lá. Ou seja: nem toda a educação do
mundo poderá tomar realmente brilhan-
te alguém que nasceu com a inteligência
apagada. Só que esse efeito tem um lado
positivo: se você tiver vocação genética
para ser um físico quântico ou coisa que
o valha, tem como conseguir isso mesmo
sem ter tido uma instrução excepcional
na infância. Mas será mesmo que o QI
é a melhor medida para a capacidade da
mente humana?
Mil e uma habilidades
Alguns psicólogos acham que não, os
testes de QI não dizem grande coisa. Uma
importante ruptura veio na década de
1990, com o livro Inteligência Emocio-
nal, do psicólogo Daniel Goleman. Ele
ressaltou que habilidades como regular
os próprios sentimentos, compreender
emoções alheias, ser capaz de trabalhar
em grupo e sentir empatia pelos outros
Testes de QI são
usados amplamente
por cientistas .
Mas será que são
mesmo a medida
universal da
inteligência?
Boa parte dos
psicólogos diz
que não .
eram completamente ignoradas nos tes-
tes de QI. O que não fazia sentido, já que
essas habilidades deveriam fazer parte
daquilo que chamamos de inteligência.
Outra ofensiva veio do psicólogo Ho-
ward Gardner, autor da Teoria das Inte-
ligências Múltiplas. Ele se inspirou no
modo como a neurociência vê o cérebro
hoje: um conjunto de vários módulos dis-
tintos, ou "puxadinhos", que evoluíram
separadamente e hoje funcionam como
processadores para funções específicas.
Com isso em mente, Gardner concluiu
que a inteligência não é um conceito -+
FÍSICO-
SINESTÉSICA INTER PESSOAL INTRAPESSOAL NATURALISTA
É o tipo de inteligência
usada para resolver problemas
e executar movimentos
complexoscom o próprio
corpo. Você a encontra
em dançarinos,
mímicos e esportistas.
É a capacidade de
entender as intenções
dos outros. Bastante
necessária a quem coordena
e executa trabalhos
em grupo. É encontrada
em vendedores,
políticos, professores,
clínicos e atores.
É a habilidade de olhar
para dentro de si mesmo
e entender as próprias
intenções, objetivos
e emoções. Necessária
para encontrar erros
no próprio raciocínio.
Presente em psicólogos,
filósofos e cientistas.
É a sensibilidade para
perceber e organizar
fenômenos e padrões
da natureza, como
a diferença entre plantas
quase idênticas.
Costuma ser encontrada
em biólogos e membros
de tribos indígenas.
N OVEMBRO 2015 SUPER 1.:J
único, ind ivis ível, mas uma soma de
várias habilidades - como raciocínio
lógico-matemático, linguistico, espacial,
musical, intrapessoal, interpessoal, mo-
tor e naturalista (está na página anterior).
Assim, a ide ia de colocar um Stephen
Hawking, um Neymar e uma Cláudia
Leitte em pé de igualdade no quesito
inteligência deixou de soar estranha. Pela
teoria de Gardner, cada um deles pode
ser considerado especialista em um tipo
de habilidade (respectivamente, a lógico-
-matemática, a motora e a interpessoal). E
por isso não daria para considerar qual-
quer um deles menos genial que o outro.
Talvez por parecer mais democrática
que os testes de QI, a ideia de Gardner
se tornou extremamente popular des-
de que foi publicada, em 1983. Tanto
que hoje é senso comum achar que ela
está certa, e que o quociente de inteli-
gência tradicional ficou ultrapassado.
Mas no meio acadêmico é diferente:
a Teoria das Inteligências Múltiplas
ainda é vista como um patinho feio e
enfrenta muitas críticas. Principalmen-
te porque nem Gardner nem ninguém
sabe ao certo como medir cada uma
dessas habi lidades que formariam a
inteligência. "Não fica claro se o con-
ceito de inteligência de Gardner mede
mais traços de personalidade e habili-
dades motoras que faculdades mentais
de fato", afirma Linda S. Gottfredson,
professora de estudos educacionais da
Universidade de Delaware.
Ela é um dos muitos entusiastas do
fator "g" (de "inteligência geral"). Segun-
do essa teoria, baseada em estatísticas,
a ideia de que várias habilidades cogni-
tivas estejam disseminadas uniforme-
mente pela população é falsa. Ou seja,
não existem muitas pessoas excelentes
em cálculo e ao mesmo tempo péssi-
mas em redigir textos, ou com bom
ouvido musical e pouca inteligência
interpessoal. Se uma pessoa for boa
em qualquer dessas habilidades, tende
a ser boa também nas outras (como
atestou a pesquisa genética do King's
College, citada anteriormente.)
Essa essência da teoria do fator g,
porém, não é nova. Ela está por trás da
14 SUPER NOVEMBRO 2015
própria ideia do QI. Tudo bem que os
testes não medem coisas como coorde-
nação motora, mas é verdade que eles
avaliam tipos diferentes de raciocínio.
E a pontuação final vai levar em conta
o seu desempenho em todos eles. Além
disso, dá para comparar milhares de re-
sultados de épocas e lugares diferentes,
o que cria uma bela base estatística, se
o ponto é saber qual é o tamanho da
sua inteligência em relação à dos outros.
Então, mesmo com suas limitações, os
testes tradicionais continuam sendo ex-
tremamente comuns no meio cientifico.
"Ninguém duvida de que eles não ava-
liam todos os aspectos importantes das
funções mentais - não medem a cria-
tividade ou a sabedoria, por exemplo.
Mas o ponto é que isso não é o mesmo
que afirmar que eles não servem para
nada", afirma o psicólogo lan ). Deary, da
Universidade de Edimburgo (Escócia).
Mesmo assim, a necessidade de ex-
pandir o conceito de inteligência para
além das fronteiras dos testes de QI
continua. Afinal, pouca gente duvida
de que a criatividade, algo muito difícil
de medir objetivamente, é um inegável
sinal de inteligência. Diante dessa es-
pécie de tilt dos testes mentais, o que
dá para fazer? Com a palavra, Howard
Gardner: "Nós, psicólogos, não somos
mais os donos da inteligência, se é que
algum dia já fomos. O que significa
ser inteligente é uma questão filosófica
profunda, que exige base em biologia,
física e matemática". Ou seja, exige que
voltemos ao lugar onde começamos
essa história: para dentro do cérebro.
Inteligência = demência?
Para muitos neurologistas, a inteligên-
cia é só um sinal de que você tem um
cérebro com a "fiação" bem conectada.
Quanto mais saudável ele for, mais coisas
extraordinárias vai fazer. Mas espere ai.
Às vezes o que acontece é justamente o
contrário. É o que mostra um experi-
mento sem paralelo feito na Austrália:
pesquisadores lançaram pulsos eletro-
magnéticos no crânio de pessoas para
desligar partes do cérebro e observar o
que acontecia com as capacidades cog-
nitivas. E o resultado foi espantoso: as
cobaias humanas começam a desenhar
melhor, ter memória mais rápida, mais
habilidade musical ou um raciocínio
numérico mais apurado. A questão é:
se partes do cérebro estavam sendo
desligadas, por que a mente parecia
funcionar melhor, e não pior?
Não para por aí. Um estudo de 2015,
da Universidade de Edimburgo (Escó-
cia), revelou que há um maior risco
de desenvolvimento de doenças rela-
cionadas ao espectro do autismo em
pessoas com os mesmíssimos genes
ligados à inteligência.
Na página 6o, essa ligação fica ainda
mais clara. Lá você pode conhecer os cé-
rebros mais fascinantes do planeta, ver-
dadeiros telescópios para decifrar o que
é a inteligência. E descobrir que, talvez,
você tenha algo em comum com eles. 0
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A ciência
desvendou de
átomos a buracos
negros, mas o ma1or
mistério de todos
continua onde sempre
esteve: na sua
cabeça. Afinal, o que
é a consciência?
mos bancos de dados sobre
tudo o que você vê e sente, cer-
to? Lá estão informações sobre
todo mundo que você conhece.
Então não seria nem um pouco
surpreendente ela ter formado
uma ficha sobre você mesmo,
uma que você compila na me-
mória desde os primeiros anos
de vida Nesse sentido, a cons-
ciência é um modelo inte.mo
do mundo com um "eu" inseri-
do. "O acesso a informações so-
Texto Rodrigo R(!z_ende_ e Alexandre Versignossi
Oesign Joono Amador
Ilustrações de Thois Beltr:ome_
SABE AQUELA PESSOA que sempre mo-
rou na sua cabeça e que você apelidou de
"eu"? Então, imagine que um dia exista
uma máquina que faça cópias perfeitas
de você, com a sua cara, seu cérebro,
suas memórias. Tudo. Será que a sua
consciência vai parar lá também? Ou
sua cópia ganha outro "eu"? Se você não
conseguiu responder, fique tranquilo:
nada é mais misterioso que esse cidadão
aí dentro. Uma prova disso é o grande
número de teorias que tentam explicar
o que é a consciência. Muitas delas vão
bem fundo no problema, mas batem de
cabeça umas com as outras. Uns acham
que ela nem existe. Outros, que está em
todo lugar. Muitas perguntas continu-
am sem resposta - e, como você pode
ver nas colunas ao lado, nunca vão ter.
Mas não faltam argumentos que nos
deixem pelo menos mais perto de escla-
recer o mistério. Prepare-se para conhe-
cer esse "eu" que mora em você.
Você, por você mesmo
Afinal, o que é a consciência? Foi esse
o problema enfrentado pelo linguista
Ray )ackendoff, da Tufts University, e
pelo fi lósofo Ned Block, da Universida-
de de Nova York. Eles chegaram a dois
significados fundamentais.
Em primeiro lugar, consciênciaé o co-
nhecimento que você tem de você mes-
mo. Nossa cabeça consegue formar óti-
bre esse 'eu' é fácil de reproduzir.
Um robô que possa se reconhecer
num espelho não seria mais difícil
de construir do que um capaz de re-
conhecer qualquer outra coisa", diz o
neurocientista Steven Pinker, da Univer-
sidade de Harvard, EUA, em seu já clás-
sico livro Como a Mente Funciona.
Outra parte é a forma com que o cére-
bro acessa a infinidade de informações
que tem lá dentro. Numa conversa, por
exemplo, você pode falar do filme de on-
tem, de alguém que está passando na sua
frente, da chuva. Mas não tem como dis-
correr sobre a velocidade com que seu
sangue está correndo agora ou o jeito
como enzimas estão sendo secretadas
pelo seu estômago. Tudo o que você vê e
boa parte do conteúdo da sua memória
são o que sua cabeça pode acessar. O res-
to fica "esconclido" no seu cérebro. Isso
mostra que o sistema nervoso divide cla-
ramente o que vai e o que não vai para a
consciência. Então a gente fica com um
outro jeito de definir o "eu": ele é tudo a
que você pode ter acesso pela sua cabeça
na hora. Ou, mais exatamente, tudo o que
você precisa pensar para falar e fazer.
Nesse processo, informações da parte
consciente às vezes são escondidas.
Quando você está aprendendo a dirigir,
por exemplo, precisa pensar para trocar
as marchas do carro. Operar o câmbio é
uma preocupação que faz parte da cons-
ciência do motorista de primeira via-
gem. Depois de alguma experiência, a
troca de marchas vira uma coisa auto-
mática, tão inconsciente quanto a respi-
ração e o trabalho das enzimas do estô-
mago. E o "eu" fica liberado para matutar
sobre o filme, os passantes, a chuva.
Esevocêforum
cérebro em um vidro?
Por mais que os cientistas
se esforcem para estudar
a consciência, existem
algumas perguntas rela·
cionadas ao assunto que
ainda não têm resposta.
Como saber, por exemplo,
que você não é um mero
cérebro em um vidro de
laboratório, e que essa
revista, as suas mãos e o
lugar em que você está
sentado agora não passam
de ilusões criadas por
cientistas? Não é uma ideia
absurda, por um simples
motivo: não existem
meios de responder a essa
pergunta com um sim ou
não. E é possível que nunca
venham a existir. Demais
perguntas desse tipo
aparecerão nas colunas do
resto da reportagem.
Essas definições explicam alguma
coisa, mas deixam muita coisa de fora.
Não explicam questões que parecem
simples, mas que são impossíveis de
responder, do tipo: como é ser um be-
souro, como seria estar morto, ou qual
o sentido do "eu". E ai entram as teorias
que mergulham fundo para resolver
esses problemões. Bem fundo, até a
parte irracional da nossa mente.
Você, pela sua emoção
Lembra o que acontece quando você
toma um susto? Primeiro vem uma es-
pécie de chacoalhão no seu corpo, de-
pois um salto meio inconsciente e aí a
sensação de medo. E não há nada que
você possa fazer para evitar essa reação
em cadeia. Aliás, para ser bem sincero,
não existe nem um "você" presente nes-
se processo todo. A consciência de que
o susto aconteceu só vem depois dele.
E talvez não seja à toa. Segundo um dos
neurologistas mais respeitados do
mundo, o português António Damásio,
da University o f Southern California, o
processo que te levou a perceber o sus-
to reproduz a história evolutiva da
mente, na qual a consciência é o último
passo de todo o processo. -+
NOVEMBRO 2015 SUPER ~7
A primeira forma de pensamento na
natureza não vinha com o "eu..- no pa-
cote. Era só emoção. Para Damásio, a
emoção é uma imagem mental forma-
da por várias coisas ao mesmo tempo,
tipo a dilatação da pupila, a descarga de
adrenalina e a tensão muscular que
acontecem na hora do susto. Quando a
mente processa tudo isso junto e vê
que tem algum perigo por perto, faz
você dar um salto, por exemplo. Isso foi
essencial para os animais primitivos na
luta pela sobrevivência, já que permitiu
reagir automaticamente a ameaças.
Com o tempo, o cérebro aprendeu a
lidar melhor com a tal emoção dos se-
res vivos, criando um "eu" para admi-
nistrá-la. Que vantagem isso dá? Sim-
ples: imagine que você sempre tome
um baita susto toda vez que vê uma
barata. E que comece a trabalhar num
lugar infestado delas. Em vez de passar
a dia inteiro cheio de adrenalina e com
a musculatura tensa, gastando um
monte de energia à toa, você usa a
consciência e se pergunta: "Por que eu
tenho medo de barata?" E tenta arranjar
um jeito de se livrar desse medo.
Mas por que não é fácil controlar o
medo e outros sentimentos que só
atrapalham a sua vida? Exatamente
porque a consciência é só a ponta do
iceberg desse conjunto de reações ir-
racionais e automáticas que deu ori-
gem à mente. Para Damásio, a emoção
e o sentimento compõem o grosso da
mente, e não o pensamento, a razão.
Essa teoria dá urna boa ideia da ori-
gem da consciência. Afinal, ela é útil
para o controle das emoções, e acaba aju-
dando na sobrevivência. Mas por que
tem de existir um "alguém" aí dentro de
você? Não daria para a mente trabalhar
no piloto automático? Alguns acham
que é isso mesmo que ela faz, que não
mora ninguém dentro da sua cabeça.
Você, robô
Você já leu esta linha. E esta também.
Faz meio segundo que o seu cérebro
processou cada uma dessas letras que
você está lendo agora. Ele faz todo o
trabalho antes que você tenha consci-
ência do que está acontecendo, sem
1.8 SUPER NOVEMBRO 2015
perguntar nada. Sempre foi assim:
todas as decisões da sua vida foram to-
madas sem que você fosse consultado.
Todas. Se neste momento você resolver
jogar esta revista pela janela, saiba que
seu cérebro já ordenou que você fizesse
isso sem que a parte consciente da sua
cabeça se desse conta.
Essa é uma possibilidade aberta por
pesquisas sobre o funcionamento do
cérebro feitas pelo falecido neurocien-
tista norte-americano Benjamin Libet,
pioneiro dos estudos sobre a consci-
ência. Entender o raciocínio dele é fá-
ci l: levante seu braço agora mesmo.
Levantou? Pois Libet concluiu que o
impulso que seu cérebro acabou de
enviar para erguer o seu braço partiu
um pouco antes de você ter decidido
levantá-lo. Você, o legítimo dono do
membro, pode não passar de um figu-
rante nesse processo.
Mas espera um pouco. Se realmen-
te não temos domtnio sobre nossas
ações, somos o quê, então? Sinto lhe
dizer, mas, segundo Richard Dawkins,
professor emérito da Universidade de
Oxford - que hoje pode ser famoso
pela militância antirreligiosa, mas é
(ironia) um dos "papas" da biologia
moderna - você não passa de um robô,
"ainda que um bem complexo".
Essa posição tão simpática vem de
uma ideia genial: a de que somos "má-
quinas de sobrevivência" dos nossos ge-
nes. "Máquinas" porque eles usam nos-
sos corpos para se reproduzir e depois
vão embora. Por essa visão, quem já teve
o trabalho de arrumar parceiros sexuais
e criar filhos pode morrer tranquilo por
ter cumprido sua missão: ajudar suas
moléculas de DNA a continuar sobre a
Terra. E mais nada. Bom, se os genes são
os chefes dos nossos corpos, quem man-
da na nossa mente, nas nossas ideias?
Para Dawkins, a diretoria aí não é forma-
da exatamente pelo genes, mas pelos
memes - pelo menos esse é o nome que
o inglês inventou.
Isso tem pouco que ver com as piadi-
nhas de humor duvidoso na internet,
que herdaram o nome por sua pretensão
a se tomarem memes. Um meme, no
sentido original, é basicamente uma
Você vê o mesmo que eu?
Como ter certeza de que
as cores que você vê aí em
cima são as mesmas que
outra pessoa veria? E se a
sensação que você tem do
vermelho é idêntica à que
eu tenho do verde? Para
a física, o que chamamos
de vermelho é apenas
uma frequência de uma
onda eletromagnética,
mas nada garante quea representação mental
dessa cor seja a mesma
para nós dois.
idéia, um conceito qualquer. Mas, note
bem, eles têm vida própria. E estão na
Terra com um objetivo único: se espa-
lhar, igual os genes fazem. Quer ver um
meme agora mesmo? Então pense em
alguma música das Spice Girls - ou em
qualquer uma que você gostava quando
era mais novo. Se ela começa a tocar so-
zinha na sua cabeça, é porque você está
testemunhando um meme em ação. Se
você resolver cantar a música e alguém
que estiver do seu lado ficar com ela na
cabeça, você está vendo um meme se re-
produzir, passar de um corpo para outro.
Como se fosse um gene! Ou uma carinha
mal desenhada na internet.
Essa lógica serve para tudo no mundo.
Um filósofo, do ponto de vista "meméti-
co", é o meio que uma biblioteca tem de
produzir outras bibliotecas. E por aí vai.
Vivemos numa "memosfera" carregada
de ideias que lutam para se reproduzir.
E em que lugar uma ideia tem me-
lhores condições de procriar? Num
cérebro humano. É ele quem tem o
trabalho de espalhar ideias por aí, não
é? Cérebros são o paraíso dos memes.
Um conceito que esteja em várias ca-
beças, entrando por muitas orelhas e
saindo por muitas bocas, fica com
chances melhores de crescer e de se
reproduzir no "mundo das ideias".
Para Dawkins, então, a mente é um
emaranhado de memes em busca de
um lugar ao Sol. E você, o dono do cé-
rebro, não tem nada a ver com isso. A
briga para ver o que se passa na sua
cabeça é entre eles, caro robô. -+
r
Se você achou isso difícil de engolir,
não é o único. O filósofo Daniel Dennett,
do Centro de Cognição da Universidade
Tufts, nos EUA, também achou. Mas é
uma ideia que se encaixa tão bem em
outras teorias da biologia que até ele aca-
bou engolindo. E criou uma explicação
da consciência baseada nos memes.
Para ele, o nosso cérebro é um ema-
ranhado quase infinito de memes que
estão agora mesmo no seu inconscien-
te. O que eles fazem é ficar brigando
uns com os outros lá no escuro até que
um ganha vantagens sobre os outro se
consegue "ver a luz". Quer dizer: ele
emerge na sua cabeça em forma de uma
ideia consciente, pronta para sair da sua
boca e se reproduzir em outras cabeças.
O modelo de Dennett é bastante
complexo, mas tem uma essência sim-
ples. Para ele, o cérebro tem dificuldade
em lidar com o turbilhão de ideias que
moram lá. Então a consciência não seria
exatamente um meme qualquer que
pula para fora, mas uma "máquina vir-
tual" criada para controlar o jorro de
ideias. uma espécie de "filtro" dos me-
mes que estão enterrados em sua cabe-
ça. E o nome que você dá para essa má-
quina, enfim, é "eu", amigo robô.
A conclusão, mais uma vez pouco
animadora, é que a sua consciência não
passa de ilusão. O que você chama de
"eu", na verdade, é uma estratégia dos
milhões de memes para se regularem.
Tudo certo então? Claro que não. Uma
teoria da consciência, pelo menos tão
instigante quanto essa, fala exatamen-
te o contrário. Vamos lá.
Você, em todo lugar
Se você está preocupado com a possibi-
lidade de ser apenas um robô sem con-
trole sobre si mesmo, chame o neuro-
cientista e filósofo David Chalmers, da
Universidade Nacional da Austrália.
Para ele, esse tipo de argumento é coisa
de gente preguiçosa. "A maneira mais
fácil de desenvolver uma teoria da
consciência é negar que ela existe", afir-
ma ele em seu livro The Conscious Mind
("A Mente Consciente", inédito em por-
tuguês). Chalmers, você vê, acredita que
a consciência não seja só uma ilusão e
bate de frente com Dennett, seu mais
ferrenho rival acadêmico.
Pense bem, a consciência é um fe-
nômeno bastante poderoso, mas que
ninguém sabe muito bem onde está.
Mesmo sendo o centro da existência de
todo mundo, nenhum cientista conse-
guiu matar a charada e dizer de onde ela
surge, ou sequer afirmar com certeza
quais seres têm ou não consciência.
Um jeito científico de tentar detec-
tá-la é colocar animais na frente de um
espelho para ver se eles conseguem se
reconhecer. Por esse critério, bebês
humanos de um ano não têm consci-
ência. Os animais que passaram no
teste até hoje são outros hominídeos
(chimpanzés, bonobos e orangotangos,
mas não gorilas), elefantes, golfinhos
nariz-de-garrafa, orcas e, por incrível
que pareça, a pega-rabuda (esse é o
nome), um tipo de gralha europeia.
Ainda assim, muitos cientistas contes-
tam os resultados. Mas por enquanto
não dá para ir mais longe.
Para Chalmers, ninguém conseguiu
achar a resposta por um motivo bem
simples: ela estava embaixo do nariz de
todo mundo. A consciência para ele é
uma propriedade das coisas. De qual-
quer coisa: de um ganhador do Nobel a
um caixote, tudo tem consciência.
Se, a essa altura, você já está seguran-
do o seu chapéu e achando isso tudo um
absurdo, pense de novo na ide ia. Largue
o seu chapéu e tente responder. por que
essa benção, essa força tão poderosa, só
apareceria no cérebro humano? Não pa-
rece muita pretensão nossa? É por isso
que, para Chalmers, ela pode, sim, estar
em tudo: seja numa pedra, num pedaço
de papel ou numa estrela. O motivo pelo
qual você nunca percebeu essa habilida-
de neles é que existem diferentes graus
de consciência. Para ele, quanto mais
complexa for a atividade de uma coisa,
quanto maior for o número de diferentes
"e>..'Periências" que ela vivenda- em ou-
tras palavras, quanto mais complexo for
o objeto - maior sua "quantidade" de
consciência. Um cérebro experimenta
bilhões de impulsos elétricos por segun-
do. É a coisa mais frenética do Universo
conhecido. Então ele tem um grau alto
Máquinas podem
ter consciência?
Imagine se a gente pudes-
se tirar um dos neurônios
do cara da foto aí ao
lado e substituí-lo por
um chip com as mesmas
funções. O cérebro dele
ia continuar funcionando,
certo? Agora, imagine que
continuamos trocando
células por chips equiva-
lentes. O resultado seria
uma máquina idêntica
ao nosso cérebro,
mas ... ela teria alguma
consciência? E seria essa
consciência a mesma
do cérebro original?
de consciência. Já uma pedra não passa
por muitas emoções ao longo da vida. A
única coisa que ela faz é esfarelar com o
tempo, bem devagarinho. Então seu
grau de consciência seria minúsculo.
Uma estrela, digamos, é grande e agitada
por dentro, mas não faz nada de comple-
xo: é só uma bolona que gera energia
fundindo hidrogênio, uma rotina bas-
tante tediosa. Então seu grau de consci-
ência não seria lá essas coisas.
Por esse ponto de vista, a consciên-
cia é nada mais que uma propriedade
do mundo físico, como a massa e a ve-
locidade. Do mesmo jeito que uma coi-
sa pode ser mais rápida ou mais pesada,
ela também pode ser mais consciente
que outra.
Mas a teoria não faz sentido para
todo mundo. Na verdade, Daniel Den-
nett, o arqui-inimigo de Chalmers, acha
tudo isso tão absurdo que se preocupa
basicamente em tirar sarro da teoria.
Dennett propõe a seguinte cena: um
bebê brincando com um filhote de ca-
chorro. O que os dois têm em comum?
São fofos. E muito. Assim como a cons-
ciência, a fofura é uma força poderosa,
que pode estar em qualquer lugar e que
é bem difícil de conceitualizar (tente, por
exemplo, explicar o que é fofura sem usar -+
NOVEMBRO 201S SU PER 21
Há como medir
o consciência?
Aparelhos de ressonância JW.77:1:tí:t:
magnética, tomografia
e encefalograma são
instrumentos com
os quais os cientistas
estudam a mente. Só que
nenhum deles possibilita
leitura direta do conteúdo
da consciência de uma
pessoa. A única a que um
cientista tem acesso
é a dele mesmo.
O problema é que a
ciência precisa de
evidências do mundo
físico para comprovar
teorias. Se pensar a
consciência a partir da
própria consciência
contraria os valores
científicos fundamentaise extrapola os limites
da ciência, como é
possível explicá-la
cientificamente?
os dedos. Difícil, não?) "Já que é assim,
por que não considerar a fofura uma pro-
priedade fundamental da matéria?", disse
o filósofo, em um artigo de 2004.
O problema é que não existem meios
de provar nem a teoria de um, nem a do
outro. A biologia fica de mãos atadas na
hora de debater a consciência. Mas a
física talvez não.
Você, atômico
A gente pensa num cérebro como se fos-
se um grande computador. É até natural.
Afinal, os dois têm memória, processam
informações e travam de vez em quando.
Além disso, a estrutura do cérebro, com
bilhões de neurônios, axônios e sinapses,
lembra o emaranhado de fios e micro-
chips que temos nas nossas máquinas. E
existe um sinal elétrico correndo lá den-
tro, seja na máquina, seja na cabeça.
Mas existe uma coisa que os cérebros
manjam e que computador nenhum
consegue fazer: abstrações. Uma partida
de xadrez, por exemplo, tem um número
absurdo de caminhos diferentes. O que
um computador faz na hora de jogar?
Tenta um número enorme de jogadas até
achar uma que tenha boas chances de
sucesso. Já você, antes de cada lance,
22 SUPER NOVEMBRO 2015
pensa só nas três ou quatro jogadas mais
sensatas. Mesmo sem perceber, você de
alguma forma conseguiu tirar um senti-
do do jogo e agir de acordo com alguma
lógica -algo que fios, chips e eletricidade
não conseguem fazer sozinhos.
Outro ponto em que somos bem
diferentes das máquinas é que nós
nunca pensamos em apenas uma in-
formaçãp por vez. Você pode até estar
aqui processando as informações des-
se texto, mas ao mesmo tempo está
ligando essas ideias ao cheiro que você
está sentindo, às memórias do que
você fez nos últimos tempos, à sensa-
ção do lugar em que você está e aos
barulhos que está ouvindo. Cada mo-
mento que você vive é processado ao
mesmo tempo por vários neurônios,
em diferentes partes do cérebro.
É como se o mesmo sinal passasse por
vários processadores intimamente li-
gados, como se todos fossem um só.
E é claro que um computador não
consegue fazer uma reprodução exata
disso. Mas por que não? Para responder
essa pergunta, o matemático Roger Pen-
rose, da Universidade de Oxford, Ingla-
terra, buscou inspiração em um mundo
quase tão estranho quanto nosso cére-
bro: o da física quântica, que descreve o
comportamento das coisas ultramicros-
cópicas. Lembre-se do que acabamos de
dizer sobre o cérebro: é uma máquina
que processa informações como se elas
estivessem em vários lugares ao mesmo
tempo e que, de alguma forma, consegue
extrair uma força maior, um sentido de
tudo isso. É algo que poderia ser compa-
rado a um elétron, por exemplo.
Ele nunca está em um lugar definido.
É como se estivesse sempre indeciso
sobre onde ficar e, enquanto não "resol-
ve", se mantém em vários lugares ao
mesmo tempo. E, de alguma forma, é
dessas interações que saem as leis da fí-
sica com as quais lidamos no dia a dia.
As estranhezas da física quântica
não param por aí. As partículas podem
se comportar como pequenos bonecos
de vodu. Exatamente: se você "espetar"
uma aqui, outra "sente a dor" em outro
lugar, não importa a distância que se-
pare as duas. Bizarro, não?
O mesmo aconteceria no cérebro.
Dentro da sua cabeça, tudo o que você
sente e pensa está espalhado em áreas
distantes. O que você vê agora é proces-
sado perto da sua nuca, e as coisas de que
você lembra ficam no meio do cérebro.
Para Penrose, então, os sinais que os
neurônios transmitem poderiam ficar
em vários lugares ao mesmo tempo, que
nem os elétrons dos experimentos quân-
ticos, por uma fração de segundo. A jun-
ção dessas pequenas flutuações resulta-
ria no jeito como você e eu sentimos a
cor azul e a sensação de segurar esse pa-
pel simultaneamente. Em suma, ela for-
maria a sensação do "eu".
O problema é que nenhum desses
argumentos fez a ideia de Sir Penrose
ganhar crédito. Uns contestam a mate-
mática da teoria. Outros falam que os
fenômenos quânticos não poderiam
existir dentro de um cérebro, um am-
biente grande e quente que não dá con-
dições para que os átomos se compor-
tem de um jeito tão estranho. Tem
ainda quem diga que Penrose só subs-
tituiu um mistério por outro e não tem
nada que tentar explicar o inexplicável.
"Mas estou aberto para qualquer um
que venha e me mostre que eu estou
errado. E ainda estou esperando!", desa-
fiou a matemático. Vai encarar?
Com certeza, muita gente vai. Penro-
se continuou trabalhando em sua teoria
e, em 2013, ele e o anestesiologista Stuart
Hameroff afirmaram com todas as letras
que o cérebro é um "computador quân-
tico". Uma máquina que mal existe ain-
da. Mas essa é uma daquelas questões
centrais a qualquer área da ciência - e
que nunca vai morrer. Enquanto existir
essa voz aí na sua cabeça que você se
acostumou a chamar de "eu", existirá
quem tente descobrir de onde ela vem,
do que ela é feita. Quem sabe o "eu" de
algum deles ainda desvende o seu? O
PA~A SA3fH MAIS
MENTE, CÉREBRO E COGNIÇÃO, João de
Fernandes Teixeira, Vozes.
O MISTÉRIO DA CONSCitNCIA. Antônio Damás io,
Cia das Letras.
CONTENT ANO CONSCIOUSNESS, Daniel Dennett,
Rout ledge Classics.
• Colaboraram Bianca Carneiro c Cris tina Kist.
VOCÊ NÃO TOMA AS PRÓPRIAS
DECISÕES - E BOA PARTE
DO QUE VÊ NÃO É REAL. É
APENAS UMA ILUSÃO CRIADA
PELO SEU CÉREBRO, QUE PASSA
PELO MENOS 4 HORAS POR DIA
ENGANANDO VOCÊ. CONHEÇA
OS TRUQUES QUE ELE APLICA
- E SAIBA O QUE REALMENTE
ACONTECE DENTRO DA MENTE .
Texto Alexandre de Santi" Design Rafael Quick
VOCÊ FICA CEGO 4 horas por d ia. Já foi enganado
por um rótulo nesta semana. Tem preconceitos sobre
todos os assuntos (por mais que ache que não). Toma
decisões irracionais, que vão contra os seus interesses.
Você não está no controle da própria mente. Mas não
se preocupe: você é normal. Não é maluco e possui um
cérebro perfeito, como o de qualquer outra pessoa. Só
que ele inventa coisas para iludir você. Não é por mal.
E só uma maneira de economizar energia.
O cérebro humano é o objeto mais complexo do
Universo. Tem 86 bilhões de neurônios, que podem
formar 100 trilhões de conexões. Se fosse possível criar
um computador com o mesmo número de circuitos do
cérebro, ele consumiria uma quantidade absurda de
eletricidade: 6o milhões de watts por hora, segundo
uma estimativa de cientistas da Universidade Stanford.
É o equivalente a quatro usinas de Itaipu trabalhando
simultaneamente. Mas o cérebro humano gasta pou-
quíssima energia - 20 watts, menos que uma lâmpada.
E mesmo assim consegue fazer coisas extremamente
sofisticadas, de que nenhum computador é capaz.
Só que isso tem um preço. O seu cérebro não con-
segue anal isar as situações de forma completamente
racional, avaliando todas as variáveis envolvidas em
cada caso. Para fazer isso, ele precisaria de ainda mais
circuitos - e muito mais energia. Mas, ao longo da
evolução, a natureza encontrou uma solução: o cérebro
pode mentir para seu dono. Sim, mentir. Descartar
informações, manipular raciocínios e até inventar
coisas que não existem. Dessa forma, é possível s im-
plificar a realidade- e reduzir drasticamente o nível
de processamento exigido dos neurônios. "São efeitos
colaterais do funcionamento normal do cérebro", diz
Suzana Herculano-Houzel, neurocientista da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). --+
NOVEMBRO 2015 SUPER 25
Tudo começa pela visão.
Você não percebe, mas o
cérebro edita o que você vê.
Das 16 horas por dia que
uma pessoa passa acorda-
da, em média, 4 horas são
preenchidas por imagens
"artificiais"- que não foram
captadas pelos olhos, e sim
criadas pelo cérebro.
O olho humano só cap-
ta imagens com clareza em
uma pequena parte, a fóvea,
que tem l. milimetrode di-
âmetro e fica no centro da
retina. Então, para compor
a linda imagem que você
está vendo agora, os seus
olhos estão constantemen-
VOCÊ NÃO
ENXERGA
O QUE ESTÁ
ACONTECENDO
AGORA,
MAS VÊ O
FUTURO.
QUE SEU
CÉREBRO
INVENTA.
te em movimento. Eles focam determinado ponto e
depois pulam para o ponto seguinte. Cada um desses
saltos tem duração de 0,2 segundo. Quer comprovar
isso na prática? Na próxima vez em que você estiver
conversando com uma pessoa, preste atenção nos olhos
dela. Você irá perceber que eles se movimentam o
tempo todo para escanear vários pontos do seu rosto.
O problema é que a cada pulo desses, enquanto
os olhos estão se movendo para a próxima posição,
o cérebro deixa de receber informação visual por 0,1
segundo. Durante esse tempo, você está cego. E, como
nossos olhos fazem pelo menos 150 mil pulos todos
os dias, o resultado são 4 horas diárias de cegueira
involuntária. Você não percebe isso porque o cérebro
preenche esses momentos com imagens artificiais, que
dão a sensação de movimento contínuo. Mas que, na
prática, você não viu.
Tem mais: o que você enxerga não é o que está
acontecendo - e sim o que vai acontecer no futuro. É
sério. Isso acontece porque a informação captada pelos
olhos não é processada imediatamente. Ela tem de
passar pelo nervo óptico e só depois chega ao cérebro.
O processo leva frações de segundo, e você não pode
esperar- um atraso na visão pode fazer com que você
seja atropelado ao atravessar a rua, por exemplo. Então,
o que faz o cérebro? Inventa. Analisa os movimentos
de todas as coisas e fabrica uma imagem que não é
real, contendo a posição em que cada coisa deverá
estar 0,2 segundo no futuro. Você não vê o que está
acontecendo agora, e sim uma estimativa do que irá
acontecer daqui a 0,2 segundo.
As mentiras invadem a razão
Com R$ 2,2o, você pode comprar um café e uma
bala. O café custa R$ 2 a mais do que a bala. Quanto
26 S UPER NOVEMBRO 2015
custa a bala? Responda rápido. Vinte centavos,
certo? Errado. Você acaba de ser enganado pelo
próprio cérebro. Mas não está sozinho - m ais da
metade dos estudantes de universidades prestigia-
das como Harvard, MIT e Princeton responderam
a essa mesma pergunta e também erraram (entre
alunos de instituições menos badaladas, o índice
de erro é ainda maior, cerca de 8o%). Essa chara-
da é um dos exemplos citados no livro Thinking,
Fast and Slow (Pensando, Rápido e Devagar, ainda
sem versão em português), do psicólogo israelense
Daniel Kahneman, que ganhou o Prêmio Nobel
de Economia de 2002 por suas pesquisas sobre o
comportamento humano.
Para Kahneman, o cérebro tem dois tipos de pen-
samento. O primeiro é rápido e intuitivo e confia
na experiência, na memória e nos sentimentos para
tomar decisões. O segundo é lento e analítico - e
serve como uma espécie de guardião do primeiro.
Se estamos decidindo sobre o que comer, podemos
ficar em dúvida entre um sanduíche e um prato de
feijão. Mas por que essas duas opções, justo elas,
surgiram como as alternativas válidas para o mo-
mento? Por que você não considerou um bacalhau
com batatas? Por que não um sorvete de abacaxi?
Porque o seu pensamento intuitivo já estava inclinado
para optar pelo sanduba ou pelo feijão e restringiu
previamente as escolhas, antes mesmo que você se
desse conta de que estava chegando a hora de almoçar.
Do contrário, passaríamos horas avaliando todas as
possíveis opções de refeição - e morreríamos de fome.
Se o pensamento intuitivo não existisse, seria extre-
mamente difícil escolher uma roupa ou responder a
perguntas banais, do tipo "como você está?" ou "gostou
do filme?". De certa forma, o pensamento intuitivo é
o que nos diferencia dos robôs. E é ele que permite
ao cérebro processar informações na velocidade ne-
cessária. "Ele é mais influente. É o autor secreto de
muitas decisões e julgamentos que você faz", explica
Kahneman no livro. Foi o pensamento intuitivo que
apontou os R$ 0,20 como resposta para o enigma do
café. Só que ele mentiu para você. A resposta certa
é R$ 0,10. Se a bala custasse R$ 0,20, o café custaria
R$ 2,20 - e o total daria R$ 2,40.
Esse duelo entre os dois tipos de pensamento, o
rápido-intuitivo e o lento-analítico, também tem uma
explicação evolutiva. O córtex pré-frontal, região
do cérebro responsável pelo processamento lógico,
surgiu relativamente tarde na evolução da espécie
humana -já as emoções e os instintos estavam com
nossos ancestrais há muito mais tempo. Por isso elas
são tão fortes e nos influenciam tanto. "A filosofia
considera o ser humano um animal racional. Mas o
que sabemos é que apenas em certas circunstâncias e __.
à custa de muito esforço conseguimos ser racionais",
afirma Vitor Haase, médico e professor de psicologia
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O pensamento intuitivo está sempre presente, até
nas situações em que a racionalidade é suprema-
menteimportante. Um estudo de pesquisadores das
universidades de Ben Gurion, em Israel, e Columbia,
nos EUA, analisou o comportamento de juízes que
deveriam decidir sobre a liberdade condicional de
presos (um processo rápido, que leva 6 minutos).
Em média, somente 35% dos condenados ganhavam
a condicional. Mas os cientistas perceberam que
os juízes eram muito mais benevolentes depois
de comer. Quando eles tinham acabado de fazer
uma refeição, a taxa de aprovação subia para 65%.
Com o passar do tempo, a fome vinha chegando,
e a concessão de liberdade condicional ia cain-
do. Minutos antes do próximo lanche, o índice de
aprovação era quase zero.
Decidir sobre liberdade condicional e julgar a
própria felicidade são tarefas complexas. Para avaliar
todas as variáveis envolvidas, muitas delas subjetivas,
o cérebro tenderia a ficar sobrecarregado. Por isso, ele
usa atalhos. "Os nossos problemas são resolvidos no
piloto automático, por meio de soluções que a cultura
já embutiu no nosso cérebro", diz Haase.
Estudos têm revelado outra distorção: toda pes-
soa sempre tende ao otimismo, mesmo quando não
há motivos para isso. A pesquisadora Tali Sharot,
da University College London, gravou a atividade
cerebral de voluntários enquanto eles imaginavam
situações banais - como tirar uma carteira de iden-
tidade. Ela também pediu que os voluntários pen-
sassem em coisas do passado. Os testes mostraram
que as mesmas estruturas cerebrais são ativadas para
recordar o passado e imaginar o futuro. Só que, ao
imaginar o futuro, os voluntários criavam cenários
magníficos - era o cérebro tentando colorir os eventos
sem graça. "Cerca de 8o% das pessoas têm tendência
ao otimismo, algumas mais do que outras", diz ela.
Para Tal i, autora do livro Oplimism Bias (O Viés do
Otimismo, ainda sem versão em português), o otimis-
mo é sempre mais comum que o pessimismo - seja
qual for a faixa etária ou o grupo socioeconômico
da pessoa. Assim, nunca acreditamos que algo vá
dar errado - mesmo quando o mais racional seria
pensar que sim. "As taxas de divórcio, por exemplo,
chegam a 40%, so%. Mas as pessoas que estão para
casar sempre estimam suas chances de separação
em o%", exemplifica Tali. Segundo ela, a inclinação
natural ao otimismo também é um dos fatores que
levaram à crise econômica global de 2008. "As pessoas
achavam que o mercado continuaria subindo cada vez
mais e ignoraram as evidências contrárias", afirma.
Ele está no controle
As manipulações criadas
pelo cérebro afetam até a
capacidade mais essencial
do ser humano: tomar as
próprias decisões. Quando
você decide alguma coisa,
na verdade o cérebro já
decidiu -com uma antece-
dência que pode chegar a 10
segundos. Uma experiência
feita no Centro Bernstein
de Neurociência Computa-
cional, em Berlim, compro-
vou que as nossas escolhas
são resolvidas pelocérebro
antes mesmo de chegarem
à consciência. Voluntários
foram colocados em frente a
O SEU
CÉREBRO
DECIDE
AS COISAS
SOZINHO.
DEZ
SEGUNDOS
ANTES
QUE VOCÊ
SEQUER
PENSE.
uma tela na qual era exibida uma sequência aleatória
de letras. O voluntário tinha que escolher uma das
letras e apertar um botão sempre que ela apareces-
se. Os cientistas monitoraram o cérebro dos parti-
cipantes durante o experimento. E chegaram a uma
descoberta impressionante: 10 segundos antes de os
voluntários escolherem uma letra, sinais elétricos
correspondentes a essa decisão já apareciam nos
córtices frontopolar e mediai, as regiões do cérebro
ligadas à tomada de decisões. Cinco segundos antes
de o voluntário apertar o botão, o cérebro ativava os
córtices motores, que controlam os movimentos do
corpo. Isso significa que, 10 segundos antes de você
fazer conscientemente uma escolha, o seu cérebro
já tomou a decisão para você - e até já começou a
mexer a sua mão.
"O indivíduo não é livre para escolher", afirma Re-
nato Zamora Flores, professor de genética do com-
portamento da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). O cérebro restringe previamente as
suas possíveis opções e, pior ainda, escolhe uma delas
antes mesmo que você se dê conta.
É possível lutar contra isso. Lembra-se daquele outro
tipo de pensamento, o lento-analitico? Basta colocá-lo
em ação. E isso você consegue tendo calma, refletindo
sobre as coisas e duvidando das suas escolhas e opi-
niões. Os truques do cérebro são poderosos, mas não
invencíveis. Agora que você sabe como funcionam, está
muito mais preparado para lidar com eles- e se tornar
realmente livre para tomar as próprias decisões. e
PARA SABfH MAIS
COMO A MENTE FUNCIONA, Steven Pinker,
Companhia das Letras.
RÁPIDO E DEVAGAR, Daniel Kahneman, Objetiva.
NOVEMBRO 2015 SU PER 29
ATE NÇÃO
M I N H A
V I O A
Esta reportagem demorou
dois anos para ser escrita.
E a culpa não é (só) da
minha desorganização.
Eu tenho Transtorno
de Déficit de Atenção.
Aqui você vai entender como
meu cérebro funciona.
Texto Rodrigo Rezende
Fotos Somuel Esteves
3 0 SUPER NOVEM BRO 2015
BUZINA DE CARRo, latido de cachorro, choro de bebê,
"Que horas são?", "Rola algo no Facebook?", "Que pro-
grama de TV é esse?", "O que tem para comer?", "Por que
alguém vai ler esta matéria mesmo?". Apenas 5 minutos
sentado em frente ao computador e tudo isso já pas-
sou pela minha cabeça. Tudo ao meu redor fala mais
alto do que escrever este texto. Fecho a janela, checo o
relógio, surfo na net, desligo a TV; como chocolate. Só
então consigo voltar para explicar o que você ganha ao
continuar lendo esta matéria: uma visão sobre como
funciona uma mente inquieta. Nas próximas páginas,
você vai enxergar o mundo pelos meus olhos. Bem-
-vindo ao cérebro TDAH.
A redação da SUPER não é exatamente o melhor
lugar para manter a atenção. Pilhas de livros, revistas
importadas nas paredes, gente falando ao telefone.
Enquanto rabisco no bloquinho, o diretor de redação
me explica a pauta: "Quero que você escreva sobre
TDAH. Mas em primeira pessoa. Sua experiência pode
ser interessante para o leitor". Topo imediatamente.
Marcamos o prazo de um mês para entregar o texto
que você lê agora. Prazo real de entrega: dois anos.
Se você tem TDAH, não é difícil se
identificar com a história acima. Ela ex-
põe um dos traços mais característicos
do Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade: dificuldade em gerenciar
o tempo. O paciente TDAH também se
reconhece facilmente na brincadeira de
Douglas Adams, autor do Guia do Mo-
chileiro das Galáxias: "Amo prazos de en-
trega. Adoro o som que fazem quando
passam voando pela minha janela". Somos
tachados de avoados ou incapazes. Mas
julgamentos como esses não explicam as
nuances do TDAH. Eu perco as contas de
quantas vezes chego atrasado a compro-
missos e esqueço datas de aniversário. Ao
mesmo tempo, tenho a capacidade de ler
textos que me inte ressam por horas a fio
nos ambientes mais caóticos possíveis.
É bem provável que você conheça mais
pessoas com esse perfil. Estima-se que um
em cada 20 adultos apresente sintomas -t
O cérebro
de alguém com
TDAH não consegue
· los· filtrar os est•mu .
recebe tudo ao
mesmo tempo.
BRO 2015 SUPER J1 NOVEM
suficientes para ser diagnosticado com
TDAH. Um estudo de 2012 estimou que
o impacto da doença na produtividade
dos EUA era de até US$ 138 bilhões por
ano, com mais 56 bilhões no tratamento.
Somando também os custos em crianças, a
cifra chega a astronômicos U$ 266 bihões.
Isso supera a depressão, cujo prejuízo foi
medido em U$ 210 bilhões este ano. Por
isso, entender o TDAH é uma tarefa cada
vez mais importante. E é isso que eu fiz,
procurando alguém que conhece o assun-
to bem de dentro. Mais exatamente, de
dentro de seu próprio cérebro.
Uma pilha de exames com cérebros
coloridos. É o que mais chama atenção
na mesa da psiquiatra e autora de livros
Ana Beatriz Barbosa. Mas não consigo
tirar os olhos de um outro objeto: um
bloco de anotações. Dentro dele, vejo a
prova física do que já sabia antes: não sou
o único com problemas de atenção na sala.
Os rabiscos caóticos só podem ter vindo
de um lugar: outro cérebro TDAH.
Enquanto enche de riscos o seu blo-
quinho, Ana Beatriz explica o que há de
errado em nossas cabeças: "O defeito es-
tá numa parte do cérebro chamada lobo
frontal, que fica próxima à testa". O lobo
frontal é uma espécie de gerente execu-
tivo do cérebro. A função dele é coletar
informações e enviar ordens em forma de
impulsos elétricos para as outras partes do
órgão. Mas, como todo bom gerente, exige
um pagamento adequado para trabalhar.
No caso, o pagamento é em dopamina,
uma substância que regula a interação
entre neurônios. Sem ela, os neurônios
do lobo frontal não conseguem conversar
direito. Quando isso acontece, o cérebro
começa a funcionar como uma empresa
sem CEO: ganha o setor que grita mais
alto. Com medo da falência, a empresa
cerebral ainda pode tentar criar uma espé-
cie de caixa dois de dopamina. Aí começa
uma busca desesperada por tudo que pro-
move a produção do neurotransmissor.
açúcar, sexo, nicotina, jogo, álcool, drogas
ilegais. Entre 17% e 45% dos adultos com
IDAH apresentam problemas com álcool.
O risco de se viciar em drogas é o dobro.
Mas como diagnosticar alguém assim?
"Primeiro, é preciso sorte", diz a psiquiatra.
"Pessoas com TDAH muitas vezes não
32 SUPER NOVEMBRO 2015
OS PREJUÍZOS DO
TDAH SÃO
ENORMES: ATÉ US$
266 Bl AO ANO NOS
ESTADOS UNIDOS.
BEM MAIS DO QUE
A DEPRESSÃO.
têm ideia de que sofrem de uma doença".
Sorte foi exatamente o que levou Ana Be-
atriz a ser diagnosticada. Atrasada para
um curso na Universidade Berkeley (EUA)
-"Começava às 8h. Cheguei 9h15"-, foi
obrigada a assistir à única palestra dispo-
nível no horário. O palestrante era Russell
Barldey, um dos pioneiros no estudo do
TDAH. Ao ouvir os sintomas da doen-
ça, Ana Beatriz não teve dúvidas: "Sou
eu!". Logo que a palestra acabou, foi atrás
de Barldey e pediu para fazer um teste
psicológico. Ele voltou com o resultado
positivo. Assim que começou a se tratar,
Ana Beatriz, que cursou ao mesmo tempo
Medicina, Física e Odontologia, conse-
guiu pisar no freio da mente e seguir uma
estrada só: especializou-se em TDAH e
hoje é autora de best-sellers sobre o tema.
Homo desatentus
Savana africana, 30 mil a.C. Em um pe-
queno grupo de Homo sapiens, alguém se
esforça para entender a conversa. Não é
tarefa fácil. Folhas balançando ao vento,
pilhas de ossos ao lado, trilhas de ani-
mais no chão. Tudo capta seu olhar. Mas
o IDAH pode ter sido uma vantagem para
nossos ancestrais. Na luta pela sobrevi-
vência entre caçadores-coletores,levava
vantagem quem possuía uma misteriosa
habilidade presente no cérebro TDAH: o
hiperfoco. Hiperfoco é uma capacidade
de superconcentração característica de
muitas mentes desatentas. Você já deve
ter topado com gente assim: o menino
que não para quieto, mas joga dez horas
de videogame, ou a pessoa que não vai
à aula, mas passa a tarde tocando violão.
Seriam todos descendentes diretos doca-
çador distraído, mas supereficaz. Para ele,
um animal na savana é como um videoga-
me ou um violão: algo que monopoliza o
cérebro. Essa capacidade de ver uma presa
e apagar o resto do mundo conferiu vanta-
gens evolutivas. E possibilitou que os ge-
nes do caçador TDAH chegassem até nós.
"Estima-se que 8o% dos casos de TDAH
têm origens genéticas", diz o psiquiatra
da New York University Lenard Adler.
Mas voltemos ao presente. Faz quatro
horas que escrevo sem parar. Não batu-
co na mesa, como de costume. Nenhuma
janela aberta no navegador. Quem me
conhece pode achar que estou possuído.
E estou: por uma pílula. O mecanismo
exato de funcionamento dos medicamen-
tos para TDAH é desconhecido. Mas os
efeitos mentais são bem familiares. Em
alguns minutos, o cérebro, que funcionava
como um rádio fora de estação, entra em
sintonia. E o impossível se toma possível:
executar uma só tarefa por vez.
Ritalin, Aderall, Concerta, Venvanse.
Esses formam a primeira linha de com-
bate na guerra contra os problemas de
atenção (e têm sido abusados por gente
sem o transtorno, como "anabolizante" do
cérebro). Mas essas armas não são exata-
mente precisas. É possível, por exemplo,
ingerir um medicamento com um alvo
em mente e acertar outro: engolir uma
pílula com a intenção de escrever um
texto e terminar arrumando a gaveta de
meias. Muito menos existe uma espécie
de bomba atômica contra o TDAH: um
medicamento que funcione com 100% dos
pacientes. Para tratar o TDAH, ainda é ne-
cessário alguém que entenda de estratégia
de guerra: um psiquiatra capaz de testar
os medicamentos adequados a cada caso.
Mas agora a pergunta que realmente
interessa: como saber se você tem TDAH?
Se você chegou sem interrupções até aqui,
a resposta mais provável é não. (Mas pode
ser que sim. E você está em hiperfoco
agora). A verdade é que só um profissional
vai saber responder. Mas, se a resposta for
sim, não se desespere. Afinal, um simples
TDAH não impediu você de ler este tex=
to até o final, não é mesmo? E nem me
impedirá de escrever muitos outros. O
PARA SABfR MAIS
MENTES INQUIETAS
Ana Beatriz Barbosa, Principium.
~ a: "' ... :I 111 "' ;; N o "' co ~ w > o z
36 SU PER NOVEMBRO 2015
MARIANA ALMEIDA É APENAS UM ANO
mais nova que o irmão, Pedro. Na escola,
ela não era brilhante, mas estudava um
pouquinho todos os dias e conseguia
manter as notas altas, enquanto ele ra-
ramente era aprovado em alguma ma-
téria sem fazer recuperação. Na família
de gordinhos, Mariana lutava contra a
balança, enquanto Pedro gastava a me-
sada em biscoitos recheados. Quando
ela arrumou o primeiro emprego, como
secretária numa multi nacional, indicou
Pedro para um cargo de office-boy. Mas
o trabalho era puxado, o chefe era nervo-
so, e ele não demorou a pedir demissão.
Nos últimos dez anos, Pedro trabalhou
numa padaria, foi garçom de um bar, alu-
gou um carrinho de cachorro-quente, e
agora está desempregado, mas pensando
em comprar um táxi. Mariana continua
na mesma empresa, onde foi promovida
a secretária executiva, e vive empres-
tando dinheiro para o irmão. Quando se
encontram na casa da mãe aos domingos,
ela fica na saladinha, enquanto ele se
farta na macarronada, mas garante que
naquela semana mesmo vai começar a
jogar futebol com os amigos.
Esta história talvez soe familiar para
você: dois irmãos ou amigos que tiveram
oportunidades muito parecidas na vida,
mas seguiram caminhos completamente
diferentes. O manual de uma vida bem-
-sucedida não é segredo para ninguém
- devemos comer verduras, praticar es-
portes, man ter a calma no trabalh o, eco-
nomizar dinheiro. Se algum dia você já
fez uma lista de resoluções de ano-novo,
é possível que alguns desses itens esti-
vessem presentes nela. Mas é provável
que muitos deles nunca tenham virado
parte da sua rotina. Andar na linha não
é tão simples quanto pode parecer à pri-
meira vista: por trás das tentações há
um intricado sistema cerebral que tenta
Sentir prazer é tão
viciante para o cérebro
quanto usar drogas.
Por isso é tão perigoso.
o tempo inteiro nos levar para o mau
caminho. Se vamos ceder às vontades
ou não, depende do nosso autocontrole,
um dos fatores mais decisivos para o
desempenho da nossa vida.
Por que falar "não"?
A clássica imagem dos desenhos a ni-
mados em que o personagem tem um
anjo num ombro e um diabo no outro
não é exagero. De acordo com as úl-
timas pesquisas, é assim mesmo que
nos comportamos diante das tentações.
É realmente uma batalha o que acon-
tece entre a vontade de sentir prazer
imediato contra o esforço de adiá-lo.
Algumas pessoas são naturalmente mais
descontroladas do que outras, mas, de
maneira geral, todos temos coisas que
conseguimos manter nos trilhos e outras
que descarrilam de vez em quando. Tem
quem seja impecável no trabalho, por
exemplo, mas não consiga levar uma
dieta a sério. Ou quem pratique espor-
tes regularmente, mas não aguente ser
contrariado sem partir para a briga.
Mas qual é o problema de ceder às
tentações? Bem, a existência do futuro.
Se você soubesse que vai morrer ama-
nhã, não teria por que guardar dinheiro
ou passar o sábado à noite estudando.
Nem ficar comendo salada para não en-
tupir as veias de colesterol aos 50 anos.
Essas preocupações só fazem sentido
porque imaginamos que vamos viver
muitos anos ainda. "Seguir nossos im-
pulsos seria adaptável biologicamente
se nós fôssemos projetados para viver
apenas por hoje. E sem preocupação
com o bem-estar dos ou tros", defini-
ram os psicólogos alemães Wilhelm
Hofmann, Malte Friese e Fritz Strack
no artigo Impulso e Autocontrole a Partir
de uma Perspectiva Dual de Sistemas, de
2009. O homem não é o único animal
que precisa lidar com a tentação
do prazer imediato contra os pla-
nos de futuro. (O joão-de-barro
passa dias montando uma casi-
nha no capricho, por exemplo, e
as abelhas constroem colmeias
complicadíssimas para armazenar
alimento.) Mas nós somos os úni-
cos com interesses e necessidades --+
muito mais complexos do que simples-
mente comer e procriar. Queremos, por
exemplo, ter uma vida em sociedade.
Manter relações amigáveis seria pra-
ticamente impossível se todo mundo
resolvesse levar o hedonismo às últi-
mas consequências.
Fazer tudo o que dá na telha afasta as
pessoas próximas. Por isso cada grupo
na história da humanidade criou suas
próprias leis e códigos morais parare-
gular sexo, drogas, comida e jogos. Na
Grécia Antiga, alguns prazeres eram
socialmente aceitos e cultuados na
figura do deus Dionís io, aquele das
orgias e bebedeiras. Na Idade Média,
por outro lado, quase todas as formas
de prazer eram proibidas: as tentações
deveriam ser pun idas com penitências,
e todos viviam sob a ameaça da Inqui-
sição (Está Já no fim do pai-nosso: "Não
nos deixei cair em tentação, amém").
Mas o cerceamento do prazer está pre-
sente em todas as sociedades humanas,
de maneira mais ou menos radical. (No
nosso mundo, essas regras se aplicam
na hora de pegar a última empadinha
do prato, por exemplo -todo mundo se
controla para não fazer a desfeita com
os outros.) Esse cuidado para regular as
tentações faz sentido: poucas coisas são
biologicamente tão poderosas quanto
a sensação de prazer.
Já é tentação
Nos anos 1950, os psicólogos Peter
Mi lner e Ja mes Olds, da Universi-
dade McGill, noCanadá, estavam
testando o cérebro de ratos. A ideia
era implantar eletrodos em uma área
chamada sistema reticular do mesen-
céfalo para examinar o controle do
sono. O teste consistia em deixar os
roedores explorarem livremente uma
caixa retangular com os cantos etique-
tados como A, B, C e D. Cada vez que
os ratos chegavam ao canto A, rece-
biam um pequeno choque do eletrodo.
Durante um experimento com um rato
em especial, entretanto, o eletrodo aca-
bou escorregando e se acomodando em
outra área cerebral, uma região chama-
da septo. Milner e Olds perceberam que
esse ratinho adquiriu o hábito de voltar
O centro de
prazer do
cérebro é tão
poderoso que
ratos que
conseguem
estimulá-lo
deixam de
comer e quase
morrem de
fome.
frequentemente ao canto A, passando
por Já até 7 mil vezes por hora. Ele aban-
donou a comida, a água, os fi lhotes, e
teve de ser retirado do aparato para
não morrer de fome. Sem querer, os
cientistas fizeram um dos mais radicais
experimentos da neurociência: encon-
traram o centro de prazer no cérebro.
No livro The Compass of Pleasure
("A Bússola do Prazer", inédito no
Brasil), o neurologista americano
David Linden conta que mais tarde
descobriu-se que não havia somente
um pequeno ponto capaz de produzir
prazer: havia um grupo de estruturas
conectadas, todas na base do cérebro
e distribuídas ao longo da linha média.
Quando os neurônios dessas regiões
estão ativos, incentivam a liberação
de um neurotransmissor ch a mado
dopamina, responsável pela sensação
de prazer. Diversas áreas do cérebro
são então inundadas pela dopamina,
incluindo as que controlam as emoções,
o aprendizado e, claro, o julgamento e
o planejamento - ou seja, o autocon-
trole. A dopam i na causa uma sensação
de prazer tão poderosa que você terá
vontade de senti-la de novo e de novo.
Por isso qualquer coisa que estimule
essas estruturas cerebrais - comida,
sexo, preguiça - é tão tentadora.
Parece cocaína, mas é só comida
Para piorar, a vontade de chutar o balde
foi moldada em nós ao longo de milênios
e milênios de evolução. Na pré-história,
os homens nem sempre eram bem-su-
cedidos na hora de caçar o jantar. Então
comidas calóricas, que proporcionassem
um estoque de energia por mais tempo,
eram ideais para a sobrevivência. Hoje
em dia, qualquer pessoa acima da linha
de miséria tem uma alimentação regular
a seu alcance, mas o nosso cérebro ainda
está condicionado a preferir as comidas
mais gordurosas ou açucaradas. De fa-
to, o processo é parecido com um vício.
Em cérebro tanto de viciados em drogas
quanto de obesos, é comum haver um
número reduzido de receptores de do-
pamina, o que faz com que circule mais
dessa substância no corpo. A lógica é a
de uma rua sem bueiros que alaga du-
rante uma tempestade. Sem receptores
para absorver a dopam i na, ela sobra no
cérebro. É possível que esses indivíduos
tenham nascido com menos receptores -
o que os tornaria mais vulneráveis ao ví-
cio, ou seja, ao descontrole. Quase todas
as tentações podem potencialmente ser
viciantes: a preguiça, a procrastinação,
a vontade de fazer compras - e o sexo.
Entre nossos antepassados, qualquer
possibilidade de procriação da espécie
deveria ser agarrada com unhas e dentes
(literalmente) - afinal, morria-se cedo,
a concorrência era braba e as ameaças
eram muitas. Hoje em dia, quando a
maior parte do sexo não tem função
reprodutiva, muitos já aprenderam que
não é qualquer noite de amor que vale
a pena (recaídas com ex-namorados?
Bebedeiras?). A tentação está lá, afinal o
prazer sexual também libera dopamina.
Mas o homem moderno já aprendeu que
às vezes vale a pena evitá-la.
A modernidade, aliás, é péssima para
quem quer se controlar. São tantas as
possibilidades que fica difícil optar por
algo sem pensar em todas as opções in-
críveis deixadas de lado. Por que preparar
uma salada, se posso pedir hambúrguer
no meio da noite? Por que economizar
dinheiro, se dá para pagar em dez ve-
zes? Com a internet, o excesso de in-
formações disponível manda para o __.
NOVEMBRO 2015 SUPER 39
espaço qualquer tentativa de controle.
Docinhos explodindo gloriosamente na
tela, a 123 música no YouTube, mais um
quadrinho de memes no Facebook, isso
faz as vezes do diabinho na hora em que
você precisa trabalhar. O mundo mo-
demo foi feito para os descontrolados.
Os genes têm sua dose de culpa.
Diversos estudos, a partir da década
passada, ligaram versões do gene da
monoamina oxidase (MAOA) ao baixo
autocontrole - o que inclui, talvez o
ponto mais polêmico, a propensão à
violência. Mas ainda está longe de estar
escrito na pedra." Apesar da evidência
de que o gene MAOA leva ao risco pa-
ra a violência ser relativamente forte,
possuir uma variante menos funcional
não é, de forma alguma, determinístico",
escreveu o professor de psicologia Paul
Denson, da University of New South
Wales, na Austrália. Denson é autor de
um desses estudos, que verificou em
pessoas com baixo autocontrole uma
atividade exagerada em duas partes do
cérebro responsáveis pela regulação das
emoções, a amígdala e o córtex anterior
cingulado dorsal.
"Não é determinístico" quer dizer que,
não importa com o que você tenha sido
premiado na loteria genética, ainda assim
é possível melhorar seu autocontrole.
Eles estão controlados
Nos anos 1990, o cientista Roy Baumeis-
ter, da Florida State University, resolveu
testar se o autocontrole era um recur-
so ilimitado. A lógica é a seguinte: por
que, depois de se forçar a i r à academia,
muitas pessoas não conseguem resistir
a um brigadeiro de sobremesa? Será que
elas gastaram todo o autocontrole que
tinham? Para isso, Baumeister desen-
volveu um experimento cruel: preparou
uma fornada de cookies com gotas de
chocolate, e deixou que somente alguns
dos participantes os saboreassem. Aos
outros, foram servidos insossos raba-
netes. Mais tarde, ele pediu ao grupo
todo que tentasse responder a alguns
exercícios - que, na verdade, eram in-
solúveis. Ele observou que aqueles que
foram forçados a resistir à tentação dos
cookies desistiram mais rapidamente
'f.O SUPER NOVEMBRO 201S
dos problemas, ficaram apenas 8 minu-
tos tentando resolvê-los. Por outro lado,
aqueles que puderam se empanturrar
de biscoitos insistiram nos problemas
durante uma média de 19 minutos. A
conclusão é a de que nossa habilidade
de nos comprometermos com objeti-
vos a longo prazo depende da nossa
reserva de d isciplina. Se o professor
Baumeister estiver certo, e o nosso au-
tocontrole for limitado, eis aí a primeira
técnica para melhorar seu desempenho.
Bastaria aprender a gastá-lo o mínimo
possível no dia a dia para poder lançar
mão dele no que realmente importa.
Por isso, use-o com parcimônia. Por
exemplo, se no trabalho você gasta o
seu autocontrole tentando evitar bri-
gas com aquele seu colega folgado, é
possível que de noite você não consiga
resistir à porção de torresmo no bar.
Você simplesmente gastou toda a dis-
ciplina que tinha disponível.
Aos poucos, foi ficando claro que o
autocontrole não é uma característica
constante e bem definida, que alguns
têm a sorte de ter e outros não. O suces-
so do autocontrole depende de muitas
variáveis. Uma delas é a dificuldade que
a pessoa sente em se privar de uma coi-
sa específica. Um chocólatra vai sofrer
mais para fazer dieta do que alguém
que não liga para chocolate; ou alguém
que não gosta de ler dificilmente vai
tirar notas altas nas aulas de história.
Se precisamos do autocontrole apenas
porque temos planos para o futuro, é
de se esperar também que a capacidade
de manter o foco em um objetivo seja
importante. Se você cair na primeira
possibilidade de prazer imediato, não
vai chegar a lugar nenhum. Pense no
exemplo: vocêestá meio insatisfeito
com a barriga e decide começar a dieta
na segunda-feira. Na terça é aniversá-
rio de um amigo, e ele marca num bar.
Além da tentação do chope, vem tudo
o que o acompanha: salaminho, amen-
doim, provolone à milanesa, frituras em
geral. Você segura a vontade e pede uma
salada e um suco? E como lidar com a
pressão dos amigos? "Mesmo a pessoa
que quer economizar, se olhar para uma
vitrine em promoção, ficará tentada a ~
As dicas
de ouro
VÃ COM CALMA
O autocontrole não é infinito.
Por isso não o desperdice
se expondo a tentações, como
ir ao bar se você quer emagrecer.
ESTUDE O INIMIGO
Entenda as consequências
negativas de um comportamento.
Bote na cabeça que, sim,
cigarro mata.
ESPALHE AO VENTO
Assuma o compromisso em
público. Se você contar a todos
que está prestando concurso,
eles vão perguntar como vão
os estudos, a data das provas ...
SEJA PRECISO
Transforme objetivos
abstratos em metas. "Perder
2 kg este mês" é mais concreto
do que manter o objetivo
de emagrecer indefinidamente.
CAIA NA GANDAIA
Comemore cada meta cumprida.
Vale comer um quadradinho
de chocolate depois de uma semana
de dieta ou cair na balada depois
de meses estudando para o vestibular.
ENCARE O PERIGO
Ensaie para não ser pego desprevenido.
Assim: "Se meu parceiro me chamar
para uma rodada de pôquer,
eu vou falar que não posso ir".
PERMITA-SE
Às vezes você merece uma
trégua. Se você seguir as
metas com uma rigidez nazista,
a chance de desistir é enorme.
Junto com
QI e status,
o autocontrole
define se
A T
vocesera
bem-sucedido
ounão.Mas
ele é o único
que pode ser
aprendido.
gastar. Se você quer poupar, não é
uma boa ideia passear no shopping",
diz Patrícia Fonseca, pesquisadora de
economia psicológica.
Os benefícios de se segurar de vez
em quando são claros. E também já
foram testados, no mais famoso es-
tudo sobre autocontrole, conduzido
pelo psicólogo austríaco radicado nos
EUA, Walter Mischel. Mischel elabo-
rou um experimento bastante simples.
Convidou um grupo de crianças para
u ma brincadeira. Elas se sentariam de
frente para uma mesa, onde jazia um
marshmallow, e tinham duas opções:
ou esperar pacientemente durante um
tempo e ganhar um segundo marsh-
mallow, ou comer imediatamente o
doce e ficar sem o segundo. Apenas
um terço das crianças conseguiu espe-
rar. Inspirados pelos testes de Mischel,
pesquisadores da Universidade Duke
acompanharam mil pessoas durante 30
anos, avaliando os efeitos da disciplina
e m sua saúde, finanças,e segurança.
O estudo concluiu que quem t inha
problemas de autocontrole na infância
(que comeria imediatamente o primei-
ro marshmallow, por exemplo) acabava
tendo maior incidência de DSTs, de-
pendência de drogas, problemas finan-
ceiros, filhos sem planejamento e até
envolvimento em crimes.
Isso acendeu uma luz na comunidade
científica. Sempre se falou muito sobre
como o status e o QI i n.fluenciam no su-
cesso de alguém, mas tudo indica que o
autocontrole é um pedaço importante da
questão. Não faltam histórias de pessoas
brilhantes que, por falta de disciplina,
não conseguiram passar em um teste
importante. Mas a boa notícia é que, ao
contrário do status e do QI. que são dois
fatores altamente resistentes a mudanças,
o autocontrole pode ser melhorado com
alguns treinamentos simples.
Em seu experimento com o marsh-
mallow, Walter Mischel fez uma ob-
servação: as crianças que conseguiam
esperar pelo segundo doce utilizavam
alguma estratégia de autoproibição:
fosse física (sentando sobre as mãos ou
escondendo o doce, por exemplo), fosse
de distração (como olhando para outro
lado ou cantando uma canção). Assim,
ele percebeu que o autocontrole tinha
menos a ver com um comportamento
naturalmente "zen'' das crianças, e mais
a ver com uma estratégia ou esforço
consciente. (Lembra-se do que o herói
grego Ulisses fez para se defender das
sereias? Como ele sabia que o canto
das sereias poderia seduzi-lo a ponto
de fazê-lo jogar-se ao mar e morrer
afogado, ele pediu que os marinheiros
entupissem seus ouvidos de cera para
que ele não pudesse ouvir o canto delas
e o amarrassem ao mastro do navio.) Foi
isso que fez Mischel: ele sugeriu essas
técnicas às outras crianças que tinham
mais dificuldade em esperar pelo segun-
do marshmallow, e muitas conseguiram
se segurar depois de instruídas.
Controle traz felicidade?
Isso não quer dizer, no entanto, que o
segredo para uma vída bem-sucedida
esteja em sempre abrir mão de suas
vontades. O excesso de controle pode
ser tão prejudicial quanto a falta dele.
Dois pesquisadores da Tufts Universi-
ty resolveram testar as desvantagens
do exagero do autocontrole. A expe-
riência era no complicado assunto das
relações inter- raciais, e mostrou que
pessoas bem intencionadas podem ser
tão cuidadosas para não dizer bobagens
que podem parecer artificiais- a ponto
de parecerem racistas. Na e>."Periência,
alguns voluntários eram submetidos a
exercícios mentais tão desafiadores que
gastavam seu estoque limitado de auto-
controle. Em seguida, exaustos de tan-
to se segurar, eram convidados por um
entrevistador negro para responderem
sobre a diversidade racial nas univer-
sidades. Os resultados foram curiosos:
os que estavam mentalmente esgotados
ficaram muito mais relaxados durante a
entrevista e conseguiram falar natural-
mente sobre o assunto. Já aqueles que
não foram submetidos aos exercícios, e
cujo autocontrole estava intacto, foram
considerados artificiais.
Mas nem é preciso ir tão longe. Às
vezes o prazer que uma hora a mais de
sono proporciona não vale o sacrifício
necessário para acordar mais cedo. Em
outras palavras, de vez em quando é bom
ceder às tentações e simplesmente des-
frutar o momento. "O autocontrole não é
meramente o ato de ser uma boa pessoa
ou ser alguém responsável. É escolher a
quais das tentações você vai ceder - e
depois viver de acordo com essa esco-
lha", diz Daniel Akst, autor do livro We
Have Met the Enemy: Self-Control in an
Age of Excess ("Encontramos o Inimigo:
Autocontrole na Era do Excesso", sem
versão em português). De fato, vocês se
lembram do Pedro, irmão da Mariana,
no começo desta reportagem? Ele não
se arrepende das tardes em que jogava
pique-esconde na rua com os amigos,
enquanto a irmã não saía de cima dos
cadernos. E ela, que não se diz exata-
mente realizada no cargo de secretária
de multi nacional, às vezes pensa como
teria sido se tivesse arriscado abrir uma
escola de inglês em sociedade com uma
amiga, vários anos atrás, em vez de per-
severar na mesma rotina de sempre. Ela
não poderia ser mais feliz? e
PARA SABH ~AAIS
THE COMPASS OF PLEASURE. David J. linden,
Viking, 2011
WE HAVE MET THE ENEMY: SELF-CONTROL
IN AN AGE OF EXCESS.Daniel Akst, Penguin, 2011
TO DO OR NOT TO DO: THE NEURAL S/GNATURE OF
SELF-CONTROL. Mareei Brass e Patrick Haggard
NOVEMBRO 2015 SUPER 43
Eu tomei a droga
Levo uma vida s audável
e me considero bem normal.
Por isso , decidi fazer uma
experiência arriscada -
passar uma semana tomando
modafinil. Veja no que deu .
QUARTA-FEIRA
Onze da manhã. Faz duas horas que tomei o comprimido.
A droga está começando a bater. Não dá nenhum barato nem
alteração de humor. Mas algo estranho acontece na minha
cabeça. Ela fica silenciosa ... e percebo que, pela primeira vez
na vida, não estou pensando em absolutamente nada. Zero.
Parece que o meu cérebro apagou. Chega a dar medo. Alguns
instantes depois, tento pensa r em alguma coisa - e consigo.
Ufa .. . A diferença é que, quando começo algum raciocínio,
ele preenche completamente a minha consciência - não
existe sensação, inspiração, lembrança nem coisa capaz
de me distrair. E um estado desuperconcentração. Bem
impressionante. Tão impressionante que perw o dia todo
refletindo a respeito, e acabo não produzindo quase nada.
Vou para casa, jogo videogame (um passatempo nada
intelectual). deito à 1 da manhã . Não tenho nenhum sono,
mas durmo sem a menor dificuldade. Estranho.
QUINTA-FEIRA
Tive uma noite meio agitada: acordei três vezes. Mas levanto
bem-disposto e cheio de energia para fazer qualquer coisa
- inclusive enrolar no trabalho. (Ainda não inventaram uma
droga capaz de curar a vagabundagem.) Quando finalmente
começo a trabalhar, sinto diferença. Meu trabalho não ficou
mais fáciL Mas ficou menos cansativo - muito menos. Será
que é um efeito psicológico, causado não pela droga, mas pela
expectativa que tenho dela? Talvez. Mas é fato que o modafinil
está agindo no meu corpo. Tanto que eu, que sempre fico
sonolento depois do almoço, só dou meu primeiro bocejo à
noite. Também ganhei uma espinha bem feia, daquelas que
não tinha desde a adolescência. E um efeito colateral típico.
l1ustro1ção iStock/palau8]
SEXTA-FEIRA
Acordo com um pouco de sono. E cadê aquele foco dos outros
dias? Será que a droga está perdendo o efeito? Assim que
termino de pensar isso, ela bate com tudo- e meu cérebro
entra no modo superconcentrado. O problema é que ele
superconcentra na primeira informação que aparece: um
e-mail dos meus amigos, que estão combinando de sair para
tomar umas cervejas hoje à noite. Quero ir, mas é melhor não
(não existem estudos sobre os efeitos da mistura modafinil·
álcool) . Fico frustrado e resolvo tomar um cafezinho. Pra
quê ... meia hora depois, fico extremamente irritado (sem
nenhum motivo). E a parte superior esquerda da minha
cabeça começa a formigar! Cruz-credo.
SÁBADO
Uma droga que aumenta a inteligência não serve só para
trabalhar, certo? Teoricamente, ela serve para qualquer coisa
que envolva inteligência - inclusive as divertidas. Decido
pegar para ler um livro meio cabeçudo, que há tempos estou
querendo começar. A leitura flui depressa, mais do que seria
normaL Mas isso não elimina o fato de que o livro é chato.
Logo desisto.
DOMINGO
Domingo é dia de descanso. Resolvo não tomar a droga
e aproveitar para cair em prazeres mundanos. Saio, como,
bebo e converso a valer, e vou dormir bem tarde.
SEGUNDA-FEIRA
Acho que exagerei na minha folga. Acordo cansado, lesado,
com a cabeça patinando ... Bem segunda-feira. Bem que a tal
pílula da inteligência podia me ajudar agora. E ajuda. Duas horas
depois de tomar o comprimido, estou 100%. Na verdade, mais
que isso. Parece que faço o trabalho de quatro dias em apenas um.
Não estou mais inteligente. Mas estou mais funcional
TERÇA-FEIRA
Hoje é dia de fazer meu segundo teste de Ql. Não contei
para vocês, mas antes de começar esta experiência meu
Ql foi avaliado, numa prova com dezenas de testes, por
uma neurologista. E hoje, sob o efeito do modafinil, vou
refazer a avaliação. É uma sequência de tarefas mentais
bem exigentes, que leva duas horas. Em alguns testes,
que avaliam e forçam a atenção de m aneira mecânica
(encontrar certas figuras numa lista, por exemplo), sinto
que estou arrebentando. Outros testes, como os de
m emória e raciocínio verbal, ficam mais difíceis.
QUARTA-FEIRA
Hoje é o último dia da experiência. Mas decido jogar fora o
último comprimido e para r por aqui. Sim, o modafinil me
deixou mais focado. E me ajudou a pensar mais. Mas o estado
de superconcentração não é natural - eu senti, o tempo todo,
minha mente sendo modificada à força pela droga. É bem
ruim. Recebo um e-mail da neurologista, com o resultado dos
testes e duas surpresas. Primeira: sob o efeito do modafinil,
meu Ql abaixou 8 pontos. Segunda: tecnicamente, sou
superdotado - sem tomar o remédio, meu Ql é 150 (a média
da população é 100). E o suficiente, né. E sem drogas. O
NOVEMBRO 201S SUPER 45
TERAPIA
4 6 SU PE R NOVEMBRO 2015
Nunca tanta gente
consultou um psicólogo para
falar de sua vida no divã.
Mas será que vale a pena gastar
tempo e dinheiro contando
nossa intimidade a alguém
que mal conhecemos?
Texto Denize Guedes
Ilustrocão Corlo Giovoni
JEAN DE OLIVEIRA LEITE BATIA na
namorada. De repente, por causa de uma
discussão ou por terem esquecido uma
das sacolas de compras no supermer-
cado, ele dava tapas e pancadas na mu-
lher que amava. Dois anos de namoro e
algumas s ituações de violência depois,
ela deu queixa na delegacia e terminou
com ele. Os dois estariam separados
até hoje se Jean não tivesse procurado
um analista e ingressado num grupo
de reflexão de homens com o mesmo
problema. Na terapia, entendeu por que,
em um de seus sonhos que tinha a na-
morada como personagem, ela assumiu
a forma de um arame que ele dobrava
sem parar. "Eu não podia dobrá-la me-
tendo a mão", diz. Depois das sessões
de psicoterapia, os dois voltaram. Estão
juntos -e em paz - há três anos.
No ano passado, a bancária Tatiana
Dória não queria mais viver. No fundo
de uma depressão, não se interessava
por nada nem ninguém. Raramente saía:
passava os dias na cama, dormindo ou
assistindo a filmes. Foi quando decidiu
bater à porta de um psiquiatra. Saiu de lá
com uma receita de antidepressivos e um
encaminhamento à psicoterapia. Durante
seis meses, passou por dois terapeutas
de abordagens diferentes, até o convê-
nio médico cortar o benefício. Insistiu
por dois meses, pagando as sessões do
próprio bolso, mas resolveu abandonar
o tratamento por achá-lo inútil. "Procu-
ro o autoconhecimento há muito tempo,
mas realmente não sei se um terapeuta
tem algo a me acrescentar", diz Tatiana,
que preferiu seguir com os remédios e
se dedicar a práticas como meditação. -+
NOVEMBRO 2015 SUPER 47
Assim como Jean e Tatiana, milhares
de pessoas estão insatisfeitas com o que
são ou como estão. Querem se livrar de
fobias, manias obsessivas, conseguir dor-
mir direito, ter forças para sair da cama
pela manhã, deixar para trás dificuldades
sexuais ou simplesmente achar a vida
mais interessante. Cada vez mais gente
resolve desbravar a to rre de Babel que é
o mundo das terapias, habitado por mais
de 400 modelos. O número de psicólogos
deu um salto de 48% desde 2000, de 123
mil para mais de 250 mil. Sem contar o
crescimento do número de psicanalistas,
psiquiatras e outros profissionais, como
os filósofos clínicos. A Agência Nacional
de Saúde Suplementar (ANS) exige que
os convênios ofereçam no mínimo 12
sessões anuais de psicoterapia a todos
os conveniados. Se houve o dia em que
ir a psicólogos era coisa de (usando um
eufemismo educado) "problemáticos",
hoje falar da experiência parece ser um
bom jeito de engatar uma conversa com
os amigos no bar.
48 SU PER NOVEMBRO 2015
A palavra terapia vem do grego the-
rapeúein, que carrega significados como
assistir e cuidar. Desabafar no ombro
do amigo e conversar com um médico
atencioso pode até ser terapêutico - mas
não é um método que afasta o sofrimento
por meio de técnicas apoiadas em fun-
damentação teórica, como as terapias
de verdade. Entre quem frequenta um
psicoterapeuta e quem está pensando em
procurar um, é comum haver dúvidas,
do tipo: vale a pena gastar tempo e di-
nheiro com isso? Não é besteira contar
detalhes da intimidade a alguém que mal
conhecemos e que não oferece nenhu-
ma garantia de eficácia? Enfim, a grande
pergunta: terapia funciona?
Sim e não. Dezenas de pesquisas neu-
rológicas provam que sessões de psico-
terapia modificam conexões neurais e
padrões de comportamento, como acon-
teceu com Jean. Apesar disso, é grande a
possibilidade de você conhecer terapia
e, como Tatian a, ter achado o método
inútil, ineficaz - ou até bizarro.
Por dentro da terapia
A primeira pessoa tratada pela terapia da
palavra se chamava Bertha Pappenheim,
masela ficou conhecida como Anna O.
Foi assim que os médicos Josef Breuer
e Sigmund Freud a chamaram na hora
de narrar o caso clínico que germinou a
psicanálise. Anna o. sorria de alucinações
histéricas, sonambulismo e se recusava a
beber água. Já levava seis semanas inge-
rindo somente a água de frutas quando
os sintomas começaram a desaparecer
- sempre após falar em voz alta sobre o
que a atormentava. "Depois de ter desa-
bafado energicamente a raiva que ficara
dentro dela, pediu para beber e bebeu sem
inibição uma grande quantidade de água,
acordando da hipnose com o copo nos
lábios. Com isso, o distúrbio desapareceu
para sempre", escreveram os dois no livro
Estudos sobre a Histeria, de 1895.
Anna O. fez Freud ter uma sacada ge-
nial: expressar em voz alta pensamentos
opressores e resgatar lembranças trau-
máticas causam efeitos benéficos ao
corpo. Isso parece óbvio hoje em dia,
mas não naquela época. As pessoas então
enxergavam o corpo e a alma (o pensa-
mento e o sentimento) como elementos
que se opunham ou pelo menos não se
comunicavam. Tratavam-se doenças
mentais com procedimentos físicos,
como eletrochoques ou incisões no cé-
rebro. Com a criação do tratamento pela
fala, Freud revolucionou a psiquiatria,
criando a psicanálise.
Primeiro, ele afirmou que todos temos
problemas mentais de menor ou maior
grau. Cada pessoa, para Freud, monta
sua identidade em cima de conflitos
do inconsciente - local dos traumas e
desejos reprimidos na infância. Depois,
para chegar a esses desejos e impulsos
que operam abaixo do nível da cons-
ciência, ele criou todo um conjunto de
técnicas. Colocou um divã para dentro
do consultório (e do nosso imaginário),
onde o paciente deveria sentar e falar
fazendo associações livres, de modo
que o psicanalista pudesse desvendar
as reais motivações por trás daquela
fala e dos sonhos que a pessoa narrava
ter v ivido. "Não apenas Freud inventou
sozinho o campo da psicoterapia, mas o
fez de uma só vez", afirma, no livro Os
Desafios da Terapia, o ps iquiatra lrvin D.
Yalom, professor emérito de psiquiatria
da Universidade Stanford (EUA) e autor
de Quando Nietzsche Chorou.
Nesses mais de cem anos, a psicaná-
lise se multiplicou em diferentes teorias
e abordagens, dando origem a uma área
mais abrangente, a psicologia. Mas a cria-
ção de Freud permanece a fonte onde,
de alguma forma, todas as correntes
da psicoterapia ainda bebem. "Dá para
considerar a psicanálise como o berço
de todo o campo, pelo menos em relação
à maioria das linhas de psicologia pro-
funda", afirmou em entrevista à SUPER
Franklin Goldgrub, que foi professor de
psicologia da PUC-SP*. De modo geral,
o terapeuta com alguma influência de
Freud tenta provocar no paciente um
processo de autoconhecimento, ou se-
ja, de descoberta da raiz das suas mo-
tivações e traços de personalidade. Um
processo que pode durar anos e envolve
diversos passos, como os que se seguem:
Rever o passado. Entre psicólogos, é
comum ouvir a frase "o passado muda
todo dia". A ideia é que podemos vol-
tar aos fatos do passado que mais nos
atormentam e reavaliá-los, dando a eles
outro significado. Fazer urna "arqueolo-
gia da alma", como dizia Freud, passa por
descobrir como nossos pais e os desejos
deles influenciaram a nossa vida. Uma
passagem de Cartas a um jovem Terapeu-
ta, do psicanalista Contardo Calligaris,
explica por que a infância assume papel
tão importante na terapia: "Não é por-
que os eventos da infância sejam mais
marcantes do que os de hoje, mas porque
os eventos de hoje tomam relevância e
sentido a partir de nosso passado e, por-
tanto, de nossa infância".
Tomar consciência. É quando o pa-
ciente descobre o que faz com a própria
vida e tenta vislumbrar o motivo por
trás de suas ações. Geralmente a toma-
da de consciência provoca descobertas
revolucionárias sobre si próprio, do tipo:
"Minha mulher morreu há três anos e
desde então vivo fingin-
O problema é que esse roteiro inspi-
rado nas ideias de Freud pode demorar
para se desenvolver - e ninguém ga-
rante que produza os resultados que
o paciente espera. Tem mais: muitas
das teorias de Freud e outros grandes
psicanalistas não nasceram do método
cientifico - aquele em que um cientis-
ta delimita um universo de pesquisa,
faz análises e a partir dela tira conclu-
sões. Suspeita-se até que Freud tenha
exagerado histórias de seus pacientes
para comprovar sua teoria. "Do nasci-
mento da psicanálise até hoje, várias
ideias de Freud foram descartadas",
diz o neurocientista Renato Sabbatini,
professor aposentado da Unicamp. "A
neurociência, por exemplo, descobriu
que os sonhos têm mais a ver com a
memória do dia anterior do que com
desejos reprimidos."
À medida que as ideias de Freud
foram sendo questionadas, novos tra-
tamentos surgiram. Das mais de 400
técnicas diferentes que existem hoje,
a maioria apareceu a partir da década
de 1960, quando a revolução sexual fez
do que ela está viva" ou
"Sou ranzinza e intole-
rante com as pessoas da
mesma forma como ajo
comigo mesmo".
Responsabilizar-se.
Depois que a pessoa se
dá conta de seus traços
de comportamento, vem
Há mais de um século,
Freud descobriu que
falar cura. Estava
inventada a psicoterapia.
a hora de tomar para si a responsabi-
lidade pelos problemas e deixar de
culpar os outros - os pais, o chefe, a
sociedade ou o marido que decidiu ir
embora. Como diz o psiquiatra Irvin
Yalom no livro O Carrasco do Amor: "Se
a pessoa não se sente responsável pelas
próprias dificuldades, como, então, ela
será capaz de modificar sua situação?"
Não significa se culpar pelos infortún ios
da vida. "Culpar-se é querer se castigar.
Responsabilizar-se é querer mudar. O
objetivo é fazer a pessoa perceber o que
quer e como ela própria se sabota", afir-
mou Franklin Goldgrub.
as pessoas darem mais importância ao
bem-estar do corpo e da mente. En-
quanto a terapia baseada na psicanálise
tradicional permaneceu um processo
demorado, no qual falar de cura e efi-
cácia soa estranho, sua hegemonia foi
dando lugar a modelos mais curtos e
facadas, as psicoterapias breves dinâ-
micas. Uma das correntes mais fortes
é a terapia cognitivo-comportamental
(TCC), recomendada sobretudo a quem
sofre de fobias, como medo de dirigir,
ou transtornos obsessivos, como o
hábito de lavar as mãos várias vezes
por hora. Bem diferente das terapias --.
• Entrevista concedida em 2008; Franklin Goldgrub faleceu &Q j unho passado.
NOVEMBRO 2015 SU PER 49
baseadas em Freud, a TCC quer saber
pouco do passado ou dos desejos repri-
midos do paciente. O tratamento costu-
ma ser mais curto e se concentra no que
a pessoa pensa sobre si mesma e como
esse pensamento se reflete nas ações.
"Para a terapia cognitiva, os sintomas de-
pressivos vêm de pensamentos e crenças
negativas sobre si e sobre o mundo", diz
o psiquiatra Aristides Volpato Cordioli,
organizador de Psicoterapias-Abordagens
Atuais, já em sua terceira edição. Assim
como a TCC, existem técnicas mentais
que fazem você se acostumar a ter pen-
samentos tranquilizantes, levando esse
sentimento a situações de ansiedade.
Freud também vem perdendo terreno
porque se restringiu aos conflitos in-
teriores de um indivíduo, dando pouca
importância a influências sociais nos
sentimentos dele. "O sofrimento psíquico
varia de acordo com o contexto socio-
cultural", diz o psiquiatra e psicanalista
Mário Eduardo Pereira, professor de
psiquiatria da Unicamp. Se na época de
Freud os casos de "histeria" (problemas
50 SUPER NOVEMBRO 2015
femininos que hoje atendem por muitos
outros nomes) proliferavam, provavel-
mente em resposta à repressão sexual
do século 19, a sociedade atual pode nos
deixar mais narcisistas, competidores e
ansiosos porter prazer. "Vive-se hoje em
uma sociedade nada solidária e muito
competitiva, na qual as posições con-
quistadas são sempre incertas. Isso está
fortemente relacionado aos casos, cada
vez mais comuns, de pânico, insônia,
ansiedade, estresse e depressão", diz
Pereira. Se a raiz desses problemas está
no tipo de vida que levamos hoje em
dia, eles não podem ser tratados apenas
pelas técnicas de Freud.
Por dentro do cérebro
Tantas correntes diferentes de psicote-
rapia impõem uma questão: como saber
qual é a mais eficaz ou pelo menos se
alguma delas é eficaz? É aqui que entra
uma outra área da ciência que está se
interessando pelo que acontece no divã.
Pesquisas com neuroimagem funcional,
método que fotografa o fluxo sanguíneo
no cérebro, estão provando que a terapia
baseada na fala causa efeitos permanen-
tes no sistema de aprendizagem, na me-
mória e no processamento de emoções.
Um estudo de 2007, feito na Univer-
sidade de Amsterdã, analisou 20 pessoas
com transtorno do estresse pós-trau-
mático, distúrbio que geralmente atinge
quem passa por traumas como sequestro,
acidentes graves e abuso sexual. Elas fo-
ram submetidas a uma sessão semanal de
psicoterapia breve- inspirada em Freud,
porém focada e mais curta - durante qua-
tro meses. Enquanto isso, outras 15 pes-
soas com o mesmo diagnóstico ficaram
num grupo sem tratamento. No final, o
cérebro de quem fez terapia mudou. Hou-
ve mais atividade em regiões do córtex
pré-frontal, área relacionada a cálculos,
pensamentos práticos e ações que to-
mamos conscientemente. Na prática, o
tratamento deu alívio a sintomas que têm
tudo a ver com traumas, como hiperví-
gilância (estado de alerta permanente) e
recordações aflitivas, que se manifestam
em pesadelos e pensamentos recorrentes.
Imagens
do cérebro
comprovam:
a terapia faz
as pessoas
pensarem melhor.
Alguém pode logo dizer que não é
privilégio da psicoterapiaalterar redes
neurais. E não é mesmo. Com maior ou
menor intensidade, as experiências da
nossa vida provocam mudanças na ati-
vidade cerebral- como na hora em que
ouvimos a seleção de músicas da nossa
banda favorita, recebemos a notícia triste
da morte de alguém ou damos uma boa
caminhada no parque. "O que é bastante
recente é o reconhecimento da comu-
nidade cientifica sobre a intensidade e a
permanência das mudanças alcançadas
pela psicoterapia. Não se imaginava que
o funcionamento do cérebro pudesse ser
alterado tão dramaticamente pelo trata-
mento, e com beneficios tão duradouros",
diz o psicólogo e neurocientista Marco
Montarroyos Callegaro.
É como se o pensamento a lterado
pela terapia fosse a tabuada que a gen-
te não esquece mais. "Os sistemas de
memória e aprendizagem constituem
a base de todas as psicoterapias. Co-
mo o cérebro é uma estrutura plástica,
que se modifica de acordo com nossas --.
TERAPIA PARA A GUERRA
Elo foi chamado de "coração de soldado" no Cuerro de Secessão,
de "choque do bombo" no :z!! Cuerro e de "fodigo do combate"
no Cuerro do Vietnã - quando foi batizado de tronstomo do estresse
pós-traumático. Com os recentes conflitos, o distúrbio reapareceu.
Poro trator os soldados que voltam troumotizodos do I roque,
os americanos usom oti videogomes. Bancado pelo Exúcito,
o psicólogo clinico Albert Rizzo, do Universidade do Sul do Colifómio,
adequou a terapia cognitivo-comportamento I a um gome de guerra,
trotando os soldados com realidade virtual.
COMO ESSE TIPO DE
TRATAMENTO COMEÇOU?
No início, todos imaginavam
que a Guerra do lraque seria
rápida - e que por isso não
haveria soldados com t ranstorno
do estresse pós-traumático.
Em 2004, porém, uma revista
médica publicou um artigo
com números assustadores
de gente traumatizada voltando
do lraque e do Afeganistão.
Os militares reconheceram
o problema e vieram até nós.
Tínhamos adaptado o game Fui/
Spectrum Worrior, que se
parece muito com o ambiente
de guerra do lraque, para incluir
nele elementos úteis à terapia.
COMO A REALIDADE VIRTUAL
CONTRIBUI PARA O TRATAMENTO?
Trata-se de uma simulação em 3D
em que o paciente, com um headset,
pode dirigir um humvee ou andar
por uma vila. É quando
o terapeuta faz coisas acontecerem.
No começo, muda o número de
pessoas na rua. Depois, conforme
o paciente fica mais confortável
e sua resposta ao medo diminui,
adiciona coisas como o barulho
de uma arma a distância ou
de uma bomba. Um helicóptero
que sobrevoa um veículo que
explodiu. Tudo bem gradual.
Montamos um simulador do
ambiente de guerra que inclui
até o cheiro de combustfvel,
pólvora, lixo, borracha queimada,
todo tipo de cheiro da guerra.
Quando uma bomba explode,
eles sentem o chão tremer.
QUAL O PAPEL DA FALA
NO TRATAMENTO?
É o elemento principal. A tecnologia
não cura ninguém. O paciente não
fica simplesmente sentado olhando
o que acontece no mundo virtual.
Eles são encorajados a falar da
experiência, a chorar e a contar
os detalhes. O mundo da realidade
virtual os ajuda a ter condições
de voltar para aquele evento e a
processar a memória emocional.
Nós ouvimos a sua história repetidas
vezes, gravamos e a entregamos
em uma fita no final da sessão.
QUE TIPOS DE SINTOMAS
OS SOLDADOS ESTÃO ELIMINANDO?
Os principais são os que chamamos
de reexperiências. Elas aparecem
em pesadelos e flashbacks, que
talvez sejam os piores sintomas.
Basicamente, o transtorno consiste
em ter atitudes extremas quando não
é necessário. Por exemplo: o sujeito
está sentado do lado de fora de um
café e o escapamento do carro dá
um estrondo. De repente, ele volta
ao lraque. Eles t ambém evitam acon-
tecimentos associados ao t rauma.
Voltam para casa e não querem ir a
canto nenhum, porque acham que
uma bomba vai explodir. Ou, se estão
dirigindo e veem uma pilha de lixo ao
lado da estrada, relembram a guerra
e, eventualmente, não dirigem mais.
De 15 veteranos que completaram o
programa desde 2005, 12 mostraram
melhoras impressionantes. Não
pretendemos eliminar a memória,
mas ajudá-los a não ser assombrados
pelos sintomas do TEPT, que fazem a
guerra continuar dentro de cada um.
NOVEMBRO 201S SU PER 51.
10 GRANDES LINHAS DO AUTOCONHECIMENTD
Desde que Freud inventou a terapia pela palavra, seu mitodo foi questionado,
derrubado, reerguido e refonnado. Hoje, sua influindo está dlspetSD em
antenas de correntes -algumas mais, outJ'Qs menos ~udlanas. Veja abaixo
como du grandes linhas da psicaterapia funcionam.
AlTA INFlUÊJtCIA DE FREUD
PSICANÁUSE
O analista acredita que os problemas
vêm de impulsos reprimidos na infância
do paciente, que passa a maior parte da
sessão falando por meio de associações
livres. O terapeuta geralmente fala pouco,
sem emitir juízo, tentando analisar
fala e os sonhos. Modelo mais antigo,
foi ampliado e modernizado com os
estudos de Jacques Lacan {1901-1981).
PSICANÁUSE JUNGUIAHA
Também chamada de psicoterapia
anaUtica, foi criada por Carl Jung.
discipulo de Freud, que introduziu na
psicanálise o conceito de inconsciente
coletivo- as imagens e as experiências
comuns a todos os seres humanos.
Por isso, o método junguiano leva em
conta, além das questões individuais
do paciente, as influências externas e
coletivas que podem atormentá-lo.
PSICODINÃMICA
Chamada de psicanálise light, baseia-se
em noções tradicionais da psicanálise,
só que é mais breve, com o terapeuta
tentando ativamente engajar o paciente
em um diálogo que o faça reconhecer
e resolver conflitos antigos. É também
mais focada para atingir objetivos
concretos preestabelecidos entre
paciente e terapeuta.
MÍDIA IJIRUÉJICIA DE FABIO
GESTALT
Usando o teatro e outras expressões
artísticas, explora técnicas dramáticas
para construir pensamentos e atitudes
criativas. Com blocos de espuma,
bonecosou almofadas, o paciente
é encorajado a adotar novos papéis
e expressar sentimentos, com o objetivo
de compreendê-los melhor.
TERAPIA DE GRUPO
Abriga teorias e práticas de outras
correntes, com a diferença de ser
praticada em grupo. O convívio com
os outros pacientes funciona como um
microcosmo social- um ambiente seguro
para um novo comportamento. É indicada
para quem sofre de problemas comuns
do seu ambiente e tem dificuldade
de se relacionar com os outros.
52 SUPER NOVEMBRO 2015
INTERPESSOAL
Recomendada a quem passa por
depressão leve ligada a conflitos
pessoais, luto ou mudança repentina
de papéis (um casamento ou um novo
cargo profissional). O tempo da terapia
é predeterminado, e as sessões se
concentram no tempo presente, sem
ligar experiências atuais ao passado.
CENTRADA NA PESSOA
Foca na relação entre o paciente
e o profissional Sem interpretar
pensamentos e comportamentos,
o terapeuta cria um clima de empatia
que perm ite ao paciente explorar
questões que o perturbam e desenvolver
a autoestima. Por isso, é indicada a
quem se sente oprimido pelo mundo
e tem baixa aceitação de si próprio.
BAIXA INFLUÊNCIA DE FREUD
TERAPIA COMPORTAMENTAL
linha bem distante de Freud, é indicada
para quem sofre reações indesejáveis do
corpo diante de manias e fobias (como
medo de aranha ou de avião). Utiliza
técnicas básicas de aprendizagem,
como exposição e condicionamento,
na tentativa de trocar o comportamento
usual por reações mais agradáveis.
Para os criticos, esse tipo de terapia tenta
fazer um adestramento do paciente.
TERAPIA COGNITIVA
Baseada na ideia de que "os homens
se perturbam não pelas coisas, mas
pela visão que têm delas", como disse
o pensador romano Epíteto {60-117). A
terapia cognitiva tenta reconhecer e alterar
padrões de pensamento que incomodam
o paciente, para ensiná-lo a vigiar ideias
automáticas e corrigi-las. Indicada a quem
sofre de depressão e precisa mudar o que
pensa sobre si próprio.
TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL
Utiliza técnicas das duas correntes
ao lado para tentar fazer o paciente
identificar pensamentos e crenças
distorcidas que tem de si próprio. A ideia é
fazer a pessoa perceber seus pensamentos
e procurar corrigi-los, gerando novos
padrões de raciocínio. Indicada para
quem sofre de depressão, ansiedade e
perturbações relacionadas a traumas.
experiências, o tratamento consegue
atuar em determinados circuitos", diz
Jesus Landeira-Femandez, presidente do
Instituto Brasileiro de Neuropsicologia
e Comportamento (IBNeC).
Meses antes da pesquisa holandesa,
uma outra, realizada pela USP, mostrou
resultados parecidos. O estudo envolveu
16 pacientes também com transtorno do
estresse pós-traumático. Eram pessoas
que tinham vivido eventos como a mor-
te de parentes, sequestro e assalto. Em
dois meses, elas passaram por sessões
semanais de uma psicoterapia chamada
exposição e reestruturação cognitiva,
que consiste em revisitar o evento para
então dar a ele um significado menos
traumático. Outros 11 pacientes com o
mesmo distúrbio ficaram numa lista de
espera. Resultado: aqueles que foram
às sessões tiveram mais atividade no
córtex pré-frontal e menos na amígdala.
Como esta parte do cérebro regula nossa
sensação de medo, a relação é direta: a
terapia reduziu o medo e a ansiedade
dos pacientes. Já quem ficou no grupo
de controle não teve mudanças relevan-
tes. "Novos arranjos das sinapses ocor-
rem durante o aprendizado promovido
pela ps icoterapia", diz o psicólogo Julio
Perez, o autor do estudo. "O tratamento
modifica as redes associativas que an-
tes estavam relacionadas à situação que
causava dor e d ificuldade."
Quer mais? Há ainda estudos provan-
do a eficácia da terapia para problemas
especificas, como as fobias. Na Alema-
nha, em 2006, 2 8 voluntárias perderam
o medo de aranha em sessões sema-
nais, de 5 horas, de TCC. Elas tiveram
menor atividade da ínsula e do giro do
cíngulo anterior direito, áreas ligadas
àquelas reações que nós não contro-
lamos, como ficar assustado e com o
coração batendo rápido logo depois
de ver u ma aranha. No Japão, também
em 2006,12 pacientes com síndrome
do pânico se livraram do mal em dez
sessões de terapia comportamental ao
longo de seis meses. O cérebro deles
também deu uma recauchutada nas
áreas ligadas ao medo, à memória e ao
pensamento consciente. "Há indícios
de que as psicoterapias promovem o
fortalecimento das funções executivas,
ligadas ao córtex pré-frontal", diz Lan-
deira-Fernandez. Em outras palavras, a
terapia fez as pessoas pensar melhor.
As pesquisas de neuroimagem indi-
cam que quem completa o tratamento
sai, em geral, So% melhor do que os
pacientes fora do consultório. É um
resultado tão positivo que já está pro-
vocando mudanças na saúde pública
de alguns países. Na Inglaterra, o go-
verno anunciou um investimento de
170 milhões de libras para treinar 3
.6oo profissionais em terapia cogni-
tivo-comportamental. "O valor inicial
do tratamento com antidepressivos é
inferior ao da psicoterapia. No entanto,
no médio e no longo prazo,
A conclusão, publicada em 2007: equi-
valência de novo.
O fato de terapias diferentes funcio-
narem igualmente cria uma hipótese:
talvez a psicoterapia não funcione pe-
lo motivo que os terapeutas apontam,
mas por razões não tão confortáveis à
psicologia. Dylan Evans, pesquisador
especializado em psicologia evolutiva,
defende uma dessas razões incômodas:
"Se as diferentes técnicas não têm qual-
quer impacto na recuperação, então é
plausível que os beneficios se devam à
única coisa que todas as abordagens têm
em comum. A crença do paciente de
que está recebendo ajuda médica de bo-
a-fe"'. Ou seja: efeito placebo- o mesmo
que faz as pessoas se sentirem melhor
depois de tomarem um remédio de fa-
a melhor relação é a do tra-
tamento psicoterápico, que
tende a apresentar menor
reincidência da depressão
e efeitos mais duradouros",
diz Callegaro. O resultado
também fez até os mais cé-
ticos admitir as vantagens da
terapia. "Uma coisa é a teoria
ultrapassada de Freud, outra
Enquanto Freud era
questionado, novos
tratamentos surgiram.
Hoje, são mais de 400.
são os efeitos comprovados da prática",
diz o neurocientista Sabbatini.
Por fora da terapia
Mas tem um probleminha. A neu-
roimagem também levanta questões
que incomodam a psicologia. Em
grande parte das pesquisas, há um
paradoxo aterrador: não importa se
o paciente passou por um tratamento
inspirado em Freud ou uma prática
mais nova. No fim, o efeito de todas
é muito parecido. Ou seja: em eficá-
cia, abordagens distintas não fazem
diferença nenhuma entre si. Incon-
formados com isso, pesquisadores da
Universidade de Leeds, na Inglaterra,
tentaram pôr fim ao mistério. Durante
três anos, eles estudaram 5.500 pa-
cientes que passaram por três tipos
de terapia: cognitivo-comportamental,
psicodinâmica e centrada na pessoa.
rinha ou passarem por uma benzedeira.
Evans conta em seu livro Placebo
(sem tradução para o português) que
essa possibilidade teria assombrado
Freud até a morte. O Pai da Psicaná-
lise acreditava na supremacia do seu
método e, tão logo diferentes linhas se
formaram dentro da escola psicanalítica,
passou a atribuir os efeitos provocados
por essas dissidências à pura sugestão.
"Logo se tomou claro que seus próprios
pacientes não diferiam em recaídas da-
queles tratados por heréticos como Jung
e Adler", afirma Evans.
Assim se desenrola um novelo de
pontos fracos dos tratamentos psi-
cológicos. Apesar de as pesqui sas
neurológicas provarem os efeitos da
terapia, não há provas de que isso acon-
tece pelos motivos que os terapeutas
apontam. "Na área da saúde mental,
é difícil até saber qual é o distúrbio __.NOVEMBRO 2015 SUPER 53
que a pessoa apresenta", diz Sabbatini.
Distúrbios mentais não são como dores
de cabeça - não h á certeza do que o
paciente tem e nem se o tratamento
vai ser eficaz A falta de fundamentação
faz das terapias um serviço estranho:
elas oferecem um tratamento sem saber
se ele vai dar certo. Por causa disso, "a
psiquiatria é uma das últimas áreas da
medicina que ainda não conseguiu o
status de ciência", diz Sabbatini.
É o que os especialistas chamam de
fase empírica não científica: quando se
descobriu, pela prática, que uma erva ou
uma atitude ajudam a prevenir ou curar
uma doença, mas sem ninguém saber
exatamente por quê. Por exemplo: no
século 18, o médico italiano Giovanni
Lancisi acreditava que a malária era
contraída ao se respirar o ar fétido de
pântanos - daí o nome da doença, que
vem de "maus ares". De fato, deixar de
circular em pântanos evita malária, mas
não por causa dos maus ares, e sim por-
que o lugar é cheio de mosquitos - estes,
sim, a verdadeira origem da doença. As
psicoterapias podem estar nesse nivel.
Baseiam-se numa crença forte e têm
alguma eficiência, mas ninguém sabe
exatamente como a melhora acontece.
E mais: pode haver uma causa e um
tratamento mais acertados, que ainda
não foram descobertos.
Um exemplo é a genética. Por muito
tempo, acreditou-se que a esquizofre-
nia era um mal psicológico que deveria
ser tratado no divã. Quando vieram à
tona su as raízes genéticas e químicas,
a psicoterapia para tratar esquizofre-
nia virou coisa do passado. Do mesmo
modo, cada vez mais pesquisas ligam
os genes à predisposição ao comporta-
mento depressivo. Em 2008, uma pes-
quisa de biólogos evolutivos dos EUA
mostrou que a hiperatividadE' tem laços
genéticos. Psicólogos costumam expli-
car esse distúrbio como uma estratégia
de filhos para chamar a atenção dos
pais. Já os biólogos americanos des-
cobriram que há uma razão evolutiva
para a hiperatividade existir. Quando o
ser humano vivia em grupos nômades,
não conseguir parar quieto era uma
vantagem competitiva para caçadores e
pastores. Hoje, porém, a vida sedentária
fez desse traço um problema. Pesquisas
como essa mostram que, no futuro, os
cientistas podem descobrir que tratar
depressão ou hiperatividade no divã
é tão equivocado quanto achar que os
ares do lodaçal causam malária.
Trapalhadas no divã
Para os psicoterapeutas, porém, a his-
milhares de novos psicólogos. Muitos
saem de faculdades pouco prestigiadas,
não fazem um curso de especializa-
ção num método ou num distúrbio
e mesmo assim abrem seus ouv idos
para tratar das razões individuais do
ser humano - talvez o objeto de estudo
mais complexo que existe. Além disso,
terapeutas também têm seus proble-
mas emocionais, que podem resvalar
para o paciente. Nem todos mantêm
uma necessidade básica: sua própria
tória é outra. Se linhas
diferentes de tratamen-
to funcionam da mesma
forma , não significa que
o efeito da terapia seja
Dá para
confiar
terapia. "Como é possí-
vel uma pessoa guiar os
outros num exame das
estruturas profundas da
existência sem examinar
placebo ou coisa pareci- numa a si mesmo?", questiona
• A • da. E sim que a eficácia
não depende do tipo
de tratamento, mas da
vontade do paciente
em amadurecer, da ha-
bilidade do terapeuta e
sobretudo da relação que
os dois desenvolvem.
c1enc1a Yalom. Entre os resulta-dos da falta de análise
do terapeuta, está o de
seduzir ou deixar-se
seduzir pelo paciente.
Não raro terapeutas mal
-quenao
Pouca gente gostaria,
por exemplo, de se tratar
com quem se comprome-
te mais com a doutrina
em que se formou do que
com o paciente. E passa
conhece
bem a
causado
que tenta
tratar?
analisados têm relacio-
namentos amorosos
com clientes.
"Se fôssemos subme-
ter terapeutas a um con-
trole estatístico, poucos
sobreviveriam", diz o
as sessões tentando encaixar o pobre
coitado na teoria. Críticos da psicanálise
chamam essa prática de "cara eu ganho,
coroa você perde". É o caso do analista
convicto de que o rapaz sofre do clássico
complexo de Édipo, quer matar o pai
para ficar com a mãe. Se ele concorda
com a interpretação, perfeito. Se não, é
porque está reprimindo impulsos se-
xuais. "Um dos desafios é não tornar o
nosso fazer um leito de Procusto", diz
Julieta Quayle, um dos presidentes da
Associação Brasileira de Psicoterapia.
No mito grego, os hóspedes de Procusto
não saíam vivos de sua casa, pois ele
cortava ou esticava seus pés para que
coubessem no tamanho exato da cama
que oferecia.
Também há o problema da má for-
mação. A cada ano, o Bras il ganh a
neurocientista Sabba-
tini . Mas, como grande parte do su-
cesso do tratamento depende de quem
está se tratando, é muito difícil avaliar
um terapeuta. Para o profissional, fica
fácil culpar o paciente pela ineficácia
das sessões. Diante disso, faz sentido
a metáfora que o psicólogo clínico
americano Scott Miller usa para falar
do paciente: cliente herói. "Quer o te-
rapeuta funcione ou não, depende do
cliente, e de suas habilidades heroicas,
levantar-se contra as coisas horríveis
que lhe aconteceram", afirma ele.
A terapia no futuro
A falta de certeza do tratamento pe-
lo menos tem uma vantagem: exigir
terapeutas cada vez mais focados em
resultados, que usem técnicas mais
científicas para descobrir o problema
do paciente. "No futuro, talvez possa-
mos diagnosticar os transtornos por
meio de exames de neuroimagem", diz
Landeira-Fernandez.
Na hora do tratamento, uma das
tendências é que cada vez mais os
profissionais se especiali zem no
d istúrbio e não numa doutrina in-
telectual. Um exemplo é o trabalho
do psicólogo clínico Albert Rizzo, da
Universidade do Sul da Califórnia.
Ele adequou a terapia cognitivo-com-
portamental a um game de guerra e
tratou soldados que sofreram trau-
mas no Iraque. "Jovens acostumados
à realidade virtual , eles se sentem
incentivados a voltar aos eventos da
guerra pelo computador", diz Rizzo.
Mas também existe a tendência
oposta: de que algumas correntes fi-
quem ainda mais distantes da ciência
e próximas da fi losofia, criando sessões
nas quais a cura seja um fator secundá-
rio. "Vivemos questões existenciais que
acompanham o ser humano há séculos",
diz o filósofo Lúcio Packter, pioneiro da
filosofia clínica no Brasil. Não à toa, o
psiquiatra lrvin Yalom dedicou o livro
A Cura de Scllopenhauer aos filósofos
clínicos - que ele chamou de terapeutas
do futuro: "Nós [os psicólogos] fazemos
parte de uma tradição que remonta não
só aos nossos ancestrais imediatos da
psicoterapia, começando com Freud
e Jung, e todos os ancestrais deles -
Nietzsche, Schopenhauer, Kierkegaard
-,mas também Jesus, Buda, Platão,
Sócrates, Galeno, Hipócrates e todos
os outros grandes líderes religiosos,
filósofos e médicos que se ocuparam
de cuidar do desespero humano". Essa
é uma venerável agremiação. O
PARA HBfR 1.\AIS
OS DESAFIOS DA TERAPIA. lrvin Yalom. Ediouro.
PLACEBO. Oylan Evans. HarperCollins
Publishers Ltd.
PSICOTERAPIA$- ABORDAGENS ATUAIS.
Aristides Volpato Cordioli. Artmed.
ESTUDOS SOBRE A HISTERIA.
Sigmund Freud. lmago.
NOVEM BRO 2015 SUPER 55
SAVANT
..
. .)
-· 4.
... s
.. - ~
,
OS MAIORES GEREBROS DO MUNDO
As mentes mais extraordinárias da Terra pertencem a pessoas
que mal conseguem falar ou calçar os próprios
sapatos. Conheça os savants - e o que eles podem nos
ensinar sobre os limites da inteligência humana.
Text;g~il)_qldo_,)q_s_é L.Jlll.es e Alex_cmg.r..e Versignossi ~dj_ç_ão Fobio Marton Design Alessoi]SIE.!J.Jl.ejg_uins
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56 SUPER NOVEMBRO 2015 lmaaens Cettylmllges
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58 SUPER NOVEMBRO 2015
KIM PEEK LIA UM UVROde 300 páginas em 40 mi-
nutos. Uma página com cada olho. Desde a infância
até sua morte em 2009, aos 58 anos, o americano leu
mais de 9 mil livros, mais ou menos um a cada dois
dias. E com uma diferença em relação a você: ele não
esquecia nada do que lia. Kim sabia de cor a história de
todos os países, seus p residentes, quando eles nasce-
ram, quem foram as esposas deles. Recitava qualquer
trecho da Bíblia, do Alcorão ou da estrutura interna
de um ônibus espacial.
Mas o que Kim fez era pouco perto do que o britânico
Daniel Tammet faz. Tammet simplesmente inventou
uma matemática particular. Pergunte para Daniel quanto
é, digamos, 27 elevado à 5a potência. Ele vai responder
rapidinho que isso dá 10.460-353.203. Só que sem ter
feito uma conta nem decorado nada. Os resultados
surgem por mágica na cabeça desse inglês timido de
36 anos. E ele não é incrivel só com números. A rede
americana de TV PBS o desafiou a aprender islandês,
uma língua que até quem nasceu na Islândia acha com-
plicada, em uma semana. Sete dias depois, Daniel estava
num talk show em Reykjavik contando que o idioma
deles era "mjog fallegur" ("muito bonito") - era a u a das
línguas que ele aprendia a falar fluentemente.
Daniel e Kim, diga-se, têm outra coisa em comum
além desses superpoderes: os dois foram diagnosticados
com transtornos mentais. Por muito tempo, achou-se
que Kim era autista, mas um estudo em 2008 revelou
que ele provavelmente tinha a rarissima síndrome FG,
o que fez com que não tivesse um corpo caloso, parte
que conecta os dois lados do cérebro. Ele mal conseguia
falar, não sabia abotoar a camisa e, quando criança, lhe
recomendaram internação para o resto da vida. Daniel
tem sindrome de Asperger, um transtorno do espectro
do autismo. Ele é mais comunicativo, um rapaz bem
simpático até, mas se sente perturbado quando anda em
ruas movimentadas e é tão desligado que não consegue
pegar um ônibus sem se perder. E eles não são únicos.
Isso de combinar algum transtorno com brilhantismo,
ou até genialidade, em certas áreas, é conhecido como
síndrome de savant ("sábio", em francês), uma condição
raríssima que desafia as ideias sobre como a mente
funciona. Kim era conhecido como o "megasavant".
Ninguém deveria ser capaz de decorar com pre-
cisão a quantidade de informações que os savants
(vamos chamá-los assim, daqui para a frente) conse-
guem acessar sem o menor esforço em seus "discos
CÁLCULO
SAVANT
Daniel Tammetfoi o primeiro savant que
conseguiu descrever como sua mente faz cálculos
sobre-humanos sem fazer força. Veja como. Daniel reconhece
todos os números
primos até.
(E nem pense em tentar você mesmo!)
PENSE EM 30 ENCAIXE PRONTO!
Ele imaginou formas para
todos os números entre o
e 10 mil. Cada um ganhou
identidade própria.
Para multiplicar, ele aproxima
mentalmente os "números"
Então Tammet lembra que
forma tem o número que se
encaixa melhor no espaço
vago. E dá a resposta certa.
e deduz como preencher o
espaço entre eles.
rígidos" cerebrais. Também não parece
fazer sentido a maneira como muitos
deles lidam com a matemática: fazer
contas gigantes é, para eles, uma ati-
vidade não consciente, como andar
de bicicleta. E se pessoas com men-
tes comuns aprendessem a fazer isso?
Será que todo mundo tem um "savant
adormecido" dentro do próprio cérebro?
É o que veremos a seguir.
"Idiotas sábios"
A primeira descrição que temos do
savantismo foi feita em 1887 por John
Langdon Down, psiquiatra britânico
mais conhecido por ter feito também
o primeiro relato científico sobre a sin-
drome de Down. Uma das principais
experiências de Down com savants en-
volveu um paciente que conseguia reci-
tar de cabeça o livro O Declínio e Queda
do Império Romano, um catatau de seis
volumes. Down batizou os portadores
do problema de "idiotas savants" (calma,
na época "idiota" era um termo técnico).
Alguma forma extraordin ária de
memorização parece estar por trás de
todos os casos de savantismo, mas é
bom qualificar essa afirmação: trata-se
de uma memória diferente da que você
usaria para decorar um número de tele-
fone, por exemplo. Parece envolver pouco
pensamento consciente e, muitas vezes,
nem exige compreensão do que está sendo
decorado. Darold Treffert, psiquiatra da
Universidade de Wisconsin em Madi-
son (EUA), relata o caso de dois gêmeos
americanos com dano cerebral congênito,
George e Charles, que não conseguiam fazer contas
de somar simples, mas se divertiam gritando um para
o outro números primos (os que só são divisíveis por 1 e
por eles mesmos) de 20 digitos, da ordem de quintilhões.
Em comparação, a sua memória só conseguia lidar com
sete ou oito algarismos. É inconcebível fazer operações
mentais conscientes com números desse tamanho.
George e Charles, assim como Kim Peek e vários
outros savants, também eram calculadores de calen-
dário. Se você dissesse a Peek em que dia do mês e
ano nasceu, ele respondia imediatamente com o dia
da semana em que você veio ao mundo.
O preço que se paga para ser um savant é alto. Em
geral, esses indivíduos são 10% dos autistas. Daniel
Tammet é uma exceção. A síndrome de
Asperger é uma forma moderada de au-
tismo, e tem ganhado bastante visibilidade o b r i 1 h anti s mo
nos últimos anos, com seus portadores se
organizando em prol da aceitação. Os "as-
pies", como chamam a si mesmos, têm boa
capacidade verbal, embora se compliquem
em situações sociais.
Além de ser um savant, Tarnmet também
tem sinestesia, uma forma rara de percep-
ção que faz o cérebro misturar sentidos -
sons podem ter cores associadas a eles, por
exemplo. E isso toma sua mente ainda mais
fascinante. A sinestesia dele é numérica. Ele
excepcional combinado
com um transtorno
mental ganhou o nome
de "savant", dado pelo
mesmo psiquiatra que
primeiro descreveu a
Síndrome de Down.
afirma que todos os números de o a 10 mil possuem
formas visuais específicas e até personalidades, como
se fossem indivíduos mesmo. "O 11 é amigável, o 5
é barulhento e o 4 é meu número favorito, porque é
quieto e tímido como eu", conta Tammet em Nascido
num Dia Azul, sua autobiografia.
O britânico também reconhece todos os números
primos até 9·973 porque eles lhe parecem "redondos e li-
sos, como os seixos numa praia". Ao fazer multiplicações
enormes, seu tipo favorito de contas, Tarnmet visualiza _....
NOVEMBRO 201S SUPER 59
Num experimento na
Austrália, pessoas
tiveram partes de seu
cérebro desligadas ,
simulando dano
as tais formas dos números que estão sendo
multiplicados lado a lado, separados por
um espaço. Essa brecha tem exatamente o
formato do produto da multiplicação: basta
preenchê-la para que ele saiba a resposta
certa (veja na página anterior).
O neurocientista Vilayanur Ramachan-
dran, do Centro de Estudos do Cérebro de
San Diego, testou as formas numéricas de
Tammet, pedindo que ele as moldasse usan-
do massinha de modelar e, no dia seguinte,
neurológico . Com isso,
tornaram-se como os
savants por um tempo.
60 SUPER NOVEMBRO 2015
as refizesse. O resultado foi consistente, ou
seja, ele associa sempre a mesma forma ao
mesmo número. As pessoas normais tendem a pensar
nos números como abstrações puras. Tammet os trans-
forma em objetos concretos, tão fáceis de entender quanto
um cachorro ou um gato. Esse pode ser um segredo
da inteligência savant, de acordo com Darold Treffert.
A memória que mais usamos para atividades intelectuais
é a consciente, que nos ajuda a lembrar se "espaço" se
escreve com sou ;. Mas há outro tipo importantíssimo
de memória: a implícita- aquela que nos permite trocar
as marchas do carro sem pensar.
Tammet se tornou um ícone do lado positivo da
síndrome de Asperger. Depois de sua autobiografia de
2007, ele publicou doisoutros best-sellers, que ainda
não chegaram ao Brasil. Em 2012, ele foi aceito na Royal
Society of Arts.
Você pode ser um savant
Ao que parece, as complicações mentais que os savants
têm os deixam sem acesso a grande parte da memória
consciente. Então seu cérebro simplesmente transfere
as funções dela para a implícita. E eles fazem automati-
camente coisas que temos de pensar (e muito) para fazer.
É uma capacidade não muito diferente de reconhecer um
rosto. Nós nunca precisamos de uma descrição verbal
da cara de um amigo para determinar que ele é o Paulo,
e não o José: nosso cérebro simplesmente sabe. Para
Tarnmet, os números funcionam assim. E talvez você
seja mais parecido com ele do que imagina.
É o que pensa o neurologista Allan Snyder, da
Universidade de Sydney. Para ele, existe um Daniel
Tarnmet dentro da sua cabeça. Esse "savant interior",
segundo o australiano, foi quem fez você aprender a
falar. Se você se mudar para a Islândia e tiver um filho
lá, terá urna criança bilingue em casa. Ela vai aprender
português em casa e islandês na escola, e falar os dois
idiomas. Você pode até aprender a língua local, mas
nunca terá a fluência do seu filho.
Essa habilidade mágica de "sugar" um idioma exis-
te apenas na infância porque a mente vai "calejando"
com o tempo. Por exemplo: qm lê um txto scrito dste
jto consegue entender a frase porque o cérebro criou
padrões para cada uma dessas palavras.
Com os sons de um idioma estranho é
o contrário: sua mente está tão calejada
com o português que decifrar novas lín-
guas de ouvido não é fácil. Já os savants
não teriam esse problema. Para Snyder,
o cérebro deles impede que esses calos
mentais apareçam. Daí a capacidade de
aprender islandês em uma semana.
E a coisa mais maluca aqui é que Sny-
der tentou fazer com que esse savant que
um dia esteve na sua cabeça apareça de
novo para dar um oi. Como? Aplicando
únãs no crânio. A ideia foi "desligar" tem-
porariamente partes da massa cinzenta a
fim de simular os danos que os savants
têm no cérebro. E assim fazer com que
você veja o mundo como se fosse um
deles. E não é que deu certo? Em 2005,
Snyder fez com que pessoas submetidas
ao experimento "virassem savants" por
algum tempo, desenhando de forma mais
precisa ou encontrando com mais facili-
dade erros de digitação.
Talvez Peek, Tarnmet e outros savants
estejam em grande companhia: Isaac
Newton e Albert Einstein. Não, não exis-
te prova nenhuma de que eles portavam
essa condição. Mas alguns neurologistas
acham que os dois apresentavam, sim,
pelo menos alguns sintomas da síndrome
de Asperger- principalmente inabilidade
social e obsessões compulsivas. De fato,
Newton mal abria a boca e ficava imerso
no trabalho a ponto de não comer. E Eins-
tein, que se comportava como um autista
até os 7 anos, repetindo frases sem parar,
era tão desligado que certa vez não per-
cebeu um terremoto enquanto divagava.
Talvez nunca saibamos se eles eram ou
não versões moderadas de Daniel Tam-
met. Mas Einstein pode ter deixado uma
pista: "Uso sinais, imagens mais ou menos
claras, como ferramentas para pensar. Elas
se encaixam sozinhas, voluntariamente.
Esse jogo de combinações me parece mais
essencial que construções lógicas com
palavras". Qualquer semelhança disso com
o que você leu nestas páginas talvez não
seja mera coincidência. e
PUA SHEH MAIS
NASCIDO NUM DIA AZUL, Daniel Tammet,
Estrela Polar
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FORAM MILÊNIOS de chutômetro.
Quem quisesse entender a mente hu-
mana só tinha uma coisa a fazer: espe-
cular. Mas eis que, na década de 1990,
os cientistas puderam ver nosso cérebro
em pleno funcionamento pela primeira
vez na história. Tecnologias avançadas
pareciam colocar ao alcance o fim dos
mistérios da mente.
Seguiram-se duas décadas de muitos
progressos - ou não? Talvez não: come-
ça a emergir, em um grupo eclético de
pesquisadores, a sensação de que todas
as imagens coloridas do sistema nervoso
em ação não passam de miragem. Ainda
estariamos muito longe de compreender
como o cérebro produz a consciência.
"Quando se fala em imagens do cé-
rebro, ver pode equivaler a acreditar,
mas não necessariamente a compreen-
der", afirmam a psiquiatra Sally Satel e
o psicólogo Scott Lilienfeld, autores de
Brainwashed: 7he Seductive Appeal ofMin-
dless Neuroscience ("Lavagem cerebral: O
apelo sedutor da neurociência irrefleti-
da"). O livro é apenas um de uma leva que
busca baixar a bola dos neurocientistas.
A grande questão é o que se pode e o
que não se pode saber sobre o funciona-
mento do cérebro. Estamos falando de
um sistema nervoso com mais de 100
trilhões de conexões paralelas, trabalhan-
do de forma frenética para manter nosso
corpo funcionando. O que chamamos de
consciência é uma parte relativamen-
te pequena dessa conta. Ironicamente,
é onde tudo parece se complicar.
Alguns acertos
Um dos lampejos mais antigos da neuro-
ciência - obtido ainda na época em que
o imageamento sofisticado não estava
disponível - é o de que o cérebro é di-
vidido em módulos. Cada pedaço seria
responsável por uma certa função. Mas
as coisas não são tão simples assim.
No cérebro, temos um fenômeno
conhecido como plasticidade. É a ca-
pacidade de modificar as conexões ce-
rebrais para adquirir novas habilidades.
Graças a essa capacidade constante
de reorganização, podemos aprender
novas coisas e produzir memórias.
Ou sofrer um acidente cerebral, mas
recuperar movimentos na fisioterapia.
Ou tocar piano muito bem- a área do
cérebro responsável pelo movimento
dos dedos se expande nos pianistas.
A plasticidade foi confirmada e reforça-
da em anos recentes com técnicas que
permitem ver o cérebro trabalhando
em tempo real.
O novo passo é, nessa tempestade de
impulsos elétricos, conseguir ver ima-
gens. Imagens mesmo: em 2011, pesqui-
sadores da Universidade da Califórnia
em Berkeley conseguiram reconstruir
imagens coloridas obtidas a partir da
visão de voluntários usando ressonância
magnética funcional. Os vídeos gerados
não são uma perfeição, mas permitem
ver vultos das imagens a que as pessoas
foram expostas enquanto estavam na
máquina de ressonância. Eles esperam
que, no futuro, seja possível gravar so-
nhos para rever na televisão quando
estiver acordado.
Inovações como essas fazem parecer
que, finalmente, o entendimento de co-
mo funciona nosso pensamento está a
apenas um passo ou dois de distância.
Só que não.
Várias falhas
Às vezes, os neurocientistas se entu-
siasmam tanto que começam a ima-
ginar ter explicado coisas que estão
longe de ser resolvidas. "A despeito de
inferências bem informadas, o maior
desafio do imageamento é que é muito
difícil os cientistas olharem para um
ponto ativo em uma imagem cerebral
e concluírem com certeza o que está
acontecendo na mente da pessoa", di-
zem Satel e Lilienfeld.
Um exemplo eloquente de como eles
podem escorregar na casca de bana-
na aconteceu em 2008, quando um
grupo de neurocientistas da empresa
FKF Applied Research, de Washington,
tentou enxergar o "posicionamento
político" no cérebro de voluntários
indecisos sobre sua preferência na
eleição presidencial americana. Eles
foram colocados em máquinas de
ressonância magnética e expostos a
imagens de diversos pré-candidatos
democratas e republicanos. Segundo
suas conclusões, publicadas em artigo
no jornal The New York Times, os dois
pré-candidatos mais impopulares eram
John McCain e Barack Obama, meses
depois indicados por seus partidos.
Obama ganhou aquela eleição e era
tão "impopular" quefoi reeleito.
Para a dupla de neurocéticos ameri-
canos, há fatores intangíveis na com-
preensão da mente que nunca surgi-
rão em imagens cerebrais. "O domínio
neurobiológico é de cérebros e causas
físicas. O domínio psicológico é de
pessoas e seus motivos. Ambos são
essenciais para um entendimento com-
pleto de por que agi mos como agimos",
escrevem a psiquiatra e o psicólogo.
E o que pensa um neurologista, mais
acostumado aos fatos nus e crus da fi-
siologia cerebral? Se esse neurologista
for o americano Robert Burton, a opi-
nião não é muito diferente. "Olhar para
as mais detalhadas imagens do cérebro
não capturará o que sentimos quando
experimentamos amor ou desespero,
tanto quanto examinar os pixels indi-
viduais numa pintura não lhe dará um
senso geral do quadro", afirma.
Um dos desafios das pesquisas de
neurociência é que, para correlacionar
um tipo de pensamento a um padrão de
atividade cerebral, é preciso que o vo-
luntário relate o que está pensando. Aí
fica fácil dizer que visualizaram "amor"
ou "ódio" no cérebro. Mas é quase uma
redundância. O voluntário já sabia o que
estava sentindo, e não precisava de uma
imagem cerebral para provar! Por outro
lado, sem a informação de quem está "do
lado de dentro" da mente, o padrão de
atividade em si não permite mais que
inferências muito gerais.
Mentes que mentem
Em seu livro A Skeptic's Cuide to the
Mind: What Neuroscience Can and Cannot
Te li Us About Ourselves ("Um guia cético
para a mente: o que a neurociência pode
e não pode nos dizer sobre nós mesmos",
sem versão em português), Burton su-
gere que acreditar cegamente no poder
da neurociência pode levar a situações
dramáticas. Com ampla experiência na
prática médica, ele lembra os casos em
que a pessoa fica em coma profundo, ou
em estado vegetativo, por vários anos.
Alguns neurocientistas têm investi-
gado o nível de atividade cerebral nesses
pacientes e sugerido, a partir disso, que
eles ainda estão conscientes, apesar de
incomunicáveis. Burton defende que
essa é uma conclusão precipitada, sem
base em ciência sólida, e que pode le-
var ao sofrimento muitos parentes que
tiveram de fazer a opção por desligar
o suporte de vida a esses pacientes.
Indo mais longe, Burton acredita que
há uma falha essencial que impedirá
os humanos de compreenderem sua
própria mente.
"Acho que todos nós - neurocien-
tistas, cientistas cognitivos, psicólogos,
filósofos e leigos - deveríamos estar
cientes do paradoxo essencial", afir-
ma. "Faz parte da condição humana
experiment ar uma mente gerada de
for ma involuntária, que acredita que
pode explicar a si mesma de maneira
racional. Esse paradoxo é inevitável e
não contornável com ciência melhor ou
novas tecnologias."
Será? O
NEUROSSUCESSOS
cl"'
Já foram identificados o centro de
recompensa, as áreas responsáveis pela
memória, pela visão, pela audição e até
mesmo que região é usada na leitura
(uma atividade aprendida, em que o
cérebro empresta uma área associada
a reconhecimento de rostos).
Este ano, um homem paraplégico
conseguiu voltar a andar com eletrodos
conectando os sinais elétricos emitidos
pelo cérebro aos músculos
de suas pernas, simulando a conexão
da medula espinhal.
Estudos no Japão já mostraram que
é possível interpretar sinais do córtex
visual e t ransformá-los em imagens
muito próximas do que os voluntários
estão vendo. O passo seguinte é
fazer a mesma coisa com sonhos.
NEUROFRACASSOS
Um relatório de 2013 publicado
na revista Noture Reviews Neuroscience
demonstrou que os estudos de
neurociência em geral têm uma
confiabilidade estatística muito
baixa. Como eles usam poucos
voluntários, é difícil distinguir
fenômenos reais de flutuações.
·" Embora a compreensão de
fenômenos neurológicos que levam
a doenças como epilepsia e mal
de Alzheimer tenha aumentado,
pouquíssimas drogas eficazes
surgiram como resultado dos
avanços recentes da neurociência.
Na Índia, em 2008, eletroencefalogramas
foram usados para condenar à prisão
perpétua uma estudante de 25
anos, acusada de matar o ex-noivo
envenenado. Outros dois foram
condenados por assassinato
pelo mesmo método, até que
um relatório, naquele mesmo
ano, mostrou que os exames eram
absolutamente inconclusivos.
ÚLTIMA PÁGINA
Corvo gênio
__.DESCULPA OUA LOUE R COISA E ATÉ LOGO
Humanos têm cérebro grande em relação ao peso do corpo.
Mas não tanto quanto os corvos - esses sim são cabeções.
Infográfico Alexandre Versignossi e Fabrício Mirando
Corvo da Nova Caledõnla
- ;---------- ------ corpo 340 gramas
66 SUPER NOVEMBRO 2015
cérebro 8 gramas
Humanos
corpo 70 quilos
cérebro 1.345 gramas
Esquilo-Cinzento
corpo 500 gramas
cérebro 8 gramas
Chimpanzé
corpo SO quilos
cérebro 384 gramas
Golfinho Nariz-de-Garrafa
corpo 250 quilos
cérebro 1.700 gramas
Elefante Africano
corpo S toneladas
cérebro 5.400 gramas
Cachalote
corpo 41 toneladas
cérebro 7.800 gramas
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QUALIDADE E PREÇO,
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CONDIÇÕES DIFERENCIADAS, OPÇÕES DE FINANCIAMENTO,
VESTIBULAR EM QUALQUER DIA DA SEMANA OU UTILIZANDO SUA NOTA DO ENEM*.
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QUALIDADE QUE
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INSCRIÇÕES ABERTAS
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"MÍNIMO DE 30 0 PONTOS NA PROVA DO ENEM.