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Benolt Mandelbrot OBJECTOS FRJ\CTF\15 CIÊNCIAABERIA graâiva CIÊNCIA ABERrA 1. O JOGO DOS POSSÍVEIS François Jacob 2. UM POUCO MAIS DE AZUL H. Reeves 3. O NASCIMENTO DO HOMEM Robert Clarke 4. A PRODIGIOSA AVENTURA DAS PLANfAS Jean-Marie Pelli.Jean-Pierre Cuny 5. COSMOS Carl Sagán 6: A MEDUSA E O CARACOL Lewis Thomas 7. O MACACO, A ÁFRICA E O HOMEM Yves Coppens 8. OS DRAGÕES DO ÉDEN Carl Sagan 9. UM MUNDO IMAGINADO June Goodfield 10. O CÓDIGO CÓSMICO Heinz R. Pagels 11. CIÊNCIA: CURIOSIDADE E MALDIÇÃO Jorge Dias de Deus 12. O POLEGAR DO PANDA StephenJay Gould 13. A HORA DO DESLUMBRAMENTO H. Reeves 14. A NOVA ALIANÇA Ilya Prigogine/Isabelle Stengers 15. PONTES PARA O INFINITO Michael Guillen 16. O FOGO DE PROMETEU Charles LumsdenjEdward O. Wilson 17. O CÉREBRO DE BROCA Carl Sagan 18. ORIGENS Robert Shapiro 19. A DUPLA HÉLICE James Wa!Son 20. OS TRÉS PRIMEIROS MINUTOS Steven Weinberg 21. .. ESTÁ A BRINCAR, SR. FEYNMAN!" Richard P. Feynman 22. NOS BASTIDORES DA CIÊNCIA Sebastião J. Formosinho 23. VIDA Francis Crick 24. SUPERFOR,ÇA Paul Davies 25. QED-A ESTRANHA TEORIA DA LUZ E DA MATÉRIA Richard P. Feynman 26. A ESPUMA DA TERRA Claude Allegre 27. BREVE HISTÓRIA DO TEMPO Stephen W. Hawking 28. O JOGO Man[red Eigen/Ruthild ~inkler 29. EINSTEIN TINHA RAZAO? Cli!Tord M. Will 30. PARA UMA NOVA CIÊNCIA Steve_n Rose/Lisa Appignanesi _ 31. A MAO ESQUERDA DA CRIAÇAO Jonh D. Barrow./Toseph Silk 32. O GENE EGOfS'TA Richard Dawkins 33. HISTÓRIA CONCISA DAS MATEMÁTICAS Dirk T- S!ruik 34. CitN'CIA, ORDEM E CRIATIVIDADE David Bohm/F. David Peat 35. O QUE É UMA LEI FfSICA Richard P. Feynman 36. QUANDO AS GALINHAS TIVEREM DENTES StephenJay Gotlld 37. ·NEM SEMPRE A BRINCAR, SR. FEYNMAN!• Richard P. Feynman 38. CAOS- A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA CIÊNCIA James Gleick 39. SIMETRIA PERFEITA Heinz R. Pagels 40. ENTRE O TEMPO E A ETERNIDADE Ilya Prigogineflsabelle ~tengers 41. OS SONHOS DA RAZAO Heinz R. ~agels 42. VIAGEM AS ESTRELAS RobertJastrow 43. MALICORNE H. Reeves 44. INFINITO EM TODAS AS DIRECÇÕES Freeman T- Dyson 45. O ÁTOM"O ASSOMBRADO P. C. W. Davies/T- R. Brown 46. MATÉRIA PENSANTE · · Jean-Pierre Changeux/Aiain Cannes 47. A NATUREZA REENCONTRADA Jean-Marie Pelt 48. O CAMINHO QUE NENHUM HOMEM TRILHOU Carl Sagan/Richard Turco 49. O SORRISO DO FLAMINGO StephenJay Gould 50. EM BUSCA DA UNIFICAÇÃO Abdus Saiam/Paul DiracjWerner Heisenberg 51. OBJECTOS FRACTAIS Benoit Mandelbrot 52. A QUARTA DIMENSÃO Rudy Rucker 53. DEUS JOGA AOS DADOS? Ian Stewart 54. OS PRÓXIMOS CEM ANOS Jonathan Weiner _ 55. IDEIAS E INFORMAÇAO Arno Penzias 56. UMA NOVA CONCEPÇÃO DA TERRA Seiya Uyeda 57. HOMENS E ROBOTS Hans Moravcc 58. A MATEMÁTICA E O IMPREVISTO Ivar Ekcland BENOIT MANDELBROT OBJECTOS FRACTAIS Forma, Acaso e Dimensão seguido de PANORAMA DA LINGUAGEM FRACTAL TRADUÇÃO DE CARLOS FIOLHAIS E JOSÉ LUÍS MA,LAQUIAS LIMA A PARTIR DA 3.' EDIÇÃO FRANCESA, REVISTA PELO AUTOR gradiva Título do original francês: Les Objects Fractals © 1975, 1984, 1989 by Benoit Mandelbrot Tradução: Carlos Fiolhais e José Luís Malaquias Lima Revisão de texto: Manuel Joaquim Vieira Capa: Annando Lopes sobre a ilustração do conjunto de Mandelbrot Fotocomposição, paginação e fotólitos: A/fanumérico, Lda. Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda. Direitos reservados para Portugal a: Gradiva- Publicações, Lda. Rua Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. - Telefs.: 397 40 67 I 68 1350 Lisboa 2.• edição: Maio de 1998 Depósito legal: 123 383/98 i=·~-:~ ,,~, J"""ª"'"' ;):~"~ :;~ • T • t ~~.~ ··!f· :~~~: • • ';<;~,· ~--~ F ~~~ jí \~ I\ ln Memoriam, B e C. Para a Aliette PREFÁCIO DO TRADUTOR Quando, em Junho de 1990, o matemático francês Benolt Mandelbrot esteve em Lisboa para presidir à «Fractal 90», urna reunião científica sobre os objectos que lhe devem a pater- nidade - os objectos fractais -, manifestou o desejo de ver publicada em portugês a terceira edição, datada de 1989, do seu livro francês Les Objects Fractals. A Gradiva acolheu logo com grande entusiasmo a ideia de editar o livro que agora sai do prelo. Esta edição portuguesa inclui, tal como a do original francês que lhe serviu de base, um Panorama Geral da Linguagem Fractal, que é um texto de síntese e de comentário sobre o lugar e o significado dos fraetais no quadro das ciências contemporâ- neas. Porém, e por especial deferência do autor, o presente texto do Panorama aparece bastante modificado e acrescentado. A bibliografia foi actualizada com a referência a alguns dos tra- balhos que, num fluxo crescente, têm vindo a ser publicados nos últimos anos. A fim de ajudar leigos que eventualmente queiram saber mais, incluem-se listas separadas de livros re- centes de divulgação, que de algum modo colocam a ênfase nos fractais, assim corno de livros sobre computadores e gráfi- cos, que discutem o caos e os fractais, e, finalmente, livros para os mais novos. O primeiro e hoje já histórico texto, Objectos Fractais, foi expurgado (pelo menos assim se crê ... ) de pequenas gralhas presentes no original. Os tradutores preten- 7 dem agradecer ao autor o interesse com que acompanhou esta edição e a amabilidade com que sempre respondeu às dúvidas que um trabalho de tradução naturalmente suscita. A palavra «fractal» é um neologismo introduzido por B. Mandelbrot e que entretanto já entrou nas mais diversas lín- guas. Surge, com este livro e de forma oficial, na língua portu- guesa. Embora, na comunidade científica nacional, o número de utentes da geometria fractal seja ainda escasso, o número de pessoas, estudantes, cientistas ou simples leigos que a desco- brem e por ela se entusiasmam cresce dia a dia. O pintor Lima de Freitas, por exemplo, encontra nessa geometria a inspiração para algumas das suas últimas obras, julgando ver na arte ma- nuelina reminiscências da «fractalidade» (outro neologismo!). Mandelbrot oferece-nos, com os fractais, uma maneira nova não só de usar a matemática, como de ver e conhecer o mundo, natural ou artificial. Mostra-nos como esse instrumento mo- derno que é o computador abre fronteiras que são exploradas com esse velho aparelho que é o olho humano. Nos tempos manuelinos, a abertura de novas fronteiras não se fez sem «velhos do Restelo». Ainda hoje os há, nomeadamente entre os (poucos) matemáticos que tinham de todo abdicado da visuali- zação como elemento de descoberta. Os físicos, químicos, bió- logos e geólogos, dispostos a aprender a forma das nuvens, dos agregados coloidais, dos fetos arbóreos ou das falhas tectó- nicas, incluíram rapidamente a geometria fractal na sua caixa de ferramentas. Os leigos, por sua vez, dificilmente deixarão de ser percorridos por sentimentos estéticos quando contem- plam objectos artificiais que mais parecem naturais ou vice- -versa. Com os fractais, ganham, uns, intuições inéditas, outras, descrições diferentes e, outros ainda, emoções particulares. Com todos estes ganhos, é certamente bem-vinda a edi- ção portuguesa dos Objectos Fractais. Parafraseando Fernando Pessoa: 8 O conjunto de Mandelbrot é tão belo corno a Vénus de Milo. E há cada vez mais gente a dar por isso Nova Orleães, Julho de 1991 CARLOS FlOLHAIS PREFÁCIO DA 3.a EDIÇÃO FRANCESA, ACRESCIDA DE PANORAMA GERAL DA LINGUAGEM FRACTAL Foi a Roberto Pignoni que o editor Giulio Einaudi, de Turim, confiou a tradução dos meus Objectos Fractais. O empenho posto no seu trabalho por esse jovem matemático de Milão mostra que até o provérbio italiano mais bem provadoconhece algumas excepções e que não é impossível que o tradutor seja o melhor amigo do autor. A sua atenção às questões de estilo, com efeito, ajudou em muito à preparação desta nova edição. Apesar disso, a sequência mantém-se praticamente inalterada. No momento em que escrevo estas linhas, um terna em foco na comunidade dos «fractalistas» é o dos «rnultifractais». O capítulo IX mostra que desde 1975 me apercebi da necessi- dade de discutir este assunto. Foram precisos quase dez anos para que esse tópico tivesse verdadeiramente «pernas para andar». Mas não há dúvida de que agora tem boas pernas: aqui, corno, de resto, em todas as áreas de estudo dos fractais, realizaram-se progressos extraor- dinários ao longo dos últimos treze anos. Corno levar em conta estes progressos sem pôr em causa um livro que tem vindo a dar provas desde 1975? Poder-se-ia ter simplesmente acrescentado urna lista de sucessos e meios sucessos, mas não seria possível mantê-la relativamente curta sem a reduzir a urna tabela de assuntos bastante indigesta. Era, por isso, mais recomendável descrever algumas das orien- tações principais do passado recente. 9 Foi assim que o capítulo XVI foi aliviado dos seus pós-escri- tos prospectivas e que o prefácio da 2.• edição foi reduzido. Os mesmos papéis são desempenhados, bastante mais em porme- nor, por uma espécie de «suplemento» intitulado Panorama Geral da Linguagem Fractal. Este texto inédito pretende dar uma ideia do estado actual da teoria e das suas aplicações. Delibe- radamente, não é numerado como capítulo. As duas partes deste livro correspondem a necessidades diferentes e não é forçoso que sejam lidas pela ordem apresen- tada. Por um lado, era conveniente manter um texto que tem vindo a dar provas desde 1975. Mas, por outro lado, uma certa actualização afigurava-se adequada. Convém ainda assinalar dois pontos relativos à apresenta- ção. Para evitar uma possível interrupção da continuidade do texto, as figuras são agrupadas no final de cada capítulo. A fim de facilitar a sua localização, cada figura é designada pelo número da página em que se encontra inserida. Um nome de autor seguido por uma data, como Dupont 1979, remete para a bibliografia que pode ser encontrada no final do livro. Quando necessário, o ano é seguido de uma letra. Primavera de 1989 BENOIT MANDELBROT IBM, Yorktown Heights NY 10598 USA Yale University, New Haven CT 06520 USA PREFÁCIO DA 2.• EDIÇÃO FRANCESA (EXTRACTO) Esta edição difere pouco da de 1975, pois, ao rever o manuscrito com vista à sua reedição, verifiquei que não havia muitas arestas a limar. Talvez isto queira dizer que o livro depressa atravessou a idade ingrata em que se passa de moda, para atingir uma idade em que a moda deixa de ser impor- tante. É cada vez menos um tratado, embora seja ainda uma introdução ao tema, bem como um documento de interesse histórico. Conserva ainda, como é evidente, as ambições loucas 10 da V edição. Por um lado, é ao mesmo tempo urna nova síntese matemática e filosófica e urna colecção de micro- monografias respeitantes às minhas descobertas em diversos capítulos da ciência. Por outro lado, no entanto, dirige-se simultaneamente a públicos bastante díspares: pretende levar os especialistas das várias ciências a sonhar e a criar comigo. Para poder ser lido numa só noite, retirei do texto original diversos fragmentos inúteis. Deixou, por exemplo, de ser necessário prolongar a discussão sobre ideias que já não encon- tram resistência. Da mesma maneira, muitos fragmentos mais rebuscados tornaram-se supérfluos, urna vez que certas conjec- turas matemáticas, por mim formuladas em 1975, foram desde então demonstradas. Finalmente, não é agora necessário justi- ficar-me pelo facto de a maior parte deste livro ser constituída por descrições sem a preocupação de explicar. Além disso, o estilo é agora mais suave, as ilustrações foram renovadas a partir dos originais ou seus equivalentes e foi acrescentado um léxico (novo capítulo xrn). O antigo capítulo xrn, enriquecido, transformou-se no novo capítulo XVI. Para conservar o carácter histórico e o tom de urna obra escrita em 1975, os raros acrescentos aparecem sob a forma de breves pós-escritos. Alguns termos pesados, corno apara e pas- seio aleatório foram substituídos por outros que introduzi desde 1975 e que considero preferíveis: trema e passeata. Para evitar alguns mal-entendidos maçadores, bastantes nós e seis, discretos, mas ambíguos, foram substituídos por eus directos e claros. É hoje um prazer verificar que o que era inédito no livro de 1975 (ver p. 25) era-o, em geral, por não ter sido julgado aceitável por urna apreciação cuidada e res- peitável. Foi esse o caso do capítulo VI, o mais longo do livro e o primeiro a ser redigido. Tinha, por isso, razões para adop- tar um tom inofensivo que evitasse intimidar. Mas, à força de argumentar que esta ou aquela minha tese deveria, no futuro, ser considerada por direito próprio, fiz crer a muita gente que a dita tese era aceite desde longa data. Quando isso é útil, esta edição esclarece que não era esse o caso. Março de 1984 BENOiT MANDELBROT 11 CAPÍTULO I Introdução Ao longo deste ensaio, objectos naturais muito diversos, alguns dos quais, como a Terra, o céu e o oceano, nos são bastante familiares, são estudados com a ajuda de uma grande família de objectos geométricos, até agora considerados eso- téricos e perfeitamente inúteis. Pretendo mostrar, pelo con- trário, que estes objectos, pela sua simplicidade, diversidade e extraordinária extensão das suas novas aplicações, merecem ser rapidamente integrados na geometria elementar. Apesar de o seu estudo fazer parte de campos científicos diferentes, entre os quais a _ geomorfologia, a astronomia e a teoria da tur- bulência, os objectos naturais em questão têm em comum uma forma extremamente irregular ou interrompida. Para os estu- dar, concebi, aperfeiçoei e utilizei extensivamente uma nova geometria da natureza. A noção que lhe serve de fio condutor será designada por um de dois neologismos equivalentes, «objecto fractal» ou «fractal», termos que formei, pela necessidade que me surgiu com este livro, a partir do adjectivo latino fractus, que significa «irregular» ou «quebrado». Será necessário definir uma figura fractal de modo rigoroso, para em seguida dizer que um objecto real é fractal por se assemelhar à figura geométrica que constitui o modelo? Con- siderando que um tal formalismo seria prematuro, adoptei um método muito diferente: um método baseado numa caracteri- 13 zação aberta e intuitiva, onde os avanços se efectuam por retoques sucessivos. O subtítulo sublinha que o meu objectivo inicial consiste em descrever, a partir do exterior, a forma de diversos objectos. Logo que esta primeira fase seja bem sucedida, a prioridade transita de imediato da descrição para a explicação: da geome- tria para a dinâmica, a física e por aí adiante. J O subtítulo indica ainda que, para conseguir a irregulari- dade fractal, coloco a tónica sobre construções em que pre- domina o acaso. Por fim, o subtítulo explicita que uma das características principais de todo o objecto fractal é a sua dimensão fractal, que será representada por D. Esta é uma medida do grau de irregularidade e de fragmentação. Um facto muito impor- tante: ao contrário dos números dimensionais correntes, a dimensão fractal pode muito bem ser uma fracção simples, como 1/2 ou 5/3, ou mesmo um número irracional, como log 4/log 3 = 1,2618 ... ou 1t. Assim, é conveniente dizer, a respeito de certas curvas planas muito irregulares, que a sua dimensão fractal se situa entre 1 e 2, a respeito de certas superfícies muito enrugadas e cheias de pregas, que a sua dimensão fractal está entre 2 e 3e, enfim, definir conjuntos de pontos sobre uma linha cuja dimensão fractal está entre O e 1. Em certas obras matemáticas, diversas figuras conhecidas que eu incorporo entre os fractais são chamadas «figuras de dimensão fraccionária». Essa expressão é, porém, desagradá- vel, pois não é costume chamar, por exemplo, a 1t uma fracção. Pior do que isso, há entre os fractais diversos objectos irregu- lares ou quebrados para os quais D = 1 ou D = 2, mas que de forma nenhuma se assemelham a rectas ou planos. O termo «fractal» elimina todas às dificuldades associadas ao termo «fraccionária». A fim de sugerir quais os objectos que deverão ser conside- rados fractais, comecemos por nos lembrar de que, no seu esforço para descrever o mundo, a ciência avança por séries de imagens ou modelos cada vez mais «realistas». Os mais sim- ples são objectos contínuos perfeitamente homogéneos, como um fio ou um cosmo de densidade uniforme, ou um fluido de temperatura, densidade, pressão e velocidade também unifor- 14 mes. A física conseguiu triunfar identificando vários domínios em que essas imagens são extremamente úteis, particularmente como pontos de partida para diversas correcções. Noutros domínios, contudo, a realidade revela-se de tal modo irregular que o modelo contínuo e perfeitamente homogéneo fica muito aquém das expectativas, não podendo sequer servir como pri- meira aproximação. São domínios nos quais a física encalhou e sobre os quais os físicos preferem nem sequer falar. (P.-5. Isto seria válido em 1975, mas é-o cada vez menos hoje em dia.) Para introduzir estes domínios e dar, ao mesmo tempo, uma pri- meira indicação sobre o método que propus para os abordar, passo a citar alguns parágrafos do prefácio ignorado de uma obra que, apesar disso, é célebre: Les Atomes1 (Perrin 1913). Onde Jean Perrin evoca objectos familiares com forma irregular ou quebrada [ ... ] Mais para o leitor que acabou de ler este livro do que para aquele que vai iniciar a leitura, gostaria de fazer alguns comentários cujo interesse poderá ser o de dar uma justifi- cação objectiva a certas exigências lógicas dos matemáticos. Todos sabemos como, antes de dar uma definição rigo- rosa, se faz notar aos principiantes que eles já têm a ideia de continuidade. Traça-se-lhes uma curva bem perfeita e diz-se, colocando uma régua sobre este contorno: «Como podem ver, em cada poi,lto está definida uma tangente.» Ou ainda, para dar a definição um pouco mais abstracta da velocidade real de uma partícula num dado ponto da sua trajectória, explicar-se-ia: «Conforme a vossa intuição indica, a veloci- dade média entre dois pontos vizinhos, nesta trajectória, não varia apreciavelmente quando os dois pontos se aproximam indefinidamente um do outro.» E, com efeito, muita gente verifica que para certos movimentos familiares assim parece ser, não se apercebendo do grande número de dificuldades que existem. 1 Em português, Os Átomos. (N. dos T.) 15 16 Os matemáticos, contudo, cedo notaram a falta de rigor destas considerações ditas geométricas e até que ponto, por exemplo, é ingénuo pretender demonstrar pelo desenho de uma curva que toda a função contínua admite uma deri- vada. Se é verdade que as funções com derivada são as mais simples, as mais fáceis de tratar, também é verdade que elas são a excepção, e não a regra. Ou, se se preferir uma linguagem geométrica, as curvas que não possuem tangente são a regra, enquanto as curvas regulares, como a circunferência, são casos, apesar de interessantes, muito par- ticulares. Numa primeira abordagem, tais restrições parecem não passar de um exercício intelectual, sem dúvida engenhoso, mas definitivamente estéril e artificial, onde o desejo de perfeição é levado até à obsessão. E é frequente que pessoas a quem se fala de curvas sem tangentes ou de funções sem derivadas comecem por pensar que, como é evidente, na natureza não existe esse tipo de complicações, pelo que ela não sugere uma tal ideia. É, contudo, o contrário que é verdadeiro e a lógica dos matemáticos manteve-os mais próximos da realidade do que se tivessem recorrido às representações práticas usadas pelos físicos. Isto pode ser visto se divagarmos um pouco, sem ideias preconcebidas de simplificação, sobre certos dados de carácter experimental. Esse tipo de dados surge frequentemente quando se estu- dam os colóides. Observem-se, por exemplo, os flocos bran- cos produzidos numa solução de sabão quando nela se mistura sal. De longe, o seu contorno parece ser bastante simples, mas essa simplicidade depressa se desvanece à medida que nos aproximamos. O olho não é mais capaz de fixar a tangente a um ponto: uma recta que à primeira vista parece tangente, se se olhar com atenção, depressa poderá parecer perpendicular ou oblíqua ao contorno. Se se utilizar uma lupa ou um microscópio, a incerteza mantém-se, pois de cada vez que se aumenta a ampliação se vêem surgir novas anfractuosidades, sem nunca se atingir a impressão simples e tranquilizante que nos dá, por exemplo, uma esfera de aço polido. De modo que, se esta esfera nos dá uma imagem útil da continuidade clássica, o nosso floco tam- bém pode logicamente sugerir a noção mais geral de funções contínuas sem derivada. Convém deixar bem claro que a incerteza quanto à posi- ção do plano tangente num ponto do contorno [de um floco] não é da mesma ordem que a incerteza que surgiria na deter- minação da tangente a um ponto no litoral da Bretanha, con- forme se utilizasse um mapa com uma ou outra escala. Ao variar a escala, mudaria também a tangente, mas esta estaria definida de cada uma das vezes. Isto acontece porque o mapa é um desenho convencional onde, por construção, toda a linha tem uma tangente. Pelo contrário, uma das características essenciais do nosso floco (como, de resto, do litoral bretão, se, em vez de o estudarmos num mapa, olharmos realmente para ele mais ou menos de perto) é que, qualquer que seja a escala, se supõe a existência de pormenores que, embora não possam bem ser vistos, nos impedem por completo de fixar uma tan- gente. Permaneceremos na realidade experimental se, espreitando pela ocular de um microscópio, observarmos o movimento browniano que agita qualquer pequena partícula em suspensão num fluido. Para fixar uma tangente à sua trajectória, devere- mos encontrar um limite, pelo menos aproximado, para a di- recção do segmento de recta que une as posições desta partí- cula em dois instantes sucessivos muito próximos. Ora, pelo que se pode ver da experiência, esta direcção varia aleatoria- mente à medida que se diminui o intervalo entre esses dois instantes. De tal modo assim é que este estudo sugere a um observador sem preconceitos, mais uma vez, a função sem derivada e, de modo nenhum, a curva como tangente. P.-S. Dois graus de ordem no caos: a ordem euclidiana e a ordem fractal Abandonemos a leitura de Perrin (que podemos continuar em Les Atomes - ou na 1." edição deste livro), para discutir a importância histórica destes últimos comentários. Por volta 17 de 1920, eles devem ter perturbado o jovem Norbert Wiener e tê-lo estimulado a construir o seu modelo probabilístico do movimento browniano, que será útil por diversas vezes ao longo deste ensaio. Vamos, a partir de agora, servir-nos de um termo que Wiener gostava de utilizar para referir uma forma extrema de desordem natural. Esse termo, «caos», permite-nos notar que Perrin fez dois comentários distintos a respeito da geometria da natureza. Por um lado, ela é caótica e só deficien- temente pode ser representada pela ordem perfeita das formas vulgares de Euclides ou do cálculo diferencial. Por outro lado, pode fazer lembrar a complicação das matemáticas que foram criadas por volta de 1900. Mas a influência dos comentáriosde Perrin parece ter-se resumido ao efeito que tiveram sobre Wiener. Foi à obra de Wiener que fui buscar a minha principal inspiração e só vim a tomar conhecimento da filosofia de Perrin quando este texto já se encontrava nos seus retoques finais. Já tinha concebido a ideia de que seria possível considerar certos fenómenos caóti- cos por meio de diversas técnicas matemáticas que, por obra do acaso, se me tinham tornado familiares. Estas técnicas já se encontravam disponíveis, embora sofrendo uma reputação de serem inaplicáveis e «complicadas». Desenvolveu-se então uma nova «fornada» de utilizações dos fractais, distanciada da primeira no «mapa» das disciplinas científicas estabelecidas. Foi só bastante mais tarde, através de diversos processos de fusão e reorganização, que estas utilizações, entretanto já numerosas, se reuniram numa nova disciplina e numa nova maneira de ver as coisas. A geometria fractal é caracterizada por duas escolhas: a escolha de problemas no seio do caos da natureza, uma vez que descrever todo o caos seria uma ambição sem esperança e sem interesse, e a escolha de ferramentas no seio das matemáticas, pois procurar aplicações das matemáticas pelo simples facto de serem belas acabou sempre por causar dissa- bores. Depois de progressivamente amadurecidas, estas duas escolhas criaram algo de novo: entre o domínio do caos des- regulado e a ordem excessiva de Euclides existe agora a nova zona da ordem fractal. 18 Conceitos propostos como solução: dimensões efectivas, figuras e dimensões fractais Um dos fractais mais simples que podemos considerar é a trajectória do movimento browniano. Contudo, o modelo pro- posto por Wiener já apresenta a característica surpreendente de ser uma curva contínua cuja dimensão fractal toma um valor deveras anormal, nomeadamente D = 2. O conceito de dimensão fractal faz parte de uma certa matemática que foi criada entre 1875 e 1925. De um modo mais geral, um dos objectivos do presente trabalho é mostrar que a colecção de figuras geométricas criadas na altura, colecção que Vilenkin 1965 qualifica de «Museu de Arte» matemática e outros de «Galeria dos Monstros», pode igualmente ser visi- tada na qualidade de «Palácio das Descobertas»2• Para esta colecção muito contribuiu o meu mestre Paul Lévy (grande mesmo naquilo que tinha de anacrónico, conforme evoco no capítulo XV), ao colocar a tónica sobre o papel do acaso. Estas figuras geométricas nunca tiveram quaisquer hipóte- ses de entrar no campo do ensino, mal passando do estado de espantalho «moderno» que, mesmo a título de exemplo, era demasiado específico para merecer qualquer atenção. Pre- tendo, com este trabalho, dar a conhecer essas figuras através das utilizações que lhes encontrei. Demonstro que a carapaça formalista que as isolou impediu a revelação do seu verda- deiro significado: do facto de estas figuras terem algo de extre- mamente simples, concreto e intuitivo. Mostro não só que elas são realmente úteis, mas também que podem ser rapidamente uitilizadas, com um formalismo muito reduzido. Não exigem quase nenhum daqueles prelimi- nares formais onde, conforme a experiência mostra, alguns encontram um deserto intransponível e outros um paraíso de onde não querem sair. É minha convicção profunda que frequentemente se perde mais do que se ganha com a abstracção forçada ou com o ' O <<Palácio das Descobertas» é um museu interactivo de ciência em Paris. (N. dos T.) 19 relevo dado ao perfeccionismo e à proliferação de conceitos e· termos. Não sou o último a lamentar que as ciências menos exactas, aquelas cujos próprios princípios são menos certos, tendam a ser as mais preocupadas com a axiomática, o rigor e a generalidade. Sinto-me, por isso, feliz por ter descoberto diversos exemplos originais, nos quais, de uma maneira clássica, forma e conteúdo se apresentam intimamente ligados. Antes de passarmos às dimensões que podem ser frac- cionárias, necessitamos de compreender melhor a noção de dimensão na perspectiva do seu papel na física. Antes de mais nada, sabemos da geometria elementar que um ponto isolado, ou um número finito de pontos, constitui uma figura de dimensão zero. Que uma recta, bem como qual- quer outra curva-«padrão» - querendo este epíteto dizer que se trata da geometria normal criada por Euclides-, consti- tuem figuras de dimensão um. Que um plano, ou qualquer outra superfície-«padrão», constituem figuras de dimensão dois. Que um cubo tem dimensão três. A estas coisas que toda a gente sabe, diversos matemáticos, a começar por Hausdorff 1919, acrescentaram que certas figuras idealizadas têm dimen- sões não inteiras. Estas podem ser fracções, como, por exem.;. pio, 1/2, 3/2, 5/2, mas são mais frequentemente números irracionais, como log 4/log 3"" 1,2618 ... , ou mesmo soluções de equações complicadas. Para caracterizar essas figuras, poder-se-ia começar por dizer, de um modo grosseiro, que uma figura cuja dimensão se situe entre 1 e 2 deverá ser mais «afilada» que uma superfície ordinária, sendo, contudo, mais «maciça» que uma linha ordi- nária. Em particular, se se tratar de uma curva, deverá ter uma superfície nula, mas um comprimento infinito. Da mesma maneira, se a sua dimensão estiver compreendida entre 2 e 3, deverá ter um volume nulo e uma superfície infinita. Portanto, este texto começa por dar exemplos de curvas que não se estendem indefinidamente, mas onde a distância entre quais- quer dois pontos é infinita. O formalismo essencial, no que respeita à dimensão fractal, já está portanto publicado há muito tempo, embora se man- tenha ainda propriedade intelectual de um pequeno grupo de matemáticos puros. Era frequente ler, aqui e ali, a opinião de 20 que esta ou aquela figura que eu apelido de fractal era tão bela que teria forçosamente de, onde quer que fosse, servir para alguma coisa. Mas essas opiniões não faziam mais que trans- mitir urna esperança desprovida de substância, enquanto os capítulos seguintes propõem realizações efectivas, abrindo o caminho a teorias precisas e em pleno desenvolvimento. Cada capítulo estuda urna classe de objectos concretos, dos quais se pode dizer que, à semelhança do que acontece com as figuras ideais que já referimos, têm urna dimensão física efectiva com um valor anormal. Mas o que vem a ser exactamente uma dimensão física efectiva? Esta é urna noção intuitiva que remonta a um estado arcaico da geometria grega, mas que merece ser retornada, elaborada e de novo respeitada. Refere-se às relações entre figuras e objectos, designando o primeiro termo idealizações matemáticas e o segundo dados da realidade. Nesta perspec- tiva, um véu, um fio ou urna pequena bola - por muito finos que sejam - deverão ser representados por figuras tridimen- sionais, da mesma maneira que urna bola grande. Mas, de facto, qualquer físico sabe que essa não é a maneira de proceder e que é muito mais prático considerar que um véu, um fio ou urna bola que sejam suficientemente finos têm aproximadamente dimensões 2, 1 e O. Esclareçamos melhor: nem as teorias referentes à bola nem as referentes à linha ideal descrevem um fio de forma com- pleta. Nos dois casos é necessário introduzir «termos correcti- vos», sendo certo que se vai preferir o modelo geométrico que exige o menor número de correcções. Se se tiver sorte, essas correcções serão tais que, mesmo omitidas, o modelo continua a dar urna boa ideia daquilo que se está a estudar. Por outras palavras, a dimensão física tem, inevitavelmente, uma base pragmática, logo subjectiva. Trata-se de urna questão do gr!iu de resolução. Para o confirmar, mostremos que um novelo com 10 cm de diâmetro feito de um fio com 1 mm de diâmetro possui, de ·uma forma um pouco latente, diversas dimensões efectivas distintas. Se seusar um grau de resolução de 10 rn, trata-se de um ponto e, portanto, de urna figura de dimensão zero. Para um grau de resolução de 10 cm trata-se de uma bola tridimen- 21 sional. Para urna resolução de 10 mm é um conjunto de fios e, portanto, urna figura unidirnensional. Para um grau de reso- lução de 0,1 mm, cada fio transforma-se numa espécie de coluna e o todo volta a ser tridimensional. Para um grau de resolução de 0,01 mm, cada coluna resolve-se em diversas fibras filiforrnes e, de novo, o todo é unidimensional. Numa análise mais apurada, o novelo é representado por um número finito de átomos pontuais e o todo tem, mais urna vez, dimen- são zero. E assim por diante: o valor da dimensão não pára de variar! A dependência de um resultado numérico das relações entre o objecto e o observador está bem no espírito da física deste século, de que é mesmo urna ilustração particularmente exem- plar. Com efeito, no mesmo sítio onde um observador vê urna zona bem separada das suas vizinhas, com um certo D carac- terístico, um segundo observador não verá mais do que urna zona de transição gradual, que pode até não merecer um estudo separado. Os objectos tratados neste livro têm, também eles, urna série de dimensões diferentes. A novidade é que onde - até agora - não se via mais do que zonas de transição, sem estrutura bem determinada, eu identifico zonas fractais em que a dimen- são é quer urna fracção quer um inteiro «anormal», também ele descritivo de um estado irregular ou quebrado. Não tenho quaisquer problemas em reconhecer que a realidade de urna zona só fica plenamente estabelecida quando associada a urna verdadeira teoria dedutiva. Reconheço também ·que, tal· corno as entidades de Guilherme d'Occarn, as dimensões não se devem multiplicar para além do· necessário e que, em parti- cular, certas zonas fractais podem ser demasiado estreitas para merecerem ser distinguidas. O melhor é adiar o exame de tais dúvidas para urna altura em que o objecto tenha sido bem descrito. É agora a ocasião oportuna para esclarecer quais são os domínios da ciência aos quais vou buscar os meus exemplos. É bem sabido que a descrição da Terra foi um dos primeiros problemas que o homem se colocou. Por intermédio dos Gre- gos, a «geo-metria» deu lugar à geometria matemática. Entre- tanto - corno acontece frequentemente no desenvolvimento 22 das ciências! -a geometria matemática depressa se esqueceu das suas origens, tendo apenas aflorado a superfície do pro- blema original. Mas, por outro lado - coisa espantosa, ainda que a ela já nos tenhamos habituado -, «nas ciências naturais, a lingua- gem da matemática revela-se mais eficaz do que seria razoá- vel», citando a bonita expressão de Wigner 1960. «É um presente maravilhoso que nós nem compreendemos nem mere- cemos. Devemos estar reconhecidos, esperando que ele con- tinue a ser útil nas nossas investigações futuras e que, para o melhor ou para o pior, se estenda, para nosso prazer e talvez mesmo para nossa estupefacção, a outros ramos do conheci- mento.» Por exemplo, a geometria herdada directamente dos Gregos explicou triunfalmente o movimento dos planetas, em- bora continue a sentir algumas dificuldades com a distribuição das estrelas. Da mesma maneira, consegue dar conta do movi- mento das marés e das ondas, mas não da turbulência atmos- férica e oceânica. Em suma, este livro trata, em primeiro lugar, de objectos bastante familiares, mas demasiado irregulares para caírem na alçada da geometria clássica: Terra, Lua, céu, atmosfera e oceano. Em segundo lugar, consideramos brevemente diversos ob- jectos que, apesar de não serem muito familiares, ajudam a esclarecer a estrutura daqueles que o são. Por exemplo, a dis- tribuição dos erros em certas linhas telefónicas demonstrou ser um excelente utensílio de transição. Outro exemplo: a articula- ção de moléculas orgânicas nos sabões (sólidos, não desfeitos em bolhas). Os físicos descobriram que a dita articulação é governada por um expoente de semelhança. E verifica-se que esse expoente é uma dimensão fractal. Se este último exemplo se generalizasse, o domínio de aplicação dos fractais alcançaria a teoria dos fenómenos críticos, um campo particularmente activo hoje em dia. (P.-S. Esta previsão cumpriu-se totalmente.) Todos os objectos naturais referidos até agora são «sis- temas», no sentido de serem formados por muitas partes distintas, articuladas entre si, descrevendo a dimensão fractal um aspecto desta regra de articulação. Mas a mesma definição 23 também se aplica aos «artefactos». Uma diferença entre os sistemas naturais e artificiais é que, para conhecer os pri- meiros, é necessário utilizar a observação ou a experiência, enquanto, para os segundos, se pode interrogar o respectivo criador. No entanto, existem artefactos de tal maneira com- plexos, para os quais contribuíram diversas intenções de forma tão incontrolável, que o resultado acaba, pelo menos em parte, por se tornar um «objecto de observação». No capítulo XI encontraremos um exemplo, para o qual a dimensão fractal de- sempenha um papel, nomeadamente um aspecto da organi- zação de certos componentes de um computador. Examinaremos, finalmente, o papel da dimensão fractal em certas árvores de classificação que surgem na minha explicação da lei de frequências das palavras no discurso, bem como em certas árvores hierárquicas usadas para explicar a distribuição de uma forma particular de rendimento pessoal. Esta obra mistura, deliberadamente, a divulgação e o trabalho de descoberta Tendo já delineado o objectivo deste livro, precisamos agora de examinar o modo de o atingir. É feito um esforço constante para sublinhar quer a diversi- dade dos assuntos abordados, quer a unificação permitida pela nova ferramenta fractal. É igualmente efectuado um esforço para desenvolver todos estes problemas desde as suas bases, a fim de tornar o texto acessível a um público não especializado. Finalmente, para não· assustar inutilmente aqueles a quem não interessa a precisão matemática, todas as definições foram remetidas para o capítulo XIV. Nesta perspectiva, estamos aqui perante uma obra de divulgação. Além disso, este trabalho apresenta algumas aparências de um trabalho de erudição, devido ao grande número de aspectos históricos que fiz questão de recordar. Isso não é costume em ciência. No caso presente, a maior parte destes aspectos só me despertaram a atenção demasiado tarde para, de alguma ma- neira, influenciarem o desenvolvimento dos meus trabalhos. Mas a história das ideias é um assunto que me apaixona. 24 Acresce o facto de as minhas teses principais terem começado diversas vezes por enfrentar a incredulidade. A sua novidade era portanto evidente, embora eu tivesse fortes razões para as procurar enraizar. Pus-me então a buscar activamente prede- cessores, em vez de lhes procurar fugir. Entretanto - valerá a pena insistir? - a procura das origens está sujeita a controvérsias. Por cada autor antigo a quem reconheço urna ideia boa e bem expressa arrisco-me a encon- trar um seu contemporâneo -por vezes o mesmo autor, num contexto diferente - a desenvolver a ideia oposta. Poderemos louvar Poincaré por ter concebido aos 30 anos ideias que iria condenar aos 55, sem parecer recordar-se dos seus pecados de juventude? E que fazer quando os argumentos eram tão fracos, quer num lado quer no outro, que os dois autores se conten- taram em anotar as respectivas ideias, sem se darem ao tra- balho de as defender e fazer aceitar? Se os nossos dois autores passaram despercebidos, será melhor deixá-los cair no esqueci- mento? Ou será nosso dever atribuir um pouco de glória pós- tuma àquele com quem concordamos, ainda que (sobretudo porque?) ele tenha sido incompreendido? Será, além disso,necessário fazer reviver personagens cuja memória já desa- pareceu, urna vez que só se empresta dinheiro a quem já é rico e frequentemente a obra de alguém só é aceite graças à auto- ridade superior de um outro que a adopta e lhe assegura a sobrevivência sob o seu nome? Stent 1972 leva-nos a concluir que estar à frente do seu tempo não merece mais do que a compaixão do esquecimento. Pelo meu lado, não pretendo resolver os problemas do pa- pel dos percursores. (P.-S. 1989. E confesso que o meu inte- resse pela história das ideias é por vezes acompanhado por uma certa ponta de amargura. Com efeito, a experiência mostrou que alguém que, não só reconheça, mas também procure activamente predecessores, está a dar armas a quem o pretenda denegrir.) Apesar de tudo, continuo a pensar que o facto de alguém se interessar não só pelas ideias que tiveram sucesso, mas também pelas que foram esquecidas, é bom para o espírito do sábio. Desejo por isso conservar os laços com o passado e realço alguns deles nos esboços biográficos do capítulo XV. 25 Mas tudo isto pouca importância tem. O objectivo essencial J deste trabalho consiste em fundar uma nova disciplina científica. Antes de mais nada, o tema geral, o da importância concreta das figuras de dimensão fraccionária, é inteiramente novo. Mais especificamente, quase todos os resultados que serão dis- cutidos se devem, em grande parte ou na sua totalidade, ao autor deste trabalho. Muitos são inéditos. Trata-se aqui, então e antes de tudo, de apresentar trabalhos de investigação. Será conveniente reunir e tentar divulgar teorias recém-nas- cidas? A minha esperança é que o leitor julgue por si mesmo. Antes de encorajar alguém a conhecer novas ferramentas de pensamento, julgo conveniente caracterizar qual, na minha opi- nião, será a contribuição destas. O progresso dos formalismos matemáticos nunca foi o meu objectivo principal, mas sim um efeito secundário, e, de qualquer maneira, tudo o que eu possa ter feito nesse sentido não tem lugar neste ensaio. Algumas aplicações menores limitaram-se a pôr em prática e a baptuzar conceitos já antes conhecidos. Não foi mais do que um primeiro passo. Quando (frustrando as minhas espe- ranças) não for seguido por outros, terá um interesse simples- mente estético ou cosmético. A matemática, sendo uma lingua- gem, serve não só para informar, mas também para seduzir, sendo necessário estar de sobreaviso em relação às noções que Henri Lebesgue tão bem descreveu como «certas novidades que não servem para mais nada do que para serem definidas». Felizmente que o meu empreendimento evitou esse risco. Com efeito, na maioria dos casos, os conceitos de objecto fractal e de dimensão fractal são inteiramente positivos e contribuem para o desenvolvbimento de algo fundamental. Eles atacam (como diria H. Poincaré) não as questões que uma pessoa se coloca, mas as questões que se colocam a elas próprias com insistência. Com o fim de o realçar, esforço- -me, sempre que possível, por partir daquilo a que podemos chamar um paradoxo do concreto. Preparo o cenário, mos- trando como dados experimentais, obtidos de diversas formas, se parecem contradizer. Se cada uma dessas formas, se parecem contradizer. Se cada uma dessas formas é incon- testável, esforço-me por defender que o quadro conceptual, no seio do qual inconscientemente as interpretamos, é radi- calmente inapropriado. Concluo, resolvendo cada um desses 26 paradoxos com a introdução de um fractal e de uma dimensão fractal- introduzidos sem dor e quase sem que ninguém se aperceba. A ordem de apresentação é, em grande parte, regida pela comodidade de exposição. Por exemplo, esta obra começa com problemas sobre os quais o leitor, provavelmente, pouco reflec- tiu, não tendo portanto ideias preconcebidas sobre o assunto. Além disso, a discussão encetada nos capítulos II e III termina no capítulo VII, numa altura em que o leitor estará já familiari- zado com o pensamento fractal. A exposição é facilitada pela multiplicidade de exemplos. Com efeito, temos pela frente a exploração de um bom número de temas distintos, resultando que cada teoria fractal os aborda por uma ordem diferente. Por conseguinte, todos estes temas se unirão sem esforço, ainda que eu me proponha desenvolver apenas as partes de cada teoria que não envolvam grandes dificuldades técnicas. Sublinhemos que diversas passagens, um pouco mais com- plicadas que a média da exposição, podem ser saltadas sem se perder o fio à meada e insistamos em que as figuras se encon- tram no fim de cada capítulo. Inúmeros complementos do texto podem ser encontrados nas legendas, que fazem parte integrante do conjunto, enquanto diversos complementos de carácter matemático foram guardados para o capítulo XN. 27 CAPÍTIJLO II Quanto mede, afinal, a costa da Bretanha? Neste capítulo, o estudo da superfície da Terra serve como introdução a uma primeira classe de fractais, a saber, as curvas de dimensão superior a 1. Por outro lado, aproveitaremos a ocasião para ponderar diversas questões de aplicação mais geral. Considerando um pedaço de linha costeira numa região acidentada, vamos tentar determinar qual é o seu compri- mento efectivo. É evidente que essa linha é, no mínimo, igual à distância em linha recta entre as duas extremidades da linha costeira que considerámos. Assim, se a costa fosse direita, o problema estaria resolvido neste primeiro passo. Contudo, uma verdadeira costa natural é extremamente sinuosa e, por conseguinte, muito mais longa que a dita distância em linha recta. É possível chegar a esta conclusão de diversas formas, mas, em qualquer dos casos, descobrir-se-á que o compri- mento final é de tal maneira grande que se poderá considerar infinito, sem qualquer inconveniente prático. Quando, em seguida, se quiserem comparar os «conteúdos» de costas diferentes, não se poderão deixar de introduzir diversas for- mas do conceito de dimensão fractat até agora propriedade exclusiva de um grupo restrito de matemáticos que nunca acreditaram na possibilidade de uma aplicação concreta do seu trabalho. 29 A diversidade dos métodos de medição Eis um primeiro método: Percorremos a costa com um compasso de abertura determinada T), começando cada passo no ponto em que terminou o anterior. O valor de T), multipli- cado pelo número de passos, dará um comprimento aproxi- mado L(T)). Se repetirmos a operação, com a abertura do compasso cada vez menor, verificar-se-á que L(T)) tende a aumentar constantemente, sem limite bem definido. Antes de discutir este facto podemos notar que o princípio do procedi- mento acima descrito consiste, em primeiro lugar, em substi- tuir o objecto que nos interessa, que é demasiado irregular, por urna curva mais manejável, pois que arbitrariamente suavizada ou «regularizada». A ideia geral é-nos dada por urna folha de alumínio, a qual pode ser utilizada para embrulhar urna esponja, sem chegar a seguir todo o contorno. Uma tal regularização é inevitável, mas ela pode igualmente ser conseguida de outras maneiras. Assim, pode-se imaginar um homem que caminhe ao longo da costa, percorrendo o caminho mais curto possível, garantindo, contudo, que nunca se afasta da linha costeira mais do que urna dada distância T). Depois repete-se o processo, tornando a distância máxima do homem à costa cada vez menor. Em seguida substitui-se o nosso homem por um r51to, depois por urna formiga e assim por· diante. Mais urna vez, quanto mais próximo o animal se mantiver da costa, mais longa será, inevitavelmente, a distân- cia a percorrer. Ainda um outro método, caso se considere indesejável a assimetria que o segundo método estabelece entre a terra e o mar, consiste em considerar todos os pontos, quer de urna quer do outro, cuja distânciaà costa seja, no máximo, igual a T). Imaginamos, portanto, que a costa está coberta, o melhor possível, por urna fita com uma largura de 2T). Mede-se então a área da dita fita e divide-se esse valor por 2T), corno se a fita fosse um rectângulo. Quarto método: imagina-se um mapa, desenhado por um pintor pontilhista, servindo-se de «pontos» grossos, de raio T). Por outras palavras, cobre-se a costa, o melhor possível, com círculos de raio igual a T). 30 Deve ser desde já evidente que, ao dar a 11 valores cada vez menores, todos estes comprimentos aproximados aumen- tam. Continuam ainda a aumentar quando 11 é da ordem do metro, ou seja, desprovido de qualquer significado geo- gráfico. Antes de colocar questões sobre a regra que preside a esta tendência, asseguremo-nos do significado do que agora se acaba de estabelecer. Para isso refaçamos as mesmas medições, substituindo a costa selvagem de Brest do ano 1000 pela costa de 1975, que o homem dominou. A discussão acima ter-se-ia aplicado outrora, mas hoje tem de ser revista. Todas as formas de medir o comprimento «com a precisão de 11» continuam a dar um resultado sempre crescente até ao ponto em que a uni- dade 11 desce abaixo de cerca de 20 m. Encontra-se então uma zona em que L(11) varia muito pouco, só recomeçando a aumentar quando 11 atinge valores da ordem dos 20 cm ou inferiores, ou seja, valores tão pequenos que o comprimento começa a ter em conta a irregularidade das pedras. Daí que, ao traçar um gráfico do comprimento L(11) em função do parâ- metro 11, se encontre hoje uma espécie de patamar que não estaria presente antigamente. Ora, quando se pretende apanhar um objecto que não pára de se mexer, é melhor aproveitar logo que ele se imobilize, por um só instante que seja. Não será, por isso, muito difícil aceitar que um certo grau de precisão na medição do comprimento da costa de Brest se tornou intrín- seco nos dias de hoje. Mas este «intrínseco» é inteiramente antropocêntrico, pois se refere ao tamanho das maiores pedras que o homem pode deslocar ou dos blocos de cimento que decide criar. A situação anterior não era muito diferente, uma vez que o 11 ideal para medir a costa não era nem o tamanho de um rato nem o de uma formiga, mas sim o tamanho de um homem adulto. Portanto, o antropocentrismo desempenhava já um papel, ainda que de uma forma um pouco diferente: de uma maneira ou de outra, o conceito, aparentemente inofensivo, de compri- mento geográfico não é inteiramente «objectivo», nem nunca o foi. Na sua definição, o observador intervém de uma forma inevitável. 31 Dados empíricos de Lewis Fry Richardson Um estudo empírico da variação do comprimento aproxi- mado, L(fl), pode ser encontrado em Richardson 1961. Este texto, que Lewis Fry Richardson nos deixou antes de morrer, contém a fig. 43 deste livro, a partir da qual se chega à con- clusão de que L(T]) é proporcional a T}a. O valor do expoente a. depende da costa em causa e diversos bocados de uma mesma costa, considerados separadamente, permitem frequentemente chegar a valores de a. diferentes. Na perspectiva de Richard- son, o número a. não tinha qualquer significado especial. Con- tudo, este parâmetro merece-nos uma atenção mais cuidada. Primeiras formas da dimensão fractal A minha primeira contribuição para este domínio, quando Mandelbrot 1967 «exumou» - se me é permitido dizê-lo - o resultado empírico de Richardson de um recolhimento onde poderia ter ficado perdido para sempre, consistiu em interpre- tar o parâmetro a.. Interpretei 1 + a. como uma «dimensão frac- tal», designada por D. Reconheci, de facto, que cada um dos métodos de medição de L(T]), enumerados acima, corresponde a uma definição de dimensão, definição já usada nas matemáti- cas p~ras, embora ninguém se tivesse lembrado de a aplicar a casos concretos. Por exemplo, a definição baseada na cobertura da costa por pontos grossos· de raio 11 é utilizada por Pontrjagin e Schnirel- man 1932, a ideia da definição baseada na cobertura por uma fita de largura 211 é atribuída a Minkowski 1901 e outras defi- nições estão ligadas à entropia-épsilon de Kolmogorov e Tihomirov 1959-1961. Contudo, estas definições, que depois serão exploradas no capítulo XIV, são demasiado formais para serem verdadeira- mente elucidativas. Vamos agora examinar mais em pormenor um conceito geometricamente bem «mais rico», que é uma forma adul- terada da dimensão de Hausdorff-Besicovitch, bem como o conceito simples e elucidativo de dimensão de homotetia. 32 Uma tarefa bem mais fundamental é a de representar e explicar a forma das costas, servindo-nos de um valor de D superior a 1. É o que faremos no capítulo VII. Basta aqui afir- mar que a primeira aproximação conduz a D = 1,5, valor este demasiado grande para dar conta dos factos, mas que serve para melhor estabelecer a «naturalidade» do facto de a dimen- são ser maior do que 1. A partir daí, quem quer que pretenda refutar os meus diversos motivos para considerar que, no caso de uma costa, se tem D > 1 não poderá retornar à posição ingénua que admitia sem reflexao D = 1: alguém que pense que assim é fica obrigado a justificar a sua posição. Dimensão fractal de conteúdo. Rumo à dimensão de Hausdorff-Besicovitch Se se admitir que diversas costas naturais têm, «na reali- dade», comprimentos infinitos e que os seus comprimentos antropocêntricos não podem dar mais do que uma ideia extre- mamente parcial, como poderemos comparar esses compri- mentos? Como exprimir a ideia, solidamente enraizada, de que qualquer curva tem um «conteúdo» quatro vezes superior ao de qualquer dos seus quartos? Uma vez que infinito é igual a quatro vezes infinito, é sempre possível dizer que qualquer costa tem um comprimento quatro vezes superior ao de qual- quer dos seus quartos. Contudo, este resultado não tem qual- quer interesse. Felizmente, pode substituir-se o comprimento por uma quantidade melhor adaptada, graças a um procedi- mento que iremos examinar em seguida. A motivação intuitiva desse procedimento parte dos seguin- tes pressupostos: um conteúdo linear calcula-se somando todos os passos 11 não transformados - isto é, elevados à potência 1, que é a dimensão da recta-, enquanto o conteúdo de uma área formada por pequenos quadrados se calcula somando todos os lados desses quadrados elevados à potên- cia 2 - que é a dimensão do plano. Procedamos então dessa maneira no caso da forma aproximada de uma costa que está implícita no primeiro método de medição dos comprimentos. Trata-se de uma linha quebrada, formada por pequenos seg- 33 rnentos de comprimento TI e inteiramente coberta pela união de círculos de raio TI, centrados nos pontos utilizados na medição. Se elevarmos estes passos à potência D, podemos dizer que se obtém um «conteúdo aproximado na dimensão D». Ora veri- fica-se que esse conteúdo aproximado varia pouco com TI· Por outras palavras, verifica-se que a dimensão definida formal- mente acima se comporta da forma habitual: o conteúdo calcu- lado em qualquer dimensão d inferior a D é infinito, ao passo que, para d superior a D, o mesmo conteúdo se anula, compor- tando-se razoavelmente para d = D. Urna definição precisa de «conteúdo» deve-se a Hausdorff 1919, tendo depois sido desenvolvida por Besicovitch. Ela é necessariamente delicada, mas as suas complicações (esbo- çadas no capítulo XIV) não têm qualquer interesse nesta obra. Duas noções intuitivas essenciais: homotetia interna e cascata Ternos vindo a insistir, até agora, no aspecto caótico das costas consideradas corno figuras geométricas. Examinemos agora urna ordem que lhes está subjacente, nomeadamente o facto de os graus de irregularidade que se nos deparam nas diversas escalas serem aproximadamente iguais. É, com efeito, surpreendente que,se considerarmos urna baía ou urna península representada numa carta de 1/100 000 e depois a reexaminarmos numa carta de 1/10 000, nos aper- cebamos da existência, ao longo do seu contorno, de inúmeras sub-baías e subpenínsulas. Sobre urna carta de 1/1000 pode- mos ver ainda surgir diversas sub-sub-baías e sub-subpenínsu- las, e assim por diante. Não é possível prosseguir indefinida- mente, mas pode-se, ainda assim, ir bastante longe, verificando que, embora as cartas correspondentes aos níveis sucessivos de análise sejam bastante diferentes naquilo que têm de especí- fico, possuem sempre o mesmo carácter global, ou os mesmos traços genéricos. Por outras palavras, somos levados a crer que, a urna escala ampliada, um mesmo mecanismo foi res- ponsável tanto pelos pequenos corno pelos grandes pormeno- res das costas. 34 Pode-se imaginar esse mecanismo como uma espec1e de cascata ou, ainda melhor, como um fogo de artifício em anda- res, onde cada andar é responsável por pormenores mais pequenos que o anterior. Estatisticamente falando, cada bo- cado de uma costa assim produzido é homotético do todo - excepto no que respeita aos pormenores, os quais não quere- mos considerar. Diz-se que uma tal costa possui uma homo- tetia interna, ou que é auto-semelhante. Sendo esta última noção fundamental, mas delicada, come- çaremos por a apurar através de uma figura mais regular, que foi criada pelos matemáticos, sem contudo terem qualquer no- ção da sua possível utilidade. Veremos, em seguida, como ela nos conduz à medição do grau de irregularidade das curvas pela intensidade relativa dos pequenos e grandes pormenores, e - no fim de contas - por uma dimensão da homotetia. Modelo muito grosseiro da costa de uma ilha: a curva em floco de neve de von Koch A cascata geométrica de uma costa pode ser simplificada, como o indicam as figs. 44-45. Suponhamos que um bocado da costa, traçado de forma simplificada à escala de 1/1 000 000, é um simples triângulo equilátero. O novo pormenor visível numa carta que represente um dos lados numa escala de 3/1 000 000 é equivalente a substituir o terço central desse lado por um promontório em forma de triângulo equilátero, dando origem a uma figura formada por quatro segmentos iguais. Ampliando de novo a escala para 9/1 000 000, surge um novo pormenor, que consiste na substituição de cada um desses qua- tro segmentos por outros quatro segmentos com a mesma forma, mas três vezes mais pequenos, formando diversos sub- promontórios. Repetindo este procedimento indefinidamente, chega-se a um limite a que se dá o nome de «curva de von Koch» (von Koch 1904). Uma figura que Cesàro 1905 descreveu extasiadamente da seguinte forma: É esta semelhança entre o todo e as suas partes, ainda que infinitesimais, que nos leva a considerar a curva de von 35 Koch como uma linha mais maravilhosa que todas as outras. Se fosse dotada de vida, não seria possível aniquilá-la sem a suprimir por completo, pois ela sempre renasceria das profundezas dos seus triângulos, tal como a vida no uni- verso. Trata-se, sem dúvida, de uma curva e, em particular, a sua área é nula. No entanto, cada etapa da sua construção, segun- do todas as evidências, faz aumentar 4/3 o comprimento total, pelo que a curva de von Koch tem um comprimento infinito - tal como uma costa. Além disso - o que é importante -, ela é contínua, mas não tem tangente em quase nenhum dos seus pontos. É um ser geométrico próximo de uma função contínua sem derivada. Qualquer tratado matemático que se refira a esta curva realça logo que se trata necessariamente de um monstro sem qualquer interesse. E o físico que o leia não pode deixar de estar de acordo. Aqui, contudo, esta conclusão não é legí- tima, pois acabamos precisamente de introduzir a curva de von Koch como um modelo simplificado de uma costa. Se este modelo não é aceitável na prática, não é por ser dema- siado irregular, mas, pelo contrário, porque - em comparação com a de uma costa - a sua irregularidade é demasiado sis- temática. A sua desordem não é excessiva, mas sim insufi- ciente! Vale a pena, a este propósito, citar dois grandes matemáti- cos que, embora não tendo contribuído pessoalmente para a ciência empírica, provaram neste caso possuir um grandes sentido do concreto. Lévy 1970 escrevia: 36 Sem dúvida que a nossa intuição antevia o facto de a ausência de tangente e o comprimento infinito da curva estarem associados a pormenores infinitamente pequenos, que nunca poderíamos esperar desenhar. (Insisto neste papel da intuição, pois sempre me surpreendeu ouvir dizer que a intuição geométrica leva fatalmente a pensar que toda a função contínua é derivável. Desde a primeira vez que encontrei a noção de derivada que a minha experiência pessoal me tem provado o contrário.) Ainda no mesmo espírito, resumindo um estudo apaixo- nante (mas que nunca chegou à noção de dimensão), Steinhaus 1954 escrevia: Aproximamo-nos da realidade ao considerar que a maio- ria dos arcos que surgem na natureza não são rectificá- veis. Esta afirmação é contrária à crença de que os arcos não rectificáveis são uma invenção dos matemáticos e que os arcos naturais são rectificáveis: o contrário é que é ver- dade. Tentei procurar outras citações no mesmo estilo, mas não as encontrei. Fico muito surpreendido. Como é grande o contraste entre os meus argumentos e citações e a célebre invectiva de Charles Hermite (1822-1901) de que só o preocupava o rigor e uma certa ideia de rigor por ele inventada, declarando (escrevendo a Stieltjes) «afastar- -se com pavor e horror dessa praga lamentável das funções sem derivada». (Gostaríamos de crer que esta frase fosse irónica, mas uma recordação de Henri Lebesgue sugere o contrário: «Havia enviado ao Sr. Picard uma nota relativa às superfícies aplicáveis no plano. Hermite opôs-se a certa altura à sua inserção nos Comptes Rendus de 1' Académie. Foi mais ou menos na altura em que escrevia [ ... ]», segue-se o texto acima citado.) O conceito de dimensão de homotetia D. Curvas fractais com D entre 1 e 2 Os comprimentos das aproximações sucessivas da curva de von Koch podem ser medidos exactamente, sendo o resul- tado muito curioso: tem precisamente a mesma forma analí- tica que a lei empírica de Richardson relativa à costa da Bretanha, a saber: L(T\) oc 111- 0 • Uma diferença essencial é que, desta vez, D não é uma grandeza física a estimar empi- ricamente, mas sim uma constante matemática que se vê facil- mente ser igual a log 4/log 3::::: 1,2618. Este comportamento vai permitir definir a dimensão de homotetia, uma nova metamor-, 37 fose da dimensão fractal. Examinaremos ainda outras variantes da curva de von Koch, cujas dimensões estão todas com- preendidas entre 1 e 2. O procedimento parte de uma propriedade elementar que caracteriza o conceito de dimensão euclidiana no caso de objec- tos geométricos simples, possuidores de uma homotetia interna. Sabe-se que, se se transformar uma recta por meio de uma homotetia de razão arbitrária, com o centro situado na recta, obtemos, de novo, exactamente a mesma recta. O mesmo se passa com qualquer plano e até com todo o espaço eucli- diano. Visto que uma recta tem a dimensão euclidiana E= 1, segue-se que, qualquer que seja o inteiro K, o «todo» consti- tuído pelo segmento de recta semiaberto O :::;; x < X pode ser «pavimentado» exactamente (sendo cada ponto coberto uma e uma só vez) por N = K «partes» que são segmentos semiaber- tos da forma (k-l)X/ K :::;; x < kX/ K, com k a variar entre 1 e K. Cada parte deduz-se do todo por uma homotetia de razão r(N) = 1/N. Da mesma maneira, uma vez que um plano tem a dimensão euclidiana E = 2, segue-se que, qualquer que seja o K, o todo constituído pelo rectângulo O :::;; x < X, O :::;; y < Y podeser pavi- mentado exactamente por N = K?- partes, que são os rectângulos definidos por (k -1)X kX (h -1)Y hY ---<x<-· :=;;y<-K K I K K onde k e h variam entre 1 e K. Cada parte obtém-se agora a par- tir do todo através de uma homotetia de razão 38 1 1 r(N) =-=- K NJI2 Para um paralelepípedo regular, o mesmo argumento dá 1 r(N)=- NJI3 Finalmente, sabe-se que não há nenhum problema grave que impeça a definição de paralelepípedos rectângulos cuja dimen- são euclidiana seja D > 3; nestes casos, 1 r(N)=- NJ.ID Tem-se, então, em todos os casos clássicos, a relação ou ainda log r(N) = log - = -( 1 ) log N NJ.ID D D=- log N = log N log r(N) log (1 I r) Bem entendido, a dimensão euclidiana é sempre um número inteiro. Generalizando, observemos que a expressão da dimensão enquanto expoente de homotetia continua a ter um sentido formal para toda a figura que -à semelhança da curva de von Koch- não é nem um segmento nem um quadrado, mas continua a ser tal que o todo é decomponível em N partes que podem ser deduzidas por uma homotetia de razão r (seguida de uma operação de translação ou de simetria). Isto demonstra que, pelo menos formalmente, o domínio de validade do con- ceito de dimensão de homotetia ultrapassa o dos paralelepípe- dos. Além disso, como novidade, o parâmetro D assim obtido não é necessariamente um inteiro. Por exemplo, no caso da curva de von Koch, N = 4 e r= 1/3, pelo que D = log 4/log 3. Pode-se igualmente modificar a construção de von Koch, alte- rando a forma dos promontórios e acrescentando baías - como, por exemplo, se vê nas figs. 46 e 47. Obtêm-se assim curvas aparentadas, de certa maneira, com a anterior, nas quais as dimensões são log 5/log 4, log 6/log 4, log 7 /log 4 e 39 log 8/log 4 = 1,5. A fig. 49 apresenta uma variante que é ime- diatamente interpretada de uma nova forma concreta. O problema dos pontos duplos. A curva de Peano, que enche o plano É agradável verificar que nenhuma das nossas curvas à la von Koch possui qualquer ponto duplo. Já o mesmo não se passará necessariamente se se prolongar a mesma construção, na esperança de obter um valor de D bastante grande. Na fig. 51, por exemplo, mostra-se o que acontece no caso r= 1/3, N = 9. Verificamos formalmente que D = 2, mas a curva-limite correspondente, que é uma curva de Peano, tem inevitavel- mente uma infinidade de pontos duplos. Segue-se que, para ela, o conceito de cobertura muda de significado, tomando-se discutível a noção de dimensão de homotetia. Dimensão de homotetia generalizada Suponhamos que uma figura pode ser dividida em N partes sem que estas, duas a duas, tenham qualquer ponto comum, mas em que cada uma delas pode ser derivada do todo através de uma homotetia de razão r,., seguida eventualmente por uma operação de rotação ou de simetria. No caso em que todos os r,. são idênticos, sabemos que a dimensão de homotetia é D = log N/log (1/r). Generalizando, consideremos N g(d) =L r~ n=l como função de d. Variando d de O a oo, esta função decresce continuamente de N até O, passando uma e uma só vez pelo valor 1. Portanto, a equação g(d) = 1 tem uma e uma só raiz positiva, que designaremos por D. Isto generaliza a dimensão de homotetia. 40 D continua a fazer sentido mesmo quando as partes pos- suem pontos comuns, mas em número «suficientemente pe- queno». Por outras palavras, é normalmente necessário tratar D com alguma precaução formal. Uma falta de atenção pode conduzir aos piores absurdos, conforme se pode ver na fig. 52. Significado físico das dimensões fractais quando não é possível a passagem ao limite. Cortes interno e externo Para obter a curva de von Koch, o mecanismo de adição de novos promontórios cada vez mais pequenos é levado até ao infinito. Isto é indispensável para que a propriedade de ho- motetia interna seja verificada, de modo que uma ou outra das definições de dimensão fractal tenha significado. Verifica-se que, no caso das costas, a suposição segundo a qual os pro- montórios se adicionam indefinidamente é razoável, mas que a homotetia interna só é válida dentro de certos limites. Com efeito, a escalas extremamente pequenas, o conceito de costa sai do âmbito da geografia. Para ser exacto, os pormenores de fronteira entre a água, o ar e a rocha entram no domínio da física molecular. É então necessário pôr a questão do que acon- tece quando não é possível fazer a passagem para infinito. É razoável supor que a costa real está sujeita a dois «cortes». O seu corte externo A mede-se em dezenas ou em centenas de quilómetros. Para uma costa não fechada, A poderia ser a distância de uma extremidade à outra. Para uma ilha ou um lago, A poderia ser o diâmetro do círculo mais pequeno que englobasse toda a costa. Por outro lado, o «corte interno» mede-se em centímetros. Contudo, mesmo nesse caso, o número D mantém ainda o significado de uma «dimensão física efectiva», na forma em que este conceito foi descrito no capítulo I. Quer intuitiva quer pragmaticamente, tanto do ponto de vista da simplicidade como dos termos correctores naturalmente necessários, uma aproximação muito boa da curva de von Koch está mais próxima de uma curva de dimensão log 4/log 3 do que de uma 41 curva rectificável de dimensão 1. Em suma, uma costa é como um novelo de fio. É razoável dizer que, do ponto de vista geográfico (ou seja, na zona de escalas que vai desde 1 m até algumas centenas de quilómetros), a costa tem a dimensão D estimada por Richardson. Isto não impede que, do ponto de vista físico, ela tenha uma dimensão diferente, que estaria associada ao conceito de fronteira entre a água, o ar e a areia e que seria, por este facto, insensível a todas as influências variadas que dominam a geografia. Em resumo, o físico tem razão em tratar a passagem ao limite matemático com uma certa prudência. A dimensão frac- tal implica uma tal passagem, sendo, portanto, suspeita. Já perdi a conta ao número de vezes em que físicos ou enge- nheiros mo fizeram notar. Foi talvez devido a esta suspeição que o papel físico a desempenhar pela dimensão fractal não foi descoberto antes dos meus próprios trabalhos. Mas vemos que, no caso presente, a aplicação do infinitesimal a um objecto finito não deverá provocar quaisquer receios, desde que se proceda com prudência. 42 Fig. 43- COMPRIMENTOS APROXIMADOS DAS COSTAS, SEGUNDO LEWIS FRY RICHARDSON No caso da circunferência, que esta figura trata como se fosse uma curva empírica, vê-se perfeitamente que o compri- mento aproximado L(ll) varia como deve ser: tende para um certo limite quando 11---? O. Em todos os outros casos, L(ll) aumenta sem dar a ideia de convergir para um limite. Esta figura está desenhada em coordenadas bilogarítmicas. Desig- nando o declive das curvas por 1 - D, ela constitui um método para estimar a dimensão fractal D. I COST.• "" 0AAUs.,.,, •""LIA 1.0 1. 5 2.0 2.5 3.0 logaritmo decimal do passo de aproximação (em quilómetros) 3.5 43 Figs. 44-45 - A CURVA DE VON KOCH E A ILHA QUIMÉRICA «EM FLOCO DE NEVE>> O exemplo clássico de curva contínua não rectificável, com uma homotetia interna, é constituído pelo caso-limite dos dia- gramas apresentados em baixo. Chama-se «curva de von Koch» e o interior da curva é muitas vezes chamado «floco de neve», embora eu prefira a expressão «ilha de von Koch». A construção ao fundo desta página parte de uma ilha em forma de triângulo equilátero. Em seguida, o terço central de cada um dos lados de comprimento unitário é substituído por um cabo em forma de /1, cujos lados medem um terço. Obte- mos assim um hexágono regular estrelado ou estrela de David, cujo perímetro tem um comprimento de 4 unidades. Repete-se o procedimento paracada um dos 12 lados, e assim sucessiva- mente, até se atingir o diagrama do cimo da p. 45. Como pode ver-se, a ilha de von Koch inscreve-se natu- ralmente dentro de um hexágono regular convexo. Daí que um método alternativo de construção, de certo modo inverso do anterior, consista em ir cortando baías, a partir de um hexá- gono. Cesàro combinou os dois métodos e no fundo da p. 45 pode ver-se o modo como o contorno da ilha de von Koch se obtém como o limite de uma superfície progressivamente mais recortada. 44 D ~ 1,26 ~~ .tllllf""-. .. . . ' .. ~ ...,~~ ~.tllllf""-. I .. '• I ~~ ... ... ~ ~ ~ ~ ' ~ -' I .. """' , I I .tllllf """- ; ~ .. '" ~ ~ ' ; : ' ,..t"'~ ' ,, ,,~ f'' .. ' ' .. , .. : " - ' ,,. .. , •, ,t ... ,. 45 Figs. 46-47- MÉTODO DE VON KOCH GENERALIZADO Cada um dos gráficos apresentados em baixo fornece a receita para a construção de uma generalização da curva de von Koch. Em cada um dos casos, r = 1 I 4, pelo que a dimensão é uma fracção de denominador log (1 I r) = log 4. A construção parte do intervalo [0,1], que é substituído por um dos «gera- dores» A, B, C ou D, dando origem a uma curva «pré-fractal». Seguidamente substitui-se cada um dos segmentos do pré- -fractal pelo mesmo gerador, reduzido a 1 I 4 do seu tamanho, e assim por diante até ao infinito. As curvas-limite são «auto- semelhantes» e não têm pontos duplos, ao contrário do que acontece com a curva de Peano da fig. 51. Quatro iterações efectuadas a partir dos geradores A e D deram origem às aproximações de curvas fractais exibidas na página seguinte. A curva F tem uma dimensão excessiva rela- tivamente à maioria das costas naturais. Pelo contrário, a curva E possui uma dimensão demasiado pequena. Da mesma maneira, uma função y = fo<x), definida para O < x :5 1, permite a seguinte construção: A: D = log4 5....., 1,16 o o o B: D = log46....., 1,29 D: D = log48 = 1,5 46 Define-se Nx) como a função periódica, de período 1/b, igual, para 1 ::; x < 1/b, a wf0 (bx). Da mesma maneira, f,,(x), de período b-", será igual, para O ::; x < b-", a w-"f0(b"x). Se w < 1/b, a série Ef,,(x) é sempre convergente e a sua soma G(x) é contínua. Contudo, não possui derivada. Weierstrass estu- dou esta construção quando as «partes» f,,(x) são sinusóides. (P.-S. 1989. Os gráficos das funções G(x) não são auto-seme- lhantes, mas «auto-afins». A noção de auto-afinidade é dis- cutida em Mandelbr~t 1985s e 1986t e na contribuição de R. F. Voss em Peitgen e Saupe 1988.) 47 Fig. 49- ESQUEMA ARBORESCENTE DO PULMÃO Nesta figura, urna variante da construção de von Koch é interpretada corno o modelo de um corte do pulmão. Na realidade, trata-se de um modelo medíocre, mas é suficiente para pôr em evidência a ligação que existe entre, por um lado, as conexões que permitem a este orgão estabelecer um contacto íntimo entre o ar e o sangue e, por outro lado, o conceito de objecto fractal. Corno se pode ver no pequeno diagrama ao cimo à es- querda, cada pulmão é um triângulo isósceles, ligeiramente obtuso (tem um ângulo de 90° + E). A traqueia é limitada por um diedro de ângulo 2E. À traqueia junta-se, de cada um dos lados, um brônquio, também limitado por um ângulo de 2E. Este divide o pulmão correspondente em dois lóbulos, supe- rior e inferior, ambos circunscritos por triângulos isósceles semelhantes aos do contorno inicial, com urna razão de seme- lhança de 1/[2 cos (7t/4-E/2)], isto é, um pouco menos de 0,707. Simultaneamente, de cada segmento do contorno externo parte um triângulo de carne, que divide o lóbulo cor- respondente em dois sublóbulos. Acrescentamos assim suces- sivamente, ora de um lado ora do outro, subsub-brônquios e subsubtriângulos de carne. Em baixo, à direita, podemos ver o resultado obtido ao fim de algumas iterações. Conti- nuando indefinidamente a mesma construção, acabaríamos por obter uma secção de pulmão ideal, que seria uma curva de comprimento infinito e com dimensão D ligeiramente infe- rior a 2. Extrapolando para três dimensões, obteríamos então uma superfície pulmonar com dimensão ligeiramente infe- rior a 3. Retomando ao plano, a identidade dos lóbulos superior e inferior é muito pouco realista. O mesmo se passa com o facto de o modelo prever a mesma área para os cortes do conjunto dos brônquios e do tecido. Finalmente, os verdadeiros brônquios bifurcam-se em sub-brônquios de diâmetros com- paráveis, sem que se observem pequenos bronquíolos laterais. Todos estes defeitos do modelo são fáceis de corrigir graças à generalização do conceito de homotetia interna descrito no final do capítulo II e ilustrado na fig. 52. 48 O limite caracterizado por E = O e D = 2 é qualitativamente diferente. Trata-se da curva de Peano representada na fig. 135, que é uma variante da curva da fig. 51. D'""' 1,9 49 Fig. 51 - A CURVA ORIGINAL DE PEANO A expressão «curva de Peano» aplica-se genericamente a toda uma família de curvas patológicas que, entre 1890 e 1925, desempenharam um papel decisivo na elaboração do conceito de dimensão topológica e que se verifica fornecerem uma ex- celente ilustração das relações entre as dimensões topológica e fractal. Nesta figura, a curva original, criada por Peano, foi rodada 45°, de modo a pôr em evidência o seu estreito paren- tesco com a curva de von Kock. A primeira aproximação (o «iniciador») é um intervalo de comprimento 1. A segunda aproximação é o gerador mostrado no diagrama A. Aos três terços do intervalo de comprimento 1 juntam-se no gerador seis intervalos de comprimento 1/3, que, combinados com o terço central do iniciador, formam um «oito» em dois quadra- dos. Para indicar como o gerador é percorrido, estão indicados números de 1 a 9. O diagrama B mostra um quadrado e o diagrama C mostra o que acontece se o gerador for colocado sobre cada um dos quatro lados do quadrado. Tudo o que se encontra «à direita» das cópias do gerador (contornando o quadrado de cima no sentiddos ponteiros do relógio) fica a escuro. O diagrama D separa os pontos duplos do diagrama C, a fim de tornar a curva mais fácil de seguir. Nas terceira e quarta aproximações (diagramas E e F) substituem-se os terços centrais de cada um dos segmentos da aproximação anterior por um «oito» em dois quadrados, continuando a separar-se os pontos duplos, tal como no diagrama D. Nos estados finitos mais avançados da construção vemos surgir uma forma estranha a que se pode chamar «ilha de Peano». O seu invólucro é um quadrado de área duas vezes superior à do quadrado B. As baías penetram-na tão profunda e uniformemente que não há ponto da região que não acabe por se partilhar entre a terra firme e a água em proporções aproximadamente iguais! A curva de Peano estabelece uma correspondência contínua entre os pontos do perímetro do quadrado inicial e o interior do quadrado final, mas esta correspondênca não é unívoca. A curva, com efeito, tem um número infinito de pontos duplos, 50 sendo isso inevitável- ver, no capítulo XIV, a definição de «dimensão topológica». Sublinhemos que esses pontos duplos não puderam ser claramente indicados no gráfico, pois teriam impossibilitado o seguimento da continuidade da curva. Com efeito, sempre que se vêem dois pontos muito próximos, eles, de facto, confundem-se. Uma outra correspondência entre uma curva e o plano estabelece-se através do movimento browniano plano (fig. 59), o qual pode ser considerado uma versão esto- cástica -o capítulo XIII chama-lhe «aleatorizada»- da curva de ·Peano. Se não nos causar transtorno contar os pontos duplos de forma repetida, a curva de Peano mostra uma homotetia interna e uma dimensão fractal igual a 2, em con- formidade com o facto de cobrir o plano. A B 3 J 2Gl~9-~ 7 • • • •• D E : .. • •• •"' F 11 ••• 51 Fig. 52- CILADAS A EVITAR NO ESTUDO DA HOMOTETIA INTERNA GENERALIZADA Uma outra forma de generalizar a curva de von Koch toma como gerador a linha em ziguezague desenhada em baixo. A curva fractal assim obtida consegue-se com quatro figuras, dedutíveis a partir do todo por homotetias de razões respecti- vamente (1- r)/2, r, r e (1- r)/2, em que O< r< 1. Uma dimen- são formal é então definida como sendo o número D que sa- tisfaz r.r~ = 1. Quando r é suficientemente pequeno, incluindo o caso clássico em que se tem rn =r= 1/3, esta dimensão for- mal identifica-se com a definição de homotetia. Mas a iden- tificação sofre certas limitações. Em particular, é necessário que, no plano, D < 2. Ora, quando r> r2 = (1 + ...J6>/S::::: 0,6898, a dimensão formal é superior a 2. A chave do paradoxo é que a homotetia interna só faz sentido estrito na ausência de pontos duplos, o que aqui só acontece quando r é inferior a um dado valor crítico r,, o qual, segundo acabámos de verificar, não pode ultrapassar r2 = 0,6898. Quando r> r2, um grande número de pontos são contados uma enormidade de vezes, o que explica o facto de se ter um D formal superior à dimensão E = 2 do espaço envolvente. Para finalizar, o caso r = 1 parece dar D = oo, o que é impossível. Contudo, este caso tem de ser excluído, pois, para r = 1, a construção de von Koch não con- verge para nenhum limite. r= 2/3 52 CAPÍTULO III O papel do acaso Este capítulo continua a discussão do problema concreto abordado no capítulo II e introduz a discussão da segunda palavra do subtítulo da presente obra. Utilização do acaso para melhorar o modelo de costa representado pela curva de von Koch Por muito que faça lembrar um verdadeiro mapa, a curva de von Koch apresenta dois sérios defeitos que iremos encontrar quase invariavelmente nos primeiros modelos de outros fenó- menos de carácter fractal estudados neste ensaio: as suas par- tes são idênticas e as suas razões de homotetia interna são dadas por uma escala estrita, nomeadamente: 1/3, (1/3)2, etc. Poder-se-ia tentar melhorar o modelo à custa de uma maior complicação do algoritmo, conservando entretanto um carácter inteiramente determinístico, mas este método seria não só fas- tidioso, como de inspiração duvidosa. É claro, com efeito, que todas as costas foram modeladas, ao longo dos séculos, por influências múltiplas que não é possível seguir em pormenor. Quando a mecânica trata de sistemas constituídos por um grande número de moléculas, as leis que regem estas últimas ao nível local são conhecidas em todo o pormenor, mas o seu comportamento global não é tão bem conhecido. Na geomor- 53 fologia, a situação agrava-se, pois o local e o global são igual- mente incertos. A solução, então, mais ainda do que em mecâ- nica, deverá ser de índole estatística. Um tal recurso ao acaso evoca, inevitavelmente, todo o género de inquietações quase metafísicas, mas isso não nos irá preocupar. Este ensaio apenas invoca o acaso, tal como o cál- culo de probabilidades nos ensina a manipular, por ser o único modelo matemático à disposição de quem pretende apreender o desconhecido e o incontrolável. Este modelo, felizmente para nós, é extraordinariamente poderoso e cómodo. Acaso simplesmente invocado e acaso completamente descrito Convém, desde já, sublinhar que, para descrever urna va- riante probabilística da curva de von Koch, não basta dizer: «É só escolher as partes ao acaso e ir mudando de escala.» Esta opinião surge frequentemente, mas desejar e invocar assim o acaso é mais fácil do que descrever as regras que o permitem realizar. Para ser exacto, a primeira questão que se põe é a seguinte: sabemos que o acaso pode originar a irregularidade, mas terá capacidade para originar urna irregularidade tão grande como a das costas, para as quais procuramos um modelo? Verifica-se que não só tem essa capacidade corno é até difícil, em muitos casos, impedir o acaso de ir além daquilo que se pretende. Por outras palavras, parecemos, por vezes, subestimar a capacidade do acaso para criar monstros. A culpa, ao que parece, pode ser atribuída ao facto de o conceito de acaso na física ter sido modelado pela mecânica quântica e pela termo- dinâmica, duas teorias no seio das quais o acaso intervém ao nível microscópico, onde é essencial, ao passo que, ao nível macroscópico, ele é «benigno». Defino este último termo (edis- cuto-o amplamente) num inédito intitulado Formes nouvelles du hasard dans les sciences1 (retornado em parte em Mandelbrot e 1 Em português: Novas Formas do Acaso nas Ciências. (N. dos T.) 54 Wallis 1968 e em Mandelbrot 1973f). Pelo contrário, no caso dos objectos que nos interessam, a homotetia interna faz que o acaso deva ter exactamente a mesma importância em todas as escalas, o que implica que não faça sentido falar de níveis microscópico e macroscópico. Por conseguinte, o mesmo grau de irregularidade que, numa construção determinista (sem acaso) como a de von Koch, teve de ser introduzido artificial e patologicamente pode muito bem, no caso de uma constru- ção aleatória, tornar-se quase inevitável. Lembramo-nos de que foi Jean Perrin quem chamou a atenção para a analogia quali- tativa entre o movimento browniano de uma partícula (fig. 59) e a curva sem derivada de Weierstrass e Norbert Wiener quem transformou esta analogia numa teoria matemática. O precur- sor tinha sido Louis Bachelier, cuja aventura é relatada no capítulo XV. Trajectória do movimento browniano. Este não é um modelo aceitável de uma costa Definamos então o movimento browniano P(t), em que P é um ponto do plano, para conseguir explicar em seguida porque é que a sua «trajectória» não serve para modelo de uma costa. O movimento browniano é, essencialmente, urna sequên- cia de deslocamentos muito pequenos, mutuamente indepen- dentes e isotrópicos (todas as direcções têm a mesma probabili- dade). Do ponto de vista deste capítulo, o mais simples é caracterizar P(t) através das aproximações obtidas por inter- médio de um compasso de abertura fixa 11: qualquer que seja 11, os . passos sucessivos de um movimento browniano têm direcções mutuamente independentes e isotrópicas. A definição habitual é mais indirecta. Para qualquer par de instantes t e t', em que t' > t, define-se o vector deslocamento como um vector de P(t) a P(t'), formulando as seguintes hipó- teses: a) A direcção e o comprimento deste vector são independen- tes da posição inicial P(t) e das posições ocupadas em todos os instantes anteriores a t; 55 b) Este vector é isotrópico; c) O seu comprimento é tal que a sua projecção sobre qual- quer dos eixos obedece à distribuição gaussiana de den- sidade. --;:::::=1 = exp (- xz ) ..J 27t I t'- t I 2 I t'- t I A «trajectória» descrita pelo movimento browniano figura, de agora em diante, entre os «acasos primários» que iremos descrever já a seguir. Infelizmente, ainda não é o que nos convém como imagem de uma costa, por ser exageradamente irregular. Em particular, ela inclui inúmeros pontos múltiplos, no sentido estrito matemático de não enumeráveis, o que, como é evidente, é inaceitável para uma costa. Trata-se mesmo de uma dessas curvas extraordinárias que - tal como a curva de Peano do capítulo II - enchem o plano. Pode-se forçar a ausência de anéis, mas só o faremos no capítulo VII. A noção de acaso primário Entretanto, creio ser útil -pelo menos para certos leito- res- dizer duas palavras acerca das razões (profundas, varia- das e, no fundo, ainda mal conhecidas) que fazem que frequen- temente o resultado de operações deterministas se assemelhe à aleatoriedade descrita pelo cálculo das probabilidades. A questão coloca-se já de uma forma particularmente exem- plar no contexto das entidadespseudo-aleatórias simuladas em computador, de uma forma deliberada e artificial. É assim que os desenhos pretensamente aleatórios que surgem neste livro foram quase todos construídos de uma forma perfeitamente determinística. O procedimento faz uso de uma série de núme- ros, que se tratam como se tivessem sido o resultado do lançamento de um dado de dez faces (O a 9), mas que, na realidade, foram criados por um «pseudodado». Este último consiste num programa de computador, combinado com um número a que se dá o nome de «semente». Este número 56 pode ser escolhido arbitrariamente (digamos, o número de telefone do programador). Mas o programa está escrito de tal maneira que, de cada vez que se «planta» a mesma semente, o pseudodado «dá origem» à mesma sequência pseudo-«alea- tória». Notemos que a imagem da «semente» é elucidativa (e hoje em dia é impossível mudá-la), embora exprima muito mal a intenção de alguém que pretenda simular o acaso. Com efeito, se um jardineiro espera que aquilo que vai recolher não de- penda somente do solo, mas sobretudo do que é semeado, eu espero que a escolha da semente não tenha qualquer efeito marcante sobre as minhas simulações. O pseudodado de dez faces constitui então um sustentáculo obrigatório de qualquer simulação. A montante, o seu carácter é universal, sendo necessário, para o justificar, fazer intervir a fronteira entre a teoria dos números e o cálculo das probabili- dades. Quanto ao jusante, ele é muito variável, dependendo do que está em jogo, exigindo àqueles que o estudam toda uma outra presença de espírito. Surge daí uma divisão muito natu- ral do trabalho entre os especialistas de montante, que não é o meu caso, e os de jusante, entre os quais já me incluo. Tudo isto ajuda a compreender melhor como o cientista ataca o pseudo-aleatório que existe na natureza. Também aí se vêem, em geral, surgir dois estádios, cujo estudo exige espíri- tos muito diferentes. No entanto, já não há aqui um susten- táculo universal, independente do carácter do problema e da forma de o abordar. Tem de se tratar, segundo os casos, com um ou outro de um grande número de «acasos primários» pos- síveis. O mais invocado continua ainda a ser o dado, interpre- tado como um objecto físico ideal, mas existem muitos outros, como sejam os pontos que caem dentro de um círculo com uma distribuição uniforme de probabilidade, ou, estrelas dis- tribuídas pelo céu de uma forma estatisticamente uniforme (relacionada com a lei de Poisson). Notemos que, em havendo não uma, mas duas ou mais variáveis, ou até mesmo uma infinidade delas, quando se trata de caracterizar uma curva, a hipótese primária consiste, tipicamente, em as supor indepen- dentes. E esse o caso dos deslocamentos no movimento browniano. 57 Qualquer que ele seja, o que caracteriza um acaso primário é o facto de intervir como um ponto de separação entre duas fases de uma teoria: o montante, acerca do qual praticamente não falaremos ao longo deste livro, e o jusante, que irá tomar formas variadas e inesperadas. Fig. 59 -TIPOS DE MOVIMENTO BROWNIANO VERDADEIRO E CAOS HOMOGÉNEO Esta figura reproduz algumas porções do movimento brow- niano plano (nomeadamente, três pormenores e um grande bocado) extraíaos deLes Atomes (Perrin 1913). Trata-se aqui de um processo físico, e não do seu modelo matemático: cada seg- mento liga de uma maneira artificial as posições sucessivas, sobre o plano focal de um microscópio, de uma partícula submetida a choques moleculares. Se se observasse a posição da partícula em instantes duas vezes mais próximos, cada salto seria substituído por dois saltos cujo comprimento total seria superior. No modelo matemático, esse alongamento da trajec- tória mantém-se indefinidamente e, por conseguinte, o compri- mento total de cada trajectória é infinito. Já a sua superfície é nula. No entanto, a sua dimensão é D = 2 e (num certo sentido) a figura enche o plano de maneira uniforme. Este é um dos vários sentidos que permitiram a N. Wiener dizer que o «caos» browniano é homogéneo. [Segundo a perspectiva que vamos adquirir no capítulo IV, trata-se aqui, em primeira aproxima- ção, de um voo de Rayleigh, no qual l.P seria uma variável aleatória exponencial, com U a variável aleatória que rege os saltos TI(k) ~ TI(k-1).] · 58 D = 2 - 1- - ~ ~"' • ~ i(~, ~ ..... I' 'N'J 1/ 1/ I. ~tfl ~ 1-'1 Ali ~ I/ ;-r.. v 11\J ,. , IA "" f.li v ' ' I~ D " ...,.,_ ""'i v I .i, 11:0/ I./ ,_ N r-I- v ~~ l'i 1\.. llL,...4 rs;; 1-" - - 59 CAPÍTIJLO IV As rajadas de erros Este capítulo introduz conjuntos, de dimensões compreendi- das entre O e 1, formados por pontos sobre uma recta. Para quem tiver de aprofundar o estudo um pouco mais do que o que aqui fazemos, esses conjuntos apresentam a principal van- tagem de a geometria ser sempre mais simples sobre uma recta do que sobre um plano ou no espaço. Têm, contudo e por outro lado, dois graves inconvenientes: trata-se de poeiras de tal forma «minúsculas» e pulverizadas que é muito difícil dese- nhá-las e desenvolver uma ideia intuitiva. Este aspecto será notado em muitas das legendas. Além disso, o único problema concreto que nos pode servir de suporte é esotérico. O estilo deste capítulo e do capítulo v é um pouco seco e o leitor pode considerar a hipótese de saltar directamente para o capítulo VI, que (parafraseando Henri Poincaré) torna a falar de «problemas que se põem a si próprios», em vez de «problemas que nos pomos». Contudo, este capítulo introduz, no contexto da recta, raciocínios que os capítulos seguintes retomarão nos contextos, menos simples, mas mais importantes, do plano e do espaço. A teletransmissão de dados Toda a linha de transmissão é um objecto físico e toda a quantidade física está inevitavelmente submetida a numerosas flutuações espontâneas, a que se dá o nome de «ruído». 61 As flutuações que aqui nos interessam manisfestam-se par- ticularmente nas linhas destinadas à transmissão de dados entre computadores, ou seja, à transmissão de sinais que podem apenas tomar dois valores: 1 ou O. Ainda que a energia relativa do «1» seja muito forte, acontece por vezes que o ruído é suficientemente intenso para transformar o «1» em «O» ou vice-versa. Por este facto, a distribuição dos erros reflecte a do ruído, simplificando-a - se me é permitido afirmá-lo - até à medula, uma vez que uma função com diversos valores possí- veis (o ·ruído) é substituída por uma função com dois valores: é igual a O se não houver erro e igual a 1 se houver. Ao inter- valo entre dois erros chamaremos «intermissão». O que torna este problema difícil é que se conhece muito mal a forma como o ruído depende da natureza física da linha de transmissão. Num dos casos que iremos discutir, contudo; o ruído apresenta características muito curiosas e muito impor- tantes, não só do ponto de vista conceptual que aqui nos inte- ressa, como também do ponto de vista prático. (Ver os P.-5. da p. 74.) Sem perder muito tempo com este último aspecto, é de assinalar que a raiz dos trabalhos descritos neste ensaio se encontra no estudo dos ruídos em causa. O meu interesse.pelo assunto, sem supor o seu impacte futuro, deve-se à existência de uma questão prática importante e que escapava às ferra- mentas normais dos especialistas. Analisemos então os nossos erros de uma forma um pouco mais refinada. Antes de tudo, observemos os intervalos de uma hora durante os quais não ocorre nenhum erro. Desta forma, todo o intervalo de tempo limitado por duas inter- missões de duração igual ou superior a uma hora se chamará uma «rajada de erros», a qual será considerada «rajada de ordem 0». Mas, observando-a mais em pormenor, encontramos diversas intermissões de6 minutos ou mais, que separam «ra- jadas de ordem 1». Da mesma maneira, cada uma destas últi- mas rajadas contém diversas intermissões de 36 segundos ou mais a separar as «rajadas de ordem 2». E assim por diante ... , cada etapa sendo definida por intermissões pelo menos dez vezes mais curtas que a precedente. Para se ficar com uma ideia desta hierarquia é conveniente examinar a fig. 71. 62 Empiricamente, o mais notável é que as distribuições de cada ordem de rajadas, quando comparadas com a ordem imediatamente superior, se revelaram idênticas do ponto de vista estatístico. Descobre-se assim um novo exemplo de homotetia interna. A dimensão fractal não anda longe, mas, antes de a precisar, vamos- como no capítulo II- inverter a ordem do desenvolvimento histórico das ideias e examinar antes, não o modelo que eu recomendo, mas uma variante não aleatória, muito grosseira, que é nitidamente mais simples, em- bora muito importante em si mesma. Um modelo grosseiro das rajadas de erros. A poeira de Cantor, um fractal de dimensão compreendida entre O e 1 Acaba de ser descrito o conjunto dos erros, ao retirar à recta intermissões cada vez mais pequenas. Observando esta estru- tura, não posso deixar de pensar numa célebre construção matemática cujo resultado é geralmente conhecido por «con- junto de Cantor», mas que neste livro receberá a nova desig- nação de «poeira de Cantor». O nome de Georg Cantor domina a pré-história da geometria fractal. Atrasei deliberadamente a citação do seu nome neste ensaio, pois é bem sabido que esse nome nunca deixa de provocar uma certa repulsa entre os físicos. Vou tentar demonstrar que esta repulsa é injus- tificada. A poeira triádica de Cantor constrói-se em duas etapas: pri- meiro interpola-se, depois (etapa geralmente menos conhecida, mas essencial) extrapola-se. Para a interpolação procede-se da seguinte maneira. Parte- -se do segmento [0,1] (a orientação dos parênteses indica que ambos os extremos estão incluídos) e retira-se o terço central, designado por ]1/3, 2/3[ (este já não inclui os extremos). Em seguida, a cada um dos terços restantes retira-se o seu próprio terço central, e assim por diante até ao infinito. O resultado final desta interpolação é de tal maneira ténue que é impossível representá-lo graficamente por si só. Felizmente que ele é idên- 63 tico à intersecção da «barra de Cantor» (fig. 72), com o seu eixo, ou da curva de von Koch (um terço da costa da ilha ilustrada no cimo da fig. 45), com o segmento que constitui a «base». Quanto à extrapolação mais simples, ela duplica repetida- mente o número de réplicas do conjunto interpolado. Antes de tudo, posiciona-se uma réplica sobre o segmento [2, 3], ob- tendo-se assim o conjunto original aumentado de uma razão de 3. Em seguida colocam-se duas réplicas sobre [6, 7] e [8, 9], respectivamente, obtendo-se assim o conjunto original aumen- tado uma razão de 9. O passo seguinte é colocar quatJo répli- cas sobre [2 x 9, 2 x 9 + 1], [2 x 9 + 2, 2 x 9 + 3], [2 x 9 + 6, 2 x 9 + 7] e [2 x 9 + 8, 3 x 9], para se obter o conjunto original aumentado 27 vezes, e assim por diante. Não é difícil ver que a poeira de Cantor interpolada e extrapolada possui uma homotetia interna e que a sua dimen- são é log 2 D =-- = log32 = 0,6309 log 3 Além disso, variando a «regra de dissecção», pode-se igual- mente chegar a dimensões diferentes, mas sempre compreendi- das entre O e 1. Pode-se igualmente verificar que, sobre a porção [O, 1] da poeira de Cantor, o número de intermissões de comprimento superior a u é N(u) oc u-0 . Mais precisamente, N(u) é represen- tado por uma curva em escada, passando constantemente para um lado e outro de u-0 . Nova intervenção da dimensão- e nova forma de a medir! Número médio de erros no modelo cantoriano Como já fizemos para uma costa, pode-se obter uma ideia grosseira da sequência de erros que nos interessa executando a iteração cantoriana um número finito de vezes. Pára-se a 64 interpolação no momento em que ela atinge segmentos iguais a uma pequena escala interna 11, correspondente à duração de um símbolo de comunicação. Pára-se a extrapolação quando se atinge uma grande escala externa A. Finalmente, para obter uma sequência de comprimento superior a A, repete-se esta construção de forma periódica. Qual vai ser então o número M(R) de erros numa amostra de comprimento R crescente? Quando a amostra começa na origem, é fácil ver que, se R é menor do que A, o número de erros duplica de cada vez que R triplica. Portanto, o número total de erros cresce como M(R) oc R0 e o número médio de erros decresce aproximadamente com RD-1• Paremos um pouco para notar um novo tema essencial. A geometria elementar ensina-nos o papel desempenhado por D nas expressões que dão o comprimento de um segmento, a área de um círculo e o volume de uma esfera. Pois bem, esse papel acabou de ser generalizado a valores de D que não têm de ser inteiros! Retomemos aos erros. Se A é finito (tendo terminado a extrapolação), o seu número médio decresce até um valor não nulo, oc AD-t, que é atingido quando R= A, mantendo-se depois constante. Se A é infinito, a média continua a baixar, até zero. Finalmente, se os dados sugerem um A finito e muito grande, mas sem permitir uma boa estimativa, o limite inferior da média é não nulo, ficando porém muito mal definido e, por- tanto, sem qualquer utilidade prática. Com A finito pode-se igualmente fazer a amostra come- çar no meio de uma intermissão. Neste caso, a média começa por ser nula e assim permanece tanto mais tempo quanto mais longa for a intermissão. Contudo, quando R = A, acaba por atingir o mesmo valor final oc A D-1• Quanto maior for o valor A, mais pequena é a média final e mais comprido é o período inicial sem erros, ou seja, maior é a probabilidade de a amostra que vai de t a t + R estar isenta de erros. Quando A ~ oo, esta última probabilidade tende para a certeza, colo- cando assim problemas delicados que resolvi através da intro- dução do conceito de processo esporádico em, Mandelbrot 1967b. 65 Poeira de Cantor truncada e aleatorizada, condicionalmente estacionária As insuficiências da poeira de Cantor, do ponto de vista prático, prendem-se com a sua excessiva regularidade e com o facto de a origem desempenhar um papel privilegiado, o que não tem qualquer justificação. É, portanto, necessário pro- curar um objecto análogo, que será irregular por ser aleatório e apenas sobreponível sobre si próprio do ponto de vista es- tatístico. A terminologia probabilística qualifica-o de estacio- nário. Berger e Mandelbrot 1963 propuseram um meio simples de atingir parcialmente esse objectivo. O ponto de partida é uma aproximação truncada da poeira de Cantor, cujas escalas in- terna e externa satisfazem 11 >O e A< oo. Basta aleatorizar (lançar ao acaso) a ordem das suas intermissões, para as tornar estatisticamente independentes umas das outras. Além disso, a regra da p. 64, a respeito dos comprimentos das intermissões, comporta uma função em escada. Substituúno-la pela própria expressão u-D. Em resumo, formulamos as hipóteses de as sucessivas inter- missões serem inteiros estatisticamente independentes e de a distribuição dos seus comprimentos satisfazer a «distribui.ção hiperbólica» Pr(U ~ u) = u-v, que se lê: «A probabilidade de igualar ou exceder u é u-D.» A hipótese da independência leva a que se diga que os erros constituem um «processo de renovação», também chamado «processo recorrente». Se a origem é um «ponto de recor- rência», o futuro e o passado são estatisticamente indepen- dentes, mas, se a origem é escolhida arbitrariamente, eles não o são. Encontraremos a distribuição hiperbólica por diversas ve- zes, pois ela está ligada a tudo o que digarespeito à homotetia estatística. Vamos mostrar que os erros assim distribuídos podem, efec- tivamente, ser vistos como formando rajadas hierarquizadas. Na ausência de um outro termo bem aceite (e para evitar o anglicismo habitual clustering), proponho uma palavra que se entende por si mesma e direi que os erros aparecem num 66 «amontoamento»1 muito nítido e cuja intensidade é medida pelo expoente D. Para definir quando é que há amontoamento estabeleçamos então um «limiar» u0• Definimos uma «rajada-u0» como uma sequência de erros contidos entre duas intermissões de com- primento superior a u0• Separemos, em seguida, a sequência de erros em rajadas-u0 sucessivas. Distinguimos as intermissões «> u0» e «< u0» e consideramos as durações relativas dessas intermissões, ou seja, as durações divididas por u0• Para um D pequeno, as durações relativas das intermissões > u0 têm uma forte probabilidade de ser muito claramente superiores a 1 (o seu limite inferior): por exemplo, sabendo que U > u0, a proba- bilidade condicional de que U > 5u0 é s-v. Tende, portanto, para 1 quando D tende para O. Pelo contrário, as durações rela- tivas das intermissões < u0 tornam-se, na sua maioria, muito inferiores a 1. É, por isso, razoável concluir que as rajadas-u0 são claramente separadas, o que justifica, precisamente, a designação de «rajada». Além disso, o mesmo resultado é válido para todo o u0, sendo, por consequência, as rajadas hierarquizadas. Todavia, à medida que D aumenta, a separação entre as rajadas torna-se menos acentuada. Um facto espantoso, descoberto por Berger e Mandelbrot 1963, é o verificar-se que os conjuntos assim obtidos represen- tam de forma extremamente conveniente os nossos dados empíricos sobre os erros de transmissão. Além disso, diversos cálculos relativos à poeira de Cantor são consideravelmente simplificados. Comecemos por supor que A < oo e calculemos o número médio de erros num intervalo de t a t + R, em que R é muito superior à escala interna 11 e muito inferior à escala externa A. É conveniente proceder em duas etapas. Em pri- meiro lugar, supõe-se que se dá um erro no instante t ou, mais genericamente, que, entre os instantes te t +R; o número M(R) de erros é, pelo menos, igual a 1. Os valores assim calculados 1 Como é evidente, a mesma dificuldade pode surgir em português~ Por também não haver tradução única em português de clustering, propôe-se a palavra «amontoamento». Cluster será <<amontoado» (N. dos T.) 67 não são absolutos, mas condicionais. Verifica-se que o valor médio condicional de M(R) é proporcional a R0 , pelo que é independente de A, e que a razão entre M(R) e o seu valor médio é independente de R e de A. No entanto, o essencial é a forma sob a qual a dimensão é introduzida na distribuição condicional de M(R). Numa poeira de Cantor tudo dependia da posição detem relação à origem. Aqui, pelo contrário, toda a distribuição condicional é invariante em relação à posição de t, de onde se extrai a conclusão de que a relação M(R) oc R0 é válida para todo o A> R, continuando a ser válida quando A se toma infinitamente grande. O que depende fortemente de A é a probabilidade de o número de erros ser não nulo. Em particular, consideremos a probabilidade de o intervalo de t a t + R cair todo dentro de uma intermissão de grande comprimento. Quando A aumenta indefinidamente, essa probabilidade avizinha-se de 1 e a pro- babilidade de observar um erro toma-se infinitamente pe- quena. Mas isto não afecta em nada a probabilidade condicio- nal do número de erros, garantindo-se à partida ou que haja· um erro no instante preciso t, ou que haja pelo menos um erro algures no intervalo de t a t + R. Iremos retomar esta disdtssão no capítulo seguinte, a propósito daquilo que se chamará «princípio cosmográfico condicional». Poeira de Lévy, obtida a partir da recta aparando «tremas» ao -acaso Retomemos ao conjunto postulado por Berger e Mandelbrot 1963. Enquanto modelo da distribuição de erros, os seus de- feitos eram os factos de a representação permanecer imperfeita nos seus pormenores, de a restrição TJ > O ser esteticamente deselegante e de a própria construção ser tão arbitrária que não poderia ser considerada satisfatória. Além disso, o -seu espírito afasta-se demasiado do da construção de Cantor. Por isso, propus rapidamente uma alternativa, que se revelou superior sob todos os aspectos (ver Mandelbrot 1965c). Con- siste em substituir a poeira de Cantor por uma variante alea- 68 tória chamada «poeira de Lévy». A definição clássica reinter- preta a distribuição hiperbólica Pr(U ~ u) = u-0 • Supusemos até agora que u é um inteiro ~ 1, enquanto Lévy supõe que u é um real positivo. Desta maneira, a «probabilidade» total deixa de ser igual a 1, para passar a ser infinita! Apesar das aparências, esta generalização tem um sentido preciso, embora implique diversas dificuldades técnicas que convém evitar. Fá-lo-emos adoptando uma outra construção, mais natural, proposta em Mandelbrot 1972z. Para a introduzir, será útil descrever a construção de Cantor por meio de «tremas virtuais». (É possível que este método seja inédito, pois não terá tido qualquer utilização até ao presente.) Parte-se, uma vez mais, de [0,1] e de novo se apara o terço central ]113, 213[, mas, depois disso, pretende-se aparar os terços centrais de cada terço de [0,1]. Tendo o terço central de [0,1] já sido aparado, apará-lo uma segunda vez não tem qualquer efeito real. Contudo, esses «tremas virtuais» revelam-se muito cómodos. Aparam-se, da mesma maneira, os terços centrais de cada nona parte de [0,1], de cada vigésima sétima parte, etc. Convém aqui notar que o número de tremas de comprimento superior a u vem a ser grosso modo igual· a (1 - D) I u, onde D é uma constante determinada pelas regras de dissecção. Dito isto, aleatorizemos então os comprimentos e as posi- ções dos tremas acima referidos. Escolhemo-los independente- mente uns dos outros, e de tal maneira que o número médio de tremas de comprimento superior a u seja (1 - D) I u. Ao escolhê-los de maneira independente, permitimos aos tre- mas cruzarem-se ou serem virtuais no sentido definido no paráfrafo precedente. Os pormenores técnicos interessam pouco. O essencial é que o resultado da construção depende radicalmente do sinal de D. Quando D ~O e se pára nos tremas de comprimento 11 >O, é pouco provável que sobre alguma coisa. Se sobrar, será, sem dúvida, um intervalo muito pequeno. Seguidamente, quando 11 ---7 O, torna-se quase certo (a probabilidade torna-se igual a 1) que os tremas não deixem a descoberto quase nenhuma ponto da recta. (Continua na p. 74) 69 Fig. 71- MOVIMENTO BROWNIANO ESCALAR: SEUS ZEROS E SUA CRÓNICA A primeira linha representa a sequência completa dos ga- nhos acumulados do «Pedro» sobre o «Francisco» ao fim de SOO lançamentos sucessivos de uma moeda. Supõe-se que o jogo se mantém sempre justo (as probabilidades· de cara e coroa são iguais) e que o Pedro (ou o Francisco) ganha uma certa quantia quando a moeda sai. «cara» (ou «coroa»). Segue- -se qu~ o ganho acumulado pelo Pedro efectua uma passeata (=passeio aleatório, ver capítulo XIII) sobre uma recta. Temos aqui uma aproximação discreta do movimento browniano es- calar. A linha 1 é uma crónica (time series2) dos garihos acumu- lados do Pedro ao longo de 550 lançamentos. _As linhas 2 e 3 representam a mesma crónica se a partida se prolongar por 10 000 lançamentos sucessivos. Para _maior clareza do desenho, os ganhos são marcados em intervalos de 20 lançamentos. Esta. figura de um manual conhecido, Feller 1950, foi reproduzida com o consentimento dos editores. O exame repetido destas curvas desempenhou um papel de- cisivo na elaboração das teorias descritas neste ensaio. Antes de tudo,consideremos unicamente os zeros da nossa função. Ou seja, os instantes em que as fortunas do Pedro e do Fran- cisco retornam ao ponto de partida. Embora os intervalos entre esses zeros sejam independentes, as suas posições parecem agrupar-se em rajadas hierarquizadas bem distintas. Por exem- plo, cada zero da primeira linha é substituído, na segunda linha, por toda uma rajada de pontos. Se se estivesse a tratar do movimento browniano, ter-se-ia podido continuar a subdi- vidir as rajadas até ao infinito. Muito a propósito, esta hierarquia veio-me à ideia quando abordei o problema da distribuição temporal dos erros de tele- fone de que trata o capítulo IV. Sabia-se que esses erros se agrupavam em rajadas, mas quis verificar se os intervalos entre erros não seriam independentes. Um estudo empírico 2 Sequência temporal>>. Em inglês, no original. (N. dos T.) 70 confirmou esta conjectura, conduzindo aos modelos discutidos no texto. Note-se que os zeros do movimento browniano - de que esta figura forma uma aproximação discreta- constituem a variante mais simples de uma poeira de Cantor aleatória de dimensão D = 0,5. Qualquer outro D que se deseje - caso esteja compreendido entre O e 1 - pode ser obtido através dos zeros de outras funções aleatórias. A dimensão fractal de uma sequência de erros de telefone define-se à custa deste modelo. O seu valor depende das características precisas do substrato físico. Examinemos de seguida não só os zeros da curva de cima, mas também o conjunto dos seus valores. Em Mandelbrot 1963e notei que a sua forma faz lembrar a dos cortes verticais do relevo terrestre. Generalizada por diversas vezes, esta ob- servação conduziu aos modelos do capítulo vn. Um processo de Poisson. Os instantes em que o Pedro e o Francisco jogam não têm necessariamente de estar distribuídos uniformemente no tempo. Podem ser escolhidos ao acaso, in- dependentemente uns dos outros, com a mesma densidade. Formam então um processo de Poisson. Apesar de o resultado não diferir da passeata acima descrita senão de uma forma im- perceptível, verifica-se que apresenta diversas vantagens. Em particular, a sua construção é generalizável ao caso multidi- mensional, conforme se verá no capítulo VII. 100 200 300 •oo soo -. D = 1.5 6000 7000 8000 9000 10.000 71 Fig. 72 -A BARRA DE CANTOR A intersecção desta barra pulverizada com o seu eixo é uma poeira de Cantor, um conjunto de tal maneira ténue que é impossível ilustrá-lo directamente. D = log3 2 ,.., 0,63 11 11 11 11 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Fig. 73 - A ESCADA DO DIABO = = O termo matemático oficial para designar a função y = f(x) ilustrada nesta figura é «função de Lebesgue da poeira de Can- tor». Sobre cada uma das intermissões desta poeira, f(x) é cons- tante. Na aplicação prática discutida no capítulo IV, L\x é um intervalo de tempo, sendo !ly a energia de um ruído durante este intervalo. É conveniente pensar nessa energia como es-_ tando uniformemente distribuída ao longo da vertical. Neste caso, a correspondência inversa x = fl(y) indica a maneira como esta regularidade se quebra; pode-se dizer que ela «se fractaliza», dando lugar a uma distribuição muito irregular. 72 Uma função que generaliza r ao caso do plano, ou do espaço a três dimensões, está implícita no estudo dos voos de Lévy, tal como eles aparecem ilustrados nas figs. 107 a 113. É preciso imaginar k como uma coordenada perpendicular ao plano de uma dessas figuras e o k-ésimo movimento da escada como sendo paralelo a um salto do desenho, localizado à altura k. Se se supõe que a repartição da massa galáctica é uniforme sobre o eixo dos k, a função r torna-a fractal, isto é, terrivel- mente não uniforme no plano ou no espaço. 73 Pelo contrário, quando O < D < 1, os tremas·- deixam a descoberto um certo conjunto muito pequeno, que se verifica ser precisamente uma poeira de Lévy de dimensão igual a D. Para este conjunto, a homotetia interna estatística é uni- forme, no sentido de que a razão r pode ser escoThida sem restrições, contrariamente ao conjunto de Cantor, para o qual r devia ser da forma 3-k, com k inteiro. É realmente uma pena (como foi dito no princípio deste capítulo) que não haja nenhum bom método directo para ilus- trar os resultados que acabam de ser apresentados. No en- tanto, da mesma maneira que a poeira de Cantor se pode imaginar muito bem de forma indirecta, através da intersecção da curva de von Koch com a sua base, pode-se imaginar a poeira de Lévy de forma indirecta, através da cidade de ruas aleatórias representada na fig. 75. A construção prolonga cada trema da recta numa direcção do plano escoThida ao acaso. Ao passo que as «casas» restantes têm uma dimensão D > 1, a sua intersecção com uma recta arbitrária é uma poeira de Lévy de dimensão D - 1. Pelo contrário, se D < 1, a intersecção será quase de certeza vazia. P.-S. Os físicos compreendem muito bem a natureza dos ruídos clássicos, os quais dominam a transmissão de sinais fracos. O mais importante e o mais bem conhecido é o ruído térmico. Mas o problema que aqui nos preocupa diz respeito a sinais de tal maneira intensos que os ruídos clássicos são desprezáveis e só ficam os outros. Estes últimos são difíceis e apaixonantes, uma vez que a sua compreensão é ainda muito precária. O argumento fractal esboçado neste capítulo con- tribui para a sua compreensão. P.-S. 1989. Verifica-se que o parâmetro D de Berger e Man- delbrot 1963 depende da intensidade do sinal transmitido. En- contra-se aqui a origem da noção de medida multifractal; ver capítulo IX e Mandelbrot 1988c, 1989e, 1989g. 74 Fig. 75 -EFEITO DOS TREMAS EM FORMA DE BANDA. CIDADE DE RUAS ALEATÓRIAS O plano é percorrido por bandas de direcção isotrópica. As suas larguras são tais que a intersecção da vertical com a banda de ordem p tem comprimento Q/p = (2- D)/p (a ordem p de urna banda surge quando as bandas sáo classificadas por intersecções decrescentes). O diagrama corresponde a um valor de D próximo de 2. A sua intersecção com urna recta qualquer é urna poeira de Lévy de dimensão D- 1, próxima de 1. Se o mesmo processo for levado até ao infinito, a área que «sobra» para as casas é ·nula. (Dever-se-ão construir arranha- -céus de altura infinita?) Quando Q é superior a 2, têm-se apenas «ruas» e não existem «casas». D,.., 1,9 75 CAPÍTULO V As crateras da Lua A lógica do desenvolvimento do modelo dos tremas, com o qual terminou o capítulo anterior, leva-nos agora aos tremas do plano, em forma de discos. Embora o seu interesse seja incomparavelmente mais geral, iremos introduzi-los por meio de uma discussão, rápida e um pouco seca, do relevo lunar. A Lua servir-nos-á, assim, de etapa intermédia para os objectos celestes estudados no capítulo seguinte. O termo «cratera» implica uma origem vulcânica, embora, na realidade, as crateras lunares sejam atribuídas ao impacte de meteoritos. Quanto maior é um meteorito, maior e mais profundo é o buraco que ele provoca. Contudo, um novo impacte de grandes proporções pode apagar os vestígios de muitos outros anteriores e um novo impacte de um meteorito pequeno pode «quebrar» os rebordos de uma grande cratera mais antiga. Além disso, outras forças contribuem para modi- ficar a superfície da Lua. No fim de contas, é necessário, no que diz respeito às origens e às áreas das crateras, distinguir duas distribuições diferentes: aquela que é observada e aquela que está subjacente. Supomos (isto é uma aproximação draco- niana!) que os rebordos das crateras se apagam de repente ao fim de um certo tempo que não está relacionado com o seu tamanho. Quanto às áreas das crateras, Marcus 1964 e Arthur 1954mostraram que seguem uma distribuição hiperbólica de expoente y próximo de 1. Admitimos que esta é a distribuição 77 subjacente. Finahnente, trabalhamos com base no plano, e não na superfície da esfera. Isto leva-nos a generalizar a duas dimensões a construção dos tremas aleatórios, tratada no capítulo IV. Ao substituir os intervalos por discos, faremos que tudo se mantenha isotrópico (isto é, invariante para a rotação do conjunto). Um primeiro problema consiste em determinar se existem partes da Lua que permaneçam eternamente sem uma cratera. Se a resposta for afirmativa, é necessário caracterizar a estru- tura geométrica do conjunto não coberto por crateras. É pre- ciso notar que a hipótese de desgaste brutal dos bordos signi- fica que a duplicação do «tempo de vida» V antes do desgaste equivale à duplicação do número de crateras de cada área. Eis as respostas às questões acima colocadas. Antes de tudo, existem dois casos de reduzido interesse matemático, os quais - isso não era evidente a priori! - não se aplicam à realidade. Se o expoente y da lei das áreas das crateras for inferior a 1, é quase certo -qualquer que seja o tempo de vida de uma cratera- que o resultado do bombardeamento meteórico consistirá em cobrir todos os pontos da superfície lunar com, pelo menos, uma cratera. Se y > 1, qualquer quadrado da superfície lunar tem uma probabilidade não nula de ser exte- rior a qualquer cratera. Essa superfície fica então com a aparência de uma fatia de queijo de Emmenthal: uma canção ensinava às crianças britânicas que a Lua era feita de queijo verde. Não estaria, portanto, enganada quanto à substância, mas sim quanto à cor e à proveniência. Quanto maior for o valor de y, menor será o número de pequenos buracos e mais maciço será o nosso queijo. Vejamos agora o caso interessante. Se y = 1 e o tempo de vida V das crateras for superior a uma certa constante V0, é quase certo, mais uma vez, que nenhum ponto será exterior a todas estas crateras. Se V > V O' pode-se simplesmente dizer que este conjunto não contém nenhum quadrado- por muito pe- queno que seja esse qu~drado. Além disso, a sua área (definida como medida de Lebesgue) é igual a zero. Finahnente, a sua dimensão tende para O quando V aumenta. Quando V é menor do que V O' o conjunto não coberto é um fractal. Se V for muito pequeno, este fractal tem uma dimensão 78 próxima de 2, assemelhando-se a filamentos infinitamente bi- furcados, que separam os buracos, muito pequenos e que não se sobrepõem muito uns aos outros. Talvez o amador aí reco- nheça, comigo, uma extrapolação evanescente da estrutura do queijo suíço de Appenzell. Quando V cresce e D decresce, pas- sa-se progressivamente para um Emmenthal, que também desaparece, mas desta vez por culpa de buracos grandes que frequentemente têm partes comuns. Entre outras coisas, inclui muitos bocados rodeados por coroas vazias muito irregulares. Depois, para um certo valor «crítico» D, a situação altera-se qualitativamente: os nossos «filamentos» de queijo decom- põem-se e o conjunto não coberto por nenhuma cratera trans- forma-se numa poeira. Estes últimos resultados são ilustrados nas figs. 80 a 83. Eles ultrapassam bastante em importância o problema relativo às crateras da Lua. 79 Figs. 80-81- FATIAS DE «QUEIJO FRACfAL DE APPENZELL», COM BURACOS REDONDOS ALEATÓRIOS Cortamos no plano uma série de tremas circulares, marca- dos a branco, com os seus centros distribuídos ao acaso (dis- tribuição de Poisson) e com os raios escolhidos de forma a assegurar a homotetia interna estatística. Estes raios deveriam ser aleatórios, mas na prática escolhemo-los na forma Q/-./p, onde p é a ordem de um trema na classificação por raios decrescentes e Q é uma constante. Permite-se a um trema pequeno intersectar um outro maior. Não é de espantar que, se a construção acima descrita fosse levada até ao infinito, a área do que restava fosse nula. Con- tudo, a nossa intuição não nos diz se restaria o que quer que 80 fosse e, em caso afirmativo, se o resto seria constituído por fios conexos ou por uma poeira de pontos. A resposta às questões que acabam de ser colocadas de- pende de Q. Em particular, D = 2 - 2xQ2. Quando Q é muito pequeno, por . um lado, os tremas só cobrem o plano muito lentamente e, por outro, o resto con- serva uma interconexão muito forte, como se vê no diagrama da p. 80, no qual vejo uma semelhança com o queijo suíço de Appenzell. Este diagrama tem uma dimensão fractal de 1,99. No diagrama da p. 81, a dimensão torna-se D = 1,99, sem que tenha mudado a semente do gerador pseudo-aleatório. Multi- plicaram-se, portanto, as áreas dos tremas precedentes por uma constante superior a 1. O efeito é evidente: a interconexão do que resta diminuiu de forma nítida. 81 Figs. 82-83- FATIAS DE <<QUEIJO FRACTAL DE EMMENTHAL», COM BURACOS REDONDOS ALEATÓRIOS Retornemos o procedimento da figura anterior, continuando a diminuir D, sem mudar de semente, e pintando os tremas de preto. O resultado, para D = 1,75, é ilustrado no diagrama da p. 82 (um queijo Ernrnenthal um pouco vazio). Da mesma maneira, o caso D = 1,5 é ilustrado no diagrama da p. 83, quase evanescente. Enquanto D >O, o «resto» tem medida nula, mas não é vazio. De qualquer das formas, toma-se vazio se Q ultrapassar 1/--Jn, significando que o D formal definido por 2 - 27tQ2 se toma negativo e deixa de ser urna dimensão. 82 83 CAPÍTULO VI A distribuição das galáxias Neste capítulo retomamos ao estudo pormenorizado de um importante problema corrente. Proponho-me demonstrar que a teoria de Hoyle de formação das estrelas e das galáxias, o modelo descritivo de Foumier d' Albe e (mais importante ainda) os dados empíricos são unânimes em sugerir que a distribuição das galáxias no. espaço inclui uma grande zona de homotetia interna, no seio da qual a dimensão fractal é próxima de D = 1. Sem qualquer dúvida, esta zona não se estende às pequenas escalas, parando antes mesmo que se atinjam objectos de contornos precisos, como os planetas. Mas não é certo se, nas grandes escalas, esta zona se estende até ao infinito ou se, pelo contrário, se fica pelos amontoados de galáxias (ver o exemplo do novelo de fio, discutido no capí- tulo I), seguindo-se uma zona onde a dimensão parece ser D = 3. Conforme a resposta a esta questão muito controversa, a zona em que D < 3 será mais ou menos vasta. O problema da distribuição das estrelas, das galáxias, etc., fascina tanto o amador como o especialista, mas permanece uma questão secundária em relação ao conjunto da astronomia e da astrofísica. Sem dúvida, isso deve-se à falta de uma boa teoria. Nenhum especialista tem a pretensão de ter conseguido explicar porque é que a distribuição da matéria celeste é irre- gular e hierarquizada, como indica a observação a olho nu 85 e confirma o telescópio. Esta característica é assinalada em todas as obras, mas, quando se passa aos desenvolvimentos sérios, a quase unanimidade dos teóricos supõe imediatamente que a matéria estelar está distribuída de uma maneira uni- forme. Uma outra explicação para esta hesitação em tratar o irregu- lar é a inexistência de qualquer descrição geométrica para ele, tendo todas as tentativas efectuadas para a conseguir acabado por reconhecer as suas deficiências. Desta forma, tudo o que se poderia fazer era pedir à estatística que decidisse entre a hipó- tese da uniformidade assimptótica, conhecida a fundo, e uma hipótese contrária, muito vaga. Será de espantar que os resul- tados de verificações tão mal preparadas tenham sido tão pouco concludentes? Para sair deste impasse, não seria então mais útil tentar, uma vez mais, a descrição sem esperar a explicação? Não seria mais útil mostrar, por exemplo,que as propriedades que se deseja encontrar nesta distribuição são mutuamente compatíveis, e isto no seio de uma construção «natural», quer dizer, onde não se tenha de pôr t_udo o que se pretenda retirar, portanto, que não seja demasiado ad hoc, «à medida»? Este capítulo, fazendo uso de uma generalização do movi- mento browniano, demonstra que uma tal construção é efecti- vamente possível, que parece fácil (depois, tudo é fácil) e que inclui inevitavelmente os conceitos de objecto e de dimensão fractais. Examinaremos com que é que se assemelha, quando se exa- mina radialmente a partir da Terra, uma distribuição subme- tida (retomando o neologismo do capítulo IV) a um amontoa- mento ilimitado. O resultado, que não é evidente, não pode deixar de afectar a interpretação dos dados experimentais. O capítulo IX irá tratar de objectos relativamente intermitentes e introduzir a matéria interestelar. Mas, por agora, supomos que o espaço entre as estrelas é vazio. P.-S. Em publicações mais técnicas (Mandelbrot 1975u, 1979u, 1982f, 1988t) demonstro que o quadro aqui proposto conduz ao estudo estatístico preciso do problema da inter- mitência galáctica. 86 A densidade global das galáxias Comecemos por examinar de perto o conceito de densidade global da matéria no universo. A priori, tal corno o compri- mento de urna costa, essa densidade não parece colocar qualquer problema, mas, de facto, as coisas depressa se desen- caminham e de urna forma muito interessante. Dentre os muitos processos possíveis para definir e medir a densidade, o mais directo consiste em medir a massa M(R) contida numa esfera de raio R, centrada na Terra, calcular depois a densidade média definida por M(R)/[(4/3)n:R3], fazendo, em seguida, R tender para infinito e, definindo, finalmente, a densidade glo- bal p, corno o limite para o qual a densidade média não pode deixar de convergir. Infelizmente, a convergência em questão deixa muito a desejar: à medida que a profundidade do mundo perceptível pelos telescópios aumentou, a densidade média da matéria não deixou de diminuir. Variou mesmo de forma regular, man- tendo-se aproximadamente proporcional a RD-3, com o ex- poente D positivo, mas menor do que 3, mesmo muito menor, da ordem de grandeza de D = 1. A massa M(R), portanto, aumenta aproximadamente com R0 , fórmula que faz lembrar a obtida no capítulo IV para o número de erros estranhos no intervalo de tempo R e que constitui, assim, uma primeira indicação de que D talvez seja urna dimensão fractal. A desigualdade D < 3 exprime que, à medida que a Terra está mais longe, os objectos celestes se agrupam hierarqui- camente, manifestando assim o intenso amontoamento de que falámos. Nos termos eloquentes de Vaucouleurs 1970 (expo- sição que recomendo vivamente), «O amontoamento das galá- xias e, sem dúvida, de todas as formas de matéria permanece, qualquer que seja o método de observação, a característica dominante da estrutura do universo, sem haver indicação de urna aproximação à uniformidade. A densidade média da matéria decresce continuamente quando se consideram volu- mes cada vez maiores ... e as observações não nos dão qual- quer motivo para supor que esta tendência não se mantenha para distâncias muito maiores e densidades muito menos ele- vadas». 87 Caso a tese defendida por Gérard Vaucouleurs se confirme (não se pode esconder que ela suscitou algumas reservas, mas parece ser cada vez mais bem aceite), o mais simples será admitir que D é constante. Mas, de qualquer das maneiras, o universo comportar-se-ia como o novelo de fio discutido no capítulo II: numa zona intermédia, a sua dimensão seria infe- rior a 3. A escalas muito grandes, dependendo do facto de Vaucouleurs ter razão ou não, seria inferior ou igual a 3, res- pectivamente. A escalas muito pequenas, do ponto de vista da astronomia, estaríamos perante pontos e depois sólidos com os contornos bem delimitados, sendo D de novo igual a O e depois a 3. Pelo contrário, a ideia ingénua de que as galáxias se repar- tem pelo universo de uma maneira praticamente uniforme (a tradução técnica desta ideia seria que elas seguem uma dis- tribuição de Poisson) economizaria a zona em que a dimensão está compreendida entre O e 3, dando simplesmente (por esca- las decrescentes) as dimensões 3, O e 3. Se o modelo fractal com O < D < 3 se aplica apenas numa zona truncada nos dois extremos, poder-se-á dizer que, globalmente, o universo tem dimensão 3, mas com perturbações locais de dimensão inferior a 3 (da mesma maneira que a teoria da relatividade geral afirma que o universo é globalmente euclidiano, mas que a presença de matéria o torna localmente riemaniano). Sumário do capítulo VI Qualquer que seja o valor das sugestões anteriores, vale a pena encontrar a forma como - evitando contradizer a física, mas sem esperar dela qualquer ajuda de momento - se pode formalizar a ideia, enunciada acima, de que a densidade apro- ximada da matéria converge para zero, sendo nula a densidade global. Uma primeira construção que demonstra a compatibilidade destas condições depressa me ocorreu. Encontrei, porém, di- versos predecessores. Ao que parece, a primeira forma explí- cita foi dada em 1907 por Edmund Edward Fournier d' Albe, um autor de trabalhos de «ficção científica» disfarçados de 88 ciência. Tomei conhecimento do seu modelo através de uma citação sarcástica, mas acabei por achar bem transpô-lo para termos científicos. Fournier 1907 apenas sobreviveu por ter chamado a atenção de um astrónomo conceituado- C. V. L. Charlier. Este, por seu turno, propôs um modelo aparente- mente mais geral, mas também menos útil, que iremos igualmente descrever a seguir. Em seguida, o princípio caiu no esquecimento, para ser reinventado em Lévy 1930, o que acho engraçado, e em Boyle 1953, o que é importante. Tal como Fournier e Charlier, Lévy procurava evitar o paradoxo do «céu em fogo», também cha- mado «paradoxo de Olbers», que justificadamente apaixona o amador e que nós iremos discutir. Quanto a Boyle, desenvol- via o seu modelo de génese das galáxias, que iremos igual- mente analisar. Penso que será bom centrar a exposição que se segue numa ressurreição do modelo bastante esquecido de Fournier-Char- lier, mas não poderemos esperar mantê-lo, pois é totalmente inverosímil, pelas mesmas razões que o conjunto de Cantor o era para os erros do telefone: é excessivamente regular e a origem terrestre desempenha na sua construção um papel privilegiado, que choca com o princípio cosmológico. Este último princípio, que iremos igualmente discutir, coloca um problema muito sério, pois é incompatível não só com os pormenores do modelo de Fournier-Charlier, mas também com a possibilidade de a densidade aproximada de matéria numa esfera de raio R tender para O quando R tende para infinito. Demonstrei, entretanto, como a dita incompatibilidade matemática pode ser, por assim dizer, «exorcizada». É assim que, logo após ter descrito o modelo de Fournier, proporei a ideia de que o princípio cosmológico vai além do razoável e do desejável, devendo ser modificado, de forma natural, mas radical. Recomendarei que se adopte para ele urna nova forma, muito enfraquecida e que qualificarei de condicional, que postula que o dito princípio é apenas válido para «ver- dadeiios» observadores. Esta nova forma enfraquecida pare- cerá, sem dúvida, inofensiva, e não há dúvida de que a maioria dos astrónomos não só a achará aceitável, corno se interrogará sobre o que ela traz de novo. Já a teriam estudado há muito 89 tempo se lhe tivessem reconhecido o mínimo interesse. Vere- mos que o interesse do meu princípio cosmográfico condi- cional é que ele não implica qualquer hipótese quanto à den- sidade global. Para demonstrar o facto de permitir à densidademédia crescer com R0 - 3 em tomo de qualquer verdadeiro observador, irei descrever uma construção explícita, que, num certo sentido técnico, equivale à substituição injustificada de um problema de N corpos, que é insolúvel, por uma combi- nação de problemas de dois corpos, que é fácil de resolver. Este processo não aspira ter nenhuma realidade cosmográfica, mas resolve o paradoxo que nos interessa. De caminho encon- traremos muitas razões para interpretar D como uma dimen- são fractal. · O universo hierárquico estrito de Fournier Tal como na fig. 105, consideremos 5 pontos, formando os quatro cantos de um quadrado e o seu centro. Acrescentemos 2 pontos, posicionados respectivamente por cima e por baixo da nossa folha de papel, na vertical do centro e à mesma distância deste que os quatro cantos do quadrado inicial: os 7 pontos assim obtidos formam um octaedro regular centrado. Se se interpretar cada ponto como um objecto celeste de base, ou ainda como um «amontoado de ordem O», o octaedro será interpretado como um «amontoado de ordem 1». Continua- -se a construção da maneira seguinte: um «amontoado de ordem 2» obtém-se aumentando um amontoado de ordem 1 na razão 1 I r = 7 e centrando sobre cada um dos 7 pontos assim obtidos uma réplica do amontoado de ordem 1. Da mesma maneira, obtém-se um «amontoado de ordem 3» aumentando um amontoado de ordem 2 na razão 1 I r = 7 e centrando sobre cada um dos 49 pontos assim obtidos uma réplica do amon- toado de ordem 1. Assim, para passar de uma ordem qualquer à seguinte, aumenta-se o número de pontos e também o raio, na mesma razão 1lr = 7. Consequentemente, se cada ponto tiver a mesma massa, que tomaremos por unidade, a função que dá a massa M(R) con- tida dentro de uma esfera de raio R oscila entre um e outro 90 lado da função representada pela recta M(R) =R. A densidade média dentro da esfera de raio R é aproximadamente propor- cional a R-2, a densidade global anula-se e a dimensão D, defi- nida por meio da expressão M(R) oc R0 , é igual a 1. Partindo dos amontoados de ordem O, pode-se igualmente interpolar até o infinito, por etapas sucessivas. A primeira etapa substitui cada ponto por um amontoado de ordem 1, reduzido na razão de 117, e assim sucessivamente. Note-se que as intersecções do resultado com cada um dos eixos de coordenadas, bem como as suas projecções sobre esses eixos, são poeiras de Cantor. Cada etapa da sua cons- trução consiste em dividir o intervalo [0,1] em 7 partes iguais, cortando depois a segunda, terceira, quinta e sexta partes. Uma vez infinitamente interpolado e extrapolado, este uni- verso possui uma homotetia interna, sendo possível definir a sua dimensão de homotetia, a saber D = log 7 llog 7 = 1. Inci- dentalmente, fazemos notar este elemento novo: um objecto espacial pode ter uma dimensão fractal igual a 1 sem ser nem uma recta nem nenhuma outra curva rectificável, e mesmo sem ser todo ligado. A mesma dimensão de homotetia, portanto, é compatível com valores diferentes da dimensão topológica (noção descrita no capítulo XIV). De uma forma mais geral, a dimensão de homotetia de um objecto fractal pode tomar um valor inteiro, na condição de este valor ser «anormal», isto é, superior à dimensão topológica. (Na introdução chamei a atenção para o facto de o velho termo «dimensão fraccionária» nos obrigar a dizer que a «dimensão fraccionária de certos objectos é igual a 1 ou a 2»!) Como veremos mais à frente, diversas razões físicas foram avançadas, quer por Foumier quer por Boyle, para justificar D = 1, mas é preciso dizer desde já que este valor não tem nada de inevitável do ponto de vista geométrico. Ainda que se conserve a construção à base de octaedros e o valor N = 7, pode-se dar a 1 I r um valor diferente de 7, obtendo-se assim M(R) oc R0 com D = log 7 llog (llr). Qualquer valor entre 3 e o infinito é aceitável para 1 I r, pelo que D pode tomar qualquer valor entre O e log 7 llog 3"" 1,7712. Ainda um outro ponto: a escolha de N é discutível. Foumier diz ter considerado N = 7 unicamente para tomar possível um desenho legível, sendo o 91 «verdadeiro» valor (não explica porquê) N = 1022• Pelo contrá- rio, Boyle considera N = 5. Qualquer que seja N, sendo dado um D que satisfaça D < 3, é fácil construir variantes do modelo de Fournier tendo esse valor por dimensão. (Assinalemos, sem aí nos determos, que a estrutura infini- tamente hierarquizada do universo de Fournier só surge ple- namente quando ela é examinada de um ponto infinitamente distante, utilizando um instrumento que permita, ao mesmo tempo, ver até ao infinito e ter uma percepção das distâncias. A um observador que faça, ele mesmo, parte do universo, e cujos instrumentos tenham um alcance limitado, permitindo- -lhe ver apenas até à profundidade R< oo, o universo de Fournier aparecerá sob uma forma totalmente diferente.) Universo de Charlier, de dimensão efectiva indeterminada dentro de um intervalo O modelo de Fournier tem inúmeros inconvenientes, entre os quais este: é demasiado regular. Este é um dos aspectos que Charlier 1908-22 corrige, deixando N e r variar de um nível hierárquico para o outro, sendo os seus valores designados por Nm e rm. O objecto assim obtido, bem entendido, não possui homotetia interna e não tem uma verdadeira dimensão. Mais precisamente, a quantidade log N,/log (1/rn) pode variar com m. Pode-se imaginar que ela se mantém entre os limites a que chamaremos D . e D , o que conduz à intra- mm max dução de mais um tópico. A dimensão física efectiva pode muito bem ter não um só valor preciso, mas apenas limites inferior e superior. Este novo tema, todavia, não pode ser desenvolvido aqui. Seja como for, a condição D max < 2 (satisfeita por Fournier ao considerar D = 1) evita o paradoxo de Olbers, o qual iremos discutir dentro de instantes. Notemos, de passagem, que Charlier evita precisar a relação geométrica existente entre os objectos de um mesmo nível. Invoca assim aquilo que o capítulo III qualifica sarcasticamente de acaso de invocação, ou acaso-anseio. Não se pode ficar satisfeito com essa forma de acaso. 92 Paradoxo do «céu em fogo», dito de Olbers Kepler parece ter sido o primeiro a reconhecer que a hipó- tese de uniformidade na repartição dos corpos celestes não é sustentável. Com efeito, se assim fosse, o céu nocturno não seria escuro. De dia corno de noite, todo o céu teria a mesma luminosidade que o disco solar, ou seja, seria uniformemente da cor do fogo. A esta inferência chama-se normalmente o «paradoxo de Olbers», referindo-se a Olbers 1823. Para urna discussão histórica poder-se-á consultar Munitz 1957, North 1965 ou Jaki 1969. Já aqui se disse que o paradoxo desapare- ceria se nos conseguíssemos convencer de que os corpos celestes satisfazem M(R) ex: R0 , com D < 2. O primeiro objectivo de Fournier e Charlier foi construir um universo em que M(R) tornasse efectivamente essa forma. O argumento de Olbers é muito simples. Compara urna estrela situada à distância R do «observador» com urna estrela situada à distância R = 1. Embora a sua luminosidade relativa seja igual a 1 I R2, a sua superfície relativa aparente é também igual a 1/R2, pelo que a densidade de luminosidade aparente é a mesma para todas as estrelas. Além disso, se o universo é uniforme, qualquer que seja a recta que se trace no céu, esta acaba por intersectar o disco aparente de alguma estrela, pelo que a densidade de luminosidade aparente é a mesma ao longo de toda a extensão do céu. Se, pelo contrário, M(R) ex: R0 , com Daquém do limiar D < 2, urna proporção não nula das direcções perde-se no infinito, sem nunca encontrar nada. Essa é urna razão suficiente para que o fundo do céu nocturno seja escuro. Convém, contudo, dizer desde logo que D < 2 não é urnarazão necessária. O paradoxo do céu em fogo pode ser igualmente «esconjurado» de muitas outras maneiras, que não implicam o uso de fractais, pelo que o seu estudo viria aqui a despropósito. Coisa curiosa: a maioria dos «exorcistas» preten- dem reduzir tudo a urna única explicação e os seus trabalhos parecem ter retardado o estudo do amontoamento estelar ou galáctico. É ainda de assinalar que, quando a zona onde D < 3 é seguida, a urna distância grande, mas finita, de urna zona 93 homogénea em que D = 3, o fundo do céu não será negro, mas iluminado muito tenuemente. Justificação de D = 1 por Fournier Retornemos a Fournier. Podemos ver que é mais preciso que Charlier, ao impor um certo valor de D, nomeadamente D = 1, valor mais do que suficiente para evitar o paradoxo de Olbers. Ele justifica-o (p. 103 do seu livro) com o seguinte argumento, que ainda hoje é notável e ainda o foi mais em 1907! Utilizando sem preocupações uma fórmula que, em princí- pio, só é aplicável aos objectos de simetria esférica, suponha- mos que, sobre a superfície de todo o universo visível (de ordem arbitrária) de massa M e de raio R, o potencial gravítico toma a forma CM/R (em que G é a constante de gravitação). Uma estrela que caísse sobre este universo teria, na altura do impacte, uma velocidade (2GM/R)112. Ora, afirma Fournier, a observação mostra que as ditas velocidades são limitadas. (É de perguntar em que baseava ele esta afirmação em 1907. Ela encontra-se enunciada em 1975 como sendo qualquer coisa de muito recente!). Se se pretende que, para objectos celestes de ordem elevada, esta velocidade não tenda nem para o infi- nito nem para zero, é necessário que a massa M cresça com o raio R, e não (como acontece com uma distribuição de Poisson) com o volume (4/3)nR3• Cascata de Hoyle. Justificação de D = 1 pelo critério de estabilidade de Jeans Vamos definir um universo pentádico e finito de Fournier como aquele que se obtém a partir da construção de Fournier fazendo N = 5 em lugar de N = 7, e não o extrapolamos nem para o infinitamente grande nem para o infinitamente pe- queno. Iremos agora mostrar que o carácter hierárquico de um tal universo (sob a forma de «acaso-anseio» de Charlier) e o facto de a sua dimensão fractal ser igual a 1 surgem, quer um 94 quer outro, quando se admite que as galáxias e as estrelas se formaram a partir de uma cascata de fragmentações, partindo de urna massa gasosa uniforme. O argumento, atribuído a Hoyle 1953, é controverso, mas tem em conta urna certa realidade física. Em particular, associa D = 1 ao critério de equilíbrio das massas gasosas, devido a Jeans. Imaginemos urna nuvem gasosa de temperatura T e de massa M0, repartida com urna densidade uniforme pelo inte- rior de uma esfera de raio R0• Jeans demonstrou o papel espe- cial do caso crítico em que M/ R0 = JkT I G (onde J é um certo factor numérico, k a constante de Boltzmann e G a constante de gravitação universal). Neste caso, a nossa nuvem é instável, devendo inevitavelmente contrair-se e subdividir-se. Hoyle postula que M/ R0 toma efectivamente este valor crítico e que a contracção acaba com urna nuvem de raio R/5213, após o que a nuvem se subdivide em 5 nuvens iguais, de massa M = M /5 e de raio R =(R /5213)/5113 =R /5 A etapa termina 1 o 1 o o . (propositadamente) do modo corno começou, na instabilidade, seguindo-se urna segunda etapa de contracção e subdivisão. Hoyle não escolheu N = 5 simplesmente para facilitar a ilus- tração, mas por razões físicas (nas quais não nos podemos demorar). Além disso, pode-se mostrar que as durações da contracção de ordem m e da primeira contracção estão na razão de 5-m. Portanto, ainda que o processo seja levado até ao infinito, a sua duração total permanece finita, não ultrapassando um quarto da da primeira etapa. Chega-se assim às seguintes conclusões. Em primeiro lugar, Hoyle encontra o princípio cantoriano já subjacente nos tra- balhos de Fournier. Em segundo lugar, Hoyle apresenta razões físicas· para se acreditar em N = 5. Em terceiro lugar, o crité- rio de estabilidade de J eans fornece urna segunda maneira de determinar o valor da dimensão D. Curiosamente, dá exactamente o mesmo resultado final: a dimensão deverá ser igual a 1. Por outro lado, acredito que os argumentos de Hoyle e de Fournier não são mais do que as duas faces de uma mesma ideia. Com efeito, observo que no bordo de urna nuvem ins- 95 tável de Jeans, CMI R é, ao mesmo tempo, igual a V2 /2 (Four- nier) e a JkT (Jeans). Portanto, V2/2 = JkT, significando que a velocidade de queda de um objecto macroscópico é propor- cional à velocidade média das moléculas, que contribui para T. Este comentário mereceria ser seguido. Princípios cosmológico e cosmográfico Um dos inúmeros defeitos do modelo de Fournier é que a origem desempenha aí um papel extraordinariamente prepon- derante. Trata-se de um modelo decididamente geocêntrico, portanto antropocêntrico. É contrário ao «princípio cosmoló- gico», o qual postula que o nosso tempo e a nossa posição na Terra não têm nada de muito especial ou central, que as leis da natureza devem ser as mesmas em toda a parte, por todos os tempos. Esta afirmação é discutida em Bondi 1952. Mais preci- samente, o que aqui nos interessa é a aplicação desse princípio geral à distribuição da matéria. Além disso, não nos ocupamos da teoria (Àroycoo), mas apenas da descrição (ypa'lfll). Vamos, por isso, esclarecer a afirmação seguinte: «Princípio cosmográfico forte». A distribuição da matéria segue as mesmas leis estatísticas, qualquer que seja o referen- cial (origem e eixos) na qual é examinada. A ideia é bastante tentadora, mas difícil de conciliar com distribuições que estão muito longe de ser uniformes. Já dis- semos qualquer coisa a respeito disto no contexto dos erros de transmissão estudados no capítulo III. As dificuldades que se nos deparam são de natureza diferente consoante o valor da densidade global de matéria p no universo: se p for nulo, defrontamo-nos com uma incompatibilidade de princípio, ao passo que, se p for pequeno, mas não nulo, as dificuldades são unicamente de ordem estética e de comodidade. Mas, qualquer que seja o valor de p, parece importante dispor de uma formu- lação mais de acordo com urna visão do mundo que inclua os objectos fractais. Para o fazer, julgo ser útil separar o princípio cosmográfico habitual em duas partes, cada uma das quais vai ser agora objecto de urna secção. 96 Princípio cosmográfico condicional Referimos o universo a um referencial submetido à condição de a sua origem conter, ela própria, alguma massa. Postulado: A distribuição condicionada da matéria é iden- ticamente a mesma para todos os referenciais. Em particular, a massa M(R), contida dentro de uma esfera de raio R, é uma variável aleatória independente do referencial. Postulado adicional: a densidade global da matéria é não nula Se necessário, poder-se-á igualmente postular que os limites, quando R~ oo, de R-3M(R) e de R-3 < M(R) > são, quase de certeza, iguais, sendo, além disso, positivos e finitos. Consequências destes diversos princípios Consideremos as leis de distribuição de matéria num refe- rencial arbitrário e num referencial condicionado pela exi- gência de que a sua origem, ela mesma, contenha alguma matéria. Se o postulado adicional for válido, esta última dis- tribuição deduz-se da primeira pelas regras a que obedece o cálculo das probabilidades condicionais. E a primeira deduz-se da última tomando a média relativa a origens uniformemente distribuídas por todo o espaço. (Existe uma questão delicada, digna de ser sublinhada entre parênteses: quando a distribuição uniforme das origens é inte- grada ao longo de todo o espaço, obtém-se uma massa infinita,não sendo, por conseguinte, evidente que se possa renorma- lizar a distribuição não condicional de modo que a sua soma seja 1. Para tanto é condição necessária e suficiente que a den- sidade global seja positiva.) Suponhamos agora que o postulado adicional é falso, já que o limR_R-3M(R) existe, mas é nulo. Neste caso, a distribuição não condicional de probabilidade diz simplesmente que, se uma esfera de raio R finito for escolhida livremente, é quase 97 certo que estará vazia. Essa afirmação seria uma pura verdade, mas sem qualquer interesse e, na prática, insuficiente: A partir do momento em que todos os casos interessantes tomados em conjunto têm assim uma probabilidade nula, a física matemática deverá encontrar um método que os dis- tinga. É precisamente o que faz a distribuição condicional de probabilidade e é o que justifica o realce que proponho dar ao princípio cosmográfico condicional. Subdividir assim o princípio forte em duas partes tem a vantagem filosófica adicional de satisfazer o espírito da física contemporânea, separando o que é observável, pelo menos em princípio, daquilo que é impossível de se verificar e constitui quer um acto de fé, quer uma hipótese de trabalho. De facto - conforme já foi dito -, é muito provável que a maioria dos astrónomos não levante a priori qualquer objecção contra o condicionamento que proponho e que este já fosse banal há muito tempo se se lhe conhecessem algumas conse- quências dignas de atenção. Ou seja, se se tivesse reconhecido que constitui não um refinamento formal, mas uma generali- zação autêntica. Portanto, seja para fundamentar o acto de fé, seja para mostrar que a hipótese de trabalho é efectiva- mente útil, por ser simplificadora, é necessário estudá-lo seria- mente. Digressão a propósito dos locais de paragem do voo de Rayleigh e da dimensão D = 2 A combinação de hipóteses segundo as quais a densidade global se anula, ao passo que o princípio cosmográfico condi- cional permanece válido, exclui o velho modelo de Fournier- Charlier. À primeira vista, ela parece mesmo conter uma contradição interna. Mas vou demonstrar que tal não acontece. A compatibilidade destas hipóteses será, antes de tudo, ilus- trada de uma forma muito artificial, atribuindo um novo papel a um exemplo que tem a virtude de já ser familiar ao leitor (já foi evocado no capítulo III) e ser até muito antigo, visto re- montar, pelo menos, até Rayleigh 1880. O seu defeito, que é fatal, é o de não ter nem a dimensão nem o grau de conec- 98 tividade exigidos pelos factos. A este modelo seguir-se-ão outros, menos irrealistas. Suponhamos que uma nave parte de um ponto ll(O) do espaço e que a sua direcção se distribui de uma forma aleatória e isotrópica. A distância entre ll(O) e o ponto ll(l), definido como a primeira paragem após ll(O), será igualmente aleatória, com uma distribuição prescrita à partida. O essencial é que os saltos só raramente tomem valores muito altos, de modo que, para o quadrado do comprimento do salto, o valor expectável < [ll(l) - ll(0)]2 > seja finito. Em seguida, a nave parte de novo para ll(2), definido de tal maneira que os vectores ll(l)- ll(O) e ll(2)- ll(l) sejam independentes e identicamente distri- buídos. Continua assim ad infinitum. Além disso, podem-se ainda determinar os seus pontos de paragem anteriores ll(-1), ll(- 2), etc., utilizando o mesmo mecanismo em sentido inverso. Visto que o mecanismo não faz intervir a direcção do tempo, basta, com efeito, fazer partir de ll(O) duas trajectórias independentes. Feito isto, apaguemos as trajectórias rectilíneas traçadas pelas naves e examinemos o conjunto dos seus pontos de paragem, sem ter em conta a ordem pela qual cada um apareceu. Por construção, a se- quência dos pontos de paragem segue exactamente a mesma distribuição, qualquer que seja o ponto ll(m) a partir do qual é examinada. Este conjunto satisfaz, então, o princípio cos- mográfico condicional. Vamos agora supor que um pedaço de matéria é «semeado» em cada ponto de paragem. Se (como no capítulo III) o voo se limita ao plano, o conjunto dos pontos reparte-se de uma maneira quase uniforme. De facto, se os saltos tiverem uma distribuição gaussiana, o conjunto dos pontos no plano satisfaz o princípio cosmográfico forte. De qualquer maneira, uma esfera de raio R e de centro em ll(k) contém uma quantidade de outros pontos cuja ordem de grandeza é M(R) oc R2• No espaço, pelo contrário, os ll(k) repartem-se de uma maneira tão irregular que se tem ainda M(R) oc R2, e não M(R) oc R3• O valor do expoente, D = 2, é independente da dimensão do espaço ambiente e da distribuição dos saltos ll(k)- ll(k ~ 1). Esta é uma consequência directa do teorema do limite central. Este afirma que, quando < [ll(k)- ll(k -1)]2 > < oo, a distância 99 IT(k) - IT(O) obedece assimptoticarnente à distribuição gaus- siana, seja qual for a distribuição exacta dos saltos IT(k)- IT(k -1). No espaço segue-se que a densidade média dos pontos é proporcional a R-1 e tende para O quando R ~ oo. De facto, se a origem do referencial for escolhida com urna probabilidade uniforme no espaço, pode-se mostrar que urna esfera de raio R finito não conterá nenhum ponto IT(k). Portanto, vista de urna origem arbitrária, a distribuição dos pontos é d€generada, excepto nos casos de probabilidade total nula. Em resumo, o princípio cosmográfico aplica-se bem aos pontos de paragem, mas só num sentido simultaneamente estatístico e condicional. De um modo mais geral, a restrição do princípio cosmográfico na forma condicional é necessária a partir do momento em que M(R) cresce mais lentamente do que R3• O facto de M(R) crescer com R2 está de acordo com a ideia de, num dos múltiplos sentidos formais do termo «dimensão», a dimensão do conjunto de pontos IT(k) ser igual a 2. En- tretanto, o voo acima descrito avança por saltos discretos. Portanto, estritamente falando, não pode possuir homotetia interna. A fim de se poder aplicar o conceito de dimensão de homotetia, tal como foi definido mais acima para a curva de von Koch e para a poeira de Cantor, é necessário tomar o k contínuo, interpolando, ao mesmo tempo, a nossa função IT(k). A partir do momento em que os saltos de um voo de Rayleigh são gaussianos, a interpolação é possível e conduz ao movimento browniano isotrópico. Isso pode ser feito por eta- pas que lembram as da construção de von Koch, mas que estão submetidas ao acaso: em primeiro lugar, estabelecem-se as posições para k inteiro; depois interpola-se para k múltiplo de 1/2, sendo a trajectória alongada, e assim sucessivamente até ao infinito. No limite, o «salto elementar» entre k e k + dk é urna variável gaussiana de média nula e de variância igual a dk. Sem entrar em pormenores, digamos que o movimento browniano possui efectivamente urna homotetia interna e urna dimensão fractal D = 2, tanto no plano corno no espaço. Daí resulta que ele preencha o plano de forma densa e, ao mesmo tempo, deixe o espaço praticamente vazio. Mas retomemos a uma questão já colocada no caso das aproximações estendidas, mas finitas, da costa da Bretanha: 100 visto que o conceito de dimensão implica uma passagem ao limite, será que ele ainda terá alguma utilidade quando k é discreto? A minha resposta, atendendo ainda a razões que se prendem com o carácter da dimensão física efectiva, é mais uma vez afirmativa. Um conceito generalizado de densidade. Comentário sobre a expansão do universo Voltemos ao facto de podermos, sem prejudicar a estaciona- ridade condicional, ponderar cada paragem de um voo de Rayleigh com uma massa escolhida ao acaso, sendo as diversas massas estatisticamente independentes. Se se pretender uma «distribuição uniforme», escolher-se-ão massas iguais. Con- tinua a ter-se uma distribuiçãobrowniana: se é verdade que a massa entre os pontos de parâmetros k' e k é igual a õ I k'- k I, é cómodo imaginar a trajectória como tendo uma densidade uniforme õ. Vejamos qual o resultado deste facto na perspectiva de uma expansão uniforme, a qual, como Edwin Hubble mostrou, rege o nosso universo. Normalmente, admite-se que a dita expansão parte de uma densidade uniforme õ. Se o universo está em expansão, õ modifica-se progressivamente, sem nunca destruir, contudo, a uniformidade. Pensa-se geralmente que qualquer· outra distribuição seria alterada pela· expansão, mas um único contra-exemplo basta para demonstrar que não é bem assim. Se se partir da distribuição browniana, a expansão tem exac- tamente o mesmo efeito que no caso uniforme: õ altera-se, mas a uniformidade permanece. Portanto, os pontos de um voo de Rayleigh interpolado são eminentemente compatíveis com a expansão do universo. O universo semeado: um novo modelo de distribuição das galáxias O modelo browniano exibe ainda duas características ina- ceitáveis em cosmografia: trata-se de uma curva contínua, 101 quando isso não acontece nas distribuições estelares e o valor da sua dimensão, D = 2, é maior do que o valor D "" 1,3 suge- rido pelos factos. Daí que, para salvar as virtudes do movi- mento browniano, nomeadamente a sua invariância sob a ex- pansão do universo, seja necessário modificar um aspecto essencial. Pontos de paragem de um voo de Lévy. As galáxias como poeira_ fractal de dimensão D < 2 A generalização que proponho virá substituir o voo de Rayleigh por aquilo a que chamo um voo de Lévy. Atribui aos valores muito grandes de distância U entre IT(k) e IT(k + 1) uma probabilidade não desprezável, de modo que o valor expec- tável < lP > se tome infinito. Mais precisamente, a fim de asse- gurar que os pontos de paragem tenham assinptoticamente uma homotetia interna, toma-se Pr(U > u) = u-0 . Esta é a distri- buição hiperbólica, que nos é familiar do estudo da distribui- ção dos tamanhos das intermissões, no capítulo IV. Não é difícil ver que, para satisfazer a nossa condição < lP > = oo, é neces- sário que O < D < 2. O grau de amontoamento resultante é ilustrado pelas figs. 107 a 113, nas quais se mostram quer os pormenores vistos em projecções horizontais, sem perspectiva, quer a carta da região «equatorial» celeste. A fig. 114 apresenta, a título de compa- ração, uma porção do céu verdadeiro. Visualmente, o amon- toamento correspondente a D = 1 é excessivo, mas D = 1,3 está de acordo com as estimativas de Gérard de Vaucouleurs. Quem saberá explicar o conflito entre o valor experimental D = 1,3 e o valor teórico D = 1? A maior consequência desta nova lei, Pr(U > u) = u-0 , é a seguinte: quer se esteja no plano quer se esteja no espaço (sendo D < 1, isto é mesmo válido na recta), a quantidade < M(R) > toma-se doravante proporcional a R0 , sendo a rela- ção M(R) I< M(R) > uma variável aleatória independente de R. Em particular, contrariamente ao que se verifica no voo de Rayleigh, o expoente de um voo de Lévy depende explici- tamente da distribuição dos saltos. Isso deve-se ao facto de o 102 teorema clássico do limite central deixar de ser válido quando < l.P> = oo, devendo ser substituído por um teorema do limite central especial, cuja forma depende da lei dos saltos. O limite neste teorema constitui a versão tridimensional de uma variá- vel aleatória «estável», no sentido de Paul Lévy (capítulo XN). O caso escalar é tratado no volume 2 de Feller 1966. O caso tridimensional com D = 3/2 encontra-se em física no problema de Holtsmark, discutido por Feller 1966 e por Chandrasekhar 1943. À lei estável correspondente a D = 1 dá-se o nome de lei de Cauchy, o que justifica a expressão «voo de Cauchy» utili- zada nas figs. 107 e 109. Em resumo, graças à possibilidade de regular a lei dos saltos, a nossa escolha da dimensão tornou-se mais livre: pode- -se obter o valor D = 1 ou qualquer outro valor sugerido pelos factos e pelas teorias. De qualquer das formas, o modelo cosmográfico que baseei no voo de Lévy não deverá ser levado muito a sério. A sua principal virtude reside no facto de fornecer uma demons- tração, ao mesmo tempo simples e construtiva, do carácter não trivial da minha generalização condicional do princípio cosmo- gráfico. P.-S. O meu modelo depressa revelou possuir uma segunda virtude. As correlações teóricas entre as densidades das galá- xias, tomadas entre 2 e 3 direcções do céu, foram calculadas em Mandelbrot 1975u, tendo os resultados aparecido idênticos àqueles que Peebles 1980 obteve de forma empírica. Vertam- bém o P.-S. da p. 114. Comparação com os erros de telefone Se um voo de Lévy com D < 1 é obrigado a manter-se sobre a recta, os seus pontos de paragem assemelham-se ao conjunto que foi obtido no capítulo IV, lançando ao acaso a ordem das intermissões de uma poeira de Cantor para a qual 11 > O. A diferença é que as intermissões do capítulo IV se seguem da esquerda para a direita, enquanto as do voo de Lévy são isotrópicas: vão ao acaso, com iguais probabilidades, numa e 103 noutra direcção. A razão por que a construção teve de ser tor- nada isotrópica é, evidentemente, que a ideia de voar da esquerda para a direita não é generalizável nem ao plano nem ao espaço, visto estes não disporem de uma ordem natural. No caso da recta pode-se escolher entre dois métodos, sendo a construção isotrópica a mais difícil de manipular. Em pri- meiro lugar, caso a origem seja um ponto do conjunto, os conjuntos de pontos de abcissa positiva ou negativa são inde- pendentes no voo da esquerda para a direita, mas não o são no voo isotrópico. Em segundo lugar, cada salto de um voo da esquerda para a direita é idêntico a uma única intermissão. Pelo contrário, um voo isotrópico volta atrás uma vez em cada dois saltos, caindo quase sempre no meio de um salto anterior. Portanto, quase toda a intermissão é a intersecção de diversos saltos. Não obstante, devido à homotetia interna do todo, a distribuição do comprimento de uma intermissão mantém uma forma hiperbólica. Outra complicação com a mesma origem: recorde-se que, a fim de estabelecer a tendência para o «amontoamento hie- rárquico», o capítulo IV introduziu intervalos denominados «rajadas-u0», que estão separàdos por saltos de comprimento superior a u0• Na construção da esquerda para a direita está excluída a hipótese de duas rajadas terem pontos comuns. Na construção isotrópica, esta possibilidade não é excluída, mas demonstra-se que a sua probabilidade se mantém suficiente- mente fraca (sendo tanto mais fraca quanto menor for D) para que se possa ainda falar de rajadas hierarquizadas. Universos fractais obtidos por aglutinações sucessivas Voltemos agora a um ponto de vista mais físico, para assi- nalar que diversos autores deram uma explicação da génese das estrelas e de outros objectos celestes diametralmente oposta à de Boyle. Não invocam uma cascata descendente, a saber, a fragmen- tação de massas muito grandes e difusas em bocados progres- (Continua na p. 112) 104 Fig. 105 - O UNIVERSO SEGUNDO FOURNIER D' ALBE Parafraseemos a legenda do original, em Foumier 1907: Este diagrama descreve um rnultiuniverso construído com base num princípio cruciforme ou octaedral. Ainda que não seja o mapa nem do infrarnundo nem do suprarnundo, o diagrama é muito útil, pois mostra que pode existir urna hierarquia infinita de universos hornotéticos sem que «o céu · esteja em fogo». Se os pontos representam os átomos do infrarnundo, a figura que rodeia o círculo a representará urna estrela do infrarnundo, ou seja, um átomo do nosso mundo. O círculo A corresponderá a urna estrela do nosso mundo e o todo representará urna «supra-estrela» . • ... . . . • ... .... .. . . . . ... . D == 1 .,.,..--, / . ' I •:• ' I ' I .: •• : •• :. I • • • I \ A .:. I \ . / ' / --- . ... . . ... . . . . . . . .. . . .. . . . ... . • . .. . . • . . .. .. . . .. . . . . ••• . 105 A D = 1 8 106 Fig. 106- UM <<UNIVERSO SEMEADO>> DE MANDELBROT, DE AMONTOAMENTO MÉDIO, D = 1 Os diagramas A e B da página seguinte ilu'!>tram a simulação em computador de um voo de Cauchy, bem como a utilização de um tal voo para originar um universo, «semeando» um ponto em cada paragem. A é uma sucessão de segmentos de recta, cujas direcções são isotrópicas - todos os ângulos têm a mesma probabilidade - e cujos comprimentos seguem a densidade dt:. probabilidade u-2 correspondente a D = 1. À escala de reprodução da pre- sente figura, a maioria dos segmentos são demasiado pequenos para poderem ser visíveis. Por outras palavras, onde dois seg- mentos visíveis se parecem juntar, não se tem um só ponto, mas um pequeno amontoado de pontos. Em B, as linhas geratrizes foram apagadas, sendo cada ponto de paragem doravante representado por uma «galáxia». A distribuição geométrica das galáxias que se obtém por meio desta construção tem a propriedade de ser, do ponto de vista estatístico, exactamente a mesma para qualquer observador que se posicione sobre uma galáxia. Neste sentido, qualquer galáxia se pode legitimamente considerar situada no «centro do mundo». Isto é o essencial do «princípio cosmográfico con- dicional» proposto neste ensaio. O presente diagrama, portanto, faz saltar à vista a validade de dois dos meus principais temas fractais: a) o meu princípio condicional é perfeitamente compatível com um amontoa- mento de aspecto hierárquico e rico em níveis e b) este amon- toamento e outras configurações de todos os tipos podem-se manifestar num objecto no qual nada parecido fora inserido «por medida». Pode ser útil considerar «médio» o grau de amontoamento correspondente à dimensão D = 1, sendo os correspondentes a D > 1 (fig. 111) e a D < 1, respectivamente, «inferior à média» e «superior à média». 107 FIG. 109- VISTA LATERAL DO MESMO «UNIVERSO SEMEADO>> MÉDIO, COM D = 1 Precisemos a figura precedente, indicando que se trata de um diagrama espacial que foi projectado sobre o plano yOz, estando a origem O em baixo à direita e sendo Oz vertical e orientado para cima. (A ordem das figuras obriga-nos a utilizar eixos de coordenadas pouco habituais.) Os diagramas A' e B' da p. 109 constituem as projecções cor- respondentes sobre o plano zOx, estando a origem em baixo à esquerda e sendo o eixo Oz de novo vertical. Este arranjo destina-se a ajudar o leitor a criar uma sensação do espaço, colocando, por exemplo, o livro sobre uma mesa, após tê-lo aberto a 90° e ignorando a presença desta folha de legendas (frente e verso). Servindo-se da comparação de A e A', o leitor examinará o enorme supersuperamontoado, muito particu- larmente rico em níveis hierárquicos, constituído por B como um todo. Vê-se que ele, de facto, se deve em grande parte a um efeito de perspectiva, decompondo-se, em B', num objecto bastante difuso. O mesmo se passa com o seu «núcleo», o qual parece compacto em B, mas se desfia em B'. Outros amon- toados, pelo contrário, aglutinam-se. 108 A' D = I 8' 109 FIG. 111 - UM UNIVERSO SEMEADO, DE AMONTOAMENTO INFERIOR À MÉDIA, COM D = 1,5 Estes dois diagramas representam respectivamente (corno nas figuras precedentes) os saltos e os pontos de paragem de um voo isotrópico cujos saltos têm a distribuição Pr(U > u) = u-1,s. Não tendo sido alterada a semente do simulador pseudo-alea- tório, a modificação consiste em encurtar os segmentos galácti- cos longos, elevando-os à potência 2/3. Esta operação encurta mais os maiores segmentos. Além disso, corno a escala da figura foi escolhida de modo a encher o espaço disponível, os segmentos pequenos foram automaticamente alongados. Esta operação diminui fortemente a intensidade do amontoamento, quer dizer, diminui não só o afastamento entre amontoados, corno também o número de níveis hierárquicos aparentes. Para as necessidades de aplicação à astrofísica, foi-se, sem dúvida, demasiado longe, no sentido de que tudo indica que a dimen- são das distribuições estelares se encontra entre 1 e 1,5. (P.-S. A melhor estimativa é D = 1,23.) 110 D = 1,5 111 sivamente mais pequenos, mas sim uma cascata ascendente, a saber, a aglutinação de poeiras muito dispersas em pedaços cada vez maiores. O problema - voltaremos a falar dele em momento apropriado - assemelha-se muito ao colocado pelas cascatas na teoria da turbulência. Ora, neste último domínio, os resultados mais recentes sugerem que os dois tipos de cascata coexistem. Pode-se, por isso, esperar que a disputa confusa que opõe os partidários da fragmentação e da coagu- lação será resolvida num futuro não muito distante. (P.-S. 1989. O estudo dos agregados fractais tornou-se muito activo após 1982, ainda que num contexto muito diferente. Ver Feder 1988, Viszek 1989 e Evertsz 1989. Ver também p. 252.) 112 FIG. 113- ZONA EQUATORIAL DE UM «UNIVERSO SEMEADO>> VISTO DA TERRA E DO <<CENTAURO» Esta figura foi criada usando o mesmo processo que os amontoados isolados representados nas figs. 107 a 111. Con- tudo, a dimensão é D = 1,2. Ainda mais importante, observa- -se aqui uma estrutura global, projectada sobre duas esferas celestes diferentes. A origem da primeira é (digamos) a Terra, enquanto a origem da segunda se pode chamar «Centauro», pois é a centésima galáxia por ordem de construção. Na prá- tica, só puderam ser representadas as zonas equatoriais. 113 FIG. 114 - A DISTRIBUIÇÃO DAS VERDADEIRAS GALÁXIAS Esta figura refere-se aos principais grupos de galáxias cuja distância à Terra é inferior a 16 megaparsecs. Ela mostra que existe uma semelhança geral entre a realidade e o modelo descrito no texto. Vista de perto, a semelhança não é tão impressionante. (Ver P.-S., mais abaixo.) O gráfico é repro- duzido com autorização do editor de Heidmann 1973. \ \ \ \ @ \ ' ' : ', .' -......... ........... _ (...-!.I/ . -......:.~"':.~----·--- P.-S. A p. 113 revela que o meu modelo do universo se- meado cria inevitavelmente grandes vazios separados por «tra- jectórias». Depressa os astrónomos me informaram de que as trajectórias são efectivamente observadas, mas que os vazios da p. 113 têm um tamanho excessivo. Descrevo na p. 145 um processo de obter um modelo fractal menos «lacunar». 114 CAPÍTULO VII Modelos do relevo terrestre Agora que conhecemos o movimento browniano ordinário, vamos tratar as passeatas sem ciclos. São - por definição - curvas às quais não é permitido passar mais de urna vez sobre um ponto. Servirão de transição para as curvas brownianas fraccionárias, para as quais a interdição é substituída por urna tendência para não voltar atrás. Por fim, examinaremos as superfícies brownianas, primeiro ordinárias, depois fraccioná- rias, que fornecem um modelo de todo o relevo terrestre e que nos vão, enfim, permitir representar as costas. Preliminares: passeatas sem ciclos. Efeito de Noé e efeito de José Antes de tudo, sendo dada urna rede de pontos, no plano ou no espaço (aqueles, por exemplo, cujas coordenadas são números inteiros), consideremos a passeata que segue ao acaso de um desses pontos para os seus vizinhos, tendo aqueles que ainda não foram visitados urna igual probabilidade de o ser no instante seguinte e estando os outros excluídos (probabilidade nula). No caso da recta, urna tal passeata segue numa ou noutra direcção sem nunca voltar atrás, o que não tem qual- quer interesse. Já no caso do plano e do espaço, o problemaé muito interessante, bem corno difícil. Entretanto, a sua impor- 115 tância no estudo dos polímeros é tal que foi objecto de simu- lações muito pormenorizadas. O resultado que nos interessa é o seguinte, devido a Dornb 1964-65 e descrito em Barber e Ninham 1970. Após n passos, a média quadrática do deslo- camento Rn é da ordem de grandeza de n elevado a urna certa potência que designaremos por 2/D. Isto sugere desde logo que, num círculo ou numa esfera de raio R em tomo de um ponto, se deverá esperar encontrar cerca de R0 outros pontos. Corno é tentador concluir que o D acima mencio- nado é urna dimensão! Os seus valores são os seguintes: so- bre a recta, D = 1; no plano, D = 4/3; no espaço normal, D = 5/3. Finalmente, num hiperespaço cuja dimensão tende para o infinito, os riscos de se fechar um ciclo desvanecem-se e D~2. Parece ser urna coincidência que o D = 4/3 correspondente ao plano faça lembrar os dados de Richardson sobre as costas mais acidentadas. De qualquer modo, não há motivo para se insistir neste ponto, pois, no caso das passeatas sem ciclos, o princípio cosmográfico, sobre cuja importância ternos vindo a insistir, não se parece aplicar de urna forma útil. Comparemos, entretanto, o comportamento de M(R) para um voo de Lévy e para urna passeata sem ciclos. A forma analítica é a mesma, mas as razões de base são extremamente diferentes. Com efeito, o voo de Lévy procede por saltos independentes, devendo-se D < 2 à presença ocasional de gran- des valores de separação entre amontoados distintos. Numa passeata sem ciclos, pelo contrário, os saltos têm um compri- mento fixo, devendo-se D < 2 ao facto de a proibição de ocupar as posições anteriormente ocupadas dar ao movimento urna espécie de persistência. O meu inédito intitulado Formes nouvelles du hasard dans les sciences1 (em parte retornado em Mandelbrot e Wallis 1968 e Mandelbrot 1973f) baptiza essas causas, respectivamente, de «efeito de Noé» e «efeito de José», em honra de dois heróis bíblicos, respectivamente o do dilúvio e o do sonho das sete vacas gordas e das sete vacas magras. 1 Em português: Novas Formas do Acaso nas Ciências. (N. dos T.) 116 Movimentos brownianos fraccionários A história bíblica de José merece ser considerada muito a sério. Refere-se, sem dúvida, a um acontecimento real, nomea- damente uma série de altos e baixos do rúvel do Nilo. Com efeito, os níveis do Nilo são extraordinariamente persistentes e o mesmo se passa com muitos outros rios. O fenómeno merece ser assinalado, uma vez que vamos fazer grande uso da des- crição matemática que foi dada em Mandelbrot 1965h e, com mais pormenores e ilustrações, em Mandelbrot e Wallis 1968. Ela consiste em representar as descargas anuais do Nilo pelos crescimentos de um certo processo estocástico, que se obtém modificando o movimento browniano escalar da fig. 71, a fim de o suavizar, de o tomar menos irregular a todas as escalas. A intensidade da suavização, e portanto a da persistência dos crescimentos, depende de um único parâmetro. Para o pro- cesso correspondente ao valor H deste parâmetro propus a designação de movimento browniano fraccionário. Será designado por BH(t). Por convenção, o valor H= 0,5 recria o caso clássico, onde não existe qualquer dependência, enquanto a persistência aumenta progressivamente quando H cresce de 0,5 até 1. Assim, as descargas do Nilo, que estão muito longe de serem independentes, revelam-se muito bem representadas pelos crescimentos anuais de um movimento browniano fraccioná- rio de parâmetro H= 0,9. No caso do Loire, H é mais próximo de 0,5. Para o Reno, H = 0,5, a menos de um certo erro. Tudo isto é apaixonante, mas não se trata aqui mais do que de uma preparação para estudar as curvas no plano. Aí tam- bém é razoável procurar generalizar o movimento browniano, de maneira tal que a sua direcção tenda a persistir, conser- vando-lhe simultaneamente o seu carácter de curva contínua. (O capítulo VI, pelo contrário, procura quebrar a continuidade, sem introduzir a persistência.) Isto equivale a procurar, não a obrigação, mas simplesmente uma tendência mais ou menos intensa para que a trajectória evite intersectar-se. Se, além disso, se puder preservar a homotetia interna -como é regra nesta obra-, o mais simples será que as duas coordenadas sejam movimentos brownianos fraccionários, es- tatisticamente independentes e com o mesmo parâmetro H. 117 Três exemplos de curvas assim obtidas estão representados nas figs. 125 a 127. Se tivéssemos representado cada urna das coor- denadas em função do tempo, o seu comportamento em pouco teria diferido do representado na fig. 71, enquanto, a duas dimensões, o efeito da escolha de H é incomparavelmente mais acentuado. Para o primeiro gráfico (fig. 125), H torna o valor de 0,9, o qual, segundo foi dito, descreve o efeito José para o Nilo. Tendo assim urna tendência muito forte para continuar em qualquer direcção para que seja orientado, o nosso ponto, corno facilmente se pode ver, difunde-se muito mais rapida- mente do que no movimento browniano usual. Consegue, assim, evitar os ciclos demasiado vis.iveis. De tal maneira assim é que - voltando à questão discutida no capítulo II - a nossa curva seria a priori uma imagem muito razoável da forma das costas menos irregulares. Isso é aliás confirmado pelo valor da sua dimensão frac- tal: o D do movimento browniano fraccionário plano é 1 I H. É, portanto, pelo menos igual a 1 - corno intuitivamente de- verá acontecer para urna curva contínua. Além disso, o caso dito «persistente», em que H> 1/2, dá um D inferior a 2 - o que intuitivamente está de acordo com o facto de a dita curva encher o plano de forma menos densa do que o movimento browniano ordinário. Portanto, no caso específico da fig. 125 tem-se D = 1/0,9 = 1,11. Para traçar as figs. 126 e 127, H foi alterado, mantendo-se ainda a semente do gerador pseudo- -aleatório já utilizado na fig. 125. Este procedimento sublinha o modo corno a irregularidade e a dimensão fractal aumen- tam quando H diminui. Vê-se igualmente que a tendência para evitar os ciclos diminui muito rapidamente à medida que D aumenta. Portanto, a nossa procura de um modelo das costas não chegou ainda ao fim. Iremos retorná-la dentro em pouco. É de assinalar que o movimento browniano fraccionário es- calar pode igualmente ser definido para O< H< 0,5, mas urna curva cujas duas coordenadas sejam funções desse tipo difun- de-se mais lentamente do que o movimento browniano usual, retrocedendo o caminho constantemente e cobrindo o plano de forma repetida. Tal corno para H= 0,5, a dimensão fractal torna o maior valor concebível no plano, ou seja, D = 2. 118 Modelo browniano do relevo terrestre e estrutura das costas oceânicas Façamos o ponto da situação: já por duas vezes vimos malo- gradas as nossas tentativas de conseguir um procedimento que permitisse representar uma costa sem haver preocupação com o relevo. É tempo de reconhecer que esta esperança não é razoável e de atacar o problema das costas através da repre- sentação do relevo como um todo. Iremos, em breve, construir um modelo que dá origem a superfícies estatisticamente idên- ticas àquela que está ilustrada na fig. 129, mas falta-nos ainda efectuar um último desvio. Conhecendo tão bem as dificuldades que os ciclos colocam, vamos abordar o relevo através de curvas características que não podem ter ciclos. Se se desprezarem as rochas pendentes, os cortes verticais bastarão. A legenda da fig. 71 observa que uma passeata escalar já dá uma ideia desses cortes, uma ideia grosseira, bem entendido, mas de maneira nenhuma desra- zoável em primeira aproximação. Não teríamos nós, na nossa caixa de ferramentas de criadores profissionais de modelos, uma superfície aleatória cujos cortes verticaisfossem todos movimentos brownianos? Até ao momento não se dispunha de uma tal ferramenta, mas proponho que ela seja introduzida: trata-se da função browniana de um ponto, B(P), tal como é definida em Lévy 1948. O seu inventor soube descrever mara- vilhosamente os seus principais aspectos, sem ter podido (tê- -lo-ia mesmo querido?) desenhá-la, mas, para a aplicar concre- tamente, é necessário adquirir uma ideia intuitiva. Creio bem que o desenho da fig. 131 deste ensaio constitui o primeiro esboço a ser desenhado e publicado. Primeira verificação: a sua semelhança geral com a super- fície da Terra é real, embora aproximada. Encoraja-nos, con- tudo, a ver mais de perto em que medida fizemos progressos no estudo das costas oceânicas definidas como as curvas for- madas pelos pontos ao nível do mar. Um gráfico assim obtido está representado à parte nas figs. 132-133. A p. 133, ao alto, dá-nos finalmente o exemplo, há muito procurado, de uma curva praticamente desprovida de pontos duplos que, por um lado, tem uma dimensão fractal nitidamente superior a 1 e, ao 119 mesmo tempo, nos faz lembrar um qualquer canto do globo. Mais precisamente, a dita dimensão é D = 1,5, e o nosso gráfico faz lembrar o Norte do Canadá, as ilhas da Sunda (a seme- lhança aumenta se o nível do mar baixar, ficando as ilhas maiores), ou mesmo (se o mar baixar ainda mais) o mar Egeu. O modelo é ainda aplicável a outros exemplos, mas os dados de Richardson sugerem em geral um D inferior a 1,5. É pena, pois o valor D = 1,5 teria sido fácil de explicar: com efeito, Mandelbrot 1975b mostra que a função B(P) constitui uma excelente aproximação a um relevo que teria sido criado por uma sobreposição de falhas rectilíneas independentes. O modelo gerador seria muito simplesmente o seguinte: um planalto horizontal inicial é partido ao longo de uma recta escolhida ao acaso, introduzindo-se uma espécie de falésia, uma diferença de nível aleatória entre os lábios da fractura. Em seguida recomeça-se, prosseguindo indefinidamente. Proce- dendo desta maneira, generaliza-se ao plano a construção poissoniana assinalada no fim da fig. 71. Vê-se que este argu- mento leva em conta, pelo menos, um aspecto da evolução tectónica, levando-nos a juntar B(P) à lista dos acasos primá- rios discutida no capítulo m. Contudo, ao fazer isso, deveremos renunciar a um aspecto que até aqui caracterizava esses acasos, a saber, a indepen- dência das suas partes. A discussão deste ponto é inevitavel- mente técnica, devendo ser considerada uma digressão. Consi- deremos dois pontos, um a este e outro a oeste de uma secção norte-sul do relevo. É claro que o conhecimento do relevo ao longo da secção reduz a indeterminação que existe quanto ao relevo no ponto este. Ora pode mostrar-se que esta indetermi- nação se reduz ainda mais quando se conhece o relevo no ponto oeste. Se, pelo contrário, ela se mantivesse inalterada, o probabilista diria que o relevo era markoviano, o que teria exprimido um certo grau de independência entre os declives de um e de outro lado da linha norte-sul. (Para as superfícies irregulares que nos interessam, a ideia do declive é perigosa. Mas não há aqui qualquer inconveniente em deixar este ponto em suspenso.) A influência do relevo a oeste sobre o relevo a este exprime o facto de o processo gerador manifestar - inevi- tavelmente- uma forte dependência global. 120 Modelo browniano fraccionário do relevo Infelizmente, repetimo-lo, a dimensão D que se observa para as costas difere, em geral, de D = 1,5, sendo por isso necessá- rio prosseguir a nossa investigação, caso pretendamos obter um modelo com uma validade mais geral. Devemos mesmo procurar numa direcção pouco habitual, pois, se no capítulo II me esforçava por fazer D subir acima de 1, agora tenho de o fazer descer abaixo de 1,5! Assim, para ter costas menos irregulares, são necessários cortes verticais menos irregula- res. Felizmente que as secções anteriores deste capítulo nos deixaram bem preparados, pois duas possibilidades saltam aos olhos. Antes de tudo, basta, como modelo dos cortes verticais, substituir a função browniana usual por um exemplo apro- priado das variantes fraccionárias introduzidas mais acima. Efectivamente, existem superfícies aleatórias BH(P) cujos cortes verticais são funções BH(t). Além disso, aperfeiçoei algoritmos que permitem a sua simulação por computador. A superfície tem a dimensão 3 -H, tendo todas as suas secções planas -incluindo costas, as outras linhas de nível e ainda os cortes verticais- a dimensão 2 -H. Não resta, pois, nenhuma difi- culdade em obter qualquer dimensão que os dados empíricos revelem exigir! Debrucemo-nos sobre o caso em que D = 1,3, portanto com H= 0,7, valor que justifica, finalmente, a nossa fig. 129. Mas conhecem-se também exemplos em que tanto H como D estão próximos de 1 (dando lugar a grandes maciços montanhosos) e acontece também H estar próximo de O e D próximo de 2 (dando lugar à ilusão de planícies aluviais inun- dadas). Portanto, retomando à metáfora já usada da caixa de ferramentas do criador de modelos, vemos que todas as funções BH(P) deverão encontrar aí um lugar. Segunda possibilidade: partamos da construção de B(P) como sobreposição de falhas verticais rectilíneas e aplainemos cada falha de modo que o seu declive aumente e depois diminua de uma forma progressiva. É possível obter BH(P) desta maneira, mas só na condição de se impor ao perfil da falha uma certa forma muito específica, sendo por isso ne- cessário dizer que ela não é, a priori, muito natural. Quer dizer, 121 a tectoruca Imaginária subjacente não é nem muito convincente nem muito explicativa. Vamos, pois, a título de digressão, esboçar diversas forças susceptíveis de efectuar a acção uniformizadora que está rela- cionada com o aumento de H. Na esperança de explicar a persistência dos níveis dos rios («efeito de José»), os engen- heiros começaFão por ter em conta a água que os reservatórios naturais podem armazenar de urna cheia anual à seguinte. Esperar-se-ia, portanto, ver as descargas anuais de um rio variar mais lentamente do que no quadro da hipótese da inde- pendência. Entretanto demonstrei que o aplainamento das cró- nicas, implicado por este modelo simples, é quase exclusiva- mente local. Se se conserva a intenção de invocar essas forças uniformizadoras para explicar o modelo browniano fraccio- nário, será necessário um grande número de aplainamentos sucessivos, a escalas diferentes. Poder-se-ia, por exemplo, representar o nível do Nilo como uma sobreposição aditiva de toda uma série de processos independentes. Primeiro, um acaso de ordem 1, que tem em conta os reservatórios naturais (já mencionados), implicando apenas interacções de ano a ano. Depois, um acaso de ordem 2, que se qualificaria de micro- clima, variando ainda mais lentamente. Em seguida, um clima variável, e assim sucessivamente. De um ponto de vista inteiramente teórico, é necessário prolongar este procedimento até ao infinito. Mas o engenheiro hidráulico ficar-se-á pelas escalas de tempo da ordem de gran- deza do horizonte (sempre finito) de um projecto de controlo das águas. Voltando agora ao relevo, é preciso começar por notar (já não era sem tempo) que é inconcebível que os modelos brownianos sejam, de uma forma global, convenientes, muito simplesmente porque a Terra é redonda. É verdade que Lévy definiu igualmente uma função browniana sobre a esfera, mas que também parece não convir. (P.-S. Veja-se, entretanto, Mandelbrot 1977f, 1982f.) O melhor é então debruçarmo-nos sobre as escalas intermédias, admitindo que os diversos aplainamentos sofridos pelo relevo ao longo da história geo- lógica envolvem escalas espaciais que vão até à ordem de grandeza dos continentes. Se se pensar que toda a Terra cor-122 responde a um valor único de H e de D, será necessário acres- centar que as intensidades relativas dos diversos aplainamen- tos têm um carácter universal. Mas, se se admitir (de uma forma mais realista) que H varia de um ponto para outro, essas intensidades relativas terão, também elas, um carácter local. Superfícies das ilhas Obtém-se ainda um outro teste da adequação do modelo browniano fraccionário comparando as distribuições teórica e empírica das superfícies projectadas das ilhas do oceano, ou seja, as superfícies medidas após projecção sobre uma esfera terrestre idealizada. Esta definição complicada é inevitável, pois não há qualquer dúvida de que, tal como o comprimento do perímetro de uma ilha, a sua verdadeira superfície é infinita (ou, se se preferir, depende do padrão de medida), enquanto a superfície projectada S não coloca qualquer problema con- ceptual. Além disso, a distribuição das superfícies relativas salta aos olhos quando se olha um mapa. É mesmo mais evi- dente (pensemos no mar Egeu) que a forma das costas. Não é, . por isso, muito surpreendente que se tenha efectuado um estudo estatístico. Verifica-se que a distribuição de S possui uma homotetia interna, por outras palavras, é a distribuição hiperbólica: Pr(S > s) = s-8• Korcak concluiu precipitadamente que B = 0,5, mas eu descobri a necessidade de um B mais geral. A simplicidade do resultado de Korcak atraiu a atenção de Fréchet. Escutando-o, veio-me à ideia que bastaria, para o explicar, que o relevo possuísse, também ele, uma homotetia interna, tendo esta ideia acabado por me levar ao meu modelo browniano fraccionário do relevo. O dito modelo prevê que 2B = D = 2- H. Se H for muito próximo de 1, as áreas são muito díspares, no sentido, por exemplo, de que a 10.• ilha tem uma área desprezável em comparação com a da ilha maior. A desigualdade diminui com H. Note-se que o B correspondente ao relevo fractal com H= 0,7 se situa próximo dos dados empíricos relativos ao conjunto da Terra. 123 O problema das superfícies dos lagos Os autores que verificaram as áreas das ilhas fizeram natu- ralmente o mesmo para os lagos, sendo os seus resultados também dignos de serem examinados. Verifica-se que a lei hiperbólica oferece uma representação tão boa como para as ilhas. Uma análise superficial poderia, portanto, levar-nos a concluir que não há aí nada de novo. Entretanto, se se reflectir sobre o assunto, esta nova confirmação parece ser demasiado boa para ser credível, pois a definição de um lago não é de modo algum simétrica da de uma ilha oceânica. Enquanto pudemos definir estas últimas como existindo sempre que o relevo o exija, a presença de um lago depende de inúmeros outros factores: por exemplo, só é retido na sua bacia se esta for impermeável e a sua área (lembre-se o mar Morto e o lago Chade) varia com a chuva, o vento e a temperatura ambiente. Além disso, os sedimentos dos lagos afectam o terreno sua- vizando-lhe as formas. O facto de a homotetia interna sobre- viver a todas essas influências heteróclitas merece, portanto, uma explicação particular. O pessimista inquieta-se, perguntando a si mesmo se não seria melhor voltar atrás e pôr em dúvida os resultados ad- quiridos, como aquele relativo às ilhas. Pelo contrário, o op- timista (eu sou um deles) conclui simplesmente que todas as outras influências, além da do relevo, parecem ser inteiramente independentes da superfície. (Com efeito, verifica-se que o produto de um multiplicando aleatório hiperbólico por um multiplicador quase inteiramente arbitrário é, ele próprio, hiperbólico.) É de esperar, de qualquer maneira, que os matemáticos se interessem pela estrutura das bacias e que não o façam apenas no caso browniano H = 0,5. Modelo fractal das margens de uma bacia fluvial Muito do que o capítulo II diz a respeito das costas oceânicas se aplica também às margens de um rio. Contudo, a analogia (Continua na p. 136) 124 FIG. 125 - VOO BROWNIANO FRACCIONÁRIO MUITO PERSISTENTE Este desenho constitui um exemplo de uma curva fractal, de homotetia estatística interna, cuja dimensão é D = 1/0,9 = 1,1. Significa que a formação de ciclos - sem ser interdita - foi fortemente desencorajada, impondo à curva uma forte persis- tência. Sobre esta figura e as seguintes, os diversos graus de persistência são muito mais aparentes do que seriam em gráficos que mostrassem o modo como as coordenadas esca- lares variam em função do tempo. Se se pensar nestas curvas como resultado da sobreposição de grandes, médias e peque- nas convoluções, poder-se-á dizer que, no caso presente, a intensidade dos ciclozinhos é tão pequena que eles são como que dominados pelos outros, mal sendo visíveis. D ~ 1,1 125 FIG. 126 -VOO BROWNIANO FRACCIONÁRIO MEDIANAMENTE PERSISTENTE Partindo da figura anterior, aumentámos, sem alterar a semente do simulador pseudo-aleatório, a dimensão para D = 1/0,7 = 1,43. Isso equivale a dizer que, sem alterar nenhuma das diversas convoluções, aumentámos a importân- cia relativa das pequenas e (a um menor grau) médias. Deste modo, sendo muito menos desencorajada a formação dos ciclo- zinhos, eles tomam-se bastante mais aparentes. Entretanto, a forma geral subjacente ainda se reconhece sem dificuldade. D- 1,43 126 FIG. 127- VOO BROWNIANO FRACCIONÁRIO POUCO PERSISTENTE (PRÓXIMO DE UM VOO BROWNIANO) Aqui, sempre com a mesma semente, a dimensão foi aumen- tada para D = 1/0,53, portanto quase 1,9: sente-se a aproxi- mação do limite D = 2, o qual, como sabemos, se refere ao movimento browniano normal. No limite D = 2 obter-se-ia um modelo matemático do processo físico da fig. 59, tornando-se as diferentes convoluções acrescentadas de igual importância («espectro branco»), pelo menos em média, uma vez que os pormenores se alteram segundo a amostra considerada. Por exemplo, a «deriva» de baixa frequência, que dominava as figuras para valores de D próximos de 1, tem uma intensidade variável para valores de D próximos de 2. Com a semente aqui utilizada, a deriva é praticamente invisível. Para outras semen- tes, já a situação é diferente. Mesmo para um D próximo de 1, certas sementes dão uma deriva mais forte que a da fig. 125, quer dizer, curvas menos confusas e emaranhadas. Para estas sementes, a deriva continua a ser aparente quando D se apro- xima de 2. D- 1,9 127 FIG. 129- VISTAS DE UM CONTINENTE IMAGINÁRIO Procurava um modelo da forma das costas naturais, sendo de esperar que, simultaneamente, ele representasse o relevo terrestre, bem como a distribuição das superfícies das pro- jecções das ilhas sobre a esfera terrestre. Para o fazer, propus uma família de processos estocásticos dando origem a super- fícies aleatórias, família essa dependendo de um parâmetro que pode ser arbitrariamente fixado e que é precisamente uma dimensão fractal. · Esta figura apresenta diversos aspectos de uma amostra característica, realizada por computador, sendo o parâmetro escolhido de forma que a dimensão das costas, bem como a dos cortes verticais, seja D = 1,3. Segue-se que a dimen- são da superfície como um todo é 2,3, de onde resulta (facto que não é discutido no texto) que a verdadeira superfície da ilha seja infinita e ainda que a sua superfície projectada seja positiva e finita. Para avaliar o grau de realismo do modelo em questão, efectuei diversos testes estatísticos «quantitativos». Todos eles deram resultados «positivos», mas isso, na minha opinião, não é o essencial, pois a qualidade de um modelo científico nunca é, em última análise, uma questão de estatística. Com efeito, qualquer teste estatístico se limita a um pequeno aspecto do fenómeno, ao passo que se pretende um modelo que repre- sente uma multiplicidade de aspectos, dos quais teríamos difi-culdade em estabelecer antecipadamente uma lista que fosse sequer razoável. Para um geómetra, o melhor teste é ainda, em última análise, o juízo daquilo que o seu olho transmite ao seu cérebro. Um computador munido de capacidades gráficas é, por isso, um utensílio insuperável. Vêem-se aqui diversas vistas da «minha ilha», correspon- dentes a diversos níveis do oceano (só desta forma o proce- dimento gráfico utilizado era eficaz). Creio que todos têm um comportamento realista, começando mesmo a perguntar- -me em que lugar ou em que filme de viagem já vi a última paisagem, com aquele arquipélago de ilhotas no final da bela península! Por um golpe de sorte, o procedimento grá- fico utilizado faz que o oceano pareça resplandecer no hori- zonte. 128 129 Fig. 131 - VISTAS DE OUTROS CONTINENTES IMAGINÁRIOS Pretendemos ver se o olho é tão sensível como afirmo à dimensão fractal D das costas. Tornemos, então, a efectuar o teste visual da fig. 129 com «ilhas» fractais de dimensões va- riadas, mas todas construídas a partir da mesma semente do gerador pseudo-aleatório. Comparando com a ilha da fig. 129, observam-se diferenças consideráveis na importância relativa das grandes, médias e pequenas convoluções. Ao cimo, à esquerda, ilustra-se o valor browniano D = 1,5. Quando D se aproxima demasiado de 1 (ao cimo, à direita), os contornos das ilhas são demasiado regulares, apresentando o relevo demasiados lados inclinados. Quando D se aproxima demasiado de 2 (em baixo - para dois níveis diferentes do oceano), os contornos das ilhas tornam-se demasiado tortuosos e o relevo enche-se de pequenos picos e abismos, embora per- manecendo demasiado plano no seu conjunto. (Quando D ten- de para 2, a costa tende a encher todo o plano.) Entretanto, mesmo as ilhas que correspondem a D > 1,3 e D < 1,3 fazem lambrar algo de real. É então evidente que a dimensão fractal não é uniforme por toda a Terra. Contudo, raramente parece descer abaixo de 1,1 ou subir acima do valor browniano 1,5. Tudo isto se confirma pelas figs. 132-133. P.-S. O valor D = 1,3 das figs. 129 a 133 foi escolhido com a ajuda de imagens sem grande pormenor, o que se deve à imperfeição dos meios gráficos disponíveis em 1974. Mais tar- de, o aperfeiçoamento dos instrumentos conduziu a uma dimi- nuição do valor de D preferido pelo olho. Foi uma cir- cunstância feliz, pois a fig. 43 sugeria valores inferiores a 1,3. P.-S. Voss 1988 descreve e compara diversos métodos de síntese gráfica de paisagens fractais. 130 131 FIGS. 132-133- COSTAS IMAGINÁRIAS As indicações dos relevos anteriores confirmam-se ao olhar estes mapas das costas (traçados por um outro programa de computador). Quando D tende para 2, a costa tende a encher todo o plano, à maneira da curva de Peano. Quando D tende para 1, a costa toma-se demasiado regular para ter qualquer utilidade em geografia. Pelo contrário, para D próximo de 1,3, é difícil examinar estas curvas artificiais sem aí encontrar uma reminescência dos atlas: vista de lado, a ilha superior faz lem- brar a Gronelândia. Rodando o livro 90° no sentido dos pon- teiros do relógio, a ilha da esquerda faz lembrar o continente africano. Ao fim de meia volta, o todo faz lembrar a Nova Zelândia, incluindo a ilha Bounty. O mesmo se passa com qualquer outra semente de gerador, sempre que D está próximo de 1,3. Se D sobe até 1,5, o jogo deixa de ser tão óbvio. Quando D aumenta ainda mais, ele toma-se muito mais difícil e até mesmo impossível. D = 1,1 D = 1,3 \ • •• • 132 D = 1,5 .~ ......... .. .. D = 1,9 ~·, .•. " , • • • • 133 Fig. 135 - REDE DE DRENAGEM FLUVIAL SEPARADA POR QUASE TODOS OS LADOS. UMA CURVA DE PEANO É interessante retornar aqui o limite quando E~ O da fig. 49, dando-lhe urna interpretação de urna ordem inteiramente dife- rente. Se um relevo terrestre for completamente impermeável, urna gota de água que o atinja acaba sempre por alcançar um ponto da dita fronteira. Em geral, existem pontos tais que, se duas gotas de água tombam por mero acaso na sua vizinhança, as suas trajectórias se podem afastar de imediato urna da outra, pelo menos temporariamente. Esses pontos dizem-se de separação. Por exemplo, um cone tem um único ponto de separação - o seu vértice -, enquanto urna pirâmide qua- drangular tem urna infinidade de pontos de separação, for- mando quatro segmentos. Tanto os cones corno as pirâmides são objectos geométricos clássicos, muito regulares, mas supõe-se que o relevo terrestre á fractal. O resultado, corno iremos demonstrar, é que os pontos de separação de um relevo natural podem ser densos por todo o lado, correspondendo, portanto, a urna rede de drenagem separada, também ela, por quase todo o lado. Sendo seu objectivo demonstrar urna pos- sibilidade, e não tentar descrever o próprio relevo, a nossa ilustração permite-se ser esquemática. A bacia será o interior de um quadrado, de cantos orienta- dos segundo os pontos cardeais. As diagonais formam um curso de água cruciforme, cujo ramo principal acaba no ponto S, partindo de perto do ponto N, e cujos ramos laterais partem de perto dos pontos E e O, atingindo o centro. Cada um dos três ramos e o tronco drenam um quarto da bacia. Numa segunda etapa substitui-se cada ramo por urna cruz. Neste estádio, a rede contém 16 secções de cursos de água, cada urna das quais com um comprimento igual a 1 I 4 do comprimento da diagonal da bacia e que escoa 1/16 da área da bacia. As fontes dos oito sub-rarnos coincidem duas a duas (é necessário excluí-las da rede, pois, de outro modo, esta conteria pontos duplos). Continuando indefinidamente a construção de cima, o comprimento total da margem de todos os ramos aumentará sem fim. O número total das fontes- que são pontos duplos (excluídos da rede) - terá, também ele, crescido até ao infi- 134 nito, aproximando-se a nossa rede tao penu y_uctmu "c: '1'"''-U~ de qualquer ponto da bacia. Se se parar a construção ao fim de um número finito de etapas, os afluentes podem ser classifica- dos por ordem crescente, verificando-se que a sua tendência para a ramificação obedece a urna regra, conhecida dos espe- cialistas, devida a Horton. P.-S. As margens do rio e dos seus afluentes juntam-se numa curva que reúne dois pontos situados em frente um do outro, na embocadura do rio. É urna curva de Peano distinta da curva da fig. 51. Inversamente, verifiquei que toda a curva de Peano pode ser interpretada corno a margem acumulada de um rio. Um monstro concebido em 1890 acabou por ser domado em 1975! 135 apenas pode ser aproximada. Com efeito, substituímos uma costa .instantânea, que varia com o vento e com as marés, pela curva de nível zero, que é inteiramente definida pelo relevo. Nada disso é possível para a margem de um rio. Esta é função não só do relevo, mas também da porosidade do solo e da chuva e do bom tempo, não apenas no momento da obser- vação, mas também ao longo de um período de tempo dificil- mente determinável. Todavia, apesar desta severa falta de per- manência, verifica-se que os sistemas fluviais, tal como os lagos, possuem aspectos muito sistemáticos. Não poderia acon- tecer que, tal como a distribuição das superfícies dos lagos segue a das bacias de relevo, o sistema fluvial seguisse os caminhos por onde a água flui por um terreno o mais aciden- tado possível, logo a seguir a uma chuvada? Creio que é realmente assim que as coisas se passam, mas o meu argu- mento não pode ser aqui desenvolvido. Contentemo-nos em esboçar, na fig. 135, o mais simples dos ditos escoamentos. 136 CAPÍTULO VIII A geometria da turbulência Foquemos agora a nossa atenção sobre um outro grande problema clássico, vasto e mal explorado, do qual abordare- mos apenas aquelesaspectos que fazem intervir objectos frac- tais e a noção de dimensão. Mesmo deste ponto de vista, o desenvolvimento não terá a amplitude que merece a sua importância prática e conceptual. Limitar-nos-emos a algumas questões que têm o mérito de introduzir temas novos de inte- resse geral. P.-5. O tema concreto é tratado em Mandelbrot 1967b, 19671<, 1972j, 1974d, 1974f, 1975f, 1976c, 1976o e 1977b. O estudo da turbulência não pode deixar de ter lugar num ensaio consagrado até agora à forma da superfície da Terra, à distribuição de erros estranhos e dos objectos celestes. Já desde 1950 que von Weizsãcker e outros físicos discutiam a possibili- dade de explicar a génese das galáxias por intermédio de um fenómeno turbulento a uma escala colossal. Contudo, a ideia não teve grande aceitação. Se ela agora merece ser repensada seriamente, é porque o estudo das galáXias progrediu, a teoria da turbulência está em vias de mudar e eu estou em vias de lhe dar as bases geométricas fractais que faltam. Os trabalhos de 1950, com efeito, referem-se à turbulência homogénea, tal como ela foi descrita entre 1940 e 1948 por Kolmogorov, Oboukhov, Onsager e von Weizsãcker. Foi necessária uma extrema audácia para pretender explicar um fenómeno altamente intermitente - as galáxias - por um 137 mecanismo de turbulência homogénea. O que se alterou desde então foi o facto de ter passado a ser universalmente aceite que a turbulência homogénea é um mito, uma aproximação cuja utilidade é mais reduzida do que antes se pensava. Reconhece- -se hoje que uma característica da turbulência reside no seu ca- rácter «intermitente». Não só, como toda a gente sabe, o vento vem em rajadas, como o mesmo se passa com a dissipação em outras escalas. Retomei então o esforço unificador de von Weiz- sãcker, procurando uma ligação entre as duas intermitências. As ferramentas que proponho são, como é evidente, os fractais. A sua utilização para abordar a geometria da turbulência é inédita, mas historicamente natural, dadas as ligações entre as noções de fractal e de homotetia interna. Com efeito, uma variante um pouco vaga de homotetia foi precisamente conce- bida, com vista a uma teoria da turbulência, pelo nosso Lewis Fry Richardson. Também uma forma analítica de homotetia teve os seus primeiros triunfos pela mão de Kolmogorov, Obou- khov e Onsager, na sua aplicação à turbulência. Como todo o escoamento viscoso, o escoamento turbulento num fluido é caracterizado por uma medida intrínseca de escala, o número de Reynolds, e os problemas de intermitência fazem-se sentir com particular intensidade quando o dito número é muito grande, como é sobretudo o caso no oceano e na atmosfera. Todavia, o problema da estrutura geométrica do suporte da turbulência só se colocou recentemente. Com efeito, a imagem que se faz deste fenómeno permanece em geral «congelada» aproximadamente nos termos em que foi originalmente desen- volvida, há cerca de cem anos, por Boussinesq e Reynolds. O modelo restringia-se ao escoamento num tubo: quando a pressão a montante se mantém suficientemente fraca, tudo é regular e «laminar», ao passo que, quando a pressão é suficien- temente grande, tudo se toma, de repente, irregular e tur- bulento. Neste caso protótipo, então, o suporte da turbulência está ou «vazio», no sentido de inexistente, ou «cheio», en- chendo o tubo como um todo, não havendo, nem num nem no outro caso, razões para aí nos determos. Num segundo caso, por exemplo o da esteira por detrás de um barco, as coisas complicam-se: entre a esteira, que é tur- bulenta, e o mar circundante, que se admite laminar, existe 138 uma fronteira. Mas, ainda que muito irregular, esta fronteira é de tal maneira clara, que não parecia ainda nem razoável estudá-la em separado, nem verdadeiramente necessário tentar definir a turbulência por um critério «objectivo». Num terceiro caso, o da turbulência plenamente desenvol- vida, sob a forma de sopros, as coisas são ainda mais simples, parecendo todos os sopros turbulentos - um conceito sempre tão mal definido. Todavia, o modo como aí se chega é (a acre- ditar em certas lendas persistentes) um tanto curioso. Conta-se (espero que se trate apenas de maledicência) que todos os sopros nascem impróprios para o estudo da turbulência: espontaneamente, longe de ocupar todo o espaço que lhe é oferecido, a turbulência parece, ela própria, «turbulenta», apa- recendo em lufadas irregulares. Somente os esforços de rear- ranjo gradual conseguem estabilizar tudo, a exemplo do tubo de Boussinesq-Reynolds. Deste modo, e sem pôr em causa a importância prática dos sopros, sou daqueles que se inquietam. Será a «turbulência» observada no laboratório típica da «turbulência» observada na natureza e será o fenómeno da «turbulência» único? Para res- ponder a estas questões é necessário, antes de tudo, definir os termos, uma estopada que cada um parece querer evitar. Proponho que se aborde essa definição indirectamente, invertendo o processo habitual: partindo de um conceito mal especificado sobre o que é turbulento, vou primeiro tentar estabelecer que a turbulência natural bem desenvolvida, ou a sua dissipação, se «concentram sobre» ou são «suportadas por conjuntos espaciais cuja dimensão é uma fracção, da ordem de grandeza de D = 2,5. Em seguida, aventurar-me-ei a propor que se defina como turbulento todo o escoamento cujo suporte tenha uma dimensão compreendida entre 2 e 3. Como distinguir os fluxos turbulento e laminar na atmosfera? Os escoamentos nos fluidos são fenómenos multidimensio- nais, sendo as três componentes da velocidade função das três coordenadas do espaço e ainda do tempo. Contudo, o estudo 139 empmco teve, até hoje, de passar através de um ou mais «cortes» a uma dimensão, cada um dos quais constitui a cró- nica de uma das coordenadas de velocidade num ponto fixo. Para nos dar uma ideia intuitiva da estrutura do corte numa massa atmosférica que se desloca em frente do instrumento, invertamos os papéis e tomemos um avião como «instru- mento». Um nível muito grosseiro de análise é ilustrado por um avião de grande porte. Certos pontos da atmosfera apre- sentam fortes evidências de serem turbulentos, sendo o avião sacudido. O resto, pelo contrário, aparenta ser laminar. Mas refaçamos o teste com um avião mais pequeno: por um lado, «sente» lufadas muito turbulentas nos pontos em que ao grande não acontecia nada e, por outro lado decompõe cada uma das sacudidelas do grande numa rajada de sacudidelas mais fracas. Portanto, se uma porção turbulenta do corte é examinada em pormenor, ela revela inserções laminares, e assim sucessivamente à medida que a análise se torna mais apurada. Falando da configuração espacial, von Neumann 1949 nota que a turbulência se concentra sem dúvida «num número assimptoticamente crescente de choques enfraquecidos». Nos nossos cortes unidimensionais, cada choque aparecerá como um ponto. As distâncias entre os choques são limitadas por uma escala interna não nula, TJ, dependente da viscosidade. É porém útil, com o fim de auxiliar a conceptualização, imagi- nar que 11 = O. A isso proponho que se acrescente a ideia iné- dita de que esses choques são infinitamente folheados. Vê-se assim surgir, nos nossos cortes unidimensionais, o tipo de estrutura cantoriana que nos é familiar desde o capítulo IV, relativo aos erros estranhos. A diferença reside no facto seguinte: nos intervalos entre erros não havia nada, enquanto, nas intermissões laminares, o escoamento do fluido não se detém, tornando-se simplesmente muito mais regular do que nos outros pontos. Mas é evidente que mesmo essa diferença se desvanece se se observarem não só os erros, mas também o ruído físico que os causa. Isso sugere que um modelo da turbulência ou do ruído seja construídoem duas aproxima- ções. A primeira suporá que o escoamento laminar é regular a ponto de ser uniforme, pelo que é desprezável, conduzindo- 140 -nos assim ao esquema cantoriano de dimensão inferior a 3. A segunda aproximação admitirá que qualquer cubo do espaço contém, pelo menos, um pouco de turbulência. Nestas condi- ções, se se desprezar a turbulência nos pontos em que a sua intensidade é muito fraca, espera-se encontrar, pouco mais ou menos, a primeira aproximação. Mas remetamos então o es- tudo dessa segunda aproximação para o capítulo IX, para nos ocuparmos agora da primeira. Parece razoável exigir ao conjunto de turbulência que as suas intersecções com uma recta arbitrária tenham a estrutura cantoriana que possuía o conjunto criado para representar os erros estranhos. Temos então de conceber conjuntos que te- nham esse tipo de intersecções. A cascata de Novikov-Stewart O estudo da intermitência do fluxo turbulento foi estimu- lado por Kolmogorov 1962 e Oboukhov 1962, embora o pri- meiro modelo explícito tenha sido o de Novikov e Stewart 1964. Encontraram, independentemente, o princípio das cas- catas de Fournier e de Hoyle, deparando-se-lhes pois- sem o saberem - o caminho traçado por Cantor. Caso o tivessem sa- bido, os nossos autores teriam possivelmente ficado assombra- dos! Eu reconheci-o, o que me conduziu a desenvolvirrlentos muito prometedores. A ideia é que o suporte da turbulência é originado por uma cascata, em que cada etapa parte de um turbilhão, terminando em N subturbilhões de tamanho r vezes menor, no seio dos quais se concentra a dissipação. Bem entendido, teremos D = log N/log (1/r). Apesar de esta dimensão D poder ser estimada empm- camente, até ao presente ninguém afirmou seriamente que a deduziu a partir de considerações físicas fundamentais. No caso da astronomia, pelo contrário, Fournier e Hoyle forne- ceram-nos razões para'esperar que D = 1. Sabe-se (pp. 102-103) que isto contradiz o valor empírico, que é D = 1,23, mas parece que mesmo uma teoria falsa pode ser psicologicamente recon- fortante. 141 Segunda novidade: em astronomia, D < 2, mas, na turbu- lência, N deverá ser considerado muito maior do que 1 I r, sendo a dimensão próxima de 2,5. De facto, um dos triunfos das visões fractais do universo e da turbulência terá sido a demonstração da necessidade de D < 2, no primeiro caso, e de D > 2, no segundo, a partir do mesmo facto geométrico. Com efeito, a fim de exorcizar o «céu em fogo», foi necessário, no capítulo VI, que a vista orientada ao acaso evitasse quase garantidamente qualquer fonte luminosa, o que exigia D < 2. Pelo contrário, a fim de explicar o facto de a turbulência ser muito espalhada, é aqui necessário que um corte efectuado ao acaso tenha uma probabilidade não nula de intersectar o suporte da turbulência, o que exige D > 2. Comportamento da dimensão fractal por intersecção. Construções de Cantor em várias dimensões A cascata de Novikov-Stewart é importante, mas vale a pena dar um passo atrás, como já o fizemos por diversas vezes, e estudar em pormenor certas construções não aleatórias, cuja regularidade é excessiva e no seio das quais um certo ponto central desempenha um papel muito especial. A generalização da construção de Cantor pode ser feita de diversas maneiras, conduzindo a resultados muito diferentes. Um exemplo é dado pela esponja fractal de Sierpiriski-Menger, ilustrada na fig. 147. Num segundo exemplo começa-se por aparar a fracção 1/27 central de um cubo, definida como o pequeno cubo com o mesmo centro e com 1/3 de lado. Seguidamente, procede-se do mesmo modo com cada um dos 26 cubinhos que restam, depois com os subsubcubos que sobram, etc. O que fica, se se continuar até ao infinito, é uma espécie de bocado de queijo Emmenthal todo desfeito. A forma das suas fatias pode ser imaginada a partir das que foram vistas quando descrevemos o exterior das crateras da Lua, mas considerando o todo sob o prisma de um pintor cubista. Este objecto tem um volume igual a zero e buracos quadrados de todos os tamanhos sepa- rados por paredes infinitamente folhadas. É fácil verificar que possui homotetia interna e que a sua dimensão é igual a 142 log 26/log 3. Podemos agora generalizar: em lugar da fracção 1/27 central, retiremos de cada vez um cubo central de lado 1-2r. A dimensão vem 3 + log [1 - (1 - 2r)3] log(1/r) cujo valor ultrapassa sempre 2, mas tanto menos quanto maior for (1/r). A desigualdade D - 2 > O está de acordo com a intuição de que os nossos «produtos de pastelaria» são necessariamente «mais pesados» que qualquer superfície ordinária de dimen- são 2. Segundo um terceiro método, e no caso triádico, os tremas são maiores. O primeiro trema deixa, nos cantos do cubo inicial, oito pequenos cubos de lado 1/3, prosseguindo a construção de forma natural. Fica-se, portanto, com uma poeira de pontos não ligados. Entretanto, a dimensão é igual a log 8/log 3, que é inferior a 2, mas superior a 1. Do ponto de vista geométrico, o conjunto assim obtidp é simplesmente o produto de três poeiras de Cantor triádicas unidimensionais (tal como o quadrado é o produto dos seus dois lados). Mude- mos agora de método, passando os 8 cubos que se deixam em cada etapa a ter um lado de tamanho r arbitrário, com a sal- vaguarda de r ter de ser inferior a 1/2. No final tem-se sempre uma poeira de pontos, de dimensão igual a log 8/log (1/r), quantidade ela mesma arbitrária, excepto no facto de ser sempre inferior a 3. Por outro lado, embora este conjunto seja «menos ligado» que uma linha, pode muito bem ter uma dimensão superior a 1. Este resultado, que poderia parecer estranho, confirma apenas aquilo que já sabemos desde o estudo dos objectos celestes (construção de Foumier-Charlier), ou seja, que não há qualquer ligação necessária entre conecti- vidade e dimensão fraccionária. Note-se, todavia, que, para obter uma poeira de dimensão superior a 1, recorremos a tremas cuja forma é extremamente especial. Na ausência de um tal constrangimento geométrico, por exemplo no caso de cons- truções regidas pelo acaso, é de esperar que se venham a 143 entrever relações entre a dimensão e a conexão. O problema está ainda por estudar. Recorde-se que o universo de Fournier- Charlier pode, também ele, ser considerado como uma va- riante espacial da construção de Cantor. Conjuntos espaciais estatísticos à la Cantor A primeira motivação para introduzir formas estatísticas da poeira de Cantor está, como nos capítulos precedentes, ligada à procura de um modelo mais irregular, na esperança de que as suas propriedades sejam mais realistas. Uma nova moti- vação prende-se com o desejo de repensar a ligação entre dimensão e conectividade, da qual a secção anterior acaba de discutir um aspecto. Sem mais considerações intermédias, con- sideremos tremas inteiramente aleatórios a três dimensões, generalizando assim o método que já encontrámos quando dis- cutimos os erros estranhos e as crateras da Lua. O mais natural é escolher para tremas bolas abertas, ou. seja, interiores de esferas, sendo a esperança do número de tremas de volume superior a u igual a K(3- D)/u3. A notação K(3- D) escolhida para a constante do numerador faz que o critério procurado dependa de D: a partir do momento em que a constante é superior a 3K, o conjunto que fica está quase certamente vazio (e D, que é negativo, não tem o significado de uma dimensão), ao passo que, para D >O, o conjunto que fica tem uma proba- bilidade não nula de não ser vazio, possuindo, neste caso, uma forma de homotetia interna de dimensão D. Em particular, o volume do conjunto restante é sempre nulo. Mais precisa- mente, é quase certo que uma esfera de raio R, cujo centro foi escolhido ao acaso, não terá qualquer intersecção com o con-junto restante. Por consequência, é necessário tomar precau- ções para evitar esta degenerescência (não esqueçamos a forma condicional do princípio cosmográfico!). Sabemos que uma boa maneira para que isso aconteça consiste em estudar a geome- tria deste conjunto a partir de uma origem que faça, ela própria, parte do conjunto. Eis o resultado: à medida que D se aproxima de 3, os tremas deixam descoberto um conjunto formado por «véus infinita- 144 mente folheados». As suas intersecções com planos ou super- fícies esféricas têm a forma dos filamentos infinitamente bifur- cados que se encontram na Lua, as nossas «fatias de Emmen- thal». As suas intersecções com rectas, ou (pouca diferença faz) com circunferências, são «rajadas de erros estranhos». Para os D mais pequenos está-se perante «fios infinitamente ramifica- dos», mas desta vez no espaço, e não no plano. As suas inter- secções com planos ou superfícies esféricas são então poeiras de pontos e as intersecções com rectas ou circunferências são quase certamente vazias. P.-5. Tremas espaciais e modelos da distribuição das galáxiat>. A noção de «lacunaridade de um fractal». A discussão das figs. 113 e 114 faz notar que o meu primeiro modelo da distribuição das galáxias dá origem a grandes vazios e trajectórias e ainda que esta aparência seria bastante desejável, mas só na condição de a intensidade desses traços poder ser atenuada. Para tal, bas- tou-me, de início, recorrer às poeiras descritas na secção ante- rior. Em seguida, escolhendo tremas cuja forma não era esfé- rica, identifiquei uma nova característica dos fractais, a que dei o nome de «lacunaridade» e que é, de ora em diante, essen- cial - por exemplo, em física. Ver os capítulos 34 e 35 de Fractal Geometry of Nature. Todavia, continua a ser verdade que não é possível haver fractais sem grandes vazios. Por este facto, todos os que acreditam nos fractais têm motivos para estar contentes com duas descobertas recentes. Descobriu-se, no final de 1982, que existem vazios intergalácticos de tamanho «absolutamente imprevisto» e descobriu-se em 1986 que as galáxias se colocam ao longo de «filamentos ramificados». As singularidades das equações de Navier-Stokes serão fractais? Esse facto irá, finalmente, permitir a sua resolução? Nenhuma ligação lógica pôde ainda ser estabelecida entre a teoria da turbulência homogénea, de Kolmogorov, e as equa- ções de Navier-Stokes, as quais, tudo indica, regem o escoa- 145 mento dos fluidos, mesmo em caso de turbulência. É, sem dúvida, isso que - na perspectiva dos especialistas em hidro- dinâmica - explica que a validação das previsões de Kolmo- gorov tenha sido mais fonte de inquietação do que de júbilo. Seria de temer que a introdução da minha noção de homo- geneidade fractal acentuasse esse divórcio, mas espero mesmo que se passe exactamente o contrário. Eis as minhas razões: é , sabido que a física matemática consegue frequentemente resol- ver um problema substituindo as suas soluções pelo esqueleto formado pelas suas singularidades. Esse, contudo, não é o caso para as soluções turbulentas das equações de Navier-Stokes, mesrri.o após Kolmogorov, e é esse, na minha opinião, o motivo que mais tem retardado o respectivo estudo. Penso que - gra- ças a características específicas dos objectos fractais que não é possível aqui descrever- essa lacuna quanto à natureza das ditas singularidades está prestes a ser colmatada. (P.-S. 1989. Precisei estas ideias em Mandelbrot 1976c, for- mulando a conjectura de que as singularidades das equações . de Navier-Stokes e de Euler são fractais. Essas conjecturas parecem estar no bom caminho de serem confirmadas, mesmo para além do que é dito no capítulo 11 de Fractal Geometry of Nature.) 146 FIG.147- UM QUEIJO NO ESPAÇO A TRÊS DIMENSÕES: . A ESPONJA DE SIERPINSKI-MENGER O princípio da construção é evidente. Se se continuar a construção indefinidamente, obtém-se um objecto geométrico, dito «esponja de Sierpiriski-Menger», no qual cada face exte- rior, dita «tapete de Sierpiriski-Menger», é uma figura tal que a sua área é nula e o perímetro total dos seus buracos é infinito. Note-se que as intersecções da figura-limite com as medianas ou as diagonais do cubo inicial são todas conjuntos triádicos de Cantor. (Figura reproduzida com autorização de Blumenthal e Menger 1970.) D ~ 2,72 147 CAPÍTULO IX Intermitência relativa O presente capítulo exibe em título um conceito fractal em vez de um domínio de aplicação. Voltamos, com efeito, a urna aproximação feita em diversas aplicações. Ao discutir os erros em rajadas, aprofundámos a nossa certeza de que, entre os erros, o ruído subjacente enfraquece, embora sem nunca ces- sar. Ao discutir as distribuições estelares, aprofundámos o nosso conhecimento da existência de uma matéria interestelar, que pode, também ela, distribuir-se irregularmente. E, ao dis- cutir as folhas de turbulência, acabámos também por cair na armadilha de admitir uma imagem do fluxo laminar num sítio onde não se passava nada. Teríamos podido igualmente, sem introduzir nenhuma ideia essencialmente nova, examinar adis- tribuição dos minerais: entre as regiões onde a concentração de cobre ou de ouro é tão forte que justifica a exploração mineira, o teor desses metais diminui consideravelmente, mas nenhuma região está absolutamente desprovida desses minérios. É necessário preencher todos esses vazios, tendo o cuidado de não afectar demasiado as imagens já estabelecidas. Vou agora esboçar uma forma de tratar o assunto, que é con- veniente para o caso em que objecto e intermissões são da mesma natureza, diferindo apenas de grau. Para o fazer, deixar-me-ei, uma vez mais, inspirar por velhas matemáticas puras reputadas de «inaplicáveis». Este capítulo será relativa- mente técnico e seco. 149 Definições dos dois graus de intermitência Por necessidade de contraste, é preciso dizer, a respeito dos fenómenos até agora estudados, que são «absolutamente inter- mitentes». O epíteto explica-se pelo facto de, durante as inter- mitências, não se passar absolutamente nada: nem energia de ruído, nem matéria, nem dissipação turbulenta. Além disso, tudo o que «se passa» num intervalo, num quadrado e num cubo se concentra inteiramente numa pequena porção, ela própria contida num subconjunto que diremos «simples» - ou seja, um conjunto formado por um número finito de subinter- valos, subquadrados ou subcubos, cujo comprimento, área ou volume total são arbitrariamente próximos de zero. Indo ainda mais longe, a intermitência dir-se-á degenerada se tudo se passar num único ponto. Pelo contrário, a intermitência dir- -se-á «relativa» se não existir nenhum conjunto simples no qual não se passe nada, enquanto existe um conjunto simples que contém quase tudo o que se passa. Medida fractal multinomial Mantenhamos o contexto triádico original de Cantor, em que se divide [0,1] em terços, dividindo-se estes, por sua vez, também em terços e assim sucessivamente, e partamos de urna massa distribuída sobre [0,1], com urna densidade uniforme igual a 1. Apagar o terço central equivale a dividir esta massa em partes iguais a 1/2, O e 1/2, de densidades respectivamente 3/2, O e 3/2. Isto facilmente se generaliza, supondo-se que em cada etapa se divide a massa inicial em partes iguais, respectivamente, a p1, p2 e p3' repartidas com densidades 3p1, 3p2 e 3p3, em que, corno é evidente, O~ Pm < 1 e p1 + p2 + p3 = 1. Depois de se repe- tir este procedimento até ao infinito, dir-se-á que a massa forma urna medida rnultinornial. Que é que se poderá dizer então? É claro, para começar, que nenhum intervalo abertoconstitui urna intermissão absoluta. Com efeito, urna tal intermissão de- veria incluir, pelo menos, um intervalo de comprimento 3-k,150 cujas extremidades são múltiplos de 3-k. Ora sabemos que qualquer intervalo dessa forma contém uma massa não nula. Contudo, quando k é muito grande, a dita massa toma-se extraordinariamente pequena, pois Besicovitch e Eggleston de- monstraram (simplificamos o seu resultado!) que quase toda a massa se concentra em 3w intervalos de comprimento 3-k, com D = -}:; Pm log:J?m < 1 m Quando k aumenta, a percentagem de intervalos não vazios tende para zero, enquanto o comprimento total desses inter- valos permanece aproximadamente igual a 3k(D-1l, pelo que também tende para zero. Quando p1 ~ 1/2, p2 ~ 1/2, p3 ~ 1/2, a medida multino- mial tende para uma medida uniforme sobre a poeira de Cantor. Verifica-se que D tende para a dimensão log 2/log 3 deste último conjunto. Se, em vez de terços, se dividir [0,1] em décimos, obtém-se o conjunto dos números reais entre O e 1 para os quais os diversos algarismos têm as probabilidades Pm· Note-se que, formalmente, D é uma «entropia», no sentido termodinâmico, ou ainda uma «informação», no sentido de Shannon (ver Billingsley 1965). E o que é mais importante: D é uma dimen- são de Hausdorff-Besicovitch. Todavia, o conjunto de Besi- covitch é aberto, enquanto todos os conjuntos estudados acima eram fechados (a distinção está ligada ao contraste entre inter- mitências absoluta e relativa). Ao generalizar a noção de dimensão a conjuntos abertos, perdem-se muitas das suas propriedades, incluindo certas propriedades de interesse prá- tico directo, às quais começávamos a estar habituados! Por exemplo, o expoente de homotetia do conjunto de Besicovitch- Eggleston não é D, mas sim 1. Todavia, o conjunto dos 3k0 segmentos, no seio dos quais a massa se concentra, é, com toda a certeza, homotético de expoente D. Examinemos agora o problema do condicionamento depois de a construção de Besicovitch ter sido levada a cabo num número K de etapas, finito, mas muito grande. Para isso esco- lhamos ao acaso um «intervalo de teste» de comprimento 3-k, com k menor do que K; em quase todos os casos, este intervalo 151 .:airá fora do conjunto onde se concentra quase toda a massa. Relativamente à densidade média em [0,1], que sabemos ser 1, a densidade sobre quase todo o intervalo de teste será des- prezável. A sua distribuição será independente do intervalo, pois é degenerada. Mas dividamos então a densidade no inter- valo de teste pela sua própria densidade média. V erificarernos que a distribuição de probabilidade deste quociente será ainda a mesma em todos os pontos e que, além disso, será não degenerada. Tudo isto está ilustrado na fig. 139. Caos multiplicativo: generalizações alatórias da medida multinomial Por muito sugestiva que seja a construção apresentada no parágrtafo anterior, é necessário ainda e sempre aleatorizá-la. Diversas maneiras de o fazer foram-me sugeridas pelos tra- balhos de Kolmogorov, Oboukhov e Yaglorn, que conservam a sua importância histórica, ainda que estejam, estritamente fa- larrdo, incorrectos. Para esboçar esses métodos trabalhemos a duas dimensões e aceitemos urna divisão triádica. Cada nível parte de urna célula formada por nove subcélulas, com urna densidade inicial uniforme. Depois, as densidades correspon- dentes às 9 subcélulas são multiplicadas por factores aleató- rios, seguindo todos a mesma distribuição. A construção varia segundo o grau de aleatoriedade que se pretenda. O mí- nimo consiste em fixar os val<;lfes desses factores, submetendo ao acaso apenas a sua distribuição entre as células. No caso do caos multiplicativo de Mandelbrot 1974d, 1974f, escolhem-se os factores multiplicadores ao acaso e independentemente uns dos outros. O caos multiplicativo de Mandelbrot 1972j vai mais longe. É o próprio processo que dá origem à cascata. P.-S. Os caos multiplicativos e as medidas fractais intro- duzidas em Mandelbrot 1972j, 1974d, 1974f estão prestes a tornar-se de grande importância em diversos domínios. O ter- mo que prevaleceu para os designar é «medidas rnultifractais». Ver p. 207. 152 FIG. 153- ESCADAS DIABÓLICAS DE BESICOVITCH Sob urna escada do Diabo (ver fig. 63), esta figura empilha três escadas de Besicovitch, cuja construção está descrita na p. 150; aqui, p1 = p3• O aspecto que mais salta à vista, em com- paração com a escada do Diabo, observa-se dividindo a abcissa num grande número de pequenos segmentos. Nenhum corres- ponde a um movimento horizontal. Todavia, urna grande pro- porção do deslocamento vertical total opera-se sobre um deslo- camento horizontal muito pequeno, de dimensão fractal menor do que 1, aumentando quando nos afastamos da escada de Cantor. 153 CAPÍTULO X Sabões e os expoentes críticos como dimensões Vamos agora descrever, em traços gerais, o papel que a di- mensão fractal desempenha na descrição de urna categoria de «cristais líquidos», que constituem um modelo de certos sabões. A sua geometria é muito antiga, pois remonta a um grego de Alexandria, Apolónio de Perge, o que faz que os problemas sejam fáceis de enunciar. Mas é também actual, pois o problema matemático por ela posto mantém-se em aberto. Além disso, faz-nos entrever perspectivas interessantes muito gerais, relativas a um dos domínios mais activos da física. Trata-se da teoria dos «pontos críticos», cujo exemplo mais conhecido é aquele em que coexistem as fases sólida, líquida e gasosa de um mesmo corpo. Os físicos estabeleceram recente- mente que, na proximidade de um tal ponto, o comportamento de qualquer sistema físico se rege por «expoentes críticos». O motivo é que esses sistemas são «escalantes»: obedecem a regras analíticas que foram desenvolvidas com total inde- pendência da noção geométrica de homotetia interna, mas que apresentam analogias estreitas com ela. (Será isto urna nova perspectiva sobre o facto de a variedade de fenómenos natu- rais ser infinita, enquanto as técnicas matemáticas para os tratar são bem pouco numerosas?) Combinando soluçõ~s ana- líticas, medidas empíricas e soluções computacionais, obtive- ram-se os valores numéricos de urna vasta gama de expoentes críticos, embora a sua natureza conceptual permaneça obscura. 155 No exemplo do sabão interpreta-se um expoente como dimen- são fractal, o que sugere que o mesmo poderá acontecer em todos os outros casos. Preliminar: enchimento dos triângulos A título preliminar, comecemos por uma construção que está inteiramente no espírito de todas as outras que encon- trámos mais acima. Partindo de um triângulo equilátero fechado (a fronteira está incluída), cuja ponta está voltada para cima e cuja base, horizontal, tem comprimento 1, tenta-se cobri-lo, «o melhor possível», por meio de triângulos equilá- teros abertos, invertidos, cujas bases são ainda horizontais, mas que apontam para baixo. Verifica-se que a cobertura óptima se obtém enchendo o quarto central do triângulo inicial com um triângulo de lado 0,5 e procedendo da mesma maneira com todos os quartos restantes. Chamo peneira ao conjunto dos pontos que nunca serão cobertos, que se deve a Sierpiriski. É fácil de ver que possui uma homotetia interna, com dimen- são de homotetia D = log23. Um modelo do sabão baseado no enchimento apoloniano de círculos Um dos modelos actualmente aceites do sabão -numa nomenclatura mais precisa e especializada, uma «fase esmética A» - tem a seguinte estrutura: existem camadas capazes de deslizar umas sobre as outras, cada uma das quais consti- tuindo um líquido a duas dimensões, e que estão dobradas no interior de cones muito pontiagudos, todos com o mesmo tamanho e aproximadamente perpendiculares a um plano. Daqui resulta que as suas circunferências de base tenham um raio superior a um certo limite relacionado com a espessura das camadas líquidas. Partamos de um volume simplesque não seja, ele próprio, um cone, como, por exemplo, uma pirâ- mide quadrangular, e experimentemos «enchê-lo» de cones. Qualquer configuração corresponde a uma repartição dos cír- 156 culos que constituem a base dos cones, sobre o quadrado que constitui a base da pirâmide. Pode-se mostrar que a solução correspondente ao equilíbrio se descreve da seguinte forma: coloca-se sobre o quadrado um círculo de raio máximo. Depois, sobre cada um dos bocados restantes coloca-se ainda um círculo de raio máximo - à semelhança do que se vê na fig. 158 -, e assim sucessivamente. Se fosse possível operar desta forma indefinidamente, efectuar-se-ia aquilo a que os geómetras chamam o enchimento (packing) apoloniano. Se, além disso, se postular que os círculos em questão são abertos - não incluindo as circunferências que formam as frontei- ras -, o enchimento deixa um certo resto de superfície nula, a «peneira apoloniana». A nossa construção assemelha-se ao problema preliminar relativo aos triângulos, mas infelizmente mostra um grau de dificuldade superior, pois esta peneira não possui qualquer homotetia interna. Todavia, a definição de D, de Hausdorff e Besicovitch (capítulo XIV), como expoente que serve para de- finir a extensão de um conjunto, continua a aplicar-se neste caso. Este é um novo tópico que era necessário assinalar (a sua importância teria bastado para justificar o presente capítulo), mas no qual não nos podemos deter. Existe então uma dimen- são, mas ainda não conseguimos determinar matematicamente o seu valor. De diversos pontos de vista, ela comporta-se como uma dimensão de homotetia. Quando, por exemplo, o enchi- mento apoloniano é «truncado», impedindo o uso de círculos com raio inferior a 11, os interstícios que restam têm um perímetro proporcional a 111-D e uma superfície proporcional a 112- 0 . Numericamente, o D apoloniano é igual a cerca de 1,3058. Retornemos à física: Bidaux et al. 1973 mostraram que as propriedades do sabão assim modelado dependem precisa- mente da superfície e do perímetro da soma desses interstícios, operando-se a ligação através de D. Acabo, então, de exprimir as propriedades do esmético em questão através das pro- priedades fractais de uma espécie de «negativo» fotográfico, ou seja a figura que fica de fora das moléculas. 157 FIG. 158- ENCHIMENTO APOLONIANO DOS CÍRCULOS Apolónio de Perge soube construir as circunferências tan- gentes a três circunferêncais dadas. Consideremos três círcun- ferências tangentes duas a duas, formando um «triângulo», e iteremos a construção de Apolónio até ao infinito. A união dos interiores dessas circunferências «enche» o nosso triângulo, no sentido de cobrir quase todos os pontos. O conjunto dos pontos não cobertos - chamado «peneira de Apolónio» - tem uma superfície nula. Mas a sua medida linear, definida como a soma dos perímetros das circunferências de enchimento, é infinita. A sua dimensão de Hausdorff-Besicovitch é muito útil em física, conforme se vê no capítulo X. 158 CAPÍTULO XI Arranjos dos componentes de um computador Ao longo de todo este ensaio temos realçado que a descrição fractal não tem de ir até ao fundo das estruturas físicas subja- centes, podendo deter-se a examinar o arranjo mútuo das diversas partes deste ou daquele objecto natural. Pode-se, por isso, esperar encontrar também considerações fractais no do- mínio do artificial, em todos os casos em que este é de tal modo complexo que temos de renunciar a seguir os pormeno- res dos arranjos, contentando-nos em examinar algumas carac- terísticas muito globais. Este capítulo mostra que é mesmo isso que se passa no caso dos computadores. A ideia é a seguinte: a fim de poder realizar um grande circuito complexo, é necessário subdividi-lo em diversos mó- dulos. Suponhamos que cada módulo comporta cerca de C «elementos» e que o número de «terminais» necessários para ligar o módulo ao exterior é da ordem de T. Na IBM atribui- -se a E. Rent (que nunca publicou nada sobre esta matéria; baseio-me aqui em Landrnan e Russo 1971) a observação de que C e T estão ligados pela relação T = ACHID, devendo a utilização da letra D ser justificada dentro de alguns instantes. Esta fórmula dá urna aproximação muito boa, sendo o erro médio em T de poucos por cento, à excepção de um ou outro caso em que um dos módulos contém uma grande proporção dos elementos do circuito total. Os primeiros dados grosseiros sugeriam que D"' 3; hoje, contudo, sabe-se que D aumenta com 159 o desempenho do circuito, que, por sua vez, reflecte o grau de paralelismo presente na lógica do computador. O caso D = 3 foi rapidamente explicado, associando-o à ideia de que os circuitos em questão são dispostos no volume dos módulos e que estes se tocam pelas suas superfícies. Exprimamos, pois, a regra de Rent sob a forma yti<D-1>"" C11°. Por um lado, todos os elementos têm aproximadamente o mesmo volume v, e, por conseguinte, C é a razão «volume total do módulo sobre V». Então, C11D = C113 é aproximadamente proporcional ao raio do módulo. Em conclusão: para D = 3, a proporcionalidade entre C11° e yti<D-1> não é de forma alguma de estranhar. Note-se que o conceito de módulo é ambíguo e quase inde- terminado. A organização dos computadores é altamente hie- rarquizada, mas a interpretação que aqui se deixou é compa- tível com essa característica, na medida em que, em qualquer módulo de um nível dado, os submódulos se interligam pelas suas superfícies. É também muito fácil, no contexto de cima, verificar que D = 2 corresponde a circuitos dispostos no plano, e não no espaço. Da mesma maneira, num shift registert, os módulos, tal como os elementos, formam urna cadeia, tendo-se T = 2, inde- pendentemente de C, de modo que D = 1. Finalmente, no caso em que se tem um paralelismo integral, cada elemento exige o seu próprio terminal. Teremos, portanto, T =C, podendo-se dizer que D = oo. Se, pelo contrário, o valor de D é diferente de 1, 2, 3 ou oo, a ideia de interpretar C corno efeito de volume e T como efeito de superfície toma-se insustentável, enquanto se permanecer escravo da geometria usual. Contudo, essas interpretações são muito úteis e seria conveniente preservá-las. O leitor já por certo adivinhou o que se poderá fazer neste ponto: proponho que se imagine que a estrutura dos circuitos aparece num espaço de dimensão fraccionária. Para visualizar a passagem de D = 2 para D = 3, pensemos num subcomplexo de dimensão D = 2 com base em circuitos metálicos impressos 1 Em inglês no original. Em português, <<registo de deslocamento». (N. dos T.) 160 sobre urna placa isoladora: para lhe aumentar o desempenho é preciso estabelecer novas ligações. Frequentemente, para evitar intersectar ligações já impressas, é necessário efectuar as liga- ções por meio de fios que saem da placa, devendo estes, por isso, ser soldados separadamente. Instaurou-se o hábito de uti- lizar fios de cor amarela. A presença de fios amarelos pode querer simplesmente dizer que o circuito foi mal concebido, mas, mesmo com um circuito bem desenhado, o número mí- nimo de fios necessário aumenta com o desempenho. Sem entrar nos pormenores do argumento, pode-se dizer que are- gra de Rent é válida em todos os casos em que o aumento do desempenho, mesmo obrigando o projectista a sair do plano, não exige que ele trabalhe em todo o espaço. Se, além disso, o sistema total incorporar urna hierarquia com homotetia in- terna, tudo se passa «corno se» o projectista trabalhasse num espaço com um número fraccionário de dimensões. 161 CAPÍTULO XII " Arvores de hierarquia ou de classificação e a dimensão A maior parte deste ensaio é consagrada a objectos concre- tos que se podem tocar e ver, quer sejam de origem natural (capítulos II a X) querartificial (capítulo XI). Este último capítulo, pelo contrário, trata de algo mais abstracto, a saber, estruturas matemáticas de árvore ponderada e regular. Diver- sos motivos poderão ser apontados para um tal afastamento dos objectos «reais». Para começar, o raciocínio desenvolvido continua a ser simples, contribuindo, segundo penso, para esclarecer um novo aspecto do conceito de dimensão de homotetia, um conceito que terá sido empobrecido ao perder toda a base geométrica, tornando-se, portanto, de alguma forma «irredutível». O segundo motivo para estudar as ditas árvores é que não tardarão a aparecer em diversas aplicações curiosas. Árvores lexicográficas e a lei das frequências das palavras (Zipf-Mandelbrot) Vamos, para começar, examinar árvores susceptíveis de per- mitir classificar as palavras do léxico. Das suas propriedades deduziremos urna lei teórica «Óptima» para as frequências das palavras, a qual se verificará, por um lado, representar a reali- dade de urna maneira excelente e, por outro, invocar uma 163 dimensão fractal. O léxico será definido como o conjunto das sequências de letras admissíveis como palavras, sendo estas úl- timas separadas por «espaços», que é cómodo imaginar como estando colocados no início de cada palavra. Construamos, para o representar, a seguinte árvore. O tronco representa o espaço. Este subdivide-se em N ramos de nível 1, cada um dos quais corresponde a uma letra do alfabeto. Cada ramo de nível 1 subdivide-se, por sua vez, em N ramos de nível 2, e assim sucessivamente. É desde já evidente que cada palavra pode ser representada por uma das ramificações da árvore e que cada ramificação pode receber um peso, a saber, a probabilidade de emprego da palavra em questão. Esse peso anula-se para as sequências de letras que não são admissíveis como palavras. Antes de examinar as árvores lexicográficas reais, vamos ver o que acontece quando a codificação das palavras por meio de letras e de espaços é óptima, no sentido de o número médio de letras ser tão pequeno quanto possível. Esse seria o caso se, num sentido que seria fastidioso explicar aqui em pormenor, as frequências das palavras estivessem «adaptadas» à codifi- cação por meio de letras e de espaços. Demonstrei (nos tra- balhos que tiveram início em 1951 e que são resumidos, entre outros sítios, em Mandelbrot 1965z, 1968p) que, para isso, seria necessário que a árvore lexicográfica fosse regular, signifi- cando que cada ramificação (até um nível máximo finito) correspondia a uma palavra, e que os pesos-probabilidades do nível k tomassem todos o valor U = U/', com r uma constante que satisfaz O< r< 1. A presença do factor U0 -que não ire- mos explicitar- assegura que a soma de todos os pesos de probabilidade seja igual a 1. A fim de deduzir a distribuição das frequências das pala- vras a partir da regularidade desta árvore, ordenemos as palavras por ordem decrescente de frequência (se houver diversas frequências idênticas, a respectiva classificação será arbitrária). Seja p a ordem que ocupa nesta classificação uma palavra de probabilidade U. Iremos ver, dentro de instantes, que, sendo a árvore lexicográfica regular, se tem, aproximada- mente, U = P(p + V)-110 164 Inversamente, p =-V+ u-DpD onde P, V e D são constantes. Verifica-se que esta fórmula, que eu obtive por um argumento analítico, generaliza uma fórmula empírica popularizada por Zipf 1949 (ver capítulo XV). Repre'- senta de uma forma excelente os dados empíricos sobre as frequências das palavras nos idiomas mais diversos. Após deduzirmos esta fórmula da hipótese de regularidade da árvore lexicográfica, discutiremos brevemente o seu signifi- cado. Note-se, contudo e de imediato, que D, o parâmetro mais importante nesta fórmula, será definido por D = log N/log (1/r) pelo que, formalmente, D é uma dimensão. Dito isto, meça- mos, então, a riqueza do vocabulário pela frequência relativa de utilização de palavras raras, digamos pela relação entre a frequência da palavra de ordem 100 e da palavra de ordem 10. Para N constante, essa riqueza aumenta com r. Ou seja, quanto maior for a dimensão D, maior é o r, isto é, maior é a riqueza do vocabulário. Uma vez admitida a regularidade da árvore de classificação, foi-me fácil demonstrar a lei de Zipf generalizada. Basta notar o seguinte: ao nível k, p varia entre 1 + N + N2 + ... + Nk-l = = (Nk- l)(N- 1) (excluído) e (Nk+l- 1)(N -1) (incluído). Seja V= 1/(N -1). Inserindo k = log (U/U0)/log r nestes dois ramos, encontra-se Obtém-se o resultado anunciado e define-se a nova cons- tante P, aproximando p pela média dos seus dois limites. Ainda que seja pouco realista conjecturar que a árvore lexi- cográfica é regular, o argumento que acabou de ser dado basta para estabelecer que a lei de Zipf generalizada era «aquilo que seria de esperar». Esta conclusão é confirmada por um argu- 165 menta mais subtil (não nos iremos deter nele), que supõe que a irregularidade da árvore é de alguma maneira uniforme. Parênteses: esperava-se que a lei de Zipf trouxesse um grande contributo à linguística, para já não falar da psicologia. Na verdade- após eu a ter explicado-, o interesse por ela diminuiu, tendo-se concentrado no estudo dos desvios em relação a esta lei. Outro parêntese: uma outra interpretação do cálculo de cima leva a considerar D como a «temperatura do discurso». Em muitos sentidos, D = 1 desempenha um papel muito especial, que se deve ao facto de p-1 = 1:(p + V) 1- 0 • Antes de tudo, quando D;::: 1 e 1/D ~ 1, a série 1:(p + V)1- 0 diverge. É então necessário que p seja limitado, querendo isso significar que o léxico terá de ter um número finito de palavras. Quando, pelo contrário, D < 1, o léxico pode muito bem ser infinito. Se assim for, U0 toma a forma 1 - Nr e satisfaz a U0 < 1. Pode-se então interpretar U0 como a probabilidade do espaço e r como a probabilidade de uma das letras propria- mente ditas: a probabilidade U/' lê-se então como o produto das probabilidades do espaço e das letras que compõem a palavra de que se está a tratar. Dito de outra maneira, o caso em que D < 1 e em que o léxico é infinito reinterpreta-se do seguinte modo: considera-se uma sequência infinita de letras e de espaços estatisticamente independentes e utilizam-se os espaços para cortar esta sequência em palavras. As probabili- dades das palavras assim obtidas seguirão a lei de Zipf genera- lizada. Segundo papel de D = 1: no caso em que D < 1, e apenas nesse caso, a árvore lexicográfica pode ser reinterpretada geo- metricamente sobre o segmento [0,1]. Para isso tracemos N seg- mentos abertos de comprimento r, ou seja, ]O, r[, ]r, 2r[, ... e ](N -l)r, Nr[, que serão associados às N letras do alfabeto, e o intervalo aberto ]Nr, 1 [ de comprimento U0 = 1 - Nr, que será associado ao espaço. Cada segmento «letra» será também sub- dividido em N segmentos «letra-letra» e um segmento «letra- -espaço». O segmento «espaço» não será subdividido. E assim sucessivamente. Vê-se que cada segmento «espaço» define uma sequência de letras terminada por um espaço. Define, por isso, uma palavra. (É necessário incluir a palavra que se reduz 166 a um espaço!) Além disso, o comprimento do espaço é a proba- bilidade dessa palavra. Vê-se também que, identificando o espaço com o trema, o complemento de todos os tremas assim definidos é uma poeira fractal de Cantor, cuja dimensão se verifica ser igual a D. Desta forma, a dimensão pode ser inter- pretada geometricamente. Quando, pelo contrário, D > 1, é impossível uma tal inter- pretação, pois o léxico deverá ser finito, enquanto um conjunto fractal apenas pode ser obtido por uma construção infinita. Árvores de hierarquia e a distribuição dos rendimentos salariais (lei de Pareto) Um outro exemplode árvore, talvez ainda mais simples do que o primeiro, pode ser encontrado nos grupos humanos hie- rarquizados. Dizemos que uma hierarquia é regular se os seus membros estiverem repartidos por níveis de maneira tal que, à excepção do nível mais baixo, cada membro tiver o mesmo número N de subordinados, tendo todos estes últimos um «peso» U, igual a r vezes o peso do seu superior imediato. O mais fácil é imaginar o peso como sendo um salário. (Note- -se que os rendimentos não salariais não comportam qualquer hierarquia susceptível de ser representada por uma árvore, não podendo por isso entrar como peso no presente argumento.) Mais uma vez, se for necessário comparar diversas hierarquias do ponto de vista dos graus de desigualdades que elas impli- cam na distribuição dos rendimentos, parece razoável ordenar os seus elementos por ordem decrescente de rendimentos (no interior de cada nível, a classificação faz-se sempre de maneira arbitrária), designar cada indivíduo pela sua ordem p, e atri- buir o rendimento em função da ordem. Quanto mais depressa decrescer o rendimento quando a ordem aumenta, maior é ~ grau de desigualdade. O argumento já utilizado para as fre- quências das palavras aplica-se plenamente, mostrando que a ordem p do indivíduo com um rendimento U é aproximada- mente dada pela fórmula hiperbólica p =- v+ u-0P0 . Esta relação mostra que o grau de desigualdade é prin- cipalmente determinado pelo parâmetro D de homotetia, 167 D = log N/log (1/r): quanto maior for a dimensão, maior é o r, pelo que menor é o grau de desigualdade. Pode-se generalizar ligeiramente, supondo que U varia entre os diversos indivíduos de um mesmo nível k, sendo igual ao produto de rk por um factor aleatório, o mesmo para toda a gente, e tendo em conta, por exemplo, efeitos como a antigui- dade. Esta generalização modifica as expressões que dão V e P, mas deixa D inalterado. Empiricamente, a distribuição dos rendimentos é nitida- mente hiperbólica, facto conhecido por «lei de Pareto», e a explicação de cima, avançada por Lydall 1959, é perfeitamente possível. Chamemos a atenção, todavia, para o facto de a mesma lei de Pareto se aplicar igualmente, mas com um D diferente, aos rendimentos especulativos. Esta observação levanta um pro- blema inteiramente distinto, que abordei em Mandelbrot 1959p, 1960i, 1961e, 1962e, 1963p e 1963e. Note-se que o D empírico está normalmente próximo de 2. Quando é exactamente igual a 2, o rendimento de um superior é igual à média geométrica do rendimento do conjunto dos seus subordinados e do rendimento de cada subordinado con- siderado separadamente. Se se tivesse D = 1, o dito rendimento seria igual à soma dos rendimentos dos seus N subordinados. Terminemos com uma divagação. Qualquer que seja D, o número de níveis hierárquicos cresce com o logaritmo do número total de membros da hierarquia. Se se pretender di- vidir estes últimos em duas classes, uma forma intrínseca de proceder consistiria em fixar o ponto de separação no nível hierárquico médio. Neste caso, o número de membros da classe superior seria proporcional à raiz quadrada do número total. Existem muitas outras formas de deduzir esta «regra da raiz quadrada». Foi, por exemplo, associada ao número ideal de representantes que diversas comunidades deveriam enviar a um parlamento no qual participarem. 168 CAPÍTULO XIII Léxico] É por necessidade que os meus trabalhos parecem trans- bordar de neologismos. Muitas das ideias de base, embora bas- tante antigas, tinham tido tão pouca utilidade que nunca fora sentida a necessidade de lhes atribuir um nome, contentando- -se os autores, quando muito, com a utilização de anglicismos ou de termos prematuros ou pesados, que não se prestam à larga utilização que proponho. Aproveito a ocasião para incluir alguns dos meus outros neologismos, dos quais pouco me sirvo neste livro. Este capítulo não figurava na 1.• edição (francesa). Contudo, após 1976, várias versões incompletas surgiram em diversas recolhas. ALEATÓRIO, s. m. Elemento onde entra o acaso. Note-se que esta palavra já existia em português como adjectivo. O termo usado em francês (randon, que significa «bátega» ou «ra- jada») não é um anglicismo. Não é suficientemente conhe- cido o facto de a palavra inglesa random, que significa «aleatório», derivar do termo francês antigo randon, que significa «rapidez», «impetuosidade». 1 Dado que este capítulo apresenta alguns aspectos linguísticos muito espe- áficos, houve algumas partes que foram alteradas na tradução, por não fazerem sentido em língua portuguesa. (N. dos T.) 169 ALEATORIAMENTE, adv. Pode-se utilizar como sinónimo de «ao acaso». ALEATÓRIO BROWNIANO. Superfície, função ou campo brow- niano. Comentário: sempre que a variável é unidimensional, e que se pretende sugerir a dinâmica subjacente, preferir- -se-á o termo passeata browniana (ver mais abaixo). ALEATÓRIO DE LÉVY. Fecho do conjunto dos valores de uma passeata estável de Paul Lévy. ALEATÓRIO DE ZEROS BROWNIANO. Conjunto de pontos em que um aleatório browniano se anula. ALEATÓRIO DE ZEROS DE LÉVY. Conjunto onde um aleatório estável de Paul Lévy se anula. ALEATORIZAR, v. t. Introduzir um elemento de acaso. Alea- torizar uma lista de objectos é substituir a sua ordem de origem (a ordem alfabética, por exemplo) por uma ordem escolhida ao acaso. É frequentemente atribuída igual proba- bilidade a todas as ordens. AMONTOAMENTO, s. m. 1.° Capacidade para formar amon- toados hierarquizados. 2.° Colecção de objectos formando amontoados distintos, agrupados em superamontoados, de- pois em supersuperamontoados, etc., de forma (pelo menos aparentemente) hierarquizada. Justificação da necessidade: o par «amontoado-amontoamento» (em francês: amas-amas- sement) é concebido para corresponder ao inglês clus- ter-clustering, o qual não tem um equivalente exacto em francês. CRÓNICA, s. f. ver TRAJECTÓRIA. ESCALANTE, adj. Caracteriza, ao mesmo tempo, os objectos fractais, as fórmulas analíticas invariantes por transfor- mações de escala e as interacções físicas que seguem as mesmas regras a todas as escalas. Comentário: a palavra inglesa scaling está tão enraizada que não vale a pena intro- duzir uma palavra muito afastada. ESCALONADO, adj. Diz-se de uma figura geométrica ou de um objecto natural cuja estrutura é dominada por um número muito pequeno de escalas intrínsecas bem distintas. Escalonado será um neologismo absoluto, quer dizer, nunca utilizado até agora. Contrasta com escalante e é a tradução do meu neologismo inglês scalebound (Mandelbrot 1981s). 170 FRACTAL, adj. O seu significado é intuitivo. Diz-se de uma figura geométrica ou de um objecto natural que combine as seguintes características: a) As suas partes têm a mesma forma ou estrutura que o todo, estando porém a uma escala diferente e podendo estar um pouco deformadas. b) A sua forma é ou extremamente irregular ou extremamente inter- rompida ou fragmentada, assim como todo o resto, qual- quer que seja a escala de observação. c) Contém «elemen- tos distintos» cujas escalas são muito variadas e cobrem uma vasta gama. Nota: o plural de fractal é fractais. Justificação da necessidade: Desde há cem anos que os matemáticos se ocu- pam de alguns dos conjuntos em questão, sem, contudo, terem construído qualquer teoria em tomo deles. Não sen- tiram, por isso, a necessidade de um termo para os designar. Depois de o autor mostrar que na natureza abundam objec- tos cujas melhores representações matemáticas são objectos fractais, passou a haver necessidade de um termo que os designasse e que não tivesse qualquer outro significado paralelo. Todavia, esse termo ainda não possui uma defi- nição matemática bem aceite. Além disso, é preciso notar que a utilização que lhedou não faz qualquer distinção entre conjuntos matemáticos (a teoria) e objectos naturais (a realidade): emprega-se em todos os casos em que a sua generalidade, e a ambiguidade que daí resulta, ou são dese- jadas, ou não trazem qualquer inconveniente, ou não apre- sentam qualquer perigo, dado o contexto. FRACTAL, s. m. Configuração fractal. Conjunto ou objecto fractal. Comentário: há, em língua francesa, uma certa con- trovérsia sobre se este termo deverá ser usado no feminino ou no masculino. Pretendo que seja feminino, escrevendo-o como fractale, pois considero que se trata de um termo origi- nal francês que depois se transmitiu ao inglês. Outros auto- res, por seu turno, acham que a palavra fractal teve origem na língua inglesa e, como termo adaptado, deverá seguir a regra do masculino. É ainda curioso notar que, também em língua russa, há uma confrontação amigável entre os «parti- dários do masculino» e os «partidários do feminino». Há ainda uma disputa entre os «adeptos do 1 duro» e os «adeptos do 1 mudo». 171 CONJUNTO FRACTAL. Substitui o termo fractal (substantivo) sempre que é necessário precisar que se trata de um con- junto matemático. Comentário: é necessário, de ora em diante, evitar a «definição provisória», que chamava fractal a todo o conjunto cuja dimensão de Hausdorff e Besicovitch é superior à sua dimensão topológica. À medida que foi sendo utilizada, essa definição revelou-se inadequada. DIMENSÃO FRACTAL. Significado genérico: número que quantifica o grau de irregularidade e de fragmentação de um conjunto geométrico ou de um objecto natural e que se reduz, no caso dos objectos da geometria normal de Euclides, às suas dimensões usuais. Significado específico: «dimensão fractal» foi frequentemente aplicada à dimensão de Hausdorff e Besicovitch, mas essa utilização é hoje fortemente desaconselhada. OBJECTO (FRACTAL). Substitui o termo fractal (substantivo) sem- pre que é necessário precisar que se trata de um objecto natural. Objecto natural que é razoável e útil representar matematicamente por intermédio de um fractal. PASSEAR, v. intr. Deslocar-se ao acaso, sem um fim preciso. PASSEATA, s. f. Função que dá a posição de um ponto do espaço, cuja evolução no tempo é regida pelo acaso. Sinó- nimo de «função aleatória». Justificação semântica: a expres- são normalmente utilizada com este significado é «passeio aleatório». Contudo, «passeata» está mais próximo do termo francês randonnée e do respectivo espírito (viagem sem fim preciso, cujo desenrolar é imprevisto)2• Se se considera o aleatório matemático como um modelo do imprevisível, o comportamento psicológico subjacente ao uso comum de randonnée é bem modelizado pelo conceito matemático aqui proposto. O termo é especialmente recomendado nos con- textos de que nos ocupamos aqui. PASSEATA BROWNIANA. Movimento browniano. PASSEATA DE BERNOULLI. Incrementos da fortuna do «Pedro» (e decréscimos consecutivos da do «Francisco») ao longo de 2 Além disso, trata-se de uma palavra única, como em francês. Note-se, porém, que, no Brasil, a palavra <<passeata» é usada no sentido de <<manifes- tação». (N. dos T.) 172 um jogo de cara ou coroa. Há em França uma história envolvendo duas personagens - Pierre e Francis - asso- ciadas simbolicamente por este jogo desde 1713, quando Jakob Bernoulli publicou o seu Ars Conjectandi. PENEIRA, s. f. P. de Sierpinski: curva fractal introduzida por W. Sierpirí.ski, cujo complemento é formado por triângulos (p. 156). Esta curva adquiriu uma grande importância em física. P. apoloniana: curva fractal cujo complemento é for- mado por círculos (p. 158). Significado genérico: curva topo- logicamente idêntica às peneiras apoloniana e de Sierpirí.ski. História etimológica: é engraçada e instrutiva. Consideremos o triângulo circular formado por duas rectas concorrentes que encerram uma circunferência. O seu enchimento apolo- niano dá uma gama infinita de circunferências tangentes às mesmas rectas, mais os enchimentos dos triângulos restan- tes. Ao ver o todo, não posso deixar de me lembrar do que seria uma junta de motor de automóvel caso o motor não tivesse 4 ou 6 cilindros, mas ums infinidade deles. Nos EUA, junta de motor diz-se gasket, que adoptei de novo. Uma vez que o termo se tornou corrente, houve um dicionário que o pretendeu traduzir para francês. Atribuindo a gasket o seu significado anterior, que dizia respeito às cordas náuticas, os editores pensaram ver nas circunferências do meu gasket os cortes dessas cordas e propuseram badernl?. Discutiu-se o assunto e observou-se que certos dicionários remontam gas- ket ao francês garcette 4 • Mas garcette não «entra muito bem». Tentou-se trémie 5 (que, erradamente, se pensa ter a ver com trema) e finalmente chegou-se a tamis 6• POEIRA, s. f. Colecção inteiramente descontínua de pontos, ou seja, um objecto de dimensão topológica igual a O. Justifi- cação da necessidade: para designar os conjuntos de dimensão topológica igual a 1 ou 2 dispomos de termos familiares 3 A palavra também existe em português como «baderna>> e significa reforço de corda. (N. dos T.) 4 Em português, «gacheta>>. (N. dos T.) 5 Em português, «tremonha>> ou <<crivo afunilado>>. (N. dos T.) 6 Em português, <<peneira>>. (N. dos T.) 173 «curva» e «superfície». Fazia falta também um termo fami- liar para referir objectos de dimensão topológica igual a O. TRAJECTÓRIA E CRÓNICA No estudo do movimento brow- niano e de numerosas outras «passeatas», certos termos matemáticos, tais corno «grafo», originam alguma confusão. Utilizo «trajectória» para o conjunto dos pontos ocupados pelo movimento, independentemente dos instantes, e mesmo da ordem de ocupação. Utilizo «crónica» para o diagrama cuja abcissa é o tempo te cuja ordenada (escalar ou vectorial) é a posição no instante t. TREMA, s. m. Diversos fractais são construídos a partir de um espaço euclidiano ao qual é subtraído um conjunto enu- merável de conjuntos abertos, a que dou o nome de tremas. Etimologia: do grego 'tpru.ta =«buraco», «pontos sobre um dado», próximo do latim termes =«térmita». A palavra «trema» (sinal ortográfico) tem a mesma origem. Impunha- -se pôr fim ao subemprego de urna raiz bem nascida, breve e que soa bem. 174 CAPÍTULO XIV Apêndice matemático Ao longo de todo este ensaio foi feito um esforço deliberado para banir todas as fórmulas «complicadas». Espero, contudo, que muitos leitores desejem saber mais. Com o fim de lhes facilitar a transição para obras mais especializadas, este apên- dice reúne algumas pequenas discussões, combinando as prin- cipais definições com algumas referências. Por uma questão de comodidade, a ordem aqui apresentada difere da ordem das primeiras menções ao longo do texto. Será necessária uma definição matemática de fractais? É necessário justificar a opção, tomada no texto, de caracte- rizar os objectos fractais de uma forma intuitiva e laboriosa, evitando sempre defini-los matematicamente de forma com- pacta, através de figuras ou conjuntos a que chamei «fractais». Se assim procedi, foi por receio de me envolver nos pormeno- res sem obter contrapartida concreta. Já muitas vezes mostrei estar pronto a contradizer quase todos os meus antepassados científicos, declarando que uma parte daquilo que eles ganha- ram o hábito de considerar patologia matemática deverá, de ora em diante, ser reclassificado como a expressão da robusta complexic!_ade do real. Contudo, não caio, de modo algum, em 175 contradição sistemática. Continua a ser bem verdade que a maioria dos aperfeiçoamentos analíticos não têm contrapartida concreta, não fazendo mais do que complicar inutilmente a vida daqueles que os encontram no decurso de uma teoria científica. Mais especificamente, uma vez definido umqualquer con- ceito fractal de dimensão, chegando ao valor D, pode-se tentar definir um conjunto fractal como sendo, ou um conjunto para o qual D é um real não inteiro, ou um conjunto para o qual D é um inteiro, mas o todo é «irregular». Por exemplo, chamar- -se-ia fractal a um conjunto com D = 1 mas diferente de uma curva contínua rectificável. Tal facto seria desagradável, pois a teoria da rectificabilidade é demasiado confusa para que alguém queira depender dela. Além disso, é muitas vezes pos- sível, perturbando um conjunto muito clássico na proximidade de um único ponto, fazer que a sua dimensão se tome uma fracção. Do ponto de vista concreto, tais· exemplos seriam insu- portáveis. É para os evitar que prescindo de definir o conceito de conjunto fractal. Medida de Hausdorff. Dimensão de Hausdorff-Besicovitch (uma dimensão fractal de conteúdo) De entre as numerosas definições de dimensão fractal, his- toricamente, a primeira a ser proposta foi a de Hausdorff (Hausdorff 1919). Aplica-se a figuras muito gerais, que não têm necessariamente homotetia interna. Para a clarificar convém decompô-la em etapas. Antes de tudo, suponha-se dado um espaço métrico .Q de pontos ffi, isto é, um espaço no qual se definiu, de forma conveniente, a distância entre dois pontos e, por c;onseguinte, a bola de centro ffi e de raio p. Por exemplo, Q pode se~ um espaço euclidiano. Considere-se em .Q um conjunto .9' cujo suporte é limitado, isto é, contido dentro de uma bola finita. É possível aproximar 9' por excesso, por meio de um conjunto finito de bolas de Q tais que um qualquer ponto de .9' se situa dentro de, pelo menos, uma delas. Sejam p111 os seus raios. Num 176 espaço euclidiano de dimensão d = 1, o conteúdo de urna esfera de raio p é 2p; para a dimensão euclidiana d = 2, já é 7tp2 e, de forma geral, tem-se y(d)pd, com [r0/2)]d y(d) = r(l + d/2) (r é a função gama de Euler). Esta expressão, y(d)pd, interpola- -se naturalmente para dar o «conteúdo» formal de urna bola numa dimensão d não inteira. Por extensão, a sorna "" d)L.pd l' 11J constitui urna aproximação natural do conteúdo de ~do ponto de vista da dimensão formal d. Todavia, essa aproximação é muito arbitrária. Para a tomar intrínseca é razoável, numa primeira etapa, fixar um raio máximo p e considerar todas as coberturas tais que Pm < p. A aproximação é tanto mais «económica» quanto mais a soma Y(d)L.pd se aproximar do limite inferior infp < P y(d)L.pd. m m m A segunda etapa consiste em fazer p tender para O. Ao fazê- -lo, a restrição imposta aos Pm torna-se progressivamente mais estrita, tendo então o nosso infpm < P forçosamente que aumen- tar. A expressão '" d) lirn ,0infp < pLpd l\ P"" m m é bem determinada. Esta expressão, muito importante, chama- -se «medida de Hausdorff de~ na dimensão d». Demonstra-se, finalmente, que existe um valor D de d, tal que, para d < D, lirnp.J.o infp111 <p = oo e, para d > D, lirn ,0 infp < P = O P-J. m (Na verdade, neste último caso tem-se infp111 < P = O para todo o p, pois a melhor cobertura, qualquer que seja o p, é feita por 177 bolas de raio muito inferior a p). Ao D assim definido chama- -se «dimensão de Hausdorff-Besicovitch». Quando Q é um espaço euclidiano de dimensão E, a expres- são inf y(E)Lp!; relativa afl'é finita, sendo, no máximo, igual à mesma expressão relativa à bola finita que contém 9: Portanto, D:::; E. Para os pormenores poder-se-á consultar Kahane e Sa- lem 1963, Federer 1969 ou Rogers 1970. Medida de Hausdorff-Besicovitch num espaço de dimensão D Façamos d = D na expressão '" d) lim ,0 infp < P Lpd da medida f\ p+ m m de Hausdorff. O valor que se obtém, tanto pode ser dege- nerado (nulo ou infinito), como não degenerado. Só este último caso, que cobre nomeadamente o conjunto de Cantor, a curva de von Koch e o universo de Fournier, tem algum interesse. Quando a medida de Hausdorff é degenerada, a expressão p0 mede o «conteúdo intrínseco» de fi' de forma imperfeita. Tal é tipicamente o caso quando fi' é um conjunto aleatório, como, por exemplo, a trajectória do movimento browniano ou do de Cauchy ou do de Lévy. Em todos esses casos, o conceito de dimensão já é conhecido, sendo porém conveniente aprofundar um pouco mais o de «conteúdo». Besicovitch teve a ideia, para levar em conta as medidas de- generadas, de substituir y(o)p0 por uma função h(p) mais geral, satisfazendo h(O) =O. Pode existir uma função-calibre h(p) tal que a quantidade limp!o infp, < P Lh(p,) é positiva e finita. Nesse caso, essa quantidade chama-se «medida de Hausdorff-Besi- covitch segundo o calibre h(p)», e diz-se que h(p) mede o con- teúdo do conjunto fi' de forma exacta. Ver, por exemplo, Kahane e Salem 1963 ou Rogers 1970. Dimensões (fractais) de cobertura Seja ainda um conjunto fi' num espaço métrico Q e um raio máximo p > O. Pontrjagin e Schnirelman · 1932 cobrem fi' por meio de bolas de raio igual a p, segundo o método que exige 178 o menor número possível de bolas, N(p). Pode-se, sem modificar N(p), substituir a condição «raio igual a p» por «raio, no máximo, igual a p». Em seguida, fazendo p tender para O, define-se a dimensão de cobertura por log N(p) lim infpJ.o log (1/p) Kolmogorov e Tihomirov 1959 estudaram log N(p) em pormenor, designando-o por «entropia p de .9' ». Isso leva a designar a dimensão de cobertura como a dimensão de entro- pia. Kolmogorov definiu igualmente outras quantidades capa- zes de servir para definir dimensões fractais. Por exemplo, seja M(p) o maior número de pontos de.9'tais que as suas dist~ncias dois a dois ultrapassem p. Por definição, a capacidade de.9'será log M(p) e a expressão lim infpJ.o log M(p)/log (1/p) será uma dimensão fractal. É preciso não se deixar levar pela palavra «capacidade», confundindo-a com a dimensão capaci- tiva de Frostman. Conteúdo de Minkowski Tomemos como espaço W o espaço euclidiano a E dimen- sões. Para estudar os conceitos de comprimento e de área de um conjunto .9' de W, Minkowski 1901 sugeriu que se começasse por o regularizar e engrossar, substituindo-o pelo conjunto .9' (p) de todos os pontos cuja distância a .9' é, no máximo, p. Pode-se obter .9' (p) como uma união de todas as bolas de raio p, centradas em todos os pontos de.9: Por exem- plo, uma linha é substituída por um «fio», cujo volume, dividido por 2np2, possibilita uma nova estimativa do compri- mento aproximado da linha. Da mesma maneira, uma super- fície é substituída por um «véu», sendo o volume do véu, dividido por 2p, uma estimativa da área aproximada da super- 179 fície. Minkowski generalizou a densidade para todo o d inteiro como sendo igual à razão: volume na dimensão E de9'(p) y(E - d)pE-d Os conteúdos superior e inferior de 9' são definidos, respecti- vamente, como os limites superior e inferior da densidade, quando p ~ O. A ideia é discutida em pormenor em Federer 1969. Caso os conteúdos superior e inferior coincidam, o seu valor comum define o conteúdo (tout court). A extensão de todas estas definições aos valores não inteiros de d é absolutamente natural, devendo-se a Georges Bouli- gand. Por outras palavras, se existir um valor D de d tal que o conteúdo superior de 9 se anula para d > D e o conteúdo inferior diverge para d < D, a esse valor D pode-se chamar «dimensão de Minkowski-Bouligand de9'». Dimensões fractais de caixas. As dimensões definidas nesta secção e na anterior, bem como diversas suas variantes infor- mais, são frequentemente chamadas «dimensões de caixas» (subentende-se: «de caixas de tamanhos iguais»). Dimensões (fractais) de concentração para uma medida (Mandelbrot) Seja ainda um espaço métrico Q e suponhamos, além disso, que, sobre conjuntos apropriados de n, esteja definida uma medida Jl~ satisfazendoJl(Q) = 1, «densa em toda a parte», no sentido de que Jl(A) > O para qualquer bola A. Visto que «o conjunto em que Jl > O» é idêntico a Q, a dimensão de homotetia (se se aplicar) e a dimensão de cobertura são ambas idênticas à dimensão de Q, não trazendo, por conseguinte, nada de novo ao conhecimento de Jl. Pode ser possível afirmar que Jl se concentra num conjunto aberto, de dimensão de Hausdorff-Besicovitch mais pequena do que a de Q. Infeliz- mente, no caso de conjuntos abertos, a dita dimensão deixa de poder ser interpretada concretamente de forma natural, sendo 180 então necessária urna nova definição mais directa. Não encon- trando nada a esse respeito na literatura, introduzi (para meu uso pessoal) as seguintes definições, ainda pouco exploradas, mas que poderão ter um interesse mais geral. Sendo dado p >O e O< À< 1, consideren:tos todas as cober- turas de Q que utilizam bolas de raio no máximo igual a p, deixando a descoberto um conjunto de medida 11 no máximo igual a À. Seja N(p, À) o ínfimo do número dessas bolas. As expressões lirn inf:~.!o lim infp!o log N(p, À) I log (1 I p) lirn infp!o log N(p, p) I log (1 I p) definem, cada urna, urna dimensão. Para a primeira, o caso mais interessante é aquele em que o factor lim infp!o é indepen- dente de À, o que significa que a operação lirn inf:~.!o pode ser eliminada. Dimensão topológica As dimensões de homotetia, de cobertura e de medida são todas relativas a espaços métricos. São todas muito diferentes de um conceito muito mais usual, que é a dimensão no sentido topológico. Esta última está absolutamente fora das nossas preo- cupações. Contudo, é necessário assinalá-la,· pois, de outro modo, o papel quase exclusivo que representa nos tratados correria o risco de causar a confusão. Diz-se que dois espaços topológicos têm a mesma dimensão se entre os pontos de um e de outro existir urna corres- pondência contínua e unívoca. A legenda da fig. 51, 1-epresen- tando a curva de Peano, fornece alguns pormenores a e:;se respeito. Encontra-se um grande número de informações em Gelbaurn e Olrnsted 1964 (um livro curioso, muito útil, mas totalmente desorganizado). Finalmente, de entre os tratados, pode citar-se Hurewicz e Wallrnan 1941. Vemos então que o conceito intuitivo de dimensão é multi- forme: a dimensão de Hausdorff-Besicovitch, a dimensão de 181 homotetia e a dimensão topológica representam, cada uma delas, apenas um aspecto particular. Além disso, elas podem muito bem tomar valores diferentes. Sabemos, por exemplo, do estudo da curva de von Koch e das suas variantes, que as dimensões de Hausdorff-Besicovitch são idênticas às dimen- sões de homotetia interna, satisfazendo 1 < D < 2; no entanto, essas curvas contínuas sem pontos duplos têm todas uma dimensão topológica igual a 1. Mas o conjunto que suporta a medida multinomial de Besicovitch do capítulo IX tem uma dimensão de Hausdorff-Besicovitch que satisfaz O < D < 1, enquanto a sua dimensão de homotetia é 1. Variáveis· aleatórias estáveis de Lévy Será cómodo aqui definir a variável aleatória gaussiana reduzida X de forma inusual, como tendo a densidade Isto assegura que exp (- Ç,2) seja uma sua função característica (transformada de Fourier). A média de X é nula e a sua va- riância é cr2 = 2. Chamemos a atenção para a seguinte proprie- dade. Sejam G' e G" duas variáveis gaussianas independentes, que satisfazem < G' > = < G" > = O, < G'2 > = cr"2 e < G"2 > = cr"2; então, a soma G = G' + G" é igualmente gaussiana, com < G > = O e < G2 > = cr'2 + cr"2• A variável gaussiana reduzida X é solução da equação funcional seguinte: (S): s'X' + s"X" = sX à qual se junta a relação auxiliar (A2): s'2 + s"2 = s2 A equação (S) define a estabilidade no sentido de Lévy. Do ponto de vista de (S) e de (A2), s' e s" são simplesmente facto- res de escala. Aqui verifica-se que são proporcionais a cr' e cr", mas há casos em que não é assim. 182 Quanto à distribuição de Cauchy, é Pr(X > x) = Pr(X < -x) = 1/2- (1/n) arctg x A sua densidade, sendo n-1(1 + x2)-1, é a transformada de Fourier da função característica exp(-1 Ç I). Tem a particulari- dade de < I X I h> = oo para h ~ 1, pela simples razão de que todos os seus momentos de ordem inteira são infinitos. · A equação funcional (S) é ainda aplicável, mas o expoente que aparece na condição auxiliár é agora igual a 1 (A1): s' + s" = s Aqui, o factor de escala já não pode ser definido por in- termédio de momentos, mas verifica-se ser igual à distância entre a mediana de X e as suas quartilhas. Finalmente, preservando sempre a condição de estabilidade (S), é poss~vel generalizar (A2) e (A1) sob a forma: (AD): Cauchy pensava que D poderia ser um qualquer real positivo. Mas Lévy - que retornou este estudo e o levou até ao fim, de onde a denominação de «distribuições estáveis de Lévy» - demonstrou que é condição necessária e suficiente que O< D::; 2. Ver Lévy 1937-54, Larnperti 1966, Lukacs 1960-70, Zolotarev 1980. No caso simétrico (portanto isotrópico), a densidade de probabilidade estável de Lévy toma a forma - exp(-u0 )cos(ux)du 1100 1t o Esta é a transformada de Fourier da função característica exp(-1 Ç I D). Excepto nos casos D = 2 (Gauss) e D = 1 (Cauchy), a densidade anterior não pode ser escrita sob uma forma analítica fechada. Se D < 2, o momento < I X I h> só é finito quando h< D. 183 Vectores aleatórios estáveis de Lévy Limitemo-nos ao caso isotrópico. Lévy mostrou que, se o vector aleatório isotrópico X satisfaz a (5): s'X' + s"X" = sX dever-se-á ter (AD): s'0 + s"0 , com O < D ~ 2 A função característica é ainda exp(-1 Ç, I 0 ). Pode-se definir esse vector X explicitamente, como integral de contribuições vecto- riais, cujas direcções cobrem uniformemente toda a esfera uni- tária e cujos comprimentos são escalares aleatórios infinitesi- mais, independentes e seguindo a mesma distribuição estável (Lévy 1937-54). Ainda outro método: representa-se X como o integral, estendido a todos os volumes elementares dxdydz do espaço, de vectores definidos da seguinte forma: são nulos com a probabilidade 1 - dxdydz; caso contrário, têm um comprimento igual a I OP 1-31°, onde P é o centro do volume elementar e O é a origem. Finalmente, todos esses vectores são orientados de P para O. Há diversos problemas de convergência, mas que não são difíceis de resolver, como se vê se se interpretar cada vector elementar como uma força de gravitaçáo. A sua lei torna-se newtoniana para D = 3/2, obtendo-se, nesse caso, a distribuição de Holtsmark. Uma discussão particularmente simples, dirigida aos físicos, é a de Chandrasekhar 1943. As dificuldades de convergência resolvem-se por anulação recí- proca das atracções pequenas de estrelas muito afastadas e orientadas em direcções opostas. Diversas funções brownianas Se o movimento browniano foi o primeiro objecto fractal a ser estudado, é porque se trata do mais simples, do ponto de vista não só da física, mas também da matemática (Wiener, 184 Lévy). Além disso, um grande número de outros objectos fractais obtêm-se modificando a definição do movimento browniano de uma forma inteiramente natural. Iremos aqui fazer uma lista dessas generalizações mais importantes. O protótipo irredutível é o movimento browniano esca- lar de Wiener. Uma vez normalizado, é uma função escalar B, aleatória e gaussiana, da variável escalar t, tal que <[B(t) - B(0)]2> = t2H, com H= 0,5. A primeira generalização incide sobre B, substituindo o es- calar por um vector, ou, ainda - o que vai dar ao mesmo-, considera um ponto cujas coordenadas são todas movimentos brownianos independentes. Uma segunda generalização diz respeito a um B escalar, mas substitui H= 0,5 por um outro valor,compreendido entre O e 1. Isso conduz ao movimento browniano fraccionário, cujas prin- cipais propriedades - incluindo uma construção efectiva - são discutidas em Mandelbrot e Van Ness 1968. As primeira e segunda generalizações podem ser combina- das, conforme foi dito no capítulo VII. Uma terceira forma de generalizar B(t), devida a Paul Lévy, incide sobre t, substituindo este escalar por um ponto P. Uma construção efectiva de B(P), a partir do ruído branco gaus- siano, foi dada por Tchentsov. A combinação das segunda e terceira generalizações deve-se a R. Gangolli, sendo urna cons- trução efectiva devida a Mandelbrot 1975b. Urna quarta generalização substitui a distribuição gaussiana por uma outra distribuição estável de Lévy; essa generalização é muito útil no capítulo VI. 185 CAPÍTULO XV Esboços biográficos Este livro cita diversos autores, alguns dos quais foram, com toda a justiça, coroados com todos os louros (é o caso de Jean Perrin e John William Strutt, Third Baron Rayleigh), enquanto outros ficaram um pouco à margem, muitas vezes até ao mo- mento da sua morte. O tempo, para esses últimos, parece ter corrido lentamente, deixando-lhes a oportunidade (a menos que seja necessário dizer que lhes impôs a necessidade) de polir ao longo dos anos ideias que ninguém lhes disputava. De entre eles distinguem-se três sábios a quem dedico uma admiração particular. Esperando poder partilhá-la, desejando saber um pouco mais sobre um deles - bem como sobre um quarto autor, acerca do qual não sei praticamente nada - e, por fim, desejando (como disse na introdução) que este ensaio contribua para a história das ideias, irei terminar com alguns esboços biográficos. Louis Bachelier: 11/3/1870-28/4/1946 O trabalho de Roger Brown remonta a 1827, à pré-história, tendo a teoria física do movimento browniano sido criada de 1905 a 1910, por Perrin, Einstein, Langevin, Fokker e Planck. Quanto à teoria matemática, ela veio depois da física, com Wiener, que a fundou a partir de 1920, seguido por Paul Lévy. 187 É inútil determo-nos aqui nos pormenores, que são facilmente acessíveis. Mas a história poderia ter decorrido de maneira diferente. Com efeito, a matemática e as ciências económicas (para estas últimas teria, certamente, sido caso único!) poderiam ter pre- cedido a física, se a aventura de um precursor extraordinário tivesse tornado um rumo diferente. Com efeito, urna porção verdadeiramente inacreditável dos resultados da teoria tinha já sido descrita nos trabalhos de Louis Bachelier, a começar por urna tese de doutoramento de estado defendida em Paris em 29 de Março de 1900. Sessenta anos após a sua publicação nos Annales de l'École normale supérieure, esta tese teve a rara honra de ser reimpressa (em tradução inglesa), mas a sua influência directa foi claramente nula. Bachelier manteve-se activo e publicou, nas melhores editoras, diversas obras e dissertações. Além disso, o seu popular livro Le Jeu, la Chance e le Hasard1 (Bachelier 1914) conheceu diversas edições, po- dendo ser lido, ainda hoje, de urna forma mais do que honrosa. Não será um livro para todos, pois o assunto se alterou muito e está escrito corno urna sequência de aforismos: não é claro se estes resumem conhecimentos já adquiridos ou esboçam pro- blemas a explorar. O efeito cumulativo dessa ambiguidade é perturbador. Apesar desses trabalhos, Bachelier sofreria diversos reveses na sua carreira, contando 57 anos quando conseguiu ser nomeado professor na Universidade de Besançon. Dada a lentidão da sua carreira e a escassez de traços pessoais que deixou (as minhas pesquisas, ainda que diligentes, puderam apenas encontrar restos de recordações de alunos e colegas e não descobriram sequer urna única fotografia), a sua vida parece medíocre e a celebridade atingida a título póstumo pela sua tese faz dele urna personagem quase romântica. A que se deve esse contraste? Urna das razões (além do facto de nunca ter integrado urna «grande escola», de a sua tese ter ape- nas tido direito a urna «menção honrosa» e de não dever ser urna pessoa muito desenrascada) prende-se com um certo 1 Em português, O Jogo, a Sorte e o Azar. (N. dos T.) 188 erro matemático, cuja história me foi contada por Paul Lévy, numa carta de 25 de Janeiro de 1964. Eis alguns largos extrac- tos, que completam aquilo que pode ser lido em Lévy 1970, pp. 97-98: Ouvi pela primeira vez falar dele poucos anos após a publicação do meu cálculo das probabilidades. Portanto, em 1928, mais ou menos um ou dois anos. Era candidato a um lugar de professor na Universidade de Dijon. Gevrey, que era lá professor, veio-me perguntar a opinião sobre um tra- balho de Bachelier surgido em 1913 (Ann. Ec. Norm.). Aí definia a função de Wiener (antes de Wiener) da seguinte forma: em cada um dos intervalos [m, (n + Ht], uma função X(t I 't) tem uma derivada constante +ou - u, sendo os dois valores igualmente prováveis, e uma passagem ao limite (u constante e 't --7 O) dava X(t)! Gevrey estava escandalizado com este erro e veio-me pedir a opinião. Disse-lhe que es- tava de acordo e, a seu pedido, confirmei-o por escrito numa carta que facultou aos seus colegas de Dijon. Bachelier foi chumbado e, ao saber do meu papel, veio-me pedir expli- cações, as quais lhe dei, sem, contudo, o conseguir conven- cer do seu erro... Passo por cima da sequência imediata deste incidente. Já tinha esquecido a questão, quando em 1931, na disser- tação fundamental de Kolmogorov, encontro «der Bacheliers Fall»2• Estudo então os trabalhos de Bachelier, verificando que este erro, que era uma presença constante, não o impe- diu de chegar a resultados que teriam sido correctos se, em lugar de u constante, tivesse escrito u = c-r112, e de descobrir, antes de. Einstein e de Wiener, algumas pro- priedades importantes da função dita de Wiener ou de Wiener-Lévy, salientando-se: a equação da difusão e a lei de que depende max0!>t91 X('t). Está por realizar um trabalho que nunca efectuei: procurar nos resultados da minha memória de 1939 (Compositio math.) quais aqueles que Bachelier já conhecia. 2 Em alemão no original. <<Ü caso Bachelier>>. (N. dos T.) 189 Reconciliei-me com ele. Escrevi-lhe a dizer que lamentava o facto de a impressão produzida por um erro no início me ter impedido de continuar a leitura de trabalhos em que havia um tão grande número de ideias interessantes. Res- pondeu-me com uma carta em que testemunhava um grande entusiasmo pela investigação. É trágico que tenha sido Lévy a desempenhar este papel, pois veremos em breve que também ele falhou por falta de rigor (seria desnecessário falar aqui do grau de rigor matemá- tico das melhores teorias físicas do seu tempo ... ou do nosso). Um outro motivo para as dificuldades de Bachelier revela- -se no título da sua tese, da qual me demorei a falar e que era Théorie mathématique de la speculation3, não se tratando de uma especulação (filosófica) sobre a natureza do acaso, mas sim de especulação (bolsista) sobre a alta e a baixa dos juros. Segundo as palavras do relator, Henri Poincaré, «Ü assunto [ ... ] afasta- -se um pouco daqueles que são habitualmente tratados pelos nossos candidatos». Não há nenhuma indicação sobre a forma como este assunto foi escolhido. Se bem que o autor utilizasse com à-vontade o vocabulário da bolsa, sabia que «nunca se fica rico só por se ser hábil». É pouco concebível que tenha reco- nhecido a importância do seu modelo para os economistas (de que falo em Mandelbrot 1973j, 1973v), importância que teve de aguardar sessenta anos antes de ser geralmente reconhecida. Sem dúvida, seguia simplesmente a tradição, vendo no jogo -nas suas próprias palavras - «a imagem mais clara dos efeitos do acaso». Qualquer que tenha sido a semente, vema considerar, na sua Notice de 1921, que a sua principal contribuição tinha sido fornecer «imagens tiradas dos fenómenos naturais, como a teoria da radiação das probabilidades, em que se assimila uma abstracção a uma energia, abordagem imprevista e ponto de partida para numerosos progressos. Foi a propósito dessas assimilações que Henri Poincaré escreveu: 'O Sr. Bachelier demonstrou um espírito original e preciso'». Esta última frase 3 <<Teoria Matemática da Especulação>>. (N. dos T.) 190 vem no relatório de tese, que merece ser citado em mais pormenor: A forma como [o candidato] obtém a lei de Gauss é muito original e tanto mais interessante quanto o raciocínio pode- ria estender-se, com algumas modificações, à própria teoria dos erros. Desenvolve-o num capítulo cujo título pode, de início, parecer um pouco estranho, pois o intitula «Rayonne- ment de la Probabilité»4• O autor recorreu, com efeito, a uma comparação com a teoria analítica da propagação de calor. Um pouco [sic!] de reflexão mostra que a analogia é real e a comparação legítima. Os raciocínios de Fourier aplicam-se, quase sem alteração, a este problema tão diferente daquele para o qual foram desenvolvidos. Poder-se-á lamentar que [o autor] não tenha desenvolvido um pouco mais esta parte da sua tese. Poincaré vira, portanto, que Bachelier tinha chegado ao pró- prio limiar de uma teoria geral da difusão. Valerá a pena reproduzir dois outros extractos da Notice: 1906: Teoria das probabilidades contínuas. Esta teoria não tem qualquer relação com a teoria das probabilidades geo- métricas, cujo alcance é muito limitado. Trata-se de uma ciência com um grau de dificuldade e de generalidade dife- rente do do cálculo clássico das probabilidades. Concepção, análise, método, tudo aí é novo. 1913: As probabilidades cine- máticas e dinâmicas. Estas aplicações do cálculo de probabili- dades à mecânica são absolutamente pessoais do autor, não tendo este ido buscar a ideia primitiva a ninguém. Nunca foi realizado nenhum trabalho do mesmo género. Concepção, método, resultados, tudo aí é novo. Não se recomenda aos autores de uma Notice que façam prova de modéstia. Mas, aqui, Louis Bachelier não estava de maneira nenhuma a exagerar, contrariamente à opinião dos seus contemporâneos. 4 <<Radiação da Probabilidade». (N. dos T.) 191 Quem saberá algo mais acerca da sua vida ou da sua perso- nalidade? Digressão: será necessário completar as «CEuvres» de Poincaré? Os extractos de relatório acima reproduzidos foram copia- dos dos Arquivos da Universidade de Paris VI -herdeiros dos da antiga Faculdade de Ciências de Paris - com a amável autorização das autoridades competentes. O documento está redigido no estilo admirável e lúcido que se conhece dos escritos «populares» do autor. É apaixonante. Este caso sugere-nos que o segredo académico que protege tais documentos na sua origem obedece expressamente às mes- mas regras que o segredo diplomático e o das correspondên- cias privadas. Hoje todo um aspecto da personalidade de Poin- caré está ausente nas suas CEuvres, reputadamente completas. Edmund Edward Fournier d' Albe: 1868-1933 Um parágrafo no Who is Who?5, depois outro no Who was Who? 6, os seus livros nas bibliotecas, alguns raros comentários sobre o seu modelo - em geral sarcásticos, excepto o comen- tário de Charlier, que, de resto, não parece de forma alguma ter pretendido apoderar-se do que admirava. Eis todos os ves- tígios deixados por este estranho autor. Foi um inventor activo (o primeiro a transmitir uma imagem de televisão a partir de Londres). Foi um místico religioso. Apesar da sua ascendência, da educação parcialmente alemã e da residência em Londres, foi um patriota irlandês, militante de um movimento pan-celta. A sua obra é daquelas em que se fica surpreendido por não se encontrar nada de razoável e à qual se tem medo de devotar demasiada atenção, receando tomar o resto a sério. Mas deve- se-lhe algo de durável, a primeira formalização de uma intui- ção muito importante, já conhecida antes dele, é certo, mas 5 Livro inglês de grande popularidade que retrata as figuras de destaque da sociedade inglesa. A tradução literal do seu título é Quem É Quem? (N. dos T.) 6 Livro semelhante, mas cujo título significa Quem Era Quem? e que, obvia- mente, se refere a personagens já falecidas. (N. dos T.) 192 apenas de forma muito vaga. Gostaríamos de conhecer um pouco melhor sobre que terreno ela se terá podido formar. Paul Lévy: 15/9/1886-5/12/1971 Paul Lévy - que eu considero meu mestre, ainda que ele não tenha reconhecido nenhum aluno no sentido usual- rea- lizou aquilo que Bachelier apenas aflorara. A sua vida foi sufi- cientemente longa para que se tenha visto reconhecido como um dos maiores probabilistas de todos os tempos, e mesmo para o levar (com perto de 80 anos) a ocupar o lugar de Poin- caré e de Hadamard na Academia das Ciências. Contudo, ao longo de toda a sua vida activa, sofreu o ostracismo da Univer- sidade, o que não deixava de o mortifi<;ar, sem, contudo, o surpreender, pois, conforme escreveu na sua autobiografia (Lévy 1970), embora receando «não ser mais do que um sobre- vivente do século passado», tinha a «sensação nítida de não ser um matemático 'como os outros'». Trabalhando isoladamente, disperso por poucas obrigações além do seu professorado na Escola Politécnica, transformou um pequeno conjunto de resul- tados heteróclitos numa disciplina em que resultados ricos e variados são obtidos por métodos que envolvem uma econo- mia de meios verdadeiramente clássica. Prossigo com alguns comentários, parafraseando aqueles que proferi numa cerimónia em sua memória: Falemos, antes de tudo, do seu ensino na Politécnica. Das suas aulas orais, tendo-me o acaso colocado num lugar ao fundo do anfiteatro, sendo a voz de Lévy muito fraca e não existindo amplificação, a imagem que me ficou é muito ténue. A recordação mais viva que tenho é a da semelhança, . de que alguns de nós nos apercebíamos, entre a sua silhueta comprida, forte e acinzentada e a forma um pouco especial corno traçava o símbolo de integração no quadro. Já nas aulas escritas as coisas não eram tão rotineiras. Não era o desfile tradicional, bem ordenado, começando por urna descarga de definições e lemas, seguida de teoremas 193 cujas hipóteses todas se repetem claramente, intercalados por alguns resultados não demonstrados, mas claramente sublinhados como tais. Guardei, em vez disso, a recordação de uma vaga tumultuosa de comentários e observações. Na sua autobiografia, Lévy sugere que, para interessar as crian- ças pela geometria, é necessário chegar rapidamente àqueles teoremas que elas não se sentem tentadas a considerar como evidentes. Na Politécnica, o seu método não era muito dife- rente. Para descrever o seu estilo, uma pessoa sente-se irre- sistivelmente atraída por imagens de alpinismo, tal como aconteceu, há já muito tempo, com Henri Lebesgue, numa descrição de um outro curso de Análise na Politécnica, o de Camile Jordan. Com efeito, tal como Camile Jordan, Lévy não era parecido com «aquela pessoa que tentaria aguar- dar o ponto culminante de uma região desconhecida, não olhando em volta antes de atingir o cume. Se essa pessoa for levada para lá, ela verá possivelmente que do topo domina muitas coisas, não sabendo, contudo, muito bem quais. Con- vém ainda lembrar que dos cumes mais elevados não se vê geralmente nada. Os alpinistas sobem-nos apenas pelo pra- zer do esforço a realizar». É inútil dizer que as «folhas» policopiadas do curso escrito de Lévy não eram universalmente populares. Para muitos «escavadores de minas»7, elas eram - na expectativa do exame geral - fonte de inquietude. Aquando da última reforma (que conheci em 1957-58, sendo seu «mestre deconferências»), todos os seus traços se acentuaram ainda mais. A exposição da teoria da integração, por exemplo, era claramente aproximativa. Não se realiza um bom trabalho tentando forçar-se o talento, escreveu ele. Parecia que, no último ano em que deu a cadeira, o seu talento havia sido forçado. Mas desse curso de 1944, que eu frequentava, guardei uma recordação extraordinariamente positiva. Se é verdade que a intuição não pode ser ensinada, não o é menos que é bem fácil ser enganada. Penso que era sobre- tudo isso que Lévy tentava evitar e julgo que o conseguiu. 7 Expressão por que são conhecidos os candidatos à Escola Politécnica. (N. dos T.) 194 Ainda na escola, ouvi diversas alusões à sua obra criativa. Ela era, dizia-se, muito importante, mas acrescentava-se que o mais urgente era torná-la rigorosa. Isso foi feito e os rebentos intelectuais de Lévy regozijam-se de serem, desde então, aceites como matemáticos de parte inteira. Vêem-se a si próprios, conforme acaba de dizer um deles, como «pro- babilistas aburguesados». Esta aceitação custou muito caro: o cálculo das probabilidades não se «apurou». Deliberada- mente, desmembrou-se e dispersou-se por diversos ramos da matemática. Urna teoria do acaso, da qual o cálculo das probabilidades teria sido o pólo central, ainda está por cons- truir. Parece haver, em todos os ramos do saber, níveis de precisão e de generalidade insuficientes, incapazes de atacar algo mais do que problemas simples. Existem também, cada vez mais, ramos do saber cujos níveis de precisão e genera- lidade estão para além do que seria razoável pedir. Por exemplo, pode-se ter necessidade de cem páginas de pre- liminares para conseguir (sem abrir novos horizontes) de- monstrar um único teorema sob uma forma um tudo-nada mais geral. Finalmente, em certos ramos do saber há níveis de precisão e generalidade que se podem qualificar de clás- sicos. A grandeza quase única de Paul Lévy foi a de ter sido um precursor, mantendo-se um clássico. Para terminar, falemos das aplicações científicas. Rara- mente se ocupou delas e aqueles que têm de resolver proble- mas já bem assentes raramente encontram na sua obra fór- mulas que lhes possam servir directamente. Portanto, rara- mente o citam. Mas o mesmo já não se passa na exploração de problemas verdadeiramente novos, a acreditar na minha experiência pessoal. Quer se trate dos modelos aos quais este ensaio é consagrado, quer dos modelos (por exemplo, económicos) que abordo noutras obras, a boa formalização parece não tardar a exigir quer o Lévy de origem quer urna ferramenta com o mesmo espírito e grau de generalidade. Criou-se assim entre os seus teoremas e as minhas teorias um paralelismo cada vez mais acentuado, tanto mais ines- perado quanto os meus trabalhos, que tive a oportunidade de lhe apresentar pessoalmente, o surpreenderam do mesmo modo que surpreenderam os seus contemporâneos. Cada 195 vez mais, o mundo interior, de que Lévy se tornou geógrafo, revela ter tido, com o mundo que nos rodeia (e que eu exploro), uma espécie de acordo premonitório, o qual, não haja qualquer dúvida nesse ponto, é uma marca de génio. Lewis Fry Richardson: 11/10/1881-30/9/1953 Segundo as palavras de G. I. Taylor, Richardson «era uma personagem muito interessante e original, que raramente pensava da mesma maneira que os seus contemporâneos, que frequentemente não o compreendiam». Obteve o seu diploma de B. A. de Cambridge em Física, Matemática, Química, Biolo- gia e Zoologia, pois hesitava sobre qual a carreira a seguir. Tendo sabido que Helmholtz fora médico antes de se tornar físico, Richardson escreveu: [ ... ] pareceu-me a mim que participou no festim da vida em ordem inversa e que gostaria de passar a primeira metade sob a estrita disciplina da física, aplicando em seguida esta formação ao estudo dos seres vivos. Este pro- grama mantive-o em segredo [ ... ] Mais tarde, com a idade de 47 anos, obtém um diploma de Psicologia em Londres. A sua carreira começou no Instituto Meteorológico, consistindo uma das suas primeiras experiên- cias na medida da velocidade do vento, mesmo nas nuvens, disparando esferas de aço (os tamanhos variavam entre os de uma ervilha e os de uma cereja). Sendo quaker, foi objector de consciência em 1914-18, tendo-se demitido quando o Instituto Meteorológico foi integrado no recém-criado Ministério do Ar. A sua obra de 1922 Weather Prediction by Numerical Process8 (cuja reimpressão de 1965 contém uma biografia) foi a obra de um visionário prático. Foi, contudo, manchada por um erro fundamental. Com efeito, ao aproximar as equações diferen- ciais da evolução da atmosfera por equações de diferenças finitas, escolheu, para os intervalos de tempo e de espaço, 8 Previsão Meteorológica por Métodos Numéricos. (N. dos T.) 196 valores que estão muito longe de satisfazer um certo critério de segurança nos cálculos. Não tendo ainda sido sentida a neces- sidade de um tal critério, o erro não podia ter sido evitado, mas - por esse facto - só vinte anos mais tarde foi reconhe- cida a validade das bases do método de Richardson. Houve, no entanto, um aspecto do seu livro que não teve dificuldade em sobreviver, tomando-se um clássico, ainda que anónimo: é o conceito de cascata, tal como o exprimiu numa paródia a Swift, texto que se tomou célebre e ainda hoje se mantém fecundo, pois que cada progresso no estudo da tur- bulência parece vir trazer-lhe uma nova variante. O original e a paródia são intraduzíveis (mas será que não existe um equivalente francês da mesma época?): SWIFf So, naturalists observe, a flea Hath smaller fleas that on him prey; And these have smaller fleas to bite 'em; And so proceed ad infinitum. RICHARDSON Big whorls have little whorls, Which feed on their velocity; And little whorls have lesser whorls, And so on to viscosity (in the molecular sense)9. • Apesar de os textos serem intraduzíveis, fornece-se uma versão portuguesa aproximada : SWIFf Assim, os naturalistas vêem que urna pulga Tem pequenas pulgas a atacá-la; e Estas têm a morder-lhes pulgas mais pequenas; E assim por diante ad infinitum. RICHARDSON Grandes remoinhos têm pequenos remoinhos, Que se alimentam da sua veloádade, E pequenos remoinhos têm remoinhos ainda mais pequenos, E assim por diante até à viscosidade (num sentido molecular). (N. dos T.) 197 Naturalmente, prosseguiu o estudo da turbulência, tendo- -lhe os seus trabalhos valido a eleição para a Royal Society. A primeira secção de um dos seus trabalhos intitula-se «O vento possuirá uma velocidade?» e começa assim: «A questão, aparentemente estúpida, não o é tanto se se reflec- tir um pou~o.» Demonstra, em seguida, como se pode estudar a difusão pelo vento sem nunca mencionar a respectiva velo- cidade. É feita uma alusão - mas (não ocorreu qualquer mi- lagre) para se livrar dela logo a seguir! - à função contínua sem derivada de Weierstrass. É, portanto, evidente que faltou a Richardson o golpe fractal, mas o seu argumento é facilmente traduzível para a linguagem «fractal» da turbulência, que este ensaio introduz e defende. Uma das suas últimas experiências sobre a difusão num meio turbulento requeria a utilização de bóias bem visíveis, de preferência esbranquiçadas, além de que quase submersas, para não apanharem vento, e ainda em grande número, pelo que de preferência não muito caras. A solução que encon- trou consistiu em encontrar um grande saco de pastinagas (parsnips), que mandou atirar do cimo de uma ponte, enquanto as observava do cimo de uma outra ponte, a jusante. Após 1939, uma herança permitiu-lhe pedir uma reforma antecipada do posto administrativo humilhante que ocupava, à falta de um posto à sua altura, consagrando-se, a partir de então, ao estudo da psicologiados conflitos armados entre estados. Dois volumes sobre este problema surgiram após a sua morte, bem como alguns artigos, um dos quais salvou do esquecimento os seus trabalhos sobre o comprimento das costas. George Kingsley Zipf: 7/1/1902-25/9/1950 Filólogo americano, tornado pouco a pouco «ecologista esta- tístico», Zipf é conhecido por um livro publicado por conta do autor, intitulado Human Behavior and the Principie of Least Effort, An Introducion to Human Ecology10, Addison Wesley, 1949. 10 Comportamento Humano e a Lei do Menor Esforço, Uma Introdução à Ecologia Humana. (N. dos T.) 198 Conheço poucas obras (a de Fournier d' Albe é outra) em que tantos rasgos de génio, projectados em tantas direcções, se percam numa ganga tão espessa de locubrações. Por um lado, encontra-se aí um capítulo que trata a forma dos órgão sexuais e um outro em que se justifica o Anschluss11 por meio de uma fórmula matemática. Por outro, contudo, oferece-nos um manancial de figuras e tabelas, em que se martela sem cessar a prova empírica da validade de uma lei estatística, da qual o capítulo xn desta obra referiu duas aplicações, havendo outras em incontáveis domínios das ciências sociais. Se teve difi- culdade em se impor, foi por atacar de frente o dogma que então dominava sem contestação os estatísticos profissionais: o dogma de que tudo na natureza é gaussiano. A sua obra conserva por isso uma importância histórica considerável. Dito isto, Zipf não foi verdadeiramente original: de entre as leis que disseminou, as melhores não eram suas, e aquelas de que foi o primeiro autor são a::5 menos numerosas e as mais con- testáveis. As pessoas gostam de imaginar fins felizes para histórias tristes, sobretudo quando elas são subitamente interrompidas, mas, no caso de Zipf, isso é difícil. No seu combate contra um dogma estatístico forjou um outro dogma, inteiramente verbal e vazio. Encontram-se nele, da maneira mais clara - e mesmo caricatural- as dificuldades extraordinárias que se deparam a qualquer abordagem interdisciplinar. 11 Anexação da Áustria pela Alemanha nazi. (N. dos T.) 199 CAPÍTULO XVI Agradecimentos e coda Esta obra jamais teria visto a luz do dia se não fossem os convites, o apoio e a assistência de inúmeros organismos e individ ualiades. O College de France concedeu-me a honra de me convidar para expor o estado das minhas ideias em Janeiro de 1973 e em Janeiro de 1974. Ao convidarem-me, os Srs. A. Lichnerowicz e J. C. Parker encorajaram-me a organizar o que na altura pode- ria não parecer mais do que uma grande embrulhada, podendo este texto ser considerado uma redacção mais elaborada das minhas palestras no College. Este livro serve-se de trabalhos desenvolvidos no Thomas J. Watson Research Center of the International Business Machi- nes Corporation, Yorktown Heights, Nova Iorque. Através da pessoa do Sr. R. E. Gomory, anteriormente chefe de uma pequena equipa em que me incluía e hoje Senior Vice-President for Science and Technology, a IBM apostou em me dar os meios para que pudesse empreender estes trabalhos, conti- nuando ainda hoje a apoiá-los. A maioria das ilustrações foi realizada por meio de compu- tadores, fazendo uso de programas criados por H. Lewitan, J. L. Oneto e sobretudo S. W. Handelman e de técnicas aper- feiçoadas por P. G. Capek e A. Appel. A. Mandelbrot, L. Mandelbrot, C. Vannimenus e J. S. Lourie combateram a obscuridade e os anglicismos nos textos. 201 F. Mer, F. Legrand, A. M. Benilan, M. Roulé e, para finalizar, C. A. McMullin decifraram os difíceis manuscritos de 1975, tendo-os introduzido num sistema experimental de tratamento de texto. Em 1984 fui auxiliado por J. T. Riznychok e em 1989 por F. Guder e L. R. Vasta. * Deliberadamente, deixei o final dos capítulos precedentes «em suspenso», o mesmo acontecendo ao ensaio como um todo. Se, como o espero, a «geometria elementar» integrar em breve considerações fractais, será graças a uma certa combi- nação imprevisível de capricho, porque se trata de algo de novo e bonito, e necessidade, porque ela será útil e talvez até mesmo necessária. Não gostaria de ajuizar da primeira razão, e foi para ajudar o leitor a julgar a segunda que concatenei uma miscelânea neste livro. Se o leitor chegou até aqui, foi porque a minha miscelânea lhe agradou, ainda está com fome e pretende saber mais. A edição de 1975 mais não foi do que um esboço, e hoje vejo os meus esforços recompensados pela adopção dos fractais num número crescente de disciplinas, cuja diversidade é abso- lutamente inesperada, e pela explosão do número de trabalhos, que já nem sequer tento seguir em pormenor. O segundo ensaio deste livro (que começa na p. 205) tenta dar uma pano- râmica geral. Encontra-se na primeira das bibliografias uma lista de livros sobre fractais, manuais, monografias ou actas de congressos ... É por aí que se deverá começar o estudo aprofundado dos fractais. Todos esses livros têm, eles próprios, bibliografias abundantes, que seria inútil reproduzir aqui. 202 FRONTISPíCIO DO <<PANORAMA>>: UM PEDAÇO DE ÂMBAR Esta fotografia, a única que figura neste livro, é da autoria de Paul A. Zahle, Ph. D. Surgiu na revista mensal National Geographic Magazine de Setembro de 1977, pp. 434-435. © 1977 da National Geographic Society. Parafraseando a legenda, da autoria de T. J. O'Neil: «Apa- rentemente, num bloco de resina já solidificado, desenvolveu- -se urna fissura fina que começou a encher-se com resina fresca. Foi a injecção de ar que em seguida formou estes pseu- dofósseis ramificados. Foi preciso esperar a Historia Naturalis, do romano Plínio-o-Velho, para que o âmbar fosse descrito como um produto do mundo vegetal.» Foi preciso esperar a geometria fractal para que a forma desses pseudofósseis pudesse ser identificada como uma den- drite fractal análoga aos agregados discutidos na p. 257 e na fig. 266. 203 PANORAMA GERAL DA LINGUAGEM FRACTAL O terna deste Panorama, como aliás de todo o livro, é a geometria fractal da natureza e do caos, ou -para ser mais curto- a geometria fractal. É o estudo de diversos objectos, tanto matemáticos corno naturais, que não são regulares, mas rugosos, porosos, ou fragmentados, sendo-o no mesmo grau em todas as escalas. Já ultrapassou a idade dos 15 anos, quer se conte a partir do marco que foram os meus trabalhos de 1974 sobre os multifractais, quer a partir da publicação, em 1975, do primeiro dos ensaios que constituem este livro. A 3.• edição destes Objectos Fractais dá-nos, por isso, urna oportunidade de fazer um balanço. O milagre é que a geometria fractal tenha sobrevivido aos males de infância que devastam as iniciativas intelectuais, par- ticularmente aquelas que assumem um tom de síntese. Não só sobreviveu, corno ensinou muitos sábios, engenheiros e artistas - entre outros - a verem o mundo de urna maneira diferente. Mais precisamente, fez sair o verbo ver do sentido figurativo e abstracto a que havia sido remetido, para voltar a encontrar o seu sentido concreto, do qual o instrumento é o olho humano. De urna forma mais geral, a geometria fractal é largamente aceite, tendo já entrado na idade dos congressos, dos cursos e dos manuais, corno o demonstram, por exemplo, os livros para onde remete a primeira página da bibliografia. Não obstante, 207 ainda não se tomou «académica», mantendo uma diversidade que é intrínseca, rara, divertida e importante. Não só levanta ainda questões fundamentais, como continua a desencadear polémicas. Não há aí nada de surpreendente, pois uma síntese intelectual ambiciosa, qualquer que seja a sua idade, não poderia ficar a dormir sobre os seus louros. O objectivo deste ensaio consiste então em examinar breve- mente, um apóso outro, diversos papéis desempenhados pela geometria fractal neste momento da sua vida, respondendo, sem procurar evitar a polémica, às questões de facto ou de interpretação que se parecem colocar mais frequentemente a seu respeito. Este Panorama repete, em alguns pontos, o que já foi dito nos Objectos Fractais. Aliás, não é de forma nenhuma sis- temático, sobretudo porque, no meu espírito, nenhum dos papéis dos fractais domina ou implica os outros. Não é, por- tanto, necessário prestar demasiada atenção nem aos pesos relativos que atribuí aos diversos aspectos dos fractais, nem à ordem pela qual são discutidos. Além disso, tendo certas partes um carácter mais especializado, encoraja-se o leitor a não se deter naquilo que não lhe interessar; frequentemente, poderá saltar directamente para as secções que mais lhe digam alguma coisa. As ilustrações foram agrupadas no final do texto. A natureza e as duas formas de caos À partida, a geometria fractal era uma geometria da natu- reza, que fazia um apelo constante ao caos estatístico. Mas, com a sua utilização, o seu papel alargou-se enormemente. É uma geometria da natureza e é uma geometria do caos, sob duas formas: estatística e determinista. Para ser mais preciso, os Objectos Fractais, de 1975, propu- nham-se não só descrever as montanhas, as nuvens, as árvores e os amontoados de galáxias, mas também descrevê-los de uma forma suficientemente perfeita para permitir imitar ima- gens do real por meio de fórmulas. Essas imitações baseavam- -se em modelos estatísticos. Pouco depois, no entanto, no meu 208 livro inglês, Mandelbrot 1977f, pp. 255-259, verificava (lendo Poincaré) que as mesmas técnicas podiam também ser aplica- das em dinâmica. Ora estava então em vias de se constituir uma teoria do caos determinista. A ideia fundamental dessa teoria reside no facto de um sistema dinâmico absolutamente determinista poder dar origem a comportamentos que temos grande dificuldade em não considerar aleatórios. Esta perspectiva era conhecida na década de 30, quando Norbert Wiener, para só o citar a ele, pensava (sem, contudo, o ter demonstrado) que a turbulência, ainda que criada por um processo determinista, deveria ser estudada pelos mesmos métodos utilizados na análise de processos aleatórios. Mas a ideia só tomou forma em meados da década de 70, na sequência, sobretudo, dos célebres tra- balhos de David Ruelle sobre os «atractores estranhos». Os trabalhos de Ruelle foram seguidos, não parando de se acumu- larem os exemplos de «caos determinista». A geometria fractal e o estudo do caos estiveram na origem de movimentos independentes, ainda que ambos se colocas- sem na herança intelectual de Henri Poincaré. Os dois movimentos, contudo, mantiveram-se, em grande parte, uni- dos. Para começar, foi desde logo evidente que os «atractores estranhos» de Ruelle eram fractais. De uma forma mais geral, o estudo do caos determinista deu origem a inúmeras formas geométricas muito complicadas. A geometria habitual é abso- lutamente incapaz de as tratar, enquanto a geometria fractal constituía, à partida, uma ferramenta perfeitamente apro- priada para o seu estudo. Assim, por exemplo, os meus tra- balhos de 1974-76 desenvolveram a técnica dos multifractais (sem usar esse nome), com vista ao estudo das formas geo- métricas criadas pela turbulência no espaço real. Mas a mesma técnica estendeu-se, sem esforço particular, às frequências de retorno de um sistema dinâmico considerado num «espaço de fase», encontrando assim um novo campo de aplicação muito vasto. Devido a isso, o papel dos fractais no seio da dinâmica tornou-se absolutamente central. Daí resulta, em particular, que a ideia, por vezes expressa, de que a geometria fractal é unicamente estatística não tem qualquer fundamento. 209 fractal já explica muito bem, alguns fazem unicamente inter- vir o acaso, outros fazem igualmente intervir as grandes equações clássicas da física matemática. O fractal não pretende ser uma panaceia Antes de prosseguir, precisemos que os métodos fractais e multifractais foram largamente confrontados com problemas difíceis, tendo recebido a sua quota-parte de desaires parciais evidentes. Quer .isto dizer que o fractal não pretende ser uma panaceia. O leitor familiarizado com certas discussões filosófi- cas dirá que o fractal responde a uma exigência expressa em Popper 1935: sabemos que é «falsificável», pois em certos contextos já foi definitivamente «falsificado». Há também casos em que um modelo fractal está correcto, embora ele não simplifique de maneira útil a complicação do real. Por fim, há ainda casos em que os dados são tão escassos que não permitem a nenhum modelo ser verificado ou falsifi- cado, merecendo então todos os modelos que sobre eles se diga «não serem sequer falsos». Como reagir então aos casos em que o modelo fractal é posto à prova, mas falha ou não é sequer falso? Essa conclusão deverá, quase sempre, ser tida como uma notícia muito má. Com efeito, seria excepcional que se recorresse aos métodos fractais em casos onde os objectos fossem geometricamente muito simples. Portanto, renunciar à geometria fractal não traz, regra geral, a consolação de se poder sempre retornar à geome- tria euclidiana. Ainda por outras palavras, verificar o desaire do fractal nesta ou naquela «frente» elimina uma esperança acabada de surgir, fazendo-o sem devolver vida a qualquer esperança antiga. Uma lista de papéis que surpreende A experiência demonstra que a lista de «múltiplos e diver- sos papéis» dada pela antepenúltipla secção é por vezes mal recebida. Pode ser vista como improvável e consegue irritar, 212 surpreender ou mesmo inquietar. Para a irritação não há qual- quer resposta possível. Mas compreendo perfeitamente a sur- presa, pois, corno se vai ver, eu próprio a sinto muito intensa- mente e, ao descrever o caminho percorrido pelos fractais, sinto-me transbordar de humildade, tanto corno de alegria. Que dizer da inquietude e da incredulidade? Apesar dos protestos da secção anterior, é legítimo o direito de perguntar se é concebível que urna lista tão variada seja séria. Anterior- mente ter-se-ia, sem dúvida, concluído que a probabilidade de o ser seria desprezável. Hoje, contudo, trata-se de julgar, não as hipóteses de um projecto, mas o valor de realizações que pertencem já ao passado. A sequência deste Panorama tenta eliminar ou, pelo menos, atenuar as dúvidas quanto à sua solidez. Mas corno julgar a ambição que teria levado a imaginar uma tal variedade de utilizações: não seria ela desmesurada? De facto, nunca houve qualquer sentimento de desmesura, pois não houve até ontem qualquer projecto organizado. Pelo contrário, tratava-se antes de urna fuga para a frente! Ao reler recentemente algumas pastas antigas (ao preparar as minhas Selecta), recordei-me, com um aperto no coração sempre renovado, corno me fora difícil durante tanto tempo apresentar o conjunto dos meus trabalhos de forma suficien- temente coerente e prometedora para que fossem apoiados. A única ligação que via entre eles passava pela termodinâmica e era recusada, pelo menos até ontem. De qualquer maneira, quem poderia, na década de 50, prever o computador corno urna máquina de desenho? Mas um acaso que não sei analisar fez-me formular urna versão pessoal do que viria a ser o terna do caos. O meu projecto estendeu-se e organizou-se, aliás na solidão mais completa. Senti-o a avançar gradualmente, ao ritmo das circunstâncias exteriores que se impunham à minha atenção. Cada passo trazia a sua surpresa e os «projectos de inves- tigação», que todo o cientista é forçado a compor de tempos a tempos, reduziam-se, no meu caso, a glosar sobre o passado recente, em lugar de encaminhar o futuro. Entretanto, colocavatodo o meu ardor e persistência a farejar, passo a passo, com o nariz no chão, urna pista vaga, mas que parecia digna de ser 213 seguida, que se verificava, aliás, ficar mais nítida a cada momento e que conseguiu chamar companheiros de estrada cada vez mais numerosos. O ponto de partida (a distribuição das frequências de palavras!) surge apenas, no universo fractal de hoje, como um lugarejo raramente visitado, mal digno de ser assinalado. Ainda uma outra questão. Como pode um único indivíduo reivindicar, de forma razoável, uma tal diversidade de «priori- dades»? Algumas respostas foram já dadas implicitamente, mas precisemo-las. Ao lado de uma infinidade de inconvenien- tes, estar sozinho traz a vantagem de não se ter concorrência. Para se ser o melhor basta então estar-se presente e, como é evidente, ultrapassar um certo nível mínimo de competência e de entusiasmo. Ao longo da pista, na qual o meu nariz perma- necia colado, as novidades em questão não eram vistas como sendo «diversas». Pelo contrário, muitas delas foram vistas, de início, como o retomar inesperado de um sucesso antigo, que estaria a ser apresentado com a cara lavada. Cada retomada ir-se-ia aclimatizar e desenvolver, modificando-se assim de maneira profunda. O projecto fractal foi apenas formulado como a coroação de trabalhos já realizados (ver Mandelbrot 1987r). Como projecto, nunca parou de evoluir, e eu continuo a vê-lo como progredindo de «baixo para cima», «subindo» diversas planícies, em direcção a uma montanha que se arrisca permanentemente a ser substituída por outra, que será sempre mais alta. Reconhece-se nesta maneira de proceder a ideia-mestra de uma das duas grandes formas de interdisciplinaridade, da qual o estudo do caos nos fornece muitos outros exemplos. Uma forma extremamente diferente de interdisciplinaridade pro- cede em sentido perfeitamente contrário, «de cima para baixo». Parte do enunciado de um grande princípio, considerado into- cável, pondo-se depois a «descer» esta montanha, em direcção a planícies progressivamente mais baixas. Esta forma é-me totalmente estranha e confesso mesmo sentir a seu respeito alguns dos sentimentos de incredulidade de que a minha forma se sente, por vezes, objecto. Felizmente, tudo o que acaba de ser dito pouco importa para a evolução do tema e, se me detive um pouco nesta história, 214 foi na esperança de impedir que a surpresa legítima eventual- mente provocada pela penúltima secção impedisse o leitor de prosseguir. Poesias, história e prosas É divertido classificar os diversos papéis enumerados numa secção anterior. Dir-se-á que os aspectos estéticos e matemáti- cos resultam de duas formas de poesia, que o aspecto de novidade resulta da história, que o aspecto prático resulta de uma prosa utilitária e que o aspecto teórico resulta tanto da grande prosa como da poesia. Encontram-se já, portanto, mui- tos dos principais papéis que se poderão esperar de uma lin- guagem. Entre essas poesias e essas prosas não encontro qualquer diferença de nobreza, nem nenhuma «ordem natural», à ma- neira de Auguste Comte, que «desceria» (aqui também!) da- quilo que é abstracto e fundamental para aquilo que é «unica- mente aplicado». Proponho-me então começar por dar um panorama das poesias, pois são mais simples, acabando por me deter nas grandes equações, pois são mais complicadas. Importância dos «novos» instrumentos que são o olho e o computador Como último preliminar, observemos que todos os temas de que iremos tratar têm em comum uma forte componente visual. «Visual» é aqui uma palavra-chave, pois a expressão «geometria fractal» utiliza o termo «geometria» num sentido arcaico, que implica imagens concretas e reais. Frequentemente (mas infelizmente não neste livro, à excepção da capa), a utili- zação de cores vivas é um precioso auxílio. A partir de que momento este sentido arcaico se começou a desvanecer? Antes de tentar responder, comecemos por citar dois versos de Goethe (1749-1832). No início de Faust I, Me- fistófeles disfarça-se com as vestes de um lente e impressiona um estudante que passava naquele momento, dirigindo-lhe um 215 lindo discurso. Conclui (linhas 2938-2939) com esta descrição de «duas culturas»: Grau, teurer Freund, ist alle Theorie, Und grün des Lebens goldner Baum. (Cinzenta, caro amigo, é toda a teoria e verde a árvore dourada da vida.) Está visto que, para Goethe, o cinzento era uma fonte de orgulho do lente. Não será, pois, surpreendente que dois contemporâneos quase exactos de Goethe, os grandes matemáticos Lagrange e Laplace, se vangloriassem da ausência de imagens nas suas obras, dando assim um novo sentido (e que mereceria, aliás, um exame pormenorizado por parte dos historiadores da ciên- cia e das religiões) ao termo «iconoclasta», o destruidor das imagens. De início, a sua tarefa foi difícil; por exemplo, o tradutor americano do Systeme du monde1, de Laplace, respon- deu ao autor acrescentando ao texto os mais variados diagra- mas (poder-se-á pensar que o autor os terá traçado nas suas notas, tendo-os depois deliberadamente omitido do texto publicado). Por esse facto, o comprimento do texto quase duplicou na tradução em causa (feita por Nathaniel Bowditch. Mas os iconoclastas persistiram, até ao ponto de dominarem a matemática e mesmo muitas das ciências. Por exemplo, a mecânica quântica foi um triunfo dos algebristas. Ontem, os iconoclastas pareciam ter triunfado ein todas as frentes, mesmo nas escolas e nos liceus. Hoje, a geometria fractal é um dos motores de uma reacção viva contra essa corrente. Se «a ferramenta faz o homem», não é menos verdade que «o instrumento faz a ciência». A nova tendência geométrica resulta da eclosão de um novo instrumento, que é, evidente- mente, o computador, e do regresso em força de um instru- mento muito antigo que se encontrava subaproveitado, que é o olho humano. Tanto para engenheiros como para cientistas, é quase banal ver os seus domínios revirados com a introdução de um novo 1 Em português: Sistema do Mundo. (N. dos T.) 216 instrumento. Quanto aos artistas, a nenhum pintor poderá ter passado despercebida a revolução que foi a fotografia. Os pin- tores de mais longa memória pensarão também na perspectiva e os historiadores da escultura em metal sabem até que ponto, desde os Gregos até Rodin, essa arte interagiu com os progres- sos na metalurgia. Mas havia já muito tempo, talvez um século, que a situação do matemático se tornara muito diferente. A ideia de «instru- mento novo e essencial» serviu apenas para evocar alguns bens irnateriais, técnicas corno o integral de Lebesgue ou as famílias normais de Montei. Houve excepções. Por exemplo, a regra de que bastam quatro cores para colorir qualquer mapa geográfico, a qual se sabe ter sido descoberta empiricamente pelo desenho. Recorde- -se também que Gauss (1777-1855) não temia submeter as suas conjecturas aritméticas à prova do cálculo explícito de certos casos particulares. Mas esse aspecto do método de Gauss não fez escola. Pelo contrário, os matemáticos profissionais depressa adquiriram o hábito de não se aventurar longe do centro de gravidade da sua disciplina. É essa, sem nenhuma dúvida, urna das raízes principais de urna ideia que ainda ontem se mantinha, e da qual em breve voltaremos a falar, de que poderá existir urna matemática pura, que se desenvolveria num recipiente fechado, sem nunca fazer apelo a qualquer tipo de contributo exterior. Vista de fora, essa ideia sempre parecera inadequada, mas foi necessário um grande golpe para a demolir. Esse golpe foi desferido pelo advento do computador, através de diversos desenvolvimentos, dos quais um dos primeiros foi a geometria fractal. Foi assim que a sabedoria diabólica, mas aceite, do Mefistófelesde Goethe (que descrevemos atrás) pôde ser con- tradita graças a um instrumento que pareceria, de início, esta- belecer um recorde de aridez e cinzentez teórica. A arte fractal, do realismo ao fantástico O resto deste Panorama repassa em pormenor os cinco papéis que acabam de ser atribuídos à linguagem fractal. 217 O aspecto que mais salta à vista, e o mais inesperado, não é de carácter científico, mas puramente estético. Aqueles que encontraram alguma elegância em certas ilustrações dos Objec- tos Fractais de 1975 podem considerar-se profetas. Com efeito, continuando neste via, deparou-se-me um número cada vez maior de objectos geométricos de beleza crescente, incon- testável, surpreendente e ambígua. Alguns são de um realismo desconcertante. Outros parecem, à primeira vista, fantásticos e completamente estranhos, mas depressa lhes encontramos ressonâncias muito antigas, tornando-se quase familiares (figs. 259, 261 e 263). Basta que um assistente ou um colega introduza no compu- tador equações de aspecto inofensivo para que se veja surgir no écran toda urna fauna e toda urna flora, tão depressa quase realista corno um sonho ou pesadelo! A cada passo se tem um choque estético inesquecível. Graças aos progressos contínuos do grafismo informático - e muito particularmente graças à disponbilidade crescente da cor -, assiste-se ao alargamento da gama de fractais que é razoável pretender desenhar, não mostrando a riqueza estética em questão quaisquer sinais de enfraquecimento. Por outro lado, as imitações fractais do relevo tornam-se, de dia para dia, mais realistas, sem recorrer a qualquer fór- mula verdadeiramente complicada e sem «truques» de ilusio- nista. No seio dos meus associados, o desenvolvimento dessa arte passou por três etapas. A etapa «heróica» ou «arcaica» foi constituída pelas figuras dos Objectos Fractais, que datam de 1974. A etapa «clássica» foi constituída pelas figuras que Richard F. Voss preparou para os meus livros de 1977 e 1982; o seu Nascer do Planeta Fractal foi reproduzido na capa da 2.• edição francesa dos Objectos Fractais. A etapa «român- tica» foi responsável pela capa da 3." edição francesa; data de 1989. Em 1975 fazia-se o que se podia em face dos constrangimen- tos de lentidão de urna ferramenta que estava em vias de nascer. Em 1977, R. F. Voss havia dominado o instrumento na ponta da unha! Em 1981 efectuara novos progressos técnicos, mas urna disciplina implacável ainda se impunha, pois o principal 218 objectivo destas imagens não era o de agradar, mas sim o de ajudar à aceitação da geometria fractal. Em 1989, o instrumento estava perfeitamente dominado e o modelo fractal tinha sido aceite corno linguagem de descrição da natureza. É, portanto, possível ao artista dar livre curso à sua fantasia. Os primeiros trabalhos inspirados nos nossos foram Fournier, Fussell e Carpenter 1982, e dois filmes, Carpenter 1980 e Carpenter et ai. 1982; este último é urna longa metragem que foi vista por milhões de espectadores. Os constrangimen- tos específicos do cinema levaram estes autores a «cortar a direito», utilizando um processo baseado no «método do des- locamento do centro» (ver Mandelbrot 1982c e a contribuição de D. Saupe em Peitgen e Saupe 1988). Um modelo melhorado, chamado «deslocamento assimétrico do centro», é propostos em Mandelbrot 1988p. É urna pena ter de limitar o leitor deste Panorama a um pequeno número de exemplos de urna iconografia já familiar a qualquer leitor de revistas de microinforrnática. A fim de com- pensar a austeridade relativa das nossas velhas ilustrações, e mesmo das ilustrações deste Panorama, é necessário remeter o leitor para os dois livros seguintes. Peitgen e Richter 1986 (de que Dewdney 1985 faz uma apre- ciação) apresenta urna amostra das possibilidades deslumbran- tes da síntese moderna de imagens, actividade de que os Objectos Fractais foram precisamente um dos estimulantes. Além disso, o leitor de 1975 nunca podia imaginar refazer ele próprio as imagens dos Objectos Fractais, enquanto alguns lei- tores de hoje anseiam por o fazer, chegando até bem mais longe. Para os ajudar, Peitgen e Saupe 1988 dão alguns pormenores técnicos e descrevem alguns dos algoritmos mais importantes. É espantoso, e digno de ser mais urna vez sublinhado, que este aspecto gráfico não tenha surgido por o termos sabido procurar, mas sim corno um «bónus» inesperado, que acom- panhou sucessos da investigação científica. Retornando a ideia da linguagem, vemos que a geometria fractal vem acrescentar novos «caracteres» ao «alfabeto» que Galileu herdara de Euclides. 219 Desde os tempos longínquos da «descoberta» da perspectiva que o «homem da rua» não via nada de semelhante sair da matemática e nem o próprio matemático alguma vez imaginara que o seu domínio poderia interagir desta forma com a arte. É conhecida a citação de Arthur Cayley de que a beleza de uma teoria matemática pode ser apreendida, mas não expli- cada. Parece, contudo, que, de agora em diante, há uma maneira de fazer partilhar essa percepção, sem uma aprendi- zagem interminável. Essa maneira baseia-se na revelação de que, em muitos casos, a matemática é como uma medalha de duas faces: além da face austera que sempre se lhe conheceu, possui também uma face plástica que não deixou de fazer aumentar o número dos que apreciam o todo. Ninguém voltará a repetir (excepto em tom de provocação!) que a geometria fractal «Se reduz a algumas imagens bonitas». Mas, mesmo àquele que se esforça por desprezar tudo o resto, a arte fractal traz-lhe um tópico novo e muito forte. Dar- -me-á a oportunidade de revelar um paralelo inesperado com a citação clássica de Wigner da p. 23, revelando a eficácia «para além do que seria razoável» e que nós «nem merecemos» da matemática, não como instrumento da física, mas como fonte de beleza plástica. Os fractais nas matemáticas puras Para o profano, a arte fractal coloca poucos problemas. É simplesmente algo de mágico, de que se tira proveito sem se tentar compreender. Para os matemáticos, já a situação é completamente dife- rente. Se lhes fosse dada a ocasião, um bom número deles seria, sem dúvida, tentado (por lealdade a Lagrange e Laplace) a recusar e desencorajar esta face há tanto tempo escondida do seu domínio. Alguns persistem nessa tentativa, mas tal é doravante impossível. A arte fractal é um novo Evereste: «Está ali.» Não só é impossível negá-la, como é quase inconcebível deixar de nos sentirmos possuídos pelo desejo de compreender a sua estrutura e significado. Assim, o papel da arte fractal em matemática passou por duas fases distintas, que a partir de 220 agora se fundem numa só: visualização e fonte viva de inspi- ração. Com efeito, é preciso sublinhar que as minhas primeiras imagens fractais foram simplesmente motivadas pelo desejo de «visualizar» resultados que já haviam sido obtidos pelos méto- dos matemáticos usuais, puros e abstractos. «Visualizar» é uma actividade em moda; é, de facto, útil, mesmo muito útil, mas creio profundamente que é absolutamente preciso não se ficar por aí. Há muitos anos que venho perseguindo um ideal bem mais exigente, que consiste em fazer da imagem um agente activo do processo do pensamento e da descoberta. O exemplo mais conhecido, e o que teve mais influência, não foi cronologicamente o primeiro. Foi o das imagens, que se encontram por toda a parte, a que se chama «conjuntos de Julia» e «domínios de Fatou». Para os obter, «itera-se» inde- finidamente uma função f(x), quer dizer, calcula-se em pri- meiro lugar x1 = f(x0), depois x2 = f(x1), e assim sucessivamente até infinito. Ao examinar estas imagens é-se possuído por um sentimento de humildade e de admiração pelo ímpeto criativo de que Pierre Fatou e GastonJulia deram prova nos seus escritos de 1917 a 1919. Os seus trabalhos ilustram bem o modo como os matemáticos conseguem, por vezes, estudar seres cuja natureza é fundamentalmente geométrica, mesmo quando eles são, na prática, inacessíveis à vista. Poder espantoso e ina- creditável e que, pelo menos no caso de Julia, parece ter-se baseado em fortes «imagens mentais». Poder cujos limites se iriam revelar quando a teoria de Fatou-Julia se esbaforiu, por falta de questões novas. Ir-se-ia manter essencialmente imóvel, até que a visualização, o «beijo do computador», a veio des- pertar. Vimos já que Lagrange e Laplace baniram a imagem como fonte de erros. Pode-se pensar que o fizeram igualmente por brincadeira de intelectuais. Procurar a parcimónia é um objec- tivo louvável, mas é muito fácil levá-lo a extremos, como o fizeram, por exemplo, os geómetras que se dedicaram exclusi- vamente a estudar tudo o que pode ser explorado com a régua e o compasso. Seja como for, o «beijo do computador» permite à ima- gem proclamar o seu extraordinário e surpreendente poder de 221 inspiração. É assim que, para um grande número de mate- máticos, a recente possibilidade de transformar as suas ima- gens mentais em «verdadeiras imagens», interagindo com elas, se revelou urna mina inacreditável de questões novas de matemáticas puras: de conjecturas, de problemas e de teorias. A título de exemplo, Mandelbrot 1980n teve o privilégio de enriquecer a teoria de Fatou-Julia com urna nova janela, pro- pondo aquilo a que Douady e Hubbard 1982 chamaram «con- junto de Mandelbrot». A capa deste livro reproduz este con- junto. Outras ilustrações e algumas explicações figuram no final deste Panorama, assim corno a definição de M. Esta definição será original? De maneira nenhuma! Era a extensão natural ao plano complexo de numerosas investi- gações consagradas durante os anos 70 à iteração f(x) = x2 + c sobre a linha recta dos reais. Demais, o caso real apenas foi abordado por J. Myrberg (nos anos 50 e 60) em virtude da dificuldade apresentada pelo caso complexo. Recentemente, in- vestigadores diligentes, que encontraram motivação suficiente para reler Fatou linha a linha, acabaram por identificar urna sugestão feita de passagem, da qual se pode dizer que reco- menda (entre outros) o estudo de M. É inútil dizer que não foi para mim necessário conhecer essa sugestão. E que, durante 60 anos, ela não foi suficiente para motivar um leitor de Fatou, sendo - na minha opinião - a razão disso o facto de a explo- ração de M ter sido impossível de fazer usando os métodos normais das matemáticas. O sucesso da minha tentativa foi devido ao facto de eu ter procedido de urna maneira totalmente diferente, renovando com recursos que eram reputadarnente adequados. Foi assim que começando a descrever M, procedi de urna forma afastada da do teórico, mais próxima da do explorador e do naturalista, inebriados pela visão de um mundo prestes a ser descoberto. Percorri-o, contemplei-o e dissequei-o, graças ao espantoso equivalente do «microscópio», que é um computador pro- gramado para se observar um domínio cada vez mais pequeno de urna forma cada vez mais pormenorizada. Imagens inesquecíveis, mesmo quando os instrumentos primitivos de 1980 as forneciam corno cinzentos-pálidos inter- 222 rompidos por zonas de um cinzento um pouco mais escuro. A intuição forma-se pouco a pouco, a imaginação inspira-se, o olho torna-se um guia cada vez mais seguro. Realizei esse trabalho em 1979-80, quando já usufruía de dez anos de prática quotidiana da interacção entre o pensamento e o instrumento através do olho. Se eu não tivesse lá estado, quem mais então teria experimentado a alegria de abrir este domínio? Sem dúvida um físico que teria seguido aproximadamente o mesmo caminho que eu. Talvez um amador. Talvez mesmo um matemático «profissional». Se, contudo, se tivesse formado na tradição das décadas de 50 e 60, teria de infringir as regras da sua tribo. Veja-se, por exemplo, os casos de Brooks e Matelski 1981, um trabalho que é aproximada- mente contemporâneo de Mandelbrot 1980n. Um amigo dos autores ajudou-os a executar um traçado gracioso do conjunto Me eles publicaram-no. A legenda descrevia-o como um outro conjunto, a que se chama agora M 0, mas não é necessário fazer disso um drama. O que chama hoje a atenção é que eles publi- caram o esboço com essa legenda, mas sem acrescentar uma palavra de comentário. Nem uma única! (Aliás, R. Brooks con- firmou que está muito satisfeito. Explicou mesmo que ter-se detido «nessa simples curiosidade» - em inglês diz-se curio - teria sido «prova de uma sensibilidade bastante infantil e um tanto ou quanto obtusa».) Que contraste entre os estados de espírito de 1981 e de 1991! Tomemos apenas como exemplos o credo da nova revista Journal of Experimental Mathematics, que não teme comparar as matemáticas às outras ciências experimentais, e a existência de um Geometry Center inter- disciplinar, cujo foyer é um laboratório infográfico em Mi- neápolis. Retornemos à linha de pensamento do penúltimo parágrafo. Integrando o olho e o pensamento, o estudo do conjunto de Mandelbrot deu, e continua a dar, lugar a diversos tipos de conjecturas. Todas pareciam, após um relance, fáceis de enun- ciar. Muitas foram rapidamente demonstradas. O facto de algumas outras - pelo contrário - se terem revelado extre- mamente difíceis de demonstrar (ou desmentir), progredindo o seu estudo, desde então, muito lentamente, não as torna menos fascinantes aos olhos dos matemáticos, pois a ma- 223 temática tem o sentido da longa duração e, além disso, um grande número de «resultados secundários», de interesse in- trínseco, resultou já do estudo de conjecturas inspiradas pela imagem. Sem poder realizar urna lista exaustiva, devemos aqui mencionar, por ordem alfabética, os nomes de A. Douady e J. H. Hubbard, J. Milnor, D. Sullivan e W. Thurston e- em domínios muito próximos- os de R. L. Devaney, P. Blanchard e B. Branner. Muito antes da renovação do interesse pela teoria da iteração, a minha imersão «prefractal» no estudo de certas medidas aleatórias conduzira, por volta de 1968-76, àquilo a que se chama agora a teoria das medidas rnultifractais, de que iremos em breve falar mais prolongadamente. Estas vieram integrar os fractais num segundo capítulo muito diferente da matemática, a análise harmónica. Sobre o ideal de uma matemática pura Regressemos então agora à questão de saber se existe, se poderá existir, ou se deverá existir urna matemática pura, no sentido de urna matemática que se desenvolve ad vitam aeter- nam, referindo-se somente a ela própria e recusando todo o contacto ou influência exteriores. Não hesitamos em dizer que se deve recusar o que alguns gostariam de fazer: considerar sinónimos «pureza» e «rigor». Trata-se de noções ambíguas, mas bem distintas, e eu sou daqueles para quem o rigor (sobretudo quando está no seu devido lugar, e é isento de dogmatismo) é admirável. Contudo, a procura da pureza é frequentemente pura afectação, levando em muitos casos a urna amputação. Antes de tudo, o termo puro possui urna definição que é bom rejeitarmos de imediato, pois carece de qualquer subs- tância. Para alguns, a pureza não se refere aos antecedentes de um texto matemático, nem ao seu conteúdo, mas ao seu estilo: a sua escrita deve ser seca e esotérica. Esta perspectiva não merece sequer discussão. Quanto ao rigor, é certo que a matemática, cuja origem é pura, deve ser rigorosa. No entanto, convém não esquecer que urna personagem corno Henri Lebes- 224 gue foi um monstro sagrado da matemática pura, apesar das deficiências em algumas das suas demonstrações. Voltemos à pureza entendida no sentido do início desta sec- ção. Trata-se de uma questão de «origemsocial», talvez mesmo de «casta» fixada de uma vez por todas. Por sua vez, o rigor será uma questão de posição profissional. É possível mudar de profissão, mas nunca de casta. No quadro desta imagem, a his- tória estabeleceu um milhar de vezes um facto que considero muito significativo, nomeadamente que o nascimento é irrele- vante quando se trata do interesse intrínseco de um problema matemático. Insistindo de uma outra forma, direi que esse interesse não tem qualquer ligação necessária com as circuns- tâncias que levaram o problema a ser colocado. O seu nasci- mento pode muito bem ter sido imaculado, estritamente no seio da matemática já existente, mas pode também ter ocorrido a partir de um facto empírico. Em suma, uma preferência pessoal pela pureza, interpretada como sinónimo de isolamento, é simplesmente uma questão de gosto. É por esse motivo que esta preferência tem uma longa história e foi objecto de controvérsia que não data nem de hoje nem de ontem. O grande coleccionador de histórias pitorescas que foi Plutarco já lhe fazia alusão ao escrever isto na sua Vida de Marcelo: Estas máquinas foram concebidas por Arquimedes, não como obra de alguma importância, mas como meros diver- timentos de geometria; de acordo com os desejos e pedidos do rei Híeron, algum tempo antes, de que deveria levar à prática uma parte da sua admirável especulação científica e, acomodando a verdade teórica à sensação e ao uso corrente, levá-la mais à apreciação do povo em geral. Eudoxo e Arquitas tinham sido os pioneiros desta afamada a apreciada arte da mecânica, a qual utilizavam como uma ilustração elegante de verdades geométricas e como um modo de sustentar experimentalmente, para satis- fação dos sentidos, conclusões demasiado intrincadas para serem demonstradas por palavras ou diagramas. Como, por exemplo, para resolver o problema, que tantas vezes surge na construção de figuras geométricas, de, dados os dois 225 extremos, descobrir as duas linhas médias de urna pro- porção, ambos estes matemáticos recorriam à utilização de instrumentos, adaptando aos seus objectivos certas curvas e segmentos de recta. Mas, devido à indignação de Platão e às suas invectivas contra urna mera corrupção e aniquilação daquilo que a geometria tinha de melhor, urna vez que esta estava vergo- nhosamente a virar as costas aos objectos irnateriais da inte- ligência pura, para recorrer à sensação e pedir auxílio (que não seria obtido sem visões de base e depravação) à matéria, aconteceu que a mecânica se veio a separar da geometria, vindo a ser repudiada e negligenciada pelos filósofos. Mas já chega destes excessos de erudição! Evitando as sus- ceptibilidades parisienses, regressemos então à nossa contro- vérsia, tal corno a viu um contemporâneo que não era um erudito e que não teve receio de deixar a sua opinião por escrito. Em 1961, num belo manifesto em favor das matemáti- cas ditas modernas (de quem todos hoje parecem recusar a paternidade), o grande matemático Marshall Stone anunciava- -nos o seguinte: Embora diversas mudanças importantes tenham ocorrido desde 1900 na nossa concepção da matemática, ou na nossa perspectiva a seu respeito, aquela que verdadeiramente implica uma revolução das ideias é a descoberta de que a matemática é totalmente independente do mundo físico ... O divórcio da matemática relativamente às suas aplicações tem sido a verdadeira fonte desta tremenda vitalidade e crescimento durante o presente século. Estas palavras puderam ser escritas há trinta anos, mas há cem anos teriam parecido insensatas e hoje parecem provir de um mundo revolucionado. Ninguém nega que fazer mate- mática seja uma das actividades mais específicas do homem. A matemática difere, de forma fundamental, da arte de criar imagens usando manipulações numéricas e a história demons- tra que, durante um certo tempo, ela se consegue desenvolver magnificamente, mantendo-se afastadas das outras disciplinas. 226 No entanto, partindo desta última verificação, Georg Cantor concluiu daí que «a essência da matemática reside na sua liber- dade». Esta ideia, que está em oposição frontal com as citações da p. 210, iria criar raiz e caracterizar urna boa parte da mate- mática neste século, de 1925 a 1975. Mas conto-me entre aque- les que nunca acreditaram nela (e mesmo entre aqueles, mais raros, que continuaram a dizê-lo e a agir de acordo com as suas ideias). Mais precisamente, sempre acreditei que a «pu- reza», que não era o estado original das matemáticas, também não era um estado natural, nem sequer um estado estável. Não poderia sobreviver senão depurando-se por urna amputação maciça, devendo, sem dúvida, seguir-se outras amputações. O resultado seria um estado empobrecido, e a unidade que a substituição «das» matemáticas, no plural, por «uma» matemá- tica, no singular, pretendia simbolizar parecia-me urna carica- tura dessa velha forma da geometria «pura» que se reduzia deliberadamente às operações permitidas pela técnica mais arcaica: a régua e o compasso. Quando todas as teorias matemáticas ligadas aos fractais se tiverem estabilizado, poderá tomar-se concebível apresentá-las no estilo habitual, ou seja, fugindo a mencionar qualquer mo- tivação corno quem foge da peste. Mas pode-se apostar que a imagem continuará a parecer inevitável. Os comentários que fiz a respeito das relações entre a arte, a matemática e os frac- tais sugerem que as matemáticas têm a ganhar, a longo prazo, em não sacudirem demasiado a unidade «orgânica» que parece existir entre dois tipos de actividades, díspares, mas igual- mente válidas, do homem, aquelas que fazem apelo ao espírito abstracto e as que recorrem ao espírito intuitivo. É inútil esconder que o que foi dito atrás levanta con- trovérsia no seio dos matemáticos. Alguns matemáticos profis- sionais aceitaram rapidamente e adoptaram a lição do compu- tador e dos fractais, enquanto outros reagiram muito mal. Tal só poderá surpreender aqueles que consideravam os matemáti- cos corno urna tribo muito plácida. Mas esta reputação era unicamente fruto do isolamento. De resto, para juntar aos abanões que sacodem o mundo matemático de hoje, acresce o facto de a física matemática se estar a manifestar de urna forma muito activa. O Congresso Internacional de Quioto (1990) 227 conferiu-lhe um papel muito belo, suficientemente belo para abafar os protestos mais virulentos. É normal uma linguagem nova incorporar caracteres antigos Antes de deixar a matemática, coloquemos urna questão de carácter histórico. O termo fractal não existia antes de eu o ter criado em 1975. Mas poder-se-á dizer que a geometria fractal é tão recente como o termo que a designa? Esse tipo de questões é geralmente colocado num contexto estrito, que torna a resposta fácil. Por exemplo, pergunta-se se a utiliza- ção desta ou daquela técnica é nova para os leitores de um dado hebdornadário científico, por exemplo a Physical Review Letters. Mas a geometria fractal é mais ambiciosa, e nunca escondi as suas numerosas raízes: na matemática de 1900 e também na termodinâmica. É, talvez, por isso que há quem questione, de forma inabitualrnente intransigente, se esta geometria é ver- dadeiramente nova. E é também por isso que as respostas são mais contraditórias do que é costume. Para descrever o meu ponto de vista, comecemos por urnas palavras de Arthur North Whitehead: Chegar muito próximo de uma teoria verdadeira e com- preender a sua aplicação precisa são duas coisas completa- mente diferentes, como nos ensina a história da ciência. Tudo o que é importante já foi dito anteriormente por al- guém que não o descobriu. Há muito tempo, muito antes de conhecer esta citação, que me parecia interessante procurar precursores que tivessem «chegado muito próximo» da geometriafractal... sob um nome que seria certamente diferente. Estava pronto a negar que a tivessem «descoberto», mas esperava encontrar muitos. Para minha surpresa, não havia nenhum, além de alguns parágrafos de Perrin e Denjoy. Houve uma época em que essas frases pareciam reconfortantes, dignas de sair da obscuridade, e citei- 228 -as. Mas não surtiram qualquer efeito, nem no seu tempo, nem no meu pensamento; Whitehead tem razão quando nos diz que a sua obscuridade era merecida. Quer isto dizer que aceito o título de «pai da geometria fractal»? Se não se tratar dos fractais em si mesmos, mas do seu impacte organizado sobre a nossa percepção do mundo, é natural que aceite. Fazia-o antes com surpresa e faço-o sempre com prazer, podendo mesmo acontecer que faça disso eco na p. 13, ao escrever que «concebi, aperfeiçoei e utilizei lar- gamente uma nova geometria». Mas é preciso sublinhar que esta afirmação não nega de maneira nenhuma o facto de alguns dos caracteres mais úteis da geometria fractal terem sido anteriormente utilizados nou- tras linguagens. Sem eles, nunca um só homem teria bastado para uma tal tarefa! Em particular, soube procurar as poeiras de Cantor (figurativamente, a «letra C») em Georg Cantor (1845-1924), as curvas de Peano e de Koch (as «letras P e K») em Giuseppe Peano (1858-1932) e Helge von Koch (1870-1924) e a dimensão de Hausdorff («letra H») em Felix Hausdorf (1868-1942). Estas datas são elucidativas. De forma mais geral, dou para essas «letras» antigas referências numerosas e preci- sas, muitas das quais de autores relativamente desconhecidos, como Waclaw Sierpiiíski (1882-1969), ou mesmo totalmente obscuros. Apesar disso, as utilizações antigas dessas letras não têm quase nada a ver com a geometria fractal. Não só o meu ensaio Objectos Fractais, de 1975, não era um texto de simples divul- gação, mas também, como F. J. Dyson escreveu numa sua apreciação, o uso que esse trabalho fazia de coisas conhecidas era de tal maneira surpreendente que implicava «ter a natureza pregado uma partida aos matemáticos». De qualquer maneira, tudo isso são coisas do passado. Os trabalhos recentes sobre geometria fractal utilizam sobretudo ferramentas especificamente concebidas para a servir. Por exemplo, a experiência demonstrou muitas vezes que a dimen- são de Hausdorff é ou demasiado refinada ou demasiado grosseira para as utilizações que a física pretenderia efectuar. Quando tal é o caso, deverá ser substituída por outras dimen- sões fractais. Algumas foram primeiro compreendidas por 229 matemáticos, outras foram inteiramente sugeridas pela física. Em muitos casos, não se sabe já muito bem qual foi o papel de urna e de outra fonte, e está muito bem assim. Os mal-entendidos de que tenho vindo a falar têm antece- dentes: remontam a urna velha querela entre os especialistas e aqueles - entre os quais me incluo - que se arriscam a agir corno «generalistas». Se o processo normal de investigação científica tivesse sido seguido, pode-se pensar que cada urna das teorias de que os Objectos Fractais apresentam os elementos teria, mais cedo ou mais tarde, sido formulada por um espe- cialista cuja formação intelectual teria excluído as matemáticas de Cantor, Peano, von Koch e Hausdorff, ou talvez (vamos em breve falar disso) a termodinâmica de Gibbs. Por exemplo, os parâmetros que identifico de improviso corno dimensões fractais -ou talvez os seus quadrados ou inversos - teriam, sem dúvida, visto a luz do dia sob os nomes de «constante de Y» e «constante de Z». Alguns tra- balhos de síntese teriam em seguida verificado a semelhança dessas teorias. (Para desenvolvimentos dentro desse quadro ver Stent 1972.) Finalmente, alguém teria efectuado a aproxi- mação às matemáticas existentes, clássicas certamente, mas obscuras e distantes de qualquer aplicação. Não se pense que exagero. Os físicos perderam o hábito de urna obra original surgir de improviso sob a forma de livro, corno é o caso de Objectos Fractais e (sob urna forma mais téc- nica) das suas edições inglesas posteriores, Mandelbrot 1977f, 1982f. Acontece então constantemente que a leitura do meu capítulo A inspira algum especialista a reconstituir (sem o ler) o conteúdo do meu capítulo B. Acontece também constante- mente um resultado obscuro, mas que longos estudos me fize- ram conhecer, apreciar e utilizar, digamos, um resultado de- vido a A. S. Besicovitch, ser encontrado (em geral sob urna forma mais aproximada) por um físico ou um outro especia- lista. Para me desculpar da impertinência, eis urna questão de retórica: dir-se-á que o especialista que redescobre um pouco de Besicovitch realiza trabalho original, enquanto o generalista que me esforço por ser não consegue melhor, realizando exac- tamente o mesmo trabalho, do que «divulgar matemáticas já conhecidas»? 230 Em resumo: enquanto linguagem necessária para os fins a que se propõe e que este ensaio comenta, a geometria fractal não é uma nova etiqueta colocada sobre algo já existente. Era inteiramente nova em 1975. A inspiração termodinâmica. As medidas multifractais Uma vez que estamos em maré de empréstimos metamor- foseados, duas outras grandes fontes de inspiração dos fractais merecem ser mencionadas e discutidas. Quando estudante, sentia uma grande atracção pela termodinâmica estatística. Pela bibliografia pode ver-se que continuei a sentir essa atracção e que escrevi bastantes coisas a propósito dos funda- mentos desta disciplina; cheguei mesmo a aflorar o tema nos títulos de alguns trabalhos bastante afastados da física, Man- delbrot 1956w, 1957p, 1957t, 1970p. Para evitar quaisquer dú- vidas, traduzamos os seus títulos: Teoria Termostatística dos Sistemas de Categorias; Linguística Estatística Macroscópica; Apli- cações dos Métodos da Termodinâmica em Teoria das Comunicações e em Economia; Sobre a Temperatura Negativa no Estudo do Dis- curso. Infelizmente, a pressão dos avaliadores científicos obri- gou-me, pouco a pouco, a esconder esse «vício». É, por isso, um prazer poder agora confessar publicamente esta velha paixão. Foi uma das constantes da minha vida de sábio que tudo o que fazia me parecia uma variação sobre o tema da termodinâmica. Era, como é evidente, necessário que esse tema fosse primeiro generalizado muito para além da teoria dos gases perfeitos, o que foi feito, mas muitos dos argumentos clássicos puderam ser reutilizados quase sem alte- ração. As afinidades entre os fractais e a termodinâmica saltam logo à vista quando se vê, na p. 151, uma fórmula fundamental e clássica na qual uma dimensão fractal é formalmente uma entropia. Essa fórmula diz respeito às medidas multifractais que resultam do caos multiplicativo. Este assunto é difícil de colocar neste Panorama, mas verifica-se que constitui uma 231 sequência ao tema da secção precedente; pode-se então falar dele aqui. Para começar, lembremos que um conjunto E é um objecto geométrico definido por uma alternativa simples para qual- quer ponto P: P ou pertence ou não pertence a E. Medida é um conceito mais complicado, ilustrado pelas distribuições de pro- babilidade ou de massa: dois conjP-ntos podem muito bem ser idênticos, a menos que haja uma translação, possuindo massas diferentes. Por outras palavras, a passagem dos conjuntos frac- tais às medidas multifractais implica a necessidade de especi- ficar a função de distribuição da medida, enquanto um con- junto fractal exigia apenas uma medida fractal. Passa-se assim de um número a uma função. Nos casos mais simples, tais como os do capítulo IX, Frisch e Parisi 1985 mostraram que se pode igualmente dizer que se passa de uma dimensão fractal única a um número infinito de dimensões' fractais. Para verifi- car esse facto, utiliza-se um argumento termodinâmico, com a particularidadede o papel da energia ser desempenhado por uma quantidade logarítmica (tal como nos meus trabalhos anti- gos da década de 50!) Nesse contexto, as medidas multinomiais discutidas no capítulo IX desempenharam precisamente o papel que é dis- cutido na secção anterior: o de «caracteres» matemáticos já existentes, que a geometria fractal pôde adaptar às suas neces- sidades, novas e muito específicas. Acrescentemos que, para que os multifractais assumissem o seu papel na linguagem dos fractais, foi primeiro necessário torná-los aleatórios. Essa tarefa, que realizei entre 1968 e 1976, mostrou-se repleta de novidades e, consequentemente, de cila- das. O facto essencial faz eco do que é dito na p. 98. Não só o conjunto interessante tem medida nula, como o desafio consiste em decompô-lo em conjuntos ainda mais ténues. Sabe- -se que, pelo contrário, a termodinâmica corrente (aí incluindo a teoria ergódica) apaga todo o conjunto de medida nula e toda a sequência de conjuntos cujas medidas tendam para zero. Da mesma maneira, a lei forte dos grandes números e o teorema do limite central consistem em desprezar tais conjuntos. No caso dos multifractais, esses resultados permanecem exactos, como é evidente, mas perdem quase todo o seu interesse. 232 A ideia de acreditar que nos poderíamos contentar com isso está, contudo, muito difundida; pode mesmo ser encontrada em Kolmogorov 1962, um trabalho sem dúvida precoce, que é ainda hoje fundamental. De facto, os multifractais devem fazer apelo a teoremas sobre os grandes desvios (Cramer, Chernoff), como se mostra em Mandelbrot 1989g. (Verifica-se, aliás, que já havia utilizado esses teoremas desde Mandelbrot 1957t.) A literatura sobre multifractais foi muito enriquecida. Para- doxalmente, um papel muito importante nesse florescimento foi desempenhado por trabalhos como Hentschel e Procaccia 1983 e Halsey et al. 1986, que não procuraram trazer nada de novo às ideias subjacentes. Acrescentemos, por fim, que uma outra expressão, «formalismo termodinâmico sobre os conjuntos estranhos», é simplesmente um sinónimo de «multi- fractais». A dimensão negativa Na sequência da digressão apresentada na secção anterior, assinalemos que o estudo dos multifractais forneceu todo um peso a uma nova noção, com a qual eu já trabalhava em Man- delbrot, 1974c: a de dimensão fractal negativa. Portanto, mal a dimensão não inteira se tinha desemba- raçado da reputação que lhe tinha sido atribuída de ser ficção geométrica, assistiu-se ao aparecimento de um outro alvo para a crítica e a decisão. Ainda por cima, ao passo que a dimensão positiva não inteira tinha um pedigree matemático para se de- fender, a dimensão negativa era um conceito nascido na física. A dimensão negativa é uma medida quantitativa da «vacuida- de»: faz notar as diferenças de pesos onde a dimensão de Hausdorff-Besicovitch não via mais do que um magma indiferenciado de conjuntos de dimensão nula. Tratei esse assunto em Mandelbrot 1990r, 1990e e 1991k. Elogio do regresso a problemas muito antigos O terna das duas últimas secções merece mais algumas palavras. Com efeito, verifica-se que, em muitíssimos carac- 233 teres antigos, a linguagem fractal se apropriou de diversas observações, algumas das quais milenárias. Isto não é uma «confissão», mas sim uma expressão de profunda satisfação. Há já cem anos, o grande Henri Poincaré notara o contraste entre os «problemas que nos colocamos e os problemas que se colocam». Essas palavras encontram-se num texto em que felicitava Paul Painlevé por ter evitado criar para si próprio problemas que teria depois tido facilidade em resolver. Uma das características da geometria fractal é que ataca um grande número de problemas muito antigos, alguns dos quais tinham já sido implicitamente colocados há milénios. Do ponto de vista quantitativo, tudo o que pude identificar a seu respeito se reduz a alguns resultados empíricos, isolados uns dos outros e sem sequência. Comecemos pela forma das montanhas, das nuvens, dos turbilhões e das árvores. Ao nível mais elevado, o seu estudo refere-se a problemas «que se colocam a eles mesmos». Além disso -isto é um eco de uma secção anterior-, o artista tinha-se sempre ocupado deles. Não só o meu livro Fractal Geometry of Nature mostra como é fácil identificar fractais em numerosas obras de arte, como há também alguns textos mesmo de artistas sobre o assunto: Eis um desses textos, publicado por Eugene Delacroix, em 1850, na Revue britannique. Swedenborg [citado por Emerson] pretende, na sua teoria da natureza, [ ... ] que os pulmões se decompõem num certo número de pequenos pulmões, o fígado em pequenos fíga- dos, o baço em pequenos baços, etc. Sem ser um tão grande observador, apercebi-me, há já muito tempo, dessa verdade: afirmei frequentemente que os ramos de uma árvore eram eles próprios arvorezinhas completas; os fragmentos de rochedo assemelham-se a massas de rochedos, as partículas de terra a enormes montes de terra. Estou convencido de que se encontraria um grande número dessas analogias. Uma pena é composta por um milhão de penas. [Delacroix 1981.] Mas não nos detenhamos no artista e naqueles que ele cita. O que surpreende é que, quer o sábio quer o artista, não 234 parecem ter tido quase nada para dizer a propósito destes assuntos! Em tempos pareceu-me haver uma grande excepção, razoável e reconfortante, pois esses problemas pareciam ser o objecto inicial da geo-metria, de )'êmJ.Le'tpta. Se esse termo terá realmente significado «medida da Terra», o seu objecto pode- ria ter incluído a tarefa de representar a forma das montanhas. Na verdade, será mais de esperar que )'êmJ.Le'tpta significasse simplesmente «medida das terras», limitando-se, portanto, modestamente, à .forma dos campos nos terrenos mais ou menos planos do vale do Nilo. Euclides não se teria, por isso, enganado no tema! Em compensação, que sabíamos nós a respeito da «medida da Terra»? É certo que existiam muitos mapas e números em quantidade suficiente para saciar o contabilista mais ávido. Mas de que discussões teóricas dispúnhamos a respeito do grau de representatividade dessas curvas e desses números? E de que leis quantitativas, no sentido que o físico atribui a essa expressão? Os Objectos Fractais demonstram até que ponto havia poucas, e é preciso repetir que se encontravam isola- das umas das outras e esquecidas; de qualquer maneira, não tinham sequência. Passando agora da Grécia para Israel, citemos dois extractos de uma Bíblia traduzida por Jean Calvin e impressa em Gene- bra (MDLIII)2: [ ... ] Toutes les fontaines des grans gouffres furent rom- pues, et les ventailles du ciel furent ouvertes, et la pluye fut sur la Terre quarante jours et quarante nuicts. (Genese, VII.) [ ... ]Jorraram todas as fontes do grande abismo e abriram- -se as comportas do céu. A chuva caiu sobre a Terra durante quarenta dias e quarenta noites. (Génesis, VII.) [ ... ] Voicy sept ans de grande fertilité adviendront en toute la terre d'Egypte: puis apres surviendront sept ans de famine. (Genese, XLI.) 2 Devido ao carácter específico da tradução de Jean Calvin, optou-se por deixar a versão original em francês arcaico, acompanhada da tradução portu- guesa. Biblia"de Jerusalém (1980). (N. dos T.) 235 L···J 1.:.1::. yue vem sete anos em que haverá grande abun- dância em toda a terra do Egipto; depois lhes sucederão sete anos de fome. (Génesis, XLI.) Quando um fenómeno faz lembrar uma destas histórias, diz- se agora que obedece ao efeito Noé ou ao efeito José. Em breve voltaremos a esse ponto. O nosso terceiro exemplo de problema antigo é ilustrado na fig. 203 deste Panorama. Encontram-se destas dendrites por toda a parte; como as compreender? Mais uma vez, vamos voltar a esse ponto.A prosa fractal perante o confronto entre o homem de acção e o filósofo Qualquer que seja o impacte da linguagem fractal junto dos poetas (artistas ou matemáticos) e o interesse das suas raízes históricas, o teste mais árduo e, sem dúvida, mais importante desta linguagem encontra-se noutro lado. Esta linguagem será utilizável e flexível ao nível da prosa mais utilitária? Será uti- lizável e flexível, não amanhã, mas hoje, ao nível da prosa mais refinada? Iremos ver que há, para estas duas questões e toda urna gama de questões intermédias, respostas afirmativas. Será então necessário começar por falar da prosa, que é «a mais nobre» por ser a mais abstracta? Isso viria na tradição de Auguste Cornte, portanto conforme a uma certa utilização já estabelecida, o que traria outras vantagens já discutidas neste Panorama. Contudo, o leitor que nos tem vindo a seguir não se sur- preenderá que este texto prefira tratar em prirnero lugar, e mais em pormenor, aquilo que exige defesa. Esta escolha não é nem arbitrária nem caprichosa e não implica qualquer frouxi- dão culpabilizável. A minha fé nas virtudes da explicação é de tal modo ina- balável que, sem qualquer esforço, dispensa os actos de de- voção; é tão exigente que não gosta de invocar os grandes princípios senão quando é altura de o fazer. O leitor que 236 prefira a ordem inversa não deixa de poder exercer o seu direito de ler este ensaio em sentido contrário. Sobre o lugar do «puramente descritivo»: aprender a ver melhor e a medir melhor. A distribuição das galáxias Descrever quantitativamente a natureza é um dos muitos objectivos da ciência; é também uma necessidade para o enge- nheiro, que, de outra forma, não poderia exercer o seu ofício. Para o sábio, o objectivo último é a explicação. Para o enge- nheiro, o acesso a uma explicação dos factos é muitas vezes fonte de inspiração e pode mesmo (nem sempre) ser muito útil concretamente. Mas é preciso afastar a ideia de que uma «simples descrição» é necessariamente desprovida de conse- quências merecedoras de reflexão e acção. Na perspectiva do engenheiro, tudo o que o ajude a ver e medir é indispensável. Ora, como é sabido por todos que já o tentaram, ver não é um dom inato, mas um talento que também exige uma apren- dizagem. Ver é normalmente reconhecer, isto é, identificar o que se vê com qualquer coisa já registada numa memória feita de «sintomas» isolados e de «síndromes», cada um dos quais é um conjunto de sintomas. Nada nos impede de regressar, a esse propósito, ao texto de Galileu da p. 210. Digamos então que um dos papéis da geometria fractal, papel prosaico e utilitário, mas essencial, foi o de enriquecer o alfabeto geo- métrico de cientistas e engenheiros. Do mesmo modo, é preciso saber identificar aquilo que é possível e útil medir. Também aí, a geometria fractal começou por oferecer o seu alfabeto em pleno crescimento, as suas diversas noções de dimensão (em número finito ou infinito), as suas noções de lacunaridade e as suas combinações dos aspec- tos topológicos e fractais. Neste espírito, muitos trabalhos bastante concretos e mesmo práticos fazem uso dos fractais, ou prometem vir a fazê-lo em breve. A compilação de uma lista seria, contudo, fastidiosa. Examinemos antes, então, alguns casos típicos em que as novas adições fractais ao alfabeto 237 geométrico de Galileu se revelaram bastante úteis nos nossos esforços de ver e medir. Comecemos por um problema sem consequências práticas, concretamente, o amontoamento das galáxias. Quando, em 1971, fiz urna primeira redacção do capítulo VI dos Objectos Fractais, parecia que nenhum astrónomo se ocupava desse assunto. Hoje, contudo, o estudo da estrutura global do universo está na ordem do dia. No centro da discussão encon- tra-se um défice de matéria: descobriu-se que a matéria visível é apenas urna fracção da matéria postulada pelas teorias. Num universo fractal extrapolado até ao infinito, a situação seria pior; essa falta seria reduzida se, pelo contrário, a transição para a homogeneidade, à escala astronómica, ocorresse «pró- ximo de nós». Daí a necessidade que os astrónomos têm de conferir aos procedimentos estatísticos, aos testes de hipóteses e às estima- tivas de parâmetros urna importância da qual as ciências físi- cas fornecem poucos outros exemplos. Ora esses procedimen- tos levantaram um problema inesperado: aqueles que os haviam preparado não tinham sequer imaginado o fractal. Devido a isso, quaisquer que sejam os factos, esses procedi- mentos concluem inevitavelmente que a profundidade da zona fractal ê relativamente pequena. Nunca podem concluir que a zona fractal se estenda «até ao infinito», quer dizer, pelo menos até ao limite das observações. Para retornar um termo de Popper, já utilizado na p. 212, a hipótese tentadora de a zona fractal ser truncada não pode ser falsificada por meio desses procedimentos. . Nestes últimos anos, o problema da truncatura foi final- mente colocado, de urna forma que não faz juízos antecipados sobre a conclusão, em Pietronero 1988 e Colernan, Pietronero e Sanders 1988. Ver também Mandelbrot 1989t. A turbulência e mais ainda Continuemos com a turbulência. É um assunto apaixonante e, ao qu~ parece, basta anunciar que se conseguiu finalmente 238 «explicá-la» para se ter um público assegurado. De facto, ainda que nestes últimos tempos tenham sido obtidos progressos parciais importantes, não se dispõe ainda de qualquer expli- cação. Por outro lado, não se esperou por urna explicação para experimentar e desenvolver uma «fenomenologia» abundante. Um dos seus pilares é aquilo a que se chama «análise dimen- sional», cujo triunfo, aos olhos dos teóricos, foi o espectro em Jc-513, devido a Kolrnogorov, Obukhov, Onsager, von Weiszãcker e Heisenberg. A partir do momento em que se procura passar da análise à geometria dimensional, vê-se que a turbulência pode e deve ser vista corno o próprio protótipo de fenómeno fractal. É tal- vez até o mais interessante de todos, ainda que seja também o. que mais resiste à análise. Não é, por isso, surpreendente que tenha sido a turbulência a inspirar muitas das primeiras etapas decisivas no percurso que conduziu à geometria fractal, urna vez que (conforme foi dito) introduzi os rnultifractais, em 1968- 76, corno modelos da intermitência na distribuição espacial da difusão. Recentemente, esse modelo atingiu um estádio experi- mental satisfatório, graças sobretudo aos meus colegas de Yale: ver Prasad, Meneveau e Sreenivasan 1988. O mesmo grupo de investigadores já se tinha anteriormente debruçado sobre questões colocadas no meu livro The Fractal Geometry of Nature, de 1982: qual a forma que tornam as fron- teiras das esteiras turbulentas por detrás dos barcos ou das camadas-limite? Como era previsto, verificou-se que essas for- mas eram fractais. Poderia mesmo acontecer que muitas delas tivessem a mesma dimensão fractal, o que teria a virtude de colocar um problema muito preciso. Se se confirmasse que equações muito diferentes urnas das outras davam origem a formas com a mesma dimensão, qual seria o traço comum a todas essas equações? Assinale-se agora urna abordagem fractal do estudo da turbulência totalmente diferente, um estudo· que não se efectua no espaço real, mas num espaço em que a evolução de uma quantidade ou de um sistema é representada pela trajectó- ria de um ponto. Três nomes que vêm de imediato à ideia neste contexto são os de Albert Libchaber (École Normale e 239 agora em Chicago), Harry Swinney (Texas) e Jerry Gollub (Haverford). Mas este é um assunto em que não nos podemos deter. Passemos agora da turbulência a um problema concreto e imediato. Mostrou-se recentemente que o escoamento de um fluido viscoso num meio poroso, por exemplo,o escoamento da água que se injecta num poço para tentar «empurrar» o petróleo, obedece a um de dois regimes possíveis. O regime desejável é «frontal», o regime indesejável é «uma configuração ramificada», urna «dendrite fractal». A fotografia da p. 203 dá urna ideia. Num momento em que essas diversas possbilidades haviam já sido reconhecidas, um colega levou para urna reunião um artigo antigo sobre o escoamento viscoso. Ao lado de urna fotografia que podia ter sido tirada ontem, o autor traçara um diagrama que pretendia ser um resumo do que tinha «visto» no seu trabalho. Infelizmente, veio a concluir-se que o que ele havia visto não conduzia a nada, ao passo que o que ele considerara insignificante, tendo portanto apagado, comportava os aspectos fractais que se encontram agora na ribalta. Chegamos a um comentário de carácter mais geral, que desenvolve o que já foi dito, na p. 212, a propósito das panaceias. Um grande número de disciplinas esperam tornar- -se quantitativas, mas não sabem por onde hão-de começar. Têm então tendência a cair num método universal, que con- siste (parafraseando Charles de Gaulle, segundo Jean Effel) em colocar novas questões para respostas já conhecidas. Gostamos de nos rir daqueles que se agarram fixamente a qualquer ideia nova, ainda que ela se negue explicitamente o papel de panaceia. Mas não há nenhum mal em adoptar essas ideias, na condição de se reterem apenas as que se revelem eficazes. Depressa nos apercebemos de que os métodos que se podem considerar para adopção não são muito numerosos. Embora a diversidade da natureza seja infinita, o surgimento de uma nova técnica confirmada é um acontecimento raro. É muito compreensível, e justifica-se plenamente, que a geometria frac- tal tenha criado o desejo de a pôr à prova. 240 A bolsa e o Nilo Vale a pena repetir, porque é importante: ainda que o ofício do engenheiro e a ciência tenham muitos pontos comuns, existe também entre eles uma profunda diferença que não deve ser desprezada. Nos pontos em que a ciência subjacente é unicamente fenomenológica poder-se-á esperar que no futuro se tornarão disponíveis explicações. Entretanto, o engenheiro não pode esperar e tem de se esforçar por realizar o melhor trabalho possível, baseado na ciência hoje disponível. Seria absurdo que a ausência de explicação o impedisse de trabalhar. Como primeiro exemplo, consideremos a hidrologia. Como explicar o «efeito de José», de que já falámos, ou seja, a varia- bilidade dita «secular» dos débitos de água no Nilo e na maior parte dos outros rios? Ainda que se tivesse uma expli- cação completa da influência do clima sobre essa variabilidade, quem ousaria acreditar que poderíamos alguma vez utilizar essa explicação para controlar os débitos nos reservatórios, ou para calcular o seu tamanho óptimo? As responsabi.lj.dades que a sociedade atribui aos hidrólogos são de uma ordem total- mente diferente. Por outras palavras, a disponibilidade, ou a sua ausência, de uma explicação climatológica não tem qualquer impacte previsível sobre os recursos hidrológicos da comunidade. Contudo, quando Mandelbrot 1965h apresentou um modelo estatístico dos «ciclos lentos» dos débitos dos rios, muitas pessoas reagiram mal. O modelo postula uma memória infi- nita, não pretendendo explicar nada. Essas duas características foram vistas como carências muito graves. Nos meus trabalhos com J. R. Wallis, ao longo dos quais esse modelo foi elaborado em pormenor, não se punha a hipótese de «ceder um pouco», construindo o pára-vento com uma memória muito grande, em vez de infinita, ou de adoptar uma qualquer pseudo-expli- cação. Infelizmente, em cada reunião onde se falou desse modelo, as questões mais frequentes foram as seguintes: «Porquê escolher um modelo tão bizarro?» «Esse modelo já prestou as suas provas da forma habitual, sendo aplicado à física?» «Que explicação climatológica é fornecida por esse modelo?» 241 Quer isto dizer que até os hidrólogos práticos mais inclina- dos ao estudo quantitativo pareciam inquietos ao ouvirem alguém gritar: «Mas onde está a ciência por detrás do que vocês fazem?» Essa inquietação fazia esquecer que mais vale tratar de cada coisa por sua vez e criar hoje protecções contra a persistência devida aos ciclos lentos, sem esperar que estes sejam explicados. É assim que uma parte demasiado grande das energias consagradas ao modelo fractal da hidrologia parece até agora ter-se dissipado a digerir as alternativas. Estas não apresentam qualquer diferença visível, evitando sempre levantar as questões precedentes, bem como as emoções que elas libertam. A ironia, como é evidente, é que - no espaço de alguns anos - o meu velho modelo deixou completamente de ser visto como «bizarro», pois que modelos próximos foram des- cobertos e adoptados (sem drama!) em muitos capítulos mais «clássicos» da física. Em conjunto com o meu, constituem alguns dos pilares da geometria fractal. Ainda na mesma problemática, vamos agora passar das «ciências físicas» a uma das «ciências morais e políticas». Verifica-se que diversas técnicas fractais foram pela primeira vez postas à prova nos meus trabalhos sobre a bolsa. Estes progrediram rapidamente de 1960 a 1965, tendo Mandelbrot 1963b sido um ponto forte, e mais lentamente desde então. Hoje estão de novo activos e, de qualquer maneira, merecem ser aqui mencionados. O economista nunca se sentiu muito incomodado em adop- tar da física o hábito da diferenciabilidade das funções, por- tanto, a fortiori, da sua continuidade. Essa hipótese estava de tal maneira bem estabelecida que mal parecia digna de ser mencionada, e muito menos de ser confrontada com os factos. Ao abordar o problema da variação dos preços com o tempo, expressei a opinião contrária: não só a continuidade não é evidente, como é contrária à própria observação. Além disso, fiz notar que a reflexão económica quase impõe que seja de esperar a observação de grandes descontinuidades, sem que estas mereçam ser consideradas como excepções que vêm interromper um estado normal que seria contínuo. 242 Com efeito, um preço competitivo está submetido a dois tipos de influências. Deve, antes de tudo, responder às altera- ções das quantidades «exógenas», que se podem supor varia- rem de forma contínua, pelo menos se forem regidas pela inér- cia física. Mas deve igualmente responder às mudanças das «antecipações>>. Ora estas mudanças podem ser instantâneas. Surge daí a minha ideia mestra, que é a seguinte: na ausência de regulação institucional, os preços podem muito bem sofrer descontinuidades de tamanho arbitrariamente grande. Nesse contexto, a grande queda na Bolsa de 19 de Outubro de 1987 vem imediatamente hoje à ideia, mas, no início da década de 60, tais exemplos eram considerados coisas do passado. A aceitação da descontinuidade, sem a tentar sufocar, e a sua combinação com uma «auto-afinidade» apropriada con- duziram ao modelo dos preços oferecido em Mandelbrot 1963b. Hoje pode-se dizer que esse modelo consiste em estudar as propriedades fractais das curvas traçadas nos jornais para mostrar como os preços variaram ao longo do tempo. Ora verifica-se que uma das características que este modelo incorpora é que o crescimento dos preços é uma variável aleatória cuja variância é infinita. Que se passou? Este traba- lho não deixou de provocar comentários a priori muito pare- cidos com aqueles já mencionados no contexto da hidrologia. O terceiro comentário foi muitas vezes enunciado da seguinte maneira: Os modelos que o senhor criou parecem descrever os dados de forma aceitável, mas - fora da sua tese res- peitante às antecipações - qual é a relação deles com a teoria económica existente? Disseram-me que, pelo menos uma vez e num momento de irritação, euteria replicado: Não há nenhuma boa explicação para estes resultados; mas não é razoável estar à espera que surja uma boa expli- cação vinda da teoria económica existente. Ao fim e ao cabo, essa teoria já teve mais de um século para se desenvolver e ainda estamos à espera que prediga o que quer que seja. 243 O estudo dos preços dá assim lugar aos multifractais, nas mãos dos economistas que pretendem extrair do caos esta- tístico da economia um elemento de caos determinístico. Os exemplos anteriores bastam para concluir: ainda que o papel da geometria fractal em domínios concretos esti- vesse reduzido a uma nova «astúcia» para a fenomenologia (o que não é o caso!), ela teria trazido algo de extremamente útil. Percolação, fractais e «acaso puro» A secção anterior mostra como é difícil e impopular pro- clamar o mérito de investigações científicas que não são «ele- vadas acima» da fenomenologia. Essa dificuldade não é nova; é até muito familiar no quotidiano, que pode e deve hones- tamente obedecer a duas exigências contrárias: viver com o que é imperfeito, preservando ao mesmo tempo o sonho de um paraíso terrestre. No contexto da geometria fractal, o paraíso terrestre da explicação já foi atingido em muitos casos notáveis, dos quais a sequência deste texto dá alguns exem- plos. Todos ficam contentes. Os exemplos mais bem compreendidos do papel dos fractais nas ciências dividem-se de forma natural entre aqueles que não fazem intervir o acaso e aqueles que o fazem. Estes últimos podem ser encontrados em duas disciplinas que têm tendência para se ignorar, que são a física estatística e a teoria das probabilidades. Foi num capítulo moderno da física estatística, chamado teoria da percolação, que os fractais conheceram o seu primeiro grande sucesso num domínio recente, mas «tradicional», da física. Em latim, percolare significa «fluir [colare) através [per)». O significado técnico deve-se a um modelo estudado por Broadbent e Hammersley 1957, a partir de uma ideia de Florey. Entre os sítios onde esse modelo vem melhor exposto, refiram- -se Aharony 1984, 1986, Aharony e Stauffer 1987, Deutsher et al. 1983. Eis do que se trata. Imaginemos um quadrado plano coberto de pequenos mosaicos pretos ou brancos, em que a cor de cada 244 mosaico é escolhida mdepenaentemente ua~ uuua~, Luut 1-'~v babilidades preestabelecidas p e 1-p para o branco e o preto, respectivamente. Os mosaicos pretos são condutores e os brancos isoladores. Por exemplo, os pretos podem ser feitos de cobre condutor de electricidade, enquanto os brancos podem ser feitos de vinil isolador, ou os pretos podem ser vazios, enquanto os brancos são pedras completamente impermeáveis à água. Supondo-se que o quadrado é muito grande, estabelecemos entre duas margens opostas uma diferença de potencial eléc- trico (ou hidrostática). Pergunta: existirá um caminho através do qual a corrente (ou a água) possa ir de um extremo ao outro? Se p for muito pequeno, é evidente que isso é quase de certeza impossível; se p for muito grande, é táir1bén:t!vidente que tal é quase de certeza possível. Pergunta: que se poderá dizer dos p intermédios? Resposta A: existe um valor de p, dito valor crítico e designado por p c' para o qual é quase certo que a corrente passa à justa. Resposta B: suponhamos que p é crítico; então, os mosaicos pretos em contacto com as margens formam aquilo a que se chama um «amontoado crítico de percolação», tal como na fig. 265. Assimptoticamente, tem-se uma curva fractal de dimensão 91 I 48, um valor ligeiramente inferior a 1,89. Eliminando os becos sem saída, os pavimentos condutores formam um «esqueleto» que - também ele - é assimptoticamente uma curva fractal. As bocas de estrangula- mento, em que toda a torrente passa por um único mosaico pequeno, formam assimptoticamente uma poeira fractal de dimensão 3/4. No espaço pavimentado por cubos obtêm-se resultados análogos, mas com dimensões diferentes (como é evidente). Se o estudo da percolação continua a atrair a atenção de numerosos físicos, é porque, por um lado, esse fenómeno é muito importante em si mesmo e, por outro, dá uma ima- gem útil de diversos aspectos dos estados da matéria a que chamamos «mal condensados». Além disso, a percolação é tratável: as suas dificuldades puderam ser superadas, urna após a outra, o que faz dela um dos capítulos mais bem explorados da física estatística. Por exemplo, a difusão em amontoados de percolação é «anormal», ou «não fickiana». 245 Foi estudada por Gefen, Aharony e Alexander 1983. Teve ainda o interesse de levar Alexander e Orbach 1982 ·a intro- duzir urna nova noção, atraente e prometedora, que é a de «fractão». A descrição fractal da percolação demonstra que, neste caso, a física é inteiramente regida pela geometria e que a geometria é fundamentalmente fractal. É governada por um pequeno número de quantidades, cada urna das quais é a dimensão fractal de urna certa porção do amontoado crítico de perco- lação. Além disso, as dimensões fractais fundamentais foram explicitamente deduzidas da física clássica, e sabemos já que se trata de números racionais! Sendo um dos objectivos essenciais da física a sua redução à geometria, vemos que o papel dos fractais na teoria da percolação toca as raias da perfeição. É claro que o matemático fará notar que muitos dos resultados que parecem verdadeiros para o físico não foram ainda de- monstrados de forma suficientemente rigorosa. Há, portanto, ainda muito trabalho a fazer! Ao falar de física estatística, não se pode também deixar de pensar nos trabalhos notáveis que giram em torno da noção de «tempo fractal». Um tempo fractal intervém já nos regressos ao ponto de partida de um processo de difusão (normal ou anor- mal). Mas o tempo fractal intervém, de urna forma parti- cularmente essencial e explícita, nos trabalhos de E. W. Mon- troll e M. F. Shlesinger, cujas múltiplas ramificações começa- ram a surgir com a teoria da xerografia. Shlesinger 1988 dá um panorama recente do tempo fractal. Uma segunda grande classe de exemplos de acasos fractais muito bem entendidos pode ser encontrada na teoria das pro- babilidades, ou seja, no estudo dos conjuntos ou das medidas que ilustram os teoremas sobre as somas ou os produtos de variáveis aleatórias. O movimento browniano é o exemplo mais típico, e todos nós sabemos (ver capítulo III dos Objectos Fractais) que ele não esteve à espera que a geometria fractal se organizasse. As superfícies de Brown, que utilizo como pri- meiros modelos do relevo (capítulo VII), constituem um outro exemplo. As passeatas ao acaso, sem ciclos, apresentam tam- bém todos os critérios dos fractais, ainda que esse facto (também ele) não esteja rigorosamente provado. Analoga- 246 mente, as medidas multifractais de base obtêm-se como limi- tes de produtos de factores aleatórios. Fractais e dinâmica: caos determinístico, atractores e repulsares Entre os fractais não aleatórios de interesse imediato para a física, os mais bem compreendidos são aqueles que dizem respeito à dinâmica e ao caos. Contudo, é conveniente começar esta secção acrescentando um exemplo aos que foram esbo- çados mais acima a propósito do «puramente descritivo». Numa conferência sobre caos determinístico, realizada em 1983, foi organizada uma tarde para discutir o seguinte tema: «Porque devem as pessoas que estudam o caos preocupar-se em medir dimensões fractais?» Fiz notar que era necessário precisar a questão: Pensam que a vossa experiência, ou mesmo qualquer outra teoria, com a qual não estou familiarizado, sugere outras novas quantidades a medir que não sejam fractais? Ou não é verdade que a dimensão fractal é a única quan- tidade nova a medir de que dispomos? Isso bastaria para que fosse desejável tirar