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Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 387 6 Multiculturalismo: entre o Universalismo e o Relativismo dos Direitos Humanos WILLAME PARENTE MAZZA Doutor em Direito Público (UNISINOS) com período de doutoramento sanduíche na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal). Mestre em Direito Econômico e Tributário (UCB). Professor de Direito (UESPI). Professor de Direito (ICF-PI). Auditor Fiscal da Fazenda Estadual do Estado do Piauí. MARCELO CACINOTTI COSTA Doutor em Direito (UNISINOS). Mestre em Direito (URI). Professor (UNICRUZ). Advogado Artigo recebido em 24/03/2013 e aprovado em 31/12/2013. SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Noções introdutórias sobre a globalização 3 Os Direitos Humanos em um contexto global 4 Multiculturalismo e Direitos Humanos 5 Conclusão 6 Referências. RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a universalização dos Direitos Humanos frente à diversidade cultural no mundo contemporâneo, enfatizando o discurso com a corrente relativista em um ambiente contextualizado pela globalização. Diversos meios de proteção aos Direitos Humanos foram criados. No entanto, essas proteções não podem estar dissociadas dos valores morais sob o risco de servir de consentimento para violações de direitos. Sendo assim, busca-se, por meio da fundamentação dos Direitos Humanos, transcender a esfera positiva de direitos a fim de recompor os componentes morais, sociais e políticos que garantam a dignidade da pessoa humana, por intermédio da sedimentação dos laços sociais, levando-se em conta um mínimo universal entre as características comuns a todos os seres humanos, reconhecidas em todas as sociedades e independente da cultura local, sem que com isso seja necessário impor um padrão moral de cultura de uma nação sobre a outra. PALAVRAS-CHAVE: Multiculturalismo Direitos Humanos Globalização Universalismo Relativismo. Multiculturalismo Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 388 Multiculturalism: between the Universalism and the Relativism of Human Rights SUMMARY: 1 Introduction 2 Introductory notions on globalization 3 The Human Rights in a Global Context 4 Multiculturalism and Human Rights 5 Conclusion 6 References. ABSTRACT: The present article aims to analyze the universalization of Human Rights in view of cultural diversity in the contemporary world, emphasizing the speech with the relativistic doctrine in an environment set by globalization. Several means of protecting human rights have been created. However, these protections cannot be dissociated from the moral values under the risk of serving as a consent for rights violations. Thus, through the substantiation of human rights, a pursuit to transcend the positive sphere of rights takes place in order to recover the moral, social and political components that guarantee the respect to the human dignity principle by dint of the reinforcement of social ties, taking into account a minimum level of common characteristics between all human beings, which can be recognized in all societies regardless of the local cultures and without the need to impose a moral cultural standard of a nation over another. KEYWORDS: Multiculturalism Human Rights Globalization Universalism Relativism. Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 Willame Parente Mazza - Marcelo Cacinotti Costa 389 Multiculturalismo: el Universalismo y el Relativismo entre los Derechos Humanos CONTENIDOS: 1 Introducción 2 Conceptos introductorios sobre la globalización 3 Derechos Humanos en el Contexto Global 4 Multiculturalismo y Derechos Humanos 5 Conclusión 6 Referencias. RESUMEN: Este artículo tiene como objetivo analizar la universalidad de los derechos humanos en contra de la diversidad cultural en el mundo contemporáneo, haciendo énfasis en hablar con la corriente relativista contextualizado en un entorno de globalización. Diversos medios de protección de los derechos humanos fueron creados. Sin embargo, esta protección no puede disociarse de los valores morales o riesgo de servir de consentimiento para violaciónes de derechos humanos. Por lo tanto, el objetivo es, a través de los fundamentos de los derechos humanos, trascender la esfera de los derechos positivos para recuperar los componentes de los factores morales, sociales y políticas que garanticen la dignidad de la persona humana a través de la sedimentación de los vínculos sociales, teniendo en cuenta un mínimo universal entre las características comunes a todos los seres humanos, reconocidos en todas las sociedades y autónomos de la cultura local, sin él, tenemos que imponer una norma moral de la cultura de una nación sobre otra. PALABRAS CLAVE: Multiculturalismo Derechos Humanos Globalización Universalismo Relativismo. Multiculturalismo Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 390 1 Introdução O processo de globalização gera um conceito instável e incerto por atingir diversos níveis e contextos, nas esferas econômica, social, política, militar, cultural e educacional. As transformações são diversas, que não dariam para abranger todo o seu escopo de atuação em um só trabalho. No âmbito dos Direitos Humanos, o processo de globalização trouxe diversas implicações sociais, contribuindo para um deficit igualitário entre os cidadãos no acesso aos mais diversos bens necessários a uma vida digna. Com a redução das fronteiras, a intensificação do fluxo de pessoas, bens e serviços, somado ao aparecimento de novos atores no mundo global e à pressão dos setores vinculados ao sistema capitalista, percebeu-se uma crescente exclusão social e econômica. Outro fato é que a globalização também acelerou a diversidade cultural, principalmente no sentido de dar mais transparência a diversas culturas e tradições que se mantêm no mundo, o que traz à tona o debate sobre a universalização dos Direitos Humanos frente a esse multiculturalismo instalado no mundo contemporâneo. Dentro desse contexto – por meio de pesquisa bibliográfica, histórica e comparativa, direcionada a uma temática delimitada –, abordar-se-á, num primeiro momento e de forma sucinta, um panorama sobre globalização, conceitos, âmbito de atuação e consequências trazidas para o Estado-nação. No momento seguinte, serão vistas as principais consequências desse processo dos Direitos Humanos e a configuração que se formou frente a essas transformações, para se chegar ao debate sobre a universalização dos Direitos Humanos, expondo o diálogo existente com a corrente relativista. 2 Noções introdutórias sobre a globalização O fenômeno da globalização passou a assumir uma importância central nas relações sociais e econômicas no espaço mundial. É um tema de grande discussão principalmente pelas transformações geradas no papel do Estado. Portanto é um tema que interessa ao poder público em todos os níveis, nos aspectos econômico, cultural, político, militar e educacional. Ressalta-se que a palavra globalização pode trazer uma confusão conceitual por ser empregada em diversos contextos, embora tenha tido maior significância nos âmbitos econômico, político, militar e cultural- educacional (TEIXEIRA, 2011, grifo nosso). Dessa forma, a globalização não se restringe somente ao aspecto do Capitalismo financeiro, mas, segundo Morais: Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 Willame Parente Mazza - Marcelo Cacinotti Costa 391 Um processo radicalmente incerto e ambivalente que se projeta por sobre os mais variados aspectos da vida e que, ao mesmo tempo em que rompe com os lugares tradicionais da economia, da política, das relações e práticas sociais, implica uma imbricação entre os diversos lugares em que tais ocorrem. (2010, p. 134). No entanto, esse conceito de globalização gera grande divergência de sentidodevido às transformações que vêm produzindo nesses diversos setores. Gómez esboça muito bem as lógicas determinadas pela globalização: É claro que uma tal conceituação da globalização, pelas consequências profundas que tem sobre o entendimento arraigado Estado-nação soberano e a da ordem de Vestfália, não é consensual. De fato, ela se insere em um intenso debate acadêmico desenvolvido especialmente no campo de estudos das relações internacionais e caracterizado por uma grande diversidade teórica. Nesse debate, que evidentemente não cabe aqui aprofundar, dois eixos maiores, geralmente combinados, funcionam como separadores de água nas discussões primordiais sobre a globalização (McGrew 1997). De um lado, centrado nos fatores causais, há os que a concebem como processo singular conduzido por uma lógica dominante (por exemplo, capitalismo, mudança tecnológica ou imperialismo); e há os que, ao contrário, a explicam em termos de processos multidimensionais submetidos a numerosas lógicas causais inter-relacionadas (econômica, política, social, tecnológica, cultural, etc). De outro, focalizando a questão da continuidade ou mudança, existem posições que sustentam que a fase atual da globalização representa um corte radical com o passado (os transformacionistas), enquanto posições opostas afirmam sua continuidade histórica e até mesmo precedentes similares (os cépticos). (2000, p. 61, grifo do autor). Nessa conjuntura, a globalização1 é um fenômeno antigo que se prefigura desde a antiguidade com a dominação de Atenas, depois de Roma, sobre a bacia mediterrânea e, mais ainda, a constituição dos grandes impérios. Com a expansão 1 No entanto, alguns doutrinadores consideram que o processo de globalização já se iniciara desde as caravelas portuguesas, do século XIV e XV, seguidas pelas espanholas e pelas inglesas. “Não iam fazer guerra de conquista como as excursões dos gregos e romanos das centúrias antes e depois do nascimento de Cristo. Iam fazer negócios, o objetivo primordial era o comércio, e buscar a aquisição de terras desconhecidas foi consequência. E é o comércio que impulsiona a globalização. Em alguns momentos o processo se arrefece, em outros ganha mais impulso, mas sem dúvida, e aqui fazendo um salto de quinhentos anos, as décadas de 80 e 90 do último quartel do século XX foram permeadas por uma interpenetração crescente e irreversível da atividade comercial internacional, ao lado da internacionalização dos mercados financeiros, da expansão das corporações transnacionais, e de outros fatores como colonização cultural e dominação econômica (embora esses dois últimos fatores tenham evoluído de maneira paulatina a partir do fim da II Revolução Industrial)” (VALADÃO, 2012, p. 2). Multiculturalismo Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 392 do comércio internacional, ligada à Revolução Industrial e ao desenvolvimento dos transportes, ainda no século XIX, ela coloca a Europa no centro das trocas mundiais. No entanto, depois da Segunda Guerra Mundial, o processo de internacionalização se intensificou tomando uma nova dimensão ao longo dos anos 1990. As fronteiras dos Estados se tornaram porosas tomadas pelos fluxos de todas as ordens, refletindo a incapacidade dos Estados de conter, de controlar e de canalizar tais fluxos. Assim os Estados se tornaram incapazes de controlar as variantes principais que comandam o desenvolvimento econômico e social, prejudicando as suas capacidades de regulação (CHEVALLIER, 2009). Faz-se necessário frisar que a globalização provoca uma recomposição do sistema de poder e a ruptura da soberania formal do Estado e sua autonomia decisória substantiva. É posto em questionamento toda essa engrenagem institucional fundada no Estado-nação e o pensamento jurídico constituído a partir dos princípios da soberania, da autonomia do político, da separação dos Poderes, dos direitos individuais e das garantias fundamentais, devido à diversidade, à heterogeneidade e à complexidade do processo de transnacionalização dos mercados de insumo, produção, finanças e consumo. Os Estados-nação encontram-se limitados em sua autonomia decisória de tal sorte, que as políticas monetária, fiscal, cambial e previdenciária já não podem mais ser implementadas de modo independente (FARIA, 2004). Como bem afirma José Eduardo Faria, [...] numa situação extrema, os Estados chegam ao ponto de não mais conseguirem estabelecer os tributos a serem aplicados sobre a riqueza – esta é que, transnacionalizando-se, passa a escolher onde pagá-los. (2004, p. 23-24). É importante salientar que os Estados são forçados, de certa forma, ao participarem dessa mundialização, a melhorarem e ampliarem as condições de competitividade sistêmica, já que são pressionados pelos setores vinculados ao sistema capitalista transnacional e que atuam na economia-mundo; setores esses situados em posições-chave do sistema produtivo, com poderes de influência nas políticas públicas (FARIA, 2004, grifos nossos). Diante desse espaço de fragilidade do Estado nacional, as instituições transnacionais se sobressaem e impõem interesses que balizam a regulação social daquele setor de intervenção, ou melhor: Sem uma instituição legítima, capaz de monopolizar um poder de coação jurídica efetiva ao nível internacional, são as empresas transnacionais que vão promulgando o quadro jurídico, em conformidade com seus interesses, Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 Willame Parente Mazza - Marcelo Cacinotti Costa 393 a partir do qual dar-se-á a regulação social. Isso significa a emergência de uma forma de neofeudalismo onde as normas de regulação de um setor econômico estão definidas por empresas comerciais dominantes no setor. O conteúdo das regras negociadas na periferia limitar-se-ia a um ajuste de detalhes, não podendo ultrapassar o quadro geral da regulação fixado a um nível superior e percebido, pelos níveis de negociações inferiores, como uma realidade insuperável. Com efeito, a capacidade de perceber uma situação como injusta, base da luta em favor de uma maior emancipação, depende em grande parte da posição ocupada dentro do espaço social. (ROTH, 1998, p. 26, grifo do autor). No entanto, embora exista uma forte influência das instituições transnacionais na regulação social, Ulrich Beck (1999, p. 33) acredita que não há um poder hegemônico ou um regime internacional econômico ou político. Para o autor, a globalização significa uma negação do Estado mundial – “Mais precisamente: sociedade mundial sem Estado mundial e sem governo mundial”. Essa sociedade mundial significa então “o conjunto das relações sociais, que não estão integradas à política do Estado nacional ou que não são determinadas (determináveis) por ela” (BECK, 1999, p. 33). Continua Beck, ao afirmar que a ideologia do Neoliberalismo, a pluridimensionalidade da globalização, é reduzida a uma única dimensão – a econômica –, deixando todas as outras – a ecológica, a cultural, a política e a sociedade civil – sob o domínio do mercado mundial. Fala-se em uma segunda modernidade distinta da primeira pela irreversibilidade do surgimento da globalização2. Dessa forma, daqui para frente, nada que aconteça no planeta será um fenômeno espacialmente delimitado, mas, ao contrário, todas as descobertas, os trunfos e as catástrofes afetam todo o planeta, fazendo com que haja a necessidade de reorganização em torno do eixo global-local (BECK, 1999). Consequentemente, o Neoliberalismo caracteriza esse modelo econômico de 2 Segundo Beck, são oito os motivos da irreversibilidade da globalização: “1. A ampliação geográfica e crescente interação do comércio internacional, a conexão global dos mercados financeiros e o crescimento do poder das companhias transnacionais. 2. A interrupta revolução dos meios tecnológicos de informação e comunicação. 3. A exigência, universalmente imposta, por direitoshumanos – ou seja, o princípio (do discurso) democrático. 4. As correntes icônicas da indústria cultural global. 5. A política mundial pós-internacional e policêntrica – em poder e número – fazem par aos governos uma quantidade cada vez maior de atores transnacionais (companhias, organizações não-governamentais, uniões nacionais). 6. A questão da pobreza mundial. 7. A destruição ambiental mundial. 8. Conflitos transculturais localizados” ( BECK,1999, p. 30-31). Multiculturalismo Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 394 globalização. Atores globais como o Fundo Monetário Nacional e o Banco mundial3 procuram garantir condições propícias para o desenvolvimento do Capitalismo, causando, no entanto, um ambiente de instabilidade financeira. A crise fiscal assola os Estados vinculados a empréstimos internacionais, que, pressionados pelo FMI, necessitam aumentar suas bases de imposição tributária sem a elevação dos serviços que podem prestar e das funções que podem desenvolver (GODOY, 2004). No entanto, embora existam pressões das forças econômicas e políticas dominantes, nacionais e transnacionais oriundas do Capitalismo globalizado, Gómez (2000, grifo nosso) entende que não se dá o fim do Estado-nação. O Estado continua a ser uma potência política, jurídica, material e simbólica, tenaz e insubstituível4. Isso se dá porque o modelo econômico neoliberal requer um Estado forte para introduzir as reformas “pró-mercado na sociedade, para evitar a mobilidade das pessoas através das fronteiras e, antes de mais nada, para assegurar a ordem interna” (GÓMEZ, 2000, p. 107). 3 Os Direitos Humanos em um contexto global Conforme visto, o processo de globalização foi marcado pela internacionalização das relações sociais e comerciais, pelo aumento do fluxo de pessoas, pelo encurtamento das distâncias, o que forçou a uma flexibilização da soberania estatal, não no sentido de uma perda, mas de uma necessidade para a inclusão do Estado no mundo globalizado, internacionalizado. No âmbito dos Direitos Humanos, existe uma contradição entre o processo de globalização, com todo seu desenvolvimento econômico e tecnológico, e a política de Direitos Humanos, mormente no campo da redução das desigualdades sociais. Dito de outra forma, as relações no processo de globalização acontecem dentro de uma hierarquia de poder, em que os diversos agentes se enquadram, criando assim uma situação assimétrica, com relações de poder desiguais, produzindo ideais de consumo acessíveis de forma desiguais, assim como uma distribuição assimétrica de infraestruturas sociais e econômicas (BARRETO, 2009). Essa hierarquia de poder 3 Para garantir essas condições propícias, os atores globais influenciam o sistema jurídico dos países periféricos. Isso porque a “globalização não pode prescindir de um sistema jurídico que garanta a canalização dos conflitos, sua procedimentalização e a estabilização no tempo de expectativas normativas. Dito de outro modo: quanto mais complexo o sistema social maior a importância do direito moderno. Não é por acaso, que os recentes estudos sobre a reforma do Estado – que, ingênua ou maliciosamente, acreditam na capacidade de se induzir transformações a partir do sistema político -, sempre sublinham a urgência de uma reforma no aparato judiciário” (CAMPILONGO, 1999, p. 90). 4 Por isso, o autor afirma que a soberania não está sendo solapada, e sim transformada. Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 Willame Parente Mazza - Marcelo Cacinotti Costa 395 acontece principalmente no Neoliberalismo, ponto central da globalização. Assim a globalização propicia reformas econômicas em prol do interesse do império, vale dizer, de atores globais, a exemplo do Banco mundial e do Fundo Monetário Nacional para garantir as necessárias condições do desenvolvimento do Capitalismo (GODOY, 2004). A globalização traz diversas implicações sociais que reduzem a capacidade de fortalecimento dos Direitos Humanos. Dessa forma, com a intenção de garantir mão-de-obra barata, a relação entre capital e trabalho é pressionada pela competição global (GODOY, 2004), produzindo um deficit de dignidade humana na classe operária. Segundo Farias (2004), o trabalho intensivo com baixos níveis salariais somados à degradação ambiental trouxe inúmeras consequências sociais, jurídicas e políticas. Portanto existe um antagonismo entre os Direitos Humanos e a globalização, com todo seu desenvolvimento tecnológico, a redução de fronteiras e a corrida desenfreada pela disputa do mercado, sem a preocupação necessária com a conservação daqueles direitos. Nesse sentido, afirma Julios-Campuzano: Seu avanço comporta a imolação dos direitos em benefício da produtividade, o sequestro da democracia em aras de mercado e a usurpação da política pelas forças econômicas. É a violência de um sistema cuja afirmação comporta negação, cuja construção implica demolição. A globalização oprime e destrói, degradando os direitos e as expectativas, convertendo as esperanças em ilusões. Esse é o processo a que foram submetidos os direitos sociais em todo o planeta, subordinando-os à lógica pretensamente inevitável dos acontecimentos econômicos, como se esses não pudessem ser dominados, e invertendo a interação entre o ser e o dever ser, dando suporte à falácia determinista, que proclama desesperadamente por um imperativo técnico que se deve acatar inexoravelmente, como se as coisas não pudessem ser de outra maneira e consagrando também a falácia realista, mercê da qual se aceita de forma acrítica a realidade como fonte de normatividade, de modo que o dever ser deriva do ser. (2008, p. 97). Dentre esses problemas da globalização, o autor denuncia a violência exercida por meio dos planos do Fundo Monetário Internacional – FMI, por causa da sua falta de efetividade e insensibilidade ante os problemas de financiamento das balanças comerciais em países de baixa receita; problemas esses resultados das suas dívidas externas e dos ajustes econômicos desses países que não tinham suas dívidas Multiculturalismo Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 396 reduzidas pelo FMI5. Assim o resultado, em alguns países, foi o aumento do nível de pobreza, do trabalho infantil para subsidiar o sustento das famílias e o crescimento do número de crianças de rua. Essas e outras violências são salientadas por Julios- Campuzano frente à busca incessante pelo lucro no mundo globalizado em que essa dívida externa: [...] segue sufocando as economias dos países endividados com situações insustentáveis que comportam uma forte redução das importações e que condenam ao fracasso os planos de desenvolvimento, posto que os recursos recebidos por esse conceito estão destinados ao serviço da dívida. (2008, p. 98-100). Sabe-se que a globalização incontrolada contribui, ainda, para uma separação dentro das sociedades em níveis nacionais e internacionais, agravando a distância entre países ricos e pobres. Consequentemente, emergem duas classes: a dos globalizados, que aspiram aos padrões de consumo do primeiro mundo; e a dos excluídos, que aspiram a condições mínimas de sobrevivência, quase suprimidos por completo da sociedade, mitigada tal extinção em função dos direitos à segurança social. E essa exclusão social não se dá somente nos países em desenvolvimento, mas também em sociedades mais ricas. O que a diferencia em relação aos países chamados de terceiro mundo seria o nível de privação que eles enfrentam (ALVES, 2002, grifo nosso). Portanto, a desigualdade é um dos principais resultados da globalização caracterizada pelo Neoliberalismo, que, conforme Agostinho Ramalho Neto (2003), 5 Com relação aos atores internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, pressionando o Estado nacional a uma adequação interna e quase sempre forçando a implementação de políticas de austeridades,explica Narciso Leandro Xavier Baez: “José Reinaldo de Lima Lopes lembra que, historicamente, as consequências sociais da globalização começaram a ser mais fortemente sentidas quando o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial iniciaram, nas décadas de 80 e 90, sua cruzada para a formação de um mercado global, através da imposição a países da América Latina, África e Leste Europeu de um novo modelo normativo ideológico de reformas estruturais, forçando a realização de privatizações, desregulamentações e o desenvolvimento de políticas de austeridade fiscal. O autor ressalta ainda que, enquanto esses organismos concediam empréstimos financeiros para os Estados daqueles continentes, incrementavam geometricamente a dívida externa dos mesmos, gerando um surto inflacionário interno que os subjugou definitivamente à condição de dependentes da ajuda financeira internacional”. Continua o autor, ao falar das consequências negativas da globalização na dignidade humana como o avanço tecnológico que retira os trabalhadores do mercado de trabalho, ou a redução dos direitos sociais, sujeitando, em muitos casos, os trabalhadores a situações humilhantes e indignas em busca de um espaço no mercado. Assim conclui: “Esse preocupante quadro, em que o lucro é o bem maior e o ser humano uma simples variável, atinge frontalmente a dignidade humana e, por conseguinte, os direitos humanos que são a expressão de sua proteção” (BAEZ, 2013, p. 32). Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 Willame Parente Mazza - Marcelo Cacinotti Costa 397 assenta-se no tripé: desigualdade, competição e eficiência. Nesse sentido, Agostinho afirma que a desigualdade para os neoliberais é um ponto positivo, pois traz a assimetria na competição favorecendo ao desenvolvimento econômico. Criticava-se também o Estado de bem-estar social no qual só traria custos e prejuízos à concorrência e à dinâmica dos mercados. Para os neoliberais, segundo o autor, a competição é o motor propulsor da economia e fomenta essa segregação de uma sociedade de vencedores e perdedores. No entanto, ele adverte sobre a importância da competição, mas limitada pela lei no sentido ético e jurídico, e não uma competição que se torne a própria lei. Assim o autor fala que o resultado é uma: [...] estruturação perversa das relações econômicas, nos moldes de um autêntico darwinismo social, em que vence sempre o mais forte. E o mais forte, tanto neste contexto quanto no mundo da natureza, é simplesmente o mais bem adaptado. (2003, p. 2). Continua o autor, ao retratar o quadro de desigualdade, exclusão e consequente deficit humanitário provocado pelo Neoliberalismo: Longe de ser um mero acidente de percurso, ela faz parte da lógica interna do modelo neoliberal. A concentração da riqueza é a outra face da exclusão. Creio poder mesmo afirmar que a antiga oposição marxista opressores/ oprimidos já não dá conta da atual divisão social. É preferível, hoje, recorrer à oposição incluídos/excluídos, em que os incluídos abrangeriam tanto os opressores quanto os oprimidos, e os excluídos compreenderiam aqueles que não têm inserção em nenhuma dimensão da vida social, não chegando sequer a poder ser rotulados como oprimidos pela simples razão de que ninguém se interessaria por oprimi-los, já que daí não retiraria qualquer proveito. Afinal, ser oprimido não deixa de ser uma forma de inclusão! Alguns talvez nem possam ser denominados excluídos, já que não há de quê, pois nunca foram incluídos em nada! São excluídos, antes de tudo, da própria cidadania. (2013, p. 3, grifos do autor). Ao seu turno, ele finaliza, de forma lúcida, afirmando que o Neoliberalismo, no campo jurídico, foi o responsável pela dissolução dos direitos mais destacados do Estado Social, como os trabalhistas, os previdenciários e os sociais, que foram, a princípio, inclusos no rol dos Direitos Humanos. Com isso, o modelo neoliberal exigia como condição de possibilidade a desconstitucionalização e a desregulamentação desses direitos (NETO, 2013). Percebe-se que a globalização, o Neoliberalismo e todas essas mudanças de realidades, tanto as sociais como as econômicas, necessitavam de uma proteção Multiculturalismo Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 398 que, de uma forma ou de outra, garantisse a dignidade da pessoa humana. No entanto, como afirma Barreto (2009), criar um sistema positivo de direitos separado de valores morais, que procure a garantia dos Direitos Humanos simplesmente na lei nacional, não traria a proteção necessária para as diversas violações de direitos, podendo inclusive ser um mecanismo de consentimento para elas. Assim aconteceu no caso do nazismo nos seus crimes contra a humanidade, que foram justificados por meio do respaldo legal no seu ordenamento. Por essa razão, diversos meios de proteções aos Direitos Humanos foram criados como forma de internacionalizá- los. Eles passaram agora a ter interesse internacional, não se reduzindo à proteção ao âmbito interno do Estado, mas a um problema com escopo internacional, de legítima preocupação de toda a comunidade internacional (PIOVESAN, 2009). Foram criadas, portanto, diversas codificações de proteção aos Direitos Humanos, como a Organização das Nações Unidas, a Declaração Universal de Direitos Humanos (ONU, 1948), a Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos (CNE, 1976), a Convenção Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU, 1976), além de alguns tratados internacionais. No entanto, segundo Barreto (2009), o que aconteceu foi que muitos Estados soberanos, sob o argumento de serem signatários desses Tratados e que contemplavam em seus Estados assuntos de Direitos Humanos, os quais eram violados em função de uma interpretação tendenciosa do conteúdo de seus textos, assumiam um papel de violador desses direitos. Por esse motivo, propõe-se uma espécie de direito fora da ordem positiva, que tenha presente componentes morais, sociais e políticos, que salvaguardam as condições essenciais mínimas, constitutivas da dignidade da pessoa humana. Continua Barreto: Esse entendimento dos direitos humanos, como valores substanciais e universais permite que se estabeleça a ligação, tantas vezes negada pelas diferentes formas de positivismo jurídico, entre a ordem moral, constituída por agente livres e iguais, e a ordem jurídica própria da sociedade e do Estado. Com isto os direitos humanos adquirem o status de direitos morais, mas que perpassam os ordenamentos jurídicos nacionais e permitem que sejam considerados como a espinha dorsal jurídico-institucional da sociedade democrática. (2009, p. 262). Nesse sentido, discutir-se-á, no item seguinte, a universalidade dos Direitos Humanos dentro de um ambiente multicultural com valores que transcendem ordenamentos jurídicos, mas que perpassam as diversidades culturais espalhadas por todos os pontos do mundo. Daí se questiona: os Direitos Humanos poderiam se elevar Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 Willame Parente Mazza - Marcelo Cacinotti Costa 399 a uma categoria universal mesmo dentro dessa diversidade cultural já existente? 4 Multiculturalismo e Direitos Humanos A ideia do multiculturalismo6 tem a ver com a diversidade cultural ou com o relativismo cultural, representada pelas diversas tradições culturais que se agregam aos grupos sociais em todas as partes do mundo globalizado. Tais tradições e diversidades culturais se intensificaram sobremaneira com o processo de globalização. A grande questão, porém, é saber se os Direitos Humanos podem ser reconhecidos de forma universal a todos os seres humanos de maneira igual, mesmo tendo essa diversidade cultural, ou se ele toma uma postura relativista, na qual, para serem garantidos, dependem do Estado Soberano. Logo, a diversidade cultural entre os povos deve existir. Conforme a DeclaraçãoUniversal sobre a Diversidade Cultural7 (UNESCO, 2002), essas diversas culturas são consideradas como patrimônio da humanidade. O autor acrescenta ainda que se deve respeitar os Direitos Humanos dentro dessa diversidade cultural, demonstrando a sintonia que necessita existir entre o multiculturalismo e os Direitos Humanos. No entanto, o que se discute é a possibilidade da existência da sintonia dentro dessa conflituosa relação. Portanto, essa multiplicidade de valores culturais, como compromissos morais, concepções sobre a vida digna e visões religiosas do mundo, configura a sociedade democrática de tal maneira que se procura buscar o consenso 6 Edgar Montiel afirma com precisão a influência que a globalização cultural gerou com as novas tecnologias sobre a produção social, trazendo, a priori, a revisão desse conceito de cultura. Dessa forma, afirma o autor: “Muitas das definições normalmente aceitas de cultura e de políticas culturais encontram-se, atualmente, em plena revisão, devido ao impacto crescente das novas tecnologias da informação na produção social da cultura. É um fenômeno da época. A Conferência Mundial de Políticas Culturais (México, 1982) considerava a cultura como o conjunto de traços distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos, que caracterizam uma sociedade ou um grupo social. Esta definição incluía os modos de vida e os sistemas de valores, as tradições e as crenças. Nos tempos atuais o imaginário e a cultura coletiva são altamente tributários de um novo universo simbólico que emana de forma massiva das novas tecnologias da informação. O mundo do ciberespaço constituiu- se em fonte de boa parte das novas manifestações culturais” (MONTIEL, 2003, p. 16, grifos do autor). 7 O artigo primeiro da Declaração Universal da UNESCO sobre a diversidade cultural afirma: “Artigo 1 – A diversidade cultural, patrimônio comum da humanidade”. Quanto à relação entre direitos humanos e a diversidade cultural, a declaração, no seu artigo 4, continua: “A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que pertencem às minorias e os dos povos autóctones. Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos pelo direito internacional nem para limitar seu alcance”. (MONTIEL, 2003, p. 54, tradução nossa). Multiculturalismo Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 400 dentro da diferença e da heterogeneidade (CITTADINO, 1999). O professor Vicente Barreto (2013) acredita que para que se situem os Direitos Humanos no contexto de uma sociedade multicultural, na qual se dará o caráter universal ou relativista, é necessário passar pela fundamentação desses direitos. Ele afirma que é necessária uma elaboração teórica dos fundamentos dos Direitos Humanos atentando-se às peculiaridades empíricas encontradas nas diferentes culturas. Dessa forma, ao se falar em uma teoria dos Direitos Humanos, pode-se analisar o conjunto de tratados, convenções, e legislações e os mecanismos nacionais e internacionais garantidores desses direitos; ou analisam-se os fundamentos dos Direitos Humanos que passam pela filosofia social ou política contemporânea. Continua o professor Barreto (2013) a analisar a Declaração dos Direitos do Homem das Nações Unidas (ONU, 1948), afirmando que o grupo de intelectuais convocados para sua elaboração estabeleceu que a questão dos Direitos Humanos devesse ficar adstrita aos mecanismos garantidores desses direitos, rejeitando a possibilidade de existência dos Direitos Humanos universais independentes de sua consagração nas Constituições dos diferentes Estados soberanos (BARRETO, 2013). Carlos Nino (2011) afirma que os Direitos Humanos podem entrar em um discurso justificatório se forem vistos como direitos morais, derivados de princípios morais ideais e que devem ser reconhecidos como essência para a concepção liberal de pessoa e sociedade. Nino faz uma crítica aos relativistas, mormente ao relativismo ético. Segundo o autor, o relativismo sustenta que as concepções morais variam no tempo e no espaço, e que a validade dos juízos morais críticos depende de circunstâncias pessoais, espaciais e temporais. Esse relativismo ético criticado por Nino traz uma das teses de que a pessoa age de modo justo quando sua conduta está em conformidade com suas próprias convicções ou com aqueles que prevalecem no seu meio social. Dentre os vários argumentos contrários à universalização dos Direitos Humanos, Culleton, Bragato e Fajardo destacam, em resumo, os seguintes: A irrelevância da concepção liberal e da social-democracia dos direitos humanos para a grande parte da humanidade, inclusive o Terceiro Mundo; a dissocialização e a aculturação que se impõem mediante o desrespeito à diversidade cultural; e o fato de que, em muitas sociedades, inclusive ocidentais, o próprio conceito de direitos humanos é recente ou, até mesmo, ignorado. (2009, p. 236). Diante desse escopo, os relativistas argumentam que os universalistas utilizam-se do discurso dos Direitos Humanos como uma maneira de uniformizar Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 Willame Parente Mazza - Marcelo Cacinotti Costa 401 valores de outras culturas para impor um certo imperialismo cultural do ocidente (HÖFFE, 2000). Acrescentam, ainda, que essas comunidades e essas culturas são autênticas da organização humana e devem ser respeitadas. Essa ideia da desconfiança da hegemonia ocidental8 nos Direitos Humanos estava presente também desde o início na Declaração Universal (ONU, 1948), em que alguns países, como os islâmicos, abstiveram-se da votação sob a dúvida da pretensa universalidade da declaração (BARRETO; WASEM, 2011). Para os relativistas, é impossível existir um catálogo de Direitos Humanos uniforme para regular todos os povos do planeta, devido à variabilidade dos costumes e à pluralidade do Direito, “pois aquilo que deve ser atribuído a cada um, em um dado grupo social, depende das circunstâncias, da massa de bens para distribuir, do estado da civilização e da cultura” (CULLETON; BRAGATO; FAJARDO, 2009, p. 236). Dessa forma, seria impossível, para os relativistas, satisfazer de forma igual as exigências de bem-estar de todos os seres humanos, já que existe na humanidade uma variedade de valores, hábitos e práticas sociais (BARRETO, 2013). Os relativistas se apegam ao princípio da tolerância, o qual prevê a não intervenção nos hábitos, nas crenças e nas práticas de grupos. Dessa forma, nenhum grupo estaria autorizado a impor seus valores a outras comunidades, (CULLETON; BRAGATO; FAJARDO, 2009). Pela tolerância, portanto, há obrigatoriedade em reconhecer a diferença. Nesse sentido, Cittadino explica o relativismo de Walzer: Ressalte-se, entretanto, que a tolerância não é simplesmente a maneira como se evita os antagonismos. É mais do que isso. Somos obrigados a ser tolerantes. O relativismo de Walzer abre espaço, portanto, para um 8 Reforçando o argumento dos relativistas de que essa categoria de direitos é uma característica ocidental e, portanto, trata a ideia da universalização como um interesse hegemônico do ocidente, destaca-se: “Outro argumento apresentado pelos relativistas está no fato de que os direitos humanos, tal como concebidos no ocidente, onde é adotada uma cultura individualista, não são compatíveis com as sociedades nas quais a tradição da existência humana se dá em prol da satisfação e sobrevivência da coletividade. Desse modo, afirmam que essa categoria de direitos mostra-se necessária somente nos Estados ocidentais, onde se idealiza uma imagem individualista da pessoa e onde, historicamente, têm ocorrido as patologias da escravidão, intolerância religiosa, racismo, colonização e imperialismo. Com essasponderações, os relativistas sustentam a impossibilidade de qualquer interferência externa no que diz respeito às práticas sociais estabelecidas no seio de Estados e culturas que adotam posturas diferentes daquelas que formam, segundo a Declaração de Direitos Humanos da ONU, os valores morais universais dos direitos humanos. Para eles, a única fonte legítima de validade de um valor ou regra moral é o ambiente da própria cultura em que eles estão inseridos. Repisam o argumento de que o atual discurso acerca dos direitos humanos, intencionalmente ou não, tende a promover o individualismo, que é moralmente contrário ao que defendem diversas culturas não ocidentais” (HÖFFE, 2000, p. 173). Multiculturalismo Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 402 princípio universal fundamental: a obrigatoriedade do reconhecimento da diferença. Em suas palavras, o reconhecimento é universal, enquanto que o reconhecimento é local e particular. Quando Walzer afirma que o tribalismo é um engajamento dos indivíduos e dos grupos em sua própria história, cultura e identidade e este engajamento (em seu princípio) é uma característica fundamental da espécie humana, isto significa que a tolerância é uma exigência da moral. Ou, de outra forma, a intolerância é incompatível com a moral porque viola aquilo que confere a humanidade ao indivíduo: sua identidade cultural. A tolerância, portanto, não é fruto da indiferença ou do ceticismo moral. Walzer ainda revela o seu compromisso com a dimensão moral da tolerância ao recusar o uso da coerção sobre grupos minoritários, afirmando que ela não é nem moralmente aceitável, nem politicamente eficaz. (1999, p. 78, grifos do autor). Portanto, os relativistas rejeitam uma espécie de imperialismo ético no qual não é possível existir uma moral superior. Já que se parte do pressuposto de que todas as morais são verdadeiras, então não pode haver uma imposição de valores de nenhum grupo sobre outros (CULLETON; BRAGATO; FAJARDO, 2009). No entanto, na universalização dos Direitos Humanos, não se pretende uniformizar os padrões culturais no mundo, nem impor um padrão moral de uma nação sobre a outra. A ideia central é sedimentar os laços sociais de solidariedade por meio de um mínimo universal entre as características comuns nos seres humanos e que devem ser respeitadas independentemente do espaço cultural em que estejam incorporadas. Dessa forma, algumas necessidades humanas são universais e comuns a todos os grupos sociais. Entre essas características destacam-se “a necessidade de cooperação, encontrada em todas as culturas, a identificação do status do indivíduo na comunidade e a ajuda para quem se encontra em necessidade” (BARRETO, 2013, p. 243). Percebe-se que existe um mínimo moral e jurídico comum a todas as sociedades que é refletido em situações socialmente injustas e excludentes (BARRETO, 2013). O exemplo mais recente dessa situação foi o caso da possibilidade de execução por apedrejamento da iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani (PORTAL, 2013), acusada e condenada por relacionamento ilícito fora do casamento no Irã. A referida mulher foi condenada, conforme o Código Penal iraniano, por ter tido relações ilícitas com dois homens, e, por essa razão, recebeu 99 chicotadas. Depois desse fato, ela voltou a cometer adultério e foi condenada à morte por apedrejamento. Tal caso gerou uma comoção internacional, com assinaturas de personalidades do mundo todo, além do repúdio por autoridades da União Europeia, dos EUA, entre outros, pedindo o não Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 Willame Parente Mazza - Marcelo Cacinotti Costa 403 apedrejamento da mulher. Após esse caso de Sakineh, percebeu-se que, em diversos outros, nos quais as mulheres foram condenadas à morte por apedrejamento, já foram revistos pelo Judiciário iraniano, e as penas tornaram-se menos severas do que chibatadas. Nesse exemplo, percebeu-se a repulsa e a indignação da comunidade mundial, unida por um sentimento comum da dimensão que é um ser humano. Vê-se que todas as culturas e as sociedades têm a mesma caracterização do que seja um ser humano. Seria uma espécie de comunidade ética fixada em função dos valores comuns. Disso conclui-se que somente com a universalização dos Direitos Humanos conseguir-se-ia diminuir essas práticas estatais indignas à pessoa humana. Antes de tudo, é importante reconhecer o outro, ou seja, ter igualdade. O outro como uma finalidade em si mesmo (KANT, 1964), e não como instrumento em que se possa manipular9. Ver o outro na dignidade da pessoa faz com que ela não tenha preço. Esse reconhecimento do outro, no sentido kantiano, na visão de Agostinho Ramalho (2010, p. 114), é “o reconhecimento do outro em sua concretude, ou seja, em sua diferença, sem o que noções como as de cidadão e sujeito de direitos como que perdem seu suporte”. Essa ideia kantiana do reconhecimento do outro expressa a forma mais lúcida do princípio da dignidade da pessoa humana, um princípio ético fundamental que está na “base da cidadania, da noção de sujeito jurídico, da valoração ética e política da democracia” (NETO, 2010, p. 114). Culleton, Bragato e Farjado (2009) acreditam que a universalização traz a ideia de que todos são igualmente dignos de consideração e respeito. É notório que todas as culturas possuem a noção de Direitos Humanos, seja a islâmica, a budista, entre outras. Essas experiências só mostram que as diferenças não são obstáculos à universalização desses direitos. Nesse sentido, Culleton, Bragato e Farjado afirmam que a aproximação de valores de “outras culturas, que não a cultura ocidental, com valores expressos nos direitos humanos demonstra que os mesmos podem ser universalizáveis, desde que respeitadas às especificidades de cada cultura”. (2009, p. 241). Eles afirmam que podem reconhecer interesses transcendentais que justificam uma grande parte dos Direitos Humanos e que são válidos, indiferentemente, para as diversas culturas. Dividem-se em três grupos: “1) o corpo e a vida, incluídas as condições materiais da vida; 2) a língua e a razão; 3) a capacidade social geral e a capacidade política específica” (CULLETON; BRAGATO; FARJADO, 2009, p. 241). 9 Essa afirmação tem relação com o imperativo categórico kantiano na sua terceira formulação, na qual afirma: “age de tal forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e jamais como meio” (KANT, 1964, p. 90). Multiculturalismo Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 404 Portanto, toda comunidade tem princípios éticos comuns a toda humanidade e que são transcendentes às especificidades de cada cultura local. Essa é a ideia do mínimo moral, compatível com muitas culturas e com a diversidade moral, desde que se interpretem os Direitos Humanos no contexto da diversidade. Se uma determinada cultura tem um código moral que permita, por exemplo, a morte cruel, esse código fere o mínimo moral requerido, demonstrando que “há interesses transcendentais válidos para todo ser humano e que podem estabelecer um diálogo interculturalmente válido” (CULLETON; BRAGATO; FARJADO, 2009, p. 241-242). Assim, a universalização dos Direitos Humanos se torna possível sem que para isso signifique uma imposição hegemônica de uma cultura sobre a outra, longe do que seria um discurso dominante. 5 Conclusão Com o advento da globalização, a consequente ruptura da soberania formal, o encurtamento das distâncias e o aumento do fluxo de bens e serviços o mundo recompõe-se como um sistema de poder hierarquizado, em que as relações de poder criam uma situação assimétrica nos âmbitos social, econômico e político. Surgem novos atores no cenário internacional – as chamadas comunidades supranacionais – que impuseram uma nova lógica às relações internacionais, trazendo diversasimplicações em todos os níveis: econômico, social e político, mormente no campo dos Direitos Humanos. Quanto a esses direitos, percebeu-se um deficit da dignidade humana, principalmente na relação capital e trabalho, pressionado pela competição global e pelos setores vinculados ao sistema capitalista. Acrescenta-se a separação dentro das sociedades nacional e internacional, provocando uma discriminação entre os globalizados e incluídos – que aspiram aos padrões de consumo do primeiro mundo – e os excluídos – que aspiram a condições mínimas de sobrevivência (ALVES, 2002). Diante desse quadro, foram produzidos diversos meios de proteção aos Direitos Humanos, buscando a internacionalização deles. No entanto, esse sistema positivo de garantia não pode ser separado dos valores morais sob o risco de, por meio de interpretações tendenciosas, servir de consentimento para as violações de direitos. Assim sendo, é necessário transcender a esfera positiva de direitos, a fim de trazer componentes morais, sociais e políticos que garantam a dignidade da pessoa humana, princípios que traduzem o reconhecimento do outro, na sua igualdade, não como um instrumento a ser manipulado, mas como uma finalidade em si mesmo. Nesse contexto, o artigo traz o entendimento universal dos Direitos Humanos Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 18 n. 115 Jun./Set. 2016 p. 387-408 Willame Parente Mazza - Marcelo Cacinotti Costa 405 como uma maneira necessária para impedir as práticas estatais indignas e degradantes à pessoa humana, pela sedimentação dos laços sociais por meio de um mínimo universal entre as características comuns a todos os seres humanos, reconhecidas em todas as sociedades, independente da cultura local na qual estejam vinculadas. Não se pretende, portanto, uniformizar os padrões culturais no mundo, nem impor um padrão moral de uma nação sobre a outra, nem um imperativo hegemônico do ocidente, como defendem os relativistas, mas sim respeitar as especificidades de cada cultura dentro dos padrões de uma vida digna a cada pessoa. 6 Referências ALVES, José Augusto Lindoren. Cidadania, direitos humanos e globalização. In: PIOVESAN, Flávia (Coord.). 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