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MARIA LUÍSA PERES COUTO SOARES O QUE É O CONHECIMENTO? QUESTÕES DE EPISTEMOLOGIA LISBOA 2004 2 3 INDICE INTRODUÇÃO 1. A noção clássica de episteme 1.1. Aporias da definição de Ciência 1.1.1. Teeteto e a definição de Episteme 1.2. A "epistemologia naturalista" de Aristóteles. 1.2.1 II Analíticos: os princípios da demonstração 2. Justificação: Fundacionalismo versus Coerentismo 2.1. Os argumentos: um falso dilema 2.2. Proposições protocolares: sua discussão no Círculo de Viena 2.3. Wittgenstein: proposições elementares 2.4. Notas sobre verificação e justificação 3. Percepção: Aparência e Realidade 3.2. Aisthesis 3.3. Problemas da representação 3.2.1. Duas Imagens do Mundo: Senso Comum e Ciência 3.2.2. Percepção - Convicção de existência. 3.3. Falácia dos sense data 3.4. Intencionalidade da percepção 4 4. Consciência de si, auto-consciência. 4.1. Brentano: percepção interna e evidência 4.2. Percepçãp adequada/percepção inadequada: o ponto de vista husserliano 4.3. Wittgenstein e o argumento da Linguagem Privada: objecção a Brentano? 4.4. A estrutura da consciência e a intersubjectividade da percepção interna 5. Objectividade/Objectualidades 5.1. O "real" e o "objectivo" em Frege I.2. Epistemologia sem sujeito I.3. Objectividade e Falibilismo I.4. O Pensamento: lugar das formas 6. Crença, Justificação, Verdade 6.1. Gramática da crença 6.1.1. A semântica dos enunciados de crença 6.2. Crença e Racionalidade 6.3. Justificação e Verdade Apêndice: Teorias da Verdade Bibliografia 5 INTRODUÇÃO "Erkenntnistheorie ist die Philosophie der Psychologie" Tractatus 4.1121 A Epistemologia constitui um campo da Filosofia dificilmente delimitável devido às inúmeras fronteiras ténues e apenas esboçadas com muitas outras áreas, elas próprias vastas e de carácter eminentemente interdisciplinar - como a Filosofia do Conhecimento, a Filosofia das Ciências, a História das Ciências, a Metodologia das Ciências, e actualmente também com a Fenomenologia, a Filosofia da Linguagem, a Filosofia Analítica, a Filosofia da Mente, a Filosofia da Psicologia. Elaborar um curso de Epistemologia exige, por isso, optar por um ponto de partida e traçar um itinerário preciso, o que significa necessariamente estabelecer contornos bem nítidos e renunciar a outras vias possíveis, que se apresentam no vasto horizonte epistemológico e filosófico. Estas outras vias possíveis não podem deixar de surgir, no entanto, na paisagem do itinerário traçado e entrecruzam-se constantemente com o fio condutor pelo qual se optou. Inevitavelmente, ao formular e tratar um problema encontram-se outros problemas e questões com afinidades incontestáveis, e não é fácil deslindar o nó da questão 6 inicial e suas implicações múltiplas e transversais. Mas, uma vez traçado o itinerário, é inevitável a delimitação e, consequentemente, deixar de lado muitas outras questões que se apresentam como questões igualmente possíveis. Centrar-nos-emos no problema filosófico do conhecimento, visando uma elucidação das questões nucleares sobre a sua natureza e condições de possibilidade. O objectivo principal será o de justificar o conhecimento, dar conta dos fundamentos que o alicerçam e mostrar a viabilidade do acesso cognitivo ao mundo real. Conhecer pressupõe, com efeito uma relação intencional que informa toda a experiência e lhe dá um carácter de abertura e de revelação. Toda a reflexão epistemológica que pretenda um esclarecimento sobre problemas relacionados com o estatuto das várias ciências, as suas metodologias, os âmbitos e limites dos vários saberes, a sua objectividade, universalidade e validade, requer uma investigação prévia sobre o próprio conhecimento: um conhecimento do conhecimento e uma defesa do seu próprio estatuto e da sua fiabilidade. Esta tarefa consiste numa crítica, que deverá assumir uma certa atitude transcendental, orientada para a reconstrução – e não descontrução – do processo cognitivo desde os seus fundamentos. Não basta, no entanto, para delimitar o campo do programa epistemológico, considerar a questão enunciada. O problema do conhecimento pode ser considerado um dos temas centrais da Filosofia. Qual a perspectiva peculiar, própria da investigação epistemológica? Centremos a atenção na noção de episteme, da qual deriva o termo Epistemologia. Tradicionalmente episteme tem sido traduzida por 'conhecimento'. No entanto, rapidamente se comprova como as discussões filosóficas em torno da episteme - reportando-nos à tradição clássica da filosofia platónica e aristotélica - se revelam peculiares e não coincidentes com a tradução do termo grego simplesmente por 'conhecimento'. Na tradição platónica, a discussão sistemática em torno de episteme no Teeteto, uma vez estabelecido que esta não é percepção nem simplesmente opinião verdadeira, põe o problema de saber o que é necessário acrescentar à opinião verdadeira para que esta constitua 7 episteme. E esta é a questão mais comum a partir da qual partem muitas das actuais exposições básicas da Epistemologia: poderia definir-se, neste sentido como o estudo da justificação da crença ou opinião. "Quais as crenças que são justificadas ou fundamentadas e quais não o são?", "Qual a diferença entre conhecer verdadeiramente, e ter uma mera crença ou opinião verdadeira?" "Qual a relação entre crer e conhecer?", "Porque é que pensamos ou cremos que p ?" seriam perguntas centrais da epistemologia. A definição proposta - o estudo da justificação ou fundamentação da crença - parece, no entanto demasiado restritiva, pois qualquer outro estado cognitivo que não o da crença verdadeira justificada, ficaria fora das suas fronteiras: a dúvida, conjectura, probabilidade, interrogação constituem estados cognitivos de indubitável interesse para a epistemologia. Não há dúvida que o problema da justificação ou fundamentação da mera crença verdadeira é fulcral na epistemologia, mas não é o único. O conhecimento é tradicionalmente, desde Platão, caracterizado como crença justificada, mas é o próprio processo cognitivo que carece, ele próprio, de uma justificação, que pressupõe a elucidação da questão originária sobre o que é conhecer. Deverá notar-se que, pela própria natureza da questão central que se propõe tratar, é imprescindível o retorno ao exame de algumas tradições que marcam a história do pensamento. De algum modo é certo que a história da epistemologia é coextensiva à história da própria filosofia. A busca de um progressivo crescimento e da compreensão do próprio conhecimento constitui um objectivo constante de qualquer filósofo, o que requer uma capacidade de distinguir as crenças verdadeiras das falsas. Isso exige a formulação de um critério para averiguar dos fundamentos que, de facto, constituem uma justificação dessas crenças. A busca da verdade assenta na busca da justificação. E esta preocupação está presente na reflexão epistemológica desde o pensamento clássico até aos 8 nossos dias. Embora o problema da justificação da crença não constitua o tema exclusivo da antiga epistemologia, está de algum modo presente em todos os autores clássicos que examinam o problema do conhecimento. A tradição filosófica - designadamente Platão e Aristóteles – constitui um referencial presente no desenvolvimento de alguns dos tópicos. Isto não significa que se adopte uma perspectiva historicista, ou se pretenda apresentar uma história da epistemologia. Pelo contrário, adoptar-se-á um ponto de vista anti-historicista. A referência a autores e textos do passado é sempre motivada pela consciência da actualidadee mesmo perenidade de problemas e questões que desde a Antiguidade até aos nossos dias não podem deixar de comparecer no horizonte filosófico. O que se procura é pensar com esses autores encontrando sintonias e afinidades com as suas questões, procurando compreender até que ponto um pensador de tempos passados pervive ainda nas interrogações constantes da filosofia. A reflexão sobre o pensamento dos seus predecessores constitui sempre para o filósofo um poderoso meio para encontrar luminosas alternativas para os problemas dos quais se ocupa, e o seu próprio horizonte só ganhará em amplitude e profundidade com essa reflexão. A atitude a adoptar será precisamente a de abrir um amplo diálogo, no qual comparece o passado como presente, e o presente se assume como reiteração de um discurso já encetado há muito, mas sempre vivo e em acção. Se lidamos assim com as tradições, é porque o que nos interessa são "histórias que nos impulsionem a ir para além das histórias", empregando palavras de MacIntyre. Esta atitude em relação às diferentes tradições filosóficas pressupõe a rejeição de uma concepção discontínua do discurso racional, baseada sobretudo na noção de paradigma de Kuhn: reconhece-se uma certa incomensurabilidade entre diversos sistemas conceptuais, cosmovisões, pontos de vista, mas essa incomensurabilidade não significa intraducibilidade. Traducibilidade e compatibilidade não são o mesmo que comensurabilidade. Por outro lado, a adopção de um ponto de vista não significa de modo algum um ponto de vista absoluto e englobante; trata-se de abrir um caminho a 9 seguir, de estabelecer um percurso mantendo sempre no horizonte outros pontos de vista possíveis, outras perspectivas que não se excluem necessariamente, mas que perpassam transversalmente num entrosamento inevitável. A interferência das discussões epistemológicas com alguns dos contributos do exame a partir de outras áreas com afinidades nítidas com a Epistemologia - a Fenomenologia, a Filosofia da Psicologia, a Filosofia Analítica e a Filosofia da Mente - como é o caso, por exemplo, da análise das noções de percepção, crença, juízo e proposição, verdade, certeza e evidência, etc. - será inevitável. Considera- se que essas interferências, ou melhor o tratamento destas noções numa perspectiva transversal, constituirá um enriquecimento na elucidação filosófica dessas mesmas noções. Por isso mesmo, a referência a alguns autores que não podem ser considerados propriamente como epistemólogos - como por exemplo Brentano, Frege, Husserl, Wittgenstein, entre outros - ocorrerá com alguma frequência, com o intuito de ampliar a elucidação de questões intimamente relacionadas com a problemática do conhecimento e que não se podem restringir a uma delimitação rígida do campo da Epistemologia. O estudo da percepção e do juízo, da verdade e da evidência será objecto de uma reflexão aprofundada que ultrapassa as fronteiras de uma definição e demarcação demasiado estrita da Epistemologia. É inevitável dizer uma palavra sobre a atitude céptica. Quando se trata do conhecimento é inevitável que nos rondem dúvidas, diferentes tipos de dúvidas: podemos confiar no que nos apresentam os nossos sentidos? Os dados da percepção serão fiáveis? O que nos aparece, o que se nos apresenta será verdadeiramente uma realidade independente do nosso modo de percepcionar, de 10 conhecer? Não será tudo um sonho? Uma ilusão? E, no limite, não estaremos a ser constantemente enganados por um «génio maligno»? Perante as variadas atitudes de cepticismo, é possível adoptar diferentes posições: a) enredar-se em tentativas de argumentos contra os argumentos cépticos, uma discussão directa na qual se admite, até certo ponto, as próprias dúvidas que se tentam ultrapassar; b) contornar esses argumentos, evitando um confronto directo e colocar-se à partida numa atitude realista, de um realismo duro no qual se toma como inquestionável a aceitação de uma realidade objectiva, independente do nosso próprio ponto de vista; mesmo reconhecendo o grande abismo entre os fundamentos das nossas crenças sobre o mundo e os conteúdos dessas mesmas crenças, a falibilidade do que se nos apresenta, em contraste com a consistência ontológica do real, tenta-se o salto sobre o abismo sem o anular. Exemplos desta atitude são por exemplo as “teoria heróicas” (empregando uma expressão de Thomas Nagel) como a teoria das Formas de Platão, a defesa cartesiana da fiabilidade do conhecimento humano em geral assente numa prova a priori da existência de um Deus à prova de toda a confiança. E em tempos mais recentes, com nítidas tonalidades platónicas, as propostas de um mundo objectivo, real, constituído por entidades ontologicamente consistentes, não submetidas à precaridade do nosso conhecimento sensível, como é o caso do «terceiro mundo» de Frege, um mundo de objectualidades independente do nosso modo de as apreender; c) desconstuir a dúvida céptica apontando-lhe a sua falta de fundamento – quem duvida, sabe já alguma coisa, e tendo em conta o senso comum, fará sentido a formulação de dúvidas radicais que ponham em causa qualquer forma de conhecimento, ou de possibilidade de acesso ao mundo externo e a uma realidade objectiva? Ao céptico caberá a tarefa de fundamentar a sua dúvida, caso contrário ela será rejeitada como sem sentido nem fundamento. Neste 11 caso, há uma rejeição do abismo entre realidade e aparência, e uma afirmação explícita de nos encontrarmos já do outro lado. Esta seria a atitude de Moore e, apesar de algumas divergências, da de Wittgenstein ("O cepticismo não é irrefutável mas obviamente falho de sentido por pretender pôr em dúvida o que não pode ser perguntado. E isto porque só pode haver dúvida onde pode haver uma pergunta, e uma pergunta só onde pode haver uma resposta, e esta só onde algo pode ser dito" (Tractatus 6.51); d) adoptar uma outra concepção do real, não como algo totalmente alheio ao nosso ponto de vista, transcendente ao próprio modo de percepcionar e conhecer, mas um real que abarca também todos os nossos processos cognoscitivos, o próprio sujeito e suas condições de acesso ao mundo. Isto significa situar-se a montante do dilema aparência-realidade, subjectividade- objectividade, mundo-tal-como-se-nos-apresenta e mundo-em-si, ou em termos mais radicais entre ser e conhecer. Um mundo em si, independente do nosso modo de conhecer, alheio às condições de cognoscibilidade seria de facto impensável, não por transcender em absoluto o que se nos apresenta, mas porque esse mundo não nos incluiria e, como tal, seria uma realidade incompleta, truncada. O que se pretende afirmar é a conaturalidade entre realidade e conhecimento, numa posição que se poderia denominar de realismo transcendental. Não se pode evitar que uma certa dose de cepticismo ronde sempre todo o empreendimento, pelo menos como uma via de reconhecimento da nossa própria situação; a dúvida, a incerteza e a falibilidade não constituirão, no entanto, impedimentos para persistir na busca de conhecimento, pois o nosso impulso para o real torna impossível que nos satisfaça uma perspectiva meramente subjectiva e minada à partida pela distância e inacessibilidade do objecto a conhecer. 12 O primeiro tópico será o da noção clássica de episteme na filosofia grega - Platão e Aristóteles -, não com o intuito historiográfico de procurar as origens remotas das questões epistemológicas fundamentais, mas porque a temática desenvolvida nos textos platónicos e aristotélicos seleccionados abre um panorama e proporciona um horizonte de problemase questões que se prolongam no decurso do pensamento sobre o conhecimento e se encontram ainda hoje no cerne de muitas discussões epistemológicas. A questão do fundamento do conhecimento pode ser entendida de distintos modos - num sentido mais ontológico e num sentido genético. Neste caso, a leitura e a reflexão sobre os textos de Platão e Aristóteles, proporcionam uma via na qual as duas orientações na busca do fundamento estarão presentes: procurar-se-á elucidar o fundamento no sentido da razão de ser, do que em última análise significa e constitui o conhecer, e simultaneamente indagar dos princípios, das origens, dos alicerces nos quais assenta o edifício do nosso conhecimento. Estarão, portanto em causa dois problemas centrais: o do fundamento e o da justificação do conhecimento. Dois problemas que se entrecruzam e darão lugar ao exame de um dos temas actualmente mais debatidos em epistemologia, o do fundacionalismo versus coerentismo. Sendo uma questão recorrente, ela estará presente, sob a forma de várias interrogações: haverá crenças básicas, princípios primeiros, evidências genuínas, intuições imediatas? Poderá considerar-se o edifício do conhecimento solidamente assente numa base irrevisível, não sujeita a verificação nem carente de ulterior justificação? Ou não há qualquer fundamento último, e a imagem do nosso conhecimento corresponderá mais a algo que se vai construindo e desconstrindo, em constante evolução, revendo-se continuamente, reajustando-se a novas aquisições? 13 Formulando bem a questão, notar-se-á que estas duas "imagens" não são necessariamente antagónicas, nem constituem dois modelos epistemológicos em disjunção irreconciliável, mas é possível integrar ambas numa perspectiva panorámica que abarque tanto o problema da verdade como o do sentido, o problema da correspondência ou adequação do nosso conhecimento com a realidade, como o da coerência interna das nossas crenças, opiniões e juízos. É precisamente o problema do fundamento, no sentido de origem do conhecimento, que fará a passagem ao tema seguinte, o da análise da percepção. Não se pretende apresentar exaustivamente as teorias da percepção, mas rever o problema da representação, o seu "espectro" e repercussões na temática epistemológica. No cerne de todo este tópico, estará a questão da evidência perceptiva, da fiabilidade do nosso percepcionar, da viabilidade de aceder, pelos vários processos perceptivos, ao mundo real tal como é. Correlativa da experiência do mundo, a experiência de si, a auto-consciência apresenta-se como uma forma de consciência reflexiva, não tética, imediata e evidente. A sua força e imediatez leva a pensar no cogito como um fundamento inquestionável de todo o conhecimento e experiência. Mas pode também traçar uma fronteira intransponível entre eu e mundo, e constituir assim um obstáculo para a constituição da objectividade do conhecimento. Com uma breve revisão dos problemas centrais em torno da consciência de si, procurar-se-á reconstituir a dimensão dual de toda a consciência, que remete simultanea e indissoluvelmente, quer para o mundo externo, objectivo, quer para o próprio eu e o conhecimento em primeira pessoa. Este último, tendo em conta as duas perspectivas da consciência - intencional e reflexiva, autónoma e heterónoma - não se instituirá como um óbice à possibilidade de acesso ao mundo, à objectividade. Se essa viabilidade for estabelecida, fará então sentido perguntar-nos pela objectividade do conhecimento, em geral, ou seja pela possibilidade de deter intencionalmente algo que não é constitutivamente o próprio sujeito cognoscente, algo que não lhe pertence, que o transcende, mas de que se pode apoderar de uma 14 forma activa - construindo e reconstruindo essa mesma objectividade - embora não totalmente constitutiva. Procurar-se-á desmontar o dilema subjectividade/objectividade, em torno do qual se formulam habitualmente, na esteira de toda a herança cartesiana, os problemas epistemológicos: mostrando os impasses de uma perspectiva centrada no sujeito e suas consequências últimas - o psicologismo, o relativismo subjectivista e em última análise o cepticismo - e simultaneamente as dificuldades de um objectivismo extremo, que põe em causa qualquer explicação epistémica do processo cognitivo. A epistemologia popperiana adopta uma posição crítica perante as «filosofias da crença», centrando a sua atenção mais nos «objectos das crenças» do que no exame dos actos de crença. Voltando à definição tradicional de ciência, centrar-nos-emos sobre a crença: em que consiste? Em que se distingue crença de saber, ou conhecimento fundado? A crença requer justificação? O conjunto dinâmico e evolutivo das nossas crenças orientam-se para a verdade, ou para uma auto-correcção (selecção natural?) regulada por algum princípio, algum critério? Qual a relação da crença com a justificação e com a verdade? O tratamento exaustivo do problema da verdade excederia o âmbito estrito da Epistemologia, e exigiria um exame aprofundado das actuais teorias da verdade e uma apreciação do alcance ou limitações dessas mesmas teorias. É incontornável, no entanto, a sua abordagem em qualquer reflexão filosófica sobre o conhecimento: não há dúvida que a questão da verdade está no horizonte de toda a problemática epistemológica e ignorar ou postergar o problema, remetendo-o pura e simplesmente para outros campos da Filosofia, significaria decepar a reflexão sobre o conhecimento de uma dimensão constitutivamente presente em qualquer processo cognitivo. Toda a investigação científica tem um alvo, uma meta, pelo menos uma ideia reguladora que a orienta no sentido de alcançar a verdade. Mesmo numa concepção evolucionária ou discontinuista dos processos de constituição das ciências, ou numa perspectiva 15 falibilista do conhecimento, está pressuposta uma certa pretensão de verdade, de sentido, um ideal de consenso ou uma referência a uma comunidade de investigação que de algum modo regula a aceitação ou rejeição das crenças, hipóteses e teorias. Apresenta-se em Apêndice uma exposição breve e esquemática das teorias da verdade, como complemento informativo para uma possível ampliação futura deste tema recorrente noutros âmbitos ou noutras áreas da Filosofia. O intuito deste texto suplementar não é senão o de abrir caminho para um exame mais a fundo deste problema, assinalando possíveis prolongamentos da reflexão filosófica sobre o conhecimento. Antes de terminar esta introdução, parece-nos que será útil fazer umas breves observações sobre a situação actual da Epistemologia. Não se pretenderá de modo algum fazer a sua história, mas apontar apenas os principais factores que fizeram convergir os interesses e as atenções sobre alguns tópicos mais recorrentes na literatura epistemológica contemporânea. Embora actualmente possa ser já um truísmo falar da crise do modelo da racionalidade dominante até aos fins do século XIX, não há dúvida que é preciso ter em conta, para compreender algumas das atitudes epistémicas actuais, a crítica generalizada, embora com diferentes matizes, que foi surgindo em variados autores, no campo da filosofia, ao naturalismo, ao cientificismo, ao positivismo e neo-positivismo. Alguns desses pensadores marcaram fortemente, de uma forma ou de outra, o horizonte filosófico da passagem do século XIX para o século XX. Pense-se por exemplo em pensadores tão diferentes como Husserl, Whitehead, Weber, Wittgenstein, entre outros. No que se refere especificamente à 16Epistemologia, as ideias recorrentes apontam para a consciência dos limites da racionalidade científica segundo o modelo dominante até aos fins do século XIX. As notas características deste "paradigma" em crise, referidas aqui de um modo genérico, são bem conhecidas: a) Uma visão da natureza de inspiração cartesiana e galilaica, reduzida a extensão e movimento, natureza passiva, à disposição do homem, seu espectador para ser observada, conhecida, dominada. O mundo surge como imagem, imagem geometricamente centrada, perspectivada em relação ao seu espectador, o homem somo subjectum. Weber dedica páginas inesquecíveis à caracterização desta racionalidade dominante e calculadora no seu Wissenschaft als Beruf. b) Uma confiança epistemológica apoiada na regularidade objectiva das leis da natureza, na sua tradução em linguagem matemática, no carácter "conservador" da própria natureza traduzido claramente nas leis físicas - conservação da massa, conservação do movimento, conservação da energia. c) A estreita relação entre ciência e poder - "a senda que conduz o homem ao poder e a que o conduz à ciência estão muito próximas, sendo quase a mesma" (Bacon, Novum Organon), que, no entanto afirma também que "só podemos vencer a natureza obedecendo-lhe". Mais próximo de nós, no citado texto de Weber afirma-se: "Tudo pode ser dominado com o cálculo e a precisão". d) Uma certa atracção racional pelos dualismos e bifurcações que condiciona um modo de pensar disjuntivo, em pares de termos irreconciliáveis: natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, observador/observado, subjectivo/objectivo… Whitehead no The Concept of Nature critica e rejeita este modo dualista e disjuntivo de pensar que se traduz no que ele designa por "teorias da bifurcação da natureza". Na Epistemologia Contemporânea são frequentes estes pares de conceitos dilemáticos, 17 como por exemplo fundacionalismo/coerentismo, externalismo/internalismo, a perspectiva da 1ª pessoa/ e a da 3ª pessoa, etc. e) Primazia do visual sobre o oral, da qual se encontra um exemplo emblemático em Leonardo da Vinci e a dignificação da vista sobre qualquer outro dos sentidos porque só ela capta com exactidão os objectos. Na querela sobre a hierarquia entre pintura e poesia, Leonardo afirma sempre a superioridade da primeira, porque só a pintura é ciência. Primazia do quantitativo sobre o qualitativo: Galileu e a radical separação entre as realidades objectivas, susceptíveis de serem conhecidas com exactidão como o número, a figura, a grandeza, o movimento, e o que só pode ser apreendido subjectivamente - sons, cores, sabores, etc. A distinção entre qualidades primárias e secundárias atravessa como uma constante toda a filosofia do conhecimento moderna e prevalece, de certo modo em muitas das actuais teorias da percepção. f) As leis científicas,enquanto categorias de inteligibilidade privilegiam a descrição exacta de como funcionam as coisas, distanciando-se do sentido comum que se interroga naturalmente sobre o agente e o porquê das coisas. Baseado na formulação de leis, o conhecimento científico pressupõe a ideia de ordem e de estabilidade do mundo, da repetição do passado no futuro. O determinismo mecanicista confere a esta visão do mundo a confiança de um conhecimento certo e previsor que, mais do que compreender em profundidade a natureza das coisas, permite a possibilidade de as dominar e tranformar. Poderíamos continuar a caracterização do "paradigma dominante" na racionalidade científica dos fins do século XIX, princípios do XX, mas este apontamento esquemático é suficiente para estabelecer o contraste com o que, 18 continuando com a terminologia de Kuhn, poderíamos chamar "paradigma emergente". Vários factores contribuiram para esta "transformação" do modelo da racionalidade. Alguns factores internos às próprias ciências exactas: a crise dos fundamentos das matemáticas, o teorema de Gödel, a nova imagem da natureza procedente dos progressos da Física, o princípio do indeterminismo, e o golpe dado no par, até então inquestionável, de observador/observado, não são decerto alheios às novas atitudes epistémicas que se foram assumindo; outros factores originados pelo desenvolvimento das ciências sociais e humanas, que à partida adoptaram o mesmo naturalismo positivista das ciências em geral, mas que depressa questionaram esta mesma imposição de metodologias e modos de pensar, por não satisfazerem a peculiaridade dos seus estatutos; as discussões em torno do binómio explicação/compreensão1; entre os epistemólogos propriamente ditos, não se pode deixar de referir alguns dos que deram um forte golpe no modelo dominante de racionalidade científica: Kuhn, Polanyi, Feyerabend. A obra de Kuhn de 1962, The Structure of Scientific Revolutions dá origem a uma "revolução" na epistemologia tradicional, com o acento na discontinuidade da história da razão científica, e sobretudo a integração no processo do desenvolvimento científico de factores não estritamente racionais e da ordem cognitiva, mas também sociais, políticos, circunstanciais, que constituem o contexto dentro do qual se pode compreender um determinado discurso científico. O pensamento de Kuhn não dá resposta a muitas das questões propriamente epistemológicas, como por exemplo: o que faz mover o "processo" da ciência num sentido de progresso cognitivo, se são apenas factores extrínsecos os que provocam mudanças de "paradigmas" e de teorias? O que leva a ciência a desenvolver-se no sentido da criação de técnicas de solução de problemas sempre mais poderosos, e por que razão parece este desenvolvimento ser irreversível? O 1 Cfr por exemplo Wright, G. H. von - Explanation and Understanding; Anscombe, E. - Intention .Para uma perspectiva panorâmica sobre o problema explicação/compreensão, cfr Apel, K. O. - Die Erklaren-Verstehen Kontroverse im transzendental pragmatischer Sicht. 19 que justifica a capacidade de a ciência se impôr transculturalmente unindo culturas diversas? Por que é que haverá uma resistência a uma reconstrução do mundo totalmente arbitrária por parte dos indivíduos ou dos grupos que a constituem, por que não há-de ser essa reconstrução infinitamente "plástica"?2 A discontinuidade da "história da razão", tem como corolário a questão da incomensurabilidade e intradutibilidade dos discursos, que constitui actualmente quase um slogan que contagiou não só as ciências humanas e sociais, como a ética e a estética, e passou a constituir um verdadeiro impasse cultivado e explorado até à saciedade em muitos dos escritos actuais sobre epistemologia. Noutro registo totalmente diferente, Polanyi, no seu Personal Knowledge (1958) advoga uma concepção de conhecimento que rejeita o carácter impessoal, objectivo, universalmente estabelecido. Considera o acto de conhecimento como uma forma de compreensão activa, actividade que requer uma certa habilidade, capacidade participativa do sujeito cognoscente em todos oo processos cognitivos. Propõe-se substituir o ideal impessoal de um conhecimento científico totalmente desprendido do sujeito, por uma alternativa que centra a sua atenção no envolvimento pessoal daquele que conhece em todos os processos de compreensão: a ciência, neste enquadramento, é reconduzida ao mundo da cultura integral, e ao empenho pessoal para encontrar o sentido de toda a experiência humana. E desafia a concepção dominante da ciência, assente na disjunção de subjectividade e objectividade, e guiada pelos ideais de objectividade, simplicidade, economia, considerados factores indispensáveispara a excelência de qualquer teoria. Estes ideais, segundo Polanyi, deixam na sombra o papel fundamental das capacidades intelectuais humanas e a dinâmica vital da sua participação em todo o acto de conhecer. Na sua concepção de conhecimento, há um retorno ao sujeito na sua força vital e impulso para a compreensão do mundo e da experiência. O modelo de racionalidade objectiva e impessoal é posto em causa, em nome do que Polanyi considera um modelo de conhecimento e 2 Cfr Gil, F. - Provas, pp. 58-62. 20 compreensão que envolve a pessoa no seu todo. O risco que corre a crítica à "objectividade", é a excessiva "subjectivização" da ciência nos seus processos de descoberta, justificação e prova. Com os seus títulos provocatórios - Contra o Método, Adeus à Razão - Feyerabend é o enfant terrible da epistemologia, objectando vivamente contra tentativas vâs de construir uma teoria do conhecimento ou uma teoria da ciência. Não há uma estrutura comum aos factos, operações e resultados que constituem as ciências, não há modelos gerais que expliquem a dinâmica das ciências, não há uma lógica da descoberta e da justificação; os procedimentos são tão variáveis, tão contingentemente afectados pelas circunstâncias históricas, sociais, políticas, que o anarquismo epistemológico impõe-se como único princípio não inibidor do progresso. O célebre slogan "qualquer coisa serve" (anything goes) destrói toda a pretensão das velhas ideias de objectividade da Ciência, da Razão, da universalidade dos saberes. E dissuade qualquer intuito de formular uma teoria da ciência, de reconstruir uma nova epistemologia. Considerando em conjunto todos estes factores da evolução dos conhecimentos científicos, da concepção da própria ciência, da compreensão e reflexão filosófica sobre os problemas da génese processos e formas de conhecimento, a Epistemologia tem assumido programas e itinerários muito diferentes, que poderemos esquematizar em três grandes vias de orientação: 1. Uma Epistemologia interna às próprias ciências, feita pelos homens das ciências - exactas, experimentais, sociais, etc. Cada um destes campos de investigação levanta os seus próprios problemas de objectivos, métodos, estatuto do respectivo saber, que estimulam os próprios investigadores a desenvolver uma reflexão filosófica sobre as suas próprias questões. Depois da aversão à filosofia própria do neo-positivismo lógico e da sua expulsão do domínio propriamente 21 científico, a filosofia regressa ao centro das atenções reformulando questões dentro da própria prática científica. É a própria ciência que retorna a um discurso que não só não elimina as questões filosóficas, como as integra numa reflexão sobre si mesma. Cientistas como Einstein, Bohr, Heisenberg, Schrödinger, Prigogine, Varela, para citar apenas alguns nomes actuais, exemplificam bem este estilo "filosófico", cultivado no próprio campo da sua actividade científica. Um outro exemplo de convivio entre a Epistemologia e as ciências é a concepção de "epistemologia naturalizada", tal como a entende Quine. Neste caso, dá-se uma absorção dos problemas epistemológicos pelas ciências empíricas, nomeadamente pela psicologia científica. Escreve Quine: "O naturalismo não rejeita a epistemologia, mas assimila-a à psicologia empírica. A própria ciência diz-nos que a nossa informação sobre o mundo está limitada à estimulação das nossas periferias, e portanto a questão epistemológica é, por seu lado uma questão interna à ciência: a questão de saber como é que nós, animais humanos conseguimos alcançar a ciência a partir de uma informação tão limitada. O nosso epistemólogo científico dedica-se a esta investigação e proclama uma explicação que tem muito que ver com a aprendizagem da linguagem e a neurologia da percepção… A evolução e a selecção natural figurarão sem dúvida nesta explicação, e o epistemólogo sentir- se-á livre de aplicar a física se assim o achar." O objectivo da epistemologia não é senão o da justificação dos fundamentos da ciência empírica e para tal, porque não há-de o epistemólogo recorrer à psicologia? É a esta que cabe a tarefa de estudar a relação causal entre o que chamamos o nosso «conhecimento» dos objectos do mundo e estes mesmos objectos. E esta relação é, ela própria, uma relação «natural» que deve ser estudada por uma ciência natural. Não há nenhum objecto a investigar separado da teoria do conhecimento em relação às disciplinas científicas: “A epistemologia, ou algo que se lhe assemelhe, encontra o seu verdadeiro estatuto como capítulo da psicologia e portanto da ciência natural. 22 Estuda um fenómeno natural, a saber, o sujeito humano físico3. O objecto da Epistemologia é o estudo de como o sujeito humano conhece, sendo o conhecimento um processo natural e causal. Pode pensar-se num retorno às teorias naturalistas do conhecimento tão correntes nos fins do século XIX, mas com um carácter importante, no caso de Quine: a sua reformulação assenta numa psicologia behaviourista e não, como outrora numa psicologia mentalista e associacionista. Trata-se, de uma epistemologia estritamente científica – um capítulo componente da psicologia como uma das ciências naturais - e a sua atitude em relação à legitimidade das questões epistemológicas tradicionais é claramente ambivalente. Apesar do explícito repúdio de Quine de qualquer tentativa de rejeitar a epistemologia, parece claro que esta concepção pressupõe uma significativa restrição em relação aos problemas epistemológicos tradicionais: qualquer problema epistemológico não estritamente interno à ciência dificilmente poderá ser tomado a sério neste contexto4. 2. Uma Epistemologia externa, feita pela filosofia, mas tendo como tema e objectivo os problemas das ciências mesmas e das suas práticas: os problemas da objectividade do conhecimento científico, da percepção, a concepção de lei, de causalidade, a explicação e a compreensão científicas, o problema do determinismo/acaso, ordem/caos, as relações corpo/mente, etc. são problemas filosóficos cujo conteúdo advém principalmente das diversas ciências. E no campo das ciências sociais e humanas, os problemas da racionalidade prática, do estatuto epistémico de saberes como a História, a Sociologia, a Antropologia, os modelos de compreensão, do sentido da acção humana e social. Considerar do ponto de vista filosófico os problemas que estão em causa no próprio desenvolvimento da investigação científica e que de certo modo lhe podem dar uma ou outra direcção 3 Quine, “Epistemology Naturalized”, pp. 82-83. 4 Sobre e "epistemologia naturalizada", cfr o texto de Quine em Ontological Relativity and other essays e Haack S. - Evidence and Inquiry, pp. 118-138. 23 segundo as interpretações adoptadas, abrirá as fronteiras da Epistemologia e terá certamente inúmeras interferências com a Filosofia das Ciências, a Filosofia da Natureza, a Filosofia da Mente, e também com a Filosofia Prática, a Hermenêutica, etc. Neste âmbito, pode dizer-se que as abordagens se multiplicam e diversificam nas atitudes e problemas que os filósofos, no decurso da história do pensamento adoptaram e formularam ao enfrentar-se com as práticas científicas5: desde Platão e a invenção da ciência, à inteligibilidade da natureza nas concepções filosóficas dos racionalistas (Descartes, Leibniz) e dos enciclopedistas, até aos diversos naturalismos (Aristóteles, Mach, Quine), passando pelas críticas e limites da ciência (desde o empirismo britânico, até Kant, Heidegger e o próprio Wittgenstein), seria possíveltraçar os percursos das filosofias das ciências. O plural indica bem a dificuldade de fazer propriamente uma história da filosofia da ciência. Parece ser mais prudencial e adequado explorar a rede de relações entre os filósofos e as ciências. 3. Uma Epistemologia estritamente filosófica ou uma teoria filosófica do conhecimento científico, sua estrutura, sua justificação, seus processos. Optar-se-á por esta via: questionar a própria natureza do conhecimento, seu fundamento, estrutura, dinâmica e alcance. Entende-se a Epistemologia como um discurso sobre o conhecimento, no sentido etimológico do termo. É assim que ela é entendida e tratada na grande maioria da literatura epistemológica, sobretudo no meio anglo-saxónico. As concepções do conhecimento que se foram forjando, são, em grande parte determinadas pela questão considerada central para elaborar epistemologia: e a questão é a de saber quais as condições para que se dê realmente conhecimento. A resposta clássica – conhecimento é crença verdadeira justificaca – tem sido objecto de amplas 5 Uma colectânea de ensaios ilustrativa das variadas maneiras como as filosofias, as escolas de pensamento, conceberam e questionaram os problemas das ciências, é a obra Les philosophes et la science, sob a direcção de P. Wagner, Paris, Gallimard, 2002. 24 discussões, sobretudo a partir do célebre artigo de Gettier “Is Justified True Belief Knowledge?”, que desafia esta definição tradicional, apresentando contra- exemplos que envolvem casos de crença verdadeira justificada e que no entanto não são propriamente conhecimento. O «problema de Gettier» originou uma explosão de tentativas de respostas da parte de epistemólogos que, guiados pela estratégia de Gettier propõem alternativas à definição em causa, acrescentando ou modificando as condições para que se dê efectivamente conhecimento. O tópico da justificação é sempre recorrente em todas as abordagens da epistemologia, bem como as análises da estrutura do conhecimento, que seguem fundamentalmente as duas grandes vias – fundacionalista e coerentista. A análise do conhecimento feita a partir destes parâmetros – quais as condições de conhecimento, qual a estrutura do processo de justificação – não esgota de modo algum o problema filosófico da cognição. Trata-se de um processo que envolve múltiplos factores e que deverá ser investigado na sua dinâmica própria, apreendido no seu in fieri, e não apenas analisado assepticamente enquanto um sistema de enunciados que traduzem proposições verdadeiras, já constituído em si mesmo, como o resultado objectivado das várias dinâmicas cognitivas. A elucidação filosófica de conceitos fundamentais para compreender o que é o conhecimento – como a percepção, a intuição, o raciocínio, a compreensão, e também a dúvida, a incerteza, a expectativa, a procura – é um complemento essencial da análise estrutural do processo cognitivo. Neste sentido se compreende que Wittgenstein tenha afirmado que a teoria do conhecimento é a filosofia da psicologia. 25 1. A noção clássica de Episteme A primeira parte constituirá um breve exame da noção clássica de episteme em Platão e Aristóteles. Não se trata de expôr toda a teoria do conhecimento dos dois pensadores, nem de esgotar toda a problemática epistemológica que se pode detectar no pensamento clássico. Optou-se por uma breve exposição do modo como Platão e Aristóteles perspectivaram já o problema da necessidade de um modelo da justificação do conhecimento científico, tendo em conta que será este um dos problemas a tratar nesta obra. Tratar-se-á, portanto de mostrar como se apresenta a arquitectónica do conhecimento no Teeteto e nos II Analíticos. Platão definiu pela primeira vez a ciência como crença verdadeira justificada, dando lugar a um longo debate sobre o problema da justificação. O que é que se deve acrescentar à crença verdadeira para que seja justificada? O debate parte desta noção platónica de conhecimento científico - a terceira definição apresentada no Teeteto. 26 Aristóteles ao apresentar a ciência (episteme) como aquele estado cognitivo que é produzido pela demonstração encaminha o problema para os primeiros princípios indemonstráveis, discutindo os já conhecidos argumentos de infinito regresso ou de círculo vicioso: ou há uma apreensão imediata - da ordem do nous, e não da episteme - desses princípios ou a demonstração corre o risco de cair num infinito regresso ou num círculo vicioso. A noção dos primeiros princípios da ciência em Aristóteles aponta para uma forma de conhecimento que aparentemente entra em conflito com a formulação de um conhecimento fundado na experiência, na observação, nos dados empíricos, que é recorrente em várias obras de Aristóteles. O exame das teorias clássicas antecipa e preludia grande parte dos debates actuais em torno do fundacionalismo, coerentismo que encontram múltiplas formas de expressão: nomeadamente o caso paradigmático da discussão sobre as proposições protocolares entre os representantes do Círculo de Viena, seus adeptos e seus críticos centra-se principalmente no problema do fundamento ou justificação última de todo o edifício do conhecimento científico. Embora o que se designa hoje por Epistemologia seja uma disciplina relativamente recente, a noção de episteme, termo do qual deriva Epistemologia, tem as suas raízes no pensamento antigo, nomeadamente na filosofia platónica e aristotélica. O estilo de pensamento que caracteriza o modo de tratar os problemas do conhecimento na tradição clássica da filosofia grega é radicalmente diferente do estilo e modo de abordar estes mesmo problemas em toda a filosofia post- cartesiana. Em todo o caso, o exame dos problemas do conhecimento e a caracterização da episteme em Platão e Aristóteles suscita um diálogo frutífero com o pensamento epistemológico contemporâneo; esse exame constituirá um meio de reformular alguns dos dilemas mais debatidos na epistemologia contemporânea, confrontando-os com teorias do conhecimento que, por se encontrarem a montante desses mesmos dilemas, poderão levar a uma revisão dos 27 alicerces sobre os quais se tem construído todo o edifício da moderna teoria do conhecimento. Assinalemos um primeiro contraste: numa obra recente de introdução à Epistemologia Contemporânea de J. Dancy, pode ler-se nas primeiras páginas: "A epistemologia é o estudo do conhecimento e a justificação da crença. As perguntas centrais para as quais os epistemólogos tentam dar resposta incluem: «Quais as crenças que são justificadas e quais não o são?», «O que podemos conhecer, se é que podemos conhecer alguma coisa?», «Qual é a diferneça entre conhecer e ter uma verdadeira crença?», «Qual é a relação entre ver e conhecer?»"6. São estes os problemas que dominam e condicionam a reflexão epistemológica - o problema da justificação do conhecimento, da sua possibilidade, da sua estrutura, da sua relação com a experiência. Com muita frequência, abordar o problema do conhecimento implica uma análise prévia dos argumentos cépticos, para tentar passar a uma indagação sobre a justificação das crenças. Só uma crença justificada pode constituir propriamente conhecimento científico. Na teoria aristotélica do conheci- mento, o problema da justificação não constituirá o tema central na abordagem das questões epistemológicas. Aristóteles não procura defender a possibilidade do conhecimento, não certamente por ignorar os argumentos cépticos, mas porque adopta a estratégia de partir da experiência humana e sua relação com o mundo como um dado, e procurar compreender como se organiza,como se constitui, nos diferentes campos da actividade mental, e como se inter-relacionam os vários estados cognitivos do sujeito, integrados no contexto da vida e actividade humanas. 1.1. Aporias da definição de ciência 6 Dancy, J. -Epistemologia contemporânea, p. 13. 28 Nos primeiros diálogos platónicos, Sócrates apresenta várias perspectivas sobre o conhecimento, que constituem o que se poderia designar pela teoria epistemológica da juventude de Platão. Não há nestas primeiras teses sobre o conhecimento qualquer forma de debate céptico que tem estimulado a reflexão epistemológica.. À pergunta: "Qual é o primeiro, o céptico ou o epistemólogo?", a resposta seria:" Nem um nem outro. O primeiro é Platão". A epistemologia pergunta o que é o conhecimento e como se adquire conhecimento. O cepticismo, tentando desconstruir a reflexão epistemológica, formula difíceis questões sobre a possibilidade de alcançar algum conhecimento, tal como este é definido pelo epistemólogo. E, embora se possam encontrar elementos de um proto-cepticismo em Xenófanes, Parménides, Demócrito e nalguns dos sofistas, Platão não se propõe enfrentá-los nas suas primeiras obras. Pelo contrário, os diálogos da juventude parecem transmitir um programa proto-céptico, através de argumentações de Sócrates que se propõem refutar personagens que directa ou indirectamente apresentam pretensões fortes em relação ao conhecimento. No entanto, estas disputas socráticas não podem considerar-se propriamente como uma atitude céptica: o que Sócrates se propõe é denunciar falsos ídolos, com o intuito de reconduzir a busca de definições verdadeiras. Quando nas suas interpolações desmascara as falsas pretensões de conhecimento dos seus interlocutores, não o faz atacando a verdade, a certeza ou a fonte de conhecimento; a sua atitude é mais a de desafiar a segurança daqueles que presumem conhecer, exigindo-lhes uma definição válida para todas as circunstâncias7. No Menon, diálogo de transição, Platão apresenta o célebre "paradoxo heurístico": como procurar algo que não se conhece de todo? Se porventura se encontrasse o que se procura, como saber se efectivamente é o que se procura, uma vez que não se sabe o que se procura? (Cfr 80d) Assim exprime Menon a sua perplexidade, que é traduzida por Sócrates no dilema de toda a investigação: não se pode investigar o que se sabe, uma vez que já se sabe, nem tão-pouco o que não 7 Cfr Woodruff, P. - "Plato's early theory of knowledge" in Everson, S. Epistemology, pp. 60-84. 29 se sabe, porque não se sabe o que se pretende investigar (cfr 80e). A solução platónica proposta por Sócrates, é a afirmação que todo o ensino e investigação não é senão reminiscência de algo previamente conhecido (81d5, 86bc)8. O conhecimento não é mera "opinião verdadeira", mas opinião verdadeira plus razões que fundamentam essa opinião: o conhecimento difere da opinião verdadeira na sua relação com um aitias logismos. 1.1.1. Teeteto e a definição de episteme A discussão das três definições de episteme propostas por Teeteto é ocasião para o exame de diversas teses epistemológicas que prevalecem como tópicos fulcrais na epistemologia contemporânea. O diálogo divide-se em três grandes andamentos, correspondentes ao exame das três definições: a ciência é sensação; a ciência é opinião verdadeira; a ciência é opinião verdadeira acompanhada de razão (logos). A ciência-sensação origina uma crítica na qual se debatem argumentos que antecipam, de certo modo, toda a discussão em torno do fenomenalismo, da natureza das "aparências"; identificar ciência com sensação conduz à revisão da famosa afirmação de Protágoras - "o homem é a medida de todas as coisas" -, tese que se revela auto-refutatória, como Sextus o demonstra. Tudo o que "aparece" é verdade, segundo Protágoras, implica que também é verdade que nem tudo o que "aparece" é verdade: se o subjectivismo da tese é levado até ao fim, esta auto- refuta-se a si mesma, pois terá que aceitar também a verdade da opinião de que nem toda a "aparência" é verdadeira9. Depois de examinar a segunda proposta de definição - ciência-opinião verdadeira -, que suscita uma elucidação sobre o problema do erro e da opinião falsa, a episteme é definida como "opinião verdadeira acompanhada de uma razão" 8 Cfr Woodruff, P., art. cit., p. 82: exposição e discussão da tese platónica da reminiscência. 9 Para uma análise da auto-refutação da tese de Protágoras, cfr Burnyeat, M. F. - "Protagoras and self-refutation in Plato's Theaetetus" in Everson, S. - Epistemology, pp. 39-59. Cfr Teeteto, 169d- 172c. 30 (meta logou alethe doxan episteme einai) (201c). Desprovida de razão (alogon), a opinião verdadeira não constitui ciência. A definição responde à questão fundamental da epistemologia: O que se deve acrescentar à opinião verdadeira para que se constitua como ciência? A resposta de Platão vai para além da mera exigência de uma justificação, de razões fortes para fundar a opinião. A "razão" (logos) requerida para que a opinião verdadeira seja ciência corresponde à resposta à pergunta "O que é x?", que leva Platão a dar uma explicação em termos de análise dos elementos últimos e originários que constituem "x". Destes elementos últimos não é possível apresentar uma "razão", eles são, de certo modo alogon, e consequentemente incognoscíveis. A assimetria na estrutura do conhecimento é manifesta: os compostos são cognoscíveis, deles é possível dar uma razão, mas os simples são incognoscíveis, embora constituam, em última análise, a razão que explica os compostos10. A razão (logos) pertence ao nível dos compostos, os elementos últimos são apenas designáveis, denomináveis. No entanto, Platão pensa que o conhecimento deve basear-se em conhecimento, conhecer p significa conhecer a explicação, ou a razão de p, ou seja conhecer p requer conhecer q, a razão (logos) de p. Por sua vez, conhecer q, exigirá conhecer a razão de q, e assim sucessivamente. Para evitar um infinito regresso, parece necessário admitir algumas verdades básicas: se a base de todo o conhecimento forem os elementos últimos, estes são desprovidos de razão (logos)11, e portanto incognoscíveis, o que viola o princípio, que Platão parece defender, de que o conhecimento se basea em conhecimento; na República, esta exigência de um fundamento ou razão básica de todo o conhecimento, faz depender o conhecimento da compreensão da ideia de Bem, e apresenta-o dotado de uma estrutura hierárquica. Neste diálogo as metáforas do conhecimento são sobretudo as do ascenso da alma até uma 10 Cfr Annas, J. "Knowledge and language: the Theaetetus and the Cratylus" in Schofield, M. e Nussbaum, M. - Language and Logos, pp. 95-114. 11 É patente a proximidade com a argumentação de Wittgenstein no Da Certeza, §§ 204-205: "Mas a fundamentação, a justificação da evidência tem um fim - mas o fim não é o facto de certas proposições se nos apresentarem como sendo verdadeiras…" "Se o verdadeiro é o que é fundamentado, então o fundamento não é verdadeiro nem falso." 31 compreensão total, à luz da ideia de Bem. As duas caracterizações da noção de conhecimento - requer logos e tem uma estrutura hierárquica, - obrigam a reconhecer que este não se pode basear, em última análise, em elementos incognoscíveis. Não passará esta interpretação de logos como decomposição nos constituintes últimos e simples de cada composto, de um sonho? (201e)12. De facto o "sonho" de alcançar os elementos simples e últimos de qualquer complexo prevalece como uma ilusão da análise: exemplos múltiplos e em diversos registos dessa ilusão são as mónadasde Leibniz os objectos simples de Wittgenstein, os "indivíduos" de Russell, as proposições protocolares os sense data (na decomposição estrutural do conhecimento). O par simples/composto funciona como um atractor em diferentes domínios - do lógico ao epistemológico e ontológico, e conduz "facilmente a toda a espécie de superstições filosóficas", segundo palavras de Wittgenstein13. A definição proposta no Teeteto conduz a uma discussão última sobre os possíveis sentidos de logos, todos eles considerados insatisfatórios; o diálogo é aporético e a 3ª definição apresentada não representa definitivamente a concepção platónica sobre a episteme - o problema da justificação da crença depara-se com aporias não resolvidas no diálogo e deixadas em aberto; no entanto, esta definição revive hoje ainda como um ponto de referência na formulação das questões centrais da epistemologia: o conhecimento é em geral apresentado nesta "definição tripartida"14 como "crença verdadeira justificada". O que significa "justificada"? A justificação pode exigir a aceitação de crenças básicas, que não carecem por sua vez de mais justificação porque são evidentes, porque se auto-justificam, porque constituem os alicerces a partir dos quais se constrói toda a estrutura do sistema de crenças. As várias formas de fundacionalismo pressupõem a divisão das crenças em básicas e derivadas: as primeiras não necessitam de justificação e servem de 12 Uma interessante discussão sobre o "sonho de Sócrates" pode encontrar-se em Rosen, S. - The Limits of Analysis, pp. 120-128. 13 Investigações Filosóficas, § 49. 14 Cfr Dancy, J. - Epistemologia Contemporânea, p. 39. 32 base e fundamento para a justificação de todas as outras; as atitudes coerentistas, por seu lado, defendem uma perspectiva segundo a qual no sistema de crenças não há crenças básicas injustificáveis, mas a justificação passa por um critério de coerência interna do próprio sistema. O problema da fiabilidade da crença ocupará também um lugar central entre as questões epistemológicas: o "fiabilismo" defende que uma crença adquire um estatuto epistémico favorável se tiver uma ligação fiável com a verdade15. A relação de uma crença com a verdade, pode assentar no facto de o processo que conduziu até ela ser fiável, isto é, as razões dessa mesma crença não ocorreriam se esta não fosse verdadeira. O "fiabilismo" é normalmente considerado uma teoria "externalista" porque apela para factores relacionados com a verdade, e esta é "externa" ao sujeito da crença. A herança da definição platónica e seus problemas, apesar dos avatares das noções de episteme e de justificação, permanece viva na epistemologia contemporânea, mesmo quando não explicitamente mencionada: as questões suscitadas pelas discussões do Teeteto continuam a alimentar os debates contemporâneos da epistemologia. 1.2. A "epistemologia naturalista" de Aristóteles Como dissémos já, Aristóteles não centra a sua filosofia do conhecimento numa indagação sobre a própria possibilidade de conhecer, mas parte dos estados cognitivos do sujeito como dados, procurando averiguar como se constituem, como se organizam e se integram no contexto da vida e actividade humanas. Por isso mesmo, não encontramos em Aristóteles uma obra exclusivamente dedicada ao problema do conhecimento. Os II Analíticos apresentam uma explanação das condições necessárias e suficientes para a episteme entendida como uma ciência exacta, dedutiva; esta constitui uma das formas de conhecimento, conhecimento científico, entre outras, como o conhecimento perceptivo, a sabedoria prática, etc. 15 Cfr Dancy e Sosa - A Companion to Epistemology, "Reliabilism, pp. 433-436. 33 Não existe tão-pouco na obra aristotélica nada que se possa assimilar a um discurso do método, nem uma atenção centrada no problema da fundamentação da experiência humana como experiência de um mundo real e objectivo. A filosofia post-cartesiana terá sempre que enfrentar-se com esta questão, uma vez que a dúvida radical originou um recuo para o domínio seguro da experiência privada; dado este recuo, torna-se imprescindível reestabelecer a viabilidade da relação da experiência com o mundo objectivo. A recuperação da objectividade será inevitavelmente o primeiro passo para justificar o conhecimento. No entanto, o recuo para a órbita do puramente subjectivo, deixará sempre uma cicatriz indelével em qualquer investigação epistemológica que adopte este ponto de partida. O ponto de vista da subjectividade impõe a qualquer abordagem do problema do conhecimento a necessidade de uma recuperação da objectividade, recuperação sempre problemática porque o par subjectivo/objectivo apresentar-se-á sempre de um modo disjuntivo e dilemático. Aristóteles assume outro ponto de partida: a do sujeito agente e cognoscente numa relação directa com o mundo real, através da experiência e da acção. Esta relação directa via experiência e acção, constitui para Aristóteles um dado, não uma conclusão mais ou menos fundada. Como se dá esta relação será um tópico fulcral na teoria aristotélica da percepção e do conhecimento em geral. Num certo sentido, a epistemologia aristotélica tem um carácter “naturalista” e apresenta algumas afinidades com o programa de Quine de uma “epistemologia naturalizada”: o pensador “naturalista" tenta clarificar, compreender o sistema global – a experiência e a acção humana nas suas inter- relações com o mundo – a partir de dentro, como o marinheiro de Neurath que reconstrói o barco no alto mar; não considera a epistemologia como uma disciplina separada, a priori, mas como uma parte integrada em todo o conjunto de crenças, conhecimentos e relações com o mundo. No entanto, o “naturalismo” de 34 Aristóteles não é levado ao ponto de integrar a epistemologia nas ciências naturais, adoptando um cientismo extremo16. 1.2.1. II Analíticos: Os princípios da demonstração O conhecimento científico (episteme) apresenta uma estrutura demonstrativa17, rigorosamente dedutiva18. Partindo de premissas conhecidas, a dedução (syllogismos) chega a uma conclusão. Todo conhecimento demonstrativo parte, portanto de algo já conhecido. O que é conhecido é o que pode ser ensinado ou aprendido. "Todo o ensino é de coisas previamente conhecidas" - é a primeira afirmação com que abrem os II Analíticos. No caso do conhecimento dedutivo, o que é "previamente conhecido" são os princípios da demonstração. No caso da indução (epagoge), conhece-se previamente a verdade dos casos particulares a partir dos quais se deriva a generalização indutiva. A teoria de Aristóteles apresenta uma resposta ao problema sobre a possibilidade de qualquer investigação levantada no Menon de Platão (80d-e): ou se conhece já o objecto que se pretende investigar, e, nesse caso não se dá propriamente uma situação de investigação ou de busca, ou não se conhece, e tão-pouco é viável investigar ou procurar sem saber o que se investiga ou procura. A resposta platónica opta pela pressuposição de um conhecimento pré-existente, implícito e tácito, a partir do qual assenta todo o processo de investigação. A alternativa aristotélica consiste em aceitar que toda a investigação parte de um certo conhecimento prévio, mas rejeita 16 Cfr. Taylor, C. C. W. – “Aristotle’s epistemology” in Everson, S. Epistemology, pp. 116. Sobre o “naturalismo” de Quine, cfr. Haack, S. – Evidence and Inquiry, cap. 6, onde se mostram as ambiguidades de Quine no uso genérico do termo “ciência”. 17 Cfr Gourinat, J. B. - "Aristote et la forme démonstrative de la science", in Wagner, P. (org.) - Les philosophes et la science, pp.581-623. 18 Um texto do livro VI da Ética Nicomaqueia propõe uma definiçãode episteme, reportando-a aos II Analíticos: "Deste modo a ciência é uma disposição para produzir demonstrações (hexis apodeiktike), acrescentando a esta definição todas as outras características mencionadas nos Analíticos; com efeito, quando um homem acredita de uma certa maneira, e os princípios lhe são familiares, então ele sabe (epistatai). Se os princípios não lhe são mais familiares do que a conclusão, é porque ele possui apenas a ciência por acidente" (VI, 3, 1139b31-34). 35 a caracterização platónica da investigação como reminiscência de uma visão originária das Formas. Para Aristóteles, saber consiste em crer de uma certa maneira, uma disposição que assenta numa maior familiaridade com os princípios do que com a conclusão. Não é o silogismo ou demonstração, que é da ordem do logos que por si só comunica um saber com a convicção que lhe é própria. Este só produzirá ciência se se apoiar numa disposição previamente constituída - todo o saber consiste numa articulação entre duas disposições ou hábitos (hexis), o nous e a episteme. Esta é uma disposição para produzir demonstrações (hexis apodeiktike); mas esta dispoisção funda-se na posse dos princípios da demonstração, que é própria do nous19. Segundo Aristóteles, o que se conhece previamente a qualquer demonstração são os princípios da demonstração, que não podem ser eles próprios objecto da episteme, ou seja não pode haver demonstração dos princípios (II Analíticos, I. 3). Levanta-se então a questão: não sendo conhecidos por demonstração - os princípios são indemonstráveis - qual a forma de conhecimento destes mesmos princípios? O conhecimento ou apreensão dos princípios, não pertencendo à episteme, deve caber ao nous. Qual a natureza do nous? O conhecimento teorético é constituído por episteme e nous, e, sendo a primeira forma de conhecimento, um conhecimento dedutivo, demonstrativo20, segue-se que o modo de alcançar o nous, enquanto estado cognitivo de conhecimento dos princípios, é a indução. Existe uma íntima conexão entre indução (epagoge) e apreensão dos princípios. No entanto, também a indução 19 Cfr Boulakia, L. - "A propósito da força da demonstração", Análise, n. 20, pp. 17-46. 20 Note-se, porém que Aristóteles distingue entre demonstração ou silogismo propriamente ditos e ciência: esta é a posse do silogismo e é esta disposição ou hábito subjectivo que Aristótleles pretende caracterizar. A sua interrogação é sobre o que possui um sujeito que possui uma demonstração, em que consiste esta posse? Cfr Brunschwig, J. - "L'objet et la structure des Seconds Analytiques d'après Aristote" in Berti, E. (ed.) - Aristotle on Science: The Posterior Analytics, Pádua, 1981, p. 71: "Não saberíamos atribuir a Aristóteles uma identificação pura e simples da demonstração e da ciência demonstrativa sem o acusar de um erro categorial que ele dificilmente poderia cometer: a demonstração sendo uma espécie de silogismo cai sob o género do logos, do discurso; a ciência demonstrativa é um dos estados mentais ou intelectuais nos quais nos encontramos capacitados para dizer o verdadeiro". 36 procede a partir de algo previamente conhecido. Em que consiste este conhecimento, e como se tornam conhecidos os princípios da demonstração a partir desse conhecimento prévio? A resposta a esta questão é dada por Aristóteles em II, 19: os princípios são conhecidos por indução através da memória. As percepções sensíveis persistem em nós depois do acto perceptivo e produzem memória; e a reiteração da memória dá origem à experiência (empeiria); e a experiência, que não é senão a presença do universal na psyche, como um todo, constitui o ponto de partida da techne e da episteme: techne, no domínio dos processos, episteme no domínio dos factos (100a 5-15). Aristóteles afirma claramente a capacidade da percepção sensível de originar a apreensão do universal ("a sensação engendra o universal"): embora seja o particular que é percepcionado, o acto da percepção implica o universal, por exemplo, "homem", e não apenas "um homem, Calias". Trata-se de um processo indutivo, no qual se dá uma passagem directa da percepção à apreensão do universal. Este é captado na ocasião de um encontro singular, não por um processo de abstracção, mas por uma progressiva clarificação da noção do próprio singular. O estado cognitivo no qual se apreendem os princípios é nous, sobre o qual Aristóteles nada mais diz sobre como actua, limitando-se a repetir a caracterização dos dois estados cognitivos nos quais se capta teoreticamente a verdade, episteme e nous: episteme, conhecimento demonstrativo tem que partir de princípios indemonstráveis, dos quais não pode, portanto haver episteme, mas sim nous, por indução a partir da percepção sensível21. A teoria sobre a apreensão dos princípios e sua indemonstrabilidade tem sido motivo para considerar a epistemologia aristotélica como fundacionalista: os princípios são proposições que se auto-justificam e constituem os princípios básicos de todas as ciências, que não se podem justificar por nenhum outro princípio ou proposição mais fundamental dentro da ciência. Se se entende por fundacionalismo a tese segundo a qual todo o sistema de crenças justificadas 21 Cfr Taylor, C. C. W. - art. cit., p. 127. 37 assenta, em última análise em crenças imediatamente justificadas, ou seja todo o conhecimento apresenta uma estrutura que tem na sua base alguma forma de crença ou conhecimentos que não carecem eles mesmos de outros para a sua justificação, poderá considerar-se a teoria aristotélica como fundacionalista22. De facto os princípios da demonstração auto-justificam-se a si mesmos, e não é possível demonstrá-los. No entanto, Aristóteles exige também que todo o conhecimento assente na base da evidência sensível da percepção, considerando esta o ponto de partida para todo o processo indutivo, que culmina na apreensão dos princípios. Poderia considerar-se a epistemologia aristotélica um fundacionalismo com duas frentes: a dos princípios da demonstração e a da evidência da percepção sensível. Como reconciliar estas duas frentes, ou estas duas formas de conhecimento imediato, que se auto-justifica a si mesmo? A concepção do conhecimento científico (episteme), baseada no critério da demonstração e dedução rigorosas, colide com o reconhecimento da necessidade de basear a investigação sobre a natureza na observação dos fenómenos e aparências (phainomena)23. A sua Historia Animalium é uma colectánea de observações de fenómenos, apresentadas como uma introdução preliminar imprescindível para qualquer teorização. E a sua atitude em relação à investigação filosófica mostra claramente a necessidade de partir da consideração das "aparências", que neste caso são as opiniões várias a respeito de um problema24. O método que Aristóteles adopta é o dialéctico, o mais adequado para procurar os primeiros princípios das ciências. Através de um exame e confronto das diversas opiniões (endoxa), e sobretudo das opiniões da maioria e dos mais sábios, a investigação procede a uma selecção das opiniões mais adequadas e a uma rejeição daquelas que apresentam incompatibilidades com o senso comum, ou com o 22 Sobre as várias formas de fundacionalismo, cfr Haack, S. - Evidence and Inquiry, pp. 14 e ss. E pp. 34-51. Cfr também Alston, W. P. - "Foundationalism" in Dancy, J. e Sosa, E. - A Companion to Epistemology, pp. 144-147. 23 Sobre esta tensão na metodologia aristotélica cfr Owen, G. E.L. - "Tithenai ta Phainomena" in Barnes, Shofield e Sorabji, Articles on Aristotle I, pp. 113-126. Owen sublinha o contraste entre o método da ciência proposto nos II Analíticos e o que preconiza na Física. 24 Cfr Et. Nic. 1145a2-7. 38 conjunto de opiniões mais prováveis: neste caso a argumentação releva sobretudo de um critério de coerência. E o coerentismo, em oposição ao fundacionalismo rejeita qualquer dependência de um fundamento último e infalível25. Vários problemas epistemológicos actualmente em debate encontram uma antecipação nos escritos de Platão e Aristóteles: no primeiro, a ciência-sensação enuncia as controvérsias em torno do fenomenismo e suas aporias, das proposições protocolares que virão a ser objecto de debate entre os membros do Círculo de Viena, a hipótese solipsista como consequência última do estatuto subjectivo da sensação e as dificuldades que esta consequência paradoxal levanta para a objectividade do conhecimento científico; o estatuto da crença e o problema da sua justificação levado, no Teeteto até um fundacionalismo extremo e aporético; em Aristóteles, o exame do estatuto cognitivo de uma ciência rigorosamente dedutiva, os fundamentos da demonstração e a relação entre conhecimento indutivo/ dedutivo, ou a hipótese intuicionista como princípio justificativo de todo o conhecimento; a conciliação de um certo fundacionalismo com um princípio de coerência na arquitectónica da ciência considerada como processo zetético, no próprio processo da sua constituição; e, como veremos adiante, uma concepção do conhecer que contorna ou ultrapassa os dilemas assentes na consideração disjuntiva do binómio sujeito/objecto. Ler hoje os texos clássicos, constitui por isso uma ocasião para confrontá- los com toda esta problemática latente, nalguns casos, explícita noutros, e detectar continuidades bem patentes nos diversos modos e estilos com que se têm abordado os problemas do conhecimento. 25 Fundacionalismo e Coerentismo tem sido apresentados, na Epistemologia Contemporânea como duas teses opostas. No entanto, estas duas posições não são necessariemtne incompatíveis, como o mostra S. Haacks em Evidence and Inquiry. Propõe mesmo um neologismo - "funderentismo" - para traduzir uma teoria que concilia as duas teses aparentemente opostas. 39 2. Justificação: Fundacionalismo versus Coerentismo 2.1.Os argumentos: um falso dilema Formular o problema da justificação dos nossos conhecimentos em termos dilemáticos levou a um desencanto que propugna pelo fim da epistemologia: os seus problemas falaciosos e mal concebidos deveriam ser abandonados ou substituídos por questões científicas sobre a cognição humana. Um desses dilemas é precisamente o que se esboçou na referência ao par fundacionalismo versus coerentismo. Ele coloca-nos perante a necessidade imperiosa de optar entre duas imagens: a do elefante sobre uma tartaruga (o que é que sustém a tartaruga?) ou a de uma enorme serpente do conhecimento hegeliana com a cauda na boca (Onde é que tudo começa?) E a única opção razoável será rejeitar ambas imagens26. Uma teoria fundacionalista defende as seguintes teses: 1. Algumas crenças justificadas são básicas, sendo uma crença básica justificada independentemente de qualquer fundamento noutra crença. 26 Cfr Sellars, W. – “Empiricism and the Philosophy of Mind”, in Science, Perception and Reality, p. 170. 40 2. Todas as outras crenças justificadas derivam das crenças básicas: justificam-se mediante o fundamento directo ou indirecto numa ou várias crenças básicas. Em que consistem estas crenças básicas, qual a relação entre estas e as derivadas, são questões que recebem diversas respostas segundo as diversas formas de fundacionalismo. A tese central do coerentismo defende que a justificação é exclusivamente um problema de relação entre as crenças, e é a coerência entre crenças dentro de um mesmo sistema que constitui o critério principal para justificar uma crença. Assim, a teoria afirma: 1. Uma crença é justificada se e só se pertencer a um conjunto coerente de crenças. 2. Não há uma distinção de estatuto epistémico entre as crenças, nenhuma ocupa um lugar peculiar dentro do sistema coerente27. Estas duas posições apresentam-nos dois modelos da estrutura do conhecimento aparentemente opostas e irreconciliáveis: segundo o fundacionalismo todo o conhecimento assenta numa base absolutamente primeira, originária, que não carece de justificação por se auto-justificar a si mesma, pela sua evidência imediata, pela sua infalibilidade, incorrigibilidade, certeza. A estrutura do conhecimento apresenta a forma de uma pirâmide construída a partir dessa base fundacional, alicerce último de todas as crenças e conhecimentos daí derivados. Há uma distinção radical entre os dados de base, não inferenciais, não derivados, mas primeiros, imediatos. Justificar qualquer conhecimento ou crença significará retroceder na série até estes dados últimos, base segura e certa na qual, por inferência se podem jutificar outras crenças e conhecimentos. São estes dados 27 Cfr Haack, S. – Evidence and Inquiry, pp. 13-18. 41 últimos que estabelecem o elo de ligação de todo o conhecimento com a verdade. Renunciar a esta base significaria inviabilizar a possibilidade de justificar qualquer crença ou conhecimento. O coerentismo, apresenta o conhecimento como uma estrutura na qual não há fractura entre crenças primeiras, básicas e crenças inferenciais ou derivadas. Numa perspectiva holística, é o conjunto de crenças que faz sistema e o critério de justificação será um critério interno de coerência; qualquer conhecimento justifica- se através da sua integração e conciliação com as restantes crenças. Se se apresenta algum contraste ou incompatibilidade de uma crença com o sistema não se justifica a aceitação dessa crença, por não satisfazer o critério de coerência. Enquanto no caso do fundacionalismo, a pirâmide do conhecimento assenta numa base com um estatuto epistémico especial, no coerentismo o sistema não reconhece qualquer estatuto epistémico peculiar a um certo tipo de crenças ou conhecimentos: todos estão nivelados num mesmo estatuto e sustentam-se mutuamente, sem qualquer necessidade de recorrer a uma forma peculiar de conhecimentos básicos, auto-justificando-se a si mesmos, ou apresentando-se como não necessitados de justificação. Aparentemente estes dois modelos excluem-se mutuamente, e constituem duas perspectivas exaustivas do modo de conceber estruturalmente todo o conhecimento. E, sendo assim, seria necessário optar por um ou outro destes modelos. Mas será de facto assim? Para explorar o dilema será necessário, em primeiro lugar, situar o contexto do problema que ambas posições pretendem resolver; em segundo lugar, fazer uma breve análise dos principais argumentos de cada uma destas posições. O apelo a dados últimos, não inferenciais, no qual assenta todo o conhecimento pode ocorrer tanto no contexto da justificação do conhecimento, como no da génese ou origem de todo o conhecimento. Trata-se de duas questões radicalmente diferentes: no primeiro caso, a partir de uma crença segue-se um processo restrospectivo na busca de outra(s) crença(s) que justifique a primeira. 42 Neste processo restrospectivo o fundacionalismo exige que a série não seja infinita, mas que se encontre um termo da série, a partir do qual se dê origem a todo o processo reconstrutivo da justificação; o coerentismo não considera esta série de um modo linear, mas como uma espiral na qual se dão entrecruzamentos entre diversas crenças e conhecimentos que se sustêm mutuamente. Se o que está em causa é
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