Buscar

Kierkegaard - O Banquete (doc)

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 171 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 171 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 171 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

0 BANQUE TE
SOREN KIERKEGAARD
Título da obra no original: STADIER PAA LIVETS VEI
SOREN KIERKEGAARD
0 BANQUETE
qL~
(I.N VINO VER1TAS)
TRADUÇÃO DE ÁL V ARO RIBEIRO
3.- EDIÇÃO
GUIMARÃES EDITORES
APRESENTAÇÁO
S&rm Kierkegwrd é nome já suficientemente conhecido entre os leitores mais ilustrados, não só porque aparece escrito em iornais, revistas e
livros que ~nam a cultura do nosso tempo, m.as também porque algumas obras daquele fiffisofo se encontram tradu~ eM POrtuguêS e,
foram editadas em Portugal. A Arte de Amar, ou Diário do Sedutor, foi traduzida m 1911 por Mdr&o Ale~ o publicada pela rAvraria ~ sica Editom, de Lásboa, para a qual trabalhou também Fernando Pessoa. Mais tarde, em 1936,
0 Des~o Humano foi traduzido por Adolfo Casais Monteiro para a colecçdo «~ofia e Reli~», dirígida por Leonardo Coimbra para aoo-
lher as obras dos sem discípulos, e editada pela Livraria ~res Martins, do Porto. Durante a segunda guerra mundial, quando a filosofia a~ voltou a ser objecto de críticas, controvérsias e
polémicas, desenvolveu-se e divulgou-se o existencialismo que, nas suas expressões universitárias e também extra-uníversitárias, conseguiu ter representação entrenós. Depoisa Encíclica Humani Generis (1950) contribuiu também para
8 PREFÃCTO
despertar ~r interesse pelos debates em torno da ortodoxia e da keterodoxia da filosofia existencial. A obra de Kierkegaard tem sido, assim, estudada pelos intelectuais portugueses e tende a ser cada vez mais bem acolkida pelo grande público, a ser lida com curiosidade, interesse e paixão.
Soren Kierkegaard é um escritor que faz pensar. Fazer pensar, é, aliás, o intento primacial do escritor e o sinal verídico do seu êxito. Se por vezes alguns leitores, e algumas leitoras, dizem procurar livros amenos que libertem de preocu, paç6es intelectuais, manifestando assim preferência; pelas obras erróneamente designadas de artifÍc@o ou de ficção, tais leitoras e tais leitores desse ~o confessam que o seu pensamento tende mais para a passividade do sonho, do devaneio, da fantasia do que para a actividade intelectiva, mas esquecem que imaginar também é pensar. A ~ de que o leitor de boa ou má literatura requer obras que o façam pensar, imaginando ou concebendo, está exactamente na facilidade em que se aborrece não só dos livros já 1~ mas também de encontrar semelhanças e repetições nas obras de, fabulação.
Se a leitura não fizesse pomar, não sería um
prazer nem ser= um meio de cu2tura. É claro que cada leitor prefere pensor no que lhe é agradável, no que lhe praz,,no que lhe interessa, sem,
0 BANQUETE 9
muitas vezes atender a que assim se ~e de um
mundo para outro mundo, sem oiboervar que nessa evasão -vai transformando a sua delicada perwwlidade. A alteração, digamos, o aperfeiçoamento do gosto literário, que o leitor regista no seu caderno memorial, é um dos facthres mais importantes, de educação e de evolução.
Ocorre imediatamente a quem ~e a já muitas vezes repetida comparação entre a conversa com os livros e a conversa com as pessoas amigw e amadas, oomparação que leva à adunação:
- no íntimo só queremos conversar com quem, ou com o que, essencialmente nos fale de amar.
Ora é a pensar no amor que nos convida e-&ta obra do filósofo dinamarquês.
0 pmblema do amor apresent~ singularmente a cada ente humano, com a nudez estruturat que nenhum enunciado reveste ou disfarço &uficientemente; não pode ser evitado, não pode ser resolvido por procuração. Há, porém, outro estádio, ou outra imtdncia a oonM~. Quando pareça resolvido negativamente, pela renúncia ou pela sublimação, quando pareça resolvido positivamente na escala móvel que vai da estrita normai~ moral até à imoral~ viciosa, o pr<>blema do)amor reaparece a exigir mais perfeitos termos de satisfação, sossego e tranquilidade. 0 problema do amor inquieta, perturba, atomenta durante a vida inteira o ser humano que com tal
10 PREFÃCIO
dor “ pagando o preço do seu ideal de perfeiç50. Ninguém se encontra ~feito com a solução prdtioa por que optou, e aqueles que sinceramente se @dizem felizes com as consequên~ da soluçt@o qw adoptaram, não fazem mais do que procla- ~r o vencimento do problema erótico pela vitóna de uma virtude superior.
o problema do amor nos seus limites naturais é in~oeptíwl de uma solução estável. T~e a ser rek~do com a moral e com a religião, pelo que interessa a toda a gente. Assim, aqueles que menos se ocupam já com a sua própria vida erótica são o& que mais se preocupam com o que o amor é, ou deve ser, na vída dos outrots.
A série de ~~, expM~M e vícissitudes por que passa o homem que ama, ou que ndo ama, altera, contradiz e desmente a doutrina adoptada na adolescência ou na mocidade. Esta inst«bilidade mental será tanto maior quanto mais o home-m viver em cur~de pela literatura e pe” ww sucedâneos, mais ou menos espectacuZares. Cada um de nós está assim a ser permanentemente convi~ a repensar o problema do amor, que ndo é um problema dos livros, própi,io só de interessados ou especialistas m Testritos domínios da cultura, porque é um “blema humano, no sig%ifi~ universal da Palavra, porque é, enfim, um Problema fil~fico.
0 BANIQUETE 11
Hd até pen~es para os ~ o problema do amor, no estrito sentido das reacções do homem com a mulher, será aquele pelo qual se
determina a autenticidade dos ~emas filosóficos e o valor das obras de filosofia. Quem pertencera esta escola, corrente, ou tendência terá de se dedicar a estudos dificí~ para conseguir chegar ao âmago dos sistemas de filwofia, Raros são os escritores que «4m pensam, muitos não atribuem alta dignidade a este problema de antropologia, e quase todos o abstra,&m das suas obras esp~tivas.
Eliminar o problema do amor, nãb o mewzonar em livros que pareoem de estrutura d~ca e de finalidade educativa, parece-nos omíssão contraproducente no plano da cultura &u~ e
na fase, actual da civilização. A falta de medita- ção corajosa sobre um problema a que ninguém se pode recusar terá por consequência a admissdo de noções erróneas que se difundem por simplismo ilusório ou por auto-sofismação. Os preconc,eitos, ou falsos conceitos, e os prejuízos, ou falsos juizos, que estruturam, a opinião das pessoas consideradas bem pemantes, se fossem submetidos a um momento de eluc~ão, mereceriam a imediata. repulsa do pensador envergonhado. B indispensável um esforço intelectual da categoria do heroi8mo, para manter sempre presente a mais elevada doutrina do amor.
12 PREFÃC]DO
Temos de tolerar, --na roti)m da vida quotidiana, em que maior é o número das horas de desatenção, à mais alta verdade, - a doutrina fdcil, medíocre e baixa que, por correr entre o migo, não suscita controvérsia nem discussão. A doutrina entre nÔs vigente é a doutrina naturalista, segundo a qual as relações do homem com a mulher, que englobamos no termo,,de amor, se explicam pelo instinto de reprodução nas espécies biológicas. Doutrina naturalista, dizemos, aceitável para os que não lobrigam a distinção entre Natureza decaída e Natureza redimida. Apresen, ta-se a ideia de imtinto com palavras de, condescendência o indulgência, apresentarse a ideia de reprodução e^ um bem parra a família e para outras colectividades mais amplas, completando-se a biologia coma demografia. A extrair desta doutrina, a que falta a ideia de g&nese, todas as consequ~as lícitas, chegaríamos a admitir o que se encontra descrito em certas utopias imaginadas e raciocinadas, mas que repugna à consciência e ao inconsciente da maioria das pessoas cultas. Escusama@ de tramformar a alusclo compreensível em descrições de realista crueza.
Alarmam-se os moraZistas que, por engenho, inventam o manto propício para cobrir os aspectos desgostantes das relações animais, e, sem que analisem os motivos profundos dos ritos etnográficas, parecem querer fundamentar e legiti-
0 BAIITQUETE 13
mar a, moraZ em fixos ou ínfixos preconceitos ~is. Assim se estabelece na consciência do moralista a duplicidade,- aliás tão frequente, -
de consentir que os instintos se satisfaçam a Ocultas e de respeítar as conveniências morais. Nada impede, p~m, o ~em de oonfessar a amigos e a cionhecidos o que deveria ficar Para sempre em segredo, e na in~fid~ de»wntir a professada moral.
Faz~ passar o problema do amor por estas d~ instâncias, a Ciência e a Moral, dão-se por contentes muitas possoas que deveriam pensar em tem~ de maior elevação. Infelizmente, porém, nos nossos ambientes de mediana cultura é mais conhecida a Metafisica do Amor do Schopenhauer do que o Sentido do Amor de Soloviev, mais estimado o De l'Amour de Stend” do que os Estádiossobre el Amor de Ortega y Gasset, apenas porque domina ainda entre nós o preconcoito calvinista de que o pessimismo Moral cOincide com a máwima lucidez ínteZeetual.
Há, certamente, alguma.9 almas mp~es às ~ repugna esta doutrina medíocre e que pressentem, se é que não sentem, a luz difusa do remota verdade. Ê-lhes difícil c~ber e exprimir a doutrina por que anseiam, doutrina a opor à banalidade. No entanto, fácil lhos seria Ver que a doutrina vulgar, de deficiente ci&wi« e de deficiente moral, tem sido sempre desmentida
14 PREFÃCIO
pela arte, pela filosofia e pela religião, ~ quais o a~ humano, além de, ser apresentado em ra, dwçtw de, beleza, assume uma significação real e trameendento.
NJo nos deteremos a relembrar a excelsa. doutrina do Banquete de Matão, porque, supomos que e14 d~ estar na mente de quem quiwr compreender o Banquete de Kierkegaard. Ninguém que vá ler a obra do filósof o grego se encontrará habilitado a apreoiar e avaliar alusões tão sugestivM e signíficativw, como as que diwmre&peito a Aristófanes. Quere~ apenas notar que nas duas obras o a~ é tema de discurso de vários oradores, artifício feliz para Tw seja gradativamente e8tudado como problema ant~ló~ oa~gico e teoló~. As semelhanças não anuZam as d4ferenças que ~tem, entre uma obra de f~fw mediterrânea e uma obra de fiZosofia nórdica.
Também não nos cumpre resumir a obra de Soren Kierkegaard, nem analisá-la para facUitar a intel~1o do leitor es~ecido. Preferimos elogid-1a e maltecê-la, explicando a sua actuali- dade e mostrando o seu valor a quem quiser pensar o problema do a~ em termos de ftl~ fia actual.
É evidente que, na obra de Kierkegoard, se aprofundam os conceitos de sedução e *w»gamia, entre os qu« j,,@ parece situada a ética das
0 BAIQQUETE 15
relações do homem para com a mulher. A &edu@ ção é segredo, a monogamia é ínstituição ética@ A sedução não é actividade, nem é excl"tumente masculina. A mulher sabe que pernumec~ imóvel, 8ilenciosa e vestida pode seduzir tanto ou mais do que demudando-se, tagarelando ou,dançando. Seduçdo é atracção, e nesta ~a se diz um conceito que a ci~ ndo esolare-ce.
0 problema daseduçdo obsediava Kie-rkegaard, e dentro do problema da sedução o donjuanismo. Todos conhecem a 1~ de D. Juan que alwg tem dado motivo a várias obras literdrias e qu-atingiu a mais subtil expressão artística na ópera mu~l de Mozart. P~m pessoas, porém, e~
traram por aprqfundamento, a causa ou a motivação fundamental do movimento que impele D. Júan T~rio, pela série infinUa das wduç6esOra este problema não pode ~r de ser enunciado e resolvido por quem se considere uma pessoa culta. Claro estd que o momento moral da sedução é o do abandono, ou desamparo, da mulher pe74o homem; até esse num~o não hd que formular juizos moram, tudo é lioito, porque decorre sem drama no fflano estético, no plano da promessa ainda não renegada. A vileza moral do,homei% quando existe, revela-se wo momento da inconfid~a o da ingrat~.
Kierkegaard, não só meditou, no segredo da seduçdo mas procurou realizar a experi~
16 PREFÃCIO
moral em termos oonvenientes, limitados e dignos-R sabido que o episódio do rompimento do noivado com Regina Olsen explica muitos passos obscuro& da obra do escritor, e representa na biografia de Kierkegaard uma dem’ ao cujos motivo,s ainda nCw foram bem esclarecidos. Só aos teólogos, - e Kierkegaard foi, a seu modo, um teólogo -, é lícito o celibato. A renúncia ao amor, em todos os outros casos, pagase com sofrimentos confessados ou inconfessados. Digno de Idstinia é só aquele- que, dotado como os de~ de ~4a1 (aptidão para amar, alcança a velhice sem jamais ter encontrado a mulher que talvez quisesse acompanhá-lo na incerta viagem da vido-
A doutrina de que o celibato é imítação do estado angélico não tem consisténcia ffimófica pois dificilmente se defende perante a antropologia, a cosmologia e a teologia. Seria ~uno lembrar um c»nhec%do Afórismo de Pascal. Más a -instituição cristã do matnmônw, que é um
sacramento, parece resolver de ~neira mais rea-
lista,,e portanto mais verdadeira, o problema do amor huniano. É nisso que a obra de Kierkegaard nos faz p~ar. ,fá a designação de matrimónio nos r~mora a doutrina (tão dignamente presenmda pela Igreja Católica, conforme foi expresso pek Comissão Bíblica em 30 de J~o de 1909), do formatio primae mulieris ex primo homine, dou-
0 BANQUETE 17
trina que contém a chave do segredo da atracção e da sedução, o qual ndo pode ser e"l~ pelo naturcaismo. Matrimónio é preferível a casamento. Aliás, na língua portuguesa, casamento significa muito mais a mudança de resídènc4@, a junção de pessoas e bens, porque «quem casa quer o~». 0 casamento exprime maliciosan~te, para muita gente, mais uma situaçõo de facto do que uma situação de direito. Se o oasamento fosse apenas um rito, como vulgarmeInte julga quem inclina a reli~ para o plano da moral, justificar-se-ia fflenamente a degenerescência do registo matiAal em “fano regi,?to civil. Mas se o matrímó»@o é, mais do que um rito, um
sacramento, te~ de admitir que ele é de graça que opera no mundo sobrenatural. A vida conju, gal pode, pois, aparecer como condição indispensável para que o homem e a mulher coope~ na re~ão, segundo o que foi ~to por lei8 dívinas. Todo o mistério do amor Lestá acima ~ t~ biolõgwas e sociológicas com que o& educadores mal ínformados nutrem o 1~ simismo dos adolescentes.
Tem o matrimónio fim sobrenaturais, mas se os não tivesse, conformo pensam os ~, entes, estaria ~ amm, ordenado para ~liar a
evolução da humanidade, isto é, para ir tramformando os homem infe~es em homem supe~ res. Se este fim, que é o fim da família, nem
2
18 PREFÃCIO
wmpre é atingido reulmente, outro “bkma, o
da frustraçdo do casamento, tem de ser resolvido à parte. Tal era o que preocupava as gerações retratadas numa literatura que vai po~ a pouco, perdendo a sua melhor significaçdo.
Reférino-nos à literatura romântica, ndo só Porque ela se demorava a descrever em verso e
em prosa os impedimentos à uni4o dos amantes, mas ainda porque atribuía ao drama antropológico uma sígnificação que ~ontrava equivalência na cosmologia e na teologia. o romantismo nao é já entendido, e o desente"mento resulta de ter sido esquecida a razCw da mocied%tle tradicional. Esta 3abia perfeitamente que a vida conjugal é difícil, porque exige a u~ nos três p do cmn"to humano: no espírito, na alma e no oorpo. A comun~ de culto re@igioso é tão importante com a comunhão de afectos e de sentimentos para qw o conjunto ndo se dissolva por inf luências previsíveis e impr~veis- A fidelidade conjugal, contra~ por mil ~unidades e por mil circunstâncias, só pode ser garantida por uma fé religiosa. Esta verdade, expressa em outros termoo, demo~ que o ~rcio é o
fim natural do casamento.
A d~&wia da Steratura romântica corresponde ao,desinteresse pelo problema do amor, o
que é ~ente na literatura actual em que o problema da morte lenta ou VW,~a, do assassínio
0 BANQU= 19
individual ou colectivo, aparece como princip& ingrediente da fabulação. 0 que se observa no livro é ainda mais evidente no espectáculo teatral e no cinematográfico. Assim chegamos, sem
obrigação de passar por difíceis nomenclaturas técnicas, aos assuntos que constituem a temática específica da filosofia existencial, filo-sofia de crise paraos homens eos povos que deixaram de ver no amor infinito o, primeiro atributo de Deus.
Eis as razões que nos levaram a considerar
0 Banquetc,e, também, os outros livros que oompõem a série intitulada Estádios na via da vida, como a melhor introduçao, ao estudo da obra de Soren Kierkegaard e da reacção que, o existencialismo exerceu, exerce e exercerá no desenvolvimento da filosofia portuguesa.
A.
ESTÃDIOS NA VIA DA VIDA
Estudos diversos
Reunidas, mand~ imprimir e edit~
por
lULÁRIO, encademador
ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Lectori benevolo!
Em tudo tem que haver probidade, mas especialmente no reino da verdade e neste mundo dos livros. Eis, pois, a história verídica desta obra; não vá um professor catedrático ou um
senhor de mais alto coturno sentir-se ofendido a quando vir que o encadernador ignorante se
fastou do seu mister -para ocupar-se de literatura; não perca o livro com as criticas severas daqueles que se recusaxiam até a ~neç&r a leitura, apenas porque a obra foi apresentada por um encadernador.
Há vários anos já, um literato das ntinhas relações entregou-me uma importante quantidade de livros para encadernax, item, várias resmas de papel almaço de brochar in-quarto. Estávamos no fim do -ano, quando há mais trabalho paxa fazer; mas o senhor Literatissinio, como homem condescendente e benévolo que sempre era, não me deu pressa; os livros ;dele ficaxam pois, seja dito para minha vergonha, mais de três meses em minha casa. Mas há viver e morrer,
24 KE=EGAARD
ou, como diz o alemão: «hoje rosado, amanhã falecido» (1); ou como diz o pastor: «a morte não conhece condições nem idades»; ou ainda, como costumava dizer a minha falecida mulher: «todos temos que passar pela morte, mas o
Senhor sabe muito melhor do que nós qual é o
momento favorávelpara essa graça». Sim, acontece pois que até os melhores têm que deixar este mundo. 0 senhor Literatíssimo faleceu entrementes; e os herdeiros, que viviam no estrangeiro, receberam os liwos dele por ofício do tribunal enca-rregado da execução testamentária, tribunal que se encarregou também de me pagar os trabaffios encomendados.
Como honrado axtesão o cidadão, cumpridor que dá a cada qual o que é seu, nunca duvidei de ter devolvido ao senhor Literatíssimo tudo quanto lhe pertencia, quando, num belo dia, descub,ro num canto um, amontoado de manuscritos. Interroguei-me,,em, vão, sobre quem os teria deixado;aJi ficar, e para que fim, se parabrochar ou para encadernar; em suma, fiz a mim próprio todas as perguntaB que nas mesmas. circunstâncias se apresentam a um encadernadúr; ainda hoje não tenho a ceirteza de não me ter enganado. Finalmente, a minha falecida mulher, que então era viva, e que com rara fidelidade me prestava auxílio e socorro a@té nos assuntos
(1) Heute rot, morgen todt.
0 BANQU= 25
do meu mister, teve uma ideia luminosa; lembrou-se de que os manuseritos deveriam ter vindo naquele grande cesto em que o senhor Literatíssimo me mandaxa os seus livros. Adoptei esta opinião; mas como tinha, passado muito tempo sem que ninguém viesse pedir o amon-
toado de manuscritos, pensei que, naturalmente, os papéis não e= de grande valor. Brochei as fôlhas, para nã o ao ver arrastar e correr pela loja, como dizia a minha falecida mulher; dei-lhe uma capa de paipel colorido, e guardei os cadernos numa estante.
Duranteos longos serões de Inverno, quando não tinha mais que fazer, pegava de vez em
quando no livro e lia para me distrair. Não posso dizer que encontrasse muito agrado na leitura, porque pouco entendia do que ali estaíva escrito, mas tinha assim um estímulo para devaneio e especulação. Como grande número de páginas estavam escritas por mão hábil na caligrafia, mandavapor vezes os meus filhos copiaremum ou outro trecho, paira assim os habituar a manejarem a pena, a reproduzirem as letras bem lançadase imitarem os floreados das maiúsculas. Ás vezes também os obrigava a ler em voz alta, sim, para os exercitar de manuscritos, o que não se faz nas escolas, embora pareça incrível; ainda por muito tempo não cuidaríamos disso, se o senhor Paleographus Maximus, ilustre escritor, como se diz nos jornais, não tivesse pro-
26 KIETXIDGAARD
curado remediw o mal, demonstrando-me a verdade destas palavras que a minha falecida mulher tinha o costume de dizer: «a leitura dos manuscritos é indispensável em todas as circunstâncias; nunca a deveriam pôr de parte na
e.scola». Não vale a pena saber escrever quando se não é capaz de ler o que se escreveu, ou, como lá diz o Henrique na comédia: «Sou muito capaz de escrever alemão, mas deciftá-lo é que não posso».
No Verão passado, o meu filho mais v~ completou dez anos; pensfei então em que seria bom dar-lhe um ensino mais metódico. Uma pes, soa importante recomendou-me um seminarista, estudante de filosofia, qw-- não me era int&ramente desminhecido, pois já por várias vezes o escutara, para minha edificação, no ofício de vésperas celebrado na Igreja do Nossoi Salvador. -Não tinha ainda feito os seus exames, e havia renunciado inteiramente à teologia quando descobriu que era um espírito livre e poético (são os seus próprios termos); apesar de tudo tinha já profundos conhecimentos, proferia belos ser-
mões, e, sobretudo, era dotado de uma voz magnífica, quando subia ao púlpito@ Chegámos a um acordo; e estaibelecemos que ele daxia duas horas de lição por dia ao meu filho, sobre as disciplinas mais importantes, em troca do almoço.
Grande felicidade entrouna minha pobre casa quando o estudante de filosofia passou a ser
0 BANQ=, 27
preceptor do meu filho; Hans fez logo grandes progressos, é verdade; mas o que de mais valioso fiquei a dever ao nosso bom seminarista foi o que passo imeditamente a contar. Certo dia observava ele o livro brochado com capa de cor que eu utilizara para a instrução dos meus filhos; examina-a de relance, e pede-me o favor de lho emprestar. Respondi-lhe muito sinceramente: «Pode ficar com ele; já não preciso desse alfarrábio, agora que o meu filho tem quem lhe ensine a escrever». Mas o seminarista teve, verifico-o agora, a ~bridade de recusar a oferta. Levou o livTo a título dee@npréstimo. Três dias depois (lembro-me como se fosse hoje, -estávamos a 5 de Janeiro, no princípio do ano) veio ter comigo porque me queria falar. Julguei logo que me vinha pedir algum dinheiro, mas não era nada disso. Entregou-me o livro famoso. E começou a dizer: <Meu caro senhor Hilário. Ignorais certamente que dom magnífico foi o da Providênela à vossa oficina de encadernador: este livrodo qual, na vossa indiferença, vos querícia desembaraçar. Vale quanto pesa, em ouro, mas para valer precisa de cair em boas mãos. A imprimir livros desta natureza é que se contribui para o
adiantamento das boaa e proveitosas doutrinas que convém divulgax por entre os filhos dos homens deste tempo, em que a fé se torna tão rara entre o povo, tão rara como o dinhe!xc. lJais ainda. V09, senhor Hilário, que haveis sem-
28 KIERKWAARD
pre tido o desejo de ser útil aos vossos semelhantes, para além dos limites do vosso mister de encadernador, vás que asPirais a honrar a
memória da vossa falecida mulher por meio de qualquer acção muito mais relevante; vós, a
quem -coube por sorte a possibilidade de cum, prirdes e~ votos, podereis além dissoganhar uma quantia considerável com a publicação deste livro». Fiquei profundamente comovido, e mais ainda quando ele levantou a voz para continuar assim: «Nada desejo paxa mim, ou quase nada, peloque diz respeito a este negócio; mas ao pensar no grande capital que vos @espera, tomo sómente a liberdade de vos pedir dez moedas a pronto pagamento, e um copo de vinho ao almoço,nos domingos e dias santificados».
Fez-se o que obom. do seminaxista, candidato à Hoeinciatura, em filosofia, -me aconselhou; tão certo estava eu de adquirir grande capital como ele de receber as dez moedas; paguei-lhas com tanto mior alegria quanto mais ele me adventiu de que eu ia publicar não só um livro, mas vários e de diversos autores,o que enalteceria o meu mérito. Era convicção do meu sábio ainigo a de que os manuscritos pertenciam a uma confraria, ou companhia, ou associação cujo chefe seria talvez o literato depositário. Quanto a mim não tenho opinião certa sobre tal pormenor.
Que um encadernador faça de autor: eis o que não pode deixar de causar senão prevista
0 BANQUETE 29
indignação num mundo tão cheio de preconceitos como é o literário; nada mais seria preciso, para atirar com o 1ivro para o monte do rebotalho.
Mas que um encadexnador tome conta de um
original, o entregue à imprensa e por fim publique um livro; que um encadernador «deseje ser
útil aos seus semelhantes, para além dos limites do seu mister», isso é que nãopode escandalizar nem formalizax o leitor equânime.
É, pois, com estes sentimentos que recomendo muito respeitosammte o livro, o encadernador
e o negócio,
Copenhague, janeiro de 1845.
Com toda a niinha consideração
HILÁRIO, encadernador
0 BANQUETE
(IN VINO VE1UTAS)
Recordaçõ,o escrita por
WILLIAM AFHAM
Solche Werkei @sind Spiegel; wenn
ein Affé Mno@n guckt, kann kein A~el h~ sehew.
LICHTENBERG
Tais -obras são como espelhos; se
um macaco olhar para dentro delas, nunca poderá ver um apóstolo.
ANTELóQUIO
Deliciosa ocupação é deixar amadurecer um
segredo, prazer inebriante é saboreá-lo a sós; mas quantas vezes esse prazer nos entristece, nos atira para o devaneio, e nos deixa cair a alma em mal-estar! Com efeito, quem julgar que um segredo é um simples objecto de circulação, que pode fàcihnente mudar de possuidor, muito se engana; aqui é que é caso para dizer « daquele que come vem o que se come»; mas quem pensar que este prazer tem por única dificuldade o dever de não trair, também se engana, porque não sabe que o segredo traz consigo a responsabilidade de não o esquecer. Mais importuno é, todavia, recordar-se apenas de me-
tade, e fazer da alma um traficante de mercadorias avariadas. Por deferência para com outra pessoa, o esquecimento será então como a cortina de seda que se corre diante do segredo; a recordação ~à como a vestal que passa atrás da cortina do esquecimento; isto no caso de não se tratar de uma verdadeira recordação, porque, no caso contrário, nem sequer houve esquecimento.
36 KIEREEGAARD
Não basta que a recordação seja fiel; é preciso também que ela resulte de um concurso feliz de condições. Tal como o vinho deve conservar o perfume rescendente da vida, dentro do vaso em que se encontra fechado. Não é em qualquer tempo que se esmagam as uvas, porque nesta operação a temperatura é um dos mais importantes factores; assim também o vivido não se presta sempreao trabalho da recor-
dação; não se presta sempre, nem em todas as circunstâncias,
Recordar-se não é o mesmo que lembrar-se; não são de maneira alguma idênticos. A gente pode muito bem lembrar-se de um jevento, rememorá-lo com todos os pormenores, sem por isso dele ter a recordação. A memória não é mais do que uma condição transitória da recordação: ela permite ao vivido que se apresente para con- ~ar a recordação.. Esta distinção torna-se manifesta ao exame das diversas idades da vida.
0 velho perde a memória, que geralmente é de todas as faculdades a primeira a desaparecer. No entanto, o velho tem algo de poeta; a imagmação popular vê no velho um profeta, animado pelo espírito divino. Mas a recordação é a
sua melhor força, a consolação que o sustenta, porque lhe dá a visão distante, a visão de poeta. Ao invés, o moço possui a memória em alto grau, usa dela com facilidade, mas falta-lhe o mínimo dom de se recordar. Em vez de dizer: «aprendido
0 BANQUETE 37
na mocidade, conservado na velhice», poderíamos propor: <memória na mocidade, recordação na velhice». Os óculos dos velhos são graduados para ver -ao perto; mas o moço que tem de usar óculos, usa-os para ver ao longe, porque lhe falta o poder da recordação, que tem por efeito afaotar, distanciar. A feliz recordaçã o do velho é, como a feliz facilidade do moço, um gracioso dom da natureza, da natureza que protege com seus cuidados maternais as duas idades da vida que mais precisam de socorro, se bem que, em certo sentido, sejam também as mais favorecidas. Mas é por isso também que a recordação, tal como a memória, muitas vezes não passa de portadora dos dados mais acidentais.
Apesar de se distinguirem por grande diferença, a recordação e a memória são por vezes tomadas uma pela outra. A recordação é efectivamente idealidade, mas, como tal, implica uma
responsabilidade muito maior do que a memória., que é indiferente ao ideal. A recordação tem por fim evitax as soluções de continuidade na vida humana e dar ao homem a certeza de que a sua passagem pela terra se efectua unio tenore, num só traço, num sopro, e pode exprimir-se na unidade. Assim se liberta ela da necessidade em que a língua se encontra de repassiar incessantemente pelas mesmas tagarelices, para reproduzir aquelas de que a vida se encontra repleta. A condição da imortalidade do homem
38 KIER1KEGAARD
é, que a vida dele decorra ~ te~. Curioso é ter sido Jacobi o único pensador, que eu saiba, que fale do terror que o homem possa sentir ao
julgar-se imortal. Talvez que o filósofo tivesse os nervos fracos. Um homem forte, que ganhe calo nas mãos à custa de se apoiar na cátedra ou de bater no púlpito, seja professor da faculdade ou pregador da igreja, não sofre tão grande terror ao apresentar as provas da imortalidade; e, no entanto, ele conhece a fundo a questã o, pois em latim se diz que «tem a pele calejada» de quem aprofundou o assunto em que é versado. Mas, logo que não se confunda a memória com recordação, já esta ideia deixa de ser assim terrível. Em primeiro lugax, porque se é cora@ joso, viril, robusto; em segundo lugar, porque já não se pensa nessa ideia. Não faltam, certamente, pessoas que tenham escrito as suas memórias, nas quaiz o leitor não encontrará vestígio de recordação, e, no entanto, esses homens apresentam as lembranças para com elas garantirem a imortalidade. A recordação é, por assim dizer, uma letra comercial que o homem saca sobre a eternidade, a qual tem a caridade de conceder o máximo crédito e de considerar solventes todos os homens; não é por culpa dela, porém, que o homem se toma ridículo - quando se lembra e por conseguinte esquece, em vez de se recordar; pois lembrar-se é também esquecer-se. Mae, por outro lado, amemória permite
0 BANQUETE 39
também que o homem use de grandes liberdades para com a vida. A gente presta-se sem escrápulo às metamorfoses mais divertidas; até mesmo na idade em que a gente anda corcovada, há quem jogue a cabra-cega, há quem faça apostas na lotaria da vida, há quem possa ser sabe o diabo o quê, apesar do número incrível das mutações já sofridas. Num belo dia a morte chega-e, de repente, o homem torna-se imortal. Então, após uma vida vivida de tal maneira, não deveria a gente ficar com a certeza de ter adquirido um rico lote de recordações para a
eternidade? Certamente que sim, se o grande livro da recordação não fosse mais do que o
canhenho doo borrões onde se encontram os gatafunhos que registam as primeiras impressões de um negócio. A contabilidade da recordação é, porém, muito curiosa. Tem alguns capítulos que dão motivo a difíceis problemas, muito mais dificeis do que as regras da sociedade. Seja um
homem a falar desde a manhã até à noite nas assembleias gerais, e a falar incessantemente das necessidades do seu tempo; sem se repetir, à maneira enfadonha de Catão, mas sempre interessante e mordente, ele progride com a sua época e nunca diz a mesma coisa; item, em sociedade, devorado pela vontade de falar, ora deixa que a sua eloquência transborde, ora conserva,a dentro da justa medida; sempre recebido com uma salva de palmas; com o seu nome
40 KIERKEGAARD
publicado pelo menos uma vez por smana no jornal, ei-lo que até mesmo à noite se torna útil-útil à sua mulher, entenda-se-, continuando a falar como que em sonhos a respeito das necessidadesdo seu tempo, como se estivesse ainda diante da assembleia geral. Seja também em comparação outro homem, dos que se concentram antes de falar, que vá ao extremo de se resignar ao silêncio total. Suponhamos agora que ambos vivem o mesmo número de anos; pergunta-se por fim: qual dos dois obteve mais matérias para recordação? Seja ainda um
homem que persiga uma ideia,, uma só, e que se lhe dedique inteiramente, com exclusão de tudo o mais; e um outrq, escritor especializado em sete ordens de ciências, «súbitamente interrompido a meio de um importante trabalho (é um jornalista que fala) no momento em que se aprontava para proceder à refundição da arte veterinária»; estes dois homens vivem o mesmo tempo, pergunta-se por fim: qual dos dois obteve mais maté ria para recordação?
A bem dizer, ninguém se pode recordar senão do essencial; pois, como já foi dito, a recordação do velho está submetida às circunstâncias; e o mesmo se diz das analogias com a sua recordação. 0 essencial não é sómente condicionado por ele próprio, mas também pela sua relação com aquilo a que diz respeito. Depois de se ter rompido com uma ideia, não se pode agir
0 BANQUETE 41
essencialmente, e nada se pode empreender de essencial; neste caso, o arrependimento é a única forma nova de idealidade possível. Aliás, nada há de essencial no que fazemos, apesar de todas as aparências. Coisa essencial é certamente escolher esposa; mas quem alguma vez viveu uma vida de fantoche, não pode com seriedade e com solenidade bater no peito, no alto da cabeça ou no fundo das costas; sim, para tal homem, esse acto não pode deixar de ser uma farsa. E ainda que o casamento de um homem como esse fosse coisa de interesse para todo o povo, ainda que fosw anunciado com a música dos carrilhões e abençoado pelo Papa, para o próprio noivo tal acto não seria um acto essencial, mas essencialmente uma farsa, Os ruídos exteriores nada acrescentam ao caso, tal como para o empregado que proclama os números premiados durante a extracção da lotaria, o essencial não está na cerimónia da guarnição policial. A acção essencial não consiste em bater essencialmente o tambor.-Mas coisa de que uma pessoa se recorde é coisa de que ela não se
pode esquecer; nada há que seja indiferente para a recordação, enquanto a lembrança pode ser indiferente à memória. Atira-se com a reminiscência para longe, mas eis que logo ela regressa, como o martelo do deus Thor; e não regressa tal e qual, mas com um desejo de recordaçâo; assim como o pombo correio, por mais
42 KIE=GAARD
que o vendam, nunca chega a ser propriedade do comprador; regressa sempre, batendo as asas, ao seu primeiro pombal. Mas a recordação, além disso, acalentou o seu objecto às escondidas, afastada e ignorada dos olhos profanos; porque os pássaros não voltam a chocar os ovos que mão estranha alguma vez tocou.
A memória pertence ao imediato e é emorrida pelo imediato, enquanto a recordação só o é pela reflexão. Por isso é que recordar é também uma arte. Em vez de me lembrar, concordando com Temístocles, prefiro esquecer; mas recordar e esquecer não são contrários. A arte da recordação não é fácil, visto que a recordação pode diferenciar-se no próprio momento em que se elabora, ao passo que a memória conhece sómente uma flutuação entre a exactidão e o erro de cada lembrança. Que é, por exemplo, a nostalgia? Unia lembrança recordada. Simplesmente, a dor-da-terra resulta da distância. A arte consistiria em sentir a mesma dor, permanecendo na terra, o que exige a virtualidade da ilusão. Não é tão difícil viver numa ilusão, entre as brumas cinzentas de um nevoeiro perpétuo e libertar-se da ilusão pela reflexão na ilusão e deixar que esta actue com todo o poderio na consciência que nem por isso se deixa enganar. Não é tão difícil evocar aos nossos
olhos o passado como exorcizar da nossa frente o imediato para dar lugar à recordação. @2 nisso
0 BANQUETE 43
que residem, própriamente, a arte da recordação e a reflexão à segunda potência.
Para captar uma recordação é preciso saber opor sentimentos, situações, ambientes. Uma situação erótica - situação cujo encanto de vida campestre, longe da sociedade, esgotaria o interesse -, presta-se por vezes muito melhor à arte da recordação no teatro, onde o meio e o ruido fazem surgir o contraste. Todavia a oposição directa nem sempre é a melhor. Se não fosse indecoroso tomar o homem como um meio em vez de um fim., talvez que em certos casos se
-obtivesse a oposição favorável à recordação de uma situação erótica, procurando uma nova história de amor, com a única intenção de a recordar. - A oposição pode ser objecto de extrema reflexão; a relação que a reflexão estabelece entre a memória e a recordação atinge o máximo de intensidade quando se usa da primeira contra a segunda. Dois homens podem negar-se a ir ver um lugar que lhes lembre um acontecimento, alegando para isso razões contrárias. Um não tem a minima suspeita deste fenómeno a que damos o nome de recordação; teme apenas o que a memória lhe possa lembrar. «Longe da vista, longe do coração», assim pensa ele; quer dizer, não ver equivale a esquecer. Outro recusa-se a ver, precisamente porque prefere recordar. Recorre à memória apenas para se libertar das recordações importunas. Pode-se
44 KIERKEGAARD
ter a inteligência da recordação sem compreender tudo isto; possui-se, e então seguramente, a idealidade, mas tem-se falta de experiência no
uso dos co~ evangelica admrszw c~
0~~tim. Considerax-se-á talvez paradoxal o conselho, e recear-se-á suportar a dor pn. meira, que é sempre preferível, como se fosse a primeira desgraça. Mas a lembrança refresca, e assim -a memória enriquece a alma com uma soma de pormenores que dissipam a recordação. Examinemos, por exemplo, o remorso: é a recordação de uma culpa. Do ponto de vista psicológico, creio realmente que a polícia endurece a criminoso porque lhe toma mais difícil o arrependimento. Ã força de ouvir e de repetir o seu o~imIum vitae, ele adquire uma tal, virtuosidade em dizer de cor o seu passado que a idealidade da recordação desaparece completamente; ora, para se arrepender realmente, é indispensável uma grande idealidade, grande e
imediata; porque a natureza também pode vir auxiliar o homem, e o arrependimento tardio, de tão pouca importância para a memória, é muitas vezes o mais opressivo e o mais profundo. - A faculdade de se recordar é também a condição de toda a actividade criadora. Quando quiser deixar de produzir, bastará que a pessoa se lembre perfeitamente da coisa que queria dar à luz sob a influência da recordação; a actividade criatriz será então impossível, ou causará
0 BANQUETE 45
tanto sofrimento e tanto desgosto que mais valerá a pena renunciar sem demora a qualquer veleidade de criação.
Não existe, a bem dizer, recordação comum. Há apenas uma espécie de pseudo comunidade à qual, se recorre quando se pretende captar uma recordação. 0 melhor processo de o suscitar consiste por vezes no seguinte: imaginar que nos confiamos -a outra pessoa, apenas para esconder atrás deste abandono fictício um novo acto de reflexão pelo qual a recordação se manifeste. A memória, pelo contrário, admite muito bem o concurso de uma assistência recíproca. Os festins, os aniversários, as promessas de amor, as «leinbranças» preciosas, são então de grande oportunidade e exercem função seme- ,@ à das dobras nas páginas de um livro, as quais servem para nos lembrar onde interrompemos a leitura, e por consequência nos
vão dando a certeza de lermos bem a obra inteira. Elaborar a recordação é trabalho que cumpre a, cada qual fazer por si só. Tal neces-
sidade está longe de ser uma maldição. Cada recordação vale tanto como um segredo, já que a consciência que dela se tem é intransmissível. Ainda que muitas pessoas estejam interessadas no mesmo acontecimento que motiva a recordação no homem que dele toma consciência, este é todavia o único a ter conhecimento da sua
46 KIERKEGAARD
recordaçãocujo carácter público é apenas aparente, puramente ilusório.
0 que estou a expor também me produz a
recordação de pensamentos e de meditações que muitas vezes e de várias maneiras preocuparam a minha alma. Se os transcrevo para o papel ao correr da pena é porque me sinto agora apto a retomar um acontecimento vivido para dele extrair uma recordação, e apto também a desenhar novamente factos que, há já alguns anos, estão completamente encorporados na memória e parcialmente ligados com a recordação. A lembrança deles recai sobre um domínio restrito; o trabalho da memória fica assim facilitado; em compen~<>, tive muita dificuldade em deslindar a recordação, porque as circunstâncias assumiram a meus olhos uma importância muito maior do que aos olhos dos convidados. Esses senhores haveriam sem dúvida de sorrir se me vissem ligar tão grande iniportância a tão pouca coisa; «que disparate!», diriam, ou «que estranha fantasia!» Que a memória tem nesta narrativa um papel secundário, é o que verifico na impressão que por vezes sinto de não ter vivido todas as circunstâncias, na dúvida se não teria sido eu quem inteiramente as forjou.
Sei muito bem que tão cedo não mais esquecerei este banquete de que participei sem ter sido participante; apesar disso, não posso decidir-me a relatá-lo sem antes me assegurar, por
0 BANQUETE 47
um consciencioso exame de memória, do que foi verdadeiramente nwmo~ para mim. Tentei favorecer a inteligência erótica da recordação; nada fiz, porém, a favor da memória. A -sitwção da recordação resulta da oposição, e, há já algum tempo, me esforcei por inserir a reminiscência num ambiente que forme contraste. A iluminação esplêndida da sala em que se realizou o banquete, os jorros 4e luz com seus jogos inebriantes, tudo isso produzia um
efeito fantástico; ora, a recordação requer uma oposição liberta desta influência. A exaltação dos convidados, os rumores da festa, o jovial estalido do vaporoso «chanipagne» prestam-se muito mais à recordação no silêncio de um retiro escondido, tal como o delírio espiritual dos conversadores muito animados favorece a recordaçâo quando ao está nitim abrigo Plácido. Qualquer tentativa de ajudar a recordação com o
imediato haveria necessàriamente de abortar e, portanto, de me infligir o desgosto que toda a gente sente quando reconhece uma macaqueação. Escolhi portanto o ambiente, tendo em conta a oposição. Procurei a solidão da floresta, mas
em tempo que não era próprio para excitar a
fantasia. A tranquilidade da noite não seria favorável, porque também ela está debaixo dos poderes do fantástico. Encontrei a paz da natureza no momento em que ela está menos agitada, depois do meio-dia, Se ainda assim, pode apare-
48 KIERKEGAARD
cer o fantástico, é porque ele surge no estado de longínquo pressentimento da alma; nada há que mais bem disponha às delícias da paz e do repouso do que a atmosfera sem brilho às horas em que acaba um lindo dia. E tal como um convalescente gosta de ser acariciado por esta frescura lenificante, como um espírito exausto até ao sofrimento gosta de encontrar esse alívio, também eu, impelido por um motivo oposto, ali fui buscar o prazer inverso.
Na floresta de Gribs, há um lugar a que chamam o Canto dos Oito Caminhos; ninguém o
encontra se não o procurar convenientemente, porque não figura indicação dele em nenhum dos mapas conhecidos. Até a próprio nome parece uma contradição; pois como é que do encontro de oito caminhos pode resultar um canto; como é quea estrada real se pode conciliar com
o retiro, e a senda espezinhada com o esconderijo? Se o solitário foge da trivialidade, da que deve o nome ao encontro de tr& vias, como não há-de ele fugir do que resulta de uma dupla encruzilhada? Tal é, positivamente, o facto: há oito caminhos, e todavia neles reina a solidão; longe do -mundo, escondido, dissimulado, o homem encontra-se ali muito perto de uma clausura denominada Sebe da Desgraça. A contradição tem sempre por consequência a solidão. Os Oito Caminhos e a circulação intensa que
0 BANQUETE 49
eles representam são uma pura possibilidade, -
para o pensamento; porque ninguém por ali passa, a não ser o insecto que atravessa a senda, lente festinam; ninguém os frequenta, -senão aquele viajante de passos lépidos e de olhar circunspecto, que não deseja encontrar-se com
qualquer animal; aquele fugitivo que, dentro do matagal, não percebe o desejo do viajante que vai em demanda de alguma mensagem; fugitivo que só a bala mortífera é capaz de atingir; e
se é muito compreensível que o veado passasse a ser um animal tranquilo, já não se compreende que ele tivesse sido tão inquieto; ninguém passa pelos Oito Caminhos, a não ser o vento, do qual não sabemos de onde vem nem para onde vai. Nem o passeante atraído pelo apelo sedutor dos lugares impenetráveis que o cativaram, nem o homem que é induzido pela senda estreita a entrar no próprio coração da floresta, se encontram tão solitários como quem vai ter aos Oito Caminhos, pelos quais ninguém passa. Oito Caminhos e nenhum viandante! 0 mundo parece extinto, e o sobrevivente afoga-se na perplexidade quando pensa que já não há ninguém para o enterrar; dir-se-la que toda a humanidade se escoou por estes oito caminhos, deixando por esquecimento sobreviver um homem! Se é verdadeira a frase do poeta: bem t,ixit qw4 bene 1~, eu vivi bem, porque o meu esconderijo era bom, era muito bem es-
4
50 K_SRKEGAARD
colhido. Mas também é certo o seguinte: que o
mundo, e tudo quanto ele encerra, nunca nos
aparece tão belo como quando avistado de um
mirante que propositadamente escolhemos para a observação. Certo é ainda também que tudo quanto o mundo diz, e tudo quanto nos convém ouvir, ganha a melodia dos sons mais belos e mais encantadores quando é por nós escutado dentro de um recanto secreto. Tais os motivos que frequentemente me levavam a procurar aquele retiro. Havia já muito tempo que eu a
conhecia; já não precisava de esperar pela noite para conseguir o desejado silêncio, porque na-
quele recanto sempre reinam a paz e a beleza; mais belo do que nunca me parece ele àquela hora em que o sol de Outono inclina para o
horizonte, num azul enlanguescido; o calor passou, e tudo que vive respira ao sopro da brisa que brinca através da floresta, enquanto vai semeando pelos prados um frémito de deliciosa volúpia; o sol vai sonhando com a frescura das vagas em que irá banhar-se; o mundo regressa ao seu recolhimento, e agradece os benefí cios dos esplendores do dia; a terra e o céu parecem exprimir ternas despedidas naqueles lugares em que a floresta soturna vai dominando a verdura dos prados.
Espírito amigável que resides nestas paragens, abençoado sejas, guardião fiel do meu
retiro calmo; abençoado sejas pelos momentos
0 BANQUETE 51
em que permitiste que, para me entregar às recordações, ocupasse o teu retiro secreto, retiro que me parece meu! Vejo a paz que se estende como uma sombra, que se forma como o silêncio à voz imediata do mágico. Haverá embriaguez que valha a de quem sabe gozar o silêncio? Em vão levará o bebedor a taça aos lábios, num gesto rápido: não conseguirá exaltar-se com a prontidão da embriaguez do silêncio, porque esta aumenta a cada instante! 0 licor capitoso que a taça oferece não é mais do que uma gota no oceano do silêncio infinito em que -afogo a minha sede! Que miséria também a dessa efervescência de todos os vinhos famosos do mundo, comparada com a opulência do incessante fermento que o silêncio contém para sempre renovar! Nada há, porém, que tão fàeilmente se desfaça como a embriaguez do silêncio; uma palavra basta para acabar com o encanto! Nenhum desgosto se compara a este, nem o do ébrio que por súbito despertador seja arrancado ao seu sono profundo. Quando o silêncio cessa, o pensador não sabe o que há-de dizer, fica perturbado com a confusa sonoridade das sílabas, começa a titubear na incerteza de quem não consegue compor uma frase, interdito como uma mulher surpreendida, tãodesarmado que no mesmo instante não pode sequer recorrer às mentiras consolidadas na linguagem comum!
52 KIERKEGAARD
Bendito sejas, espírito amigo, que me livraste da surpresa do importuno, que me livraste da im pertinência que não tem desculpa! - Quantas vezes não meditei eu já neste pensamento! Na tumultuosa vida de sociedade, é possível pecar por ignorância, mas esse pecado tem desculpa; não assim para aqueles que pecam con-
tra a solidão pacifica, porque esta é sagrada. Tudo quanto perturbar a solidão ficará marcado com o sinal da culpa, e o casto comércio do silêncio, uma vez ofendido, nunca mais perdoará. 0 solitário não aceita quaisquer desculpas, tem mesmo o pudor de não as ouvir. Sinto remorsos das poucas vezes que perturbei o ere-
mita; quando tal me aconteceu, fiquei envergonhado com o meu crime, e sofri como sofre quem tem a alma transida deintensa, dor! Por mais que o remorso queira medir a profundi- @ade da culpa, jamais o conseguirá, porque ela e indizível como o silêncio. Só quem procura a solidão por motivos pouco dignos é que pode tirar algum proveito da surpresa,-tais os amantes que se refugiam na solidãc@ sem que por Isso alcancem o digno fim do amor. Então é que o importuno pode servir a Eros e aos amantes com o seu aparecimento de surpresa, ainda que os dois solitários não compreendam a aparição. Quando tais amantes aproximam os ros-
tos um do outro, para se esconderem num res-
sentimento contra o importuno que lhes deu
0 BANQUETE 53
aso a que se aproximassem, então a culpa de quem perturba o silêncio já é susceptivel de discussão. Tratando-se, porém, de amantes dignos de procurarem a solidão, ninguém há que não se sinta oprimido ao surpreendê-los; ninguém deixará de sé amaldiçoar a si próprio, porque merece então o anátema que era outrora proferido contra todos os bichos que se aproximavam do Sinal! Quem será d%tituido destes sentimentos? Quem, ao ver sem ser visto, não desejaria ser a ave que se balouça voluptuosamente num
ramo de árvore, por cima das cabeças dos amantes, ave cujo -cantar melodioso é de bom preságio e de bom convite ao amor? Quem não desejaria ser como a avezinha que esvoaça e saltita por entre o arvoredo para seduzir os olhares dos amantes? Quem não desejaria ser, semelhante à natureza solitária, favorável ao Eros semelhante ao eco de quem diz que está só. semelhante ao ruido longinquo que desaparece para não deixar dúvida aos amantes de que se encontram enfim sós? Este é, de todos os votos, o melhor, porque começamos a ficar sós, quando ouvimos que os outros se afastam. Na ópera Don J~ a cena em que a solidão parece mais caxacteristica é a de Zerlina. 2 que esta não se encontra só, separada das outras; não, ela começa a estar só, percebem-se os últimos ecos do coro; os ruidos vão morrendo ao longe, a solidão aparece no som e na realidade.
54 KIERKEGAARD
Vós, Oito Caminhos, apenas afastastes de mim todos os homens, apenas entregastes a minha alma aos meus próprios pensamentos.
A ti, amável floresta, agora digo adeus; hora da tarde, hora que só poucos podem entender; tu não usurpas os bens de ninguém, nem te jactas de ser um simbolo, como a alva, o crepúsculo e a noite; tu que, nada exigindo, humildemente te contentas de ser quem és, e vives feliz no téu sorriso campestre. 0 trabalho da recordação traz sempre consigo a sua bêngâo, e ainda a possibilidade de vir a renascer em nova recordação, que, por sua vez, cativará ainda mais. Quem alguma vez compreendeu o
que é a recordação, nunca mais deixará de ser
cativo cativado; a posse de uma recordação enriquece muito mais do que a posse do mundo inteiro; e tal como a mulher que está no seu
estado interessante, aquele que se recorda encontra-se também em circunstâncias merecedoras de bêngão.
COLóQUIO
A reuni&o para o banquete efectuou-se num dos últimos dias do mês de Julho, por volta das dez horas da noite. Esqueci já o dia e o ano; é que estes pormenores interessam apenas à memória e não à recordação, cujo objecto é únicamente o sentimento e o seu reino. Os vinhos generosos melhoram muito com passarem pela linha. pela evaporação das partículas aquocas; assim também a recordação se purifica ao perder as partículas de memória, sem que por isso se desvaneça em fumo, como também não acontece aos vinhos generosos. -Estavam presentes cinco homens: Johannes, por alcunha o
Sedutor, Vítor Eremita, Constantino Constantius, e mais dois, cujos nomes, a bem dizer, não esqueci, (o que aliás não seria inconveniente) porque os não cheguei a ouvir distintamente. Dir-se-la até que esses homens não tinham nomes próprios, porque foram quase sempre designados por epítetoe. Um, a quem chamavam « o mancebo», esbelto, elegante, assaz moreno, não devia ter mais do que vinte e poucos anos. Era de semblante aprazivel, não tanto pela sua
56 KIERKEGAARD
expressão pensativa como pelo aspecto de franqueza amável em que se reflectia a pureza de uma alma que estava em completa harmonia com a doçura vegetativa, quase feminina, e com a transparência de todo o seu ser. Mas a beleza física logo ficava esquecida quando se prestava atenção à impressão seguinte; ou pelo menos ficava in ~nte, para deixam lugar ta que se contemplasse um ente humano que, formado apenas pelo pensamento, ou, para me servir de uma expressão ainda mais terna, nutrido apenas pelo leite do pensamento, parmanecia estranho e ignorante do mundo, sem inquietação e
sem entusiasmo. Tal como um sonâmbulo, tinha dentro de si a lei que imprimia à sua conduta; a amável benevolência da sua fisionomia não procurava a réplica de outra pessoa; exprimia simplesmente o intimo da sua alma. Quanto ao outro, todos o tratavam por <alfaiate», porque o
era de profissão. Seria impossível apresentar retrato nítido de um homem como este; trajava pelo último figurino, bem penteado e bem frisado, sempre perfumado, rescendendo a Ãgw de Co~, no seu porte não deixava de vincar uma certa segurança; mas, súbitamente, eis que as suas maneiras adquiriam a flexibilidade própria do dançarino cerimonioso; dir-se-ia que de vez em quando procurava quebrar e requebrar a sua varonilidade. Sempre, até mesmo quando proferia frases impertinentes, a sua voz
0 BANQUETE 57
conservava um tanto ou quanto daquela amabilidade postiça de caixeiro experimentado; tal disfarce que lhe era, com certeza, extremamente desagradável, servia contudo para lhe apaziguar o frenesim. Agora que estou a pensar nele, compreendo-o muito melhor do que quando o vi descer da carruagem: confesso que nessa ocasião não pude deixar de rir. Apesar de tudo, há nesse homem um resto de contradição. Enfeitiçou-se a si próprio; pelo poder mágico da sua vontade, conseguiu vestir a pele de unia personagem quase de farsa sem se identificar inteiramente com ela; é o que se vê quando a, reflexão o surpreende, de tempos a tempos.
Agora, que rememoro tudo, parece-me quase absurdo que cinco homens tão diferentes hajam podido organizar um banquete. Talvez que nada se tivesse feito, se Constantino não interviesse. Falara-se disso uma vez no café, onde todos se encontravam por vezes numa saleta que lhes era reservada, mas logo que se tratou de designar a pessoa que desse andamento à proposta, reconheceram que seria melhor desistir. Convieram em que o mancebo era inexperiente, e
o alfaiate disse que não tinha tempo. Vitor Eremita, valha a verdade, não se eximiu com o pretexto de que era recém-casado ou que tinha de experimentar uma junta de bois; mas, se bem que estivesse disposto a comparecer, a título muito excepcional, declinou a honra do encargo
58 KIEERKEGAARD
e acrescentou que «avisaria com antecedência». Johannes encontrou a frase apropriada. Na opinião dele, quem seria capaz de preparar o banquete seria a toalha que vai para cima da mesa
e serve os manjares à simples voz de comando: «toalha, estende-te!». Admitia ele que nem sempre parece indicado fruir à pressa as belezas de uma rapariga, mas quanto a um banquete, de que em geral se prevêo desgosto, mais do que o gosto, seria melhor não demorar a realização. No entanto, se estavam a falar a sério. punha por condição que o banquete fosse imprevisto e de improviso. Depois de concordarem com esta cláusula, resolveram escolher um local completamente diverso dos que já conheciam e
decidiram não deixar ficar vestígios da festa; conviria até adquirir a certeza de que todos os sinais seriam destruidos antes de os convivas se levantarem da mesa. Nenhum indício deveria subsistir. Nem sequer o que fica de um vestido que se transforma em chapéu, esclareceu o alfaiate. - Nada, insistiu Johannes, porque não há coisa mais desagradável do que uns destroços a lembrar o que a gente já amou. Não há nada que tanto nos repugne como saber que algures existe um ambiente onde possa imediatamente surgir uma importuna realidade.
A conversa ia-se tomando cada vez mais animada, quando de súbito Vitor Eremita se levantou. Adiantou-se para o meio da sala, fez um
0 BANQUETE 59
gesto imperativo com a mão, moveu o braço como quem vai servindo vinho a uma roda de taças, e disse: «Meus caros amigos, ergo esta taça, cujo perfume inebria já os meus sentidos, e cujo fogo refrescante já está a inflamar o meu sangue, para vos saudar e para vos oferecer a
minha hospitalidade. Sede benvindos a este palácio, porque, - e disso estou convencido, - todos vós já estais certamente saciados com as
palavras que dissemos a respeito do banquete. Nosso Senhor satisfaz o estômago antes de sa-
tisfazer a vista, a imaginação faz o contrário». Dito isto afundou a mão na algibeira, tirou a cigarreira, abriu-a, e pôs-se a fumar. Constantino Constantius protestou contra a facilidade de transformar o projectado banquete num episódio de completa ilusão. Vítor respondeu que não acreditava na realização da idealizaçÃo, mas, ainda que acreditasse, considerava um erro o
ter-se falado no assunto antes da hora oportuna. Tudo quanto é bom acontece sem demora, ex-
plicou ele; porque a instantaneidade é a mais divina de todas as categorias. 0 instantâneo tem as honras da locução latina ex t~o, porque é o ponto de que parte o divino na vida; o que não acontece no instante é morosamente engenhado pelo espirito maligno. Ele, Vítor, não estava animado com o intento de discutir; se os outros quisessem falar e proceder de modo diferente, não seria ele o desmancha prazeres;
60 IGERREGAARD
mas se pretendessem que ele desenvolvesse o
seu pensamento, pediria então que lhe concedessem a liberdade de discorrer, isto é, que não o interrompessem para começo de discussões enfadonhas.
Todos consentiram de bom grado e, mais ainda, o convidaram que começasse imediatamente a falar. Então ele explicou-se nos termos seguintes:
«Um banquete é já de si um empreendimento muito ingrato; por mais que a gente empenhe o melhor do talento e do gosto na sua preparação, há ainda outra coisa com que convém contar: o Uito. Claro está que não entendo por êxito aquele resultado que tem em vista a dona da casa ou a hospedeira ao preparar os manjares; não, senhores; trata-se de outra coisa de que ninguém pode antecipadamente dar a certeza: o concerto feliz dos sentimentos, vibrando de unissono com as minimas circunstâncias de festim, essas harpas eólias, essa música interior que ninguém pode encomendar a qualquer orquestra da cidade. Por isso é que é perigoso tomar esta iniciativa; se faltar essa harmonia, repito, se faltar essa harmonia, logo no primeiro instante, o banquete pode ser indefinidamente prolongado que não chegará a ter êkito. 0 que de ordinário se observa nos banquet,es é o encontro de convivas ou de confrades que ali se reúnem por um hábito vazio de
0 BANQUETE 61
qualquer idealidade; a miséria intelectual de tais reuniões não salta à vista, porque delas desaparece o espírito crítico. Ora é esse espectáculo que devemos evitar. Sustento, antes de mais. que as mulheres nunca deveriam ser admitidas a tomar parte num banquete. In Parent”, digo «as mulheres», porque nunca me prouve dizer <as senhoras»; não gosto da palavra «senhora». As mulheres não devem tomar parte nas festividades masculinas, a não ser que tenham os seus lugares marcados entre as coristas e as dançarinas, como era costume na Grécia. Quanto ao banquete própriamente dito, ao comer e ao beber, isso não é próprio das mu-
lheres, pela simples razão de que elas nunca se
podem satisfazer completamente, a não ser no caso de extrema indecência. A presença da mu-
lher reduz o prazer da mesa a uma simples bagatela, a um passatempo feminino, em que é preciso estar com muita atenção aos dedos. Um jantarinho assim, especialmente quando improvisado em «pique-nique», e de preferência fora das horas das refeições sólidas, poderá talvez oferecer algum encanto, mas, nesse em% tudo será devido às graças do belo sexo. 0 jantar inglês, de que a mulher se retira quando chega o
momento de beber a valer, é um absurdo, mas tem qualquer sentido; é sempre preciso encher as medidas, e a maneira de uma pessoa se sentar à mesa, de pegar na faca e no garfo, está
62 KIERKEGAARD
sempre em perfeita relação com o rito de todo o repasto. É por isso que um banquete político me parece um equivoco inestético. Nele, o festim se reduz a coisa pouca, mas também os discursos perdem muito do seu alcance ao serem proferidos entre os copos (1). Se estivermos de acordo nestes dois pontos, para que o nosso banquete tenha êxito, o número dos convivas ficará justamente limitado por esta regra tão bela: «nem superior ao das Musas, nem inferior ao das Graças». Exijo em segundo lugar a superabundância de tudo quanto é possível imaginar para garantir o êxito de um banquete. Se tudo não for possível, seja aonienos dada a possibilidade ao instante; que a possibilidade que paira em cima da mesa, tenta e seduz muito mais do que a realidade visível. Quanto a contentar-se a gente com palitos ou, como os Holandeses, com um torrão de açúcar para sugar de vez em quando: isso nunca. As minhas exigências são difíceis de satisfazer, bem sei; mas o festim própriamente dito deve ser preparado de tal maneira que provoque e estimule aquele desejo inexprimível que todo o comensal, digno desse nome, acalenta no seu corpo. Exijo que a fecundidade da terra esteja ao nosso serviço, que tudo surja no próprio instante do desejo. Quero mais vinho do que Mefistáfeles <>bteve ao abrir um
(1) Inter pocula.
0 BANQUETE 63
buraco na madeira da mesa, como se viu no Fa~ de Goethe. Preciso de unia iluminação muito mais sumptuosa do que a dos relâmpagos que abalam a montanha e dançam num oceano de chamas. Peço també m o supremo excitante dos sentidos, quero incensos cujos eflúvios refrescantes se dissolvem no ar com muito maior magnificência cio que nos contos das Mil e uma ~e8. Fxijo uma frescura voluptuosa em que os desejos se inflamem e que ao aflorá-los, também os acalme. Quero o jorrar constante de uma fonte e o agradável ruído da queda de água. Mecenas não podia adormecer senão com tão suave murmúrio; eu não posso comer sem escutar essa música. Espero que me compreendam: posso muito bem passar sem tudo isso quando me alimento de peixe frito e bebo um copo de água; não assim durante um banquete em que hei-de saborear o vinho. Quero copeiros, escolhidos pela sua beleza, parapoder imaginar que me sentei à mesa dos deuses; quero um concerto em que a gradação da surdina ao estrondo vá acompanhando os meus es-
tados de alma. Isto é o que eu desejo para mim; mas para vós, meus caros amigos, tenho pretensões incríveis. Infelizmente, tantas exigências são tantos obstáculos; por isso não vejo neste banquete mais do que um pium &-s~um; e a tal respeito estou muito longe de pensar numa
64 KIERKEGAARD
repetição, porque não acredito sequer que ele se
realize pela primeira vez».
Constantino Constantius não interveio no colóquio, não concorreu para fazer abortar o projecto. Sem ele, tudo teria ficado em palavras. Mas esse homem chegara já na vida a uma conclusãomuito diferente, e pensava que a ideia se presta à realização sempre que as mãos dos homens são forçados a isso. Decorreu algum tempo; o banquete e as discussões de tal propósito cairam. no esquecimento; e um belo dia, quando menos esperavam, todos os companheiros receberam cartões de convite para o banquete que havia de se realizar ao entardecer. Escolhera para lema da reunião esta frase latina: In ~ ~tw, -indicando assim que não bastaria conversax porque era preciso também dizer a verdade. Haveria que falar, mas sómente in vino; nenhuma verdade ~ia profeirida senão tal como fosse inspirada pelo vinho; porque o
vinho é uma garantia da verdade, e a verdade é um elogio do vinho. - 0 local da reunião fora escolhido numa região arborizada, a algumas milhas de Copenhague. 0 salão do banquete, armado de novo, não seria fàcíhnente reconhecivel; estava separado, por um corredor, de uma saleta onde se instalaria a orquestra. As janelas ficariam abertas, mas as persianas e as cortinas protegeriam o interior. Nos termos
0 BANQUETE 65
dos convites expedidos por Cônstantino, o encontro deveria ser ao declinar do dia, à hora propícia para a concentração do espírito. Se o propósito de ir para um banquete por momen-
tos excita a imaginação, o respeito que a natureza circundante nos inspira é tão poderoso que logo trata a exaltação. Constantino apenas tinha o receio de que tal influência não chegasse a exercer-se; porque, se não há faculdade como a imaginação para atribuir beleza a todas as coisas, também não há pior do que ela para estragar tudo, quando soa a hora da realidade que a afronta para nossa desilusão. Mas um passeio de carruagem, num belo en-
tardecer de Estio, não exalta a imaginação; pelo contrário, deprime-a. Sem que a veja e
sem que a ouça, porque a imagina, a alma inconscientemente anseia pela tranquilidade do lar ao aproximar-se a noite; é ver os trabalhadores e os serventes que regressam dos campos; é ouvir os carros que chiam na pressa de guardarem as colheitas; é interpretar do mesmo modo os gemidos e os mugidos que chegam dos prados. Assim é que o entardecer de Estio desperta o sentido do idílico, a calma tranquiliza o espírito enervado; torna mais grave a
imaginação vadia e demora-a na atracção para a terra como se ela fosse oriunda da terra; en- sina a alma insaciável a contentar-se com pouco; devolve ao homem a serenidade, porque ao
5
66 MR]KEGAARD
anoitecer, o tempo cessa e a eternidade perdura.-A boa hora chegaram, pois, os convidados, que Constantino esperava, porque mais cedo se dera ao caminho. Vítor Eremita, que passava o Verão naquelas redondezas, viajou a
cavalo e os outros de carruagem. Mal se tinham apeado quando viram entrar pelo portão uma
diligência; era um grupo de quatro operários alegres, a brigada dos demolidores. Ficaram logo instalados e prontos a destruir tudo, assim que recebessem ordem; tal como no teatro, mas
por motivos contrários, os bombeiros estão sempre prontos a extinguir o incêndio ao primeiro alarme.
Quando se é criança, e há quem o seja por muito tempo, é-se dotado de imaginação suficiente para estar, durante uma hora ou mai.% fechado num quarto escuro, à espera de um
grande acontecimento, e sempre, com a alma alerta; quando se está adulto, a imaginação não hesita em tornar insipida, antes de a ver, a própria árvore de Natal.
As portas abriram-se de par em par; a luz faiscante, a inesperada frescura, os incensos inebriantes, a visão de uma sala armada e adornada com perfeito gosto, tudo causou de entrada um instante de violenta surpresa; nesse momento estavam já os convidados a ouvir o bailado da ópera Don J,^ Transfiguraram-se
0 BANQUETE 67
os rostos; e como se tivessem sido tomados de veneração pelo espírito invisível que os cerca-
va, os convidados detiveram-se por um instante, para exprimirem a admiração.
Quem, de entre os homens que alguma vez
conheceram um instante feliz, fruiu e gozou sem
sentir que sàbitamente poderia acontecer qualquer coisa, ou um nada, muito capaz de perturbar a sua felicidade? Quem foi o portador da lucerna encantada, que não teve receio de ver
desvanecer-se-lhe a volúpia, ao pensar na violência do desejo? Quem teve alguma vez entre os dedos um talismã significativo que não visse logo a mão ganhar a flexibilidade precisa para o largar imediatamente? -Assim estavam eles, uns junto dos outros. Só Vítor é que permanecia um pouco à parte, ensimesmado; a alma estremecia e o corpo tremia; mas depressa se
restabeleceu, e saudou o áugure com estas palavras:
«Oh, música invisível e solene! Oh, acordes sedutores que outrora me fostes arrancar à solidão monacal de uma juventude tranquila! Vós que me decepcionastes, vós que me mergulhastes numa saudade, vós que me fazieis sofrer uma
recordação, em que parece, - é horrível! - que Elvira só quis ser seduzida, mas não o foi! Mozart -Imortal, tu a quem devo tudo... Não, não posso dizer isso. Só quando for muito velho,
68 =RIKEGAARD
se algum dia o chegar a ser, só quando tiver mais dez anos do que agora, se porventura lá chegar, só quando tiver os cabelos grisalhos, se atingir essa idade, só quando morrer, pois sei bem que isso é inevitável, direi então: Mozart imortal, tu a quem devo tudo. Vou deixar que a admiração, sentimento, principio e objecto único da minha alma, pese inteiramente sobre mim, para me esmagar, como tantas vezes quis. Porque eu pus já todos -os meus negócios em
ordem, pensei já na minha bem-amada, confessei já o meu amor, compreendi que te devo tudo, tudo. Mas eis que já não te pertenço, nem a ti nem ao mundo, estou agora todo entregue ao grave pensamento da morte!»
Neste momento, a orquestra comec <ava a tocar o convite, em que o prazer, redobrando de alegria, se dirige para os céu,% e cobre os gritos de dor de Elvira; e Johannes, já com uma voz
um tanto ou quanto teatral, começou: Ma Za liberta. Et ~tas, acrescentou o mancebo. Mas sobretudo @n iÁno, disse Con~tino para oa interromper, quando se dispunha a dizer aos convivas que fossem ocupando os seus lugaxes.
Ah, como é fácil organizar um banquete; e
no entanto, Constantino deu a sua palavra de honra de que nunca mais se arriscaria a tal! Ah, como é fácil admirar, e todavia Vítor afirmou que nunca mais deixaria falar a sua admi-
0 BANQUETE 69
ração, porque uma desfeita é muito mais terrível do que um ferimento de guerra! Ah, como
é fácil desejar quando se tem na mão a varinha mágica, e todavia desejar é por vezes mais cruel do que morrer de miséria!
s i M P õ s i o
Todos tomaram o seu lugar à mesa. De repente, a feliz sociedade navegava já num oceano
ilimitado de delícias. Cada qual se entregam inteiramente à expectativa e ao apetite do banquete; cada qual deixava que a sua alma vogasse por sobre as ondas de prazeres inesgotáveis. 0 condutor perito logo se revela no momento da partida; às suas ordens obedecem as garbosas parelhas que ele vai guiando altivo; o corcel bem treinado conhece-se logo à primeira vista, quando por movimento de firme decisão, começa a corrida; se um ou outro dos convidados ainda não estava em forma, Constantino já se mostrava anfitrião muito digno de tal nome.
0 festim começou. A conversa em breve deixou de entretecer amáveis grinaldas em redor dos hóspedes e de encadear palavras lisonjeiras; a conversa era agora a respeito dos regalos, das iguarias, e dos vinhos; de vez em quando parecia encaminhada para assunto mais sério, mas
logo tornava a cair em várias futilidades. As ideias jorravam em magnífico, se bem que efémero, tumulto: ou então apareciam com tal fragilidade que, mal afloradas, logo tornavam a fechar-se em botão. «As trufas estão óptimas!»
72 KIERKEGAARD
exclamava um dos convivas, 0 anfitrião replicava: «É excelente, este vinho Château Margaux!» A orquestra ouvia-se ao longe, mas depois os acordes aproximavam-se cada vez mais para encherem o salão de melodias. Imóveis, perfilados, em sentido, pewmaneciam os valetes até chegar o momento de servir novoprato ou de ,encher os copos com outra marca de vinho; depois voltavam a perfilar-se. Havia então uns momentos de silêncio; mas o génio da música depressa restituía a animação aos convivas bem dispostos. 0 Eremita aventava então uma hipótese audaciosa; discursava, os outros ouviam, esqueciam-se de comer, e a música parecia que sublinhava e comentava as palavras dele, como
acontece na ópera. depois dos gritos dos salteadores. Havia também períodos em que todos comiam em silêncio entrecortado pelo tinir crístalino dos,copos e pelos ruídos dos pratos; eram, porém, curtosesses períodos: os primeiros acordes da música tinham o condão de ressuscitar
-a conversa. - Assim decorreu o banquete.
Ali! Quão pobre é a nossa língua, em comparação com tal concerto de ruidos, cheios e vazios de sentido ao mesmo tempo, que é unia batalha ou que é um banquete! Se a arte teatral não tem o poder de reproduzir esse conjunto, muito menos a literatura o poderá desenhar na sequência das suas frases. A língua parece rica na ocasião em que se encontra ao ser-
0 BANQUETE 73
viço do desejo; mas é tão indigente quando pretende descrever a realidade!...
Constantino, que parecia estar em toda a parte, só uma vez perdeu esse dom de ubiquidade, e foi então que deram pela sua falta. Logo no princípio do festim, pediu aos seus amigos que cantassem alguma daquelas velhas trovas dos tempos em que *tanto os homens como as mulheres compareciam nos banquetes». A proposta não deu resultado, teve um efeito meramente paródico, indubitàvelmente desfalcado, porque, quando parecia enveredar-se por melhor caminho, o alfaiate trauteou: «Quando for a lua de mel, falderi, falderi, falderá ... ». Servidos os primeiros dois ou três pratos, declarou Constantíno o seu voto de que o banquete terminasse com um discurso de cada participante. Mas, para evitar o vago e o desultório, que são pechas da má eloquência, postulava duas condições. Haveria que esperar pelo fim do banquete, pois ninguém deveria pedir a palavra enquanto não tivesse bebido o suficiente para se sentir debaixo da -influência do vinho, isto é, antes de se observar naquele estado de loquacidade em que a gente diz multas coisas que não seria capaz de dizer em jejum. Ninguém deveria interromper o orador, para que a sequência das palavrase a das ideias não fossem perturbadas senão pelas pausas naturais ou pelos soluços de
74 KIERKEGAARD
circunstância. Antes de discursar, cada qual deveria declarar solenemente que já se encontrava no estado requerido. Não se fixava a quantidade indispensável de vinho, porque a capacidade de absorção varia de pessoa para pessoa. Mas Johannes protestou. É que ele não era ca-
paz de se embriagar; nunca se tinha embriagado; chegando a certo ponto, quanto mais bebia, mais lhe parecia estar em jejum. Vitor Eremita observou também que a reflexão, exercendo-sea determinar o ponto de embriaguez, impedia o bebedor de lá chegar. Para ficar bêbedo, é -indispensável que a embriaguez apareça de ma-
neira imediata. Estas objecções deram pretexto a discussões acerca dos efeitos do vinho na, cons- ,ciência; pretendia-se que, nas pessoas capazes de muito bem dominarem a sua reflexão, o absorver muito vinho poderia ser de efeito contrário ao es-perado: em vez de um ímpeto ardente, um evidente sangue-frio. Depois tratou-se de escolher o tema dos discursos, e Constantino propÔs o
amor. 0 tema seria, pois, o homem e a mulher. nas suas condições reciprocas; mas dos discursos deveriam ser excluídas as anedotas graciosas ou maliciosas, salvo, evidentemente, no caso de serem indispensáveis para fundamentar ou exem-
plificar a teoria.
Todas as condiçções foram aceites. As justas pretensões de um anfitrião no que diz respeito aos seus convidados foram conseguidas; todos
0 BANQUETE 75
comeram, beberam, ficaram ébrios’ e, como se diz em hebraico, todos se regalaram.
Chegou, enfim, o momento da sobremesa. Se, até então, Vitor não vira satisfeita a sua exigência de ouvir o murmúrio de uma fonte, (o que, felizmente para ele, esqueceu logo a seguir à conversa preliminar) foi-lhe em compensaçao dado o prazer de ouvir os estalidos típicos do «champagne» ao encher das taças. Soaram as doze badaladas da meia-noite. Constantino pediu silêncio e, erguendo a taça, saudou o mancebo com estas palavras: «Quod felix sít austumque! » (11). Quer dizer em primeiro lugar.
0 mancebo levantou-se; jurou que estava já sob o império do vinho, o que era, aliás, muito visível; o sangue palpitava-lhe nas fontes, e o rosto já não estava tão belo como muito antes do banquete. 0 mancebo falou assim:
«Se é verdade o que diz o poeta, então, meus amigos, não há mal pior do que um amor infeliz. E se para estabelecer essa verdade fosse indispensável apresentar provas, nada mais seria preciso do que ouvir as falas dos amantes. Tal amor, dizem eles, é como a morte, a morte certa e terrível. Assim proclamam pela primeira vez, no que acreditam durante quinze dias; à segunda vez, dizem que é a morte; à terceira
(1) Que vos seja feliz e propícia.
76 KIERKEGAARD
vez repetem as mesmas palavras; e finalmente, como um dia morrem, morrem de amor infeliz. Não há dúvida, com efeito, de que morrem de amor; não há dúvida de que oamor tem de fazer três tentativas para lhes arrancar a vida, como o dentista para extrair um molar. Se é verdade o que diz o poeta, se o amor -Infeliz é a morte fatal, - ah! quão feliz me devo eu considerar neste momento, eu que nunca amei, eu que espero morrer de morte natural,, e não, graças a Deus, de amor infeliz! Quem sabe, porém, se não será esta, precisamente a maior infelicidade? Quem me assegura então de que não sou infeliz? Talvez,-e digo talvez porque falo do amor como o cego fala das cores, - que o amor deva a sua importância à sua felicidade, o que também se exprime com o dizer que o fim do amor equivale à morte do amante. Concebo o amor como uma experiência inteiramente intelectual, em que a vida e a morte entram em intima relação. Mas se o amor é redutivel a uma experiência de pensamento, então os amantes, que real-mente se apaixonarem, parecer-nos-ão, ridículos. Por outro lado, se o amor é uma experiência da realidade, tudo quanto os amantes disserem terá que ser necessàriamente confirmado no real. Ora, chegados a este caminho, dizei-me: parece-vos que tal é o caso, parece-vos que assim seja, apesar de tudo quanto se tem dito? Eu, por mim, vejo nisso
0 BANQUETE 77
uma das contradições em que o amor encerra o homem; ignoro o que acontece aos iniciados, mas para mim, repito, o amor envolve o homem na teia elas contradições mais singulares. Nenhumas relações entre pessoas, nenhuma relação inter-individual exigea idealidade, o que só acontece no amor; e no entanto, observando bem., dir-se-ia que tal idealidade nunca se encontra. Isto é já razão suficiente para que uma pessoa se ponha de sobreaviso contra ele; receio, efectivamente, que ele me obrigue, a mim também, a falar em vão de uma felicidade ou de uma infelicidade que realmente nunca experimentei... Tenho, porém, de me explicar porque me convidaram a desenvolver o tema do amor, se bem que para isso me julgue incompetente; falo num circulo de -amigos que me agrada tanto como um
banquete grego; em outras ocasiões, o amor não me dá cuidados, por que não desejo perturbar a felicidade de qualquer outra pessoa, mas apenas viver contente com os meus próprios pensamentos. Sim, talvez que as minhas ideias pareçam, aos olhos dos iniciados, nugas tão inconsistentes como as telas das aranhas; talvez que a
minha ignorância resulte de eu nunca ter aprendido. nem desejado aprender, como é que se
chega a amar. É verdade que eu nunca tive a imprudência de provocar com os meus olhares a atenção de uma mulher; preferi sempre baixar os olhos, recusar-me à impressão de ter visto a
78 KIERKEGAARD
significação daquele poder, - daquele poder à mercê do qual não me queria abandonar. »
Constantino interrompeu-o para o advertir de que

Continue navegando