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INTRODUÇÃO Na apostila História das Relações Étnico-raciais no Brasil, nosso principal objetivo é examinar, criticamente, as relações étnico-raciais em nosso país. Para tanto, analisaremos o processo histórico das relações raciais, as práticas de miscigenação e discriminação raciais ao longo da história brasileira, e as trajetórias de importantes personagens dessa história que foram silenciados. Além disso, estabeleceremos relações entre a situação atual das questões étnico-raciais no Brasil e o longo debate envolvendo tais questões. Sob esse foco, esta apostila foi estruturada em quatro módulos. No módulo I, conheceremos aspectos gerais das sociedades indígenas que existiam no Brasil antes de 1500. Em sequência, compreenderemos parte dos impactos gerados pelo contato entre sociedades indígenas e portugueses no período colonial, e analisaremos as razões e os impactos do estabelecimento da servidão indígena e da escravidão negra nesse período. Além disso, identificaremos práticas de miscigenação raciais e compreenderemos sua inserção no contexto mais amplo da colonização, entendendo, dessa forma, como a miscigenação racial e a resistência social foram articuladas durante esse período. No módulo II, examinaremos os debates constitucionais do século XIX no que diz respeito ao lugar reservado para escravos e indígenas. Analisaremos também como a problemática da mestiçagem foi tratada durante a formação do Estado nacional brasileiro, identificando personagens e movimentos sociais que foram tomados como vilões ou heróis nacionais à época. Por fim, conheceremos pautas e movimentos populares que reivindicavam a ampliação do conceito de cidadania, e mostraremos como os debates e as ações abolicionistas dialogaram com o fim da escravidão no Brasil Império. No módulo III, analisaremos como a Primeira República lidou, juridicamente, com a nova categoria de cidadãos que surgiu por conta de uma sociedade sem escravidão. Identificaremos, ainda, quais foram os principais intelectuais brasileiros que articularam a mestiçagem com a nova conjuntura brasileira da Primeira República, examinando, de maneira crítica, as formulações intelectuais e sociais que levaram à formação do mito da democracia racial no Brasil. Para encerrar esse módulo, conheceremos alguns movimentos sociais e práticas culturais que foram ressignificados a partir da década de 1920, viabilizando o desenvolvimento de um novo olhar sobre a questão da mestiçagem e do mestiço no Brasil. No módulo IV, conheceremos as diferentes políticas econômicas que viabilizaram a inserção de negros, mestiços e indígenas brasileiros na sociedade de classes. Para tanto, examinaremos movimentos sociais protagonizados por negros e indígenas que pleiteavam maior participação política e melhorias sociais no Brasil do século XX. Em sequência, identificaremos parte das heranças culturais deixadas por negros, mestiços e indígenas, e as articularemos com a construção de determinada ideia de brasilidade. Por fim, analisaremos como se construiu parte da memória e da história das relações étnico-raciais no Brasil, privilegiando as falas de lideranças de movimentos sociais que lutaram pelo fim da desigualdade racial no País. SUMÁRIO QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS NO PERÍODO COLONIAL ....................................................................... 7 PRESENÇA INDÍGENA NA TERRA BRASILIS: DIVERSIDADE, HISTÓRIA E SOCIEDADE INDÍGENA ..... 7 A pré-história brasileira ............................................................................................................... 8 Índios de Pindorama .................................................................................................................... 9 Características do grupo tupi-guarani .......................................................................................... 10 Características do grupo tapuia ..................................................................................................... 12 OS “NEGROS DA TERRA” E DE FORA DELA: A MONTAGEM DO SISTEMA COLONIAL .............. 14 Índios: o contato com os portugueses .................................................................................... 14 De bom selvagem a gente bravia: o olhar português sobre o índio ...................................... 15 Trocas comerciais: o extrativismo do pau-brasil e a exploração indígena ........................... 16 Papel da Igreja .................................................................................................................................... 17 A opção pelos africanos escravizados ..................................................................................... 18 Escravidão doméstica ....................................................................................................................... 18 Rotas comerciais ................................................................................................................................ 19 Comércio de escravos africanos .................................................................................................... 20 Etapas da travessia de africanos escravizados para o Brasil ................................................... 24 A chegada ao Brasil ........................................................................................................................... 25 SERVIDÃO INDÍGENA E ESCRAVIDÃO AFRICANA: DINÂMICAS DE EXPLORAÇÃO E RESISTÊNCIA NA AMÉRICA COLONIAL........................................................................................... 26 A servidão indígena .................................................................................................................... 27 Missionários versus bandeirantes .................................................................................................. 28 A escravidão africana e os escravos negros ........................................................................... 30 Produção de açúcar .......................................................................................................................... 30 Demais atividades exercidas por escravos negros .................................................................... 33 Algumas formas de resistências ............................................................................................... 35 Fuga ...................................................................................................................................................... 35 Criação de quilombos ....................................................................................................................... 36 Revoltas ................................................................................................................................................ 36 MESTIÇAGEM: O MOSAICO ÉTNICO DA AMÉRICA PORTUGUESA E A CRIAÇÃO DE NOVAS PRÁTICAS CULTURAIS NAS AMÉRICAS ........................................................................................... 37 Índios e Santidade ...................................................................................................................... 39 As irmandades negras: miscigenação e resistência .............................................................. 40 BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................................... 44 PROFESSORA-AUTORA ........................................................................................................................ 51 Neste módulo, conheceremos aspectos gerais das sociedades indígenas que existiam no Brasil antes de 1500. Em sequência, compreenderemos parte dos impactos gerados pelo contato entre sociedades indígenas e portugueses no período colonial, e analisaremos as razões e os impactos do estabelecimento da servidão indígena e da escravidão negra nesse período.Além disso, identificaremos práticas de miscigenação raciais e compreenderemos sua inserção no contexto mais amplo da colonização, entendendo, dessa forma, como a miscigenação racial e a resistência social foram articuladas durante esse período. Presença indígena na terra brasilis: diversidade, história e sociedade indígena Pindorama foi o primeiro nome dado às terras que hoje chamamos de Brasil. Palavra de origem tupi-guarani, que significa “terra das palmeiras”, ela era usada pelos povos de origem ando-peruana para se referir ao extenso território ocupado por diferentes sociedades indígenas Tupi-Guarani. Tais sociedades indígenas acreditavam viver em uma terra “livre de todos os males”, até a sua invasão no ano de 1500. O caráter mítico de Pindorama parece ter sido elaborado já nos séculos XVI e XVII, quando a colonização e a exploração das populações indígenas eram uma realidade cotidiana para os povos que viviam entre tantos tipos de palmeiras. No entanto, a história dos povos que originaram os Ticuna, Karajá, Krahó, Patasó, Krenak, entre outras tantas sociedades indígenas, é muito mais extensa e complexa do que se possa imaginar. Entender parte dessa história é também compreender aspectos importantes do país que hoje chamamos de Brasil. QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS NO PERÍODO COLONIAL 8 A pré-história brasileira Durante muitos anos, as histórias e trajetórias das sociedades indígenas já existentes no Brasil antes da chegada dos portugueses foram relegadas a segundo plano pelos historiadores. A justificativa dessa omissão era a de que a ausência de escrita em praticamente todas as sociedades indígenas que habitavam as terras brasileiras parecia inviabilizar uma compreensão sistêmica do passado indígena. Apesar de essa postura estar mudando atualmente, sabemos que ela está muito mais relacionada aos debates metodológicos e teóricos da História do que às características específicas das sociedades indígenas. De qualquer modo, é fato que a ausência da escrita fez com que, durante muitos anos, o estudo do passado dos povos indígenas fosse uma tarefa desempenhada apenas por antropólogos, arqueólogos e linguistas. Sem dúvida alguma, os trabalhos desenvolvidos nessas três áreas de conhecimento foram fundamentais para a sistematização de boa parte do conhecimento atual que se tem sobre as diferentes histórias dos índios no Brasil. Para que possamos conhecer parte desse universo, é interessante recuarmos no tempo e buscarmos as origens mais antigas dos homens e das mulheres que viviam em Pindorama. De acordo com uma série de estudos arqueológicos, as histórias e a diversidade das populações indígenas são consequências diretas do processo de povoamento das terras da América do Sul. Existem duas teorias mais difundidas e comprovadas (por meio de vestígios arqueológicos) a respeito da chegada da humanidade no continente americano. Vejamos: a) Teoria do Estreito de Bering: Proposta, inicialmente, no ano de 1590 d.C., por José Acosta, tal hipótese passou a ser aceita em 1930, quando foram encontrados, em escavações arqueológicas, nas proximidades da cidade de Clóvis (Novo México) – EUA, artefatos de mesmo tipo dos anteriormente descobertos na região da Beríngia. Segundo os especialistas que defendem essa teoria, durante a última glaciação (entre 50 e 12 mil anos atrás), a concentração de gelo nos continentes fez descer o nível dos oceanos em pelo menos 120 metros. Essa descida provocou o aparecimento de diversas conexões terrestres entre vários pontos do planeta, como entre Austrália-Tasmânia e Nova Guiné, e entre Japão e Coreia. Segundo os vestígios encontrados, essa ocupação ocorreu há 12 mil anos, mas descobertas mais recentes indicam que a travessia pode ter ocorrido há 40 ou 50 mil anos. b) Teoria migratória: A segunda teoria não exclui a primeira, mas defende que diversas tribos da Polinésia teriam utilizado canoas primitivas e, em uma longa viagem de ilha em ilha, rumo ao leste, teriam chegado à América do Sul. O principal defensor dessa teoria, apresentada pela primeira vez em 1943, foi o antropólogo francês Paul Rivet. A migração defendida por Rivet seria responsável pela presença de centenas de artefatos de pedra e restos de alimentos mais antigos que as lascas de 9 Clovis na região de Monte Verde (atual Chile). De fato, essa região reúne um vasto tesouro da arqueologia americana. Lá foram encontrados ossos de animais, fundações de casas de madeira, plantas comestíveis, além de diferentes plantas medicinais. Já o antropólogo e arqueólogo brasileiro Walter Neves defende a tese de que as diversas ondas migratórias para as Américas teriam ocorrido em momentos distintos e sido realizadas por povos oriundos da Ásia e da Oceania. No entanto, a polêmica sobre a chegada da humanidade nas Américas aumentou a partir dos estudos coordenados por Niede Guidon na Serra da Capivara (Piauí, Brasil). Tais estudos apontaram a presença humana na região há mais de 48 mil anos, o que remeteria a uma onda migratória via Oceano Pacífico entre 80 e 70 mil anos atrás. De acordo com esses estudos, o Parque da Serra da Capivara guardaria os vestígios mais antigos da presença humana no Novo Mundo. Em que pese a polêmica sobre o tema – que aponta para a necessidade de estudos conjuntos e comparados dos diferentes sítios arqueológicos americanos –, atualmente não restam dúvidas sobre a origem diversa da presença humana nas Américas. Em um esforço de sintetizar os aspectos mais relevantes das histórias dos índios no Brasil, Melatti (2007) faz uso de diferentes estudos arqueológicos para explicar como as primeiras ondas migratórias desembocaram na ocupação do atual território brasileiro. De acordo com a autora, os primeiros habitantes teriam chegado às terras brasileiras no Pleistoceno (2,5 milhões a 11,5 mil anos atrás), como demonstram os vestígios encontrados na Toca do Boqueirão e no Sítio da Pedra Furada, no sudeste do Piauí. É justamente do final desse período que data o crânio mais antigo das Américas, que recebeu o nome de Luzia. Em seguida, no período Holoceno (que data de 11,5 mil anos até o presente), os grupos humanos que viviam nessa parte da América começaram a desenvolver uma série de técnicas, como a cerâmica, cujos indícios mais antigos foram encontrados em Taperinha, no atual Pará, e datam de 5 mil a 4 mil a.C. Os registros mais antigos da arte rupestre variam de 10 a 4 mil a.C. e estão localizados no estado do Piauí. A presença dessa arte em diferentes pontos do atual Brasil e suas diferentes datações apontam para a diversidade da ocupação humana nesse território. Tal diversidade, constitutiva da forma por meio da qual a humanidade chegou e habitou o continente americano, teve reflexos nas diversas sociedades indígenas que habitavam as terras de Pindorama. Índios de Pindorama As sociedades indígenas que habitavam Pindorama eram muito mais diversas do que os portugueses supunham. Estudos que integram trabalhos etnográficos feitos por antropólogos brasileiros e pesquisas historiográficas realizadas a partir do exame crítico dos registros deixados por portugueses e colonos que viveram no Brasil entre os séculos XVI e XVIII permitem traçar 10 alguns panoramas sobre os modos de vida dos grupos indígenas do momento que antecedeu a chegada de Pedro Álvarez Cabral até as primeiras décadas de contato entre índios e europeus. Os povos indígenas brasileiros estão organizados em dois grandes grupos:1 grupo tupi-guarani – assim conhecido graças às semelhanças linguísticas observadas, esse grupo abarcava uma série de sociedades que vivia na extensa região litorânea entre São Vicente (no sul) e Maranhão; grupo tapuia – esse grupo foi caracterizado pela palavra tupi “tapuia”, que significa os “fugidos da aldeia” ou “aqueles de língua enrolada”. Características do grupo tupi-guarani Tupinaê, tupiniquins, tupinambás e guaranis são exemplos dealguns povos indígenas que viviam nas terras que hoje chamamos de Brasil. Milhares de povos que viviam na faixa litorânea entre São Vicente (atual região Sudeste) e Maranhão guardavam semelhanças linguistas (e, por vezes, culturais) significativas. Entre essa variada gama de povos e culturas (muitas delas rapidamente dizimadas com a chegada dos portugueses), os tupinambás compunham a sociedade mais estudada e conhecida, graças a seu intenso contato com os portugueses durante os séculos XVI e XVII. Em trabalho sobre a produção de açúcar nos primeiros anos da colonização, Stuart Schwartz (1992) pontuou alguns aspectos culturais desses índios. A seguir, veremos cada um desses aspectos: a) Estrutura familiar: Segundo Schwartz, os tupinambás viviam em aldeias que possuíam entre quatrocentos e oitocentos indivíduos. Como acontecia com outros povos de origem tupi, as aldeias tupinambás estava dividias em unidades familiares. Todavia, a concepção de família desses índios era muito diferente da concepção conhecida, historicamente, pelo Ocidente. A família tupinambá era uma família extensa cujos irmãos, filhos, sobrinhos e tios conviviam intensamente. Dessa forma, era comum que as unidades familiares organizassem sua morada em um número determinado de malocas (nome dados à estrutura habitacional dos tupinambás), que, geralmente, variava entre 7 e 8 por família. 1 Embora essa taxonomia tenha sido criada a partir do olhar dos primeiros portugueses que estiveram em terras brasileiras, parte do critério por eles utilizado revela algumas distinções significativas entre as matrizes socioculturais das sociedades indígenas. Tais distinções foram reforçadas (sem tantos estereótipos) por estudos mais recentes e menos estigmatizados desses povos. 11 b) Divisão social do trabalho: Organizada pelas relações de parentesco, frequentemente, era a combinação entre a identidade de gênero e a faixa-etária que determinava a divisão social do trabalho. Dito de outra forma, as famílias tupinambás, geralmente, organizavam-se por meio da lógica da seguinte divisão do trabalho: às mulheres cabia o cuidado com o mundo doméstico, ou seja, tudo aquilo que estava atrelado à subsistência básica da família, como o cuidado com os filhos menores e a atividade da agricultura; já aos homens cabia a responsabilidade pelas atividades que ultrapassavam o mundo doméstico stritu senso, como a caça, a pesca e, principalmente, a guerra. c) Agricultura: As sociedades indígenas desenvolveram diferentes técnicas para praticar a agricultura. Os tupinambás, por exemplo, praticavam a coivara, uma técnica que consistia na abertura de clareiras em determinadas áreas da floresta por meio de queimadas. As cinzas resultantes desse processo eram utilizadas como fertilizantes do solo, que, em seguida, era semeado pelas mulheres da aldeia. Entre os gêneros cultivados destacavam-se o feijão, o milho, a abóbora, algumas frutas e, principalmente, a mandioca (também conhecida como aipim ou macaxeira), base da alimentação tupinambá e, mais tarde, de toda a colônia. A mandioca também era a base para a produção de uma bebida que tinha funções ritualísticas e religiosas para os tupinambás: o cauim. d) Guerras e rituais: Ao visitar a região do atual Rio de Janeiro, em meados do século XVI, o missionário francês Jean de Lery observou que [...] enquanto dura a cauinagem os nossos brejeiros americanos, para melhor esquentar o cérebro, cantam, assobiam e se incitam uns aos outros a portarem-se valentemente e a fazerem muitos prisioneiros na guerra; enfileiram-se, como grous, e não cessam de dançar, de entrar e sair da casa em que se reúnem, até que tudo se conclua, isto é, que se tenha esgotado toda a bebida (LERY, 1961, p. 108). Embora repleto de preconceitos em relação aos costumes tupinambás, Jean de Lery conseguiu entender a importância que o cauim exercia em algumas práticas festivas, bem como a relação existente entre essas festividades e a atividade da guerra – relação essa um tanto estranha ao olhar do europeu. Essa estranheza atribuída pelo missionário francês só pode ser entendida a partir de um exame mais cuidadoso da ideia de guerra para os tupinambás. De modo geral, é possível afirmar que a guerra tinha funções econômicas e simbólicas para esse povo. Em primeiro 12 lugar, porque, quando exitosa, a guerra viabilizava a obtenção de prisioneiros (cativos) bem como a ampliação territorial. Além disso, era comum que os jovens guerreiros tivessem de passar por uma espécie de iniciação antes de casarem. Tal iniciação consistia, justamente, na captura de um prisioneiro de guerra, que seria oferecido em sacrifícios. Os sacrifícios, presentes em diferentes sociedades humanas ao longo da história, também foram tema de horror e de criação de estereótipos por parte dos europeus. Ao descrever o destino dado aos prisioneiros de guerra, o francês Jean de Lery notou o seguinte: Logo depois de chegarem são não somente bem alimentados mas ainda lhes concedem mulheres (mas não maridos às prisioneiras), não hesitando os vencedores em oferecer a própria filha ou irmã em casamento. Tratam bem o prisioneiro e satisfazem-lhe todas as necessidades. Não marcam antecipadamente o dia do sacrifício; se os reconhecem como bons caçadores e pescadores e consideram as mulheres boas para tratar das roças ou apanhar ostras conservam-nos durante certo tempo; depois de os engordarem matam-nos afinal e os devoram em obediência ao seguinte cerimonial (LERY, op. cit., p. 154). O canibalismo indígena chamou a atenção de outros europeus que estiveram em contato com os índios no começo do século XVI. Ao descrever a prática do canibalismo, Hans Staden (1930, pp. 156-157,) chamou a atenção para o seguinte fato sobre os tupinambás: "Não o fazem por fome, mas por ódio e inveja, e, quando combatem na guerra, gritam um para o outro: para vingar a morte de meus amigos, estou aqui; tua carne será hoje, antes que o sol entre, meu assado." Estudos antropológicos têm mostrado que os significados do canibalismo praticados por algumas sociedades indígenas passaram ao largo da ideia de barbárie difundida por europeus. Baseado na cosmogonia tupinambá, o canibalismo era um ritual antropofágico em que o inimigo prisioneiro de guerra era (depois de uma iniciação) morto pela sociedade vitoriosa e tinha suas partes distribuídas entre os indivíduos do grupo vencedor. Como sugerido pela leitura crítica da formulação de Staden, o objetivo dos sacrifícios humanos era o de alimentar-se, simbolicamente, das características do oponente. Características do grupo tapuia Ainda que a maior parte dos documentos encontrados e dos estudos feitos sobre as sociedades indígenas que entraram em contato com os portugueses (e outros europeus) privilegie o estudo das dinâmicas dos tupis-guaranis, é possível encontrarmos em estudos alguns aspectos de índios que pertenciam a outro tronco linguístico: os tapuias. 13 Os tapuias foram organizados como grupo indígena muito mais por suas características discrepantes dos tupis-guaranis do que por características culturais semelhantes. Isso faz com que seja muito difícil traçar um panorama mais amplo dessa grande variedade de povos indígenas sem incorrer em generalizações homogeneizantes dessas sociedades. Ao falar especificamente dos aimorés, também conhecidos como botocudos (que, por não serem tupis-guaranis, eram classificados como tapuias automaticamente), Gabriel Soares de Souza (1587), um português que esteve o Brasil no final do século XVI, afirmou o seguinte: Descendem estes aimorés de outros gentios a que chamam tapuias, dos quais nos tempos de atrás se ausentaram certos casais, e foram-se para umas serras mui ásperas, fugindo a um desbarate, em que os puseram seus contrários, onde residiram muitos anos sem verem outra gente; e os que destesdescenderam, vieram a perder a linguagem e fizeram outra nova que se não entende de nenhuma outra nação do gentio de todo este Estado do Brasil (SOUZA, 1587, p.78-79). Embora seja impossível criar um perfil dos índios tapuias – devido, justamente, ao fato de a sua pluralidade étnica não ter sido representada pela organização taxonômica implementada pelos portugueses no século XVI –, é fundamental pontuar que esses povos, assim como aqueles que compunham as sociedades tupis-guaranis, tiveram seus costumes e histórias radicalmente alterados a partir do contato com os portugueses e da sistematização da empresa colonial. O holocausto que assolou a população indígena a partir de 1500 não respeitou as idiossincrasias dos milhares de grupos étnicos que compunham as terras brasileiras à época. De acordo com os dados do IBGE, no início do século XVI, as populações indígenas do Brasil (que ainda não existia como tal) giravam em torno de 2 milhões. Em 1998, esse número mal chegava a 300 mil. As razões de tamanha mortandade e as diferentes formas que as diversas sociedades indígenas encontraram para sobreviver nesses últimos quinhentos anos serão algumas das questões trabalhadas mais adiante. 14 Os “negros da terra” e de fora dela: a montagem do sistema colonial “Os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar a fazenda, nem ter engenho corrente” (ANTONIL, 1982, p. 89). Proferida nos primeiros anos do século XVIII, a frase do Padre Antonil transformou-se em uma espécie de jargão sobre o uso da mão de obra no período colonial brasileiro. Embora estivesse tratando, exclusivamente, do universo açucareiro – Antonil versava sobre a relação entre escravo e senhor de engenho –, a máxima está longe de ter sido um exagero. Diversos estudos historiográficos demonstram que a América portuguesa se formou a partir da mão de obra escrava, tornando-se dependente dessas mãos e desses pés para funcionar. Não seria exagero algum afirmar que a montagem do sistema colonial não pode se dissociar da escolha dos colonos (com aval e respaldo da Metrópole portuguesa e da Igreja católica) pelo uso sistêmico de cativos. Exemplo disso está, justamente, nos diferentes usos e atividades executados por esses homens e mulheres que viveram sob o julgo da escravidão, bem como na diversidade que marcou a origem dos escravos da América Portuguesa. Compreender quem eram esses escravos e como eles se transformaram na engrenagem axial do sistema colonial é o objetivo desta unidade. Índios: o contato com os portugueses A chegada dos portugueses nas terras que viriam a batizar como Brasil trouxe mudanças profundas e violentas para a vida de homens e mulheres que ali viviam. A partir de ano de 1500, milhares de sociedades autóctones – organizadas de formas distintas, com línguas e costumes próprios – passaram a ser conhecidas apenas como “tribos indígenas”. Embora os portugueses tenham reconhecido, rapidamente, a diferença entre os grupos que moravam na região litorânea e os que habitavam os chamados sertões, criando uma falsa dicotomia entre os tupis (litoral) e os tapuias (interior), o índio transformou-se em uma categoria jurídica que, definida a partir de aspectos exteriores a sua cultura, foi acionada das mais diferentes formas com o objetivo de fazer valer os interesses coloniais. 15 Saiba mais A criação da categoria indígena não foi uma particularidade do mundo lusitano nas Américas. Acreditando ter chegado em uma das ilhas próximas ao Japão, em 12 de outubro de 1492, Cristóvão Colombo aportou naquilo que ele imaginou ser parte das Índias. Os habitantes, homens e mulheres nus, de pele encarnada e cabelos lisos, seriam os habitantes das Índias e, por isso, foram chamados de índios. Embora o engano de Colombo tenha sido rapidamente descoberto, o nome dado a todos os habitantes das Américas – independentemente de quem os tenha colonizado – continuou sendo o mesmo. A manutenção desse erro diz muito sobre como as nações europeias lidaram com os grupos autóctones do continente, deixando sempre muito evidente que as questões indígenas faziam parte daquilo que Tzevan Todorov (1982) chamou de “descoberta do outro”. De bom selvagem a gente bravia: o olhar português sobre o índio Os relatos deixados pelos primeiros viajantes portugueses que aportaram naquelas que viriam a ser chamadas de terras brasileiras não deixam dúvidas quanto à estranheza causada pelas sociedades indígenas aos olhos dos europeus. Exemplo disso é a famosa Carta de Pero Vaz de Caminha, que muito mais se assemelha a um diário, escrito em 1500, assim que os portugueses aportaram nas Américas. Segundo Manuela Carneiro da Cunha (2012), uma análise crítica desse documento permite-nos compreender a descoberta progressiva que os portugueses fizeram dos grupos indígenas com que entraram em contato ainda em 1500. A nudez dos índios (sobretudo, das índias), que chocou Caminha em um primeiro momento, gerou descrições detalhadas, feitas em relatos que, ao mesmo tempo, tinham forte carga sexual e também expunham aquilo que os lusitanos consideravam parte da inocência indígena. Todavia, como alerta Carneiro da Cunha (op.cit), tal inocência indígena atribuída pelo olhar europeu acabou por se transformar em uma simpatia “cega”, responsável por fazer com que os primeiros europeus que estiveram nas Américas enxergassem muito mais aquilo que eles queriam ver do que, necessariamente, a realidade observada. A dificuldade em compreender o outro foi responsável pela criação de estereótipos que até hoje pautam as questões e políticas indígenas no Brasil. A simpatia descrita por Caminha fez com que o português definisse os índios como gente montesa, bravia e selvagem, organizada em sociedades que, de acordo com Cristóvão Colombo, pareciam não ter lei nem rei e, muito menos, fé. 16 Em 1501, Américo Vespúcio não viu com bons olhos aquilo que Pero Vaz de Caminha considerou o “bom selvagem”. Para ele, a nudez indígena era muito mais antropofágica do que inocente. Desse modo, a “boa selvageria” logo deu lugar à irracionalidade de todos aqueles homens e mulheres que, segundo Américo Vespúcio, entravam em guerra por motivos banais e desconheciam o significado da propriedade privada. Os índios passaram então a ser vistos como uma gente bravia, que parecia pouco afeita ao trabalho e aos desígnios de Deus. Trocas comerciais: o extrativismo do pau-brasil e a exploração indígena Como vimos, durante os primeiros cinquenta anos do século XVI, o contato entre portugueses e sociedades indígenas foi marcado por uma estranheza de múltiplos sentidos e significados. Nesse período, alguns poucos gentios foram levados à Corte do Bem-Aventurado D. Manuel I – Rei português que incentivou e patrocinou as viagens responsáveis pela descoberta da rota para as Índias e pela chegada lusa às Américas – como símbolo das conquistas do monarca lusitano nesse mundo exótico que se apresentava. Também nesse período, tiveram início as primeiras trocas comerciais entre portugueses e autóctones, fazendo do pau-brasil o primeiro produto do Novo Mundo a chegar a terras lusitanas em grande quantidade. À medida que a demanda por pau-brasil aumentava, a relação entre portugueses e sociedades indígenas tornava-se menos amistosa. O olhar quase bucólico de Pero Vaz de Caminha logo deu lugar à otimização do uso dessa árvore nativa que tinha diversas qualidades. Por conta de sua abundância na Mata Atlântica, que cobria boa parte do litoral, a resina vermelha do pau-brasil foi rapidamente empregada na produção têxtil de Portugal e de outros países europeus. Além disso, a madeira da árvore, que era, ao mesmo tempo, resistente e maleável, passou a ser utilizada na produção de embarcações. Essa atividade extrativista foi responsável por uma segunda onda de mortandade indígena. A primeiraocorreu nos primeiros anos de contato entre os portugueses e os povos de Pindorama, devido, sobretudo, à falta de imunidade dos povos indígenas a doenças como gripe e febre amarela. A lucratividade resultante da exportação do pau-brasil acabou por implementar um modo de exploração violento, obrigando os índios a trabalharem em um sistema que não só era muito mais exaustivo (muitas horas de trabalho, pouca alimentação, etc.) como também ia de encontro a suas organizações socioeconômicas e relações com territórios ocupados. Não por acaso, muitos povos fugiram da região litorânea, embrenhando-se nas matas e nos sertões ainda desconhecidos pelos portugueses. 17 Nesse período, aqueles que não foram abatidos pelas epidemias acabaram tornando-se os chamados “negros da terra”, termo que faz alusão direta à escravização já existente de africanos e que demonstra como os índios também eram vistos como mão de obra barata pelos primeiros colonos portugueses. O uso quase indiscriminado da população indígena nos primeiros anos de colonização esteve atrelado à forma como os índios passaram a ser vistos e tratados pela grande maioria de europeus que se aventuraram no Novo Mundo. No entanto, é fundamental ressaltar que os olhares lançados a esses índios não foram sempre os mesmos. A chegada nas Américas significou a descoberta de uma “outra humanidade” – ou do outro, como bem pontuou Todorov (1992) –, o que criou debates filosóficos extremamente profundos em toda a Europa. Missionários católicos e protestantes que haviam entrado em contato com os diferentes grupos indígenas nas Américas lideraram discussões acerca da natureza desses homens e mulheres “recém-descobertos”, marcando o cenário intelectual do século XVI. Papel da Igreja Um dos propósitos das grandes navegações – se não o maior deles – era difundir a palavra de Cristo, nem que para isso fosse necessária uma verdadeira guerra santa. Os milhares de índios americanos constituíam um aumento potencial e significativo do rebanho da Igreja Católica, que, à época, estava lidando com uma forte crise dogmática implementada pelo movimento que ficou consagrado como Reforma. No entanto, inclusive para definir quais seriam os métodos de conversão e absorção da população indígena na comunidade católica, era fundamental determinar qual era a natureza desses indígenas. Um dos momentos mais extremos das discussões sobre a natureza indígena e como a religiosidade cristã deveria portar-se frente a ela ocorreu entre os anos de 1550 e 1551, na cidade de Valladolid, na Espanha. No evento, que ficou conhecido como Debate de Valladolid, o frade dominicano Bartolomeu de Las Casas (conhecido defensor dos indígenas) e o jurista Juan Guinés de Sepúlveda apresentaram argumentos morais e teleológicos sobre as questões relativas à colonização da América e à conversão dos índios ao cristianismo. Os juízes de Valladolid, infelizmente, suspenderam o debate sem uma decisão definitiva acerca da situação indígena, sob o argumento de que eram necessárias novas investigações sobre a questão. Prometeram, no entanto, apresentar uma resposta por escrito, o que nunca foi cumprido. Diante do silêncio, Las Casas e Sepúlveda se declararam vencedores, o que, de certa forma, era verdadeiro. A favor da vitória de Las Casas é possível citar o fato de que a Coroa espanhola adotou a doutrina da persuasão racional e pacífica dos índios como método de evangelização (em uma 18 tentativa de barrar os horrores vivenciados nas primeiras décadas do século XVI) e aprovou a Lei Básica de 1573, que incorporou importantes ideias do dominicano, como a proibição da escravidão e do uso da violência contra os indígenas. Por outro lado, não se pode deixar de observar que alguns argumentos de Sepúlveda também foram aceitos pela Coroa. No próprio texto da Lei de 1573, percebe-se que a colonização continuava a ser vista como algo benéfico aos índios, e como obrigação dos espanhóis (e também dos portugueses) e da Igreja, que deveriam ensinar-lhes costumes mais civilizados e a religião Cristã. Ademais, a lei abria exceções quanto à proibição do uso da força contra os índios: caso esses povos demonstrassem resistência à colonização ou às tentativas de pregação pacífica do Evangelho, seria permitido o uso da força. Em consonância com o que a Igreja Católica havia outorgado, impedindo a escravização dos povos indígenas que se dispusessem a passar pelo processo de evangelização, no ano de 1570, o Rei português Filipe II promulgou uma lei que proibia a escravização de índios na América Portuguesa, com exceção daqueles que se recusassem a passar pelo processo de catequização. A decisão tomada pelo monarca lusitano não só afiançava os ditames do Vaticano como também marcava uma posição da Metrópole frente ao uso da mão de obra escrava na América portuguesa. Tal posição ia de encontro ao que muitos missionários defendiam, contrariando interesses de diversos colonos favoráveis à escravização indígena. Apesar de os chamados “negros da terra” terem sido protegidos pela decisão do Monarca, os negros do outro lado do Atlântico não tiveram a mesma sorte. A opção pelos africanos escravizados Escravidão doméstica Quando os portugueses chegaram às Américas, sua relação comercial com diferentes sociedades africanas já era uma realidade há mais de cinco décadas. A principal mercadoria comercializada com essas sociedades era o africano escravizado. Como pontuado por diferentes autores, como Claude Meillassoux (1995) e Paul Lovejoy (2002), antes mesmo das relações com os europeus, a escravidão já era uma realidade em diferentes sociedades africanas, embora, na maior parte dos casos, tais sociedades não dependessem do trabalho desses escravos para fazer suas respectivas economias funcionarem. Muitos estudos classificam essa escravidão como doméstica, não porque ela fosse mais amena do que outras experiências igualmente marcadas pela violência física, psicológica e simbólica; mas sim pela sua representatividade na economia dessas sociedades. 19 Meillassoux e Lovejoy também sugerem que, de modo geral, os povos da África Ocidental e Centro Ocidental preferiam escravas a escravos. Essa prática, que muito explica alguns funcionamentos socioculturais das sociedades africanas, viabilizou a existência de certa oferta de africanos escravizados, o que foi rapidamente aproveitado pelos mercadores portugueses e, mais tarde, por traficantes de outras nacionalidades. Rotas comerciais Como vimos, Portugal foi a primeira nação europeia a explorar a África Ocidental. A partir do século XV, após a expulsão dos muçulmanos e a formação do Estado nacional moderno de Portugal, iniciou-se o período conhecido como Grandes Navegações. A fim de fomentar a economia de um Estado nacional que se formava frente a uma Europa que passava por profundas crises econômicas e conflitos militares, as elites políticas e econômicas lusitanas compreenderam que seria fundamental participar do lucrativo e diversificado comércio feito no Oceano Índico. Durante muitos anos, as rotas comerciais do Índico eram utilizadas para levar as mercadorias mais importantes e caras a diversas regiões da Europa, do Oriente Médio, da Ásia e do Norte da África. São exemplos dos produtos comercializados: tecidos luxuosos, como a seda e veludo; especiarias, como a canela e a pimenta; ouro e prata. No entanto, para participar desse lucrativo comércio, os portugueses precisavam vencer um obstáculo: à época, o acesso do continente europeu a essas rotas dependia dos principais portos do Mar Mediterrâneo, que eram controlados por mercadores oriundos de cidades da Península itálica bem como por negociantes muçulmanos – considerados inimigos religiosos dos católicos e, consequentemente, dos portugueses. Existia ainda a expectativa de ter acesso direto às minas de ouro do continente africano, cuja existência era frequentementerelatava pelos viajantes muçulmanos que estavam vinculados ao comércio transaariano, ou seja, aquele que usava o Saara como rota. Como o Mediterrâneo, caminho mais fácil para chegar às Índias, estava sob o controle dos muçulmanos, e os recentes debates filosófico-científicos defendiam a teoria de que a terra era redonda, os portugueses resolveram contornar todo o continente africano para chegar à Ásia. Se, por um lado, o trajeto era muito maior e mais perigoso do que a opção mediterrânica – pois não se tinha notícia de nenhum outro povo que tivesse tentado realizar tal façanha –, por outro lado, caso tivessem êxito nessas viagens, os portugueses passariam a controlar uma nova rota comercial marítima. 20 O Rei português e os principais comerciantes do país passaram então a investir muito dinheiro nessa empreitada. A construção de navios, os gastos com tripulações e o desenvolvimento de novos instrumentos de navegação que facilitassem a orientação dos marinheiros quando estivessem no meio do mar são exemplos de realizações a que foram direcionados esses investimentos. A conquista de Ceuta, em 1415, foi o primeiro feito resultante dos novos investimentos e encorajou os portugueses a seguirem em frente. Quatro anos depois, eles chegaram às Ilhas da Madeira. Já em 1430, chegaram ao Arquipélago dos Açores. Contudo, o feito de maior importância das navegações aconteceu no ano de 1434 os portugueses conseguiram ultrapassar o Cabo do Bojador, chegando à desconhecida África Subsaariana. A partir de então, o estabelecimento de relações com as sociedades africanas somou-se às intenções dos mercadores e navegadores portugueses, fazendo com que viagens às regiões africanas que ficavam ao sul do Saara se tornassem frequentes. No ano de 1446, as expedições portuguesas aportaram em Guiné, região que era habitada por diferentes sociedades (organizadas de formas politicamente distintas). Quarenta e oito anos depois, os portugueses chegaram às margens do rio Congo, na África Centro-Ocidental. A partir do contato com as diferentes sociedades africanas do reino que já ali existia, os portugueses inauguraram o estabelecimento de importantes redes comerciais. Nesse contexto, é necessário entendermos o seguinte: ao contrário do que foi difundido durante muitos anos por estudos que pouco analisaram a organização e a história da África, grosso modo, as sociedades africanas que entraram em contato com portugueses e europeus durante desenvolvimento do tráfico transatlântico de africanos escravizados eram soberanas e mantiveram tal situação, impedindo invasões em seus territórios e a possível perda de sua autonomia política. Comércio de escravos africanos Ao contrário do que se pode imaginar, a chegada dos portugueses à África ao Sul do Saara não significou a dominação dos grupos africanos que viviam naquela região. As primeiras tentativas portuguesas de ultrapassar a região litorânea da costa ocidental africana foram impedidas tanto por doenças, que assolaram sua tripulação (como a malária e a febre amarela), quanto por batalhas travadas entre africanos e europeus. Munidos de arcos e flechas, pequenas espadas e ágeis pirogas, os africanos venceram as armas de fogo europeias. Como a tentativa de dominação não teve êxito, a principal relação estabelecida entre portugueses e africanos foi o comércio. 21 Também é importante pontuarmos que a soberania das sociedades africanas impediu que os portugueses tivessem acesso às minas de ouro que haviam sido descritas pelos viajantes árabes. A quantidade de ouro que os portugueses conseguiram comprar no continente africano foi muito menor do que eles haviam sonhado. Dessa forma, os lusitanos transferiram, rapidamente, seus interesses comerciais para outra mercadoria: o escravo africano. Nos primeiros anos de relação, os africanos escravizados eram comercializados como outra mercadoria qualquer. As elites das sociedades africanas que habitavam as regiões próximas ao litoral começaram a trocar os escravos que já possuíam (geralmente, oriundos de outras sociedades africanas subjugadas pelo grupo dominador) por produtos europeus que lhes interessavam, tais como miçangas, veludo e armas de fogo. Durante o século XV, os negociantes portugueses compraram um grande número de africanos. Esses escravos eram vendidos a outras sociedades europeias ou utilizados como mão de obra na produção de cana-de-açúcar, nas regiões recém-colonizadas do Atlântico Norte. Com o objetivo de facilitar o transporte desses escravos, os portugueses construíram o forte de São Jorge da Mina, em 1482. Durante a construção, Portugal teve de pagar altos impostos ao povo acan, que controlava a região. No entanto, a construção desse forte viabilizou o aumento vertiginoso dos lucros lusitanos nas trocas comerciais. O forte funcionava como um depósito, capaz de armazenar um grande número de mercadorias (sobretudo escravos), enquanto os portugueses esperavam que suas embarcações voltassem das viagens feitas ao continente europeu. Saiba mais Mesmo antes da chegada dos europeus às Américas, os africanos escravizados eram enviados a diferentes localidades da Europa, chegando a compor 10% da população das cidades de Sevilha e Lisboa nos primeiros anos do século XVI. Como se não bastassem as razões econômicas, os lusitanos encontraram uma forte aliada para justificar a escravização de diferentes povos africanos: a Igreja Católica. Esse apoio de devia ao fato de a Igreja entender o processo de escravização dessas sociedades como mais uma forma de lutar contra os infiéis e ampliar seu rebanho. No ano 1454, o Papa Nicolau V publicou uma bula papal a esse respeito. Vejamos: Guinéus e negros tomados pela força, outros legitimamente adquiridos foram trazidos ao reino, o que esperamos progrida até a conversão do povo ou ao menos de muitos mais. Por isso nós, tudo pensando com devida ponderação concedemos ao dito rei Afonso [de Portugal] a plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos seus aos mesmos D. Afonso e seus sucessores, e ao infante. 22 Embora os portugueses e os demais europeus não tenham empreendido nenhum tipo de Cruzada no continente africano, a autorização conferida pela Igreja liberava-os de qualquer comprometimento moral com o fato de comercializarem africanos escravizados. A leitura específica de determinadas passagens bíblicas determinou, por exemplo, que os guinéus (como eram chamados os africanos naquela época) eram os descendentes de Can e ou de Cain. A cor negra de sua pele passou a ser entendida, portanto, como um defeito, uma marca do pecado de seus antepassados. Como ocorreu em outros momentos da história, interesses religiosos e econômicos pareciam ter o mesmo fim. Estudos pioneiros, como o de Philip Curtin (1969), demonstram que a chegada dos europeus às Américas causou um verdadeiro redimensionamento do tráfico de africanos no atlântico, fazendo desse comércio um dos mais lucrativos do chamado Mundo Atlântico. A implementação do sistema colonial, que visava à produção, em larga escala, de gêneros tropicais com grande demanda na Europa, só poderia ser realizada caso a mão de obra utilizada fosse abundante e barata, ou seja, escrava. A dizimação de grande parte da população ameríndia e a proibição da escravização indígena no começo do século XVI transformaram o africano escravizado em uma alternativa viável e lucrativa. 23 A cronologia do tráfico de africanos escravizados para o Brasil pode ser sistematizada da seguinte forma: Entre o final do século XVIII e o início do século XIX, uma série de rotas comerciais já estavam estabelecidas com diferentes regiões da América Portuguesa, como demonstram os trabalhos de Pierre Verger (1985) ede Luis Felipe de Alencastro (2000). Vale ressaltar que, nesse período, boa parte dessas rotas eram controladas por traficantes já nascidos em terras brasileiras, responsáveis por criar uma elite colonial que não só estava envolvida na produção de gêneros tropicais de exportação mas também controlava o fluxo da principal mão de obra empregada na colônia. Sendo assim, a partir de 1580, africanos de diversas localidades do continente passaram a desembarcar, em peso, na América portuguesa para trabalhar como escravos em diferentes atividades econômicas. Séc. XV As primeiras grandes levas de africanos escravizados saíram da região que hoje corresponde aos países de Congo e Angola, na África Centro Ocidental. Como demonstrado pela historiografia, a volumosa compra de escravos nessa região estava intimamente relacionada com a conversão do Rei do Congo ao catolicismo e com a íntima ligação o que este reino passou a ter com os portugueses. Séc. XVI e XVII Nos dois séculos seguintes, XVI e XVII, portugueses e outras nações europeias como os holandeses franceses, e ingleses começaram a comprar africanos escravizados da região que ficou conhecida como Costa do Ouro (no atual país de Gana) habitada pelos acans, fantis e mandingas. Séc. XVII e XVIII A partir do século XVII e, sobretudo, no século XVIII, o tráfico atlântico ampliou sua área de atuação para a região do Golfo do Benin, que foi cruelmente batizada pelos traficantes como Costa dos Escravos, devido ao grande número de africanos escravizados que saíram de lá. Séc. XVIII e XIX O tráfico para o Brasil alcançou seu ápice em volume de exportação e lucratividade entre o final do século XVIII e início do XIX. 24 Etapas da travessia de africanos escravizados para o Brasil Como já vimos, os africanos que vieram escravizados para a América portuguesa tinham diversas origens e etnias. Embora essa diversidade fosse minimamente conhecida pelos traficantes e futuros senhores desses escravos, a partir de seu aprisionamento, ainda no continente africano, esses homens e mulheres passavam a ser homogeneizados pela instituição escravista. A tenebrosa experiência da travessia atlântica foi mais uma das violentas etapas que marcaram a escravidão nas Américas (de forma geral) e na América portuguesa (de forma particular). O volume de almas e riquezas que o tráfico mobilizou em seus quase 400 anos de existência legal permitiu uma série de estudos sobre o tema, demonstrando a complexidade desse mercado. Em trabalhos como os de Maurício Goulart (1949) e Pierre Verger (op.cit), Luis Felipe de Alencastro (op.cit), Manolo Florentino (1995), Jaime Rodrigues (2000) e Beatriz Mamigoniani (2009) – para citar apenas alguns autores –, o infame comércio de escravos para o Brasil foi e vem sendo desnudado. Podemos resumir a travessia dos escravos africanos para o Brasil da seguinte maneira: a) Etapa 1 – dos sertões da África à Costa Atlântica: Nesta etapa, independentemente da distância a ser percorrida, o escravo viajava a pé, ligado a outros companheiros de cativeiro pelo pescoço. Mal alimentados e feridos, muitos não resistiam a essa primeira viagem e morriam. Os demais continuavam a jornada. b) Etapa 2 – da Costa Atlântica aos Navios Negreiros: Nas cidades costeiras, os escravos eram alocados em barracões próximos às feitorias europeias e lá eram comprados por negociantes europeus e brasileiros. Muitas vezes, os africanos escravizados esperavam até três meses antes de embarcarem. Nesse período de espera, viviam presos e eram vigiados constantemente. Chegada a hora da viagem, eram colocados nos porões das embarcações de médio porte que ficaram conhecidas como navios negreiros ou tumbeiros. c) Etapa 3 – travessia da Calunga Grande: A duração da travessia Atlântica variava de acordo com o ponto de partida e o ponto de chegada. Nos séculos XVI e XVIII, os navios que saíam da Costa Ocidental africana demoravam cerca de 25 dias para chegar a Pernambuco, 30 dias para chegar à Bahia e 40 para aportar no Rio de Janeiro. Já a travessia entre a Costa Índica da África (principalmente, a região de Moçambique) e o Rio de Janeiro poderia durar de dois a três meses. Por conta desse longo tempo de viagem e do desejo de obter o maior lucro possível, os traficantes empilhavam cerca de quinhentos escravos nos porões de cada navio. Como não havia 25 espaço suficiente, os escravos ficavam sentados durante boa parte da viagem ou revezavam as poucas esteiras que existiam no navio. Em pequenos grupos, às vezes, os escravos saíam da total clausura e subiam até a proa da embarcação para tomar sol. Essa medida foi tomada pelos traficantes para diminuir o índice de doenças tanto físicas quanto mentais dos escravos, mas também era um dos momentos mais tensos da viagem, pois havia a possibilidade de revolta. Dessa forma, a tripulação vigiava, atentamente, os africanos. Em algumas ocasiões, os escravos utilizavam o momento do banho de sol para fazer motins. O mais conhecido deles aconteceu no navio Amistad, cuja história foi parar nas telas do cinema, em 1997. Na maior parte do tempo de travessia, os escravos ficavam dentro dos porões. Ali, normalmente, consumiam água quase salgada e, geralmente, alimentavam-se de farinha de mandioca, peixe, ou carne seca e feijão, pois esses eram os alimentados que não estragavam durante a longa viagem. A mortandade nessas viagens era alta. Muitos africanos já embarcavam doentes e, com as péssimas condições materiais e de higiene, cerca de 30% deles morriam na travessia. A frequência de mortes era tamanha que, para evitar epidemias dentro dos navios, os traficantes jogavam os corpos dos mortos no mar. A chegada ao Brasil Após essa longa travessia, os africanos, finalmente, desembarcavam nos portos da América portuguesa. No entanto, como era de se esperar, a situação de boa parte deles era deplorável. Os que conseguiram sobreviver à viagem, passavam por um breve exame médico e eram rapidamente vendidos. Já os mais adoentados, sobretudo os que haviam contraído escorbuto, passavam por um processo de quarentena em galpões localizados na região portuária. A função dessa quarentena era a de oferecer alimentação e cuidados médicos especiais, com a finalidade de recuperar a saúde de tais africanos. Quando minimamente recuperados, eles eram levados aos mercados, onde seriam vendidos. A partir de então, o destino desses africanos estava atrelado ao de seu senhor e, em muitos casos, envolvia mais uma viagem, só que agora, pelo interior do Brasil. Nem todos os africanos recém-chegados resistiam ao período de quarentena. Desse modo, era comum se encontrarem cemitérios nas proximidades do porto. Além dos maus tratos e das doenças adquiridas durante a travessia, muitos escravos boçais (termo utilizado para designar os africanos recém-chegados) sofriam de uma doença que parecia atacar suas almas: o banzo. Tomados de uma tristeza profunda, esses africanos morriam. Para muitos deles, era preferível 26 morrer a trabalhar como escravo, pois acreditavam que a morte significava o retorno a sua terra natal, junto a seus ancestrais. Todavia, aproximadamente dois terços dos africanos que saiam do continente como escravos sobreviviam à travessia do Atlântico. O escravo boçal era introduzido, rapidamente, em sua nova condição. Geralmente, no momento da compra, era batizado e recebia um nome cristão. Também recebia um novo sobrenome, que se referia ao porto africano de onde havia embarcado; por isso, existiram Pedro Mina, João Angola, Maria Congo, Ana Benguela. Após o batismo cristão (que nem sempre ocorria respeitando todos os rituais determinados pela Igreja Católica), os africanos escravizados recebiam ensinamentos básicos sobre o catolicismo e sobre como deveriam portar-se perante seu senhor. Além disso, aprendiam algumas palavras- chave em português. A partir de então o escravo boçal se juntava ao ladino (africanoaclimatado) e ao crioulo (escravo nascido nas Américas) na execução das mais variadas tarefas. As tarefas desempenhadas por africanos escravizados e seus descendentes foram diversas durante os quase 400 anos em que a instituição escravista perdurou no Brasil, tanto no período colonial quanto no Império soberano. O uso indiscriminado de negros (africanos e crioulos) e indígenas como mão de obra explorada – quer como escravos, quer como servos –, e as diferentes situações a que foram subjugados foram determinantes na construção das relações étnico-raciais brasileiras. Servidão indígena e escravidão africana: dinâmicas de exploração e resistência na América colonial A grande extensão dos domínios portugueses em terras americanas fez com que a colonização da América portuguesa fosse um mosaico de diferentes práticas e culturas. Todavia, se é possível apontar um denominador comum em todo território que outrora fora chamado de Pindorama, esse denominador seria a exploração do trabalho indígena e a escravidão negra. Conforme vimos, a escolha pelo uso de africanos escravizados não estava relacionada com a sua pretensa superioridade física frente à incapacidade de adaptação cultural dos grupos indígenas. Essa perspectiva, que, durante muitos anos, foi difundida nos bancos escolares do Brasil, não só reforça uma série de estigmas e preconceitos raciais, como também demonstra um profundo desconhecimento sobre a história do Brasil. 27 A escolha pela escravização massiva de africanos estava, na verdade, relacionada com: as dinâmicas comerciais do Império Ultramarino Português desde meados do século XV; a elevada margem de lucro que o tráfico transatlântico passou a representar para todas as nações que participaram desse infame comércio (como traficantes de escravos) entre os séculos XVI e XIX. Apesar da preferência por escravos africanos, diferentes estudos apontam a coexistência da escravidão africana e da exploração da mão de obra indígena nas terras brasileiras, sem que isso representasse qualquer tipo de contradição no funcionamento da vida em colônia. Parte dos processos de exploração da mão de obra indígena e africana, e as resistências que esses grupos impuseram ao mundo colonial são o tema desta unidade. A servidão indígena Ao analisar a relação entre índios e bandeirantes na origem de São Paulo, o historiador John Monteiro (1994), um dos maiores especialistas em história indígena no Brasil, pontuou que a colonização foi um processo plural e que deve ser analisada a partir desse princípio. Ainda que boa parte da América portuguesa tenha vivenciado experiências comuns advindas do encontro entre colonos e índios – encontro esse que foi marcado pela desintegração de muitas sociedades indígenas e pelo processo de catequização daquelas que conseguiram sobreviver –, a partir de meados do século XVI, essa relação tomou rumos distintos. Monteiro (1994, p. 57) afirma que, nas capitanias do Sul da América Portuguesa, a Lei de Liberdade do Gentio (sancionada em 1570) foi “letra morta”. Segundo as pesquisas do autor, o número de expedições que assaltavam as aldeais indígenas, transformando seus habitantes em servos (praticamente, escravos) era elevado entre os séculos XVI e XVII. As razões para isso residem nas diferentes e múltiplas dinâmicas econômicas desenvolvidas no período colonial. Por um lado, sem conseguir se inserir no circuito comercial Atlântico, que, à época, estava monopolizado pela produção e exportação açucareira, os colonos da capitania de São Paulo preferiram se embrenhar sertão adentro em suas bandeiras do que se lançar ao mar. Por outro lado, as ações dos paulistas também estavam atreladas a um sonho antigo dos primeiros colonos portugueses: a busca do El dorado. A descoberta das minas de prata na região de Potosí (atual Bolívia e que, à época, estava sob domínio espanhol) acendeu as esperanças de outras gerações de colonos. Sem perder tempo, entre 1591 e 1601, o governador geral D. Francisco de Souza armou uma série de expedições em busca de metais preciosos. Dessa forma, não seria exagero afirmar que fora justamente a busca por ouro e prata que fomentou as primeiras expedições para as regiões interioranas da colônia portuguesa. 28 Chefiada por João Pereira Botafogo, a vertente paulista dessas expedições conseguiu encontrar algumas minas próximas à cidade de São Paulo, reacendendo o sonho português. Todavia, as expedições subsequentes não corresponderam às expectativas criadas pelos colonos. O insucesso das primeiras expedições em busca de ouro e prata acabou por revelar aos colonos a potência econômica de outra mercadoria, encontrada em abundância nos sertões da região sudeste: o escravo indígena. Não por caso, ao terminar seu mandato como governador, D. Francisco retornou a Portugal com o objetivo de apresentar um projeto que visasse fomentar a economia das capitanias do Sul da colônia, que estavam fora das grandes transações comerciais do Atlântico. Como salienta Monteiro (1994), o ex-governador pretendia utilizar a mão de obra indígena para articular setores econômicos da mineração e agricultura na região, baseado no modelo desenvolvido na América hispânica. Sem grande êxito na metrópole, a proposta do antigo governador acabou redimensionando os objetivos das expedições ao interior. Em outras palavras, a busca por ouro deu lugar ao aprisionamento de índios. Apesar das inúmeras e constantes proibições da Coroa no que diz respeito à escravização indígena, as expedições (ou as bandeiras, como ficaram conhecidas) continuaram sendo organizadas pelos colonos de São Paulo, e milhares de povos indígenas padeceram frente à empreitada escravizadora dos séculos XVII. A razão para o grande número de investidas nos sertões da colônia residia na rentabilidade da venda dos indígenas escravizados. Os lucros eram tamanhos que pagavam os custos e riscos das expedições, cada vez mais interioranas. Dessa forma, rapidamente, criou-se uma intricada rede de negociações nas capitanias do sul e centro-oeste (pouco explorado), e praticamente toda a mão de obra dessas localidades da América portuguesa era formada por índios escravizados. Missionários versus bandeirantes Como era de se esperar, muitas sociedades indígenas se opuseram à prática sistêmica de escravização de seus habitantes. Outro segmento social que se colocou ferrenhamente contrário às bandeiras foi o de religiosos ligados a missões, ou seja, aqueles envolvidos no processo de evangelização indígena. Como vimos, o grande debate filosófico-religioso que acontecera no século XVI havia consagrado que, salvo os povos que se negassem a participar do processo de catequese pacificamente, todos os habitantes autóctones das Américas (em suas múltiplas diversidades) tinham o direito à liberdade cristã, assegurada pela Igreja e afiançada pelas Coroas Ibéricas. 29 Dessa forma, as expedições dos colonos de São Paulo eram não só uma afronta às leis promulgadas pelos órgãos máximos do mundo colonial mas também uma prática que colocava em risco a missão maior da presença europeia no Novo Mundo: a evangelização. Ainda que os aldeamentos criados pelos missionários estivessem pautados pela ideologia cristã, que estabelecia um determinado modus vivendis, o cotidiano dos índios que viviam nessas organizações bem como o sistema de trabalho a que estavam sujeitos não poderiam ser comparados com a situação de escravidão imposta pelas expedições e bandeiras. Na perspectiva evangelizadora, todas as atividades realizadas pelos índios em aldeamentos e missões, inclusive o trabalho físico, faziam parte do processo de catequese. Os índios recebiam instruções religiosas para que se convertessem ao cristianismo e passassem a seguir um padrão europeu de vida e relação com o trabalho. Essas preocupações passaram ao largo da organização das expedições nos séculos XVII e XVIII. Exemplodisso pode ser atestado pelo testemunho deixado por alguns dos clérigos da época. De acordo com o padre Montoya, por exemplo, as expedições haviam destruído 11 missões, o que significava o apresamento de, praticamente, 50 mil índios. Já o padre Lourenço de Mendonça, ao descrever as expedições no Rio de Janeiro, afirmou que 60 mil guaranis foram escravizados e levados a São Paulo. Baseado nessas informações, Monteiro (1994) frisou que centenas de aldeias foram destruídas, e milhares de índios foram presos em cativeiro. O destino final da maior parte dessa mão de obra indígena era a reposição da força de trabalho na região sudeste da colônia. Organizados por diferentes colonos, as expedições eram identificadas por bandeiras, o que acabou por nomear o movimento dos paulistas em busca de índios como Movimento Bandeirante. O auge desse movimento ocorreu na segunda metade do século XVII, momento em que bandeirantes como Antonio Raposo Tavares e Domingos Jorge Velho ganharam notoriedade em toda a América portuguesa. Embora considerado tão ou mais bárbaro que os índios selvagens ou os africanos escravizados, Jorge Velho foi convocado pela Coroa portuguesa para “sufocar” a rebelião indígena chefiada por Canindé (no Rio Grande), além de ter sido um dos responsáveis pela desarticulação do Quilombo dos Palmares. Na virada do século XVII, o movimento das bandeiras começou a diminuir. Um dos fatores foi o aumento das distâncias. Com o aprisionamento de boa parte da população indígena na região sul/sudeste, aquilo que os bandeirantes chamavam de sertão começou a ficar cada vez mais 30 longe, o que encarecia as expedições (que necessitavam de pólvora, chumbo, correntes e índios escravizados) e as tornava mais perigosas. Outro fator a ser destacado foi a crescente oposição dos missionários frente às bandeiras. Amparados pela letra da lei, esses religiosos recorreram, diversas vezes, ao Rei português a fim de denunciarem os abusos cometidos pelos colonos paulistas, que eram mal vistos por boa parte da sociedade colonial, inclusive por seus pares: colonos (escravocratas) de outras regiões. A significativa diminuição das bandeiras a partir das primeiras décadas do século XVIII – que, não por acaso, coincidiu com a euforia gerada pela descoberta de ouro na região das Minas – não significou o fim da exploração da mão de obra indígena. Muitas sociedades continuaram subjugadas aos interesses de colonos em diferentes regiões da América portuguesa; em muitos casos, ainda trabalhando em condições de servidão ou escravidão, inclusive em aldeamentos e missões evangelizadoras. Oficialmente, a escravidão indígena só foi proibida, em 1757, pelo Marquês de Pombal, o que também não representou, necessariamente, o direito a melhorias efetivas nas condições de vida dos povos indígenas. A escravidão africana e os escravos negros Produção de açúcar O açúcar foi o primeiro gênero alimentício produzido, em larga escala, na América Portuguesa. A importância que esse alimento ganhou no mercado mundial foi rápida e volumosa, representando o que Sidney Mintz (2003) classificou como “uma verdadeira revolução” não apenas nas relações comerciais travadas no espaço Atlântico que se construía, mas também nos usos e costumes alimentares. Para os portugueses, a escolha pela produção de açúcar em larga escala tinha duas razões principais: 1. a demanda pelo produto no mercado europeu; 2. o know-how, ou seja, a habilidade já adquirida no fabrico do açúcar de cana, devido a experiências nas ilhas Canárias, da Madeira, de Açores e de Cabo Verde, todas localizadas no Atlântico Norte. Como o sonho do El dorado não foi concretizado nos primeiros anos da colonização, o açúcar transformou-se, rapidamente, no ouro branco do Império Português. Conforme já pontuado, os interesses pelo território americano entraram na pauta da Coroa portuguesa depois dos insucessos comerciais no Índico. Todavia, já no século XVI, os primeiros trapiches e engenhos foram construídos em diferentes locais da colônia. 31 As capitanias localizadas no nordeste da colônia acabaram tornando-se as principais produtoras de açúcar. Sua maior proximidade em relação à metrópole garantia que o produto chegasse mais rapidamente (e com maior controle) ao mercado europeu. Além disso, tais capitanias pareciam ter as condições naturais ideais para a produção: abundância de rios e árvores da Mata Atlântica, que eram ideais para a construção das moendas e da estrutura arquitetônica de engenhos e trapiches. Ademais, a extensão vasta do território colonial (que permitiu a criação de propriedades latifundiárias), o clima quente, as chuvas constantes e o solo fértil garantiam que a produção de gêneros tropicais tivesse êxito. Como demonstram os diferentes relatos deixados por colonos e as análises de muitos historiadores, no que tange à produção açucareira, o engenho era a unidade produtiva por excelência, composta de diferentes partes: o extenso canavial – onde a cana era cultivada; a casa de moenda e a casa de purgar – onde se transformavam a cana em caldo, o caldo em melado e o melado em açúcar; a residência do senhor – no Brasil, conhecida como Casa-Grande; as moradas dos trabalhadores – onde se abrigavam trabalhadores escravos ou livres. Existe uma constatação, quase unânime na historiografia, de que a escravidão foi a instituição que ordenou boa parte das dinâmicas sociais na América portuguesa. Na já citada obra Cultura e opulência do Brasil, Padre André Antonil (1649-1716) apontou a imprescindível relevância que a escravidão tinha no funcionamento dos engenhos açucareiros. Segundo Antonil: Os escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. E do modo como se há com eles, depende tê-los bons ou maus para o serviço. Por isso, é necessário comprar cada ano algumas peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas (ANTONIL, 1982, p. 36). Durante muitos anos, a escravidão foi vista de forma sistêmica no Brasil: De um lado, os índios escravizados, que eram utilizados, majoritariamente, em pequenas e médias produções, quase todas voltadas à subsistência da colônia. Do outro, os africanos escravizados e seus descendentes, que eram utilizados nas atividades envolvidas com o mercado externo, como a produção de açúcar e a mineração. 32 Ainda que essa sistematização estivesse pautada em uma série de análises qualitativas da economia colonial, é importante ressaltar que tal assertiva não se aplica a todo o período de fabrico de açúcar. Em seu trabalho basilar sobre a história do Brasil, chamado Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1988), o brasilianista Stuart Schwartz lançou luz sobre um fenômeno até então pouco estudado: o uso massivo de indígenas escravizados nos engenhos de açúcar, sobretudo nos séculos XVI e XVII. Grande parte desses índios tinha origem tupi, embora relatos sobre alguns povos tapuias tenham sido encontrados em documentos sobre os engenhos da província da Bahia, trabalhados pelo autor. Examinando registros paroquiais e inventários, o autor apontou que a lógica que regeu a escravidão indígena na produção açucareira foi muito semelhante àquela que ditaria o ritmo de trabalho de africanos escravizados anos mais tarde. Graças à preferência senhorial, 60% dos escravos eram homens adultos e jovens. No entanto, as práticas católicas incentivaram o casamento de muitos desses homens, fazendo com que famílias escravas tivessem significativa presença nesses engenhos, já que suas esposas e seus filhos foram incorporados na massa de trabalhadores explorados. Obrigados a se adaptar às condições de trabalho impostas pelos colonos, os índios escravizados deveriam realizar o cultivo extensivo da cana e depois processar seu caldo, a fim de se obter o açúcar.A partir do último quartel do século XVI, a escravidão indígena passou a ser, em parte, substituída pelos africanos escravizados. Conforme visto anteriormente, essa substituição tinha duas motivações principais: 1. a relativa fragilidade dos grupos indígenas em relação às inúmeras epidemias que assolaram os engenhos açucareiros; 2. a grande circulação de dinheiro promovida pelo tráfico transatlântico de africanos escravizados – tráfico esse que, em muitos casos, era comandado por familiares dos senhores de engenho da América portuguesa. A partir de 1580, africanos de diversas localidades do continente passaram a desembarcar, em peso, na América portuguesa para trabalhar como escravos em diferentes atividades econômicas. Como vimos, os africanos que vieram escravizados para o Brasil tinham identidades étnicas diversas. Após a longa travessia, quando finalmente desembarcavam nos portos da América portuguesa, a situação de boa parte dos africanos era péssima. No entanto, a maior parte dos africanos sobrevivia à travessia do Atlântico. Para conseguir cumprir a demanda da produção em larga escala, os escravos enfrentavam jornadas de trabalho que variavam de doze a dezoito horas e eram vigiados, constantemente, por feitores e capatazes, que tinham como função “otimizar” o trabalho. No ápice da produção do açúcar (século XVI) e do café (século XIX), e no auge do período aurífero (século XVIII), a exploração do escravo era tamanha que a média de vida ativa do cativo 33 variava entre sete e dez anos. Realidade semelhante era encontrada em fazendas produtoras de charque (tanto na Região Sul quanto na Região Nordeste), nas principais cidades coloniais e nas pequenas propriedades rurais. Contudo, estimativas apontam que, mesmo nesse curto tempo de vida ativa, o escravo “pagava” a seu proprietário a quantia que havia sido desembolsada no momento de sua compra e ainda gerava benesses. Esse retorno financeiro relativamente rápido (podendo variar de um a três anos) fez com que o escravo fosse visto como uma boa forma de investimento, o que excitou o tráfico intercontinental de africanos por três séculos. Demais atividades exercidas por escravos negros A equação entre investimento feito e retorno obtido fez com que a escravidão fosse difundida também entre a população menos abastada da sociedade. Dessa forma, a quantidade de atividades exercidas pelos escravos não se limitava apenas àquelas relacionadas à produção e exportação de gêneros para o mercado mundial. Toda uma ampla variedade de trabalhos executados reforça o caráter escravista do período colonial no Brasil. Vejamos: abertura de estradas; produção de pequenas hortas; criação de gado extensivo; construção de ruas e casas; carregamento de mercadoria na região portuária; trabalho desempenhado nas casas e fazendas pelos escravos domésticos. A lógica da exploração total do trabalho escravo intensificou ainda mais a violência inerente à escravidão. Além de terem a obrigação de labutar horas a fio, debaixo de sol quente, chuva forte ou frio intenso, os cativos não recebiam cuidados de seus proprietários, devido ao constante reabastecimento de africanos escravizados nos portos do Brasil. Em outras palavras, muitas vezes, era mais fácil e mais barato comprar um novo escravo do que cuidar de algum que estivesse adoentado. O tratamento dado aos escravos não era oriundo de certo desleixo dos proprietários (embora muitos deles estivessem, efetivamente, pouco preocupados com as condições de vida material dos cativos). Como demonstrado na análise de Rafael Marquese (2004), muitos senhores – principalmente, aqueles que eram donos de grandes plantéis de escravos – seguiam as indicações formuladas em manuais específicos sobre o assunto. Em Economia cristã dos senhores no governo dos escravos, publicado em 1700, o jesuíta Jorge Benci apresentava uma pedagogia para o tratamento despendido aos cativos. Essa forma de tratamento era resumida em três palavras pelo jesuíta: trabalho, sustento e castigo. Benci afirmava ainda que essas três palavras-ações eram “igualmente necessárias, para que plena e perfeitamente satisfaça ao que como senhor deve ao servo. Porque sustentar ao servo sem lhe dar ocupação e castigo, quando o merece, é querê-lo 34 contumaz e rebelde; e mandá-lo trabalhar e castigar, faltando-lhe com o sustento; é coisa violenta e tirana” (BENCI, 1977 p. 49). Benci justificava a pedagogia desenvolvida por meio da seguinte argumentação: Tomei por assunto, e por empresa dar à luz esta obra, a que chamo ‘Economia Cristã: isto é, regra, norma, modelo, por onde se devem governar os senhores Cristãos para satisfazerem às obrigações de verdadeiros senhores [...] Estas mesmas obrigações, que achou nos senhores o Eclesiástico por instinto do Espírito Santo, alcançou Aristóteles com a luz da razão natural. Porque, dando as instruções necessárias aos pais de famílias para a boa administração de suas casas, chegando ao ponto de como se há de haver o senhor com os servos, diz que lhes deve três coisas, que são o trabalho, o sustento e o castigo (BENCI, 1977 p. 49). A metodologia de tratamento de Jorge Benci ficou conhecida, vulgarmente, como “a pedagogia dos três Ps”: pão, pano e pau. Era essa a tríade que deveria embasar as ações dos senhores frente a seus escravos. De tal modo, não era de se estranhar que a alimentação recebida pelos escravos costumava ser composta apenas de farinha de mandioca ou de milho, uma porção de carne salgada e, por vezes, um pouco de feijão: o básico para o sustento humano. Nas grandes propriedades, as roupas desses cativos eram feitas de panos de algodão grosseiro e, geralmente, deveriam durar ao menos um ano. Apesar de os cuidados com alimentação, moradia e vestimenta serem de responsabilidade senhorial, a fácil reposição dos escravos ajuda a explicar as péssimas condições de vida que os proprietários ofereciam a seus cativos. Somado à rígida e pesada disciplina de trabalho no eito e às chibatas recebidas quando não trabalhavam o quanto lhes era exigido, os escravos e escravas ainda enfrentavam outros dois grandes problemas: os acidentes e as condições insalubres de trabalho. Os acidentes foram comuns nos engenhos de açúcar, mais especificamente na casa da moenda (onde era extraído o caldo da cana) e na casa de purgar (onde o caldo era transformado em melaço), locais onde os escravos podiam perder membros de seu corpo, chegando a correr risco de vida. Nas regiões mineradoras, também eram comuns os acidentes de trabalho: em diversas ocasiões, as minas subterrâneas que haviam sido cavadas desabavam, matando dezenas de cativos. Desse modo, não é de se estranhar que os números mais conservadores apontem que, aproximadamente, seis milhões de africanos escravizados aportaram no Brasil durante os mais de 35 trezentos anos de vigência do escravismo. Importante ressaltar que boa parte dos descendentes desses africanos também conheceu a experiência do cativeiro. Entretanto, africanos, crioulos e indígenas não sucumbiram incólumes tal experiência. De diferentes formas, todos eles encontraram diferentes formas de resistir. Algumas formas de resistências A resistência foi uma constante nas relações estabelecidas entre grupos indígenas e escravos africanos (e seus descendentes) ao longo da história da América portuguesa. Os modos de resistência eram, por vezes, implementados no cotidiano desses homens e mulheres por meio de diferentes formas de burlar a exploração que sofriam, ou então eram formas de resistência “mais ativas” que, em última instância, colocavam em cheque a escravidão ou a servidão. Estudos feitos no âmbito da História Social e da História Cultural têm mostrado como a capacidade e as formas de resistir foram diversas ao longo dos quase quatrocentos anos de vigência da escravidão negra e da servidão indígena. Como esse é um tema de grandes debates,
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