Buscar

relacoes_etnico_raciais_Brasil

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 54 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 54 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 54 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

INTRODUÇÃO 
Na apostila História das Relações Étnico-raciais no Brasil, nosso 
principal objetivo é examinar, criticamente, as relações étnico-raciais em 
nosso país. Para tanto, analisaremos o processo histórico das relações 
raciais, as práticas de miscigenação e discriminação raciais ao longo da 
história brasileira, e as trajetórias de importantes personagens dessa história 
que foram silenciados. Além disso, estabeleceremos relações entre a 
situação atual das questões étnico-raciais no Brasil e o longo debate 
envolvendo tais questões. Sob esse foco, esta apostila foi estruturada em 
quatro módulos. 
No módulo I, conheceremos aspectos gerais das sociedades 
indígenas que existiam no Brasil antes de 1500. Em sequência, 
compreenderemos parte dos impactos gerados pelo contato entre 
sociedades indígenas e portugueses no período colonial, e analisaremos as 
razões e os impactos do estabelecimento da servidão indígena e da 
escravidão negra nesse período. Além disso, identificaremos práticas de 
miscigenação raciais e compreenderemos sua inserção no contexto mais 
amplo da colonização, entendendo, dessa forma, como a miscigenação 
racial e a resistência social foram articuladas durante esse período. 
No módulo II, examinaremos os debates constitucionais do século 
XIX no que diz respeito ao lugar reservado para escravos e indígenas. 
Analisaremos também como a problemática da mestiçagem foi tratada 
durante a formação do Estado nacional brasileiro, identificando 
personagens e movimentos sociais que foram tomados como vilões ou 
heróis nacionais à época. Por fim, conheceremos pautas e movimentos 
populares que reivindicavam a ampliação do conceito de cidadania, e 
mostraremos como os debates e as ações abolicionistas dialogaram com o 
fim da escravidão no Brasil Império. 
No módulo III, analisaremos como a Primeira República lidou, 
juridicamente, com a nova categoria de cidadãos que surgiu por conta de 
uma sociedade sem escravidão. Identificaremos, ainda, quais foram os 
principais intelectuais brasileiros que articularam a mestiçagem com a nova 
conjuntura brasileira da Primeira República, examinando, de maneira 
crítica, as formulações intelectuais e sociais que levaram à formação do 
mito da democracia racial no Brasil. Para encerrar esse módulo, 
conheceremos alguns movimentos sociais e práticas culturais que foram 
ressignificados a partir da década de 1920, viabilizando o desenvolvimento 
de um novo olhar sobre a questão da mestiçagem e do mestiço no Brasil. 
 
 
No módulo IV, conheceremos as diferentes políticas econômicas que viabilizaram a 
inserção de negros, mestiços e indígenas brasileiros na sociedade de classes. Para tanto, 
examinaremos movimentos sociais protagonizados por negros e indígenas que pleiteavam maior 
participação política e melhorias sociais no Brasil do século XX. Em sequência, identificaremos 
parte das heranças culturais deixadas por negros, mestiços e indígenas, e as articularemos com a 
construção de determinada ideia de brasilidade. Por fim, analisaremos como se construiu parte da 
memória e da história das relações étnico-raciais no Brasil, privilegiando as falas de lideranças de 
movimentos sociais que lutaram pelo fim da desigualdade racial no País. 
 
 
 
SUMÁRIO 
QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS NO PERÍODO COLONIAL ....................................................................... 7 
PRESENÇA INDÍGENA NA TERRA BRASILIS: DIVERSIDADE, HISTÓRIA E SOCIEDADE INDÍGENA ..... 7 
A pré-história brasileira ............................................................................................................... 8 
Índios de Pindorama .................................................................................................................... 9 
Características do grupo tupi-guarani .......................................................................................... 10 
Características do grupo tapuia ..................................................................................................... 12 
OS “NEGROS DA TERRA” E DE FORA DELA: A MONTAGEM DO SISTEMA COLONIAL .............. 14 
Índios: o contato com os portugueses .................................................................................... 14 
De bom selvagem a gente bravia: o olhar português sobre o índio ...................................... 15 
Trocas comerciais: o extrativismo do pau-brasil e a exploração indígena ........................... 16 
Papel da Igreja .................................................................................................................................... 17 
A opção pelos africanos escravizados ..................................................................................... 18 
Escravidão doméstica ....................................................................................................................... 18 
Rotas comerciais ................................................................................................................................ 19 
Comércio de escravos africanos .................................................................................................... 20 
Etapas da travessia de africanos escravizados para o Brasil ................................................... 24 
A chegada ao Brasil ........................................................................................................................... 25 
SERVIDÃO INDÍGENA E ESCRAVIDÃO AFRICANA: DINÂMICAS DE EXPLORAÇÃO E 
RESISTÊNCIA NA AMÉRICA COLONIAL........................................................................................... 26 
A servidão indígena .................................................................................................................... 27 
Missionários versus bandeirantes .................................................................................................. 28 
A escravidão africana e os escravos negros ........................................................................... 30 
Produção de açúcar .......................................................................................................................... 30 
Demais atividades exercidas por escravos negros .................................................................... 33 
Algumas formas de resistências ............................................................................................... 35 
Fuga ...................................................................................................................................................... 35 
Criação de quilombos ....................................................................................................................... 36 
Revoltas ................................................................................................................................................ 36 
MESTIÇAGEM: O MOSAICO ÉTNICO DA AMÉRICA PORTUGUESA E A CRIAÇÃO DE NOVAS 
PRÁTICAS CULTURAIS NAS AMÉRICAS ........................................................................................... 37 
Índios e Santidade ...................................................................................................................... 39 
As irmandades negras: miscigenação e resistência .............................................................. 40 
 
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................................... 44 
 
PROFESSORA-AUTORA ........................................................................................................................ 51 
 
 
 
 
 
 
 
 
Neste módulo, conheceremos aspectos gerais das sociedades indígenas que existiam no 
Brasil antes de 1500. Em sequência, compreenderemos parte dos impactos gerados pelo contato 
entre sociedades indígenas e portugueses no período colonial, e analisaremos as razões e os 
impactos do estabelecimento da servidão indígena e da escravidão negra nesse período.Além 
disso, identificaremos práticas de miscigenação raciais e compreenderemos sua inserção no 
contexto mais amplo da colonização, entendendo, dessa forma, como a miscigenação racial e a 
resistência social foram articuladas durante esse período. 
 
Presença indígena na terra brasilis: diversidade, história e 
sociedade indígena 
Pindorama foi o primeiro nome dado às terras que hoje chamamos de Brasil. Palavra de 
origem tupi-guarani, que significa “terra das palmeiras”, ela era usada pelos povos de origem 
ando-peruana para se referir ao extenso território ocupado por diferentes sociedades indígenas 
Tupi-Guarani. Tais sociedades indígenas acreditavam viver em uma terra “livre de todos os 
males”, até a sua invasão no ano de 1500. 
O caráter mítico de Pindorama parece ter sido elaborado já nos séculos XVI e XVII, 
quando a colonização e a exploração das populações indígenas eram uma realidade cotidiana para 
os povos que viviam entre tantos tipos de palmeiras. No entanto, a história dos povos que 
originaram os Ticuna, Karajá, Krahó, Patasó, Krenak, entre outras tantas sociedades indígenas, é 
muito mais extensa e complexa do que se possa imaginar. Entender parte dessa história é também 
compreender aspectos importantes do país que hoje chamamos de Brasil. 
QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS NO PERÍODO 
COLONIAL 
 
 
8 
 
 
A pré-história brasileira 
Durante muitos anos, as histórias e trajetórias das sociedades indígenas já existentes no 
Brasil antes da chegada dos portugueses foram relegadas a segundo plano pelos historiadores. A 
justificativa dessa omissão era a de que a ausência de escrita em praticamente todas as sociedades 
indígenas que habitavam as terras brasileiras parecia inviabilizar uma compreensão sistêmica do 
passado indígena. Apesar de essa postura estar mudando atualmente, sabemos que ela está muito 
mais relacionada aos debates metodológicos e teóricos da História do que às características 
específicas das sociedades indígenas. De qualquer modo, é fato que a ausência da escrita fez com 
que, durante muitos anos, o estudo do passado dos povos indígenas fosse uma tarefa 
desempenhada apenas por antropólogos, arqueólogos e linguistas. Sem dúvida alguma, os 
trabalhos desenvolvidos nessas três áreas de conhecimento foram fundamentais para a 
sistematização de boa parte do conhecimento atual que se tem sobre as diferentes histórias dos 
índios no Brasil. Para que possamos conhecer parte desse universo, é interessante recuarmos no 
tempo e buscarmos as origens mais antigas dos homens e das mulheres que viviam em Pindorama. 
De acordo com uma série de estudos arqueológicos, as histórias e a diversidade das 
populações indígenas são consequências diretas do processo de povoamento das terras da América 
do Sul. Existem duas teorias mais difundidas e comprovadas (por meio de vestígios arqueológicos) 
a respeito da chegada da humanidade no continente americano. Vejamos: 
 
a) Teoria do Estreito de Bering: 
Proposta, inicialmente, no ano de 1590 d.C., por José Acosta, tal hipótese passou a ser 
aceita em 1930, quando foram encontrados, em escavações arqueológicas, nas proximidades da 
cidade de Clóvis (Novo México) – EUA, artefatos de mesmo tipo dos anteriormente descobertos 
na região da Beríngia. 
Segundo os especialistas que defendem essa teoria, durante a última glaciação (entre 50 e 12 
mil anos atrás), a concentração de gelo nos continentes fez descer o nível dos oceanos em pelo 
menos 120 metros. Essa descida provocou o aparecimento de diversas conexões terrestres entre 
vários pontos do planeta, como entre Austrália-Tasmânia e Nova Guiné, e entre Japão e Coreia. 
Segundo os vestígios encontrados, essa ocupação ocorreu há 12 mil anos, mas descobertas mais 
recentes indicam que a travessia pode ter ocorrido há 40 ou 50 mil anos. 
 
b) Teoria migratória: 
A segunda teoria não exclui a primeira, mas defende que diversas tribos da Polinésia teriam 
utilizado canoas primitivas e, em uma longa viagem de ilha em ilha, rumo ao leste, teriam 
chegado à América do Sul. O principal defensor dessa teoria, apresentada pela primeira vez em 
1943, foi o antropólogo francês Paul Rivet. A migração defendida por Rivet seria responsável pela 
presença de centenas de artefatos de pedra e restos de alimentos mais antigos que as lascas de 
 
 
 
9 
 
Clovis na região de Monte Verde (atual Chile). De fato, essa região reúne um vasto tesouro da 
arqueologia americana. Lá foram encontrados ossos de animais, fundações de casas de madeira, 
plantas comestíveis, além de diferentes plantas medicinais. 
Já o antropólogo e arqueólogo brasileiro Walter Neves defende a tese de que as diversas 
ondas migratórias para as Américas teriam ocorrido em momentos distintos e sido realizadas por 
povos oriundos da Ásia e da Oceania. 
No entanto, a polêmica sobre a chegada da humanidade nas Américas aumentou a partir dos 
estudos coordenados por Niede Guidon na Serra da Capivara (Piauí, Brasil). Tais estudos apontaram 
a presença humana na região há mais de 48 mil anos, o que remeteria a uma onda migratória via 
Oceano Pacífico entre 80 e 70 mil anos atrás. De acordo com esses estudos, o Parque da Serra da 
Capivara guardaria os vestígios mais antigos da presença humana no Novo Mundo. 
Em que pese a polêmica sobre o tema – que aponta para a necessidade de estudos conjuntos 
e comparados dos diferentes sítios arqueológicos americanos –, atualmente não restam dúvidas 
sobre a origem diversa da presença humana nas Américas. 
Em um esforço de sintetizar os aspectos mais relevantes das histórias dos índios no Brasil, 
Melatti (2007) faz uso de diferentes estudos arqueológicos para explicar como as primeiras ondas 
migratórias desembocaram na ocupação do atual território brasileiro. De acordo com a autora, os 
primeiros habitantes teriam chegado às terras brasileiras no Pleistoceno (2,5 milhões a 11,5 mil 
anos atrás), como demonstram os vestígios encontrados na Toca do Boqueirão e no Sítio da Pedra 
Furada, no sudeste do Piauí. É justamente do final desse período que data o crânio mais antigo 
das Américas, que recebeu o nome de Luzia. 
Em seguida, no período Holoceno (que data de 11,5 mil anos até o presente), os grupos 
humanos que viviam nessa parte da América começaram a desenvolver uma série de técnicas, 
como a cerâmica, cujos indícios mais antigos foram encontrados em Taperinha, no atual Pará, e 
datam de 5 mil a 4 mil a.C. 
Os registros mais antigos da arte rupestre variam de 10 a 4 mil a.C. e estão localizados no 
estado do Piauí. A presença dessa arte em diferentes pontos do atual Brasil e suas diferentes 
datações apontam para a diversidade da ocupação humana nesse território. Tal diversidade, 
constitutiva da forma por meio da qual a humanidade chegou e habitou o continente americano, 
teve reflexos nas diversas sociedades indígenas que habitavam as terras de Pindorama. 
 
Índios de Pindorama 
As sociedades indígenas que habitavam Pindorama eram muito mais diversas do que os 
portugueses supunham. Estudos que integram trabalhos etnográficos feitos por antropólogos 
brasileiros e pesquisas historiográficas realizadas a partir do exame crítico dos registros deixados 
por portugueses e colonos que viveram no Brasil entre os séculos XVI e XVIII permitem traçar 
 
 
10 
 
 
alguns panoramas sobre os modos de vida dos grupos indígenas do momento que antecedeu a 
chegada de Pedro Álvarez Cabral até as primeiras décadas de contato entre índios e europeus. 
Os povos indígenas brasileiros estão organizados em dois grandes grupos:1 
 grupo tupi-guarani – assim conhecido graças às semelhanças linguísticas observadas, esse 
grupo abarcava uma série de sociedades que vivia na extensa região litorânea entre São 
Vicente (no sul) e Maranhão; 
 grupo tapuia – esse grupo foi caracterizado pela palavra tupi “tapuia”, que significa os 
“fugidos da aldeia” ou “aqueles de língua enrolada”. 
 
Características do grupo tupi-guarani 
Tupinaê, tupiniquins, tupinambás e guaranis são exemplos dealguns povos indígenas que 
viviam nas terras que hoje chamamos de Brasil. Milhares de povos que viviam na faixa litorânea 
entre São Vicente (atual região Sudeste) e Maranhão guardavam semelhanças linguistas (e, por 
vezes, culturais) significativas. 
Entre essa variada gama de povos e culturas (muitas delas rapidamente dizimadas com a 
chegada dos portugueses), os tupinambás compunham a sociedade mais estudada e conhecida, 
graças a seu intenso contato com os portugueses durante os séculos XVI e XVII. 
Em trabalho sobre a produção de açúcar nos primeiros anos da colonização, Stuart 
Schwartz (1992) pontuou alguns aspectos culturais desses índios. A seguir, veremos cada um 
desses aspectos: 
 
a) Estrutura familiar: 
Segundo Schwartz, os tupinambás viviam em aldeias que possuíam entre quatrocentos e 
oitocentos indivíduos. Como acontecia com outros povos de origem tupi, as aldeias tupinambás 
estava dividias em unidades familiares. Todavia, a concepção de família desses índios era muito 
diferente da concepção conhecida, historicamente, pelo Ocidente. 
A família tupinambá era uma família extensa cujos irmãos, filhos, sobrinhos e tios 
conviviam intensamente. Dessa forma, era comum que as unidades familiares organizassem sua 
morada em um número determinado de malocas (nome dados à estrutura habitacional dos 
tupinambás), que, geralmente, variava entre 7 e 8 por família. 
 
 
 
1 Embora essa taxonomia tenha sido criada a partir do olhar dos primeiros portugueses que estiveram em terras 
brasileiras, parte do critério por eles utilizado revela algumas distinções significativas entre as matrizes socioculturais das 
sociedades indígenas. Tais distinções foram reforçadas (sem tantos estereótipos) por estudos mais recentes e menos 
estigmatizados desses povos. 
 
 
 
11 
 
b) Divisão social do trabalho: 
Organizada pelas relações de parentesco, frequentemente, era a combinação entre a 
identidade de gênero e a faixa-etária que determinava a divisão social do trabalho. Dito de outra 
forma, as famílias tupinambás, geralmente, organizavam-se por meio da lógica da seguinte divisão 
do trabalho: 
 às mulheres cabia o cuidado com o mundo doméstico, ou seja, tudo aquilo que estava 
atrelado à subsistência básica da família, como o cuidado com os filhos menores e a 
atividade da agricultura; 
 já aos homens cabia a responsabilidade pelas atividades que ultrapassavam o mundo 
doméstico stritu senso, como a caça, a pesca e, principalmente, a guerra. 
 
c) Agricultura: 
As sociedades indígenas desenvolveram diferentes técnicas para praticar a agricultura. Os 
tupinambás, por exemplo, praticavam a coivara, uma técnica que consistia na abertura de clareiras 
em determinadas áreas da floresta por meio de queimadas. As cinzas resultantes desse processo 
eram utilizadas como fertilizantes do solo, que, em seguida, era semeado pelas mulheres da aldeia. 
Entre os gêneros cultivados destacavam-se o feijão, o milho, a abóbora, algumas frutas e, 
principalmente, a mandioca (também conhecida como aipim ou macaxeira), base da alimentação 
tupinambá e, mais tarde, de toda a colônia. A mandioca também era a base para a produção de 
uma bebida que tinha funções ritualísticas e religiosas para os tupinambás: o cauim. 
 
d) Guerras e rituais: 
Ao visitar a região do atual Rio de Janeiro, em meados do século XVI, o missionário francês 
Jean de Lery observou que 
 
[...] enquanto dura a cauinagem os nossos brejeiros americanos, para 
melhor esquentar o cérebro, cantam, assobiam e se incitam uns aos 
outros a portarem-se valentemente e a fazerem muitos prisioneiros na 
guerra; enfileiram-se, como grous, e não cessam de dançar, de entrar e 
sair da casa em que se reúnem, até que tudo se conclua, isto é, que se 
tenha esgotado toda a bebida (LERY, 1961, p. 108). 
 
Embora repleto de preconceitos em relação aos costumes tupinambás, Jean de Lery 
conseguiu entender a importância que o cauim exercia em algumas práticas festivas, bem como a 
relação existente entre essas festividades e a atividade da guerra – relação essa um tanto estranha ao 
olhar do europeu. Essa estranheza atribuída pelo missionário francês só pode ser entendida a 
partir de um exame mais cuidadoso da ideia de guerra para os tupinambás. De modo geral, é 
possível afirmar que a guerra tinha funções econômicas e simbólicas para esse povo. Em primeiro 
 
 
12 
 
 
lugar, porque, quando exitosa, a guerra viabilizava a obtenção de prisioneiros (cativos) bem como 
a ampliação territorial. Além disso, era comum que os jovens guerreiros tivessem de passar por 
uma espécie de iniciação antes de casarem. Tal iniciação consistia, justamente, na captura de um 
prisioneiro de guerra, que seria oferecido em sacrifícios. 
Os sacrifícios, presentes em diferentes sociedades humanas ao longo da história, também 
foram tema de horror e de criação de estereótipos por parte dos europeus. Ao descrever o destino 
dado aos prisioneiros de guerra, o francês Jean de Lery notou o seguinte: 
 
Logo depois de chegarem são não somente bem alimentados mas ainda 
lhes concedem mulheres (mas não maridos às prisioneiras), não hesitando 
os vencedores em oferecer a própria filha ou irmã em casamento. Tratam 
bem o prisioneiro e satisfazem-lhe todas as necessidades. Não marcam 
antecipadamente o dia do sacrifício; se os reconhecem como bons 
caçadores e pescadores e consideram as mulheres boas para tratar das 
roças ou apanhar ostras conservam-nos durante certo tempo; depois de os 
engordarem matam-nos afinal e os devoram em obediência ao seguinte 
cerimonial (LERY, op. cit., p. 154). 
 
O canibalismo indígena chamou a atenção de outros europeus que estiveram em contato com 
os índios no começo do século XVI. Ao descrever a prática do canibalismo, Hans Staden (1930, pp. 
156-157,) chamou a atenção para o seguinte fato sobre os tupinambás: "Não o fazem por fome, 
mas por ódio e inveja, e, quando combatem na guerra, gritam um para o outro: para vingar a morte 
de meus amigos, estou aqui; tua carne será hoje, antes que o sol entre, meu assado." 
Estudos antropológicos têm mostrado que os significados do canibalismo praticados por 
algumas sociedades indígenas passaram ao largo da ideia de barbárie difundida por europeus. 
Baseado na cosmogonia tupinambá, o canibalismo era um ritual antropofágico em que o inimigo 
prisioneiro de guerra era (depois de uma iniciação) morto pela sociedade vitoriosa e tinha suas 
partes distribuídas entre os indivíduos do grupo vencedor. Como sugerido pela leitura crítica da 
formulação de Staden, o objetivo dos sacrifícios humanos era o de alimentar-se, simbolicamente, 
das características do oponente. 
 
Características do grupo tapuia 
Ainda que a maior parte dos documentos encontrados e dos estudos feitos sobre as 
sociedades indígenas que entraram em contato com os portugueses (e outros europeus) privilegie 
o estudo das dinâmicas dos tupis-guaranis, é possível encontrarmos em estudos alguns aspectos de 
índios que pertenciam a outro tronco linguístico: os tapuias. 
 
 
 
13 
 
Os tapuias foram organizados como grupo indígena muito mais por suas características 
discrepantes dos tupis-guaranis do que por características culturais semelhantes. Isso faz com que 
seja muito difícil traçar um panorama mais amplo dessa grande variedade de povos indígenas sem 
incorrer em generalizações homogeneizantes dessas sociedades. 
Ao falar especificamente dos aimorés, também conhecidos como botocudos (que, por não 
serem tupis-guaranis, eram classificados como tapuias automaticamente), Gabriel Soares de Souza 
(1587), um português que esteve o Brasil no final do século XVI, afirmou o seguinte: 
 
Descendem estes aimorés de outros gentios a que chamam tapuias, dos 
quais nos tempos de atrás se ausentaram certos casais, e foram-se para 
umas serras mui ásperas, fugindo a um desbarate, em que os puseram 
seus contrários, onde residiram muitos anos sem verem outra gente; e os 
que destesdescenderam, vieram a perder a linguagem e fizeram outra 
nova que se não entende de nenhuma outra nação do gentio de todo este 
Estado do Brasil (SOUZA, 1587, p.78-79). 
 
Embora seja impossível criar um perfil dos índios tapuias – devido, justamente, ao fato de a 
sua pluralidade étnica não ter sido representada pela organização taxonômica implementada pelos 
portugueses no século XVI –, é fundamental pontuar que esses povos, assim como aqueles que 
compunham as sociedades tupis-guaranis, tiveram seus costumes e histórias radicalmente 
alterados a partir do contato com os portugueses e da sistematização da empresa colonial. 
O holocausto que assolou a população indígena a partir de 
1500 não respeitou as idiossincrasias dos milhares de grupos 
étnicos que compunham as terras brasileiras à época. 
De acordo com os dados do IBGE, no início do século XVI, as populações indígenas do 
Brasil (que ainda não existia como tal) giravam em torno de 2 milhões. Em 1998, esse número 
mal chegava a 300 mil. As razões de tamanha mortandade e as diferentes formas que as diversas 
sociedades indígenas encontraram para sobreviver nesses últimos quinhentos anos serão algumas 
das questões trabalhadas mais adiante. 
 
 
 
14 
 
 
Os “negros da terra” e de fora dela: a montagem do 
sistema colonial 
“Os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho, 
porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e 
aumentar a fazenda, nem ter engenho corrente” (ANTONIL, 
1982, p. 89). 
Proferida nos primeiros anos do século XVIII, a frase do Padre Antonil transformou-se em 
uma espécie de jargão sobre o uso da mão de obra no período colonial brasileiro. Embora estivesse 
tratando, exclusivamente, do universo açucareiro – Antonil versava sobre a relação entre escravo e 
senhor de engenho –, a máxima está longe de ter sido um exagero. 
Diversos estudos historiográficos demonstram que a América portuguesa se formou a partir 
da mão de obra escrava, tornando-se dependente dessas mãos e desses pés para funcionar. Não 
seria exagero algum afirmar que a montagem do sistema colonial não pode se dissociar da escolha 
dos colonos (com aval e respaldo da Metrópole portuguesa e da Igreja católica) pelo uso sistêmico 
de cativos. Exemplo disso está, justamente, nos diferentes usos e atividades executados por esses 
homens e mulheres que viveram sob o julgo da escravidão, bem como na diversidade que marcou 
a origem dos escravos da América Portuguesa. Compreender quem eram esses escravos e como 
eles se transformaram na engrenagem axial do sistema colonial é o objetivo desta unidade. 
 
Índios: o contato com os portugueses 
A chegada dos portugueses nas terras que viriam a batizar como Brasil trouxe mudanças 
profundas e violentas para a vida de homens e mulheres que ali viviam. A partir de ano de 1500, 
milhares de sociedades autóctones – organizadas de formas distintas, com línguas e costumes 
próprios – passaram a ser conhecidas apenas como “tribos indígenas”. 
Embora os portugueses tenham reconhecido, rapidamente, a diferença entre os grupos que 
moravam na região litorânea e os que habitavam os chamados sertões, criando uma falsa 
dicotomia entre os tupis (litoral) e os tapuias (interior), o índio transformou-se em uma categoria 
jurídica que, definida a partir de aspectos exteriores a sua cultura, foi acionada das mais diferentes 
formas com o objetivo de fazer valer os interesses coloniais. 
 
 
 
 
 
15 
 
Saiba mais 
 
A criação da categoria indígena não foi uma particularidade do mundo lusitano nas Américas. 
Acreditando ter chegado em uma das ilhas próximas ao Japão, em 12 de outubro de 1492, 
Cristóvão Colombo aportou naquilo que ele imaginou ser parte das Índias. Os habitantes, 
homens e mulheres nus, de pele encarnada e cabelos lisos, seriam os habitantes das Índias e, 
por isso, foram chamados de índios. 
 
Embora o engano de Colombo tenha sido rapidamente descoberto, o nome dado a todos os 
habitantes das Américas – independentemente de quem os tenha colonizado – continuou 
sendo o mesmo. A manutenção desse erro diz muito sobre como as nações europeias lidaram 
com os grupos autóctones do continente, deixando sempre muito evidente que as questões 
indígenas faziam parte daquilo que Tzevan Todorov (1982) chamou de “descoberta do outro”. 
 
De bom selvagem a gente bravia: o olhar português sobre o índio 
Os relatos deixados pelos primeiros viajantes portugueses que aportaram naquelas que 
viriam a ser chamadas de terras brasileiras não deixam dúvidas quanto à estranheza causada pelas 
sociedades indígenas aos olhos dos europeus. Exemplo disso é a famosa Carta de Pero Vaz de 
Caminha, que muito mais se assemelha a um diário, escrito em 1500, assim que os portugueses 
aportaram nas Américas. 
Segundo Manuela Carneiro da Cunha (2012), uma análise crítica desse documento 
permite-nos compreender a descoberta progressiva que os portugueses fizeram dos grupos 
indígenas com que entraram em contato ainda em 1500. A nudez dos índios (sobretudo, das 
índias), que chocou Caminha em um primeiro momento, gerou descrições detalhadas, feitas em 
relatos que, ao mesmo tempo, tinham forte carga sexual e também expunham aquilo que os 
lusitanos consideravam parte da inocência indígena. 
Todavia, como alerta Carneiro da Cunha (op.cit), tal inocência indígena atribuída pelo 
olhar europeu acabou por se transformar em uma simpatia “cega”, responsável por fazer com que 
os primeiros europeus que estiveram nas Américas enxergassem muito mais aquilo que eles 
queriam ver do que, necessariamente, a realidade observada. 
A dificuldade em compreender o outro foi responsável pela 
criação de estereótipos que até hoje pautam as questões e 
políticas indígenas no Brasil. 
A simpatia descrita por Caminha fez com que o português definisse os índios como gente 
montesa, bravia e selvagem, organizada em sociedades que, de acordo com Cristóvão Colombo, 
pareciam não ter lei nem rei e, muito menos, fé. 
 
 
16 
 
 
Em 1501, Américo Vespúcio não viu com bons olhos aquilo que Pero Vaz de Caminha 
considerou o “bom selvagem”. Para ele, a nudez indígena era muito mais antropofágica do que 
inocente. Desse modo, a “boa selvageria” logo deu lugar à irracionalidade de todos aqueles 
homens e mulheres que, segundo Américo Vespúcio, entravam em guerra por motivos banais e 
desconheciam o significado da propriedade privada. Os índios passaram então a ser vistos como 
uma gente bravia, que parecia pouco afeita ao trabalho e aos desígnios de Deus. 
 
Trocas comerciais: o extrativismo do pau-brasil e a exploração indígena 
Como vimos, durante os primeiros cinquenta anos do século XVI, o contato entre 
portugueses e sociedades indígenas foi marcado por uma estranheza de múltiplos sentidos e 
significados. Nesse período, alguns poucos gentios foram levados à Corte do Bem-Aventurado D. 
Manuel I – Rei português que incentivou e patrocinou as viagens responsáveis pela descoberta da 
rota para as Índias e pela chegada lusa às Américas – como símbolo das conquistas do monarca 
lusitano nesse mundo exótico que se apresentava. 
Também nesse período, tiveram início as primeiras trocas comerciais entre portugueses e 
autóctones, fazendo do pau-brasil o primeiro produto do Novo Mundo a chegar a terras lusitanas 
em grande quantidade. 
À medida que a demanda por pau-brasil aumentava, a relação entre portugueses e 
sociedades indígenas tornava-se menos amistosa. O olhar quase bucólico de Pero Vaz de Caminha 
logo deu lugar à otimização do uso dessa árvore nativa que tinha diversas qualidades. Por conta de 
sua abundância na Mata Atlântica, que cobria boa parte do litoral, a resina vermelha do pau-brasil 
foi rapidamente empregada na produção têxtil de Portugal e de outros países europeus. Além 
disso, a madeira da árvore, que era, ao mesmo tempo, resistente e maleável, passou a ser utilizada 
na produção de embarcações. 
Essa atividade extrativista foi responsável por uma segunda onda de mortandade indígena. A 
primeiraocorreu nos primeiros anos de contato entre os portugueses e os povos de Pindorama, 
devido, sobretudo, à falta de imunidade dos povos indígenas a doenças como gripe e febre amarela. 
A lucratividade resultante da exportação do pau-brasil acabou por implementar um modo 
de exploração violento, obrigando os índios a trabalharem em um sistema que não só era muito 
mais exaustivo (muitas horas de trabalho, pouca alimentação, etc.) como também ia de encontro a 
suas organizações socioeconômicas e relações com territórios ocupados. Não por acaso, muitos 
povos fugiram da região litorânea, embrenhando-se nas matas e nos sertões ainda desconhecidos 
pelos portugueses. 
 
 
 
 
17 
 
Nesse período, aqueles que não foram abatidos pelas 
epidemias acabaram tornando-se os chamados “negros da 
terra”, termo que faz alusão direta à escravização já 
existente de africanos e que demonstra como os índios 
também eram vistos como mão de obra barata pelos 
primeiros colonos portugueses. 
O uso quase indiscriminado da população indígena nos primeiros anos de colonização 
esteve atrelado à forma como os índios passaram a ser vistos e tratados pela grande maioria de 
europeus que se aventuraram no Novo Mundo. No entanto, é fundamental ressaltar que os 
olhares lançados a esses índios não foram sempre os mesmos. 
A chegada nas Américas significou a descoberta de uma “outra humanidade” – ou do outro, 
como bem pontuou Todorov (1992) –, o que criou debates filosóficos extremamente profundos 
em toda a Europa. Missionários católicos e protestantes que haviam entrado em contato com os 
diferentes grupos indígenas nas Américas lideraram discussões acerca da natureza desses homens e 
mulheres “recém-descobertos”, marcando o cenário intelectual do século XVI. 
 
Papel da Igreja 
Um dos propósitos das grandes navegações – se não o maior deles – era difundir a palavra 
de Cristo, nem que para isso fosse necessária uma verdadeira guerra santa. Os milhares de índios 
americanos constituíam um aumento potencial e significativo do rebanho da Igreja Católica, que, 
à época, estava lidando com uma forte crise dogmática implementada pelo movimento que ficou 
consagrado como Reforma. No entanto, inclusive para definir quais seriam os métodos de 
conversão e absorção da população indígena na comunidade católica, era fundamental determinar 
qual era a natureza desses indígenas. 
Um dos momentos mais extremos das discussões sobre a natureza indígena e como a 
religiosidade cristã deveria portar-se frente a ela ocorreu entre os anos de 1550 e 1551, na cidade 
de Valladolid, na Espanha. No evento, que ficou conhecido como Debate de Valladolid, o frade 
dominicano Bartolomeu de Las Casas (conhecido defensor dos indígenas) e o jurista Juan Guinés 
de Sepúlveda apresentaram argumentos morais e teleológicos sobre as questões relativas à 
colonização da América e à conversão dos índios ao cristianismo. Os juízes de Valladolid, 
infelizmente, suspenderam o debate sem uma decisão definitiva acerca da situação indígena, sob o 
argumento de que eram necessárias novas investigações sobre a questão. Prometeram, no entanto, 
apresentar uma resposta por escrito, o que nunca foi cumprido. Diante do silêncio, Las Casas e 
Sepúlveda se declararam vencedores, o que, de certa forma, era verdadeiro. 
A favor da vitória de Las Casas é possível citar o fato de que a Coroa espanhola adotou a 
doutrina da persuasão racional e pacífica dos índios como método de evangelização (em uma 
 
 
18 
 
 
tentativa de barrar os horrores vivenciados nas primeiras décadas do século XVI) e aprovou a Lei 
Básica de 1573, que incorporou importantes ideias do dominicano, como a proibição da 
escravidão e do uso da violência contra os indígenas. 
Por outro lado, não se pode deixar de observar que alguns argumentos de Sepúlveda 
também foram aceitos pela Coroa. No próprio texto da Lei de 1573, percebe-se que a colonização 
continuava a ser vista como algo benéfico aos índios, e como obrigação dos espanhóis (e também 
dos portugueses) e da Igreja, que deveriam ensinar-lhes costumes mais civilizados e a religião 
Cristã. Ademais, a lei abria exceções quanto à proibição do uso da força contra os índios: caso 
esses povos demonstrassem resistência à colonização ou às tentativas de pregação pacífica do 
Evangelho, seria permitido o uso da força. 
Em consonância com o que a Igreja Católica havia outorgado, impedindo a escravização 
dos povos indígenas que se dispusessem a passar pelo processo de evangelização, no ano de 1570, 
o Rei português Filipe II promulgou uma lei que proibia a escravização de índios na América 
Portuguesa, com exceção daqueles que se recusassem a passar pelo processo de catequização. A 
decisão tomada pelo monarca lusitano não só afiançava os ditames do Vaticano como também 
marcava uma posição da Metrópole frente ao uso da mão de obra escrava na América portuguesa. 
Tal posição ia de encontro ao que muitos missionários defendiam, contrariando interesses de 
diversos colonos favoráveis à escravização indígena. 
Apesar de os chamados “negros da terra” terem sido 
protegidos pela decisão do Monarca, os negros do outro 
lado do Atlântico não tiveram a mesma sorte. 
 
A opção pelos africanos escravizados 
Escravidão doméstica 
Quando os portugueses chegaram às Américas, sua relação comercial com diferentes 
sociedades africanas já era uma realidade há mais de cinco décadas. A principal mercadoria 
comercializada com essas sociedades era o africano escravizado. 
Como pontuado por diferentes autores, como Claude Meillassoux (1995) e Paul Lovejoy 
(2002), antes mesmo das relações com os europeus, a escravidão já era uma realidade em 
diferentes sociedades africanas, embora, na maior parte dos casos, tais sociedades não 
dependessem do trabalho desses escravos para fazer suas respectivas economias funcionarem. 
Muitos estudos classificam essa escravidão como doméstica, não porque ela fosse mais amena do 
que outras experiências igualmente marcadas pela violência física, psicológica e simbólica; mas sim 
pela sua representatividade na economia dessas sociedades. 
 
 
 
 
19 
 
Meillassoux e Lovejoy também sugerem que, de modo geral, os povos da África Ocidental e 
Centro Ocidental preferiam escravas a escravos. Essa prática, que muito explica alguns 
funcionamentos socioculturais das sociedades africanas, viabilizou a existência de certa oferta de 
africanos escravizados, o que foi rapidamente aproveitado pelos mercadores portugueses e, mais 
tarde, por traficantes de outras nacionalidades. 
 
Rotas comerciais 
Como vimos, Portugal foi a primeira nação europeia a explorar a África Ocidental. A partir 
do século XV, após a expulsão dos muçulmanos e a formação do Estado nacional moderno de 
Portugal, iniciou-se o período conhecido como Grandes Navegações. 
A fim de fomentar a economia de um Estado nacional que se formava frente a uma Europa 
que passava por profundas crises econômicas e conflitos militares, as elites políticas e econômicas 
lusitanas compreenderam que seria fundamental participar do lucrativo e diversificado comércio 
feito no Oceano Índico. 
Durante muitos anos, as rotas comerciais do Índico eram utilizadas para levar as 
mercadorias mais importantes e caras a diversas regiões da Europa, do Oriente Médio, da Ásia e 
do Norte da África. São exemplos dos produtos comercializados: 
 tecidos luxuosos, como a seda e veludo; 
 especiarias, como a canela e a pimenta; 
 ouro e prata. 
 
No entanto, para participar desse lucrativo comércio, os portugueses precisavam vencer um 
obstáculo: à época, o acesso do continente europeu a essas rotas dependia dos principais portos do 
Mar Mediterrâneo, que eram controlados por mercadores oriundos de cidades da Península itálica 
bem como por negociantes muçulmanos – considerados inimigos religiosos dos católicos e, 
consequentemente, dos portugueses. Existia ainda a expectativa de ter acesso direto às minas de 
ouro do continente africano, cuja existência era frequentementerelatava pelos viajantes 
muçulmanos que estavam vinculados ao comércio transaariano, ou seja, aquele que usava o Saara 
como rota. 
Como o Mediterrâneo, caminho mais fácil para chegar às Índias, estava sob o controle dos 
muçulmanos, e os recentes debates filosófico-científicos defendiam a teoria de que a terra era redonda, 
os portugueses resolveram contornar todo o continente africano para chegar à Ásia. Se, por um lado, o 
trajeto era muito maior e mais perigoso do que a opção mediterrânica – pois não se tinha notícia de 
nenhum outro povo que tivesse tentado realizar tal façanha –, por outro lado, caso tivessem êxito 
nessas viagens, os portugueses passariam a controlar uma nova rota comercial marítima. 
 
 
 
20 
 
 
O Rei português e os principais comerciantes do país passaram então a investir muito 
dinheiro nessa empreitada. A construção de navios, os gastos com tripulações e o desenvolvimento 
de novos instrumentos de navegação que facilitassem a orientação dos marinheiros quando 
estivessem no meio do mar são exemplos de realizações a que foram direcionados esses 
investimentos. 
A conquista de Ceuta, em 1415, foi o primeiro feito resultante dos novos investimentos e 
encorajou os portugueses a seguirem em frente. Quatro anos depois, eles chegaram às Ilhas da 
Madeira. Já em 1430, chegaram ao Arquipélago dos Açores. Contudo, o feito de maior 
importância das navegações aconteceu no ano de 1434 os portugueses conseguiram ultrapassar o 
Cabo do Bojador, chegando à desconhecida África Subsaariana. A partir de então, o 
estabelecimento de relações com as sociedades africanas somou-se às intenções dos mercadores e 
navegadores portugueses, fazendo com que viagens às regiões africanas que ficavam ao sul do 
Saara se tornassem frequentes. 
No ano de 1446, as expedições portuguesas aportaram em Guiné, região que era habitada 
por diferentes sociedades (organizadas de formas politicamente distintas). Quarenta e oito anos 
depois, os portugueses chegaram às margens do rio Congo, na África Centro-Ocidental. A partir 
do contato com as diferentes sociedades africanas do reino que já ali existia, os portugueses 
inauguraram o estabelecimento de importantes redes comerciais. 
Nesse contexto, é necessário entendermos o seguinte: ao contrário do que foi difundido 
durante muitos anos por estudos que pouco analisaram a organização e a história da África, grosso 
modo, as sociedades africanas que entraram em contato com portugueses e europeus durante 
desenvolvimento do tráfico transatlântico de africanos escravizados eram soberanas e mantiveram 
tal situação, impedindo invasões em seus territórios e a possível perda de sua autonomia política. 
 
Comércio de escravos africanos 
Ao contrário do que se pode imaginar, a chegada dos portugueses à África ao Sul do Saara 
não significou a dominação dos grupos africanos que viviam naquela região. As primeiras 
tentativas portuguesas de ultrapassar a região litorânea da costa ocidental africana foram 
impedidas tanto por doenças, que assolaram sua tripulação (como a malária e a febre amarela), 
quanto por batalhas travadas entre africanos e europeus. Munidos de arcos e flechas, pequenas 
espadas e ágeis pirogas, os africanos venceram as armas de fogo europeias. 
Como a tentativa de dominação não teve êxito, a principal 
relação estabelecida entre portugueses e africanos foi o 
comércio. 
 
 
 
 
21 
 
Também é importante pontuarmos que a soberania das sociedades africanas impediu que os 
portugueses tivessem acesso às minas de ouro que haviam sido descritas pelos viajantes árabes. A 
quantidade de ouro que os portugueses conseguiram comprar no continente africano foi muito 
menor do que eles haviam sonhado. Dessa forma, os lusitanos transferiram, rapidamente, seus 
interesses comerciais para outra mercadoria: o escravo africano. 
Nos primeiros anos de relação, os africanos escravizados eram comercializados como outra 
mercadoria qualquer. As elites das sociedades africanas que habitavam as regiões próximas ao 
litoral começaram a trocar os escravos que já possuíam (geralmente, oriundos de outras sociedades 
africanas subjugadas pelo grupo dominador) por produtos europeus que lhes interessavam, tais 
como miçangas, veludo e armas de fogo. 
Durante o século XV, os negociantes portugueses compraram um grande número de 
africanos. Esses escravos eram vendidos a outras sociedades europeias ou utilizados como mão de 
obra na produção de cana-de-açúcar, nas regiões recém-colonizadas do Atlântico Norte. 
Com o objetivo de facilitar o transporte desses escravos, os portugueses construíram o forte 
de São Jorge da Mina, em 1482. Durante a construção, Portugal teve de pagar altos impostos ao 
povo acan, que controlava a região. No entanto, a construção desse forte viabilizou o aumento 
vertiginoso dos lucros lusitanos nas trocas comerciais. O forte funcionava como um depósito, 
capaz de armazenar um grande número de mercadorias (sobretudo escravos), enquanto os 
portugueses esperavam que suas embarcações voltassem das viagens feitas ao continente europeu. 
 
Saiba mais 
Mesmo antes da chegada dos europeus às Américas, os africanos escravizados eram enviados a 
diferentes localidades da Europa, chegando a compor 10% da população das cidades de Sevilha 
e Lisboa nos primeiros anos do século XVI. 
 
Como se não bastassem as razões econômicas, os lusitanos encontraram uma forte aliada 
para justificar a escravização de diferentes povos africanos: a Igreja Católica. Esse apoio de devia 
ao fato de a Igreja entender o processo de escravização dessas sociedades como mais uma forma de 
lutar contra os infiéis e ampliar seu rebanho. No ano 1454, o Papa Nicolau V publicou uma bula 
papal a esse respeito. Vejamos: 
 
Guinéus e negros tomados pela força, outros legitimamente adquiridos 
foram trazidos ao reino, o que esperamos progrida até a conversão do 
povo ou ao menos de muitos mais. Por isso nós, tudo pensando com 
devida ponderação concedemos ao dito rei Afonso [de Portugal] a plena e 
livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer 
sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir 
à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos seus aos mesmos D. 
Afonso e seus sucessores, e ao infante. 
 
 
22 
 
 
Embora os portugueses e os demais europeus não tenham empreendido nenhum tipo de 
Cruzada no continente africano, a autorização conferida pela Igreja liberava-os de qualquer 
comprometimento moral com o fato de comercializarem africanos escravizados. 
A leitura específica de determinadas passagens bíblicas determinou, por exemplo, que os 
guinéus (como eram chamados os africanos naquela época) eram os descendentes de Can e ou de 
Cain. A cor negra de sua pele passou a ser entendida, portanto, como um defeito, uma marca do 
pecado de seus antepassados. 
Como ocorreu em outros momentos da história, interesses 
religiosos e econômicos pareciam ter o mesmo fim. 
Estudos pioneiros, como o de Philip Curtin (1969), demonstram que a chegada dos 
europeus às Américas causou um verdadeiro redimensionamento do tráfico de africanos no 
atlântico, fazendo desse comércio um dos mais lucrativos do chamado Mundo Atlântico. 
A implementação do sistema colonial, que visava à produção, em larga escala, de gêneros 
tropicais com grande demanda na Europa, só poderia ser realizada caso a mão de obra utilizada 
fosse abundante e barata, ou seja, escrava. 
A dizimação de grande parte da população ameríndia e a 
proibição da escravização indígena no começo do século XVI 
transformaram o africano escravizado em uma alternativa 
viável e lucrativa. 
 
 
 
 
23 
 
A cronologia do tráfico de africanos escravizados para o Brasil pode ser sistematizada da 
seguinte forma: 
 
 
 
Entre o final do século XVIII e o início do século XIX, uma série de rotas comerciais já 
estavam estabelecidas com diferentes regiões da América Portuguesa, como demonstram os 
trabalhos de Pierre Verger (1985) ede Luis Felipe de Alencastro (2000). Vale ressaltar que, 
nesse período, boa parte dessas rotas eram controladas por traficantes já nascidos em terras 
brasileiras, responsáveis por criar uma elite colonial que não só estava envolvida na produção de 
gêneros tropicais de exportação mas também controlava o fluxo da principal mão de obra 
empregada na colônia. 
Sendo assim, a partir de 1580, africanos de diversas localidades do continente passaram a 
desembarcar, em peso, na América portuguesa para trabalhar como escravos em diferentes 
atividades econômicas. 
 
 
Séc. XV
As primeiras grandes levas de africanos escravizados saíram da região que hoje corresponde aos
países de Congo e Angola, na África Centro Ocidental. Como demonstrado pela historiografia, a
volumosa compra de escravos nessa região estava intimamente relacionada com a conversão do Rei
do Congo ao catolicismo e com a íntima ligação o que este reino passou a ter com os portugueses.
Séc. XVI e
XVII
Nos dois séculos seguintes, XVI e XVII, portugueses e outras nações europeias como os holandeses
franceses, e ingleses começaram a comprar africanos escravizados da região que ficou conhecida
como Costa do Ouro (no atual país de Gana) habitada pelos acans, fantis e mandingas.
Séc. XVII e
XVIII
A partir do século XVII e, sobretudo, no século XVIII, o tráfico atlântico ampliou sua área de atuação
para a região do Golfo do Benin, que foi cruelmente batizada pelos traficantes como Costa dos
Escravos, devido ao grande número de africanos escravizados que saíram de lá.
Séc. XVIII e
XIX
O tráfico para o Brasil alcançou seu ápice em volume de exportação e lucratividade entre o final do
século XVIII e início do XIX.
 
 
24 
 
 
Etapas da travessia de africanos escravizados para o Brasil 
Como já vimos, os africanos que vieram escravizados para a América portuguesa tinham 
diversas origens e etnias. Embora essa diversidade fosse minimamente conhecida pelos traficantes 
e futuros senhores desses escravos, a partir de seu aprisionamento, ainda no continente africano, 
esses homens e mulheres passavam a ser homogeneizados pela instituição escravista. 
A tenebrosa experiência da travessia atlântica foi mais uma das violentas etapas que marcaram 
a escravidão nas Américas (de forma geral) e na América portuguesa (de forma particular). 
O volume de almas e riquezas que o tráfico mobilizou em seus quase 400 anos de existência 
legal permitiu uma série de estudos sobre o tema, demonstrando a complexidade desse mercado. 
Em trabalhos como os de Maurício Goulart (1949) e Pierre Verger (op.cit), Luis Felipe de 
Alencastro (op.cit), Manolo Florentino (1995), Jaime Rodrigues (2000) e Beatriz Mamigoniani 
(2009) – para citar apenas alguns autores –, o infame comércio de escravos para o Brasil foi e vem 
sendo desnudado. 
Podemos resumir a travessia dos escravos africanos para o Brasil da seguinte maneira: 
 
a) Etapa 1 – dos sertões da África à Costa Atlântica: 
Nesta etapa, independentemente da distância a ser percorrida, o escravo viajava a pé, ligado 
a outros companheiros de cativeiro pelo pescoço. Mal alimentados e feridos, muitos não resistiam 
a essa primeira viagem e morriam. Os demais continuavam a jornada. 
 
b) Etapa 2 – da Costa Atlântica aos Navios Negreiros: 
Nas cidades costeiras, os escravos eram alocados em barracões próximos às feitorias 
europeias e lá eram comprados por negociantes europeus e brasileiros. 
Muitas vezes, os africanos escravizados esperavam até três meses antes de embarcarem. 
Nesse período de espera, viviam presos e eram vigiados constantemente. Chegada a hora da 
viagem, eram colocados nos porões das embarcações de médio porte que ficaram conhecidas 
como navios negreiros ou tumbeiros. 
 
c) Etapa 3 – travessia da Calunga Grande: 
A duração da travessia Atlântica variava de acordo com o ponto de partida e o ponto de 
chegada. Nos séculos XVI e XVIII, os navios que saíam da Costa Ocidental africana demoravam 
cerca de 25 dias para chegar a Pernambuco, 30 dias para chegar à Bahia e 40 para aportar no Rio 
de Janeiro. Já a travessia entre a Costa Índica da África (principalmente, a região de Moçambique) 
e o Rio de Janeiro poderia durar de dois a três meses. 
Por conta desse longo tempo de viagem e do desejo de obter o maior lucro possível, os 
traficantes empilhavam cerca de quinhentos escravos nos porões de cada navio. Como não havia 
 
 
 
25 
 
espaço suficiente, os escravos ficavam sentados durante boa parte da viagem ou revezavam as 
poucas esteiras que existiam no navio. 
Em pequenos grupos, às vezes, os escravos saíam da total clausura e subiam até a proa da 
embarcação para tomar sol. Essa medida foi tomada pelos traficantes para diminuir o índice de 
doenças tanto físicas quanto mentais dos escravos, mas também era um dos momentos mais 
tensos da viagem, pois havia a possibilidade de revolta. Dessa forma, a tripulação vigiava, 
atentamente, os africanos. 
Em algumas ocasiões, os escravos utilizavam o momento do 
banho de sol para fazer motins. O mais conhecido deles 
aconteceu no navio Amistad, cuja história foi parar nas telas 
do cinema, em 1997. 
Na maior parte do tempo de travessia, os escravos ficavam dentro dos porões. Ali, 
normalmente, consumiam água quase salgada e, geralmente, alimentavam-se de farinha de 
mandioca, peixe, ou carne seca e feijão, pois esses eram os alimentados que não estragavam 
durante a longa viagem. 
A mortandade nessas viagens era alta. Muitos africanos já embarcavam doentes e, com as 
péssimas condições materiais e de higiene, cerca de 30% deles morriam na travessia. A frequência 
de mortes era tamanha que, para evitar epidemias dentro dos navios, os traficantes jogavam os 
corpos dos mortos no mar. 
 
A chegada ao Brasil 
Após essa longa travessia, os africanos, finalmente, desembarcavam nos portos da América 
portuguesa. No entanto, como era de se esperar, a situação de boa parte deles era deplorável. Os 
que conseguiram sobreviver à viagem, passavam por um breve exame médico e eram rapidamente 
vendidos. Já os mais adoentados, sobretudo os que haviam contraído escorbuto, passavam por um 
processo de quarentena em galpões localizados na região portuária. A função dessa quarentena era 
a de oferecer alimentação e cuidados médicos especiais, com a finalidade de recuperar a saúde de 
tais africanos. Quando minimamente recuperados, eles eram levados aos mercados, onde seriam 
vendidos. A partir de então, o destino desses africanos estava atrelado ao de seu senhor e, em 
muitos casos, envolvia mais uma viagem, só que agora, pelo interior do Brasil. 
Nem todos os africanos recém-chegados resistiam ao período de quarentena. Desse modo, 
era comum se encontrarem cemitérios nas proximidades do porto. Além dos maus tratos e das 
doenças adquiridas durante a travessia, muitos escravos boçais (termo utilizado para designar os 
africanos recém-chegados) sofriam de uma doença que parecia atacar suas almas: o banzo. 
Tomados de uma tristeza profunda, esses africanos morriam. Para muitos deles, era preferível 
 
 
26 
 
 
morrer a trabalhar como escravo, pois acreditavam que a morte significava o retorno a sua terra 
natal, junto a seus ancestrais. 
Todavia, aproximadamente dois terços dos africanos que saiam do continente como 
escravos sobreviviam à travessia do Atlântico. 
O escravo boçal era introduzido, rapidamente, em sua nova condição. Geralmente, no 
momento da compra, era batizado e recebia um nome cristão. Também recebia um novo 
sobrenome, que se referia ao porto africano de onde havia embarcado; por isso, existiram Pedro 
Mina, João Angola, Maria Congo, Ana Benguela. 
Após o batismo cristão (que nem sempre ocorria respeitando todos os rituais determinados 
pela Igreja Católica), os africanos escravizados recebiam ensinamentos básicos sobre o catolicismo 
e sobre como deveriam portar-se perante seu senhor. Além disso, aprendiam algumas palavras-
chave em português. A partir de então o escravo boçal se juntava ao ladino (africanoaclimatado) e 
ao crioulo (escravo nascido nas Américas) na execução das mais variadas tarefas. 
As tarefas desempenhadas por africanos escravizados e seus descendentes foram diversas 
durante os quase 400 anos em que a instituição escravista perdurou no Brasil, tanto no período 
colonial quanto no Império soberano. 
O uso indiscriminado de negros (africanos e crioulos) e 
indígenas como mão de obra explorada – quer como 
escravos, quer como servos –, e as diferentes situações a 
que foram subjugados foram determinantes na construção 
das relações étnico-raciais brasileiras. 
 
Servidão indígena e escravidão africana: dinâmicas de 
exploração e resistência na América colonial 
A grande extensão dos domínios portugueses em terras americanas fez com que a 
colonização da América portuguesa fosse um mosaico de diferentes práticas e culturas. Todavia, se 
é possível apontar um denominador comum em todo território que outrora fora chamado de 
Pindorama, esse denominador seria a exploração do trabalho indígena e a escravidão negra. 
Conforme vimos, a escolha pelo uso de africanos escravizados não estava relacionada com a 
sua pretensa superioridade física frente à incapacidade de adaptação cultural dos grupos indígenas. 
Essa perspectiva, que, durante muitos anos, foi difundida nos bancos escolares do Brasil, não só 
reforça uma série de estigmas e preconceitos raciais, como também demonstra um profundo 
desconhecimento sobre a história do Brasil. 
 
 
 
 
27 
 
A escolha pela escravização massiva de africanos estava, na verdade, relacionada com: 
 as dinâmicas comerciais do Império Ultramarino Português desde meados do século XV; 
 a elevada margem de lucro que o tráfico transatlântico passou a representar para todas as 
nações que participaram desse infame comércio (como traficantes de escravos) entre os 
séculos XVI e XIX. 
 
Apesar da preferência por escravos africanos, diferentes estudos apontam a coexistência da 
escravidão africana e da exploração da mão de obra indígena nas terras brasileiras, sem que isso 
representasse qualquer tipo de contradição no funcionamento da vida em colônia. 
Parte dos processos de exploração da mão de obra indígena e africana, e as resistências que 
esses grupos impuseram ao mundo colonial são o tema desta unidade. 
 
A servidão indígena 
Ao analisar a relação entre índios e bandeirantes na origem de São Paulo, o historiador John 
Monteiro (1994), um dos maiores especialistas em história indígena no Brasil, pontuou que a 
colonização foi um processo plural e que deve ser analisada a partir desse princípio. 
Ainda que boa parte da América portuguesa tenha vivenciado experiências comuns advindas 
do encontro entre colonos e índios – encontro esse que foi marcado pela desintegração de muitas 
sociedades indígenas e pelo processo de catequização daquelas que conseguiram sobreviver –, a 
partir de meados do século XVI, essa relação tomou rumos distintos. 
Monteiro (1994, p. 57) afirma que, nas capitanias do Sul da América Portuguesa, a Lei de 
Liberdade do Gentio (sancionada em 1570) foi “letra morta”. Segundo as pesquisas do autor, o 
número de expedições que assaltavam as aldeais indígenas, transformando seus habitantes em 
servos (praticamente, escravos) era elevado entre os séculos XVI e XVII. As razões para isso 
residem nas diferentes e múltiplas dinâmicas econômicas desenvolvidas no período colonial. 
Por um lado, sem conseguir se inserir no circuito comercial Atlântico, que, à época, estava 
monopolizado pela produção e exportação açucareira, os colonos da capitania de São Paulo 
preferiram se embrenhar sertão adentro em suas bandeiras do que se lançar ao mar. 
Por outro lado, as ações dos paulistas também estavam atreladas a um sonho antigo dos 
primeiros colonos portugueses: a busca do El dorado. 
A descoberta das minas de prata na região de Potosí (atual Bolívia e que, à época, estava sob 
domínio espanhol) acendeu as esperanças de outras gerações de colonos. Sem perder tempo, entre 
1591 e 1601, o governador geral D. Francisco de Souza armou uma série de expedições em busca 
de metais preciosos. Dessa forma, não seria exagero afirmar que fora justamente a busca por ouro 
e prata que fomentou as primeiras expedições para as regiões interioranas da colônia portuguesa. 
 
 
28 
 
 
Chefiada por João Pereira Botafogo, a vertente paulista dessas expedições conseguiu 
encontrar algumas minas próximas à cidade de São Paulo, reacendendo o sonho português. 
Todavia, as expedições subsequentes não corresponderam às expectativas criadas pelos colonos. 
O insucesso das primeiras expedições em busca de ouro e 
prata acabou por revelar aos colonos a potência econômica 
de outra mercadoria, encontrada em abundância nos 
sertões da região sudeste: o escravo indígena. 
Não por caso, ao terminar seu mandato como governador, D. Francisco retornou a 
Portugal com o objetivo de apresentar um projeto que visasse fomentar a economia das capitanias 
do Sul da colônia, que estavam fora das grandes transações comerciais do Atlântico. Como 
salienta Monteiro (1994), o ex-governador pretendia utilizar a mão de obra indígena para 
articular setores econômicos da mineração e agricultura na região, baseado no modelo 
desenvolvido na América hispânica. 
Sem grande êxito na metrópole, a proposta do antigo governador acabou redimensionando 
os objetivos das expedições ao interior. Em outras palavras, a busca por ouro deu lugar ao 
aprisionamento de índios. 
Apesar das inúmeras e constantes proibições da Coroa no que diz respeito à escravização 
indígena, as expedições (ou as bandeiras, como ficaram conhecidas) continuaram sendo 
organizadas pelos colonos de São Paulo, e milhares de povos indígenas padeceram frente à 
empreitada escravizadora dos séculos XVII. 
A razão para o grande número de investidas nos sertões da colônia residia na rentabilidade 
da venda dos indígenas escravizados. Os lucros eram tamanhos que pagavam os custos e riscos das 
expedições, cada vez mais interioranas. Dessa forma, rapidamente, criou-se uma intricada rede de 
negociações nas capitanias do sul e centro-oeste (pouco explorado), e praticamente toda a mão de 
obra dessas localidades da América portuguesa era formada por índios escravizados. 
 
Missionários versus bandeirantes 
Como era de se esperar, muitas sociedades indígenas se opuseram à prática sistêmica de 
escravização de seus habitantes. Outro segmento social que se colocou ferrenhamente contrário às 
bandeiras foi o de religiosos ligados a missões, ou seja, aqueles envolvidos no processo de 
evangelização indígena. 
Como vimos, o grande debate filosófico-religioso que acontecera no século XVI havia 
consagrado que, salvo os povos que se negassem a participar do processo de catequese 
pacificamente, todos os habitantes autóctones das Américas (em suas múltiplas diversidades) 
tinham o direito à liberdade cristã, assegurada pela Igreja e afiançada pelas Coroas Ibéricas. 
 
 
 
29 
 
Dessa forma, as expedições dos colonos de São Paulo eram não só uma afronta às leis 
promulgadas pelos órgãos máximos do mundo colonial mas também uma prática que colocava 
em risco a missão maior da presença europeia no Novo Mundo: a evangelização. 
Ainda que os aldeamentos criados pelos missionários estivessem pautados pela ideologia 
cristã, que estabelecia um determinado modus vivendis, o cotidiano dos índios que viviam nessas 
organizações bem como o sistema de trabalho a que estavam sujeitos não poderiam ser 
comparados com a situação de escravidão imposta pelas expedições e bandeiras. 
Na perspectiva evangelizadora, todas as atividades 
realizadas pelos índios em aldeamentos e missões, inclusive 
o trabalho físico, faziam parte do processo de catequese. 
Os índios recebiam instruções religiosas para que se convertessem ao cristianismo e 
passassem a seguir um padrão europeu de vida e relação com o trabalho. Essas preocupações 
passaram ao largo da organização das expedições nos séculos XVII e XVIII. Exemplodisso pode 
ser atestado pelo testemunho deixado por alguns dos clérigos da época. De acordo com o padre 
Montoya, por exemplo, as expedições haviam destruído 11 missões, o que significava o 
apresamento de, praticamente, 50 mil índios. Já o padre Lourenço de Mendonça, ao descrever as 
expedições no Rio de Janeiro, afirmou que 60 mil guaranis foram escravizados e levados a São 
Paulo. Baseado nessas informações, Monteiro (1994) frisou que centenas de aldeias foram 
destruídas, e milhares de índios foram presos em cativeiro. O destino final da maior parte dessa 
mão de obra indígena era a reposição da força de trabalho na região sudeste da colônia. 
Organizados por diferentes colonos, as expedições eram identificadas por bandeiras, o que 
acabou por nomear o movimento dos paulistas em busca de índios como Movimento 
Bandeirante. O auge desse movimento ocorreu na segunda metade do século XVII, momento em 
que bandeirantes como Antonio Raposo Tavares e Domingos Jorge Velho ganharam notoriedade 
em toda a América portuguesa. 
Embora considerado tão ou mais bárbaro que os índios 
selvagens ou os africanos escravizados, Jorge Velho foi 
convocado pela Coroa portuguesa para “sufocar” a rebelião 
indígena chefiada por Canindé (no Rio Grande), além de ter 
sido um dos responsáveis pela desarticulação do Quilombo 
dos Palmares. 
Na virada do século XVII, o movimento das bandeiras começou a diminuir. Um dos fatores 
foi o aumento das distâncias. Com o aprisionamento de boa parte da população indígena na 
região sul/sudeste, aquilo que os bandeirantes chamavam de sertão começou a ficar cada vez mais 
 
 
30 
 
 
longe, o que encarecia as expedições (que necessitavam de pólvora, chumbo, correntes e índios 
escravizados) e as tornava mais perigosas. 
Outro fator a ser destacado foi a crescente oposição dos missionários frente às bandeiras. 
Amparados pela letra da lei, esses religiosos recorreram, diversas vezes, ao Rei português a fim de 
denunciarem os abusos cometidos pelos colonos paulistas, que eram mal vistos por boa parte da 
sociedade colonial, inclusive por seus pares: colonos (escravocratas) de outras regiões. 
A significativa diminuição das bandeiras a partir das primeiras décadas do século XVIII – 
que, não por acaso, coincidiu com a euforia gerada pela descoberta de ouro na região das Minas – 
não significou o fim da exploração da mão de obra indígena. Muitas sociedades continuaram 
subjugadas aos interesses de colonos em diferentes regiões da América portuguesa; em muitos 
casos, ainda trabalhando em condições de servidão ou escravidão, inclusive em aldeamentos e 
missões evangelizadoras. Oficialmente, a escravidão indígena só foi proibida, em 1757, pelo 
Marquês de Pombal, o que também não representou, necessariamente, o direito a melhorias 
efetivas nas condições de vida dos povos indígenas. 
 
A escravidão africana e os escravos negros 
Produção de açúcar 
O açúcar foi o primeiro gênero alimentício produzido, em larga escala, na América 
Portuguesa. A importância que esse alimento ganhou no mercado mundial foi rápida e volumosa, 
representando o que Sidney Mintz (2003) classificou como “uma verdadeira revolução” não 
apenas nas relações comerciais travadas no espaço Atlântico que se construía, mas também nos 
usos e costumes alimentares. 
Para os portugueses, a escolha pela produção de açúcar em larga escala tinha duas razões 
principais: 
1. a demanda pelo produto no mercado europeu; 
2. o know-how, ou seja, a habilidade já adquirida no fabrico do açúcar de cana, devido a 
experiências nas ilhas Canárias, da Madeira, de Açores e de Cabo Verde, todas 
localizadas no Atlântico Norte. 
Como o sonho do El dorado não foi concretizado nos 
primeiros anos da colonização, o açúcar transformou-se, 
rapidamente, no ouro branco do Império Português. 
Conforme já pontuado, os interesses pelo território americano entraram na pauta da Coroa 
portuguesa depois dos insucessos comerciais no Índico. Todavia, já no século XVI, os primeiros 
trapiches e engenhos foram construídos em diferentes locais da colônia. 
 
 
 
31 
 
As capitanias localizadas no nordeste da colônia acabaram tornando-se as principais 
produtoras de açúcar. Sua maior proximidade em relação à metrópole garantia que o produto 
chegasse mais rapidamente (e com maior controle) ao mercado europeu. Além disso, tais 
capitanias pareciam ter as condições naturais ideais para a produção: abundância de rios e árvores 
da Mata Atlântica, que eram ideais para a construção das moendas e da estrutura arquitetônica de 
engenhos e trapiches. Ademais, a extensão vasta do território colonial (que permitiu a criação de 
propriedades latifundiárias), o clima quente, as chuvas constantes e o solo fértil garantiam que a 
produção de gêneros tropicais tivesse êxito. 
Como demonstram os diferentes relatos deixados por colonos e as análises de muitos 
historiadores, no que tange à produção açucareira, o engenho era a unidade produtiva por 
excelência, composta de diferentes partes: 
 o extenso canavial – onde a cana era cultivada; 
 a casa de moenda e a casa de purgar – onde se transformavam a cana em caldo, o caldo 
em melado e o melado em açúcar; 
 a residência do senhor – no Brasil, conhecida como Casa-Grande; 
 as moradas dos trabalhadores – onde se abrigavam trabalhadores escravos ou livres. 
 
Existe uma constatação, quase unânime na historiografia, de que a escravidão foi a 
instituição que ordenou boa parte das dinâmicas sociais na América portuguesa. Na já citada obra 
Cultura e opulência do Brasil, Padre André Antonil (1649-1716) apontou a imprescindível 
relevância que a escravidão tinha no funcionamento dos engenhos açucareiros. Segundo Antonil: 
 
Os escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem eles 
no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter 
engenho corrente. E do modo como se há com eles, depende tê-los bons 
ou maus para o serviço. Por isso, é necessário comprar cada ano algumas 
peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas (ANTONIL, 
1982, p. 36). 
 
Durante muitos anos, a escravidão foi vista de forma sistêmica no Brasil: 
 
De um lado, os índios escravizados, que 
eram utilizados, majoritariamente, em 
pequenas e médias produções, quase todas 
voltadas à subsistência da colônia. 
Do outro, os africanos escravizados e seus 
descendentes, que eram utilizados nas 
atividades envolvidas com o mercado 
externo, como a produção de açúcar e a 
mineração. 
 
 
 
32 
 
 
Ainda que essa sistematização estivesse pautada em uma série de análises qualitativas da 
economia colonial, é importante ressaltar que tal assertiva não se aplica a todo o período de 
fabrico de açúcar. 
Em seu trabalho basilar sobre a história do Brasil, chamado Segredos internos: engenhos e 
escravos na sociedade colonial (1988), o brasilianista Stuart Schwartz lançou luz sobre um 
fenômeno até então pouco estudado: o uso massivo de indígenas escravizados nos engenhos de 
açúcar, sobretudo nos séculos XVI e XVII. Grande parte desses índios tinha origem tupi, embora 
relatos sobre alguns povos tapuias tenham sido encontrados em documentos sobre os engenhos da 
província da Bahia, trabalhados pelo autor. 
Examinando registros paroquiais e inventários, o autor apontou que a lógica que regeu a 
escravidão indígena na produção açucareira foi muito semelhante àquela que ditaria o ritmo de 
trabalho de africanos escravizados anos mais tarde. Graças à preferência senhorial, 60% dos 
escravos eram homens adultos e jovens. No entanto, as práticas católicas incentivaram o 
casamento de muitos desses homens, fazendo com que famílias escravas tivessem significativa 
presença nesses engenhos, já que suas esposas e seus filhos foram incorporados na massa de 
trabalhadores explorados. Obrigados a se adaptar às condições de trabalho impostas pelos colonos, 
os índios escravizados deveriam realizar o cultivo extensivo da cana e depois processar seu caldo, a 
fim de se obter o açúcar.A partir do último quartel do século XVI, a escravidão indígena passou a ser, em parte, 
substituída pelos africanos escravizados. Conforme visto anteriormente, essa substituição tinha 
duas motivações principais: 
1. a relativa fragilidade dos grupos indígenas em relação às inúmeras epidemias que 
assolaram os engenhos açucareiros; 
2. a grande circulação de dinheiro promovida pelo tráfico transatlântico de africanos 
escravizados – tráfico esse que, em muitos casos, era comandado por familiares dos 
senhores de engenho da América portuguesa. 
 
A partir de 1580, africanos de diversas localidades do continente passaram a desembarcar, em 
peso, na América portuguesa para trabalhar como escravos em diferentes atividades econômicas. 
Como vimos, os africanos que vieram escravizados para o Brasil tinham identidades étnicas 
diversas. Após a longa travessia, quando finalmente desembarcavam nos portos da América 
portuguesa, a situação de boa parte dos africanos era péssima. No entanto, a maior parte dos 
africanos sobrevivia à travessia do Atlântico. 
Para conseguir cumprir a demanda da produção em larga escala, os escravos enfrentavam 
jornadas de trabalho que variavam de doze a dezoito horas e eram vigiados, constantemente, por 
feitores e capatazes, que tinham como função “otimizar” o trabalho. 
No ápice da produção do açúcar (século XVI) e do café (século XIX), e no auge do período 
aurífero (século XVIII), a exploração do escravo era tamanha que a média de vida ativa do cativo 
 
 
 
33 
 
variava entre sete e dez anos. Realidade semelhante era encontrada em fazendas produtoras de 
charque (tanto na Região Sul quanto na Região Nordeste), nas principais cidades coloniais e nas 
pequenas propriedades rurais. Contudo, estimativas apontam que, mesmo nesse curto tempo de 
vida ativa, o escravo “pagava” a seu proprietário a quantia que havia sido desembolsada no 
momento de sua compra e ainda gerava benesses. Esse retorno financeiro relativamente rápido 
(podendo variar de um a três anos) fez com que o escravo fosse visto como uma boa forma de 
investimento, o que excitou o tráfico intercontinental de africanos por três séculos. 
 
Demais atividades exercidas por escravos negros 
A equação entre investimento feito e retorno obtido fez com que a escravidão fosse 
difundida também entre a população menos abastada da sociedade. Dessa forma, a quantidade de 
atividades exercidas pelos escravos não se limitava apenas àquelas relacionadas à produção e 
exportação de gêneros para o mercado mundial. 
Toda uma ampla variedade de trabalhos executados reforça o caráter escravista do período 
colonial no Brasil. Vejamos: 
 abertura de estradas; 
 produção de pequenas hortas; 
 criação de gado extensivo; 
 construção de ruas e casas; 
 carregamento de mercadoria na região portuária; 
 trabalho desempenhado nas casas e fazendas pelos escravos domésticos. 
 
A lógica da exploração total do trabalho escravo intensificou ainda mais a violência inerente à 
escravidão. Além de terem a obrigação de labutar horas a fio, debaixo de sol quente, chuva forte ou 
frio intenso, os cativos não recebiam cuidados de seus proprietários, devido ao constante 
reabastecimento de africanos escravizados nos portos do Brasil. Em outras palavras, muitas vezes, era 
mais fácil e mais barato comprar um novo escravo do que cuidar de algum que estivesse adoentado. 
O tratamento dado aos escravos não era oriundo de certo desleixo dos proprietários 
(embora muitos deles estivessem, efetivamente, pouco preocupados com as condições de vida 
material dos cativos). Como demonstrado na análise de Rafael Marquese (2004), muitos senhores 
– principalmente, aqueles que eram donos de grandes plantéis de escravos – seguiam as indicações 
formuladas em manuais específicos sobre o assunto. Em Economia cristã dos senhores no governo 
dos escravos, publicado em 1700, o jesuíta Jorge Benci apresentava uma pedagogia para o 
tratamento despendido aos cativos. Essa forma de tratamento era resumida em três palavras pelo 
jesuíta: trabalho, sustento e castigo. Benci afirmava ainda que essas três palavras-ações eram 
“igualmente necessárias, para que plena e perfeitamente satisfaça ao que como senhor deve ao 
servo. Porque sustentar ao servo sem lhe dar ocupação e castigo, quando o merece, é querê-lo 
 
 
34 
 
 
contumaz e rebelde; e mandá-lo trabalhar e castigar, faltando-lhe com o sustento; é coisa violenta 
e tirana” (BENCI, 1977 p. 49). 
Benci justificava a pedagogia desenvolvida por meio da seguinte argumentação: 
 
Tomei por assunto, e por empresa dar à luz esta obra, a que chamo 
‘Economia Cristã: isto é, regra, norma, modelo, por onde se devem 
governar os senhores Cristãos para satisfazerem às obrigações de 
verdadeiros senhores [...] Estas mesmas obrigações, que achou nos 
senhores o Eclesiástico por instinto do Espírito Santo, alcançou 
Aristóteles com a luz da razão natural. Porque, dando as instruções 
necessárias aos pais de famílias para a boa administração de suas casas, 
chegando ao ponto de como se há de haver o senhor com os servos, diz 
que lhes deve três coisas, que são o trabalho, o sustento e o castigo 
(BENCI, 1977 p. 49). 
A metodologia de tratamento de Jorge Benci ficou 
conhecida, vulgarmente, como “a pedagogia dos três Ps”: 
pão, pano e pau. Era essa a tríade que deveria embasar as 
ações dos senhores frente a seus escravos. 
De tal modo, não era de se estranhar que a alimentação recebida pelos escravos costumava 
ser composta apenas de farinha de mandioca ou de milho, uma porção de carne salgada e, por 
vezes, um pouco de feijão: o básico para o sustento humano. Nas grandes propriedades, as roupas 
desses cativos eram feitas de panos de algodão grosseiro e, geralmente, deveriam durar ao menos 
um ano. 
Apesar de os cuidados com alimentação, moradia e vestimenta serem de responsabilidade 
senhorial, a fácil reposição dos escravos ajuda a explicar as péssimas condições de vida que os 
proprietários ofereciam a seus cativos. 
Somado à rígida e pesada disciplina de trabalho no eito e às chibatas recebidas quando não 
trabalhavam o quanto lhes era exigido, os escravos e escravas ainda enfrentavam outros dois 
grandes problemas: os acidentes e as condições insalubres de trabalho. Os acidentes foram comuns 
nos engenhos de açúcar, mais especificamente na casa da moenda (onde era extraído o caldo da 
cana) e na casa de purgar (onde o caldo era transformado em melaço), locais onde os escravos 
podiam perder membros de seu corpo, chegando a correr risco de vida. Nas regiões mineradoras, 
também eram comuns os acidentes de trabalho: em diversas ocasiões, as minas subterrâneas que 
haviam sido cavadas desabavam, matando dezenas de cativos. 
Desse modo, não é de se estranhar que os números mais conservadores apontem que, 
aproximadamente, seis milhões de africanos escravizados aportaram no Brasil durante os mais de 
 
 
 
35 
 
trezentos anos de vigência do escravismo. Importante ressaltar que boa parte dos descendentes 
desses africanos também conheceu a experiência do cativeiro. Entretanto, africanos, crioulos e 
indígenas não sucumbiram incólumes tal experiência. De diferentes formas, todos eles 
encontraram diferentes formas de resistir. 
 
Algumas formas de resistências 
A resistência foi uma constante nas relações estabelecidas entre grupos indígenas e escravos 
africanos (e seus descendentes) ao longo da história da América portuguesa. Os modos de 
resistência eram, por vezes, implementados no cotidiano desses homens e mulheres por meio de 
diferentes formas de burlar a exploração que sofriam, ou então eram formas de resistência “mais 
ativas” que, em última instância, colocavam em cheque a escravidão ou a servidão. 
Estudos feitos no âmbito da História Social e da História Cultural têm mostrado como a 
capacidade e as formas de resistir foram diversas ao longo dos quase quatrocentos anos de vigência 
da escravidão negra e da servidão indígena. Como esse é um tema de grandes debates,

Continue navegando