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As CiênCiAs nAturAis nA ModernidAde Cuiabá , 2008 LICENCIATURA PLENA EM CIÊNCIAS NATURAIS E MATEMÁTICA - UAB - UFMT MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO Paulo SPeller - Reitor eliaS alveS de andrade - Vice-Reitor adriana rigon WeSka - Pró-Reitora Administrativa e Planejamento Tereza CriSTina CardoSo de Souza Higa - Pró-Reitora de Planejamento Marilda CalHao e. MaTSubara - Pró-Reitora de Vivência Acadêmica e Social MaTilde araki Crudo - Pró-Reitora de Ensino e Graduação Marinez iSaaC MarqueS - Pró-Reitora de Pós-Graduação Paulo Teixeira de SouSa Jr. - Pró-Reitor de Pesquisa anTonio CarloS dornelaS - Diretor do Instituto de Ciências Exatas e da Terra lurnio anTonio diaS Ferreira - Diretor do Instituto de Biociências iraMaia Jorge Cabral de Paulo Coordenadora do curso de Ciências Naturais e Matemática Licenciatura Plena para o Ensino Fundamental (5 a 8) CarloS rinaldi Coordenador da UAB – UFMT www.uab.gov.br Instituto de Ciências Exatas e da Terra (ICET) Av. Fernando Correa da Costa, s/nº Campus Universitário Cuiabá, MT - CEP.: 78060-900 Tel.: (65) 3615-8737 www.fisica.ufmt.br/ead Autores Miguel Jorge Neto Instituto de Física/ICET-UFMT Elane Chaveiro Soares Depto. de Química/ICET-UFMT Irene Cristina de Mello Depto. de Química/ICET-UFMT Edna Lopes Hardoim Depto. de Botânica E Ecologia/IB-UFMT Lurnio Antonio Dias Ferreira Depto. de Botânica E Ecologia/IB-UFMT Rosina Djunko Miyazaki Depto. de Biologia E Zoologia/IB-UFMT Sérgio Roberto de Paulo Instituto de Física/ICET-UFMT As CiênCiAs nAturAis nA ModernidAde Co r p o e d i t o r i A l A l c e u Vi d o t t i• c A r l o s r i n A l d i• i r A m A i A J o r g e c A b r A l d e PA u l o• m A r i A l u c i A c A V A l l i n e d e r• P r o J e t o g r á f i c o : PAU Lo H. Z . A R R U dA r e V i s ã o : A L C E U VI d o T T I s e c r e tA r i A : N E U Z A M A R I A J o R g E C A B R A L c A P A : th i n k i n g m A n , © d e n i z to k A y As ciências naturais na modernidade / Miguel Jorge Neto...[et al.]. – Cuiabá : EdUFMT/UAB, 2008. 96p. : il. ; color. Inclui bibliografia ISBN 978-85-61819-14-9 1. Ciências naturais 2. Modernidade 3. I. Título. CDU - 5 C569 Co P y R I g H T © 20 08 UAB FICHA CATALOGRÁFICA UAB| Ciências Naturais e Matemática | As Ciências Naturais na Modernidade| Vii Modernidade foi um momento em que paradigmas tidos quase como imutáveis são quebrados. Regras e verdades são rompidas. O heliocentris- mo finalmente suplanta o geocentrismo: senso comum e o fundamentalismo religioso são rompidos. Ocorre a Revolução Científica, ou seja, o lançamento da Ciência Moderna, inaugurando um novo paradigma na pesquisa e na aplicação direta da ciência. A mate- mática torna-se ferramenta essencial para as ciências físicas, contribuindo com resultados expressos em números e deixando os argumentos qualitativos em segundo plano. Segundo Galileu, um dos grandes nomes deste período, o universo é “um grande livro que continu- amente se abre perante nossos olhos”, mas “que não se pode compreender antes de entender a língua e os caracteres com os quais está escrito”. Para Galileu, “o universo está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométri- cas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto”. A grande pergunta que fala alto é: como é este universo em que habitamos? E não faltam nomes de destaque na ciência e na filosofia que buscaram e propuse- ram respostas ousadas a esta questão: Copérnico, Galileu, Newton, Bruno, Brahe, Kepler, Bacon, Descartes... Convidamos você a conhecer um pouco mais sobre esses arquitetos da Ciência, suas obras e o contexto que veio a moldar nosso conhecimento da Natureza na Moderni- dade. A P r e f á c i o C i ê n C i A M o d e r n A? A r e n A s C e n ç A A s d o e n ç A s n o p e r í o d o Áu r e o d A s G r A n d e s n AV e G A ç õ e s o C A M i n h A r d A s C i ê n C i A s n A M o d e r n i d A d e o n At u r A l i s M o r e n A s C e n t i s tA dA s r e V o l u ç õ e s d o s C o r p o s C e l e s t e s à r e V o l u ç ã o n A C o M p r e e n - s ã o d o u n i V e r s o o n d e e n t r A A q u í M i C A n e s tA é p o C A? i n d ú s t r i A s p o r t o d o s o s l A d o s . . . o d e s e n V o lV i M e n t o d A s C i ê n C i A s b i o l ó G i C A s n A M o d e r n i d A d e o pA p e l d A s C i ê n C i A s e o u s o d o s r e C u r s o s n At u r A i s n A M o d e r n i d A d e r e f e r ê n C i A s b i b l i o G r Á f i C A s 11 13 15 21 21 29 53 6 0 69 91 95 s u M Á r i o iXUAB| Ciências Naturais e Matemática | As Ciências Naturais na Modernidade| UAB| Ciências Naturais e Matemática | As Ciências Naturais na Modernidade | 11 Ci ê n C i A M o d e r n A ? pA r A d i G M A? uando é que uma ciência pode ser considerada moderna? O que motiva o homem a pensar diferente? Em momentos de transição o velho e novo podem se misturar? Até que ponto velhas e novas idéias podem conviver sem um embate mais violento? Ou ainda, esse embate é necessário? Vamos falar muito aqui de paradigma. Você compreende o significado desta palavra para a ciência? Q Para iniciar nossa conversa, vamos pensar no seguinte: ?? ????? O paradigma é uma ruptura dentro do conhecimento empírico. No seu livro A Estrutura de Revoluções Cientí- ficas (1962), Thomas Kuhn – uma boa leitura que recomendamos - se referia às rupturas na evolu- ção científica como "mudanças de paradigma", um termo que hoje é usado mais genericamente para descrever uma modificação profunda em nossos pontos de refe- rência. Kuhn relacionou o conceito à criação de uma comunidade cientifica, na medida em que o paradigma está associado à responsa- bilidade do aparecimento dessa comunidade. São novas explicações a velhas questões já plenamente resolvidas, aceitas e divulgadas. Essas novas respostas podem passar muito tempo (anos e até séculos) sendo discutidas até tomarem novo posiciona- mento. Muitos autores consideram a aquisição de um paradigma como sinal de maturidade no desenvol- vimento de qualquer campo científico, e muitos nomes e acontecimentos se destacam quando alcançam o consenso de uma comunidade cientifica. Bom exemplo de paradigma é o de Copérnico, que explicou os movimentos dos planetas supondo que estes se moviam em torno do Sol e não da Terra. Já imaginou que baita problema ele criou ao propor uma nova forma de pensar a posição da terra no espaço? KUHN, T. A es- trutura das revoluções científicas, 9 ed, trad. Beatriz V. Boeira e Nel- son Boeira, São Paulo: PESPECTIVA, 2005 12 | Ciências Naturais e Matemática | UAB “Ela (a Natureza) deve ser escravizada, estar a serviço do homem”. Francis Bacon (1561-1626) Francis Bacon, muitas vezes lembrado e citado como o fundador da ciência mo- derna, viveu em um período de intensas transformações no cenário mundial. Na In- glaterra, em trânsito para o protestantismo, ocorria uma rápida expansão industrial, o que tornava este país muito forte politicamente e também grande centro de conflitos culturais que marcaram fortemente o surgimento de novas idéias. Bacon defendia a aplicação da ciência aos interesses da indústria na busca pelo pro- gresso. Sua frase é bem conhecida até os dias de hoje, “saber é poder”. Foi um homem dedicado à filosofia e escreveu várias obras como “A grande restauração”, na qual propunha que, para se conhecer a natureza, é preciso observar os fatos, classificá-los e determinar as causas. Por isso ele é considerado um dos criado- res do método cientificomoderno e da ciência experimental. Sua vida passa pela política onde assumiu cargos cada vez mais impor- tantes, fez inimigos influentes, se en- volveu em polêmicas e acabou acusado e condenado a pagar uma pesada mul- ta por corrupção. FranCiS baCon UAB| Ciências Naturais e Matemática | As Ciências Naturais na Modernidade | 13 o r e n A s C i M e n t o A tomada de Constantinopla em 1453 foi apenas um passo inicial. Um “novo mundo” co-meçava a se mostrar aos povos da Europa. O intercâmbio com os “bárbaros” do oriente e suas culturas tão diferenciadas já se havia estabelecido de forma irreversível. As grandes cidades que surgiam, o excedente de produtos regionais, o acúmulo de bens, as novas classes sociais e o uso de moedas, ao invés de trocas de mercadorias, estimularam o comércio a crescer e a se expandir por meio de rotas co- merciais. Isso, e a utilização de novas técnicas de navegação, como as bússolas e cartas de navegação mais precisas, estimularam expedições cada vez mais ousadas. Enquanto Bartolomeu Dias e Colombo se aventuravam para além mar, mercadorias raras se tornavam cada vez mais acessíveis, como o papel que vinha do Egito e agora se apresentava como solução mais barata aos antigos pergaminhos. Artigos ainda mais escassos se converteram em obsessão para alguns governan- tes: obras clássicas dos antigos gregos. Em 1450, Lourenço, o Magnífico, destacou vários “especialistas” a traduzir textos re- cém-descobertos en- quanto encarregava outras pessoas para buscar mais obras es- quecidas em algumas bibliotecas. Outros, com influência e re- cursos equivalentes, também se viram as- solados pela mesma “fome” de conheci- mento. A invenção da prensa de tipos móveis pelo alemão Johannes Gutem- berg revolucionaria a distribuição de li- vros, tornando-os MaPa do Mundo CoM a roTa de MagalHãeS. baTTiSTa agneSe, 1544 (FonTe: WikiMedia CoMMonS) 14 | Ciências Naturais e Matemática | UAB nova e popular mercadoria. A descoberta de terras, povos e criaturas diversas, a evolução das técnicas de distribuição do conhecimento e o ressurgimento de saberes clássicos não constituem o conjunto completo dos elementos que fizeram a nossa compreensão da Natureza. A própria Igreja, inadvertidamente, teve uma contribuição decisiva. Sua estrutura inter- na estava abalada. Por volta de 1420, na Boêmia, Jan Hus tentava impor uma liturgia em tcheco em lugar do latim, a língua oficial do clero e que por muito tempo havia impossibilitado a democratização do saber agregado pelos mosteiros. Como forma de mostrar de modo concreto o seu poder, requintadas igrejas e catedrais monumentais eram encomendadas a artesãos que viriam a propagar seus conhecimentos, não mais em espaços restritos como seus ateliês ou em confrarias, mas nesses imensos canteiros de obra. Essa necessidade de mão de obra especializada, por sua vez, impulsionou ainda mais a demanda de livros, tornando possível uma formação fora de centros uni- versitários e longe do controle religioso. Os primeiros ventos dessa nova época se tornaram evidentes nas realizações ar- tísticas que incorporavam elementos inéditos como a noção de perspectiva (até então as figuras eram representadas nas telas em maior ou menor tamanho de acordo com o grau de importância a que se davam às mesmas). Pequenas revoluções técnicas como essa logo se revelariam em outros setores da sociedade. A matemática já vinha se tor- nando fundamental em virtude do uso da moeda nas relações comerciais. Veja em http://www.ideiasnacaixa.com/laboratoriovirtual/navegaco- es.html uma animação recontando a história das grandes navegações. CaMPidoglio, eM roMa. redeSenHado Por MiCHelangelo. (FonTe: WikiMedia CoMMonS) UAB| Ciências Naturais e Matemática | As Ciências Naturais na Modernidade | 15 As doe nç As no pe ríodo Áureo dAs Gr Andes nAVeGAções F ernando Pessoa, em Mensagem (uma coletânea de poemas) e Luís de Camões, em sua epopéia Os Lu- síadas, traduziram a admirável vocação de seu povo para as grandes navegações e a saga dos descobrimentos: a dor da despedida, tão difícil de suportar para os que ficam como para os que partem; os vários perigos que espreitavam os portugueses quando se aventura- vam num elemento que não era o seu (água): ciladas, doenças (como o escorbuto) e tempestades. Embora não fossem apenas durante o transporte de marujos na expansão marítima que as doenças da carência acometiam as pes- soas, elas eram mais evidenciadas nesses momentos. Na Idade Mo- derna, produtos como tomate, batata, milho, arroz e outras espécies alimentares tornam-se importantes na alimentação ocidental. As es- peciarias continuavam sendo utilizadas entre os europeus, especial- mente na burguesia e na nobreza. O pão era bastante consumido por todas as classes sociais e as crises na produção de cereais durante esse período tiveram impacto direto sobre a mortalidade conforme vimos no finalzinho da Idade Medieval (fascículo 2, módulo I). Dos séculos XVI a XVIII a malária se manifestou como ende- mia, a doença recebeu o nome italiano de “mal aire”, que significa mau ar ou ar insalubre, já que à época acreditava-se que era causada pelas emanações e miasmas provenientes dos pântanos. Nos escritos médicos do Brasil é possível identificá-la já no século XVI e, daí por diante, em toda a história médica brasileira. PinTura de vaSCo da gaMa, ProTagoniSTa Por exCe- lênCia de oS luSíadaS, na CHegada à índia Você pode ler as obras desses grandes poetas na íntegra. Elas estão disponíveis para download na plataforma e em: http://www.estudantes.com.br/livros/fernando_pessoa/Mensagem.zip Mensagem - Fernando Pessoa http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000178.pdf Os Lusíadas – Luís de Camões 16 | Ciências Naturais e Matemática | UAB Outra ameaça levada pelos colonizadores e exploradores, a varíola, enchia as pessoas de terror e, na Inglaterra, a cada ano era responsável por cerca de 10% dos falecimentos, e mais de um terço em crianças. Não me temo de Castela, Donde inda guerra não soa, Mas temo-me de Lisboa Que, ao cheiro desta canela, O Reino nos despovoa. (...) Entrou, há dias, peçonha Clara pelos nossos portos, Sem que remédio se ponha: Uns dormentes, outros mortos, Alguém polas ruas sonha. Fez no começo a pobreza Vencer os ventos e o mar, Vencer quase a natureza: Medo hei de novo à riqueza Que nos venha a cativar. TreCHo de uMa daS Car- TaS de FranCiSCo de Sá de Miranda (1481-1558), ouTro grande PoeTa PorTuguêS “a Jangada da MeduSa”, de THéodore gériCaulT A s d o e n ç A s M A i s C o M u n s d o s n AV e G A d o r e s Os europeus traziam consigo, como pragas bíblicas: a varíola, o sarampo e o tétano, várias enfermidades pulmonares, intestinais e venéreas, o tracoma, o tifo, a hanseníase, tuberculose, a febre amarela, as cáries que apodreciam os dentes. Além da escorbuto, beribéri, muitos apresentavam enteroparasitoses e ectoparasitoses. O poeta Luís de Camões, em um trecho de Os Lusíadas, descreve as ma- nifestações de uma das doenças que mais acometiam as tripulações, referindo- se às suas manifestações de debilidade orgânica - o escorbuto. “ (...) ali lhes incha- ram as gengivas na boca, que crescia a carne, e juntamente apodrecia! Apodrecia c’um fétido e bruto cheiro, que o ar vi- zinho inficcionava.” (l.CaMõeS, oS luSíadaS) UAB| Ciências Naturais e Matemática |As Ciências Naturais na Modernidade | 17 o e s C o r b u t o Com as grandes navegações dos séculos XVI até XVIII, o escorbuto tornou-se a doença clássica dos marinheiros que passavam longos períodos em alto mar sem ingerirem frutas ou verduras frescas. No século XVII, com a introdução da batata na alimentação dos europeus do norte o escorbuto tornou-se raro. At i V i d A d e s 1) Pesquise sobre a principalcausa do escorbuto. Faça um paralelo dessa doença da carência com outras que ocorrem na atualidade. 2) Desenvolva uma pesquisa sobre alimentos funcionais, apresen- tando prós e contras do consumo de complexos vitamínicos sintéticos em substituição àqueles adquiridos via alimentos naturais. 3) Por que o escorbuto, um mal clássico dos marinheiros de longo curso, é, hoje em dia, uma doença praticamente desconhecida ? A b e r i b e r i O nome beribéri, adotado na terminologia médica, provém do cingalês, língua originária da Índia e, atualmente, uma das línguas oficiais do Ceilão (Sri Lanka), onde é falada por cerca de 11 milhões de pessoas (Salles, Katzner). Nessa língua, o superlativo é formado pela repetição da palavra. Beri quer dizer fraco e beriberi, extremamente fraco A deficiência de vitamina B1 no adulto pode nos casos extremos afetar gravemen- te o sistema cardiovascular (beribéri úmido) ou o sistema nervoso (beribéri seco ) . A VA r í o l A Comum na Europa, a varíola chegou ao Brasil junto com os colonizadores e os navios que vinham da África. As primeiras referências da doença datam de 1563, por ocasião de uma epidemia que ocorreu na cidade de Salvador e seus arredores. A fe b r e A M A r e l A A febre amarela constituiu durante quatro séculos um permanente desafio à me- dicina. (CARRERA, 1991) 18 | Ciências Naturais e Matemática | UAB Quando falamos de epidemias na história do Brasil, a primeira a ser lembrada é a febre amarela. Transmitida pela picada do mosquito Aedes aegypti, chegou ao Brasil depois do ano de 1.500 com o tráfico de escravos. Acredita-se que as larvas desse mos- quito tenham-se desenvolvido nos recipientes de água potável das embarcações. Os primeiros casos datam de 1685, no Recife, e 1692, na cidade de Salvador. A e s q u i s t o s s o M o s e Com a chegada dos escravos oriundos dos mais diversos rincões da África trouxe- ram para as Américas várias estirpes de Schistosoma mansoni (xistossomose, xistosa, ou doença dos caramujos, barriga d’água); abrindo caminho para a proliferação da doença em áreas brasileiras onde se encontravam os moluscos (caramujos) considerados hospe- deiros intermediários. (REY, 2001) A tu b e r C u l o s e O sucesso da ocupação pelos colonizadores portugueses favoreceu a disseminação da tuberculose entre as “classes desvalidas” especialmente entre os povos indígenas e escravos, criando um ambiente propício para a transmissão de doenças infecciosas, ini- ciando-se assim o processo de difusão da tuberculose. (BASTA, CAMACHO, 2006 e BITTAR E FERREIRA JÚNIOR, 2000) A identificação do bacilo de Koch, em 1882, como o agente etiológico da tuber- culose foi um marco fundamental para o conhecimento da doença A h A n s e n í A s e A Hanseníase deve ter chegado às Américas, com os colonizadores entre os séculos XVI e XVII. Atualmente a maioria dos países sul-americanos tem Hanse- níase com exceção do Chile; o Brasil é o que apresenta a prevalência mais alta, sendo o segundo país do mundo em número de casos. No Brasil, os primeiros registros sobre a existência da hanse- níase datam do fim do século XVII, tanto que, em 1696, o gover- nador Arthur de Sá e Menezes procurava dar assistência no Rio de Janeiro, aos “míseros leprosos”, já então em número bem represen- tativo. (http://www.geocities.com/hanseniase/Historico/historico. html, acesso em 01/06/2008) "Não seria um castigo sobrenatural aquela epidemia desconhecida e re- pugnante que acendia a febre a decompunha as carnes?" (eduardo galeano – aS veiaS aberTaS da aMériCa laTina: HTTP://WWW.geoCiTieS.CoM/eriol- booTlegS/veiaS.PdF ) UAB| Ciências Naturais e Matemática |As Ciências Naturais na Modernidade | 19 ti f o o u fe b r e ti f ó i d e A febre tifóide é uma doença bacteriana aguda causada pela Salmonella typhi, de distribuição mundial, associada a baixos níveis sócio-econômicos, relacionando-se, principalmente, com precárias condições de saneamento, higiene pessoal e ambiental. At i V i d A d e Conforme a espécie de mosquito disseminador do vírus, a febre amarela é chamada de sil- vestre ou urbana. Cite algumas medidas profiláticas, recomendadas pelo Ministério da Saúde em relação à febre amarela silvestre. p r o b l e M A s d e sA ú d e p r o V o C A d o s p e l A C h e G A d A d o s Co l o n i z A d o r e s O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro estimou que mais da metade da popula- ção aborígene da América morreu contaminada pelo contato com os homens brancos. No final do século XV, os índios foram dizimados pela gripe, pela varíola, pela pólvora e pelo álcool. As tripulações eram formadas, na maioria, por ladrões e desocupados, que eram agressivos com os nativos, que foram dizimados aos milhares logo nos primeiros con- tatos com os marujos. Tiveram de entregar aos colonizadores: ouro e prata, batatas, tomates e tabaco. Dizem que, a título de vingança, os bravos peles-vermelhas reme- teram a seus algozes a sífilis. Estudos mais recentes, contudo, negam a hipótese ame- ricana para a emergência do mal-de-coito na Europa. O certo é que as bactérias e os vírus foram os aliados mais eficientes dos coloniza- dores. A varíola foi a primeira a aparecer. Os índios morriam como moscas; seus organismos não opunham defesas ante as novas enfermidades. Aqueles que sobreviviam ficavam debilitados e inúteis. Al- guns povos desapareceram por completo, a exemplo dos arinos, marijapéy, kustendw, dentre outros, enquanto que definham em estado de extinção os trumai e os barbádo. o MoSquiTo HaeMagoguS JanTHino- MiS, o PrinCiPal TranSMiSSor da Febre aMarela na aMériCa do Sul 20 | Ciências Naturais e Matemática | UAB Antes da chegada dos portugueses, eram 1.500 línguas faladas por quase oito milhões de nativos (WIKIPEDIA, 2008). Hoje, restam apenas 170, faladas por cerca de 300 mil índios. “A medicina no Brasil, nos séculos XVI e XVII, era exercida por físicos, cirurgiões, boticários e barbeiros, que eram poucos, de condições humildes e pouca instrução, permitindo a proliferação do curandeirismo”. (CAMAR- GO, 1998) Com a chegada dos colonizadores portugueses ao Brasil, implantou-se o modelo das Santas Casas. O funda- dor da cidade de Santos, o fidalgo português Braz Cubas (1507-1592) reconhecendo a necessidade de um serviço mais especializado, propôs em 1542, no povoado de São Vicente, a construção da Santa Casa de Misericórdia de Santos. O Hospital de Todos os Santos, o primeiro do país, seria inaugurado no ano seguinte e terminou dando o nome à cidade. Até o final do século XVI haviam sido criadas Santas Casas também no Espírito Santo, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. (SANTOS, 2007) Pela carência de profissionais médicos no Brasil Colônia, a colabora- ção dos jesuítas com a Santa Casa foi de extrema importância. (SANTOS, 2007). No século XVII, devido à intensificação do cultivo de cana-de-açúcar, houve grande fluxo de escravos vindos da África, que se espalharam por todas as regiões ocupadas pelos portugueses . No século XVI foram trazidos para o Brasil 100 mil ne- gros. Este número saltou para 600 mil no século XVII e 1 milhão e 300 mil no século XVIII. (LEMOS; LIMA, 2002). A descoberta de grande quantidade de ovos de helmintos intestinais em latrinas e fossas da Europa, num período que abarca desde a Idade Média até o período industrial, sugere prevalências altas de parasitoses e, conseqüentemente, deficiências sanitárias consideráveis. Este quadro persiste em todo o período das grandes navegações, mo- mento em que teriam sido reintroduzidos no continente americano mantendo altas taxas de infestações nas no- vas cidades. (CONFALO- NIERI et al. 1981). "índia TaPuia" ou "índia Tarairiu" alberT eCkHouT (1641), Coleção naTional- MuSeeT, dinaMarCa SanTa CaSa de SanToS (HTTP://WWW.Hebron.CoM.br/reviSTa/n27/MaTeria3.HTM)UAB| Ciências Naturais e Matemática | As Ciências Naturais na Modernidade | 21 o C A M i n h A r d A s Ci ê n C i A s n A M o d e r n i d A d e o n At u r A l i s M o r e n A s C e n t i s tA a Europa moderna houve confluência da ciência teórica dos antigos, incrementada em diferentes campos por pensadores árabes e europeus, com um novo paradigma tecnoló- gico, conforme visto no período medieval (fascículo 2, módulo I), resultando em transformações sócio- econômicas que propiciaram a chamada “revolução científica”, principalmente no norte da Europa (cor- respondendo, hoje, à França, Alemanha, países baixos e Inglaterra), justamente na baixa Idade Média, após o declínio do Império Romano (PESSOA Jr., 2007). Para este autor, o novo no Ocidente não era a inventividade, mas o contexto social das técnicas. Com o reaquecimento das atividades comerciais, surge nova camada social, a burguesia que insatis- feita com as imposições feitas pela Igreja, abriu portas para o aprimoramento da observação e da experi- mentação; desta forma houve aos poucos a decadência da nobreza e ascensão da burguesia. O Renascimento tirou da Igreja o poder e o direito de dar explicações sobre a criação e a vida. A experimentação passou a ser o meio vigente para achar respostas e entender a realidade. As características deste período foram destaques para o retorno a cultura clássica, o antropocentrismo e a universalidade. pA s s A M o s A te n tA r r A C i o C i n A r C o M M é t o d o Na Itália, no século XV, o Humanismo surgiu dentro das transformações culturais, sociais, políticas, religiosas e econômicas desencadeadas pelo Renascimento, onde homens cultos e admiradores da cultura antiga ganharam forças estabelecendo o homem como centro de toda ação e como agente principal no processo de mudanças sociais causando impactos na Igreja. Petrarca (1304-1374), um dos precursores do Humanismo, defendia a idéia renascentista de que o homem está acima da Natureza e hostil à pesquisa científica e faz uma crítica à ciência natural: “Mesmo que essas coisas fossem verdadeiras, elas não seriam de nenhum auxílio para nos assegurar uma vida feliz.” Pois qual seria a vantagem de conhecer a natureza de animais, pássaros, peixes e répteis, enquanto se permanece ignorante da natureza do homem, sem saber ou se interessando de onde ele veio e para onda vai?” (PESSOA Jr., 2007 ) N 22 | Ciências Naturais e Matemática | UAB A retomada dos clássicos fez surgir não só o humanismo, mas também o natu- ralismo renascentista. Por naturalismo entende-se uma visão de mundo que valoriza a natureza e busca explicar o mundo a partir da natureza, vista como tendo certa unidade e leis próprias. Ele se opõe a uma visão de mundo “teológica”, que explica o mundo a partir de Deus ou da religião revelada, e de uma visão de mundo que parte do homem ou do sujeito, como no humanismo ou em filosofias contemporâneas (como o idealismo, a fenomenologia, o existencialismo e o pós-modernismo). O naturalismo engloba a maioria das posições simpáticas à ciência e se divide em diferentes correntes, como o materialismo e o positivismo da ciência ortodoxa atual, que examinaremos mais à frente. Uma terceira corrente é o naturalismo “animista”, da qual o renascentista faz parte, e para o qual a natureza é imbuída de uma espécie de alma, à semelhança do homem. Dentro dessa tradição pode-se incluir o pitagorismo e o estoicismo, e mesmo o taoísmo e, nos séculos seguintes, o romantismo alemão e, mais recentemente, as vi- sões “nova era”. Para a escolástica aristotélica, assim como para o atomismo greco-romano, havia uma ordem racional da natureza que o intelecto poderia penetrar. Por contraste, o naturalismo renascentista salientava o mistério de uma natureza opaca à razão, só cog- noscível através da experiência. Representantes típicos desta corrente eram os alqui- mistas, como o suíço Paracelso (1493-1541) e o alemão Andreas Libavius (1560-1616). A finalidade da alquimia era conseguir a transmutação dos metais em ouro e descobrir um elixir da vida eterna e cura de todas as doenças. Introduziram a idéia de utilizar agentes químicos na medicina, além das ervas medicinais. O naturalismo renascentista era influenciado pelo hermetismo, uma tradição semi- religiosa e mágica vinda da Antigüidade, e atribuída a Hermes Trimegisto, do Egito, que teria previsto a ascensão do Cristianismo. A divulgação de manuscritos herméticos na Toscana, por volta de 1460, despertou muito interesse. Ensinava que o homem é capaz de descobrir elementos divinos dentro de si, defendendo uma afinidade mística entre o mundo e a humanidade, entre o macrocosmo e o microcosmo. Em meio a seu misticismo, estimulava a observação científica e a matemática, dentro de uma concep- ção pitagórica de descrição da natureza por meio de números. No entanto, em 1614, o protestante Isaac Casaubon provou que os escritos herméticos (devido ao seu estilo e suas citações) eram posteriores ao advento do Cristianismo, sendo escritos dentro da tradição neoplatônica. Isso contribuiu para a decadência do naturalismo renascentista. q u e s t õ e s pA r A r e f l e X ã o Considerando Petrarca, o que mudou daquela época para hoje, considerando- se, por exemplo, as ações de Organizações não Governamentais para salvar uma espécie em extinção, como o mico leão dourado? Você concorda com esse tipo de ação conservacionistas? Qual é a diferença entre essas últimas e as ações preservacionistas? Como as experimentações podem ajudar nas tomadas de decisão? UAB| Ciências Naturais e Matemática |As Ciências Naturais na Modernidade | 23 Uma das mais importantes obras dentro da tradição do naturalismo renascentista foi o De Magnete, escrito em 1600 pelo inglês William Gilbert (1544-1603). Ele con- duziu grande quantidade de observações a respeito de ímãs e efeitos magnéticos, efetu- ando também experimentos. Naquela época havia uma superstição de que manter um magneto debaixo do travesseiro dava proteção contra bruxas. Gilbert distinguiu cinco fenômenos magnéticos; o primeiro era a atração entre imãs; os outros eram relativos ao “grande imã da Terra”: direção, declinação (a variação de norte magnético conforme a posição), inclinação e rotação. O magnetismo, segundo Gilbert, seria a chave para se compreender a natureza: “matéria telúrica”. Ele seria um poder não-corpóreo, a “alma da Terra”, já que a intervenção de objetos entre dois ímãs não afeta a atração. Contras- tou eletricidade e magnetismo da seguinte maneira: a primeira envolveria uma ação da matéria, com força e coesão; a segunda seria uma ação da forma, com união e concor- dância. O norte e o sul seriam direções e sentidos reais no Universo. A Terra giraria em torno de seu eixo, como disseram Nicolau de Cusa e Copérnico. pA r A C e l s o: p r e C u r s o r d A M e d i C i n A M o d e r n A? Theophrastus Philippus Au- reolus Bombastus von Hohenheim (1493-1541), também conhecido como Paracelso, fez parte da primeira corrente médica européia no século XVI. Para- celso nasceu na Suíça e era filho de um médico e alquimista. O nome Paracelso foi adotado por ele por volta de 1529, na tentativa de expressar que ele seria me- lhor que Celso. Aulo Cornélio Celso foi um médico romano muito famoso. Paracelso acompanhava seu pai pe- los povoados locais, observando a ma- nipulação das ervas usadas para curar enfermos daquela região. As primeiras noções sobre Teologia, Alquimia e La- tim foram transmitidas por seu pai. O abade Johannes Trithemius, de Sponheim, ensinou a ele as artes mágicas e o ocultismo. Dessa forma, a educação de Paracelso foi mais prática e mística do que seria usual num médico do seu tempo. A formação em medicina ocorreu pela Universidade de Viena, em 1516. Não satisfeito com a educação médica tradicional, Paracelso viajou para o Egito, Arábia, ParaCelSo24 | Ciências Naturais e Matemática | UAB Terra Santa, Hungria, Polônia. Assim, Paracelso estudou os fundamentos da medicina em diversos lugares, como nas escolas de Basiléia, na Suíça, e de Ferrara, na Itália. Ele criou uma nova concepção de medicina, associada à alquimia que, segundo ele, deveria partir da experiência de um conhecimento aprendido diretamente na natureza. Segundo Paracelso, a cura das doenças apóia-se em quatro bases distintas: filosofia (forças naturais); astronomia (influência dos astros na saúde); alquimia (preparo dos me- dicamentos); e virtus (honestidade do médico). Outro fator relevante de seu raciocínio é que ele também associava às características exteriores de uma planta a sua função medicinal. Por exemplo, folhas em forma de coração eram recomendadas para doenças cardíacas, ou outro com a forma de um fígado para as doenças hepáticas. Essa idéia de associação da forma das plantas com a função consiste na adesão à teoria das assinatu- ras (a terra que seria destinada à caminhada do homem teria muitos animais, vegetais e minerais úteis ao homem, e que teriam sido devidamente marcados, assinados, por meio da sua forma, cor, textura para que o homem reconhecesse a sua utilidade e a grandeza divina). Certa vez disse Paracelso: “Ponderei comigo mesmo que, se não existissem professores de Medicina neste mundo, como faria eu para aprender essa arte? Seria o caso de estudar no grande livro aberto da Natureza, escrito pelo dedo de Deus. Sou acusado e condenado por não ter entrado pela porta correta da Arte. Mas qual é a porta correta? Galeno, Avicena, Mesua, Rhazes ou a natureza honesta? Acredito ser esta última. Por esta porta eu entrei, pela luz da Natureza, e nenhuma lâmpada de boticário me iluminou no meu caminho”. Paracelso não negou a existência dos quatro elementos aristotélicos (Fogo, Ar, Água e Terra), mas deu-lhes um papel inteiramente acessório, passivo, em relação a três outros elementos ou substâncias primárias, o Sal, o Enxôfre e o Mercúrio. Esse trio foi denominado de os tria prima e constituiriam os princípios do corpóreo (sal), do inflamável (enxofre) e do volátil (mercúrio). Paracelso acreditava que a função de um médico ia além do diagnóstico e recei- tuário convencional, sendo necessário um estudo do paciente e uma compreensão da doença em aspectos como a astrologia, alquimia, magia e outras variações esotéricas. Ele acreditava também na existência de íntima relação entre o macrocosmo, que era Deus, e o microcosmo, que seria a natureza. Ao homem cabia a parte de harmonia desses dois cosmos, sendo esse uma parte pequena e imperfeita do cosmo maior, que é perfeito. O famoso ‘placebo’, que é uma substância sem qualquer efeito farmacológico e muitas vezes é utilizada na medicina atual, prescrita para levar o doente a experimentar alívio dos sintomas pelo simples fato de acreditar nas propriedades terapêuticas do pro- duto, já era utilizado por Paracelso. UAB| Ciências Naturais e Matemática |As Ciências Naturais na Modernidade | 25 A linguagem aplicada na obra de Paracelso é alegórica e passível de interpretação, um recurso utilizado para que não pudesse ser acusado de feitiçaria pela inquisição medieval. Afinal, qual teria sido a grande obra de Paracelso? Não se atribui a Paracelso nenhuma grande descoberta ou teoria científica revolucionária. Sua importância na história de Química e da Medicina está em sua postura diante do conheci- mento, que representa uma abertura para o estudo empírico dos fenômenos químicos. E, assim, Paracelso tem lugar garantido na História como criador (ou inspirador) da Quimiatria, que quer dizer “medicina química”, que se constitui num período (1530 a 1670) importante da historia da Química e a da Medicina. A obra de Paracelso caracterizou-se por uma profunda re- ligiosidade, mas com uma grande hostilidade à religião organizada e à medicina oficial. Conta-se que Paracelso teria queimado publica- mente um exemplar do Canon de Avicena numa fogueira durante as festas de S. João. Seu legado de obras escritas e ensina- mentos compõem o que atualmente é chamado de Me- dicina Experimental. Formulou os primeiros conceitos da homeopatia. (leia o texto Paracelso e a Homopatia). Em suas andanças, Paracelso ficou conhecido como “o médico dos pobres” até voltar para Salzburgo em 1540, onde faleceu em 24 de setembro de 1541 com apenas 47 anos. A causa de sua morte não foi esclarecida e seu últi- mo desejo era que fossem entoados no seu sepultamento os salmos bíblicos 1, 7 e 30. A alquimia e a medicina de Paracelso influenciaram enormemente o pensamento europeu dos séculos XVI e XVII. Há quem considere que processo lento do nasci- mento da Química moderna começou com Paracelso e terminou em Lavoisier. TúMulo de ParaCelSo. CeMiTério S. SebaSTian Salzburgo 26 | Ciências Naturais e Matemática | UAB pA r A C e l s o e A h o M e o pAt i A A medicina da atualidade pouco ou nada lembra a medicina praticada no passa- do, na época de Paracelso, por exemplo. Contudo, existe uma corrente de pensamen- to, criada no século XVIII, que apresenta algumas concepções herdadas da medicina de Paracelso: a homeopatia. Criada pelo médico alemão Christian Friedrich Samuel Hahnemann (1755-1843), a homeopatia parte de alguns princípios básicos, como por exemplo, que não existem doenças. Isso mesmo, para a concepção homeopata, o que existem são doentes. Mas como poderia ter um doente sem doença? Nessa idéia, a doença não é tida como algo exterior ao homem, o que por sua vez individualiza os problemas apresentados. Assim, o médico deve analisar seus pacientes caso a caso. Ou- tro princípio importante é o da similitude, segundo o qual os semelhantes são curados pelos semelhantes; em outras palavras, toda substância capaz de provocar um problema num organismo sadio também será capaz de fazê-lo desaparecer. O último princípio é o de que a diluição de uma substância, isto é, sua utilização em doses muito pequenas, é capaz de curar uma doença sem causar efeitos colaterais. De forma geral, Hahnemann sofreu forte influência de Paracelso na construção de seus métodos terapêuticos. Ele estudou as obras de Paracelso e de seus seguidores, baseando seus métodos em algumas idéias defendidas por eles. O princípio da similitude baseia-se numa frase atribuída a Paracelso e escrita numa edição de um de seus livros de 1658: similia similibus curantur (os semelhantes são curados pelos semelhantes). A idéia de que a doença é fruto de um desequilíbrio entre o corpo e o cosmo maior também foi absorvida do alquimista Pa- racelo. A Homeopatia foi vista com desconfiança pelas academias de ciência ao longo do século XVIII, chegando a ser condenada e proibida em 1835. Em 1925 foi criada a Liga Homeopática Internacional e, somente em 1980, ela foi reconhecida no Brasil com uma especialidade médica. (adaPTado do TexTo “a HoMeoPaTia”. in: braga, MarCo eT al. lavoiSier e a CiênCia do iluMi- niSMo. São Paulo: aTual, 2000.) At i V i d A d e p r Át i C A As vacinas utilizadas por médicos alopatas se baseiam em princípios da similitude defendidos pela homeopatia, certo? Faça uma pesquisa que justifique a sua resposta e, se possível, entreviste um médico homeopata e um alopata sobre a questão e suas vivências de terapias. At i V i d A d e d e p e s q u i s A : i n V e s t i G A n d o A s p l A n tA s M e d i C i n A i s Pesquisar as principais plantas medicinais popularmente conhecidas e suas características físico-químicas, princípios ativos, bem como, as formas como são utilizadas e as doenças que provavelmente ajudam a curar. UAB| Ciências Naturais e Matemática |As Ciências Naturais na Modernidade | 27 p r Át i C A p e d A G ó G i C A : p r o p o n d o At i V i d A d e s d e e n s i n o C o M A s p l A n tA s M e d i C in A i s Após ler os textos recomendados e realizar as atividades de pesquisa, or- ganize uma aula ou um projeto em que se proponha o estudo das plantas medici- nais conhecidas com os alunos do ensino fundamental. “Todas as coisas são um veneno e nada existe sem veneno, apenas a dosagem é razão para que uma coisa não seja um veneno." ParaCelSo 28 | Ciências Naturais e Matemática | UAB G l A u b e r : u M A l q u i M i s tA M o d e r n o Joj1nhann Rudolph Glauber (1604-1670) foi, possivel- mente, o químico prático mais produtivo do século XVII. Nascido no que seria a atual Alemanha, ele foi, como Para- celsus, um misto de médico, químico e alquimista. Sua aten- ção parece ter sido voltada para a Química após ter melhora- do de uma febre, graças ao uso de águas minerais. Sua obra mais conhecida, a Opera Omnia Chymica (Amsterdam, 1661) constituía-se em uma espécie de enciclopédia de Quí- mica pura e aplicada. Dentre suas inúmeras contribuições para a Química sintética, Glauber desenvolveria, em 1648, um método para a preparação de ácido nítrico, mediante o aquecimento de nitrato de potássio na presença de ácido sulfú- rico. Glauber prepararia, ainda, muitos cloretos e nitratos metá- licos, além de produzir líquidos (mediante a destilação da madeira, do vinho e de óleos vegetais) que continham substâncias como acetona e benzeno, muito embora não os tenha isolado e identificado. Como hábil químico experimental, Glauber sintetizaria muitos compostos (foi o primeiro a preparar ácido clorídrico), como o tricloreto de arsênio, o acetato de potás- sio, o permanganato de potássio e o sulfato de sódio (decahidratado: Na2SO4.10H2O). Esse último, acreditava Glauber, teria propriedades curativas, sendo uma espécie de “remédio universal”, inferior apenas ao elixir da longa vida. O sulfato de sódio passaria então a ser conhecido como sal de Glauber ou, segundo Glauber, sal milagroso (sal mirabile). Glauber o extraiu pela primeira vez do mineral que hoje chama-se glauberita (sulfato de sódio e cálcio: Na2Ca(SO4)2). A despeito de sua visão em relação aos usos e aplicações econômicos do conheci- mento químico, Glauber morreria em Amsterdam, pobre, exibindo sinais de contami- nação por mercúrio, arsênio e antimônio. O sal de Glauber tem, modernamente, diversas aplicações, tais como no proces- samento de polpa de madeira para produção de papel Kraft e produção de vidros e detergentes. Atualmente sua obtenção em escala comercial dá-se como subproduto da produção de ácido clorídrico a partir do cloreto de sódio e ácido sulfúrico, bem como pela evaporação de algumas águas naturais. É também encontrado no mineral thenar- dita. Embora não seja dotado de propriedades medicinais tão extensas a ponto de me- recer, modernamente, a alcunha de sal mirabile, o “sal miraculoso” de Glauber é muito utilizado, ainda hoje, para fins terapêuticos, tais como antiinflamatório e diurético. Um dos seus usos mais comuns é como laxante, sendo que um dos produtos comercializa- dos faz alusão ao nome do seu descobridor (Glauberina, do Laboratório Madrevita). (TexTo de robSon FernandeS de FariaS – glauber e Seu Sal MiraCuloSo. reviSTa braSileira de enSino de quíMiCa. vol. 2, núMero 1, 2007. UAB| Ciências Naturais e Matemática |As Ciências Naturais na Modernidade | 29 dA s r e V o l u ç õ e s d o s C o r p o s C e l e s t e s à r e V o l u ç ã o n A C o M p r e e n s ã o d o u n i V e r s o o l e G A d o d e Co p é r n i C o e as regras por trás dos fenômenos físicos mal se mostraram ou pouco evo- luíram no Renascençimento, o mesmo não pode ser dito da nossa visão de Universo. A Astronomia passaria agora por uma profunda série de alterações desde a consolidação do modelo clássico de Aristóteles e Ptolomeu. Talvez se a retomada das antigas teorias gregas não estivesse tão em voga nesse período, a recepção dessas novas idéias fosse outra. É notório o des- taque dado às obras de Copérnico e as discussões filosóficas e religiosas que se se- guiram à divulgação da mesma. Mas de alguma forma estabe- leceu-se o equívoco, poucas vezes corrigi- do, de que Copérnico fora o primeiro a colo- car o Sol como corpo central do Universo e que havia sofrido imediata rejeição por parte da Igreja. Nem uma coisa nem outra. Por mais incrí- vel que possa parecer, já vigoravam entre os gregos hipóteses condizentes com um modelo heliocêntrico, conhecidas inclusive por Aristóteles. A proposta do Sol como corpo central fora defendida original- mente por Aristarco de Samos (310 a.C. – 230 a.C.) que, através da geometria, havia feito cálculos sobre o diâmetro da Terra, da Lua, do Sol e de suas distâncias relativas. Baseando-se nesses resultados ele concluiu que o Sol era muito maior do que a Terra e merecedor, portanto, da posição central entre os astros. Mas porque então essa visão heliocêntrica só voltaria a ser debatida no período histórico compreendido pelo Renascimento? É claro que os textos bíblicos e a gigan- tesca influência da Igreja na Europa foram decisivos para esse atraso, mas apenas isto não justifica a insistência no geocentrismo nos séculos anteriores ao cristianismo. A “CoPérniCo ConverSa CoM deuS”, PinTura de Jan Ma- TeJko. (FonTe: WikiMedia CoMMonS) S 30 | Ciências Naturais e Matemática | UAB resposta é simples e factual: a ausência de evidências que justificassem não só um Sol central como um movimento terrestre em torno deste. E não coube a Copérnico a des- coberta de tais provas, mas sim um passo corajoso em direção a elas. Copérnico nasceu em 19 de fevereiro de 1473, em Thorn, na Polônia, filho de um comerciante também de nome Nicolau. Aos 10 anos perdera o pai e passou a ser criado pelo irmão de sua mãe, o então bispo de Frauenburg, Lucas Waczenrode, que prepararia sua educação visando um futuro cargo canônico. Em 1491, aos 19 anos, Copérnico ingressou na Universidade de Cracóvia, famosa na época pelos seus cur- rículos de Astronomia, Matemática e Filosofia. Ao se formar não assumiu o cargo a que estaria destinado; ao invés disso, em 1496, foi para a Itália onde estudou Direito na Universidade de Bolonha e posteriormente, Medicina em Pádua. Em 1505, já eleito para o canonicado, retornou para Frauenburg, onde pôde mostrar todas as habilidades acadêmicas adquiridas nos anos anteriores. Em 1513, um ano após a morte de seu tio, Copérnico inicia a construção de seu observatório. Ao contrário do que se propagou, suas atividades não constituíram novo começo para a Astronomia. Suas observações não faziam uso de nenhum instrumento especial, até porque a luneta ainda estava por ser inventada no ocidente. Suas previsões sobre o movimento planetário baseavam-se ainda no Almagesto de Ptolomeu, um clássico que já vinha sofrendo correções e críticas no século XV por estudiosos como Nicolau de Cusa, George Peuerbach e Johann Müller (Regiomontanus). Sua insatisfação se devia principalmente ao fato do modelo antigo não compor- tar a “regra do movimento absoluto”, segundo a qual tudo deveria se mover em torno do centro do Universo com velocidades constantes. Ele procurou impor uma modificação que fosse con- dizente com essa crença: assumir que a Terra fosse apenas mais um dos planetas que se movem em tor- no do Sol. Do ponto de vista experimental, o sistema de Copérnico não se mostrava melhor que o de Pto- lomeu. As previsões astronômicas de ambos eram, se levadas em conta as devidas correções e atualiza- ções, equivalentes. Apesar de acreditar firmemente que uma reformulação do sistema de mundo era ne- cessária, Copérnico estava pisando em terreno ex- tremamente perigoso. Sua proposta era contrária às evidencias relativas ao movimento do Sol (aceitar seu sistema implicava em admitir que o deslocamento do Sol e das demais estrelas era apenas aparente, devi- do a um movimentode rotação terrestre), enquanto que o de Ptolomeu baseava-se justamente no trajeto solar que observamos todos os dias. Além disso, se estivesse certo, uma nova Física deveria surgir para iluSTração do Modelo geoCên- TriCo eM uMa bíblia de MarTinHo luTero. (FonTe: WikiMedia CoMMonS) UAB| Ciências Naturais e Matemática |As Ciências Naturais na Modernidade | 31 substituir o extremo bom-senso das idéias aristotélicas a respeito do movimento dos corpos (esta dizia, por exemplo, que os corpos em queda apenas se dirigiam para o centro do Universo – a Terra). Cauteloso neste ponto, Copérnico não tentou explicar as causas do movimento da Terra, apenas estabeleceu que a mesma deveria se mover perpetuamente, em um círculo perfeito, em torno do Sol. Havia ainda a questão das sagradas escrituras e o lugar privilegiado destinado à Terra. Todas estas implicações levaram Copérnico a postergar ao máximo a divulgação de suas teorias. Sua primei- ra tentativa, Commentariolos [Pequenos comentários] de 1510, foi apresentada apenas dentro de seu círculo de amigos. Contrariando nossa falha interpretação do mito, hou- ve boa recepção por membros do clero como o secretário do papa Clamente VII, Johan Widmanstadt e o cardeal Nicholas von Schönberg. Novas publicações só surgiriam após iniciar uma parceria de estudos com o matemático Georg Joachim (Rheticus). Seu novo discípulo pavimentaria o caminho para a obra que alteraria definitivamente o paradigma cosmológico. Após a edição das conclusões de Rheticus por meio de um pequeno panfleto, Copérnico permitiu que seu associado providenciasse a impressão de seu trabalho completo. Como sua saúde estava já bastante abalada, ele sabia que possivelmente não sobreviveria para ver as implicações que a publicação de seu livro causariam. Em 1543 morria aquele que fora batizado Nikolas Koppernigk. No mesmo ano o mundo recebia De revolutionibus orbium coelestium (Das revoluções das esferas ce- lestes). Os primeiros opositores declarados ao trabalho de Copérnico foram os cabeças da reforma cristã. Um preocupado Lutero afirmara: “O louco vai virar a Astronomia de cabeça para baixo!” O receio dos luteranos era tamanho que o editor Andreas Osian- der, um clérigo da reforma, adulterou o prefácio do livro numa tentativa de diminuir o impacto decorrente de sua divulgação. No século XVII foi a vez dos católicos conde- narem o heliocentrismo, proibindo a obra de Copérnico. Há indícios de que o modelo heliocêntrico proposto por Copérnico, embora geometricamente mais simples que o an- terior, fosse estimulado por um culto ao Sol, como se faz notar num trecho de sua obra: “Imóvel no meio de todos está o Sol. Pois nesse mais lindo templo, quem colocaria esse candeeiro em outro ou melhor lugar do que esse, do qual ele pode iluminar tudo ao mesmo tempo? Pois o Sol já foi chamado, por alguns povos, de farol do mundo; de sua mente por outros e, até mesmo, de seu governante por outros ainda. Hermes apelidou-o de Deus visível, e Sófocles, em Electra, de vigia universal. Realmente o Sol está como que sentado num trono real, governando a sua família de astros que giram a sua volta.” 32 | Ciências Naturais e Matemática | UAB Co M o é q u e s e s A b e q u e é A te r r A q u e G i r A e M t o r n o d o s o l e n ã o o C o n t r Á r i o? Um observador na Terra vê o Sol aparecer num lado (nascente), depois mais alto, depois novamente mais baixo até deixar de se ver no lado oposto (poente). Não admira que se tenha pensado que o Sol gira à volta da Terra. Para um hipotético observador no Sol, seria a Terra que nasceria, subiria e se po- ria no lado oposto. Isto de movimentos é muito relativo. De qualquer modo, para um hipoté- tico observador exterior ao sistema solar, é a Terra que anda à volta do Sol já que a sua massa é muito menor que a do Sol. Aliás, o modo como nós vemos o movimento do Sol em torno da Terra não é conseqüência do movimento da Terra em torno do Sol (translação), mas do movimento da Terra em torno de si mesma (rotação). Extraído de “Ciência no Cotidiano”: http://cienciasnoquotidiano.blogspot.com/2005/11/concurso-perguntar-preciso-ii.html Pôr-do-Sol (FonTe: WikiMedia CoMMonS) At i V i d A d e Proponha uma prática que permita discutir a questão do referencial na análise do movimento. UAB| Ciências Naturais e Matemática |As Ciências Naturais na Modernidade | 33 interessante notar como a ciência entre os sé- culos XV e XVII parece se erguer a partir de trabalhos solitários de alguns poucos e inquietos “homens de ciência”. Por mais que se baseassem em pistas e traba- lhos prévios, estes cientistas do Renascençimento pare- ciam sempre buscar rotas inexploradas como se fossem, sozinhos, encontrar o mundo oculto onde a Natureza escondia suas respostas. Mas o que realmente os motiva- va? Será que, como possa parecer, ansiavam se tornar os novos Prometeus da humanidade? É preciso considerar que esses homens foram testemunhas de uma época de grandes mudanças. O próprio mundo se mostrava maior do que se imaginara. As realizações humanas vinham sendo cada vez mais maravilhosas ao passo que a Igre- ja, que tamanho poder alcançara nos séculos recentes, se fragmentava diante de seu próprio “peso”. Aqueles que ainda não haviam substituído a fé no Divino pela fé no humano tinham de escolher o lado da cristandade que deveriam defender. Um terceiro caminho de esclareci- mento tinha se mostrado no início do Renascençimento. O paganismo, que jamais fora extinto de fato, ressurgia, transfigurado em uma magia neoclássica que se mostrava alcançável a todos aqueles que compreendessem os sinais escondidos na retomada das teorias gregas. Não é necessário despir os grandes nomes que consolidaram o caminho para a revolução tecno-científica de sua genialidade, mas devemos ser cautelosos e ad- mitir que, por mais que alguns até acreditassem nisso, eles não estavam inflados por nenhuma inspiração divina e sim movidos por um desejo cada vez maior de modificar seu modo de vida. Todos foram, em maior ou menor grau, reflexos de sua época e, como esta se mostrava cheia de novos caminhos, estes também encontravam-se várias vezes em encruzilhadas em que novos fatos colocavam em cheque a fé que herdaram ou escolheram. Um dos mais metódicos exploradores da Natureza, o dinamarquês Tycho Brahe (que se chamava inicialmente Tyge) é considerado o maior astrônomo da história da humanidade antes da invenção do telescópio. Nascido em berço privilegiado no ano de 1546, em terras que hoje foram incorporadas à Suécia, Tycho também não fora criado pelos pais. Não que os tivesse perdido por morte mas, um acordo familiar o colocou so- bre os cuidados de seu tio paterno, que fez o possível para que o sobrinho ingressasse no direito. Com o falecimento do tio, em 1565, Tycho pôde se dedicar à sua Astronomia. Em segredo ele já vinha fazendo suas pesquisas. Em 1564, de posse de um quadrante gigante, verificou como as tabelas astronômicas disponíveis eram falhas. Ele passaria praticamente o resto de sua vida para obter medidas mais precisas sobre os fenômenos tyC h o b r A h e - o A s t r ô n o M o TyCHo braHe É 34 | Ciências Naturais e Matemática | UAB celestes. Sua carreira também fora premia- da com o testemunho de dois fatos que o coloraram diretamente em choque com as teorias aristotélico-ptolomaicas. O primeiro foi a observação de uma su- pernova (que seria interpretada como uma nova estrela) na constelação de Cassiopéia, em 1572. Isso contra- riava diretamente a “regra” clássi- ca de que o céu era imutável. Em 1577 teve a chance de confrontar os ensinamentos antigos mais uma vez. A análise da forma e distância de um cometa que se mostrou na- quele ano lhe permitiu contradizer novamente a imutabilidade celeste e também refutara explicação aristotéli- ca de que esses corpos celestes eram fe- nômenos puramente atmosféricos. Era muito comum que os estudiosos do céu se vissem envolvidos tanto com a compreensão destes quanto com a influência dos mesmos no cotidiano das pessoas. Por incrível que pareça, essa mistura entre Astronomia e Astrologia foi fundamental para a evolução da primeira. Em troca de previsões pessoais muitos nobres e governantes patrocinaram as pesquisas destes ambíguos filósofos naturais. Neste quesito Tycho também teve sorte incomparável. Por muitos anos o rei Frederico II da Dinamarca lhe proveu recursos quase ilimitados. Para se ter uma idéia, a ilha de Ven lhe havia sido oferecida para a construção de um laboratório tão completo como nunca antes se viu. Tycho supervisio- nou pessoalmente a fabricação e montagem de seus extremamente precisos aparelhos. De posse de tais instrumentos e com dedicação quase obsessiva ele iniciou a maior co- leta de dados sobre as posições e movimentos dos astros de que se tinha notícia. Estava claro para ele que o modelo planetário clássico não mais servia mas, possivelmente por sua formação protestante, ele se recusava a aceitar a proposta de Copérnico. A saída foi elaborar ele próprio um modelo de universo que acabaria por ser um meio termo entre o antigo e o revolucionário. Suas hipóteses aceitavam o movimento dos planetas em torno do Sol, mas este, juntamente com a Lua, orbitava a Terra, ainda ponto central. A contradição entre as medidas feitas por Brahe e sua cosmologia só se tornariam eviden- tes anos após a sua morte, com os trabalhos de seu discípulo e herdeiro, um prodigioso professor de matemática chamado Johannes Kepler. Tycho acolheu Kepler em 1600, quando já estava subordinado ao imperador germânico Rodolfo II (ele perdera a posse de sua ilha na sucessão de Frederico, que morrera em 1588) e residindo em Praga. A parceria durou pouco. Tycho Brahe faleceria em outubro de 1601. o univerSo Segun- do TyCHo braHe, FonTe:WikiPédia CoMMonS UAB| Ciências Naturais e Matemática |As Ciências Naturais na Modernidade | 35 At i V i d A d e – A p r o f u n d A n d o o s e u Co n h e C i M e n t o 1. Faça uma pesquisa sobre a paralaxe e como ela nos permite medir a distância das estrelas. 2. Acesse: http://astro.if.ufrgs.br/parallax/Parallax.htm e execute o applet que si- mula a paralaxe estelar. Ele também está disponível na plataforma. K e p l e r e A h A r M o n i A d o M u n d o: A s l e i s pA r A o M o V i M e n t o p l A n e tÁ r i o fé pode não apenas mover montanhas, mas realocar todo o Universo. Essa frase se ajusta perfeitamente a motivação que levou o matemático, astró- logo, astrônomo e quase clérigo Johannes Kepler a deixar sua marca na história da Astronomia. A inabalável crença que iluminou o trabalho de Kepler não foi, afinal, base- ada na Santa Igreja, mas sim no trabalho de seu antigo mestre, Tycho Brahe. A devoção ímpar de Tycho à com- preensão dos movimentos astronômicos e o tom meticu- loso de suas pesquisas, foram suficientes para que Kepler superasse suas próprias superstições e hipóteses a fim de que sua nova astronomia se adaptasse aos dados coletados por seu mentor. Pouco podemos afirmar a respeito de Kepler antes de 1591, quando se formou em Tübingen. Sabe-se que nasceu em Weil der Stadt, na Alemanha, em 1571, e que, como outros expoentes de sua época, tentou o caminho da teologia antes de se dedicar ao estudo da Natureza. Sua escolha protestante teve destaque em dois momentos de sua vida; primeiro em 1594, quando foi convidado a lecionar matemática numa importante escola luterana em Graz, posto que ocupou durante três anos e, finalmente, quando precisou exilar-se em Praga, devido a perse- guições que os luteranos vinham sofrendo em sua terra natal. A notoriedade adquirida, ainda em Graz, pela elaboração de um calendário as- trológico que teve várias previsões confirmadas, foi de grande importância na sua aco- A JoHanneS kePler 36 | Ciências Naturais e Matemática | UAB lhida por Tycho Brahe. Curiosamente, o próprio Kepler teceu críticas ao caráter profético da astrologia (à qual se referia como “a ridícula irmãzinha da astronomia”). Certa vez es- creveu que os astrólogos deviam muito de seus acertos à sorte. Sua opinião, entretan- to, não impedia que recebesse de bom gra- do encomendas de horóscopos por parte da nobreza, já que patrocinariam suas pesquisas mais “sérias”. Apesar de nunca duvidar das medidas feitas por Brahe (que devotou-se como nenhum outro a registrar continuamente as posições e movimentos dos astros) e de aceitar prontamente a hipótese heliocêntri- ca de Copérnico, buscou, até o fim de sua vida, uma mística harmonia (um conjunto de regularidades, como uma escala musical) que regia o Cosmo. Esse anseio por regularidades o fez investigar exaustivamente relações entre as distâncias que os planetas estavam dos supostos pontos centrais do Universo, suas velocidades nesses mo- vimentos e as verdadeiras trajetórias percorridas pelos astros. Suas observações a respeito do movimento de Marte, aliadas aos dados coletados por Tycho Brahe, lhe permitiram testar, de forma até então inédita, os modelos vigentes sobre a órbita dos planetas. A matemáti- ca, ferramenta que dominava tão bem, seria a peça fundamental para explicar essa nova visão de Universo. Suas conclusões matemáticas não o agradaram de imediato, mas lhe forneceram provas de que tanto os gregos que defenderam a divina perfeição das órbi- tas circulares, quanto Brahe com seu modelo mestiço (em que Terra e Sol eram pontos centrais de translações), haviam se equivocado diante da verdadeira “ordem celeste”. Em 1609 publicaria as suas duas primeiras leis para o movimento planetário, que se mostraram mais revolucionárias do que todas as discussões anteriores sobre o tema. As órbitas não são círculos perfeitos, mas elipses (figuras “ovais”) e o Sol é o corpo orbitado (não estando, entretanto, no centro das órbitas), pois alterava, de alguma forma ainda não esclarecida, a velocidade dos corpos que o orbitavam (os planetas se moviam mais rápido quando se aproximavam dele). O desejo de Kepler em expor a presença divina na maneira como os astros se moviam ainda era forte. Na apresentação de seu Harmonia do mundo, de 1618, ele dizia ter encontrado a “música celeste”. Deste trabalho viria a surgir a última de suas três famosas leis, uma proporção matemática entre tempo e distância orbitais. É irônico notar que, embora buscasse uma harmonia nos céus, a vida pessoal de Kepler foi bem conturbada. Enquanto fazia suas pesquisas, teve que enfrentar a perda de entes queridos (a primeira mulher e o filho morreram quando residiam em Praga), dois casamentos, dificuldades econômicas, perseguições religiosas, uma revolta popular o SiSTeMa Solar rePreSenTado PeloS SólidoS PlaTôniCoS – a HiPóTeSe iniCial de kePler. FonTe: WikiPédia CoMMonS UAB| Ciências Naturais e Matemática |As Ciências Naturais na Modernidade | 37 (que obrigou Rodolfo II a abdicar) e eventuais mudanças de domicílio (após Praga, foi para Linz em 1612 e Ulm em 1625). Sua derradeira obra foi a compilação de dados astronômicos conhecidas como Tabelas rodolfinas, em 1627. Faleceu três anos depois disso. A s l e i s d e K e p l e r p r i M e i r A l e i d e K e p l e r o u l e i d A s ó r b i tA s : "O planeta em órbita em torno do Sol des- creve uma elipse em que o Sol ocupa um dos fo- cos". s e G u n d A l e i d e K e p l e r : "A linha imaginária que liga o planeta ao Sol varre áreas iguais em tempos iguais". te r C e i r A l e i d e K e p l e r : "Os quadrados dos períodos de revolução dos planetas são proporcionais aos cubos dos eixos máximos de suas órbitas". Ou seja, sendo T o período de revolução e D o eixomáximo da órbita de um pla- neta, tem-se: , com k constante. d i C A s : Veja a animação de um movimento orbital em: http://commons.wikimedia.org/wiki/Image:Classical_Kepler_ orbit_80frames_e0.6_smaller.gif ou na plataforma. Aprenda a desenhar uma elipse em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:ElipseAnimada.gif 38 | Ciências Naturais e Matemática | UAB G A l i l e u e o s A l i C e r C e s d A C i ê n C i A M o d e r n A fundamental lembrar que o desenvolvimento da Ciência não é hermético e alheio à sociedade e muito menos às trans- formações históricas desta. Para a infelicidade de muitos que se aven- turaram pelos caminhos da filosofia natural, esse aspecto foi menospre- zado. Galileu, considerado o pai da Ciência Moderna, tentou implantar uma nova interpretação do Univer- so acreditando que poderia jogar com Instituições e personalidades político-religiosas e sair incólume. A Ciência seguiu a nova direção apontada, mas ele enfrentou duras conseqüências por sua ousadia. O movimento histórico a que chamamos Renascença parece ter surgido forte- mente na Itália, mesma pátria de Galileu Galilei. Embora italiano, Galileu não buscou inspiração nas obras clássicas dos antigos filósofos gregos. Na verdade ele foi não so- mente um de seus maiores opositores, senão o grande carrasco dessas teorias. Galileu nasceu no mesmo ano que William Shakespeare, em 1564. Natural de Pisa, desde jovem mostrava habilidade na compreensão de fenômenos naturais, como quando percebeu, aos 17 anos, no meio de uma celebração, que o lustre da catedral de Pisa oscilava periodicamente, independente da amplitude de seu movimento. Escapou de uma carreira religiosa porque seu pai queria vê-lo formado em medicina (graduação que abando- nou por falta de dinheiro e vocação). A sagacidade com que in- terpretava os fenômenos naturais era comparável à sua imensa paixão pela matemática. Logo após abandonar a faculdade de Medicina começou a lecionar Matemática em Florença, conse- guindo uma cadeira depois em na Universidade de Pisa (onde, ironicamente, lhe foi negada uma bolsa como estudante). Muito da fama de grande experimentador atribuída a Galileu se deve a uma experiência que pode nem ter ocorrido realmente: a queda de pesos do alto da torre de Pisa. Há certa controvérsia quanto a esse fato, uma vez que não há registros ou testemunhas que o É galileu galilei Torre de PiSa UAB| Ciências Naturais e Matemática |As Ciências Naturais na Modernidade | 39 tenham observado. Entretanto, em Pisa, Galileu realmen- te pesquisou a queda dos corpos, só que de forma menos chamativa. Com uma grande preocupação com a precisão dos resultados, ele avaliou as acelerações sofridas por es- feras que desciam planos inclinados. Suas conclusões, de- monstradas em seu tratado “De motu” (Movimento), lhe fizeram questionar a teoria aristotélica sobre o movimento dos corpos e formar o embrião do que mais tarde seria des- crito por Isaac Newton como primeira lei do movimento. Também sugeriu como usar diferentes referenciais para a interpretação dos movimentos e a inexistência de agentes mantenedores da propulsão de corpos móveis. A forma meticulosa com que trabalhava, repetindo os experimentos várias vezes e depois outras tantas com pequenas variações e incrementos, anotando os resultados obtidos e dando-lhes uma abordagem quantitativa é consi- derada como precursora do método científico (daí a alcunha de “pai da Ciência Moderna”). Seus argumentos para explicar os fenôme- nos eram baseados não somente na observação e análise dos mesmos, mas em uma profunda investigação que usava a matemática como importante aliada em sua busca por evidências. O que diria Galileu se soubesse que seus métodos inspirariam praticamente todas as futuras gerações de cientistas? Sem desconfiar das grandiosas conseqüências de suas pesquisas, o filho de Vicenzo Galilei estava apenas começando. Sua compreensão sobre a inércia não foi a única e nem a menos audaciosa de suas investigações. Galileu nunca esteve satisfeito com a pequena renda de seu cargo em Pisa e, com a morte do pai em 1591, o convite para lecionar em Pádua foi prontamente aceito. Em Pádua Galileu obteve informações sobre um modelo de telescópio que havia chegado a Veneza. Aqui temos outro equívoco histórico bem difundido. Galileu não foi o in- ventor do telescópio; cabe a ele, sim, avanços importantes na construção do aparelho. Com seu conhecimento sobre perspectiva e suas habilidades na construção de instru- mentos, ele usou as informações que recebera para montar telescópios com ampliação em até trinta vezes. Como Ronan (2001) cita, a maior contribuição de Galileu para o desenvolvimento do telescópio foi o “emprego científico do mesmo”. Ao apontar sua luneta para o céu, ele observou a existência de crateras na Lua, manchas no Sol, des- cobriu quatro satélites de Júpiter e percebeu que as estrelas não estavam todas à mesma distância do nosso planeta. Todos essas descobertas eram provas importantes contra a teoria clássica de perfeição e imutabilidade dos astros e, em última análise, contraria- vam diretamente a noção de que a Terra era o centro do Universo. Em 1610, ano que retornaria a Florença, apresentou suas constatações no livro Mensageiro sideral. Diferente de Copérnico, que retirou a Terra de sua posição de destaque no Uni- verso, mas se pronunciara de maneira pública apenas postumamente, Galileu não só estava acumulando evidências empíricas de que o heliocentrismo era a proposta corre- FaSeS da lua Segundo galileu 40 | Ciências Naturais e Matemática | UAB dialogo di galileo galilei linCeo, dove ne i CongreSSi di quaTTro giornaTe Si diSCorre SoPra i due MaSSiMi SiSTeMi del Mondo, ToleMaiCo e CoPerniCano ta, como não tinha o menor receio de se expressar publicamente quanto a isso: escreveu em italiano ao invés do latim, comum nos trabalhos de cunho científico. Mesmo tendo cabido a Kepler desvendar as regras que regiam os movimentos astronômicos, um dos papéis que o discípulo de Tycho Brahe não desempenhou, foi o de inimigo declarado da Santa Inquisição. Galileu o fez. Com um agravante: o fez em pleno “quintal” da Igreja Romana. Em 1611, numa viajem à Roma, Galileu teve a oportunidade de apresentar suas descobertas astronômicas ao Colégio Romano de Jesuítas, ao Cardeal Roberto Bellar- mino e ao futuro Papa Urbano VIII, seu amigo de infância. A recepção inicial foi muito boa. Mas em 1616 a Igreja pronunciou-se declarando oficialmente a Teoria Heliocên- trica como herética e proibindo a sua aceitação. Galileu tentou intervir junto à Roma mas não foi ouvido. Contudo, foi autorizado a escrever tanto sobre o geocentrismo quanto sobre o heliocentrismo, desde que não tomasse partido de nenhuma das duas hipóteses. Em 1632 publicou o Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo, em que expõe as teorias por meio de uma inteligente narrativa, onde as teorias eram apresenta- das pelos pontos de vista de três diferentes personagens: Simplício (aristotélico), Salviati (copernicano) e Sagredo (sem posição definida). Com a sorte da ignorância dos censores a respeito de matemática e astronomia, e o descaso inicial do Papa (que não fez uma leitura completa da obra), o livro foi impresso sem grandes alterações. Quando os pri- meiros comentários sobre o material começaram a ser ouvidos, Galileu se viu numa situação bastante perigosa. Acontece que Galileu não media esforços para impor suas opiniões e seu livro era imparcial apenas no começo. Logo se percebia que seus persona- gens não discursavam em pé de igualdade (Simplício se mostrava, no mínimo, ingênuo e o neutro Sagredo logo se deixa convencer pe- los argumentos de Sal- viati). O Papa Urbano VIII se sentiu traído, não somente porque seu antigo amigo ignorou suas instruções de não tomar partido,mas por- que se via ridicularizado na figura de Simplício, entendido como uma caricatura sua. A partir de 1633 Galileu foi in- terrogado três vezes pela Inquisição, tendo o Car- deal Bellarmino como seu promotor, sob a acu- UAB| Ciências Naturais e Matemática |As Ciências Naturais na Modernidade | 41 sação de defender abertamente as idéias antidogmáti- cas de Copérnico. Por muito pouco não sofreu tortura, sendo ameaçado de ter o mesmo destino que vários “infiéis” tiveram no passado: a fogueira. No fim, foi sentenciado a cumprir prisão domiciliar e obrigado a negar sua opinião a sobre o heliocentrismo. Mesmo tendo sido privado de sua liberdade e censurado publicamente, Galileu, já completamente cego, não se aquietou. No fim de sua vida voltou a estudar a estrutura da matéria e as leis que regem o movimento dos corpos. Seu último livro, Discurso e de- monstração matemática sobre duas novas ciências relativas à mecânica, de 1638, teve de ser publicado na cidade protestante de Leiden, na Holanda, para que ficasse fora da influência de seus opressores. Em 1642 a rebel- de genialidade de Galileu finalmente alcançou as es- trelas. No mesmo ano, na Inglaterra, nascia aquele que transformaria o mundo em sua busca pelas peças que faltavam à mecânica terrestre e celeste: Isaac Newton. diSCorSi i deMonS- Trazioni MaTeMaTi- CHe inTorno a due nouve SCienze At i V i d A d e 1. Faça um contraste entre as explicações de Aristóteles e Galileu para o movimento dos corpos. 2. Quais as novidades na proposta de Galileu para o estudo dos fenômenos naturais? 3. Galileu concluiu que, na ausência de atmosfera, todos os corpos cairiam com a mesma aceleração. Proponha uma atividade experimental que possa evidenciar essa conclusão. 42 | Ciências Naturais e Matemática | UAB d e s C A r t e s e A d i V i n A C r i A ç ã o té agora temos explorado um pouco da vida e obra de alguns personagens que tiveram papel de destaque não somen- te para o desenvolvimento da Ciência mas que, em paralelo, permitiram à humanidade alcançar novo patamar no trato com a Natureza e suas regras. Muitos cientistas e filósofos citados não tiveram tão grandes pretensões, por mais revolucionárias que fossem suas descobertas e suposições. Enquanto uns seguiam naturalmente o caminho traçado por suas formações religiosas e/ou acadêmicas, outros fize- ram oposição ferrenha a essas pré-determinações. É justamente nessa classe que encontramos René du Perron Descartes. Como um jovem abastado e formado em direito poderia ter pretensões dignas de um filósofo natu- ral? O espírito contestador e inquieto de Descartes jamais se conformou com as explicações limitadas dadas pelos jesuítas da escola La Flèche, como ele mesmo assumiu em seus escritos. Seus antigos pro- fessores tiveram êxito em lhe incutir a idéia de um Deus supremo e arquiteto de toda a criação, mas falharam miseravelmente ao tentar lhe apresentar as interpretações clássicas dos fenômenos naturais como explicações últimas dos mesmos. Enquanto as obras antigas eram usadas de forma fragmentada e apenas como suporte à sua formação cristã (uma vez que se ajustavam aos dogmas da fé católica), Descartes via na matemática, assim como Galileu, uma poderosa ferra- menta para interpretar a Criação. A clareza e objetividade dos resultados matemáticos, principalmente os obtidos através da álgebra, encantaram Descartes. Logo ele mos- trou que seria possível utilizar a álgebra em interpretações antes impensadas. Os textos gregos sempre tiveram grande prestígio principalmente em função do sucesso das apli- cações de sua geometria. No início do século XVII a geometria ainda despontava como a maior contribuição da matemática o que, por outro lado, eclipsava o desenvolvimento de outros aspectos dessa ciência se estes não se mostrassem tão ricos em resultados práticos. Uma abordagem filosófico-matemática da Natureza, como proposta anterior- mente por Galileu, não poderia se popularizar enquanto não alcançasse os mesmos méritos que a geometria clássica. Esse era um grande desafio, uma vez que a geometria grega havia se consolidado após séculos e ainda se mostrava eficiente. É fácil imaginar o assombro e incredulidade daqueles que testemunharam como Descartes mostrava que a álgebra podia não somente auxiliar a geometria em suas representações como A rené deSCarTeS (1596 – 1650) UAB| Ciências Naturais e Matemática |As Ciências Naturais na Modernidade | 43 dotar a mesma de grande agilidade. Desde então problemas que antes conheciam solução apenas por meio de complicadas representações geomé- tricas, mostravam-se agora também facilmente dedutíveis por meio de relações entre algarismos e letras. Por essa pequena revolução matemática, Descartes já teria garantido seu nome na história, mas seus objetivos eram muito mais audaciosos. Sua “fé” na objetividade matemática era comparável à repulsa que tinha pelas especula- ções filosóficas que via nos antigos textos gregos. Descartes usou de ambas para propor uma nova filosofia. Uma forma de pensar que fosse inci- siva como uma navalha e que mostrasse resul- tados práticos, assim como sua adorada álgebra. O primeiro passo em direção a essa nova forma de pensar deveria passar, segundo ele, pelo questionamento de todo co- nhecimento que não fosse obtido de modo racional e, portanto, abstraído em forma matemática. A dúvida tinha de estar presente, então, em tudo o que não passasse pelo pensamento. As interpretações da realidade baseadas puramente no empírico (perceptível pelos sentidos) não mereciam discussão. A síntese desse ceticismo é conhecida por nós em sua famosa frase: “penso, logo existo” (logito, ergo sum), uma crítica à lógica e filosofia clássicas. Adjacente às novas portas abertas por um domínio mais amplo da álgebra, Descartes tinha uma crença pessoal de que Deus jamais lograria seus filhos com ilusões. A verdade por trás de sua Obra se revelaria por meio do conhecimento racional. O único caminho para a compreensão plena da Criação seria, portanto, uma nova Ciência que consolidasse todo o saber humano num “edifício iluminado pela verdade e feito de certezas racionais”. Apesar de uma ciência reTaS rePreSenTadaS nuM Plano CarTeSiano e SuaS reSPeCTivaS equaçõeS algé- briCaS. Segundo Descartes, cada ponto num plano pode ser representado por dois números (coordenadas), que correspondem às projeções do mesmo sobre dois eixos perpendi- culares. Ele propôs uma notação que utilizava as primeiras letras do alfabeto para repre- sentar quantidades conhecidas e as últimas, como x, y e z, para incógnitas. Uma famosa aplicação dessa proposta é a equação geral da reta: a x + b y + c = 0. 44 | Ciências Naturais e Matemática | UAB unificada parecer um objetivo demasiado utópico, Descartes também sugeriu que um único indivíduo poderia ser capaz de tal tarefa (provavelmente, ele). A proposta de Descartes de unificar as Ciências se baseava em um método de obter o conhecimento que fosse o mesmo para todas as áreas. Em seu Discurso sobre o método, de 1637, ele apresenta um conjunto de ações com esse propósito. As quatro ta- refas básicas do método cartesiano seriam: a verificação de evidências sobre o fenôme- no estudado (o conhecimento sempre questionado pela dúvida); a análise, etapa mais famosa e controversa de sua nova filosofia, em que propunha dividir o objeto de estudo em suas unidades mais fundamentais (a compreensão do todo pelo funcionamento de suas partes); a síntese, em que as partes eram reagrupadas em ordem de complexidade crescente até que o conjunto formasse novamente o todo, agora sem mistérios; e a enu- meração de todas as conclusões e princípios, de modo que nada fosse omitido. Esse conjunto de ações, apesar de ter sido a base formal da ciência moderna, foi bastante
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