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1 COMPLEXO DE ENSINO SUPERIOR DE SANTA CATARINA FACULDADE CESUSC ESPECIALIZAÇÃO EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL ALUNA: NAIANA HESS SANTOS E-MAIL DA ALUNA: NAIANAHESS@GMAIL.COM ------------------------------------------------------------------------------------------------------ LIMITES AO EXERCÍCIO DO PODER DE AUTORREGRAMENTO PROCESSUAL NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS EM EXECUÇÃO: ACORDOS DE IMPENHORABILIDADE E SUA VALIDADE JURÍDICA. Naiana Hess Santos 1 Resumo Os negócios jurídicos processuais representam o sopro do futuro que aguarda o Direito Processual Civil, uma vez que o Código Processual confere a possibilidade de negócios jurídicos típicos, exemplificados no texto legal, e também atípicos, permitindo ampla negociação entre as partes. Buscando identificar pressupostos de validade do regular processamento dos feitos judiciais e ao mesmo tempo conferir o autorregramento dos atos processuais, o intuito da pesquisa é trazer possibilidades de liberdade consoante a vontade das partes. É encontrar onde ela é basilar e onde ela se torna um fardo nos negócios jurídicos processuais, especificamente quanto à penhorabilidade de bens para a satisfação da execução. A pesquisa propõe a análise da penhorabilidade do ponto de vista negocial e os óbices jurídicos, sobretudo a disponibilidade dos direitos correlatos. Palavras-chave: Negócios Jurídicos Processuais. Execução. Penhorabilidade. 1Naiana Hess Santos formanda do Curso de Pós-Graduação em Direito Processual Civil. Graduada em Direito, atua como advogada. Endereço eletrônico para contato: naianahess@gmail.com. Artigo apresentado na data de 19/11/2019 na cidade de Florianópolis. 2 1 INTRODUÇÃO É tempo de liberdade no Direito Processual Civil. Por isso, embora já previstas as possibilidades de convenção pelas partes sobre regras procedimentais no Código de Processo Civil de 1973, o Código de Processo Civil de 2015 as ampliou ainda mais em seu artigo 190, o qual confere o poder às partes para adequarem aos seus casos quaisquer modificações procedimentais, abrindo o leque para alternativas atípicas jamais pensadas anteriormente. Nos demais artigos, a abordagem do Código de Processo Civil de 2015 acerca dos institutos negociais é exemplificativa, o que denota a necessidade presente de entregar maior liberdade às partes para que possam adequar a casuística às regras que melhor lhes sirvam. Pode-se pensar no instituto do Negócio Processual como uma ferramenta positiva porque permite maior previsibilidade da causa, de forma que sua adequação possa gerar menos tempo de litígio, menores gastos e redução de riscos. Ademais, cabe ressalvar que liberdade negocial pautada na vontade das partes em um Estado Democrático de Direito não há de ser absoluta, pois esbarra nas garantias de terceiros e até mesmo naquelas das próprias partes, das quais não se permite livre disposição. Essa premissa gera inquietude, sobretudo quanto aos limites das liberdades das partes. A delimitação do tema: “impenhorabilidade” busca revelar as barreiras determinadas pelo legislador e pela interpretação jurisprudencial, a qual já relativizou diversas vezes a impenhorabilidade de bens, reduzindo o instituto a situações cada vez mais limitadas. Um questionamento que surge é: até quando existirá impenhorabilidade de bens? Se até o bem de família que visa garantir o mínimo existencial vem sendo relativizado, como no caso do fiador que não pode opor esta garantia ao contrato de aluguel. Ora, é possível que as brechas da impenhorabilidade sejam livremente alargadas nas avenças pelas partes? 2 A NATUREZA JURÍDICA DA PENHORA O processo de execução visa a satisfação da prestação jurisdicional e o objetivo dessa fase, de modo geral, é a expropriação de bens do devedor. Um dos atos que serve para garantir a execução é a penhora, que delimita os bens que irão responder pela execução e impede que sejam desviados para outros fins que não sejam o pagamento ao credor. 3 Para Araken de Assis, a penhora tem natureza principal de constrição: “a penhora é o ato executivo que afeta determinado bem à execução, permitindo sua ulterior expropriação, e tornando os atos de disposição do seu proprietário ineficazes em face do processo”.2 Marinoni e Arenhart constroem o conceito de penhora do ponto de vista da individualização dos bens do devedor: A penhora é o procedimento de segregação dos bens que efetivamente se sujeitarão à execução, respondendo pela dívida inadimplida. Até a penhora, a responsabilidade patrimonial do executado é ampla, de modo que praticamente todos os seus bens respondem por suas dívidas. Por meio da penhora, são individualizados os bens que responderão pela dívida objeto de execução. Assim, a penhora é o ato processual pelo qual determinados bens do devedor (ou de terceiro responsável) sujeitam-se diretamente à execução.3 A preocupação de Marinoni e Arenhart tem importantes consequências para os institutos da fraude contra credores, contra a execução e quanto ao depositário infiel do bem penhorado. Após a realização da penhora, os bens constritos tornam-se indisponíveis para o devedor, que não pode aliená-los ou onerá-los eficazmente4. A penhora também possui o condão de estabelecer o direito de preferência entre os credores, ou seja, havendo duas execuções distintas e o mesmo bem é penhorado por ambas o valor obtido com sua alienação deverá ser destinado ao exequente que obteve a primeira penhora. Veja-se o que diz código processual a respeito: Art. 797. Ressalvado o caso de insolvência do devedor, em que tem lugar o concurso universal, realiza-se a execução no interesse do exequente que adquire, pela penhora, o direito de preferência sobre os bens penhorados. Parágrafo único. Recaindo mais de uma penhora sobre o mesmo bem, cada exequente conservará o seu título de preferência. Conclui-se, portanto, que a penhora possui efeitos de conservação, individualização e preferência sobre o bem penhorado. É direito de ambas as partes, em respeito ao princípio do menor sacrifício do executado e também visando à eficiência da execução pelo princípio aplicável da máxima utilidade na execução, que possam substituir a penhora dando preferência a bens que por lei, ato judicial ou contrato tenham sido destinados à satisfação da dívida (art. 848, II) a bens 2ASSIS, Araken de.Manual da execução. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.592. 3MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de execução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.258. 4Id. 4 desembaraçados de ônus (art. 848, IV), bens fora da comarca de execução (art. 848, III), bens de maior liquidez (art. 848, V), entre outras preferências enumeradas no código processual. Wambier e Talamini identificam três características intrínsecas à natureza jurídica da penhora, quais sejam: 1) é um ato público e estatal, e não privativo do credor, mesmo que em seu interesse; 2) não tem caráter contratual e não se confunde com os direitos reais de garantia; 3) tem natureza executiva, é ato típico do processo de execução que dá início à atividade executiva propriamente dita. 5 Ademais, salientam os ilustres autores que a natureza da penhora não é cautelar: Apesar de também ter função conservativa, a penhora não é ato de natureza cautelar. Sua finalidade principal não é a de conservar o bem. Mais do que isso, a penhora visa a qualificar o bem penhorado, para futuramente ser “transformado” em dinheiro. A conservação é secundária e instrumental em relação a este outro fim. 6 Os requisitos para se efetuar a penhora de bens são rigorosos nos ditames da lei. Os casos em que as partes alegam impenhorabilidade diversas vezes são utilizados para se esquivar do pagamento ao credor. Por isso, os tribunais têm sido cautelosos no seu deferimento para assegurar apenas as situações expressamente previstas em lei. Neste sentido, verifica-se na ementa da decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina abaixo, que ressalva que a impenhorabilidade deve ser comprovadanos moldes legais. O caso concreto tratou da possibilidade de penhora da pequena propriedade rural porque não cumpriu o requisito de ser trabalhada pela família: AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DECISÃO QUE RECONHECEU A IMPENHORABILIDADE DE PEQUENA PROPRIEDADE RURAL. INSURGÊNCIA DA PARTE CREDORA. ALEGAÇÃO DE QUE A PROPRIEDADE NÃO É TRABALHADA PELA FAMÍLIA DO EXECUTADO E NÃO SERVE COMO ÚNICA FONTE DE RENDA PARA O SEU SUSTENTO. ACOLHIMENTO. CONJUNTO PROBATÓRIO DOS AUTOS QUE NÃO COMPROVA O PREENCHIMENTO DO REQUISITO PREVISTO NO ART. 833, INC VIII, DO CPC IMPRESCINDÍVEL PARA AFASTAR A CONSTRIÇÃO. PRECEDENTES DO STJ. IMÓVEL OBJETO DA PENHORA QUE É ARRENDADO VERBALMENTE PARA TERCEIRO. RENDA FAMILIAR PROVENIENTE DO ARRENDAMENTO DA TERRA, DO COMÉRCIO DE ANIMAIS (BOVINOS CHARDONÊS) CRIADOS EM OUTRA PROPRIEDADE E DOS PROVENTOS DE SUA CÔNJUGE QUE EXERCE ATIVIDADE PROFISSIONAL EM AGÊNCIA 5 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, volume 2: Execução. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 218. 6 Id, p.221. 5 BANCÁRIA.PEQUENA PROPRIEDADE RURAL NÃO TRABALHADA PELA FAMÍLIA DO EXECUTADO. PROTEÇÃO DA IMPENHORABILIDADE AFASTADA. DECISÃO REFORMADA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.7 É importante destacar que o ato de penhora não transfere a propriedade do bem, mas torna ineficazes as disposições de ônus real ou alienação sobre ele desde a lavratura do termo ou auto de penhora, independente de depósito. Uma vez averbada a penhora no órgão de registro respectivo, haverá presunção de má-fé8 em relação aos terceiros que participarem de atos que resultem na diminuição da negociabilidade do bem. 9 2.1 DISPONIBILIDADE DO DIREITO DO DEVEDOR EM RELAÇÃO AOS BENS LEGALMENTE IMPENHORÁVEIS Evidentemente que, se a penhora de bens acarreta ineficácia quanto aos negócios jurídicos sobre seu objeto, não será livre a disposição do bem pelo devedor. E se o devedor é, ao mesmo tempo, depositário do bem, além de não possuir mais liberdade de fazer o que quiser com este patrimônio, deve restituir a coisa imediatamente quando requisitada pelo juiz. Do contrário, será considerado depositário infiel, sujeito à prisão civil. O Código de Processo Civil, em seu art. 832, ressalva os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis, listando no artigo seguinte bens protegidos da execução, tais como móveis e utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, vestimentas, utensílios úteis ao exercício da profissão, seguro de vida, vencimentos, pequena propriedade rural, poupança até o limite de 40 salários mínimos, entre outros. Recente julgado do TRF da 4ª Região tratou de caso em que a União, agravante, requereu penhora de bem em razão de dívida deixado pelo de cujus sob o argumento de que após a partilha o bem seria dividido entre os herdeiros e, portanto, perderia sua “essência” de bem de família. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região entendeu ser incabível a penhora por considerar o bem impenhorável nos ditames da Lei de Família (Lei 8.009/90) porque a viúva do de cujus reside no imóvel e está protegida pela referida lei: 7 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento n. 4034729- 14.2018.8.24.0000, Relatora Desembargadora Haidée Denise Grin, Florianópolis, 07 nov. 2019. Disponível em <http://busca.tjsc.jus.br/jurisprudencia/#resultado_ancora>. Acesso em: 11 nov. 2019. 8 Vide súmula 375 do STJ. 9 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de execução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.258. 6 AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. HIPÓTESE DE IMPENHORABILIDADE. BEM DE FAMÍLIA. 1. Nos termos do art. 1.792 do Código Civil, os sucessores só respondem pela dívida do devedor falecido até as forças da herança recebida. A disposição é repetida no art. 1821 do Código Civil. As informações constantes da ação de inventário dão conta de que o único bem de propriedade do de cujus era o imóvel que serve de residência à viúva. 2. De acordo com o disposto na Lei 8.009/90, o imóvel utilizado para residência do executado e de sua família não é passível de constrição, desde que seja o único de sua propriedade. Hipótese que enseja a manutenção da decisão indeferiu a penhora do referido bem.10 O procedimento de penhora é realizado, primeiramente, dando a oportunidade ao executado em oferecer um bem que lhe importe menos encargos, tendo como exemplo um imóvel que não utiliza, investimentos financeiros ou seguro fiança. Coloca-se em evidência o princípio do menor sacrifício do executado, diminuindo o peso da execução na medida do possível, evitando que o Estado, sem saber das condições de vida do devedor, restrinja bens que podem lhe trazer maior gravame comparados a outros bens que possua. Quando o executado se queda inerte, está silenciando sobre seu direito de escolha, o que possibilita que seja autorizada a penhora da forma preferencial (art. 835 CPC/15) pela ordem legal: dinheiro, títulos da dívida pública, títulos e valores mobiliários com cotação em mercado, e outros. A ordem preferencial tem como escopo principal garantir o crédito partindo do resultado mais útil ao credor ao mais dificultoso, por este motivo que primeiro se penhora dinheiro. Quando a impenhorabilidade se dá pela natureza alimentar, é determinante para o executado demonstrar que de fato a verba possui esse atributo, do contrário estará permitida a constrição de valores em conta. O TRF da 4ª Região já proferiu decisão considerando que a conta da pessoa jurídica pode ser penhorada porque não detém natureza alimentar: AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. BACENJUD. BLOQUEIO DE VALORES. IMPENHORABILIDADE NÃO RECONHECIDA. 1. Se o executado, após ser citado, não oferecer bens à penhora suficientes à garantia do débito, fica autorizado o bloqueio de ativos financeiros, via BACENJUD. 2. Estando os valores depositados em conta 10 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Agravo nº 5033414-22.2018.4.04.0000/SC. Relatora Desembargadora Federal Vânia Hack de Almeida. Porto Alegre, 12 nov. 2019. Disponível em: <https://jurisprudencia.trf4.jus.br/pesquisa/inteiro_teor.php?orgao=1&numero_gproc=40001382791&versao_gpr oc=3&crc_gproc=c5714c1f&termosPesquisados=aW1wZW5ob3JhYmlsaWRhZGU=>. Acesso em: 14 nov. 2019. 7 bancária de titularidade de pessoa jurídica, e não em nome do trabalhador assalariado pessoa física, não detêm natureza alimentar e não são equiparados a salário (art. 833, IV, do NCPC) porque, em conjunto com as demais receitas, compõem o faturamento da sociedade - que se destina a cobrir suas despesas operacionais, tais como insumos, fornecedores e tributos -, sendo, portanto, penhoráveis.11 Ressalte-se, por oportuno, que a penhora não pode abarcar valores proporcionalmente excessivos a ponto de inviabilizar a atividade empresarial. No que concerne à impenhorabilidade determinada pelo art. 833 do CPC/15, cabe melhor análise de um dos incisos (I) que contém relação com o presente estudo, o qual trata sobre “os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução”. Neste ponto, a lei processual permite a declaração de vontade da sujeição do bem à execução, tornando-o inalienável. A exemplo disso, um bem de família instituído pelo proprietário a partir da averbação no registro daquele bem. A interpretação da referida legislação em harmonia com o art. 1.911 do Código Civil permite inferir que a cláusula de inalienabilidade disposta por atos de liberalidade significa também impenhorabilidade: Art. 1.911. A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade.12 Se a lei permite que a vontade de um sujeito capaz decrete inalienabilidade e impenhorabilidade por meio de um testamento, por exemplo, ato voluntário e unilateral, é possível entender que o contrato (interesses opostos) e a convenção (interesses convergentes) de partes também possam. Todavia, o Código de Processo Civil ressalvaque a impenhorabilidade não é oponível à execução de dívida relativa ao próprio bem, e também inaplicável quanto às prestações alimentícias e o que excede 50 salários-mínimos mensais.13 Aliás, a Lei processual abarca no rol de impenhoráveis os equipamentos, implementos e máquinas agrícolas de pessoas físicas ou empresa individual produtora rural para conferir-lhes proteção jurídica em razão de sua vulnerabilidade. Entretanto, a regra não se aplicará se tais bens estiverem vinculados ao financiamento do qual seja a própria garantia da dívida. 11 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Agravo nº 5018558-87.2017.404.0000, PRIMEIRA TURMA, Relator Desembargador Federal Jorge Antonio Maurique. Porto Alegre 23 jun. 2017. Disponível em: <https://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=consulta_processual_resultado_pesquisa&txtValor=501855 88720174040000&selOrigem=TRF&chkMostrarBaixados=&selForma=NU&hdnRefId=&txtPalavraGerada=>. Acesso em: 14 nov. 2019. 12 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Brasília, DF, artigo 1.911. 13BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF, art. 833, §§1º e 2º. 8 Também não será aplicada neste caso, como em todos os outros, com relação à dívida de natureza alimentar, contra qual nenhuma impenhorabilidade é oponível. Contudo, a lei traz ainda, especificamente para estes casos, a possibilidade de penhora por dívida trabalhista ou previdenciária, presumindo que ainda mais vulneráveis estão aqueles que laboram para tal empregador rural.14 Recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reforçou que a vontade e aceitação das partes deve se pautar na boa-fé e que a alegação de desconhecimento sobre algo que se concordou não pode ser invocada sem que tenha havido erro essencial sobre a coisa ou pessoa controversa: APELAÇÃO CÍVEL. ANULAÇÃO DE ACORDO JUDICIAL. PARTILHA DE BENS. NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL. TRANSFERÊNCIA DE DOMÍNIO. NULIDADE E ANULABILIDADE. AUSÊNCIA DE VÍCIOS NA TRANSAÇÃO. 1. Pretensão declaratória de nulidade ou anulabilidade de acordo judicial. 2. É nulo o negócio jurídico quando seu objeto for ilícito, impossível ou indeterminável, ex vi do art. 166 do Código Civil. 3. A matrícula do bem que coube ao autor na partilha era de conhecimento comum, dela nunca tendo constado a ré como proprietária registral do imóvel, fato que não impediu o demandante de aceitar o acordo judicial homologado, demonstrando concordância com o fato de que o que estava em jogo na transação não era tanto a transmissão imediata dos direitos registrais sobre os bens mas a partilha dos direitos de posse fática e uso a eles inerentes, divisão que eventualmente refletiria, quando e se possível, na alteração dos títulos e registros. 4. Na forma do art. 849 do Código Civil, a transação só se anula por dolo, coação, ou erro essencial quanto à pessoa ou coisa controversa. Sendo fato incontroverso que o autor tinha total conhecimento da situação registral do bem quando da realização do acordo, erro essencial quanto à coisa não existiu.15 Por fim, não se pode esquecer que, embora inalienáveis os bens, a lei permite que seus frutos e rendimentos sejam penhoráveis.16 14 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF, art. 833, §3º. 15 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70080753809. Relatora Desembargadora Mylene Maria Miche. Porto Alegre, 11 abr. 2019. Disponível em: http://www.tjrs.jus.br/site/busca-solr/index.html?aba=jurisprudencia>. Acesso em: 13 nov. 2019. 16 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF, art. 834. 9 3 NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL Negócio jurídico é a matriz da qual surgem negócios específicos dentro dos diferentes ramos do Direito. Existem negócios jurídicos administrativos (contratos administrativos, autocomposição, transação por adesão, composição extrajudicial de conflitos, estabelecidos na Lei 13.140/15), tributários (calendarização da execução fiscal; plano de amortização do débito fiscal; aceitação, avaliação, substituição e liberação de garantias; e modo de constrição ou alienação de bens)17, penais e processuais penais (delação premiada e transação penal), bem como os processuais civis, tema de análise desta pesquisa. Primeiramente, contextualizando o negócio jurídico, convém brevemente classificá- lo na teoria dos fatos jurídicos para melhor entendê-lo. Sebastião de Assis Neto, Marcelo de Jesus e Maria Izabel de Melo conceituam o fato jurídico em sentido estrito como sendo aquele que, embora não tenha ação humana, produz efeitos jurídicos, exemplificando a morte natural de uma pessoa, ou um estouro de rebanho vendido e ainda não entregue: São fatos jurídicos em sentido estrito ou naturais aqueles capazes de gerar efeitos jurídicos como criar, modificar, resguardar, transferir ou extinguir direitos sem o concurso da ação humana.18 (grifos nossos) A importância na diferenciação entre o fato jurídico natural e os atos jurídicos é de extrema relevância, pois permite que a responsabilidade civil pelo dano seja excluída em casos fortuitos ou de força maior. Outrossim, os autores conceituam o ato jurídico como aquele em que é necessária a ação humana para que produza efeitos: O ato jurídico, por sua vez, é o fato jurídico lato sensu que, para recorrer, depende da ação humana para gerar os efeitos de criar, extinguir, conservar, transmitir ou modificar direitos.19 (grifos nossos) 17 Portaria PGFN 742, de 21 de dezembro de 2018. Disciplina, nos termos do art. 190 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, a celebração de negócio jurídico processual - NJP em sede de execução fiscal, para fins de equacionamento de débitos inscritos em dívida ativa da União. Disponível em: <http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=97757>. Acesso em: 12 nov. 2019. 18 ASSIS NETO, Sebastião de; JESUS, Marcelo de; MELO, Maria Izabel de. Manual de direito civil. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 347. 19 Id. 10 Dentro da categoria de atos jurídicos existem atos negociais e não negociais (estes, por sua vez, também chamados de atos jurídicos stricto sensu). No ato jurídico não negocial há ação humana decorrente da vontade, contudo os efeitos decorrentes não dependem dessa vontade, pois derivam diretamente da lei. Nas palavras dos exímios autores: [...] no ato jurídico não negocial, o agente realiza sempre pela ação humana e em decorrência de sua vontade, entretanto, os efeitos jurídicos daí decorrentes não dependem dessa vontade, já que derivam diretamente da lei. Já no ato-fato jurídico, temos ato jurídico no sentido de que a sua ocorrência depende de ação humana, no entanto, não é necessária a vontade para a sua prática ou esse elemento volitivo é irrelevante.20 (grifos do autor) Atos jurídicos negociais são, portanto, aqueles em que tanto a prática quanto os efeitos dependem da vontade humana. A declaração de vontade é um atributo deste ato, sendo que na falta dela surgirá o que a doutrina denomina de “vício de consentimento”. Logo, o negócio jurídico é um ato jurídico negocial. Os negócios jurídicos expressam a vontade humana em produzir efeitos jurídicos e, portanto, estão amparados no princípio da autonomia da vontade, a exemplo de um contrato de compra e venda, em que uma parte tem intenção de vender e a outra a intenção de comprar determinado bem. Negócio jurídico, portanto, é o ato cuja prática e efeitos são derivados da vontade humana. Quer dizer que, para que determinada pessoa possa alienar uma coisa, por exemplo, ela deve ter a vontade livre e consciente não só de praticar a venda, mas, também, de gerar os seus efeitos, ou seja, a transmissão da propriedade.21 (grifos nossos) Os negócios podem ser realizados com intenções variadas de produção de efeitos jurídicos, pretendendo a aquisição, extinção, modificação ou extinção de um direito. Historicamente, Pedro Henrique Nogueira situao negócio jurídico no final do século XVIII, na Alemanha: 20 ASSIS NETO, Sebastião de; JESUS, Marcelo de; MELO, Maria Izabel de.Manual de direito civil. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 347. 21 Id, p. 350. 11 Coube, assim, aos pandectistas22, já no final do século XIX e, ainda, no início do século XX, sistematizar a noção do negócio jurídico (Rechtsgeschäft), que havia surgido em sua forma primária no século XVIII.23 A autonomia da vontade dentro do negócio jurídico possibilita maior adaptabilidade e facilitação do processo conforme os interesses e as qualidades das partes. Neste sentido, Pedro Henrique Nogueira salienta o vínculo intrínseco do negócio jurídico com a liberalidade individual própria do direito privado: A gênese histórica do conceito de negócio jurídico mostra o seu acentuado traço liberal-individualista, mesmo porque relacionado diretamente à ideia de “autonomia privada” como espectro de livre ação dos indivíduos - fórmula consagradora da prevalência do resguardo dos interesses individuais de feições liberais em face do Estado. 24 O autor frisa que os negócios eram comumente utilizados no direito Romano e explica o procedimento inicial judicial, similar à audiência prévia de conciliação existente hoje: Figuras a respeito de cujo caráter negocial se discute hoje, em doutrina e na jurisprudência, não eram estranhas ao direito romano. Já na fase da legis actiones, durante a primeira etapa do procedimento (in iure), as partes contrapostas compareciam perante o magistrado (normalmente o pretor) e acordavam a solução da controvérsia ao iudex privado, formando a litis contestatio, com o compromisso de participar do juízo apud iudiciem e aceitar o respectivo julgamento a ser feito na fase seguinte.25 Devido a isso, estudiosos do direito destacam o caráter contratual ou negocial da “litiscontestação” em Roma.26 E no âmbito processual, os negócios jurídicos tiveram James Goldschmidt como precursor da teoria “cláusula aberta negocial” trazida pelo art. 190 do CPC/15: 22 “A Escola Pandectista se desenvolveu na Alemanha apoiada na tradição romanística. A escola leva este nome porque seus adeptos estudavam, principalmente, a segunda parte do Corpus juris civilis, de Justiniano, as Pandectas, normas de Direito Civil com respostas de jurisconsultos”. Disponível em: <https://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/5128850>. Acesso em: 11 nov. 2019. 23 NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídicos processuais. Salvador: Editora Jus Podivm, 2018. p. 140. 24 Id, p. 141. 25 Id, p. 159. 26 Id. https://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/5128850 12 James Goldschmidt foi o primeiro a tratar dos atos processuais com conotação de negócio jurídico e essa elaboração serviu de base para a teoria de vários processualistas clássicos. Utiliza-se o conceito por ele elaborado para explicar os negócios jurídicos processuais por se acreditar ser a teoria que melhor conota o que se entende por “convenções processuais” conforme o art. 190 prevê - denominando-a “cláusula aberta negocial”27 Os negócios processuais têm sido alvo de diversas discussões doutrinárias no Brasil após a publicação do Código de Processo Civil em março de 2015. Todavia, reitera-se na doutrina que não são novidade deste código, já sendo praticados na vigência do código de 1973, embora de forma tímida. Ainda assim, após o CPC/15 ter sido mais enfático sobre o tema, pouco se vê, na prática, os advogados esclarecerem e orientarem as partes no sentido de “customizarem” o processo. Embora seja um instituto considerado pertencente à “advocacia de elite” nos tempos atuais, é previsível sua ampliação à medida que se popularize e possibilite a visualização de benefícios, uma vez que aquele que deseja redução do tempo de litígio, e o enfrentamento de riscos de forma mais previsível e palpável, verá no instituto um excelente aliado. Cristina Reindolff Motta e Gabriela Samrsla Möller tecem comentários a respeito do papel do juiz nos negócios processuais: O CPC/15 ampliou consideravelmente situações de flexibilização do procedimento, autorizando as partes disporem do procedimento. Nesse sentido, o juiz somente poderá recusar a validade desses acordos quando se defrontar com nulidade, de inserção abusiva em contrato de adesão ou quando verificar situação de vulnerabilidade de uma das partes.28 Em se tratando de jurisdição, a negociação se dá de forma regulada porque o exercício da função pública envolve princípios de direito público e a condução dos procedimentos de forma ordenada visando o bem comum. Apesar disso, é possível conduzir o processo de forma menos engessada conferindo liberdade às partes a fim de “personalizarem” suas demandas. 27 MOTTA, Cristina Reindolff da; MÖLLER, Gabriela Samrsla. A abertura hermenêutica das convenções processuais à execução: pela busca da satisfatividade da tutela do direito material. In: MARCATO, Ana et al (Org.). Negócios Processuais. Salvador: Jus Podivm, 2017. p. 83. 28 Id, p.100. 13 Recente julgado do TJSC (nov. 2019) formou mais um precedente ao considerar a vontade das partes indiscutível, não lhe cabendo determinação em contrário na hipótese de direito que admita a autocomposição e não fira normas absolutas de competência. Veja-se: PROCESSUAL CIVIL - DISPENSA DE PRODUÇÃO DE PROVAS POR AMBAS AS PARTES - JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE - REQUERIMENTO EXPRESSO - NEGÓCIO JURÍDICO BILATERAL - INVERSÃO DO ÔNUS PROBATÓRIO - IMPOSSIBILIDADE Se as partes expressamente, e por acordo mútuo, dispensam a produção de provas e requerem o julgamento antecipado da lide, não pode o juiz simplesmente ignorar a manifestação de vontade e determinar a inversão do ônus da prova. "Tem-se aí típico exemplo de negócio jurídico processual unilateral, quando a manifestação de vontade vem de apenas uma das partes; bilateral, quando de ambos os polos. Se válido, o juiz não pode ignorar esse ato de vontade. Se o fizesse, isso seria o mesmo que negar às partes o protagonismo da cena processual, assumindo-o somente para si" (DIDIER Jr, Fredie. BRAGA, Paula Sarno, OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. 11 ed. Salvador; Ed. Jus Podivm, 2016. p. 94-95).29 (grifos nossos) Outrossim, é possível que as partes apliquem o negócio jurídico processual pela simples escolha do rito que melhor lhes convém, como no caso concreto, julgado pelo TJRS, relatado abaixo: Observo que, em que pese a presente demanda tenha sido aforada em 27.07.2016, como dão conta as informações do processo no site do Tribunal de Justiça, já, portanto, sob a vigência do NCPC, tanto as partes como o Juízo de Origem trataram a demanda como se fosse a exibição de documentos prevista no CPC/1973. Inclusive, a douta magistrada sentenciante valeu-se de jurisprudência aplicável à medida cautelar de exibição de documentos. Portanto, se as próprias partes assim dispuseram e houve aceitação do Juízo, é sob essa ótica que o apelo é examinado, aplicando-se, por analogia, o art. 190 do NCPC e já adiantando que entendo não merecer provimento o recurso.30 29 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento n. 4004625- 39.2018.8.24.0000. Relator Desembargador Luiz Cézar Medeiros. Florianópolis, 12 jun. 2018. Disponível em <http://busca.tjsc.jus.br/jurisprudencia/#resultado_ancora>. Acesso em: 14 nov. 2019. 30 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n.70077070027. Ação de exibição de documentos. Demanda aforada sob a égide do NCPC, contudo tratada pelas partes como se fosse a anterior medida cautelar de exibição de documentos existente no cpc/1973. Aplicação do artigo 190 do NCPC, por analogia. negócio jurídico processual. Relatora: Desembargadora Lusmary Fatima Turelly da Silva. Porto Alegre, 30 mai. 2018. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site/busca-solr/index.html?aba=jurisprudencia>. Acesso em 09 nov. 2019. 14 Nota-se do caso acima que o acordo de vontades uma vez pactuado gera “lei entre as partes”, não podendo uma delas se esquivarde sua aplicação. Conquanto o Direito do Processual Civil seja ramo do direito público, não é motivo, por si só, para obstar a vontade das partes em decidir a melhor forma de encaminhar o seu processo. A atividade jurisdicional é a resolução dos conflitos pelo Estado, aplicando a lei de forma justa e pacificando as relações entre os indivíduos. Conferir liberdade processual às partes não significa permitir ilegalidades ou abusos, e por isso deve o juiz aplicar as regras particulares em consonância com as normas jurídicas. O juiz é o fiscal da legalidade em sentido amplo. A lei permite a mudança de procedimentos quando o processo versar sobre direito que admita autocomposição. É importante destacar que a questão da disponibilidade do direito não é um óbice à convenção das partes no tocante aos procedimentos, visto que um direito indisponível pode admitir autocomposição como, por exemplo, um acordo sobre a forma e valor de pagamento em ação de alimentos. A autocomposição não implica, necessariamente, em abrir mão de um direito, mas pode versar sobre a forma de exercê-lo. Além disso, tem-se como exemplo a lei de mediação e autocomposição no âmbito da administração pública (Lei 13.140 de 26 jun. 2015) que estabelece em seu art. 3º: “Art. 3º Pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação”31. Na seara pública, Maria Sylvia Zanella Di Pietro também adverte que a disponibilidade não deve ser confundida com liberdade irrestrita de disposição: Também é preciso tomar cuidado com o vocábulo disponível. Ele pode dar a errônea impressão de que significa livre disposição, liberalidade. Mas não é esse o sentido correto. Quando se diz que os bens dominicais são disponíveis, é apenas no sentido de que eles podem ser objeto de negociação pelo poder público, por meio de institutos regidos pelo direito privado, como compra e venda, locação, permuta, doação. Eles podem ser objeto de relações regidas pelo direito privado exatamente porque, enquanto não têm destinação pública, são passíveis de valoração econômica. 32 No que se refere ao processo civil, o CPC/15 prescreve no art. 190 que o requisito para um negócio jurídico processual atípico é que versem sobre direitos que admitam autocomposição: 31 BRASIL. Lei 13.140 de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13140.htm>. Acesso em: 13 nov. 2019. 32 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 1.077. 15 Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.33 O parágrafo único do artigo 190 estabelece que o juiz controlará a validade das convenções e, nesse sentido, o juiz atua como fiscal da lei e dos princípios norteadores do direito de forma que em caso de nulidade, abusividade, ou manifesta vulnerabilidade deverá atuar de ofício, ou a requerimento, para restabelecer a ordem. 3.1 OS LIMITES OBJETIVOS DE VALIDADE DO NEGÓCIO PROCESSUAL Embora os negócios processuais tenham por objeto um ajuste de procedimentos relacionado ao processo, e realizado pelas partes, pertencem eles à categoria geral de negócios jurídicos regidos pelo Código Civil no quesito validade, tal como destaca Julio Guilherme Müller: Um negócio processual é um negócio jurídico, mas cuja matéria diz respeito a um processo em curso ou faz referência a um processo futuro e incerto. Por tal razão - simplista, mas determinante- as convenções processuais atípicas se submetem igualmente ao regime de validade do Código Civil.34 Para que haja negócio jurídico é necessária a declaração da vontade com intenção de atingir uma finalidade. No plano de existência da escada Ponteana (existência, validade e eficácia do negócio jurídico), tem-se a premissa de que sem a vontade não existe negócio jurídico, mesmo que esta seja viciada. O vício na vontade interfere no plano da validade e não 33 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm>. Acesso em: 8 nov. 2019. 34 MÜLLER, Julio Guilherme. Negócios processuais e desjudicialização da produção da prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p.136. 16 da existência.35 Em razão disso, o negócio jurídico pode ser inválido mesmo que exista e tenha eficácia no mundo jurídico. No plano da validade, os requisitos aplicáveis aos negócios jurídicos estabelecidos pelo Código Civil, no artigo 104, requerem a existência de agente capaz, objeto lícito, possível e determinável e forma prescrita não defesa em lei, de sorte que também são aplicáveis aos negócios jurídicos processuais, tornando-os passíveis de nulidade quando do seu descumprimento. O princípio da liberdade das formas, descrito no artigo 107 do Código Civil, estabelece que a validade da declaração de vontade independe de forma especial, exceto quando a lei determinar, veja-se: Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.36 No Direito Civil, a liberdade e autorregramento da vontade das partes está mais presente porquanto é ramo do direito privado, onde faz sentido que as relações sejam mais determináveis pela liberalidade. Quanto à autonomia entre o negócio principal e o processual, Fredie Didier Jr. entende ser aplicável, por analogia à lei de arbitragem, a regra da autonomia da convenção processual, de forma que sua invalidade pode ser declarada do forma independente do negócio principal37: A convenção processual é autônoma em relação ao negócio principal em que estiver inserida. A invalidade do negócio principal não implicará, necessariamente, a invalidade da convenção processual. 38 A diversidade possibilitada pelo autorregramento da vontade é ampla, permitindo que as partes tenham poder de escolha conforme as idiossincrasias de suas circunstâncias e valores pessoais. Nesta perspectiva, Pedro Henrique Nogueira define o autorregramento da vontade: 35 ASSIS NETO, Sebastião de; JESUS, Marcelo de; MELO, Maria Izabel de.Manual de direito civil. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 370. 36 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 10 nov. 2019. 37 No mesmo sentido, o Fórum Permanente de Processualistas Civil no enunciado nº 409. 38 DIDIER, Fredie Jr. Ensaios sobre os negócios jurídicos processuais. Salvador: Editora Juspodivm, 2018. p. 33. 17 Parece-nos que o autorregramento da vontade se define como um complexo de poderes, que podem ser exercidos pelos sujeitos de direito, em níveis de amplitude variada, de acordo com ordenamento jurídico. Do exercício desse poder, concretizado nos atos negociais, resultam após a incidência da norma jurídica, situações jurídicas (e não apenas relações jurídicas). 39 Julio Guilherme Müller conclui que a verificação dos efeitos produzidos pelo negócio jurídico, ou a existência de mais de uma opção no ordenamento jurídico, não são suficientes para distingui-los dos atos jurídicos em sentido estrito: A insuficiência do critério, a nosso ver, reside atualmente na abertura do sistema para que as partes possam modificar o procedimento e os seus ônus, poderes, faculdades,deveres, de acordo com a vontade. Com inserção, no ordenamento de uma cláusula geral de negócio processual (CPC, art 190), há uma abertura do sistema processual para o autorregramento da vontade. É claro que esta abertura não significa permissão para que a vontade regule toda e qualquer situação, pois existem limitações[...]. No entanto, quando o autorregramento ou a vontade viola estes limites, estaremos tratando dos defeitos, ou da validade do negócio, se sancionar o defeito ou de recusar-lhe aplicação ou eficácia à vontade.40 O Código Civil estabelece que a interpretação dos negócios jurídicos deve seguir os seguintes princípios: prevalência da intenção dos agentes (art. 112), boa-fé (art. 113) e interpretação restritiva dos negócios benéficos (art. 114). Reza o princípio da prevalência da intenção dos agentes que nas declarações de vontade deve ser atendida, preferencialmente, a intenção nelas consubstanciada em detrimento do sentido literal da linguagem. Visa o direito proteger a vontade das partes diante da possibilidade de linguagem confusa ou contrária à intenção da parte. O princípio da boa-fé é essencial no que tange a todos os negócios jurídicos. Este princípio divide a ciência e a ignorância a respeito do negócio e os torna comprometedores da validade porque interferem na vontade do agente, que não teria realizado o negócio se soubesse de determinadas circunstâncias e, como consequência, geram um vício no consentimento. Ademais, devem as partes realizar o negócio isentas de intenções maliciosas que prejudiquem uma a outra. No que concerne à interpretação restritiva dos negócios benéficos, Sebastião de Assis Neto, Marcelo de Jesus e Maria Izabel de Melo esclarecem que “não se pode interpretar de 39 NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídicos processuais. Salvador: Jus Podivm, 2018. p. 156. 40 MÜLLER, Julio Guilherme. Negócios processuais e desjudicialização da produção da prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p.38. 18 maneira extensiva o conteúdo da intenção de beneficiar, sob pena de injusto empobrecimento daquele que fez o bem ao terceiro”.41 Dessarte, o Código Civil, no art. 11442, delimita a interpretação e a renúncia a fim de que tais atos não produzam efeitos além da principal intenção do negócio. Relativamente às nulidades no código processual, o artigo 283, parágrafo único, determina que devem ser aproveitados os atos que não acarretem prejuízo às partes. Trata-se do princípio da instrumentalidade das formas, pois a essência do ato deve ser preservada acima da forma, quando não resultar em prejuízo ou ofensa à lei. Em que pese a ampla liberdade que as partes têm para dispor negócios jurídicos processuais, vale lembrar que as normas cogentes não podem derrogadas por elas. Logo não se entende possível um negócio jurídico processual que tenha por objeto deveres processuais43 (arts. 77 e 78 do CPC/15). Outro requisito de validade dos negócios jurídicos é o respeito à ordem pública, determinado pelo parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.” Sob esta ótica, merece destaque o pensamento de Julio Guilherme Müller: A limitação legal da autonomia da vontade e subordinação à ordem pública é reflexo da influência da publicização do direito privado. O Estado Social, nessa perspectiva publicista, aplica instrumentos regulatórios que relativizam a força obrigatória dos negócios jurídicos, retratando uma espécie de dirigismo contratual.44 Nos negócios jurídicos em jurisdição brasileira que envolvam direito internacional, é igualmente indispensável a subordinação à ordem pública. Neste sentido, a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro dispõe no art. 17: “As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes45”. 41 ASSIS NETO, Sebastião de; JESUS, Marcelo de; MELO, Maria Izabel de. Manual de direito civil. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 359. 42 Art. 114: Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente. 43 AURELLI, Arlete Inês. Análise e limites da celebração de negócios jurídicos processuais. In: MARCATO, Ana et al (Org.). Negócios Processuais. Salvador: Jus Podivm, 2017. p. 51. 44 MÜLLER, Julio Guilherme. Negócios processuais e desjudicialização da produção da prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 154. 45 BRASIL. Decreto-lei n. 4.657 de 4 de setembro de 1942. Lei de introdução às normas do Direito Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657.htm> Acesso em: 12 nov. 2019. 19 3.2 OS NEGÓCIOS PROCESSUAIS NA EXECUÇÃO Enquanto o processo de conhecimento transforma o fato em direito, o papel da execução civil é possibilitar que esse direito tenha efetividade no mundo fático. A relevância do aprofundamento do tema se dá em virtude de o excesso de regras genéricas, em muitos casos, tornar a execução mais obstruída do que deveria ser para atingir o seu fim. Neste sentido: A execução judicial é procedimento que denota o poder do Estado para ver concretizado o direito material em prol daquele que o possui, utilizando-se para tal de seu poder sub-rogatório e coercitivo. Entretanto, observar esse procedimento unicamente pela ótica pública enseja na criação de um procedimento marcado pelo formalismo que pode se mostrar ineficiente.46 Como se pode observar na jurisprudência extraída do TJRS de 2011, os negócios jurídicos processuais aplicados em âmbito da Fazenda Pública já eram considerados válidos na execução, quando da aplicação da suspensão definida no art. 792 do CPC/73: APELAÇÃO CÍVEL. EXECUÇÃO FISCAL. IPTU. PARCELAMENTO DO DÉBITO. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. A moratória, de que é espécie o parcelamento, importa na suspensão da exigibilidade do crédito tributário (CTN- art. 151, VI). O art. 792 do CPC, sobre revelar negócio jurídico processual, contempla suspensão convencional do processo executivo pelo prazo concedido pelo credor até que o devedor cumpra voluntariamente a obrigação. Despropósito, por último, cogitar de prescrição quando em curso o parcelamento. Pendente condição suspensiva, o prazo prescricional resta interrompido e volta a fluir às inteiras quando deixa o devedor de cumprir o acordo. Apelo provido. Unânime. 47 (grifos nossos) São permissivos dos negócios jurídicos processuais em execução os princípios da máxima utilidade da execução e do menor sacrifício do executado, razão pela qual as partes 46MOTTA, Cristina Reindolff da; MÖLLER, Gabriela Samrsla. A abertura hermenêutica das convenções processuais à execução: pela busca da satisfatividade da tutela do direito material. In: MARCATO, Ana et al (Org.). Negócios Processuais. Salvador: Jus Podivm, 2017. p. 101. 47 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação cível n. 70041452624. Relator: Genaro José Baroni Borges. Porto Alegre, 11 mai. 2011. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site/busca- solr/index.html?aba=jurisprudencia>. Acesso em: 12 nov. 2019. 20 podem convencionar com intuito de extraírem dessa fase processual maior efetividade da jurisdição.48 A coercibilidade estatal, característica necessária à execução, permite que esta alcance a satisfatividade e entregue o objeto do litígio a quem de direito. Os atos executivos têm semelhança com os atos processuais, entretanto sua carga eficacial é muito diferente. O ato executivo busca a alteração no mundo natural pelo emprego da coerção Estatal para que se alcance a satisfatividade plena da jurisdição pela via Processual.49 Quando a execução se dá face a um particular, pode se tornar demasiadamente excessiva em razão de as regras pré estabelecidas na lei não contemplarem todos os possíveis litígios e suas especificidades. Issofaz com que o executado fique, em muitos casos, encurralado diante da impossibilidade fática de cumprir o pagamento. Em função disso é que os negócios jurídicos processuais se tornam peça chave para garantir o pagamento ao credor da forma que o devedor de fato possa pagar. Nessa lógica, Cristina Motta e Gabriela Möller: Não em se tratando de ente público, a inflexibilidade da Lei muitas vezes pode causar um afastamento do executado do processo, por saber as medidas a serem aplicadas em tempo que, frente a sua situação financeiro-fática, não se mostra uma possibilidade de adimplemento. 50 Haure-se da jurisprudência do TJSC a aplicabilidade de prolongamento de prazo de suspensão do processo, na fase de execução, além do tempo previsto em lei para permitir o pagamento de verbas alimentícias parceladas: O artigo trata das hipóteses de suspensão convencional do processo executivo. Trata-se de negócio jurídico processual, o qual está sujeito apenas e tão somente à verificação da validade pelo juiz. Não pode, portanto, o magistrado recusar-se a suspender o processo. É importante ressalvar que a suspensão de que trata o art. 922 não se confunde com aquela prevista para o processo de conhecimento no art. 313, II, sujeito a prazo 48AURELLI, Arlete Inês. Análise e limites da celebração de negócios jurídicos processuais. In: MARCATO, Ana et al (Org.). Negócios Processuais. Salvador: Jus Podivm, 2017. p. 54. 49 MOTTA, Cristina Reindolff da; MÖLLER, Gabriela Samrsla. A abertura hermenêutica das convenções processuais à execução: pela busca da satisfatividade da tutela do direito material. In: MARCATO, Ana et al (Org.). Negócios Processuais. Salvador: Jus Podivm, 2017. p. 103. 50 Id. 21 máximo de 6 meses, na forma do § 4°. Na hipóteses da suspensão do processo executivo, o prazo escolhido pelas partes poderá exceder os seis meses. Não há, também, qualquer relação entre a convenção do art. 922 e o prazo previsto nos parágrafos do art. 921, podendo o negócio jurídico processual realizado pelas partes prever que a paralisação temporária do processo executivo perdure por período superior a um ano. (CABRAL, Antonio do Passo. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 1299). Assim, tratando-se o caso em comento de processo de execução, e não de conhecimento, tem-se que equivocada a aplicação do artigo 313, II, do Código de Processo Civil de 2015, que dispõe: Art. 313. Suspende-se o processo [de conhecimento]: [...] II - pela convenção das partes [...] § 4° O prazo de suspensão do processo nunca poderá exceder 1 (um) ano nas hipóteses do inciso V e 6 (seis) meses naquela prevista no inciso II. [...] Destarte, correta é a reforma do decisum combatido, com o consequente retorno dos autos à origem e suspensão da execução até o total pagamento do débito alimentar ou eventual descumprimento da obrigação.51 (grifos nossos) Quando é interesse das partes resolver o litígio da forma mais amigável, é justo que se utilizem dos negócios processuais. Neste caso, uma das partes está abrindo mão da coercibilidade estatal imediata para permitir que o devedor pague a verba alimentícia de acordo com suas possibilidades. Diante da evidente boa-fé das partes, não cabe ao magistrado negar a suspensão e determinar a extinção do feito visto que o acordo não gera abuso ou ilegalidades. No caso concreto, a sentença foi de extinção com resolução de mérito por entender o magistrado não ser hipótese legal de suspensão em razão de ultrapassar o prazo legal, ato em que homologou o acordo de parcelamento entre as partes. Contudo, a parte autora recorreu irresignada com o direcionamento do magistrado, pois apenas acordou com o parcelamento da dívida e suspensão, o que não implicaria em adimplemento pelo devedor, devendo o processo ser extinto apenas após o integral pagamento. 4 A VALIDADE DE CONVENÇÃO PROCESSUAL: AMPLIAÇÃO OU REDUÇÃO DOS BENS PENHORÁVEIS PARA ALÉM DAS HIPÓTESES LEGAIS 51 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Apelação Cível n. 0001425-45.2015.8.24.0082. Relator: Desembargador Raulino Jacó Brüning, Primeira Câmara de Direito Civil. Florianópolis, 22 jun. 2017. Disponível em: <http://busca.tjsc.jus.br/jurisprudencia/#resultado_ancora>. Acesso em: 14 nov. 2019. 22 Algumas situações excepcionais permitem que haja modificação no estado da penhora. A penhora poderá ser ampliada (art. 850 do CPC/15) quando o magistrado, após a avaliação, constatar que os bens penhorados não foram suficientes para satisfação do crédito. Chama-se reforço de penhora, e também poderá se dar em razão de alteração substancial do valor de mercado do bem. 52 Também poderá ser reduzida nos casos em que o montante dos bens é excessivamente maior do que o crédito e seus acessórios. As soluções aplicáveis pelo magistrado são de liberação de alguns bens ou a substituição por outros de menor valor, se possível. 53 É importante que se tenha em mente que o Estado deve atingir o resultado da execução de forma limitada à quantia efetivamente devida, protegendo o direito do devedor, não permitindo que a execução se torne ato de vingança e extrapole o débito atingindo patrimônio além da dívida. Em outras palavras, não pode se tornar um fenômeno que empobreça o executado. Embora a penhora esteja vinculada ao valor, não está engessada quanto ao objeto, permitindo-se, pela jurisprudência, a flexibilização em determinadas circunstâncias, a exemplo da impenhorabilidade de vencimentos, que não é absoluta: O STJ vem entendendo que "a regra geral da impenhorabilidade dos vencimentos, dos subsídios, dos soldos, dos salários, das remunerações, dos proventos de aposentadoria, das pensões, dos pecúlios e dos montepios, bem como das quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, dos ganhos de trabalhador autônomo e dos honorários de profissional liberal poderá ser excepcionada, nos termos do art. 833, IV, c/c o § 2° do CPC/2015, quando se voltar: I) para o pagamento de prestação alimentícia, de qualquer origem, independentemente do valor da verba remuneratória recebida; e II) para o pagamento de qualquer outra dívida não alimentar, quando os valores recebidos pelo executado forem superiores a 50 salários mínimos mensais, ressalvadas eventuais particularidades do caso concreto. Em qualquer circunstância, deverá ser preservado percentual capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família" (Resp 1.407.062/MG. Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 26/02/2019). 2. "A garantia de impenhorabilidade assegurada na regra processual referida não deve ser interpretada de forma gramatical e abstrata, podendo ter aplicação mitigada em certas circunstâncias, como sucede com crédito de natureza alimentar de elevada soma, que permite antever-se que o 52 SÁ, Renato Montans de. Manual de direito processual civil. 4 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 1.178. 53 SÁ, Renato Montans de. Manual de direito processual civil. 4 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 1.178. 23 próprio titular da verba pecuniária destinará parte dela para o atendimento de gastos supérfluos, e não, exclusivamente, para o suporte de necessidades fundamentais. Não viola a garantia assegurada ao titular de verba de natureza alimentar a afetação de parcela menor de montante maior, desde que o percentual afetado se mostre insuscetível de comprometer o sustento do favorecido e de sua família e que a afetação vise à satisfação de legítimo crédito de terceiro, representado por título executivo"(REsp 1356404/DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 04/06/2013, DJe 23/08/2013) 3. Na hipótese, diante das circunstâncias do caso concreto, mostra-se possível a penhora dos valores excedentes a 50 salários mínimos no processo n° 0001150-83.2013.8.26.0576, da 2ª Vara Cível da Comarca de São José do Rio Preto, na qual o advogado possui crédito vultoso de honorários a receber, nos termos do art. 833, §2° do CPC/2015.54 (grifos nossos) Apenhora, portanto, deve estar adstrita ao débito e seus encargos (juros, multas, honorários e custas). Englobará os encargos em virtude da aplicação do princípio da causalidade que impõe a quem deu causa à necessidade da tutela jurisdicional que assuma as despesas em razão do processo. 5 ACORDOS DE PENHORABILIDADE E DE IMPENHORABILIDADE A impenhorabilidade é instituto que visa proteger a dignidade da pessoa humana no que tange ao patrimônio, assegurando o mínimo existencial ao devedor a fim de que a execução não o conduza à condição de miserabilidade. Apesar disso, o devedor pode negociar a impenhorabilidade por meio de um negócio jurídico processual quando vantajoso para si. Isso é possível porque em se tratando de direito patrimonial as pessoas podem dispor de seus bens da melhor forma que lhes convir. Outrossim, quando o indivíduo negocia a impenhorabilidade de seus bens está ciente daquela condição, de sorte que não será pego desprevenido pela penhora. Além de tudo, a impenhorabilidade é um direito à proteção do bem em razão de uma circunstância fática, e não uma imposição estatal. Ou seja, o Estado assegura o direito quando presume certa vulnerabilidade do devedor. Todavia, se o indivíduo quiser vender todo seu patrimônio e gastar todo dinheiro como achar melhor o Estado não poderá impedir por se tratar de direito constitucional de propriedade. Ressalte-se que não se fala aqui de dilapidação 54 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo interno n. 2019/0081208-7 nos Embargos de Declação em Recurso especial 1803343. Brasília, 24 out. 2019. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp>. Acesso em: 14 nov. 2019. 24 de patrimônio de maneira compulsiva e imponderada, ou seja, prodigalidade. Pois nesse caso, deverá haver comprovação médica de perturbações mentais e, cabendo interdição judicial, o pródigo será considerado relativamente incapaz, não podendo praticar atos desta natureza. Se os sujeitos de direito podem manejar seus bens livremente, podem também abrir mão da impenhorabilidade para dar garantia ao credor como forma de moeda de troca. A penhora sobre o bem existirá em razão de uma dívida, e se levantada pelo credor não se tratará de uma doação, portanto, não implica em ofensa à legítima, pois o seu intuito é efetuar o pagamento de bem ou serviço. Sendo assim, entende-se que a impenhorabilidade é um direito disponível, que pode ser avençada entre devedor e credor estabelecendo-se situações em que ela será quebrada. Nesta lógica, Renato Montans de Sá reforça: A impenhorabilidade não constitui direito indisponível, podendo a parte abrir mão de um bem impenhorável, permitindo sua constrição judicial, ou mesmo estabelecer regras de penhorabilidade ou impenhorabilidade por negócio jurídico processual.55 Segundo Enunciado do Fórum Permanente de Processualistas Civis, ao versar sobre convenções processuais, foi acordado que seriam admissíveis no âmbito do processo de execução os negócios jurídicos processuais que versarem sobre pacto de impenhorabilidade, entre outros.56 Coadunam com este entendimento os enunciados 152 e 153 da II Jornada de Direito Processual Civil 57 que dispõem: Enunciado n. 152: O pacto de impenhorabilidade (arts. 190, 200 e 833, I) produz efeitos entre as partes, não alcançando terceiros. Enunciado n. 153: A penhorabilidade dos bens, observados os critérios do art. 190 do CPC, pode ser objeto de convenção processual das partes. O fato de negociar a impenhorabilidade de um bem não o torna penhorável para terceiros porque o negócio jurídico processual faz lei apenas entre as partes que pactuaram. Isso permite que, ainda que o devedor abra mão da impenhorabilidade de um bem em um 55 SÁ, Renato Montans de. Manual de direito processual civil. 4 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 1.098. 56 Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis. Vitória, 01, 02 e 03 de maio de 2015. Disponível em: < http://esmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2015/06/Carta-de-Vit%C3%B3ria.pdf> Acesso em: 12 nov. 2019. 57 II Jornada de Direito Processual Civil. Brasília, 13 e 14 de setembro de 2018. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2018/setembro/cej-divulga-enunciados-da-ii-jornada-de-direito-processual- civil>. Acesso em: 15 nov. 2019. 25 negócio jurídico processual, não o tornará alvo de penhora por terceiros, de modo que o seu direito à impenhorabilidade será assegurado. Podem as partes estabelecerem negócio jurídico processual para alterar a ordem preferencial de penhora. Entretanto, conclui-se que o parágrafo 1º do art. 835 do CPC/15 estabeleceu que a penhora de dinheiro não é suscetível de alteração na ordem quando dispôs que a preferência será da penhora de dinheiro e nos demais casos o juiz poderá alterar a ordem preferencial. Logo, infere-se que não cabe ao juiz sobrepor a ordem de penhora ao dinheiro. Isso se dá em razão de o dinheiro ser a forma mais segura de satisfação do crédito, pois uma vez constrito pode ser liberado diretamente para o credor, evitando destinações distintas. Exemplos de negócios jurídicos processuais sobre penhora de bens são: a) convenção para determinar a penhora de apenas 50% de valores de contas conjuntas; b) negócio processual que permita que a penhora mediante fiança bancária possa se dar em valor superior ao valor total do débito (acréscimo de 30% do art. 835, §2º, CPC/15); c) penhorabilidade do bem de família oferecida pelo devedor como objeto da convenção jurídica processual; d) nomeação de depositário dos bens; e) substituição de penhora; f) ampliação do rol de hipóteses de alienação antecipada (previsto no art. 852 do CPC/15). 58 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS O litígio deve ser resolvido de forma menos onerosa para ambas as partes, e quando elas mesmas estabelecem normas processuais estão demonstrando ao juiz o que é sensível a elas e o que precisa ser respeitado. Mas para que isso seja possível, deve ser acordado com a parte contrária para que não se torne um meio de se esquivar do cumprimento de obrigações. Neste sentido, o princípio da igualdade material é basilar nos negócios jurídicos processuais, pois permite que situações diferentes sejam tratadas de forma diferente. Permite que as partes adequem o processo a seus casos concretos conferindo, consequentemente, a prestação jurisdicional satisfativa mais adequada à casuística. A execução tem como um de seus princípios basilares a disponibilidade. Partindo dessa premissa, conclui-se que é possível a realização de negócios jurídicos processuais no processo de execução. O negócio jurídico processual que trata do direito de impenhorabilidade do bem do devedor também pode ser realizado porquanto, embora o bem seja impenhorável o direito 58 TEMER, Sofia; ANDRADE, Juliana Melazzi. Convenções processuais na execução: modificação consensual das regras. In: MARCATO, Ana et al (Org.). Negócios Processuais. Salvador: Jus Podivm, 2017. p. 551-566. 26 sobre ele é disponível e, ainda, respeita o requisito da autocomposição. Entretanto, não se pode olvidar de que os negócios jurídicos processuais, de modo geral, devem manter liceidade e permanecerem dento do espectro de validade dos negócios jurídicos. REFERÊNCIAS ASSIS, Araken de. Manual da execução. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, 1310 p. ASSIS NETO, Sebastião de; JESUS, Marcelo de; MELO, Maria Izabel de. Manual de direito civil. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. 2.160 p. AURELLI, Arlete Inês. Análise e limites da celebração de negócios jurídicos processuais. In: MARCATO, Ana et al (Org.). Negócios Processuais. Salvador: Jus Podivm, 2017. p. 45-63. DIDIER, Fredie Jr. Ensaios sobre os negócios jurídicos processuais. Salvador: Editora Juspodivm, 2018. 191 p. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. 1.117 p. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de execução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 506 p. MÜLLER, Julio Guilherme. 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Decreto-lei n. 4.657 de 4 de setembro de 1942. Lei de introdução às normas do direito brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto- lei/del4657.htm> Acesso em: 12 nov. 2019. 27 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 10 nov. 2019. BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm>. Acesso em: 8 nov. 2019. II Jornada de Direito Processual Civil. Brasília, 13 e 14 de setembro de 2018. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2018/setembro/cej-divulga-enunciados-da-ii-jornada-de- direito-processual-civil>. Acesso em: 15 nov. 2019. Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis. Vitória, 01º,02 e 03 de maio de 2015. Disponível em: < http://esmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2015/06/Carta-de- Vit%C3%B3ria.pdf> Acesso em: 12 nov. 2019. Resumo
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