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Dedico este trabalho à minha adorada esposa, Luísa Rabeno Fasolo, e aos meus amados filhos, Martina Rabeno Fasolo Baltazar e David Rabeno Fasolo Baltazar, por serem as razões da busca de algo melhor e pela compreensão nos inúmeros momentos de ausência durante o mestrado e no tempo despendido durante a confecção desta obra. Dedico, outrossim, ao meu querido irmão, José Paulo Baltazar Junior, pelo incentivo para a realização do curso e pelo apoio bibliográfico, estratégico e moral. AGRADECIMENTOS Aos professores do curso de mestrado da Escola Paulista de Direito, muito especialmente à minha orientadora, Professora Doutora Eveline Gonçalves Denardi, por ter aceitado o convite para a orientação, pela extrema seriedade com que me orientou e pela atenção que dispensou a mim durante toda a realização do trabalho; aos funcionários da Escola Paulista de Direito, em especial à assistente administrativa do mestrado, Sílvia Maria Cara Alves, pela correta condução das diversas demandas exigidas e pela incansável ajuda a todos os mestrandos; aos colegas do mestrado nas pessoas de Henrique Almeida Ribeiro, Ana Paula Mendes Borges, Isabel Cristina de Moura e Ariana Garcia Rocha, pela fundamental colaboração na confecção da dissertação; aos colegas do 3º Registro de Imóveis de Campo Grande/MS, em especial a Carolina Fontana de Oliveira Araújo, a Mariana Freire Marques e a Patrick Mendonça Brites pela indispensável contribuição na elaboração do texto. APRESENTAÇÃO O conflito é inerente ao convívio humano e à condição humana em si e ocorre quando os desejos, interesses, aspirações e expectativas de um indivíduo colidem com os do outro. Um foco de conflito consiste no inadimplemento do contrato de compra e venda de imóveis com garantia de alienação fiduciária. Nesses casos, cabe execução extrajudicial no âmbito do cartório de registro de imóveis. Prefere-se tal execução, pois, como é sabido, o Poder Judiciário não consegue dar conta de sua demanda, ao menos não em tempo razoável, como determina o inciso LXXVIII do artigo 5° da Constituição Federal de 1988. Dentre os sistemas alternativos de resolução de conflitos, destacam-se a conciliação e a mediação. Inexiste dúvida acerca da possibilidade de utilização destes sistemas em serventias extrajudiciais desde a edição do Provimento n. 67, de 26 de março de 2018, do Conselho Nacional de Justiça. Ainda que o diploma seja passível de inúmeras críticas, afirma-se que as vantagens da aplicação dos meios alternativos no Registro de Imóveis são muito maiores. Conclui-se, assim, que se revela possível, viável e vantajoso às partes transacionar o litígio instaurado pela falta de pagamento do financiamento avençado em contrato de compra e venda de imóveis com garantia de alienação fiduciária através da mediação e da conciliação na execução extrajudicial no âmbito do registro de imóveis. Para elucidar o tema proposto, utiliza-se de pesquisa bibliográfica para compor as referências teóricas, como doutrina, artigos científicos e da legislação que dispõe sobre a matéria. PREFÁCIO “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”. Em Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire registra exatamente a maior satisfação de quem se dedica à arte da docência: observar alunos desenvolvendo espírito crítico e pensando ideias próprias, o que produz em nós, professores, um feliz sentimento de realização. Sinto-me, portanto, extremamente honrada e agradecida ao receber o convite para prefaciar esta 1ª edição da obra de Alan Jece Baltazar, intitulada “Mediação e conciliação pelo oficial de registro de imóveis no âmbito da execução extrajudicial de bens imóveis alienados fiduciariamente”. É, também, um grande compromisso, visto que se trata de um trabalho árduo, elaborado originalmente como dissertação de mestrado defendida na Escola Paulista de Direito (EPD), no programa “Soluções alternativas de controvérsias empresariais”, na linha de pesquisa princípios e mecanismos do sistema nacional de soluções extrajudiciais de controvérsias. Tive a satisfação de ser orientadora dessa pesquisa que, agora, se apresenta ao grande público. O autor, a despeito da sua juventude, exibe um vasto e respeitável conhecimento sobre o tema que, além de, sob certo aspecto, integrar seu dia a dia profissional, é de extrema relevância no mundo jurídico contemporâneo. Foram meses de um mergulho profundo em pesquisa bibliográfica atualizada para compor as referências teóricas, doutrina nacional e internacional investigada exaustivamente, artigos científicos e legislação sobre a matéria. O resultado é o texto de extrema grandeza que aqui se apresenta. Diante do extraordinário volume de demandas hoje a cargo do nosso Poder Judiciário, fruto de uma sociedade que tem se tornado cada vez mais beligerante, toda iniciativa que nos faça refletir sobre o enfrentamento dessas lides sociais por meios extrajudiciais e altamente eficazes é muito bem-vinda. A obra enfatiza o método da mediação, em que um terceiro, o mediador, neutro e imparcial, auxilia as partes no diálogo rumo ao acordo. Trata-se de metodologia consensual, que envolve a cooperação voluntária dos envolvidos, por meio de procedimento organizado e informal. Diante disso, este livro é um exemplo dos novos tempos, a revelar um jovem e brilhante doutrinador. Seu maior mérito está em propor um caminho lúcido e promissor, que se abre à nossa frente em busca da pacificação social, de maneira a reduzir drasticamente o volume inviável de processos que se acumulam diariamente nos gabinetes dos tribunais de todo país afligindo os envolvidos à espera de uma solução. Profa. Dra. Eveline Denardi SUMÁRIO Capa Folha de Rosto Créditos 1. INTRODUÇÃO 2. SISTEMAS ADEQUADOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS POR AUTOCOMPOSIÇÃO 2.1 CONFLITO 2.2 MODOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS 3. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS 3.1 CONCEITO E DISTINÇÃO FRENTE À kindle:embed:0004?mime=image/jpg HIPOTECA 3.2 EXECUÇÃO JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL 3.3 CONSTITUCIONALIDADE DA EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL 4. SERVENTIA EXTRAJUDICIAL COMO LOCAL DE CONCILIAÇÃO E MEDIAÇÃO NA EXECUÇÃO 4.1 PAPEL DAS SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS NA DESJUDICIALIZAÇÃO E NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS 4.2 CONCILIAÇÃO E MEDIAÇÃO NA EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL 4.2.1 Possibilidade normativa 4.2.2 Procedimento 4.3.3 Críticas ao Provimento n. 67/2018, do Conselho Nacional de Justiça 4.3.4 Vantagens da conciliação e da mediação no registro de imóveis 5. CONCLUSÃO REFERÊNCIAS kindle:embed:0004?mime=image/jpg 1. INTRODUÇÃO O presente estudo trata da possibilidade de a serventia extrajudicial de registro de imóveis servir como local de mediação e de conciliação no âmbito da execução extrajudicial de contratos de alienação fiduciária de bens imóveis. Para tanto, no segundo capítulo, após a Introdução, busca-se a definição de conflito, iniciando-se por uma breve digressão sobre alguns aspectos de teoria do direito, em especial, acerca da autonomia e da heteronomia da vontade, para então, diferenciar-se moral e direito. Em seguida, são conceituados e desenvolvidos os modos de solução de conflitos, quais sejam, a autotutela, a autocomposição e a heterocomposição. Logo após, são apresentados os principais meios de resolução dentro de cada um dos modos, destacando-se a jurisdição comum (estatal) e a arbitragem como heterocompositivos; e a conciliação e a mediação como autocompositivos. Posteriormente, no terceiro capítulo, disserta-se acerca da alienação fiduciária de bens imóveis, com o objetivo de verificar sua importância como forma de garantia no mercado imobiliário, por se tratar de instituto criado num momento em que se procurava uma alternativa de garantia que possibilitasse uma recuperação mais célere e eficaz de créditos de investidores com a execução extrajudicial em caso de mora. Para isto, o estudo começa pela conceituação do instituto e sua distinção frenteà hipoteca. Num momento seguinte, traça-se um paralelo entre as execuções judicial e extrajudicial no caso de inadimplemento contratual, perquirindo-se, antes, as formas de extinção da obrigação. Finalmente, discute-se a constitucionalidade da execução extrajudicial. No último capítulo, a pesquisa ingressa efetivamente na possibilidade ou não de mediação e conciliação nas serventias extrajudiciais e, ao final, especificamente, nos registros de imóveis nos casos de litígios envolvendo contratos de alienação fiduciária de bens imóveis. Inicialmente, descreve-se o importante papel das serventias extrajudiciais na desjudicialização e na resolução de conflitos, inquirindo-se neste tópico a crise do Poder Judiciário e o acesso à justiça. Em seguida, cuida-se da mediação e da conciliação nas serventias extrajudiciais propriamente ditas, analisando-se sua possibilidade normativa, o procedimento a ser adotado e as críticas dirigidas ao Provimento n. 67/2018, do Conselho Nacional de Justiça. Por derradeiro, enfatiza-se as muitas vantagens da conciliação e da mediação no registro de imóveis. Para elucidar o tema proposto, utiliza-se pesquisa bibliográfica para compor as referências teóricas, como doutrina e artigos científicos jurídicos, além da legislação que dispõe sobre a matéria. Ao final, resume-se criticamente o conteúdo apresentado no decorrer da dissertação antes de apresentar as referências utilizadas na sua composição. Ressalto que a presente obra se trata da versão revista da dissertação apresentada à banca examinadora da Escola Paulista de Direito (EPD), como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, na área de concentração de soluções alternativas de controvérsias empresariais, na linha de pesquisa de princípios e mecanismos do sistema nacional de soluções extrajudiciais de controvérsias, sob a orientação da Professora Doutora Eveline Gonçalves Denardi. 2. SISTEMAS ADEQUADOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS POR AUTOCOMPOSIÇÃO 2.1 CONFLITO O tema proposto trata da resolução de conflitos. Entretanto, comecemos indagando: o que é conflito? Para se chegar a este conceito, importante realizarmos uma breve digressão sobre alguns aspectos de teoria do direito. Nesta senda, iniciemos discorrendo acerca da autonomia e da heteronomia da vontade, passando, posteriormente, pela clássica diferenciação entre moral e direito, para, ao final, estabelecer uma relação entre tais conceitos e os métodos de solução de conflitos. O tema foi amplamente desenvolvido por Immanuel Kant, filósofo alemão que viveu no século XVIII até o início do século XIX (22 de abril de 1724 – 12 de fevereiro de 1804). Primeiramente, cabe destacar a origem das ideais desenvolvidas por Kant. Para o filósofo americano Jerome B. Schneewind, na sua obra “A invenção da autonomia”, Kant recebeu a influência dos pensamentos de David Hume, de Jean-Jacques Rousseau e de Thomas Hobbes, porém, foi um pouco além, conforme demonstra o seguinte excerto: Kant encaixa sua concepção de autonomia em psicologia metafísica que vai além de qualquer coisa em Hume ou Rousseau. A autonomia kantiana pressupõe que somos agentes racionais cuja liberdade transcendental nos tira do domínio da causação natural. Ela pertence a todos os indivíduos, no estado de natureza e também na sociedade. Por meio dela, cada pessoa tem uma bússola que permite ‘à razão humana comum’ dizer o que é consistente e o que é inconsistente com o dever. Nossas habilidades morais tornam-se conhecidas de cada um de nós devido ao fato da razão, à nossa consciência de uma obrigação categórica que podemos respeitar em contraposição ao atrativo do desejo. Como elas estão ancoradas em nossa liberdade transcendental, não podemos perdê-las, não importa o quão corruptos nos tornemos.1 Visto isso, iniciemos, pois, pelo conceito de autonomia da vontade. Segundo consta no Dicionário de Filosofia de José Ferrater Mora, no seu sentido ético: [...] afirma-se que uma lei moral é autônoma quando tem em si mesma seu fundamento e a razão própria de sua legalidade. Este sentido foi elaborado especialmente por Kant, tendo sido admitido por outros autores como Cohen, Natorp e Renouvier. O eixo da autonomia da lei moral é constituído, de acordo com Kant, pela autonomia da vontade. Nela se fundamenta o imperativo categórico. Kant indica na Fundamentação da Metafísica dos Costumes [...] que a autonomia da vontade é “o princípio supremo da moralidade”, sendo “a propriedade da vontade pela qual é para si mesma uma lei (independentemente de qualquer propriedade dos objetos do querer)”. Por isso, o princípio da autonomia reza o seguinte: “Não escolher de outro modo senão o que faz com que as máximas da escolha se achem ao mesmo tempo abarcadas como lei geral no próprio querer” (mais simplesmente: “Escolher sempre de tal modo que a própria volição abarque as máximas de nossa escolha como lei universal”).2 O imperativo de Kant é uma regra prática dada a um ente cuja razão não determina inteiramente a vontade. Essa regra expressa a necessidade objetiva da ação, de tal modo que a ação ocorreria inevitavelmente de acordo com a regra se a vontade estivesse inteiramente determinada pela razão. Esse é o motivo pelo qual os imperativos são objetivamente válidos, ao contrário das máximas, que são princípios subjetivos. Os imperativos são de dois tipos: hipotéticos ou condicionais (nos quais os mandamentos da razão são condicionados pelos fins que se pretende alcançar) e categóricos ou absolutos (nos quais os mandamentos da razão não são condicionados por nenhum fim, de tal modo que a ação se realiza por si mesma e é um bem em si mesma). Os imperativos hipotéticos determinam as condições da causalidade do ser racional como causa eficiente, isto é, em relação ao efeito e aos meios de obtê-lo. Os imperativos categóricos determinam apenas a vontade, tanto se ela for adequada ao efeito como se não o for. Por isso os primeiros contêm meros preceitos, enquanto os segundos são leis práticas, pois, embora as máximas também sejam princípios, não são imperativos.3 Ainda segundo o autor, uma vez mais utilizando-se das ideias de Kant: [...] a heteronomia da vontade é, segundo Kant, a fonte de todos os princípios inautênticos de moralidade. Quando a vontade não é autônoma, não se dá a si mesma a lei. O que dá a lei à vontade é o objeto mediante sua relação com a vontade. Esta relação, esteja ela fundada em inclinações sentidas pelo sujeito, ou baseada em concepções da razão, só admite imperativos hipotéticos. De acordo com um princípio hipotético, não devo mentir para não prejudicar minha reputação. De acordo com um imperativo categórico, não deve mentir mesmo que isso não me prejudique em nada. Por conseguinte, enquanto os defensores da heteronomia creem que não há possibilidade de moral efetiva sem um fundamento alheio à vontade (seja na Natureza, seja no reino inteligível, seja no reino dos valores absolutos, seja em Deus), Kant avalia que todos os princípios da heteronomia, sejam empíricos (ou derivados do princípio de felicidade e baseados em sentimentos físicos ou morais) ou racionais (ou derivados do princípio da perfeição, que pode ser ontológico ou teológico), mascaram o problema da liberdade da vontade e, portanto, da moralidade autêntica dos próprios atos.4 (grifo nosso). Admitindo-se que os conceitos apresentados acima não se mostram tão claros, no intuito de melhor desenvolvê-los, apresenta-se outra definição trazida pelo dicionário de ética e filosofia moral, organizado pela filósofa francesa Monique Canto-Sperber: A fim de compreender como a autonomia pode cumprir essa função, é necessário examinar a concepção oposta: a da heteronomia da vontade. Já que há heteronomia, segundo Kant, quanto ‘não é a vontade que se dá a ela mesma a lei, [mas] é o objeto que lhe dá essa lei por sua relação com ele’ [...], fica claro que Kant considera entre a autonomia e a heteronomia uma disjunção inteiramente inclusiva e mutuamenteexclusiva. Trata-se mais precisamente de uma disjunção de modelos ou de concepções da vontade. Ou consideramos que a vontade dá a si mesma sua lei (independentemente de todos os interesses oriundos de um indivíduo considerado como ser sensível), caso em que a vontade é autônoma, ou então consideramos que é necessário que a vontade seja condicionada por algum interesse (ou ‘objeto’) anterior, que lhe impõe uma lei, caso em que a vontade é heterônoma. A estratégia de Kant consiste em afirmar que toda ação fundada sobre o imperativo categórico só é possível pela autonomia da vontade, e não pela heteronomia.5 Em resumo, depreende-se dos conceitos apresentados de autonomia e heteronomia da vontade que ambas têm relação intrínseca com o indivíduo, ou seja, reúnem relação com a moral. Na primeira, o indivíduo cumpre a lei e lhe parece que a regra disposta na norma está corretamente prescrita, isto é, vai ao encontro da sua autonomia da vontade. Já na segunda, o indivíduo até cumpre a lei, porque lhe é imposta e porque existe uma sanção pelo descumprimento, por exemplo, mas o faz contra a sua vontade. Na autonomia o sujeito age livremente de acordo com o seu livre arbítrio; já na heteronomia, o homem se sujeita à vontade de terceiros ou de uma coletividade. Dito isso, passa-se ao tema da relação entre moral e direito, analisada por inúmeros autores. Primeiramente, verificaremos o profundo estudo de Hans Kelsen, em especial na sua consagrada obra “Teoria Pura do Direito”. O autor inicia afirmando que a clássica diferenciação de que o direito prescreve uma conduta externa e a moral uma conduta interna não é acertada6. Mais adiante, assegura que os homens seguem as suas inclinações ou procuram realizar os seus interesses egoísticos mesmo sem a tal serem obrigados e que uma ordem social – uma norma – não teria sentido se prescrevesse uma conduta que correspondesse a todas essas inclinações ou a esses interesses egoísticos dos destinatários7. Em momento posterior, o filósofo afirma que também não se distingue direito de moral pela forma de produção ou de aplicação de suas normas, pois ambas são criadas pelo costume ou por meio de uma elaboração consciente, como o direito estatutário – normas gerais criadas pelo órgão legislativo – e as normas elaboradas por parte de um profeta ou do fundador de uma religião como Jesus Cristo, por exemplo. Desta forma, os dois são positivos e defende, a exemplo do direito positivo em relação a uma teoria científica do direito, que somente uma moral positiva interessa a uma ética científica. Observa, entretanto, que inexistem órgãos centrais para a aplicação das normas morais, consistindo tal aplicação na apreciação moral da conduta de outrem regulada pela ordem moral. Neste ponto, traça um paralelo entre uma ordem jurídica primitiva, também descentralizada, e, portanto, se assemelhando a uma ordem moral, o que acarreta a aproximação muitas vezes imputada entre o valor de moral internacional ao direito internacional, completamente descentralizado8. Mas, o que, então, para Kelsen, difere direito e moral? À indagação, o doutrinador responde: Uma distinção entre o Direito e a Moral não pode encontrar-se naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem, mas em como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana. O Direito só pode ser distinguido essencialmente da Moral quando – como já mostramos – se concebe como uma ordem de coação, isto é, como uma ordem normativa que procura obter uma determinada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado, enquanto a Moral é uma ordem social que não estatui quaisquer sanções desse tipo, visto que as suas sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme às normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela não entrando sequer em linha de conta, portanto, o emprego da força física.9 (grifo nosso). Já o jurista russo Evguiéni Bronislávovich Pachukanis, no seu livro “Teoria Geral do Direito e Marxismo”, afirma que o homem como sujeito moral – como uma pessoa igual a todas as outras – e como sujeito de direito, representa uma condição da troca com base na lei do valor e ambas as determinações estão ligadas a uma terceira, na qual o homem figura na qualidade de sujeito econômico egoísta. Refere o autor que se a pessoa moral é o sujeito da sociedade de produção mercantil, então a lei moral deve se descobrir como a regra da sociedade de possuidores de mercadoria, o que lhe confere um caráter antinômico, pois, por um lado, deve ter um caráter social e, como tal, colocar- se acima da personalidade individual; por outro lado, o possuidor de mercadorias, devido à própria natureza, é o portador da liberdade de apropriação e de alienação. Nessa senda, assevera que o imperativo categórico de Kant reúne as mencionadas exigências contraditórias, na medida em que é supraindividual – sem relação alguma com qualquer motivação natural como paixão, simpatia, compaixão, sentimento de solidariedade -, não ameaça, não convence e não bajula, situando-se fora de quaisquer motivos empíricos, puramente humanos. E segue frisando que os conceitos fundamentais da moral não reúnem nenhum significado se os retirarmos da sociedade de produção mercantil e tentarmos aplicá-los a qualquer outra estrutura social, uma vez que o ser moral é um complemento necessário do ser jurídico e os dois são modos de relações entre os produtores de mercadorias. Sentencia, outrossim, que o imperativo categórico kantiano não é de modo nenhum um instituto social e que o seu páthos10 resume-se ao fato de que o homem faz livremente, isto é, por convicção interior, aquilo que no plano do direito ele seria coagido a fazer. Especificamente quanto à diferença entre moral e direito, conclui o seguinte: [...] A conduta moral contrapõe-se à conduta jurídica, que se caracteriza como tal independentemente dos motivos que a geraram. Se a dívida será paga porque, ‘de todo modo, o devedor será forçado a pagá-la’ ou porque o devedor se sente moralmente obrigado a fazê-lo, isso é absolutamente indiferente do ponto de vista jurídico. Evidentemente a ideia de coerção externa – não somente a ideia, mas sua organização – constitui um aspecto fundamental da forma jurídica. Se a relação jurídica pode ser construída de modo puramente teórico como o avesso da relação de troca, então para sua realização prática é necessária a presença de modelos gerais definidos de modo mais ou menos sólido, uma elaboração casuística e, finalmente, uma organização que aplicaria esses modelos a casos específicos e garantiria a execução coercitiva das decisões. A melhor maneira de atender a essas demandas é por meio do poder do Estado, ainda que a relação jurídica também se realize sem sua intervenção, como base no direito consuetudinário, na arbitragem voluntária, na arbitrariedade etc. [...] Por outro lado, a pretensão jurídica surge de modo distinto da moral não por causa de uma “voz interior”, mas na forma de exigências externas que emanam de um sujeito concreto, o qual é, por regra, ao mesmo tempo, o portador de um interesse material correspondente. Por isso, o cumprimento de um dever jurídico, finalmente, afasta-se de quaisquer elementos subjetivos da parte da pessoa obrigada e assume uma forma externa, quase objetiva, de satisfação de uma exigência. [...]11 Kelsen, na sua obra “Teoría Comunista Del Derecho Y Del Estado”12, critica a teoria comunista de Karl Marx e de Friedrich Engels defendida por Pachukanis, pela qual o direito como ordem coercitiva e instrumento exclusivo do Estado existe apenas em uma sociedade dividida em duas classes: a dominante exploradora (burguesia) e a dominada explorada e que as perturbações da ordem social são causadas somente pelas circunstâncias econômicas, sendo que se estas forem garantidas por uma ordem social para todos os membros da comunidade, inexiste necessidade de medidas coercitivas como reaçãocontra as violações dessa ordem. Kelsen aduz que além das circunstâncias econômicas, sexo e ambição também consistem em causas de perturbação da ordem social e de conflitos, tanto quanto aquelas e que a previsão de uma sociedade de justiça perfeita, sem Estado e sem Direito, é uma profecia utópica. Segue ainda assegurando que a doutrina de Marx-Engels tem caráter claramente anárquico e que os referidos filósofos confundiam teoria e prática, bem como ciência e política. Por seu lado, o filósofo Michel Villey assegura que quando se define direito como conjunto de regras de conduta, direito e moral se confundem. Invocando os ensinamentos de Aristóteles, elucida que existe uma arte que se preocupa com a virtude subjetiva do indivíduo, ou a prescrever-lhe condutas, inclusive as condutas justas, as do homem justo, o que seria a moral, e desta se destaca outra disciplina, cuja finalidade é dizer o que é justo, o que pertence a cada um, que consistiria no direito13. O autor defende que a moral engloba o direito, ou seja, que este seria uma disciplina daquela. Na sequência, aproximando-se da ideia de Kelsen de reduzir14 o direito ao estado de ciência positiva, destaca que a função do direito: [...] não é vigiar a virtude do indivíduo, nem mesmo regular sua conduta. Não importa que subjetivamente eu seja honesto e cheio de boas intenções para com as finanças públicas; apenas que meu imposto seja pago; nem mesmo previamente – o que é a função da ciência do direito – que seja descoberta e definida a parte de imposto que me cabe. Outro exemplo: o direito penal não tem como função proibir, como certas pessoas pretendem, o homicídio, o roubo ou o aborto; esses interditos pertencem à moral; um júri ou o Código Penal distribuem as penas, a cada um a pena que lhe cabe.15 Simplificando, Carlos Eduardo de Vasconcelos esclarece: A ética deontológica, especialmente a partir de Kant, é reconhecida como fundamento da modernidade jurídica, positivista. Kant racionalizou e esclareceu a distinção entre a moral (unilateral, incoercível e autônoma) e o direito (heterônomo, coercível, bilateral e institucionalizado).16 Pois bem. Após analisar as diferenças entre moral e direito, enveredando para um tema mais prático, revela-se cabível uma reflexão acerca dos conflitos, na medida em que o direito serve, em regra, para apaziguá-los e trazer a paz social. Voltemos então ao ponto inicial17, indagando, novamente: o que é conflito? Para o Procurador de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Paulo Valério Dal Pai Moraes: Poderíamos definir a palavra “conflito” como um desacordo agudo ou um antagonismo de interesses, ideias, valores ou posturas, em que existe uma resistência recíproca por parte dos envolvidos. As causas dos conflitos são, de um modo geral, bens, princípios, territórios, valores, relações pessoais, aspectos esses que evidenciam ser bastante produtivo enfrentar a resolução de controvérsias dessa espécie a partir da pauta da oportunidade, pois a complexidade e a criatividade do ser humano não devem ser desprezadas, mas sim potencializadas, de forma que a síntese dos processos de conversação resulte na produção de algo melhor e mais adequado para todos.18 De outra banda, Willis Santiago Guerra Filho explica: Os dados fornecidos a respeito das necessidades de conteúdo econômico com relação aos bens materiais podem ser extrapolados a interesses de cunho moral ou psicológico, donde se conclui que ilimitados são os interesses humanos, enquanto que os bens são limitados. Daí os conflitos de interesse que surgem durante a vida individual e coletiva. Estes conflitos entre interesses, quando se dão numa mesma pessoa, resolvem-se naturalmente pelo sacrifício do interesse menor ao interesse maior. Porém, o conflito intersubjetivo, via de regra, não é solucionado de maneira justa e pacífica pelos que se envolvem na contenda. Uma vez que os interesses comuns são a base sobre a qual se formam os grupos sociais, esta base é minada pelos conflitos de interesses interindividuais ou coletivos. A verdade parece estar com Carnelutti, quando diz que “se a solidariedade dos interesses é reconhecida como o germe da agregação dos entes e, em particular, dos homens, no conflito dos interesses reside o germe da sua desagregação”19. Gianfranco Pasquino, por sua vez, no Dicionário de Política escrito em conjunto com Norberto Bobbio e com Nicola Matteucci, contrapõe conflito à cooperação, nos seguintes termos: [...] Existe um acordo sobre o fato de que o Conflito é uma forma de interação entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades que implica choques para o acesso e a distribuição de recursos escassos. [...] Obviamente o Conflito é apenas uma das possíveis formas de interação entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades. Uma outra possível forma de interação é a cooperação. Qualquer grupo social, qualquer sociedade histórica pode ser definida em qualquer momento de acordo com as formas de Conflito e de cooperação entre os diversos atores que nela surgem. [...] [...] Dissemos que seu objetivo é o controle sobre os recursos escassos. Prevalentemente estes recursos são identificados no poder, na riqueza e no prestígio. É claro que, de acordo com os tipos e os âmbitos do Conflito, poderão ser identificados outros recursos novos ou mais específicos. Por exemplo, nos casos de Conflitos internacionais, um importante recurso será o território; nos casos de Conflitos políticos, o recurso mais ambicionado será o controle dos cargos em competição; [...]20 (grifo nosso). Em suma, o conflito, que é inerente ao convívio humano e à condição humana em si, ocorre quando os desejos, interesses, aspirações e expectativas de um indivíduo colidem com os do outro. Ressalta-se que conflitos sempre existiram e sempre existirão e são tão mais difíceis de resolver quanto maiores são as diferenças pessoais. E como resolvê-los? 2.2 MODOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS Cabe, neste momento, discorrer brevemente acerca dos modos de solução de conflitos. Basicamente apresentam-se de três formas: autotutela, autocomposição e heterocomposição. Uma vez mais nos socorremos dos ensinamentos de Willis Santiago Guerra Filho, para quem a autotutela: [...] é o emprego de força quer do indivíduo, quer do grupo a que se acha integrado (família, gens21, horda22), para fazer prevalecer o seu interesse. Embora seja razoável a ponderação de Ihering, para quem a preponderância da força física encontrava-se normalmente ao lado daquele que tinha o direito, é fácil de ver que neste sistema onde “a força material e impulso de vingança são os únicos reguladores dos atritos humanos; [...] em vez de a força física estar ao serviço do direito, era o direito que estava a mercê da força.23 Como é de conhecimento geral, o ordenamento jurídico brasileiro permite a autotutela em alguns poucos casos, quais sejam: a autoexecutoriedade das decisões administrativas24, o direito de cortar raízes e ramos de árvores limítrofes que ultrapassam a extrema do prédio (artigo 1.283 do Código Civil), o desforço imediato (artigo 1.210, §1º, Código Civil), o direito de retenção (artigos 571, parágrafo único; 578; 644, caput; 681; 708; 742; 1.219; 1.433, II; 1.507, §2º, todos do Código Civil), a greve (artigo 9º da Constituição Federal) e a legítima defesa no direito penal (artigo 25 do Código Penal). Já na heterocomposição, nas palavras de Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme, “[...] o litígio é resolvido por meio da intervenção de um agente exterior ao conflito original. Sendo assim, em vez de as partes isoladamente ajustarem a resolução do entrave que os circunda, o conflito fica submetido a um terceiro que formatará a decisão”25. Trata-se de um meio adversarial, no qual a solução é imposta (i), através de uma sentença (ii), prolatada por quem detém um poder para tanto (iii), em um processo formal (iv) no qual o interesse recai apenas sobre a solução (v) e não sobre o relacionamento entre os indivíduosem conflito. Além disso, tal método caracteriza-se pelo enfrentamento das partes, situação em que um ganha e outro perde (tudo ou nada ou perde-ganha), sendo a decisão baseada na lei ou em precedente, o que não necessariamente resolve o problema, nem satisfaz as partes. Os principais exemplos são a jurisdição comum (estatal) e a arbitragem. Como é sabido, a jurisdição comum (estatal), ou melhor, o processo judicial, é o meio pelo qual o Estado intervém e decide sobre uma situação em que seja vislumbrada uma lesão ou uma ameaça de lesão, tendo sido conferida ao Poder Judiciário a atribuição de poderes para que este promova a distribuição da justiça. Nessa linha, instaurado o processo, ocorre a angularização, isto é, a formação do processo com todos os sujeitos envolvidos, quais sejam, a parte autora, a parte ré e o Estado-juiz, que, através do magistrado, reúne as funções de julgar a lide e de estabelecer uma sentença que o termine. Já a arbitragem é o meio privado, jurisdicional e alternativo à jurisdição estatal de solução de conflitos decorrentes de direitos patrimoniais e disponíveis por sentença arbitral, definida como título executivo judicial e prolatada pelo árbitro, que é juiz de fato e de direito (artigo 18 da Lei de Arbitragem), normalmente especialista na matéria controvertida. Como a arbitragem se dá exclusivamente no âmbito privado, os conflitos somente podem envolver direitos patrimoniais e disponíveis (artigo 1º, Lei n. 9.307/199626). A solução ocorre através de uma sentença arbitral, que obriga as partes (artigo 31 da Lei de Arbitragem27), constituindo título executivo. Entretanto, a execução (coerção, imposição da decisão) é monopólio do Estado, podendo ser realizada somente pelo Poder Judiciário28, nos termos do artigo 515, inciso VII e do artigo 516, inciso III, ambos do Código de Processo Civil. A arbitragem pode ser convencionada através de cláusula arbitral ou compromissória – a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam surgir, relativamente a tal contrato (artigo 4º, Lei n. 9.307/199629) – e através de compromisso arbitral – a convenção através da qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial (artigo 9º, Lei de Arbitragem30). Cabível aqui relacionar outros quatro meios adequados de solução de conflitos que muito se assemelham à arbitragem: rent-a-judge, baseball arbitration, high-low arbitration e dispute resolution board. No rent-a-judge (“alugue um juiz”, em tradução literal), verificado nos Estados Unidos, os litigantes apresentam o caso a um juiz de um tribunal privado, mas com todo o aparelhamento do processo judicial. Estes juízes são, normalmente, magistrados aposentados ou advogados, autorizados pela corte. É também intitulado private judging e se encontra num meio-termo entre a arbitragem e a via judicial padrão31. A baseball arbitration ou final-offer arbitration, também desenvolvida nos Estados Unidos, é considerada uma ramificação da arbitragem e recebeu essa denominação por ser utilizada em questões relacionadas aos contratos esportivos dos jogadores de baseball. Neste modelo, cada uma das partes apresenta ao árbitro uma oferta e, após a audiência final, este escolherá uma delas, sem modificação. Dessa forma, esse tipo de arbitragem limita a decisão do árbitro, o que leva as partes a oferecerem uma proposta razoável, com a esperança de que sua oferta seja aceita32. A high-low arbitration é uma modalidade de arbitragem pela qual as partes concordam sobre as margens valorativas que limitarão a sentença. Assim, se a decisão do árbitro fixar um valor menor que o mínimo estabelecido pelas partes, fica valendo o valor mínimo; do mesmo modo, se o valor definido na sentença for maior, vale o máximo ofertado. Caso a sentença arbitral esteja dentro dos limites estabelecidos entre as partes, será vinculativa33. No dispute resolution board (DRB) ou comitê de resolução de disputas é elaborada uma comissão, normalmente composta por três especialistas eleitos previamente ao procedimento. Periodicamente, os membros se reúnem com a finalidade de acompanhar a execução de um determinado contrato, sendo possível antever um problema e, se de fato vier a ocorrer, oferecer uma resposta em tempo hábil. Trata-se de método utilizado durante a execução de obras mais complexas e demoradas34. A seu turno, a autocomposição, para Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme, consiste: [...] em um método de resolução de conflito pelas próprias partes que o vivenciam, sem a participação de outro agente no processo de pacificação do entrave. Percebe-se o despojamento unilateral de outrem da vantagem por este almejada. Não há, em tese, nenhum exercício de coerção pelos indivíduos. É bem dizer que é um modo de solução que simplesmente se dá por meio dos próprios envolvidos, sem que eles se valham de uma terceira pessoa para defini-lo. Sua natureza jurídica nada mais é que um negócio jurídico bilateral, sem haver nenhuma jurisdição do mediador e do conciliador, por exemplo, já que a finalidade não é uma sentença e sim a autonomia de vontade das próprias partes que estruturam seus interesses [...]35 Diversamente da heterocomposição, a autocomposição é um meio de resolução não adversarial, no qual a solução é negociada (i) havendo uma construção (ii) dela entre as partes, que chegam a um consenso (iii), em um procedimento informal (iv) e que interessa à solução da questão em disputa e ao relacionamento entre os envolvidos (v). Ademais, as partes atuam juntas, de forma cooperativa, e se beneficiam com a solução criada (ganha-ganha). A decisão resolve o problema em conformidade com os interesses, sem que necessariamente seja invocada a aplicação de uma lei ou precedente. Os exemplos mais consagrados são a negociação (direta ou bipolar), a mediação e a conciliação – assistidas, triangulares ou indiretas. Pertinente aqui discorrer um pouco sobre a teoria dos jogos. Trata-se do estudo formal das expectativas racionais e consistentes que os participantes têm sobre as escolhas dos outros. Cuida-se, porém, de uma demonstração matemática, abstrata e dedutiva sobre as condições em que a decisão é considerada racional, consistente ou não contraditória, e não um estudo empírico de como as pessoas tomam decisões em um caso concreto36. Em outras palavras, consiste em entender que a decisão não é independente e que os ganhos dependem da combinação de muitas ações em cadeia até chegar ao equilíbrio. Conforme a matemática da teoria dos jogos, existem jogos ou relações de soma zero e outros de soma não zero. Aqueles são os não cooperativos e nos quais o antagonismo é supostamente absoluto, porque um jogador não agregará valor algum de utilidade se cooperar com o outro. Esta, em princípio, revela-se a lógica aplicável a conflitos entre pessoas que não têm vínculos de convivência, que não se enxergam interdependentes e, assim, que não se sentem no dever ou inclinação de colaborar. A seu turno, os jogos tidos como de soma “não zero” envolvem situações em que os oponentes convivem e persistem na convivência, pois aí fica mais evidenciada a compreensão da interdependência e da necessidade comum a ser atendida numa perspectiva de ganha-ganha. Em razão disso, a melhor alternativa seria, antes de tomar uma decisão, criar um ambiente de empatia, ou seja, colocar- se no lugar do outro e imaginar qual seria a reação dele diante de ações e de incentivos. Revela-se, portanto, importantíssimo salientar a característica da cooperação nos modos de solução de conflitos autocompositivos. Há um novo paradigma social que começa a ser difundido, no qual a busca por uma sentença judicial passa a ser abandonada em favor da autocomposição dos conflitos. Nesta linha, a cooperação tornou-se um princípio do novo Código de Processo Civil, previsto expressamente em seu artigo 6º, assim redigido:“Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.” (grifo nosso). Este princípio merece destaque, pois a intenção é acabar com a cultura da litigância, isto é, aquela concepção de que é necessário “brigar” nos processos sempre com o intuito de “derrotar” a outra parte, ainda muito difundida na formação oferecida aos futuros profissionais nas faculdades de direito. A ideia mais amplamente divulgada sempre foi a de que todos os litígios deveriam ser resolvidos pelo processo judicial, pois trata-se de uma disputa na qual o autor e o réu estão em guerra, enquanto o juiz permanece como mero expectador ou árbitro. Através da cooperação esta realidade vem sendo alterada. Nesse sentido é a lição do juiz federal e processualista Artur César de Souza: Com isso, o dispositivo também retira aquela ideia de que o processo seria um jogo, uma simples disputa, um incessante confronto entre autor e réu. Diante dessa perspectiva de processo como relação jurídica, pode-se afirmar que os atos processuais nele praticados e produzidos têm um objetivo comum, isto é, corresponde a uma mútua colaboração (parte e juiz) para a concretização do fim último da atividade jurisdicional que é a realização da justiça. [...] Sendo o processo não um jogo, mas um instituto de contribuição mútua, todos os participantes devem atuar de forma a contribuir para a rápida solução do litígio.37 Evidentemente, esta evolução para a cooperação entre os contendores se revela a melhor para a solução dos conflitos, no caminho das resoluções autocompositivas. Antes de adentrarmos na análise da conciliação e da mediação, que consistem nos dois sistemas adequados de resolução de conflitos por autocomposição referentes à temática proposta, revela-se adequado referirmos acerca dos demais métodos autocompositivos. São eles: avaliação neutra, ouvidoria (instituições públicas) e ombudsman (entidades privadas), negociação, facilitação de diálogos apreciativos e consensus building. A avaliação neutra (neutral evaluation) ou antecipada consiste em um processo no qual um terceiro imparcial é escolhido pelos contendores, de comum acordo, emitindo um laudo ou uma perícia não vinculativa ao final de sua apreciação para orientar as decisões que deverão ser tomadas. Tem sido crescentemente adotada no meio empresarial. Por meio dessa modalidade, inúmeras disputas judiciais ou arbitrais são evitadas, pois é comum as partes acatarem, voluntariamente, as conclusões contidas no laudo do perito avaliador38. O ouvidor, que atua nas instituições públicas, e o ombudsman, que atua nas entidades privadas, são agentes que devem receber informações geralmente provenientes do consumidor ou do cliente, tratando sobre críticas contra a própria entidade e aceitando sugestões. Sua função é disseminar dentro da instituição, às pessoas com capacidade decisórias, estas informações, visando aprimorar o serviço da entidade envolvida39. Já na negociação, os agentes em embate encontram-se diretamente e, de acordo com as suas próprias estratégias e estilos, procuram resolver uma disputa ou planejar uma transação, mediante discussões que incluem argumentação e fundamentação. É um procedimento dinâmico em que os envolvidos procuram chegar a um acordo que possa satisfazer a ambos. É necessária a contribuição de ambas as partes, possivelmente com concessões ou o recebimento de elementos, até que seja encaminhada uma composição40. A facilitação de diálogos apreciativos é um método em que o procedimento não aborda o conflito, buscando a mudança mediante a criação ou a construção de um futuro desejado e identificado pelos interessados. Esta abordagem deixa de lado o conflito e direciona os diálogos no sentido das questões que representam novos caminhos no trato intersubjetivo. Este método conta com o apoio de facilitador capacitado, independente e livremente aceito e adota a centralidade desse diálogo apreciativo, em substituição aos modelos de mediação centrados no conflito. Pratica-se a investigação apreciativa, definida como uma abordagem construcionista, baseada nas imagens partilhadas dos momentos altos e gratificantes das pessoas, equipes e organizações, voltadas para a eficácia das ações e das relações, para a mudança estruturada e para o desenvolvimento integrado41. O foco processual não é a resolução coletiva de uma situação problema, mas a construção de um futuro desejado com base no que se tem de fortalezas e de méritos concretos. O consensus building é uma espécie de mediação envolvendo muitas partes, que apresentam questões bastante complexas e múltiplas. Mostra-se mais comum para temas ambientais, sendo, outrossim, presenciada para as situações com disputas públicas em uma comunidade, nos Estados e até em níveis internacionais42. Concretizando esta modalidade, existe o Consensus Building Institute (https://www.cbi.org/), que consiste numa entidade sem fins lucrativos situada em Cambridge, Massachusetts, que foi criada pelos professores do Massachusetts Institute of Technology (MIT) que atuavam num centro especializado na resolução de conflitos coletivos por meios consensuais naquela universidade. Trata-se de uma instituição que é referência na matéria não apenas nos Estados Unidos, mas também em nível internacional. São exemplos de estudos de caso do Consensus Building Institute: (1) Projeto de Gestão Integrada do Abastecimento nos EUA; (2) Aprimoramentos no processo de licenciamento de empreendimentos econômicos em Delaware; (3) Descontaminação de uma região com resíduos tóxicos no Município de Stratford, Connecticut43. Todos estes meios alternativos de resolução de conflitos, não importando se por heterocomposição ou por autocomposição, compõem o sistema multiportas ou o tribunal multiportas, com inspiração no sistema norte-americano (Multi-door Courthouse System44), que se caracteriza exatamente por não restringir as formas de solução de controvérsias exclusivamente ao Poder Judiciário. Trata-se da expressão de uma nova arquitetura para tutelar os direitos, na qual, ao invés de uma só porta – a judicial – a justiça passa a apresentar muitas alternativas de acesso, diversas portas, diversas justiças, para uma só finalidade. Nessa linha, conforme destacam Fredie Didier Junior e Hermes Zaneti Junior45, nesta nova justiça, a solução judicial deixa de ter a primazia nos litígios que permitem a autocomposição e passa a ser a extrema ratio. Assim, do acesso à justiça dos tribunais passamos ao acesso aos direitos pela via adequada de composição, da mesma forma que, no campo do processo, migramos da tutela processual, como fim em si mesmo, para a tutela dos direitos, como finalidade do processo. Retornando aos principais sistemas, iniciam-se as conceituações pela conciliação. Para Carlos Eduardo de Vasconcelos, [...] a conciliação – variante de mediação avaliativa – é prevalentemente focada no acordo. É apropriada para lidar com relações eventuais de consumo e outras relações casuais – pessoas sem vínculos anteriores – em que não prevalece o interesse comum de manter um relacionamento, mas, fundamentalmente, o objetivo de equacionar interesses materiais ou questões jurídicas.46 Pertinente destacar também a visão dos processualistas Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero acerca do tema: 1. Conciliação. É a colaboração de um terceiro imparcial na tentativa da obtenção da autocomposição do litígio. Esse terceiro possui papel ativo da autocomposição, podendo sugerir soluções para o conflito. O papel do conciliador é mais presente do que o do mediador na medida em que é sua função sugerir alternativas para a resolução do litígio. Por outro lado, sua finalidade não é examinar todo o contexto do problema, devendo cingir-se à solução do conflito que lhe é submetido.47 De outra banda, Rafael Mendonça define a mediação: Como um método não-adversarial de (auto)conhecimentoe resolução de conflitos, uma práxis filosófica diferenciada, a qual visa permitir um olhar para novos rumos aos sujeitos, que pretende dar acesso a condições de autogestão das experiências, emancipados de muitos preceitos adquiridos (impostos?) principalmente durante o período da Modernidade. Possibilitando, assim, que a condição humana (Morin) se desenvolva em um rumo emancipatório, cidadão e mais compreensivo consigo e com o ‘Outro’ (Levinas).48 Finalmente, merece destaque a visão de Artur César de Souza sobre a questão: Mediação, por sua vez, é um meio alternativo e voluntário de resolução de conflito, ou seja, a mediação ocorre quando o acordo for alcançado pela obra de um terceiro que atua como intermediário entre as partes, facilitando e promovendo as negociações para se chegar a um acordo. É importante asseverar que na mediação o terceiro não resolve o conflito nem sugestiona, mas atua de tal modo que as partes o revolvam por meio de um acordo. Há autores que distinguem a conciliação da mediação afirmando que na conciliação o conciliador pode apreciar o mérito ou dar uma recomendação sobre uma solução que para ele seria mais justa, o que não ocorre na mediação.49 O Código de Processo Civil apresenta uma relevante diferenciação entre os institutos: Artigo 165. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição. §1º A composição e a organização dos centros serão definidas pelo respectivo tribunal, observadas as normas do Conselho Nacional de Justiça. § 2º O conciliador, que atuará preferencialmente nos casos em que não houver vínculo anterior entre as partes, poderá sugerir soluções para o litígio, sendo vedada a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem. §3º O mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos. (grifo nosso). Na mesma senda, o parágrafo único do artigo 1º da Lei de Mediação: Artigo 1º Esta Lei dispõe sobre a mediação como meio de solução de controvérsias entre particulares e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Parágrafo único. Considera-se mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia. (grifo nosso) Diante destas considerações conclui-se que conciliação e mediação consistem em sistemas de resolução de conflitos por autocomposição e ambos apresentam o auxílio de terceiros (conciliador e mediador). Em síntese, distinguem-se pelo fato de que o primeiro se revela mais adequado nos casos em que não houver vínculo anterior entre as partes, podendo existir sugestões de soluções para o litígio; já o segundo mostra-se mais apropriado nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes, como nas hipóteses envolvendo direito de família, por exemplo, não se devendo, em regra, sugestionar soluções para o conflito. Retomando a primeira parte deste capítulo50, tem-se que ambos os métodos de autocomposição mencionados são dotados de grande eficácia do ponto de vista da superação do conflito e da pacificação social, pois baseados na autonomia da vontade dos sujeitos envolvidos, uma vez que a solução é construída com a sua participação e aceitação, como seres autônomos, e não imposta por terceiros, de forma heterônoma. 1 SCHNEEWIND, Jerome B. A invenção da autonomia. Tradução de Magda França Lopes. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2001, p. 560. 2 MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia, tomo I (A-D). Tradução de Maria Stela Gonçalves, Adail U. Sobral, Marcos Bagno e Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 2000, p.234. 3 MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia, tomo II (E-J). Tradução: Maria Stela Gonçalves, Adail U. Sobral, Marcos Bagno e Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 2000, p.1457. 4 MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia, tomo I (A-D). Tradução: Maria Stela Gonçalves, Adail U. Sobral, Marcos Bagno e Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 2000, p.234-235. 5 CANTO-SPERBER, Monique (Org.). Dicionário de ética e filosofia moral. v.1. Tradução de Ana Maria Ribeiro-Althoff, Magda França Lopes, Maria Vitória Kessler de Sá Brito e Paulo Neves. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2003, p. 135. 6 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.68. 7 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.69. 8 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 70-71. 9 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.71. 10 “Páthos pátòs (locução grega que significa “o que acontece, incidente, acidente, experiência, infortúnio, calamidade, emoção, estado, condição”) substantivo masculino de dois números 1. Emoção intensa que uma obra de arte ou um acontecimento desperta no .espectador. 2. [Retórica] Método de persuasão que apela às emoções do público.” in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013. Disponível em: https://www.priberam.pt/dlpo/p%C3%A1thos. Acesso em: 25 jan. 2018. 11 PACHUKANIS, Evguiéni Bronislávovich. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Tradução: Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 162-63. 12 KELSEN, Hans. Teoría Comunista Del Derecho Y Del Estado. Buenos Aires: Emecé, 1957, p. 59-79. 13 VILLEY, Michel. Filosofia do direito: definições e fins do direito: os meios do direito. Tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 72. 14 Verbo utilizado sem tom pejorativo. 15 VILLEY, Michel. Filosofia do direito: definições e fins do direito: os meios do direito. Tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.72- 73. 16 VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017, p.222. 17 Ver supra, neste mesmo item 2.1, deste mesmo capítulo, p. 17, primeiro parágrafo. 18 MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Novo Código de Processo Civil – o Ministério Público e os métodos autocompositivos de conflito – negociação, mediação e conciliação. In: Justiça multiportas: mediação, conciliação, arbitragem e outros meios de solução adequada para conflitos. (Coords.) Hermes Zanetti Jr. e Trícia Navarro Xavier Cabral. Coleção grandes temas do novo CPC. v.9. Coord. geral: Fredie Didier Jr. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 258. 19 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Breves notas sobre os modos de resolução de conflitos. In: (Org.) WALD, Arnoldo, Mediação e outros institutos. Coleção Doutrinas Essenciais: arbitragem e mediação. v.6. São Paulo: RT, 2014, p. 361-362. 20 BOBBIO, Norberto. 1909 – Dicionário de política. v.I (A-K). 2.ed. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino; tradução de Carmen C. Varriale et al.; tradução de João Ferreira; revisão geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. Brasília: Universidade de Brasília, 1999, p.225-226. 21 “Raça ou clã que abarca várias famílias unidas por um nome comum e alguns ritos religiosos.” (HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.1440). 22 “1. Tribo de tártaros ou de outros nômades. 2. Bando indisciplinado, malfazejo, que prova desordem, brigas etc. 3. Grupo numeroso de pessoas; multidão”. (HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaissda Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.1551). 23 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Breves notas sobre os modos de resolução de conflitos. In: (Org.) WALD, Arnoldo. Mediação e outros institutos. Coleção Doutrinas Essenciais: arbitragem e mediação. v.6. São Paulo: RT, 2014, p. 363. 24 Acerca deste atributo do ato administrativo, leciona Aloísio Zimmer Júnior: “(...), o que decorre dessa qualidade conferida a determinados atos administrativos é que, por vezes, a Administração realizará concretamente o seu direito sem a necessidade de provocar a atuação do Poder Judiciário. (...) Este atributo justifica-se porque a Administração não poderia defender adequadamente os interesses sociais se, a todo momento que encontrasse alguma resistência do particular, tivesse que recorrer ao Judiciário para remover a oposição contra a atuação pública.” ZIMMER JÚNIOR. Aloísio. Curso de Direito Administrativo. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007, p. 108. 25 GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Manual dos MESCs, meios extrajudiciais de solução de conflitos – arbitragem, mediação, conciliação, negociação, ombudsman, avaliação neutra. Barueri, SP: Manole, 2016, p.07-08. 26 Artigo 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. 27 Artigo 31. A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo. 28 Nesse sentido, a lição de Luiz Antonio Scavone Junior: “Seja qual for a natureza e a classificação, a sentença arbitral, integral ou parcial, exerce, como vimos, o mesmo efeito da sentença judicial transitada em julgado nos termos dos arts. 18 e 31 da Lei de Arbitragem: (...). A única diferença é que o árbitro não é dotado de coerção de tal sorte que a execução de suas decisões demandará, diante da resistência, a atuação do juiz togado, a quem competirá materializar a sentença arbitral.” SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Manual de arbitragem, mediação e conciliação. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 193-94. 29 Artigo 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato. 30 Artigo 9º O compromisso arbitral é a convenção através da qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial. 31 MANUAL de mediação de conflitos para advogados. Ministério da Justiça. Brasil, 2014, p. 31. Disponível em: <http://camc.oabrj.org.br>. Acesso em: 03 ago. 2018. 32 MANUAL de mediação de conflitos para advogados. Ministério da Justiça. Brasil, 2014, p. 31-32. Disponível em: <http://camc.oabrj.org.br>. Acesso em: 03 ago. 2018. 33 MANUAL de mediação de conflitos para advogados. Ministério da Justiça. Brasil, 2014, p. 32. Disponível em: <http://camc.oabrj.org.br>. Acesso em: 03 ago. 2018. 34 MANUAL de mediação de conflitos para advogados. Ministério da Justiça. Brasil, 2014, p. 33-34. Disponível em: <http://camc.oabrj.org.br>. Acesso em: 03 ago. 2018. 35 GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Manual dos MESCs, meios extrajudiciais de solução de conflitos – arbitragem, mediação, conciliação, negociação, ombudsman, avaliação neutra. Barueri, SP: Manole, 2016, p.07. 36 VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017, p. 189. 37 SOUZA, Artur César de. Código de Processo Civil: anotado, comentado e interpretado: parte geral (arts. 1 a 317). v.I. São Paulo: Almedina, 2015, p.80-83. 38 VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017, p.71. 39 GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Manual dos MESCs, meios extrajudiciais de solução de conflitos – arbitragem, mediação, conciliação, negociação, ombudsman, avaliação neutra. Barueri, SP: Manole, 2016, p. 17. 40 GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Manual dos MESCs, meios extrajudiciais de solução de conflitos – arbitragem, mediação, conciliação, negociação, ombudsman, avaliação neutra. Barueri, SP: Manole, 2016, p. 18. 41 VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017, p.72. 42 GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Manual dos MESCs, meios extrajudiciais de solução de conflitos – arbitragem, mediação, conciliação, negociação, ombudsman, avaliação neutra. Barueri, SP: Manole, 2016, p. 21. 43 SOUZA, Luciane Moessa de. Resolução consensual de conflitos coletivos envolvendo políticas públicas. 1. ed. Brasília, DF: FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA/FUB, 2014, p. 194. 44 A consagrada expressão multi-door courthouse foi originalmente usada pelo professor de Harvard, Frank Sander, em 1976, em conferência publicada em 1979: Frank Sander. Varieties of dispute processing, Minnesota: West Publishing, 1979, p.65/87, segundo o artigo “Canadá é um bom exemplo do uso da mediação obrigatória”, no site da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (ArpenBrasil). Disponível em: <http://www.arpenbrasil.org.br>. Acesso em: 08 ago. 2018. 45 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Justiça multiportas e tutela constitucional adequada: autocomposição em direitos coletivos. In: (Coords.) ZANETTI JUNIOR, Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça multiportas: mediação, conciliação, arbitragem e outros meios de solução adequada para conflitos. Coleção grandes temas do novo CPC. v.9. Coord. Geral: Fredie Didier Jr. Salvador: Juspodivm, 2016, p.36. 46 VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017, p.64. 47 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil comentado. 2.ed. São Paulo: RT, 2016, p.292. 48 MENDONÇA, Rafael. (Trans) modernidade e mediação de conflitos. Pensando paradigmas, devires e seus laços com um método de resolução de conflitos. Florianópolis: Habitus, 2006, p.18-19. 49 SOUZA, Artur César de. Código de Processo Civil: anotado, comentado e interpretado: parte geral (arts. 1 a 317). v.I. São Paulo: Almedina, 2015, p.877. 50 Ver supra, item 2.1, deste mesmo capítulo, a partir da p. 17. 3. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS 3.1 CONCEITO E DISTINÇÃO FRENTE À HIPOTECA Neste segundo momento da dissertação, oportuno analisarmos o instituto da alienação fiduciária de bens imóveis. Antes, porém, discorreremos brevemente acerca da origem histórica da alienação fiduciária e do seu conceito geral. Fidúcia significa gesto confiante, comportamento ousado; atrevimento, confiança, fidúncia, segurança51. O negócio fiduciário, que se caracteriza por ser aquele em que a transmissão da propriedade tenha outro fim que não a própria transmissão, é conhecido desde o direito romano. Nas palavras de Marcelo Terra: O negócio fiduciário se caracteriza pela existência do risco decorrente da confiança depositada pelo transmitente em garantia na pessoa do adquirente e, ainda, pelo fato de as partes, em face de um fim prático, escolherem um negócio jurídico (alienação), cujos efeitos excedem aos fins por elas pretendidos (garantia).52 O fator confiança existente no negócio fiduciário remonta às origens da fidúcia e lhe justifica o nome, estando presente até hoje nos negócios fiduciários. Esta espécie de negócio tem por ascendentes históricos contratos utilizados no direito romano, conforme ensina Carlos Roberto Gonçalves: [...] alienação fiduciária em garantia, inspirada na fidúcia “cum creditore” do direito romano, pela qual o devedor transferia, por venda, bens seus ao credor, com a ressalva de recuperá-los se, dentro em certo tempo, ou sob dada condição, efetuasse o pagamento da dívida. O aludido direito conheceu também a fidúcia“cum amico”, baseada na confiança e que permitia a uma pessoa acautelar seus bens contra determinados riscos, alienando-o a um amigo, com ressalva de lhe serem restituídos após passado o perigo 53. A partir da Idade Média, passa a configurar-se na Inglaterra o instituto do trust, que consistia na obrigação imposta por convenção ou por decorrência de lei, em virtude da qual o obrigado deveria gerir bens sobre os quais tinha controle para benefício de certas pessoas, que poderiam exigir o implemento da obrigação, ou para uma finalidade caritativa, que poderia ser exigida pelo Ministério Público, ou para algumas outras finalidades permitidas por lei, embora não exequíveis. Os aspectos fundamentais do trust, segundo Melhim Namem Chalhub54, eram: i) a existência de uma obrigação que pode ter sido convencionada expressamente ou que pode decorrer da lei; ii) a restrição do poder jurídico que o trustee (aquele que recebia os bens e assumia a obrigação de administrá-los) tinha sobre os bens objeto do trust; iii) a separação entre o controle dos bens e a integridade do direito do beneficiário sobre os mesmos, na medida em que o obrigado (trustee) podia ser uma das pessoas que gozavam do direito de beneficiário; iv) a legitimação de qualquer dos beneficiários para exigir o cumprimento da obrigação. No Brasil, as garantias existentes nos sistemas jurídicos de origem romana, como a hipoteca, o penhor e a anticrese, não mais satisfaziam a uma sociedade industrializada, nem mesmo nas relações de crédito entre pessoas físicas, pois apresentavam graves desvantagens pelo custo e pela morosidade em executá-las. Assim, a alienação fiduciária foi concebida em nosso ordenamento jurídico em 1965, pela Lei n. 4.728, que disciplina o mercado de capitais e estabelece medidas para o seu desenvolvimento. Esta lei, posteriormente regulamentada pelo Decreto-lei n. 911/1969, foi a primeira a tratar da alienação fiduciária, porém tendo como objeto somente bens móveis. Posteriormente, em 1997, a Lei n. 9.514, que disciplina o chamado Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI), trouxe a possibilidade de se alienar fiduciariamente bens imóveis, dando maior amplitude ao instituto. Adotou-se, então, determinadas características do modelo do trust anglo- saxão. Esta norma, que já sofreu alterações desde a sua promulgação, veio para fortalecer o mercado imobiliário por meio da recuperação rápida de crédito, em caso de inadimplência do mutuário. Isso facilitou a concessão de créditos ao consumidor, não apenas através das instituições financeiras, mas também por meio de pessoas físicas e jurídicas, não consistindo, assim, monopólio das entidades que operam o Sistema de Financiamento Imobiliário a utilização dos contratos de alienação fiduciária (artigo 22, §1º da Lei n. 9.514/1997). Partindo para o conceito geral da alienação fiduciária em garantia, na lição de Mário Pazutti Mezzari55, o instituto consiste no contrato pelo qual o devedor ou fiduciante, como garantia de uma dívida, pactua a transferência da propriedade fiduciária do bem ao credor ou fiduciário sob condição resolutiva expressa. Por sua vez, José Alfredo Ferreira de Andrade56 sustenta que a alienação fiduciária é um direito real de garantia em que o devedor fiduciário, proprietário de determinada coisa, aliena-a fiduciariamente ao credor fiduciário, tornando-se depositário e possuidor direto do bem. A finalidade é que esse credor, com a posse indireta e o domínio resolúvel, possa receber o crédito devido e, no caso de inadimplemento da obrigação contratual, possa vender a coisa, ressarcindo-se dos prejuízos havidos; caso contrário, quando do integral pagamento da dívida, tem a obrigação de transferir a coisa ao devedor fiduciário. Assim, a alienação fiduciária, em sentido lato, é o negócio jurídico pelo qual uma das partes, em razão da concessão de um crédito, adquire a propriedade de um bem, cuja posse permanece com o devedor, obrigando-se a devolvê-la assim que a obrigação que está sendo garantida por essa transmissão de propriedade for adimplida. Destaque para o ânimo da transmissão, que não é definitivo. A intenção é, na verdade, que o bem retorne ao patrimônio do devedor. Já o conceito de alienação fiduciária de bem imóvel é trazido pela própria Lei n. 9.514/1997, em seu artigo 22: “A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.” Em complemento, José de Mello Junqueira ensina: A alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel se constitui pela transferência feita pelo devedor ao credor, da propriedade resolúvel e da posse indireta de um imóvel, para garantia de seu débito, resolvendo-se o direito do adquirente com o pagamento da dívida garantida, retornando o alienante à sua situação de domínio pleno da coisa.57 Pela análise do dispositivo legal e dos ensinamentos de José de Mello Junqueira, a alienação fiduciária de bem imóvel, tal como a de bem móvel, é espécie de negócio jurídico fiduciário, porque a transmissão da propriedade ao credor é feita unicamente para garantir o cumprimento de obrigação e não com a finalidade de que seja definitiva, na medida em que o cumprimento do contrato ensejará a devolução da propriedade do bem. Assim, a alienação fiduciária é espécie de contrato acessório a um contrato principal e que tem por finalidade sua garantia. Através dele, a propriedade resolúvel de bem imóvel é transmitida pelo fiduciante ao fiduciário, como forma de garantir o pagamento de uma dívida e com a intenção de reaver o imóvel assim que cumprida integralmente a obrigação. Ao lado da alienação fiduciária, os outros direitos reais de garantia, já mencionados58, são: anticrese, penhor e hipoteca. A anticrese, na dicção de Sílvio de Salvo Venosa59, é instituição paralela ao penhor e à hipoteca, ficando a meio do caminho entre ambos. Enquanto no penhor típico se transfere a posse da coisa ao credor, que dela não pode se utilizar, e na hipoteca o bem continua na posse do devedor, na anticrese o credor assume necessariamente a posse do bem para usufruir seus frutos, a fim de amortizar a dívida ou receber juros. O credor anticrético recebe a posse de coisa imóvel frugífera, ficando os frutos vinculados à extinção da dívida. Este direito real de garantia desempenha uma dupla função: 1ª) servir como garantia de pagamento da dívida, porque o credor anticrético tem direito de reter o imóvel até sua extinção; 2ª) servir de meio de execução direta da dívida, pois ao credor é atribuído o direito de receber os frutos e imputar-lhes no pagamento dos juros e do capital. A anticrese é de rara aplicação prática, mas, mesmo assim, foi mantida sua previsão no Código Civil de 2002, nos artigos 1.506 ao 1.510. Já o penhor, segundo Flávio Tartuce60, é constituído, em regra, sobre bens móveis, ocorrendo a transferência efetiva da posse do bem do devedor ao credor, também em regra. Diz-se duplamente em regra porque no penhor rural, industrial, mercantil e de veículos as coisas empenhadas continuam em poder do devedor, que as deve guardar e conservar, bem como porque nem sempre o penhor recairá sobre coisa móvel. As partes do penhor são o (i) devedor pignoratício, que é aquele que dá a coisa em garantia, tendo a dívida em seu desfavor, podendo ser o próprio devedor ou terceiro; e o (ii) credor pignoratício, que é aquele que tem o crédito e o direito real de garantia a seu favor. A seu turno, a hipoteca, para Tupinambá Miguel Castro do Nascimento: [...] é um direito que se realiza em favor de um credor sobre coisa normalmente imóvel, pertencente ao devedor, se consubstanciando tal direito no poder do credor de sujeitar a coisa, de forma coativa, ao pagamento preferencial da dívida garantida, e se caracterizando o direito do credor como direito real, oponível contra todos. Desta maneira, toda garantiahipotecária pressupõe uma dívida a que garanta. A hipoteca não tem, no Direito brasileiro, autonomia, dependendo sua existência de um débito a que vai garantir. Inclusive, pela regra do artigo 849, I, do Código Civil61, há a extinção da hipoteca “pelo desaparecimento da obrigação principal”62. Cabe destacar também a definição de Augusto Passamani Bufulin63, para quem a hipoteca é um direito de garantia que permite ao credor resguardar no patrimônio do devedor um determinado bem, em regra imóvel, para que em caso de inadimplência, possa promover a excussão judicial desse bem, com preferência sobre o produto da alienação em relação a outros credores. A hipoteca não assegura o direito sobre a própria coisa, mas apenas uma preferência sobre o valor da coisa após sua excussão judicial. Acerca da hipoteca, na linha do pensamento de Luiz Guilherme Loureiro64, frisa-se que, historicamente, a finalidade principal do registro de imóveis era garantir exatamente a publicidade das hipotecas. No século XIX, o Brasil encontrava-se em vias de industrialização e, desse modo, era preciso estimular o crédito e, consequentemente, instituir um sistema de garantias reais estável e seguro. Daí a necessidade de conferir ampla publicidade às hipotecas, de forma que os credores hipotecários tivessem certeza da existência, da validade e da eficácia de seus direitos reais de garantia. Nessa senda, o registro de hipotecas foi previsto pela primeira vez, ainda que timidamente, na Lei Orçamentária n. 317/184365, regulamentada pelo Decreto n. 482/1846. Posteriormente, a Lei n. 1.237/1864, através do Regulamento n. 3.453/1865, instituiu o registro geral para a transcrição dos títulos de transmissão de imóveis sujeitos à hipoteca e a inscrição de hipotecas66. De acordo com esta Lei, a transmissão entre vivos de bens suscetíveis de hipoteca, além da instituição de ônus reais, não operaria seus efeitos em relação a terceiros, senão pela transcrição em registro público e desde a data desta67. Os diplomas que se seguiram (Lei n. 3.272/1885, Decreto n. 169- A/1890, Decreto n. 370/1890 e Decreto n. 544/1890) confirmaram este sistema de registro de imóveis. De acordo com ele, não levada a efeito a transcrição de um título de alienação, não havia transferência de direitos reais oponíveis erga omnes, mas um simples contrato, do qual se extraíam meros direitos pessoais, oponíveis apenas entre as partes. Entretanto, tratava-se de um sistema parcial e fragmentário de registro de imóveis, uma vez que apenas possibilitava a transcrição de atos entre vivos de constituição ou transmissão de direitos reais sobre bens suscetíveis de hipoteca, como também da inscrição de garantias reais. Não ingressavam no sistema as aquisições de direitos reais causa mortis e por usucapião, tampouco os atos judiciais. Este panorama foi modificado apenas com o Código Civil de 1916, cujo artigo 85668 conferiu ao sistema de registro de imóveis uma amplitude muito maior. Tal ampliação foi seguida nas Leis n. 4.827/1924 e n. 15.542/1928 e no Decreto n. 4.857/1939, estabelecendo a transcrição em caráter geral abrangendo os formais de partilha, as sentenças de usucapião, a arrematação e a adjudicação de imóvel em hasta pública, dentre outros. Além desta mudança de paradigma do sistema de registro de imóveis, conforme apontam Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe69, a garantia hipotecária perdeu força e revelou sua fragilidade por três fatores principais: a) nas execuções concursais (falência e insolvência civil) a ordem de preferência privilegiava outros créditos (trabalhistas e fiscais) em detrimento dos credores com garantia real tradicional sobre o bem do devedor; b) as execuções individuais extrajudiciais sumárias, pelo rito do Decreto-lei n. 70/1966 (artigos 31 a 38), vinham sofrendo restrições pelo Poder Judiciário por vício de inconstitucionalidade70; c) nas execuções judiciais individuais surgiram inúmeros percalços decorrentes da lentidão do rito processual, agravados por liminares e pela crescente onda de oposição de embargos de terceiros à penhora, por possuidores de imóveis a título de compromissos de compra e venda com título inscrito e, presente a boa-fé, até não registrado o citado título no registro de imóveis, anterior ou posterior à hipoteca. Comparando especialmente com a hipoteca, destaca-se que a propriedade fiduciária é direito próprio do credor, posto que resolúvel. Assim, é um direito real sobre coisa própria, enquanto a hipoteca consiste em um ônus real que incide sobre coisa alheia. Esta diferenciação implica importantes consequências, sendo a principal delas a segregação patrimonial da propriedade fiduciária. Ou seja, com a contratação da alienação fiduciária é estabelecida uma afetação patrimonial, de modo que o bem alienado não é atingido pelos efeitos de eventual insolvência do devedor ou do credor, o que não ocorre na hipoteca. Por isso, tratando-se de hipoteca, se cair em insolvência o devedor , o bem objeto da garantia, que não saiu do seu patrimônio, será arrecadado pelo administrador judicial da massa falida, enquanto no caso da propriedade fiduciária, se cair em insolvência o devedor fiduciante, o bem objeto da garantia, excluído do seu patrimônio, será objeto de restituição ao credor fiduciário (artigo 32 da Lei n. 9.514/199771, combinado com os artigos 85 e seguintes da Lei nº 11.101/2005 - Lei de Falências), que promoverá sua venda, na forma da lei, e aplicará o produto da venda na satisfação do seu próprio crédito, sem concorrência com os demais credores. Retomando a análise da alienação fiduciária de bem imóvel72, salienta- se que a Lei n. 9.514/1997 apresenta o elemento propriedade resolúvel, ou seja, o que é transmitido ao credor é a propriedade sob a condição resolutiva do adimplemento, hipótese em que o bem é restituído ao patrimônio do devedor. A propriedade resolúvel que, nos termos do artigo 23 da Lei, é chamada de propriedade fiduciária, caracteriza-se, também, por ser uma limitação temporal ao domínio do devedor. Assim, a propriedade adquirida pelo credor fiduciário não é plena, pois uma vez quitada a dívida, o bem retorna automaticamente ao devedor, com efeitos retroativos, como se o negócio nunca tivesse existido. A natureza jurídica do contrato de alienação fiduciária é de garantia. Isso fica claro, pois, com a sua realização, o que se almeja não é a transmissão da propriedade, mas assegurar o cumprimento de outro negócio jurídico principal, razão pela qual ele será sempre acessório. Nesse sentido, costuma-se dizer que o contrato de alienação fiduciária é “translativo de direito real, mas vinculado a uma obrigação, em que a eficácia fica subordinada ao adimplemento do encargo assumido pelo fiduciante”.73 Quanto à acessoriedade do contrato, nos ensinamentos de Afranio Carlos Camargo Dantzger: Trata-se indubitavelmente de contrato acessório, isto porque nunca se viu ou se verá efetivar-se um contrato de alienação fiduciária em garantia independente de outro contrato, principal, pois é este que, ao reclamar uma garantia para o seu cumprimento, faz surgir aquele74. Assim, a alienação fiduciária é um contrato acessório, de garantia por excelência, na medida em que nasce para assegurar um crédito gerado por outro contrato, principal. Com efeito, a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel trata-se de negócio que faz nascer uma relação jurídica que, assim como outros contratos, conterá seus elementos próprios: (a) sujeitos, (b) objeto e (c) forma. a) sujeitos: os sujeitos do contrato de alienação são o alienante e o adquirente da propriedade fiduciária. O primeiro, também chamado de devedor fiduciante, na maioria das vezes, é aquele que busca um crédito com o segundo, também chamado de credor fiduciário, transmitindo a ele a propriedade resolúvel do imóvel, como garantia do pagamento do crédito. Pode ser também uma terceira pessoa, que aliene imóvel para garantir a dívida de outrem, hipótese em
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