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Cinquenta_Anos_Depois

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Cinquenta 
Anos 
Depois 
Do Espírito: 
EMMANUEL 
Psicografado por: 
FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
2 – Francisco Cândido Xavier  
CINQUENTA ANOS DEPOIS 
EPISÓDIOS DA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO 
NO SÉCULO II 
Do Espírito: 
Emmanuel 
(primeira edição lançada em 1989 pela FEB) 
Psicografada por: 
Francisco Cândido Xavier  
Editado por: 
FEB – Federação Espír ita Brasileir a 
www.febnet.org.br  
Digitalizada por: 
L. Neilmor is 
© 2008 – Brasil 
www.luzespirita.org.br
3 – CINQUENTA ANOS DEPOIS (pelo Espírito Emmanuel) 
Cinquenta 
Anos 
Depois 
EPISÓDIOS DA HISTÓRIA 
DO 
CRISTIANISMO NO SÉCULO I 
Romance de: 
EMMANUEL 
Psicografada por: 
FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
4 – Francisco Cândido Xavier  
Índice 
Carta ao leitor – pag. 5 
PRIMEIRA PARTE 
1 ­ Uma família romana – pag. 9 
2 ­ Um anjo e um filósofo – pag. 19 
3 ­ Sombras domésticas – pag. 39 
4 ­ Na Via Nomentana – pag. 55 
5 ­ A pregação do Evangelho – pag. 64 
6 ­ A visita ao cárcere – pag. 76 
7 ­ Nas festas de Adriano – pag. 90 
SEGUNDA PARTE 
1 ­ A morte de Cneio Lucius – pag. 105 
2 ­ Calúnia e sacrifício – pag. 123 
3 ­ Estrada de amargura – pag. 136 
4 ­ De Minturnes a Alexandria – pag. 158 
5 ­ O caminho expiatório – pag. 176 
6 ­ No horto de Célia – pag. 193 
7 ­ Nas Esferas Espirituais – pag. 214
5 – CINQUENTA ANOS DEPOIS (pelo Espírito Emmanuel) 
Carta ao leitor 
Meu amigo, Deus te conceda paz. 
Se  leste  as  páginas  singelas  do  "Há  Dois Mil  Anos...",  é  possível 
que  procures  aqui,  a  continuação  das  lutas  intensas,  vividas  pelas  suas 
personagens reais, na arena de lutas redentoras da Terra. 
É por esse motivo que me sinto obrigado a explicar­te alguma coisa, 
com respeito ao desdobramento desta nova história. 
Cinquenta  anos  depois  das  ruínas  fumegantes  de  Pompeia,  nas 
quais  o  Impiedoso  senador  Públio  Lentulus  se  desprendia  novamente  do 
mundo, para aferir o valor de suas dolorosas experiências terrestres, vamos 
encontrá­lo, nestas páginas, sob a veste humilde dos escravos, que o seu 
orgulhoso  coração  havia  espezinhado  outrora.  A  misericórdia  do  Senhor 
permitia­lhe  reparar,  na  personalidade  de  Nestório,  os  desmandos  e 
arbitrariedades  cometidos  no  pretérito,  quando,  como  homem  público, 
supunha guardar nas mãos vaidosas, por  injustificável direito divino,  todos 
os  poderes. Observando  um homem  cativo,  reconhecerás,  em  cada  traço 
de  seus  sofrimentos,  o  venturoso  resgate  de  um  passado  de  faltas 
clamorosas. 
Todavia,  sinto­me  no  dever  de  esclarecer­te  a  curiosidade,  com 
referência aos seus companheiros mais diretos, na nova romagem terrena, 
de que este livro é um testemunho real. 
Não obstante estarem na Terra, pela mesma época, os membros da 
família Severus, Flávia e Marcus Lentulus, Saul e André de Gioras, Aurélia, 
Sulpicio, Fúlvia e demais comparsas do mesmo drama, devo esclarecer­te 
que todos esses companheiros de luta mourejavam, na ocasião, em outros 
setores  de  sofrimentos  abençoados,  não  comparecendo  aqui,  onde  o 
senador Públio Lentulus aparece, aos teus olhos, na indumenta de escravo, 
já na idade madura, como elemento integrante de um quadro novo. 
De  todas  as  personagens  do  "Há  Dois  Mil  Anos...",  um  contínuo 
aqui se encontra, junto de outras figuras do mesmo tempo, como Policarpo, 
embora não relacionado nominalmente no livro anterior, companheiro esse 
que,  pelos  laços  afetivos,  se  lhe  tornara  um  irmão  devotado  e  carinhoso, 
pelas mesmas lutas Políticas e sociais. A Roma de Nero e de Vespasiano. 
Quero  referir­me  a  Pompilio  Crasso,  aquele  mesmo  irmão  de  destino  na
6 – Francisco Cândido Xavier  
destruição de Jerusalém, cujo coração palpitante lhe  fora retirado do peito 
por Nicandro, às ordens severas de um chefe cruel e vingativo. 
Pompílio  Crasso  é  o  mesmo  Helvídio  Lucius  destas  páginas, 
ressurgindo  no mundo  para  o  trabalho  renovador  e, aludindo  a  um amigo 
dedicado e generoso, quero dizer­te que este livro não foi escrito de nós e 
por nós, no pressuposto de descrever as nossas lutas transitórias no mundo 
terrestre. 
Este  livro é o repositório da verdade sobre um coração sublime de 
mulher, transformada em santa, cujo heroísmo divino foi uma luz acesa na 
estrada de numerosos Espíritos amargurados e sofredores. 
No  "Há  Dois  Mil  Anos..."  buscávamos  encarecer  uma  época  de 
luzes e sombras, onde a materialidade romana e o Cristianismo disputavam 
a  posse  das  almas,  num  cenário  de  misérias  e  esplendores,  entre  as 
extremas  exaltações  de  César  e  as  maravilhosas  edificações  em  Jesus 
Cristo. Ali, Públio Lentulus se movimenta num acervo de farraparias morais 
e deslumbramentos transitórios; aqui, entretanto, como o escravo Nestório, 
observa ele uma alma. 
Refiro­me  a  Célia,  figura  central  das  páginas  desta  história,  cujo 
coração,  amoroso  e  sábio,  entendeu  e  aplicou  todas  as  lições  do  Divino 
Mestre, no transcurso doloroso de sua vida. Na sequência dos fatos, dentro 
da  narrativa,  seguirás  os  seus  passos  de  menina  e  de  moça,  como  se 
observasses um anjo pairando acima de  todas as contingências da Terra. 
Santa pelas virtudes e pelos atos de sua existência edificante, seu Espírito 
era  bem  o  lírio  nascido  do  lodo  das  paixões  do mundo,  para  perfumar  a 
noite da vida terrestre, com os olores suaves das mais divinas esperanças 
do Céu. 
Podemos  afirmar,  portanto,  leitor  amigo,  que  este  volume  não 
relaciona,  de modo  integral,  a  continuação  das  experiências  purificadoras 
do  antigo  senador  Lentulus,  nos  círculos  de  resgate  dos  trabalhos 
terrestres. É a história de um sublime coração feminino que se divinizou no 
sacrifício e na abnegação, confiando em Jesus, nas  lágrimas da sua noite 
de dor e  de  trabalho, de  reparação e de esperança. A  Igreja Romana  lhe 
guarda, até hoje, as generosas  tradições, nos seus arquivos envelhecidos, 
se bem que as datas e as denominações, as descrições e apontamentos se 
encontrem confusos e obscuros pelo dedo viciado dos narradores humanos. 
Mas,  meu  irmão  e  meu  amigo,  abre  estas  páginas  refletindo  no 
turbilhão  de  lágrimas  que  se  represa  no  coração  humano  e  pensa  no 
quinhão  de  experiências  amargas  que  os  dias  transitórios  da  vida  te 
trouxerem. É possível que também tenhas amado e sofrido muito. Algumas 
vezes  experimentaste  o  sopro  frio  da  adversidade  enregelando  o  teu 
coração. De outras, feriram­te a alma bem intencionada e sensível a calúnia 
ou  o  desengano.  Em  certas  circunstâncias,  olhaste  também  o  céu  e 
perguntaste,  em  silêncio,  onde  se  encontrariam  a  Verdade  e  a  Justiça, 
invocando  a  misericórdia  de  Deus,  em  preces  dolorosas.  Conhecendo, 
porém, que todas as dores têm uma finalidade gloriosa na redenção do teu 
Espírito, lê esta história real e medita. Os exemplos de uma alma santificada
7 – CINQUENTA ANOS DEPOIS (pelo Espírito Emmanuel) 
no sofrimento e na humildade, ensinar­te­ão a amar o trabalho e as penas 
de cada dia; observando­lhe os martírios morais e sentindo, de perto, a sua 
profunda  fé,  experimentarás  um  consolo  brando,  renovando  as  tuas 
esperanças em Jesus Cristo. 
Busca  entender  a  essência  deste  repositório  de  verdades 
confortadoras e, do plano espiritual, o Espírito purificado de nossa heroína 
derramará em teu coração o bálsamo consolador das esperanças sublimes. 
Que aproveites do exemplo, como nós outros, nos tempos recuados 
das lutas e das experiências que passaram, é o que  te deseja um  irmão e 
servo humilde. 
EMMANUEL 
Pedro Leopoldo, 19 de dezembro de 1989.
8 – Francisco Cândido Xavier  
PRIMEIRA PARTE
9 – CINQUENTA ANOS DEPOIS (pelo Espírito Emmanuel) 
I 
UMA FAMÍLIA ROMANA 
Varando a multidão que estacionava na grande praça de Esmirna, 
em clara manhã do ano 131 da nossa era, marchava um troço de escravos 
jovens  e  atléticos,  conduzindo  uma  liteira  ricamente ataviadaao  gosto  da 
época. 
De  espaço  a  espaço,  ouviam­se  as  vozes  dos  carregadores, 
exclamando: 
– Deixai passar o nobre tribuno Caio Fabrícius! Lugar para o nobre 
representante de Augusto. Lugar!... Lugar!... 
Desfaziam­se os pequenos grupos de populares, formados à pressa 
em torno do mercado de peixes e  legumes, situado no grande  logradouro, 
enquanto o rosto de um patrício romano surdia entre as cortinas da  liteira, 
com ares de enfado, a observar a turba rumorosa. 
Seguindo a liteira, caminhava um homem dos seus quarenta e cinco 
anos  presumíveis,  deixando  ver  nas  linhas  fisionômicas  o  perfil  israelita, 
tipicamente  características,  e  um  orgulho  silencioso  e  inconformado.  A 
atitude  humilde,  todavia,  evidenciava  condição  inferior  e,  conquanto  não 
participasse  do  esforço  dos  carregadores,  adivinhava­se­lhe  no  semblante 
contrafeito a situação dolorosa de escravo. 
Respirava­se,  à  margem  do  golfo  esplêndido,  o  ar  embalsamado 
que os ventos do Egeu traziam do grande Arquipélago. 
O  movimento  da  cidade  crescera  de  muito  naqueles  dias 
inolvidáveis,  sequentes  à  última  guerra  civil  que  devastara  a  Judeia  para 
sempre. Milhares de peregrinos  invadiam­na por  todos os  flancos,  fugindo 
aos  quadros  terrificantes  da  Palestina,  assolada  pelos  flagelos  da  última 
revolução  aniquiladora  dos  derradeiros  laços  de  coesão  das  tribos 
laboriosas de Israel, desterrando­as da pátria. 
Remanescentes de antigas autoridades e de numerosos plutocratas 
de  Jerusalém,  de  Cesareia,  de  Betel  e  de  Tiberíades,  ali  se  acotovelam 
famélicos, por subtraírem­se aos tormentos do cativeiro, após as vitórias de 
Júlio Sexto Severo sobre os fanáticos partidários do famoso Bar­Coziba. 
Vencendo  os  movimentos  instintivos  da  turba,  a  liteira  do  tribuno
10 – Francisco Cândido Xavier  
parou  à  frente  de  soberbo  edifício,  no  qual  os  estilos  grego  e  romano  se 
casavam harmoniosamente. 
Ali  estacionando,  foi  logo  anunciado  no  interior,  onde  um  patrício 
relativamente  jovem,  aparentando  mais  ou  menos  quarenta  anos,  o 
esperava com evidente interesse. 
–  Por  Júpiter!  –  exclamou  Fabrícius,  abraçando  o  amigo  Helvídio 
Lucius – não supunha encontrar­te nessa plenitude de robustez e elegância, 
de fazer inveja aos próprios deuses! 
– Ora, ora! – replicou o  interpelado, em cujo sorriso se podia  ler a 
satisfação que lhe causavam aquelas expansões carinhosas e amigas – são 
milagres dos nossos tempos. Aliás, se há quem mereça tais gabos, és tu, a 
quem Adônis sempre rendeu homenagens. 
Neste  ínterim,  um  escravo  ainda moço  trazia  a  bandeja  de  prata, 
onde  se  alinhavam  pequenos  vasos  de  perfume  e  coroas  da  época, 
adornadas de rosas. 
Helvídio Lucius serviu­se cuidadosamente de uma delas, enquanto 
o visitante agradecia com leve sinal de cabeça. 
–  Mas,  ouve!  –  continuava  o  anfitrião  sem  dissimular  o 
contentamento que  lhe causava a visita – há bastante  tempo aguardamos 
tua chegada, de maneira a partirmos para Roma com a brevidade possível. 
Há dois dias que a galera está à nossa disposição, dependendo a partida 
tão somente da tua vinda!... 
E batendo­lhe amistosamente no ombro, rematava: 
– Que demora foi essa? 
– Bem  sabes –  explicou Fabrícius –  que  sumariar  os  estragos  da 
última revolução era  tarefa assaz difícil para realizar em poucas semanas, 
razão pela qual, apesar da demora a que  te referes, não  levo ao Governo 
Imperial  um  relatório  minucioso  e  completo,  mas  apenas  alguns  dados 
gerais. 
–  E  a  propósito  da  revolução  da  Judeia,  qual  a  tua  impressão 
pessoal dos acontecimentos? 
Caio  Fabrícius  esboçou  um  leve  sorriso,  acrescentando  com 
amabilidade: 
– Antes de dar a minha opinião, sei que a tua é a de quem encarou 
os fatos com o maior otimismo. 
– Ora, meu amigo – disse Helvídio, como a justificar­se –, é verdade 
que  a  venda  de  toda  a  minha  criação  de  cavalos  da  Indumeia,  para  as 
forças  em  operações,  me  consolidou  as  finanças,  dispensando­me  de 
maiores  cuidados  quanto  ao  futuro  da  família;  mas  isso  não  impede 
considere  a  penosa  situação  desses  milhares  de  criaturas  que  se 
arruinaram para sempre. Aliás, se a sorte me favoreceu no plano de minhas 
necessidades materiais, devo­o principalmente à intervenção de meu sogro, 
junto do prefeito Lólio Tirbico. 
–  O  censor  Fábio  Cornélio  agiu  assim  tão  decisivamente,  a  teu 
favor? – perguntou Fabrícius, algo admirado. 
– Sim.
11 – CINQUENTA ANOS DEPOIS (pelo Espírito Emmanuel) 
–  Está,  bem  –  disse  Caio  já  despreocupado  –,  eu  nunca  entendi 
patavina da criação de cavalos da Indumeia ou de bestas da Ligúria. Aliás, 
o êxito dos teus negócios não altera a nossa velha e cordial amizade . Por 
Pólux!... Não há necessidade de tantas explicações nesse sentido. 
E  depois  de  sorver  um  trago  de  Falerno  solicitamente  servido, 
continuou, como que analisando as próprias reminiscências mais íntimas: 
– O estado da Província é lastimável e, na minha opinião, os judeus 
nunca mais encontrarão na Palestina o benefício consolador de um lar e de 
uma  pátria.  Em diversos  recontros, morreram mais  de  cento  e  oitenta mil 
israelitas,  segundo  o  conhecimento  exato  da  situação.  Foram  destruídos 
quase  todos  os  burgos.  Na  zona  de  Betel  a  miséria  atingiu  proporções 
inauditas.  Famílias  inteiras,  desamparadas  e  indefesas,  foram 
covardemente assassinadas. Enquanto a fome e a desolação ofereceram a 
ruína  geral,  chega  também  a  peste,  oriunda  da  exalação  dos  cadáveres 
insepultos. Nunca supus rever a Judeia em tais condições... 
– Mas, a quem deveremos  inculpar do que ocorre? O governo de 
Adriano não se  tem caracterizado pela retidão e pela  justiça? – perguntou 
Helvídio Lucius com grande interesse. 
– Não posso afirmá­lo com certeza – revidou Fabrícius, atencioso –; 
todavia,  considero  pessoalmente  que  o  grande  culpado  foi Ticneio Rufus, 
legado pró­pretor da Província. Sua  incapacidade política foi manifesta em 
todo o desenvolvimento dos fatos. A reedificação de Jerusalém com o nome 
de  Elia  Capitolina,  obedecendo  aos  caprichos  do  Imperador,  apavora  os 
israelitas,  desejosos  todos  de  conservar  as  tradições  da  cidade  santa.  O 
momento  requeria  um  homem  de  qualidades  excepcionais,  à  frente  dos 
negócios da Judeia. Entretanto, Ticneio Rufus não fez mais que exacerbar o 
ânimo popular com imposições religiosas de todos os matizes, contrariando 
a clássica tradição de tolerância do Império nos territórios conquistados. 
Helvídio Lucius ouvia o amigo,  com singular  interesse, mas,  como 
se  desejasse  afastar  de  si  mesmo  alguma  reminiscência  amarga, 
murmurou: 
–  Fabrícius,  meu  caro,  tua  descrição  da  Judeia  me  apavora  o 
espírito... Os anos que passamos na Ásia Menor me devolvem a Roma com 
o  coração  apreensivo.  Em  toda  a  Palestina  campeiam  superstições 
totalmente  contrárias  às  nossas  tradições  mais  respeitáveis,  e  essas 
crenças estranhas invadem o próprio ambiente da família, dificultando­nos a 
tarefa de instituir a harmonia doméstica... 
–  Já  sei  –  replicou  o  amigo  solicitamente  –,  queres  aludir,  com 
certeza, ao Cristianismo, com as suas inovações e os seus asseclas. 
Mas...  –  ajuntou  Caio,  evidenciando  uma  atenção  mais  íntima  –, 
acaso Alba Lucínia teria deixado de ser a segurança vestalina de tua casa? 
Seria possível? 
– Não – replicou Helvídio ansioso por se fazer compreendido –, não 
se  trata de minha mulher, sentinela avançada de  todos os  feitos da minha 
vida, há  longos anos, mas de uma das  filhas que,  contrariamente a  todas 
previsões,  imbuiu­se  de  semelhantes  princípios,  causando­nos  os  mais
12 – Francisco Cândido Xavier  
sérios desgostos. 
– Ah!  Lembro­me  de Helvídia  e  de Célia,  que,  em meninas,  eram 
bem dois sorrisos dos deusesna tua casa. Mas tão jovens e dadas, assim, 
a cogitações filosóficas? 
– Helvídia, a mais velha, não se impregnou de tais bruxarias; mas a 
nossa pobre Célia parece bastante prejudicada pelas superstições orientais, 
tanto que,  regressando  a Roma,  tenciono deixá­la em companhia de meu 
pai, por algum tempo. Suas lições de virtude doméstica hão de renovar­lhe 
o coração, segundo cremos. 
–  É  verdade  –  concordou  Fabrícius  –,  o  venerando  Cneio  Lucius 
reformaria  para  as  tradições  romanas  os  sentimentos  mais  bárbaros  de 
nossas Províncias. 
Fizera­se ligeira pausa na conversação, enquanto Caio tamborilava 
com os  dedos,  dando  a  entender  a  sua  preocupação,  como  se  evocasse 
alguma dolorosa lembrança. 
–  Helvídio  – murmurou  o  tribuno  fraternalmente  –,  teu  regresso  a 
Roma é de causar apreensões aos  teus verdadeiros amigos. Recordando 
teu pai,  lembro­me instintivamente de Silano, o pequeno enjeitado que ele 
chegou quase a adotar oficialmente como próprio filho, desejoso de libertar­ 
te da calúnia a ti imputada no albor da mocidade.. 
–  Sim  –  disse  o  anfitrião,  como  se  houvera  repentinamente 
desgertado –, ainda bem que não desconheces  ser  caluniosa a acusação 
que pesou sobre mim. Aliás, meu pai não ignora isso. 
– Apesar de  tudo,  teu venerável genitor não hesitou em cumular a 
criança, a ele encaminhada, com o máximo de carinhos... 
Depois de passar nervosamente a mão pela fronte, Helvídio Lucius 
acentuou: 
– E Silano?... Sabes o que é feito dele? 
–  As  últimas  informações  davam­no  como  incorporado  às  nossas 
falanges  que  mantêm  o  domínio  das  Gálias,  como  simples  soldado  do 
exército. 
–  Às  vezes  –  ajuntou  Helvídio  preocupado  –,  tenho  pensado  na 
sorte desse rapaz, pupilo da generosidade de meu pai, desde os tempos de 
minha juventude. Mas, que fazer? Desde que me casei, tudo fiz por trazê­lo 
à nossa companhia. Minha propriedade da  Indumeia poderia proporcionar­ 
lhe  uma  existência  simples  e  liberta  de maiores  cuidados,  sob  as minhas 
vistas  atentas;  todavia,  Alba  Lucínia  se  opôs  terminantemente  aos  meus 
projetos, não só  recordando os comentários caluniosos de que  fui alvo no 
passado, como também alegando seus direitos exclusivos à minha afeição, 
pelo  que,  fui  compelido  a  conformar­me,  levando  em  conta  as  nobres 
qualidades da sua alma generosa. 
Bem  sabes  que  minha  esposa  deve  receber  as minhas  atenções 
mais respeitosas. Não tenho remédio senão aceitar de bom grado as suas 
afetuosas imposições. 
–  Helvídio,  bom  amigo  –  exclamou  Fabrícius,  demonstrando 
prudência ­, não devo nem posso interferir na tua vida íntima. Problemas há,
13 – CINQUENTA ANOS DEPOIS (pelo Espírito Emmanuel) 
na vida, que somente os cônjuges podem solucionar, entre si, na sagrada 
intimidade  do  lar;  mas,  não  é  apenas  pelo  caso  de  Silano  que  me  sinto 
apreensivo, relativamente ao teu regresso. 
E fixando o amigo bem nos olhos, rematou: 
– Lembras­te de Cláudia Sabina? 
– Sim... – respondeu vagamente. 
– Não sei se estás devidamente informado a seu respeito. Cláudia é 
hoje a esposa de Lólio Úrbico, o prefeito dos pretorianos. Não deves ignorar 
que  esse  homem é  a  personalidade  do  dia,  como  depositário  da máxima 
confiança do Imperador. 
Helvídio  Lucius  passou  a  mão  pela  fronte,  como  se  desejasse 
afugentar  uma  penosa  recordação  do  passado,  revidando,  afinal,  para 
tranquilidade de si mesmo: 
– Não desejo exumar o passado, visto ser hoje um outro homem; 
mas, se houver necessidade de ser prestigiado na Capital do  Império, não 
podemos  esquecer,  igualmente,  que  meu  sogro  é  pessoa  de  toda  a 
confiança, não só do prefeito a que aludes, como de todas as autoridades 
administrativas. 
– Bem o sei, mas não  ignoro  também que o coração humano tem 
escaninhos misteriosos... 
Não  acredito  que  Cláudia,  hoje  elevada  às  esferas  da  mais  alta 
aristocracia, pelos caprichos do destino, haja olvidado a humilhação do seu 
amor violento de plebeia, espezinhado em outros tempos. 
– Sim – confirmou Helvídio Lucius com os olhos parados no abismo 
de suas recordações mais íntimas –, muitas vezes tenho lamentado o haver 
nutrido  em  seu  coração  uma  afetividade  tão  intensa;  mas,  que  fazer?  A 
juventude está sujeita a caprichos numerosos e, a maior parte das vezes, 
não há advertência que possa romper o véu da cegueira... 
–  E  estarás  hoje menos  moço  para  que  te  sintas  completamente 
livre dos caprichos multiplicados da nossa época? 
O  interpelado  compreendeu  todo  o  alcance  daquelas  observações 
sábias  e  prudentes,  e  como  se  não  lhe  prouvesse  o  exame  das 
circunstâncias e dos fatos, cuja lembrança penosa o atormentaria, replicou 
sem perder  o  aparente  bom humor,  embora  os  olhos  evidenciassem uma 
preocupação amargurosa: 
–  Caio,  meu  bom  amigo,  pelas  barbas  de  Júpiter!  Não  me  faças 
voltar ao pélago escuro do passado. Desde que chegaste, nada me disseste 
além de assuntos penosos e sombrios. De início, é a miséria da Judeia, de 
arrepiar os cabelos, com os seus quadros de desolação e ruína e, depois, 
eis­te voltado para o passado escabroso,  como se não nos bastassem as 
atuais  amarguras..  .  Fala­me  antes  de  algo  que me  consolide  o  repouso 
íntimo  .  Embora  não  saiba  explicar  o motivo,  tenho o  coração  apreensivo 
quanto ao futuro. A máquina de intrigas da sociedade romana aborrece­me 
o espírito, que nunca encontrou ensejos de lhe fugir ao ambiente detestável. 
Meu  regresso  a Roma  inquina­se  de  perspectivas dolorosas,  embora  não 
ouse confessá­lo!...
14 – Francisco Cândido Xavier  
Fabrícius  ouviu­o,  atento  e  compungido.  As  palavras  do  amigo 
denunciavam  o  profundo  temor  de  retornar  ao  passado  tão  cheio  de 
aventuras. 
Aquela atitude súplice atestava que a recordação dos  tempos  idos 
ainda lhe palpitava no peito, apesar de todos os esforços para esquecer. 
Reprimindo os próprios receios, falou, então, afetuosamente: 
– Pois bem, não falaremos mais nisso. 
E acentuando a alegria que lhe causava aquele encontro, continuou 
comovidamente: 
– Então, poderia acaso esquecer­me de algo que me pedisses? 
Sem mais delonga, encaminhou­se para o átrio onde os serviçais de 
confiança lhe esperavam as ordens, regressando à sala acompanhado pelo 
desconhecido que lhe seguira a liteira, na atitude humilde de escravo. 
Helvídio Lucius surpreendeu­se, ao ver a personagem interessante 
que lhe era apresentada. 
Identificara,  imediatamente,  a  sua  condição  de  servo,  mas  o 
espanto lhe provinha da profunda simpatia que aquela figura lhe inspirava. 
Seus traços de israelita eram iniludíveis, porém, no olhar havia uma 
vibração  de  orgulho  nobre,  temperado  de  singular  humildade.  Na  fronte 
larga, notavam­se cãs precoces, se bem que o físico denunciasse a pletora 
de energias orgânicas da idade madura. O aspecto geral, contudo, era o de 
um homem profundamente desencantado da vida. No rosto, percebia­se o 
sinal de macerações e sofrimentos indefiníveis, impressões dolorosas, aliás 
compensadas pelo fulgor enérgico do olhar, transparente de serenidade. 
–  Eis  a  surpresa  –  frisou  Caio  Fabrícius  alegremente:  –  comprei, 
como  lembrança,  esta  preciosidade,  na  feira  de  Terebinto,  quando  alguns 
de nossos companheiros liquidavam o espólio dos Veneidos. 
Helvídio Lucius parecia não ouvir, como que procurando mergulhar 
fundo naquela figura curiosa, ao alcance de seus olhos, e cuja simpatia lhe 
impressionava as fibras mais sensíveis e mais íntimas. 
– Admiras­te? – insistiu Caio desejoso de ouvir as suas apreciações 
diretas  e  francas.  –  Quererias  porventura,  que  te  trouxesse  um  Hércules 
formidando? Preferi lisonjear­te com um raro exemplar de sabedoria. 
Helvídio  agradeceu  com  um  sinal  expressivo,  acercando­se  do 
escravo silencioso, com um leve sorriso. 
– Como te chamas? – perguntou solícito.– Nestório. 
– Onde nasceste? Na Grécia? 
– Sim – respondeu o interpelado com um doloroso sorriso. 
– Como pudeste alcançar Terebinto? 
– Senhor, sou de origem judia, apesar de nascido em Éfeso . Meus 
antepassados transportaram­se à Jônia, há alguns decênios, em virtude das 
guerras civis da Palestina. Criei­me nas margens do Egeu, onde mais tarde 
constituí família. A sorte, porém, não me foi favorável. Tendo perdido minha 
companheira, prematuramente, devido a grandes desgostos, em breve, sob 
o guante de perseguições implacáveis, fui escravizado por ilustres romanos,
15 – CINQUENTA ANOS DEPOIS (pelo Espírito Emmanuel) 
que me conduziram ao antigo país de meus ascendentes. 
– E foi lá que a revolução te surpreendeu? 
– Sim. 
– Onde te encontravas? 
– Nas proximidades de Jerusalém. 
– Falaste de tua família. Tinhas apenas mulher? 
– Não, senhor. Tinha também um filho. 
– Também morreu? 
–  Ignoro. Meu pobre  filho, ainda criança,  caiu, – como seu pai, na 
dolorosa noite do cativeiro. Apartado de mim, que o vi partir com o coração 
lacerado de dor e de saudade. Foi vendido a poderosos mercadores do sul 
da Palestina. 
Helvídio  Lucius  olhou  para  Fabrícius,  como  a  expressar  a  sua 
admiração pelas respostas desassombradas do desconhecido, continuando, 
porém, a interrogar: 
– A quem servias em Jerusalém? 
– A Calius Flavius. 
– Conheci­o de nome. Qual o destino do teu senhor... 
– Foi dos primeiros a morrer nos choques havidos nos arredores da 
cidade, entre os legionários de Ticneio Rufus e os reforços judeus chegados 
de Betel. 
– Também combateste? 
– Senhor, não me cumpria combater  senão pelo desempenho das 
obrigações  devidas  àquele  que,  conservando­me  cativo  aos  olhos  do 
mundo, há muito me havia restituído à  liberdade,  junto de seu magnânimo 
coração.  Minhas  armas  deviam  ser  as  da  assistência  necessária  ao  seu 
espírito  leal  e  justo.  Calius  Flavius  não  era  para  mim  o  verdugo, mas  o 
amigo  e  protetor  de  todos  os momentos.  Para meu  consolo  íntimo,  pude 
provar­lhe  a  minha  dedicação,  quando  lhe  fechei  os  olhos  no  alento 
derradeiro. 
–  Por  Júpiter!  –  exclamou  Helvídio,  dirigindo­se  em  alta  voz  ao 
amigo – é a primeira vez que ouço um escravo abençoar o senhor. 
–  Não  é  só  isso  –  respondeu  Caio  Fabrícius  bem  humorado, 
enquanto o servo os observava ereto e digno –, Nestório é a personificação 
do bom­senso. Apesar  dos  seus  laços  de  sangue com a Ásia Menor,  sua 
cultura acerca do Império é das mais vastas e notáveis. 
– Será possível? – tornou Helvídio admirado. 
– Conhece a História Romana tão bem quanto um de nós. 
– Mas chegou a viver na capital do mundo? 
– Não. Ao que ele diz, somente a conhece por tradição. 
Já  convidado  pelos  dois  patrícios,  sentou­se  o  escravo  para 
demonstrar os seus conhecimentos. 
Com desembaraço, falou das lendas encantadoras que envolviam o 
nascimento  da  cidade  famosa,  entre  os  vales  da  Etrúria  e  as  deliciosas 
paisagens da Campânia. Rômulo e Remo, a lembrança de Acca Larentia, o 
rapto  das  Sabinas,  eram  imagens  que,  na  linguagem  de  um  escravo,
16 – Francisco Cândido Xavier  
broslavam­se  de  novos  e  interessantes  matizes.  Em  seguida,  passou  a 
explanar o extraordinário desenvolvimento econômico e político da cidade. 
A história de Roma não tinha segredos para o seu intelecto. Remontando à 
época  de  Tarquínio  Prisco,  falou  de  suas  construções  maravilhosas  e 
gigantescas,  detendo­se,  em  particular,  na  célebre  rede  de  esgotos,  a 
caminho  das  águas  lodosas  do  Tibre.  Lembrou  a  figura  de  Sérvio  Túlio, 
dividindo  a  população  romana  em  classes  e  centúrias.  Numa  Pompílio, 
Menênio Agripa, os Gracos, Sérgio Catilina, Cipião Nasica e todos os vultos 
famosos  da  República  foram  recordados  na  sua  exposição,  onde  os 
conceitos cronológicos se alinhavam com admirável exatidão. 
Os deuses da cidade, os costumes, conquistas, generais intrépidos 
e valorosos, eram com detalhes indelevelmente gravados na sua memória. 
Seguindo o curso dos seus conhecimentos, rememorou o Império nos seus 
primórdios, salientando as suas realizações portentosas, desde o  faustoso 
brilho  da  Corte  de  Augusto.  As  magnificências  dos  Césares,  trabalhadas 
pela sua dialética fluente, apresentavam novos coloridos históricos, em vista 
das  considerações  psicológicas,  acerca  de  todas  as  situações  políticas  e 
sociais. 
Por  muito  tempo  falara  Nestório  dos  seus  conhecimentos  do 
passado, quando Helvídio Lucius ­ sinceramente surpreendido o interpelou: 
– Onde conseguiste essa cultura, radicada em nossas mais remotas 
tradições?... 
– Senhor,  tenho manuseado  todos  os  livros da educação  romana, 
ao meu  alcance,  desde moço. Além disso,  sem que me  possa  explicar  a 
razão, a Capital do  Império exerce sobre mim a mais singular de  todas as 
seduções.
– Ora – ajuntou Caio Fabrícius satisfeito – Nestório  tanto conhece 
um  livro  de  Salústio,  como  uma  página  de  Petrônio.  Os  autores  gregos, 
igualmente,  não  têm  segredos  para  ele.  Considerada,  porém,  a  sua 
predileção pelos motivos  romanos, quero acreditar haja ele nascido ao pé 
de nossas portas. 
O escravo sorriu levemente, enquanto Helvídio Lucius esclarecia: 
–  Semelhantes  conhecimentos  evidenciam  um  interesse 
injustificável da parte de um cativo. 
E depois de uma pausa, como se estivesse arquitetando um projeto 
íntimo, continuou a falar, dirigindo­se ao amigo: 
– Meu caro,  louvo­te a  lembrança. Minha grande preocupação, no 
momento, era obter um servo culto, que pudesse incumbir­se de enriquecer 
a  educação  de minhas  filhas,  auxiliando­me,  simultaneamente,  no  arranjo 
dos processos do Estado, a que agora serei compelido pela força do cargo. 
O  anfitrião  mal  havia  concluído  o  seu  agradecimento,  quando 
surgiram na sala a esposa e as filhas, num gracioso cromo familiar. 
Alba Lucínia, que ainda não atingira os quarenta anos, conservava 
no  rosto  os mais  belos  traços  da  juventude,  a  iluminarem  o  seu  perfil  de 
madona.  Junto  das  filhas,  duas  primaveras  risonhas,  seu  aspecto  de 
mocidade ganhava um todo de nobres expressões vestalinas, confundindo­
17 – CINQUENTA ANOS DEPOIS (pelo Espírito Emmanuel) 
se  com  as  duas,  como  se  lhes  fora  irmã  mais  velha,  ao  invés  de  mãe 
extremosa e afável. 
Helvídia e Célia, porém, embora a semelhança profunda dos traços 
fisionômicos,  deixavam  transparecer,  espontaneamente,  a  diversidade  de 
temperamentos e pendores espirituais. A primeira entremostrava nos olhos 
uma inquietação própria da idade, indiciando os sonhos febricitantes que lhe 
povoavam a  alma,  ao  passo  que  a  segunda  trazia  no  olhar  uma  reflexão 
serena  e  profunda,  como  se  o  espírito  de mocidade  houvera  envelhecido 
prematuramente. 
Todas  as  três  exibiam,  graciosamente,  os  delicados  enfeites  do 
"peplum" em sua feição doméstica, presos os cabelos em preciosas rédeas 
de ouro, ao mesmo tempo em que ofereciam a Caio Fabrícius um sorriso de 
acolhimento. 
– Ainda bem – murmurou o hóspede com vivacidade própria do seu 
gênio expansivo, avançando para a dona da casa –o meu grande Helvídio 
encontrou o altar das Três Graças, entronizando­as egoisticamente no  lar. 
Aliás, aqui estamos nas plagas do Egeu, berço de todas as divindades!... 
Suas saudações foram recebidas com geral agrado. 
Não  somente Alba  Lucínia, mas  também  as  filhas  se  regozijavam 
com a presença do carinhoso amigo da família, de muitos anos. 
Em breve, todo o grupo se animava em palestra amena e sadia. Era 
o  burburinho  das  notícias  de  Roma,  de  mistura  com  as  impressões  da 
Indumeia e de outras regiões da Palestina, onde Helvídio Lucius estagiara 
junto da família, enfileirando­se as opiniões encantadoras e íntimas, acerca 
dos pequeninos nadas de cada dia. 
Em  dado  instante,  o  dono  da  casa  chamou  a  atenção  da  esposa 
para  afigura  de  Nestório,  encolhido  a  um  canto  da  sala,  acrescentando 
entusiasticamente: 
– Lucínia, eis o régio presente que Caio nos trouxe de Terebinto. 
– Um escravo?! – perguntou a senhora com entonação de piedade. 
­ Sim. Um escravo precioso. Sua capacidade mnemônica é um dos 
fenômenos  mais  interessantes  que  tenho  observado  em  toda  a  vida. 
Imagina que tem dentro do cérebro a longa história de Roma, sem omitir o 
mais ligeiro detalhe. Conhece nossas tradições e costumes familiares como 
se  houvera  nascido  no  Palatino.  Desejo  sinceramente  tomá­lo  a  meu 
serviço  particular,  utilizando­o  ao mesmo  tempo  no  apuro  da  instrução  de 
nossas filhas. 
Alba Lucínia  fitou o desconhecido  tomada de  surpresa e  simpatia. 
Por sua vez, as duas jovens o contemplavam admiradas. 
Saindo,  contudo,  da  sua  estupefação,  a  nobre matrona  ponderou 
refletidamente: 
– Helvídio,  sempre considerei a missão doméstica como das mais 
delicadas de nossa vida. 
Se esse homem deu provas dos seus conhecimentos, tê­las­ia dado 
também de suas virtudes para que venhamos a utilizá­lo, confiadamente, na 
educação de nossas filhas?
18 – Francisco Cândido Xavier  
O  marido  sentiu­se  embaraçado  para  responder  à  pergunta  tão 
sensata e oportuna, mas, em seu auxílio veio a palavra firme de Caio, que 
esclareceu: 
–  Eu  vo­la  dou,  minha  senhora:  se  Helvídio  pode  abonar­lhe  a 
sabedoria, posso eu testificar as suas nobres qualidades morais. 
Alba Lucínia pareceu meditar por momentos, acrescentando, afinal, 
com um sorriso satisfeito: 
– Está bem, aceitaremos a garantia da sua palavra. Em seguida, a 
graciosa  dama  fitou  Nestório  com  caridade  e  brandura,  compreendendo 
que, se o seu doloroso aspecto era, incontestavelmente, o de um escravo, 
os olhos revelavam uma serenidade superior, saturada de estranha firmeza. 
Depois de um minuto de observação acurada e silenciosa, voltou­se 
para o marido dizendo­lhe algumas palavras em voz quase  imperceptível, 
como se pleiteasse a sua aprovação, antes de dar cumprimento a algum de 
seus desejos. Helvídio, por sua vez, sorriu ligeiramente, dando um sinal de 
aquiescência com a cabeça. 
Voltando­se,  então,  para  os  demais,  a  nobre  senhora  falou 
comovidamente: 
–  Caio  Fabrícius,  eu  e meu marido  resolvemos  que  nossas  filhas 
venham a utilizar a cooperação intelectual de um homem livre. 
E,  tomando  de minúscula varinha  que  descansava  no  bojo  de  um 
jarrão  oriental,  a  um  canto  da  sala,  tocou  levemente  a  fronte  do  escravo, 
obedecendo  às  cerimônias  familiares,  com as  quais  o  senhor  libertava  os 
cativos na Roma Imperial, exclamando: 
– Nestório, nossa casa te declara livre para sempre!... 
–  Filhas  –  continuou  a  dizer  sensibilizada,  dirigindo­se  às  duas 
jovens  –,  nunca  humilheis  a  liberdade  deste  homem,  que  terá  toda  a 
independência para cumprir os seus deveres!... 
Caio  e  Helvício  entreolharam­se  satisfeitos  .  Enquanto  Helvídia 
cumprimentava  de  longe  o  liberto,  com  um  leve  aceno  de  cabeça,  altiva, 
Célia aproximou­se do alforriado, que  tinha os olhos úmidos de  lágrimas e 
estendeu­lhe  a  mão  aristocrática  e  delicada,  numa  saudação  sincera  e 
carinhosa.
Seus olhos encontravam o olhar do ex­escravo, numa onda de afeto 
e  atração  indefiníveis.  O  liberto,  visivelmente  emocionado,  inclinou­se  e 
beijou reverentemente a mão generosa que a jovem patrícia lhe oferecia. 
A  cena  comovedora  perdurava  por  momentos,  quando,  com 
surpresa  geral,  Nestório  se  levantou  do  recanto  em  que  se  achava  e, 
caminhando  até  o  centro  da  sala,  ajoelhou­se  ante  os  seus  benfeitores, 
osculando humildemente os pés de Alba Lucínia.
19 – CINQUENTA ANOS DEPOIS (pelo Espírito Emmanuel) 
II 
UM ANJO E UM FILÓSOFO 
O palácio  residencial do prefeito Lólio Úrbico demorava numa das 
mais belas eminências da colina em que se erguia o Capitólio. 
A  fortuna do seu dono era das mais opulentas da cidade, e a sua 
situação  política  era  das  mais  invejáveis,  pelo  prestígio  e  respectivos 
privilégios. 
Embora  descendente  de  antigas  famílias  do  patriciado,  não 
recebera vultosa herança dos avoengos mais ilustres e todavia, bem cedo o 
Imperador tomara­o a seu cuidado. 
Dele  fizera,  a  princípio,  um  tribuno militar  cheio  de  esperanças  e 
perspectivas  promissoras,  para  promovê­lo  em  seguida  aos  postos  mais 
eminentes.  Transformara­o,  depois,  no  homem  de  sua  inteira  confiança. 
Fez­lhe  doações  valiosas  em  propriedades  e  títulos  de  nobreza, 
espantando­se,  porém,  a  aristocracia  da  cidade,  quando  Adriano  lhe 
recomendou o casamento com Cláudia Sabina, plebeia de talento invulgar e 
de  rara  beleza  física,  que  conseguira,  com  o  seu  favoritismo,  as  mais 
elevadas graças da Corte. 
Lólio Úrbico não vacilou em obedecer à vontade do seu protetor e 
maior amigo. 
Casara­se,  displicentemente,  como  se  no  matrimônio  devesse 
encontrar uma salvaguarda  total de  todos os  seus  interesses particulares, 
prosseguindo,  todavia,  em  sua  vida  de  aventuras  alegres,  nas  diversas 
campanhas  de  sua  autoridade militar,  fosse  na Capital  do  Império  ou  nas 
cidades de suas Províncias numerosas. 
Por  outro  lado,  a  esposa,  agora  prestigiada  pelo  seu  nome, 
conseguia no seio da nobreza romana um dos lugares de maior evidência. 
Pouco  inclinada  às  preocupações  de  matrona,  não  tolerava  o  ambiente 
doméstico, entregando­se aos desvarios da vida mundana, ora seguindo o 
plano delineado pelos amigos, ora organizando festivais célebres, afamados 
pela visão artística e pela discreta licenciosidade que os caracterizava. 
A  sociedade  romana,  em  marcha  franca  para  a  decadência  dos 
antigos  costumes  familiares,  adorava­lhe  as  maneiras  livres,  enquanto  o
20 – Francisco Cândido Xavier  
espírito mundano do Imperador e a volúpia dos áulicos se regozijavam com 
os  seus  empreendimentos,  no  turbilhão  das  iniciativas  alegres,  nos 
ambientes sociais mais elevados. 
Cláudia  Sabina  conseguira  um  dos  postos  mais  avançados  nas 
rodas  elegantes  e  frívolas.  Sabendo  transformar  a  inteligência  em  arma 
perigosa, valia­se da sua posição para aumentar, cada vez mais, o próprio 
prestígio,  elevando,  às  culminâncias  do  meio  em  que  vivia,  criaturas  de 
nobreza improvisada, para satisfazer facilmente os seus caprichos. 
Assim  que,  em  torno  de  seus  preciosos  dotes  de  beleza  física, 
borboleteavam todas as atenções e todos os desvelos. 
Entardece. 
No elegante palácio, próximo do templo de Júpiter Capitolino, paira 
um ambiente pesado de solidão e quietude. 
Recostada  num  divã  do  terraço,  vamos  encontrar  Cláudia  Sabina 
em  palestra  reservada  com  uma mulher  do  povo,  em  atitudes  de  grande 
intimidade. 
–  Hatéria  –  dizia  ela,  interessada  e  discretamente  –,  mandei 
chamar­te a fim de aproveitar a tua velha dedicação numa incumbência. 
–  Ordenai  –  respondia  a  mulher  de  aspecto  humilde,  com  o 
artificialismo  de  suas  maneiras  aparentemente  singelas.  –  Estou  sempre 
pronta a cumprir as vossas ordens, sejam quais forem. 
– Estarias disposta a servir­me cegamente, em outra casa? 
– Sem dúvida. 
– Pois bem, eu não tenho vivido senão para vingar­me de terríveis 
humilhações do passado. 
– Senhora, lembro­me das vossas amarguras, no seio da plebe. 
–  Ainda  bem  que  conheceste  os  meus  sofrimentos.  Escuta  – 
continuava Cláudia Sabina baixando a voz intencionalmente –, sabes quem 
são os Lucius, em Roma? 
– Quem não conhece o velho Cneio, senhora? Antes de me falardes 
de vossas mágoas, devo esclarecer que sei também dos vossos desgostos, 
devidos à ingratidão do filho. 
– Então, nada mais preciso dizer­te a respeito do que me compete 
fazer  agora.  Talvez  ignores  que Helvídio  Lucius  e  sua  família chegarão  a 
esta  cidade  dentro  de  poucos  dias,  de  regressodo  Oriente.  Tenciono 
colocar­te no serviço de sua mulher, a fim de poderes auxiliar a execução 
integral dos meus planos. 
– Ordenai e obedecerei cegamente. 
– Conheces Túlia Cevina? 
– A mulher do tribuno Máximo Cunctator? 
– Ela mesma. Ao que  fui  informada, Túlia Cevina  foi encarregada, 
por sua antiga companheira de infância, de arranjar duas ou três servas de 
inteira  confiança  e  habilitadas  a  satisfazer  os  imperativos  da  atualidade 
romana. Assim, importa que te apresentes, quanto antes, como candidata a 
esse cargo. 
– Como? Achais provável que a esposa do tribuno venha a aceitar o
21 – CINQUENTA ANOS DEPOIS (pelo Espírito Emmanuel) 
meu  simples  oferecimento,  sem  referência  que  me  recomende  ao  seu 
critério? 
– Precisamos muita ponderação neste sentido. Túlia jamais deverá 
saber que és pessoa da minha intimidade. Poderias apresentar referências 
especiais  de  Grisótemis  ou  de  Musônia,  minhas  amigas  mais  íntimas; 
todavia,  essa  medida  não  ficaria  bem,  igualmente.  Suscitaria,  talvez, 
qualquer suspeita, quando eu tivesse mais necessidade de tua intervenção 
ou de teus serviços. 
– Que fazermos, então? 
–  Antes  de  tudo,  é  necessário  te  capacites  da  utilidade  dos  teus 
próprios  recursos,  em benefício  dos  nossos  projetos.  A  aquisição  de  uma 
serva  humilde  é  coisa  preciosa  e  rara.  Apresenta­te  a  Túlia  com  a mais 
absoluta  singeleza.  Fala­lhe  das  tuas  necessidades,  explica­lhe  os  teus 
bons  desejos.  Tenho  quase  certeza  de  que  bastará  isso  para  vencermos 
nossos primeiros passos. Em seguida, conforme espero, serás admitida ao 
ambiente doméstico de Alba Lucínia, a usurpadora da minha ventura. Servi­ 
la­ás  com  humildade,  submissão  e  devotamento  até  conquistar­lhe 
confiança absoluta. Não precisarás procurar­me amiúde para não despertar 
suspeitas em torno de nossas combinações . Virás a esta casa um dia em 
cada mês,  a  fim  de  estabelecermos  os  acordos  necessários.  A  princípio, 
estudarás  o  ambiente  e  me  cientificarás  de  todas  as  novidades  e 
descobertas da vida íntima do casal. Mais tarde, então, veremos a natureza 
dos serviços a executar. 
Posso contar com a tua dedicação e com o teu silêncio? 
–  Estou  inteiramente  às  ordens  e  cumprirei  as  vossas 
determinações com absoluta fidelidade. 
– Confio nos teus esforços. 
E,  assim  dizendo,  Cláudia  Sabina  entregou  à  comparsa  algumas 
centenas de sestércios, em penhor de mútuos compromissos. 
Hatéria  guardou  o  preço  da  primeira  combinação,  avidamente, 
lançando um olhar cúpido à bolsa e exclamando atenciosa: 
– Podeis estar certa de que serei vigilante, humilde e discreta. 
Caíam  as  sombras  da  noite  sobre  os  Montes  Albanos,  mas  a 
emissária de Cláudia procurou Túlia Cevina, daí a algumas horas, para os 
fins conhecidos. 
A esposa do tribuno Máximo Cunctator, patrícia de coração bondoso 
e afável,  recebeu aquela mulher do povo, com generosidade e doçura. As 
solicitações  insistentes  de  Hatéria  confundiam­na.  Havia  comentado  o 
pedido de sua amiga Alba Lucínia num círculo reduzidíssimo de amizades 
mais  íntimas;  entretanto,  aquela  serva  desconhecida  não  lhe  trazia 
recomendação alguma dos amigos com quem se entendera a respeito. 
Atribuiu,  porém,  o  fato  à  tagarelice  de  alguma  escrava  que 
houvesse conhecido o assunto, indiretamente, através de qualquer palestra 
despreocupada. 
A humildade e singeleza de Hatéria pareceram­lhe adoráveis. Suas 
maneiras  revelavam extraordinária capacidade de submissão, desvelada e
22 – Francisco Cândido Xavier  
carinhosa.
Túlia  Cevina  aceitou­a  e,  apiedada  da  sua  situação,  recolheu­a 
naquela mesma noite, acomodando­a entre as suas fâmulas. 
Daí  a  dias,  a  Porta  de  Óstia  apresentava  singular  movimento. 
Luxuosas  viaturas  encaminhavam­se  para  o  porto,  onde  a  galera  dos 
nossos conhecidos já havia ancorado. 
Nas edificações da praia ensolarada, estalavam os ditos alegres e 
carinhosos. Uma chusma de amigos e de representações sociais e políticas 
vinha receber Helvídio e Caio, num dilúvio de abraços carinhosos. 
Lólio  Úrbico  e  a  esposa  chegavam,  igualmente,  ao  lado  de  Fábio 
Cornélio  e  sua  mulher  Júlia  Spinter,  velha  patrícia,  conhecida  por  suas 
tradições de orgulhosa sinceridade. Túlia Cevina e Máximo Cunctator lá se 
encontravam,  também,  ansiosos  pelo  amplexo  fraternal  dos  amigos,  que, 
por  largos anos,  se  haviam ausentado. Numerosos  parentes  e afeiçoados 
disputavam, entre si, o instante de estreitar nos braços amigos os queridos 
recém­chegados,  mas,  dentre  toda  a  multidão,  destacava­se  o  vulto 
venerando  de  Cneio  Lucius,  aureolado  pelos  cabelos  brancos,  que  as 
penosas experiências da vida haviam santificado. Uma atmosfera de amor e 
veneração  fazia­se  em  torno  da  sua  personalidade  vibrante  de  cultura  e 
generosidade, que setenta e cinco anos de lutas não conseguiram empanar. 
A  sociedade  romana  havia  seguido  o  curso  de  todos  os  seus  passos, 
conhecendo,  de  longe,  as  suas  tradições  de  nobreza  e  lealdade  e 
respeitando  nela  um  dos  mais  sagrados  expoentes  da  educação  antiga, 
cheia da beleza de Roma, em seus princípios mais austeros e mais simples. 
Cneio  Lucius  soubera  desprezar  todas  as  posições  de  domínio, 
compreendendo  que  o  espírito  do  militarismo  operava  a  decadência  do 
Império,  esquivando­se  a  todas  as  situações  materiais  de  evidência,  de 
modo a conservar o ascendente espiritual que lhe competia. No acervo dos 
seus  serviços  à  coletividade,  contavam­se  as  providências  desenvolvidas 
pelo  Governo  Imperial  a  favor  dos  escravos  que  ensinavam  as  primeiras 
letras  aos  filhos  de  seus  senhores,  além  de  muitas  outras  obras  de 
benemerência social, a prol dos mais pobres e dos mais humildes, a quem a 
sorte não favorecera. 
Seu nome era  respeitado, não  somente nos círculos aristocráticos 
do  Palatino, mas  também  na  Suburra,  onde  se  acotovelavam  as  famílias 
anônimas e desventuradas. 
Naquela manhã, o rosto do velho patrício deixava entrever o júbilo 
sereno que lhe palpitava na alma. 
Estreitou os filhos longamente de encontro ao coração, chorando de 
alegria ao abraçá­los; osculou as netas com paternal contentamento, mas, 
enquanto  as  mais  festivas  saudações  eram  trocadas  entre  todos  no 
turbilhão  de  expressivas  demonstrações  de  afeto  e  carinho, Cneio  Lucius 
notou que Lólio Úrbico contemplava, com insistência, o perfil de sua nora, 
enquanto Cláudia Sabina, fingindo absoluto olvido do passado, concentrava 
a  sua  atenção  em  Helvídio,  em  furtivos  olhares  que  lhe  diziam  tudo  à 
experiência do coração, cansado de bater entre os caprichosos desenganos
23 – CINQUENTA ANOS DEPOIS (pelo Espírito Emmanuel) 
do mundo. 
Nestório, por sua vez, desembarcado em Óstia, por satisfazer velho 
sonho, qual o de conhecer a cidade célebre e poderosa,  sentia estranhas 
comoções  a  lhe  vibrarem  no  íntimo,  como  se  estivesse  a  rever  lugares 
amigos  e  queridos.  Guardava  a  convicção  de  que  o  panorama,  agora 
desdobrado  aos  seus  olhos  ansiosos,  lhe  era  familiar,  dos  mais  remotos 
tempos.  Não  podia  precisar  a  cronologia  de  suas  recordações,  mas 
conservava a certeza de que, por processo misterioso, Roma estava inteira 
na tela de suas mais entranhadas reminiscências. 
Naquele mesmo dia, enquanto Alba Lucínia e as filhas se retiravam 
para a cidade, ao lado de Fábio Cornélio e de sua mulher, Helvídio Lucius 
tomava  lugar  ao  lado  do  velho  genitor,  encaminhando­se  ao  perímetro 
urbano, sem observarem as horas ou as perspectivas suaves do caminho, 
plenamente  mergulhados,  como  se  encontravam,  em  suas  confidências 
mais íntimas. 
Helvídio  confiou  ao  pai  todas  as  impressões  que  trazia  da  Ásia 
Menor,  rememorando  cenas  ou  evocando  carinhosas  lembranças, 
salientando,  porém,as  suas  intensas  preocupações  morais  a  respeito  da 
filha,  cujos  conhecimentos  prematuros  em matéria  de  religião  e  filosofia  o 
assombravam,  desde  que,  acidentalmente,  se  dera  ao  prazer  de  ouvir  os 
escravos da casa, sobre perigosas superstições da crença nova que invadia 
os  setores  do  Império,  em  todas  as  direções.  Esclareceu,  assim,  ante  o 
delicado  e  generoso  mentor  espiritual  de  sua  existência,  toda  a  situação 
familiar,  apresentando­lhe  os  pormenores  e  circunstâncias,  em  torno  do 
assunto. 
O velho Cneio Lucius, depois de ouvi­lo atentamente, prometeu­lhe 
auxílio  moral,  no  que  se  referia  à  questão,  a  cuja  solução  o  seu 
experimentado tirocínio educativo prestaria o mais proveitoso concurso. 
Em poucos dias, instalavam­se os nossos amigos na sua magnífica 
residência do Palatino, iniciando um novo ciclo de vida citadina. 
Helvídio  Lucius  estava  satisfeito  com  a  sua  nova  posição, 
salientando­se  que,  como  substituto  imediato  do  sogro  nas  funções  de 
Censor, estava­lhe reservado um papel relevante na vida da cidade, sob as 
vistas  generosas  do  Imperador.  Quanto  a  Alba  Lucínia,  graças  aos  seus 
inatos pendores artísticos, auxiliada por Túlia,  transformou as perspectivas 
da  velha  propriedade,  imprimindo­lhes  o  gosto  da  época  e  edificando  em 
cada recanto um fragmento de harmonia do  lar, onde o marido e as  filhas 
pudessem repousar das largas inquietações da vida. 
Desnecessário dizer que, abonada por Túlia, Hatéria foi admitida no 
lar,  impondo­se a  todos por  sua humildade habilidosa e conquistando  dos 
amos confiança plena, em poucos dias. 
Na semana seguinte, a pretexto de repousar algum tempo junto do 
avô, que a idolatrava, foi Célia conduzida pelos pais à residência do mesmo, 
na outra margem do Tibre, nas faldas do Aventino. 
Cneio  Lucius  habitava  confortável  palacete  de  apurado  estilo 
romano, em companhia de duas filhas já idosas, que lhe enchiam de afeto a
24 – Francisco Cândido Xavier  
estrelejada noite da velhice. 
Recebeu  a  neta  carinhosa,  com  as  mais  inequívocas  provas  de 
contentamento. 
No  dia  imediato,  pela manhã, mandou  preparar  a  liteira  particular 
para,  em  sua  companhia,  oferecer  um  sacrifício  no  templo  de  Júpiter 
Capitolino. 
Célia  acompanhou­o  calma  e  prazerosa,  embora  reparasse  os 
olhares expressivos com que o ancião a observava, ansioso, talvez, por lhe 
identificar os sentimentos mais íntimos. 
Cneio Lucius não estacionou  tão somente no santuário de Júpiter, 
dirigindo­se, igualmente, ao templo de Serápis, onde procurou palestrar com 
a neta a respeito das mais antigas tradições da família romana. A jovem não 
lhe  contradisse  as  palavras  nem  interrompeu  a  carinhosa  preleção, 
submetendo­se  à  maior  obediência  no  que  se  referia  à  ritualística  dos 
templos,  conforme  os  regulamentos  instituídos  em  Roma  pelos  padres 
flamíneos.
A  tarde  já  caía,  quando  o  generoso velhinho  deu  por  terminada  a 
peregrinação através dos edifícios religiosos da cidade. O Sol escondia­se 
no  poente,  mas  Cneio  Lucius  desejava  conhecer  toda  a  intensidade  dos 
novos  pensamentos  da  neta,  conduzindo­a,  para  esse  fim,  ao  altar 
doméstico, onde se alinhavam as soberbas imagens de marfim dos deuses 
familiares.
– Célia, minha querida – disse ele por fim, descansando num largo 
divã à frente dos ídolos –, levei­te hoje aos templos de Júpiter e de Serápis, 
onde  ofereci  sacrifícios  em  favor  da  nossa  felicidade;  mais  que  a  nossa 
ventura,  porém,  cara  filha,  eu  desejo  a  tua  própria.  Notei  que 
acompanhavas  os  meus  gestos  e,  todavia,  não  demonstravas  devoção 
sincera  e  ardente.  Acaso,  trouxeste  da  Província  alguma  ideia  nova, 
contrária às nossas crenças?!... 
Ouviu  a  palavra  do  venerando  avô,  com  a  alma  perdida  em 
profundas  cismas.  Compreendeu,  de  relance,  a  situação,  e,  afeita  às 
rigorosas  tradições  da  família,  adivinhou  que  seu  pai  solicitara  tal 
providência,  no  intuito  de  reformar­lhe  os  pensamentos,  bem  como  as 
convicções mais íntimas. 
– Querido avô – respondeu de olhos úmidos, nos quais transparecia 
sublimada inocência – eu sempre vos amei de toda a minh´alma e vós me 
ensinastes a dizer toda a verdade, em quaisquer circunstâncias. 
– Sim – exclamou Cneio Lucius admirado, adivinhando as emoções 
da  adorada  criança  –,  estás  no meu  coração  a  todos  os  instantes.  Fala, 
filhinha,  com a maior  franqueza! Eu  não  aprendi  outro  caminho  que  o  da 
verdade, junto às nossas tradições e aos nossos deuses.. 
–  De  antemão  devo  esclarecer­vos  que  foi  certamente  meu  pai 
quem vos solicitou a reforma de meus atuais sentimentos religiosos. 
O  venerável  ancião  fez  um  gesto  de  espanto  em  face  daquela 
observação inesperada. 
–  Sim  –  continuou  a  jovem  –,  talvez  meu  pai  não  me  pudesse
25 – CINQUENTA ANOS DEPOIS (pelo Espírito Emmanuel) 
compreender  inteiramente... Ele  jamais poderia ouvir­me satisfatoriamente, 
sem um protesto enérgico de sua alma; entretanto, eu continuaria a amá­lo 
sempre, ainda que o seu coração não me entendesse. 
–  Então,  filhinha,  porque  negaste  a  Helvídio  as  tuas mais  íntimas 
confidências?... 
–  Tentei  fazer­lhas  um  dia,  quando  ainda  nos  encontrávamos  na 
Judeia,  mas  compreendi,  imediatamente,  que  meu  pai  julgaria  mal  as 
minhas palavras mais sinceras, percebendo, então, que a verdade para ser 
totalmente  compreendida  precisa  ser  tratada  entre  corações  da  mesma 
idade espiritual. 
– Mas, filha, onde colocas, agora, os laços sagrados da família? 
–  No  amor  e  no  respeito  com  que  sempre  os  cultivei;  entretanto, 
avozinho, no campo das  ideias os elos do sangue nem sempre significam 
harmonia  de  opinião  entre  aqueles  que  o  Céu  uniu  no  instituto  familiar. 
Venerando  e  estimando  a  meu  pai,  no  meu  afeto  filial  e  no  respeito  às 
tradições do seu nome, esposei  ideias que ao seu espírito não é possível 
aderir, por enquanto... 
– Mas, que queres traduzir por idade espiritual?... 
–  Que  a  mocidade  e  a  velhice,  quais  as  vemos  no  mundo,  não 
podem  significar  senão  expressões  de  uma  vida  física  que  finda  com  a 
morte.  Não  há  moços  nem  velhos  e  sim  almas  jovens  no  raciocínio  ou 
profundamente enriquecidas no campo das experiências humanas. 
–  Que  queres  dizer  com  isso?  –  perguntou  o  ancião  altamente 
admirado. – Tens tão vasta leitura dos autores gregos?! Isso é de estranhar, 
quando  teu  pai  só  há  pouco  obteve  um  escravo  culto,  especialmente 
destinado a enriquecer a tua e a educação de tua irmã. 
– Vovô  bem  sabe  da  ânsia  de  aprender,  que  sempre me  impeliu, 
desde  pequenina.  Embora  jovem,  sinto  em meu  espírito  o  peso  de  uma 
idade milenária. Em todos estes anos de ausência, na Província, gastei todo 
o  tempo  disponível  em  devorar  a  biblioteca  que meu  pai  não  podia  levar 
consigo para as suas atividades na Indumeia. 
–  Filhinha  –exclamou  o  respeitável  ancião  sinceramente 
consternado  –,  não  terias  agido  à  moda  dos  enfermos  que,  à  força  de 
buscarem a virtude de todos os medicamentos ao alcance da mão, acabam 
lamentavelmente intoxicados?!... 
– Não, querido avô, eu não me envenenei. E se  tal coisa houvera 
acontecido, há mais de dois anos tenho no coração o melhor dos antídotos 
à influência corrosiva de todos os tóxicos deste mundo. 
– Qual? – interrogou Cneio Lucius sumamente surpreendido. 
– Uma crença fervorosa e sincera. 
– Colocaste teus pensamentos, neste sentido, sob a invocação dos 
nossos deuses?... 
– Não,  querido  avô,  pesa­me  confessar­vos, mas,  sinto  em vosso 
íntimo  a  mesma  capacidade  de  compreensão  que  vibra  em minh’alma  e 
devo  ser  sincera.  Os  deuses  de  nossas  antigas  tradições  já  me  não 
satisfazem...
26 – Francisco CândidoXavier  
– Como assim, querida filha? A que entidade dos céus confias hoje 
a tua fé sublimada e fervorosa?... 
Como  se  nos  seus  grandes  olhos  vibrasse  estranha  luz,  Célia 
respondeu calmamente: 
– Guardo agora a minha fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus Vivo. 
– Declaras­te cristã? – perguntou o velho avô empalidecendo. 
– Só me falta o batismo. 
–  Mas,  filha  –  disse  Cneio  Lucius  emprestando  à  voz  uma  doce 
inflexão  de  carinho  –,  o  Cristianismo  está  em  contradição  com  todos  os 
nossos  princípios,  pois  elimina  todas  as  noções  religiosas  e  sociais, 
basilares  da  nossa  concepção  de  Estado  e  de  Família.  Além  disso,  não 
sabes  que  adotar  essa  doutrina  é  caminhar  para  o  sacrifício  e  para  a 
morte?... 
–  Vovô,  apesar  dos  vossos  longos  e  criteriosos  estudos,  acredito 
que não chegastes a conhecer as  tradições de Jesus e a claridade suave 
dos  seus  ensinamentos.  Se  tivésseis  o  conhecimento  integral  da  sua 
doutrina,  se  ouvísseis  diretamente  aqueles  que  se  saturaram  da  sua  fé, 
teríeis  enriquecido  ainda  mais  o  tesouro  de  bondade  e  compreensão  do 
vosso espírito. 
– Mas não se compreende uma ideia tão pura, a encaminhar seus 
adeptos para a condenação e para o martírio, há quase um século. 
–  Entretanto,  avozinho,  ainda  não  atentastes,  talvez,  para  a 
circunstância  de  partir  do mundo  essa  condenação,  ao  passo  que  Jesus 
prometeu as alegrias do seu reino a todos os que sofressem na Terra, por 
amor ao seu nome. 
– Desvairas, minha querida, não pode haver divindade maior que o 
nosso Júpiter, nem pode existir outro reino que ultrapasse o nosso Império. 
Além  disso,  o  profeta  nazareno,  ao  que  sou  informado,  pregou  uma 
fraternidade  impossível  e  uma  humildade  que  nós  outros  não  poderemos 
compreender. 
Pousou  sobre  a  neta  os  olhos  plácidos,  cheios  de  caridade 
misteriosa,  sentindo,  porém,  uma  comoção mais  intensa  ao  encontrar  os 
dela serenos, piedosos, transparentes de candura indefinível. 
–  Avozinho  –  continuou  a  dizer  com  o  olhar  abstrato,  como  se  o 
espírito voejasse em recordações queridas e longínquas –, Jesus Cristo é o 
Cordeiro de Deus, que veio arrancar o mundo do erro e do pecado. Porque 
não lhe compreendermos os divinos ensinamentos, se temos fome de amor 
em nossa  alma? Aparentemente  sou  uma  jovem e vós  um homem velho, 
para o mundo; no entanto, sinto que nossos pensamentos são gêmeos na 
sede de conhecimento espiritual... 
Da  Terra  inteira  nos  chegam  clamores  de  revolta  e  gritos  de 
batalha... Misturam­se  o  fel  dos  oprimidos  e  as  lágrimas  de  todos  os  que 
padecem na humilhação e no cativeiro!... 
Tendes  conhecimento  de  todos  esses  tormentos  insondáveis  que 
campeiam em todo o mundo! Vossos livros falam das angústias indefiníveis 
do vosso espírito sensível e carinhoso. Esses brados de sofrimento chegam
27 – CINQUENTA ANOS DEPOIS (pelo Espírito Emmanuel) 
até aos vossos ouvidos, a todos os momentos! 
Onde estão os nossos  deuses de marfim, que não nos  salvam da 
decadência e da  ruína?! Onde Júpiter que não vem ao cenário do mundo 
para  restabelecer  o  equilíbrio  da  maravilhosa  balança  da  justiça  divina?! 
Poderemos aceitar um deus frio, impassível, que se compraz em endossar 
todas  as  torpezas  dos  poderosos  contra  os  mais  pobres  e  os  mais 
desgraçados? Será a Providência do Céu igual à de César, para cujo poder 
o mais  dileto  é  aquele  que  lhe  traz  as mais  ricas  oferendas?  Entretanto, 
Jesus  de  Nazaré  trouxe  ao mundo  uma  nova  esperança. Aos  orgulhosos 
advertiu que todas as vaidades da Terra ficam abandonadas no pórtico de 
sombras do  sepulcro;  aos  poderosos  deu  as  lições  de  renúncia  aos  bens 
transitórios do mundo, ensinando que as mais belas aquisições são as que 
se  constituem  das  virtudes  morais,  imperecíveis  valores  do  Céu; 
exemplificou,  em  todos  os  seus  atos  de  luz  indispensáveis  à  nossa 
edificação espiritual para Deus Todo­Poderoso, Pai de misericórdia infinita, 
em nome de quem nos  trouxe a sua doutrina de amor,  com a palavra de 
vida e redenção. 
Além de tudo, Jesus é a única esperança dos seres desamparados 
e  tristes,  da  Terra,  porquanto,  de  acordo  com  as  suas  doces  promessas, 
hão  de  receber  as  bem­aventuranças  do Céu  todos  os  desventurados  do 
mundo, entre as bênçãos da simplicidade e da paz, na piedade e na prática 
do bem. 
Cneio  Lucius  ouvia  a  neta,  em  comovido  silêncio,  sentindo­se 
tocado de uma inquietação mesclada de encanto, qual a que devesse sentir 
um filósofo do mundo, que ouvisse as mais  ternas revelações da Verdade 
pela boca de um anjo. 
A jovem, por sua vez, dando curso às sagradas inspirações que lhe 
rociavam  a  alma,  continuou  a  falar,  revolvendo  o  tesouro  de  suas 
lembranças mais gratas ao coração: 
– Por muito tempo estivemos em Antipátris, em plena Samaria, junto 
à Galileia... Ali, a  tradição de Jesus ainda está viva em todos os espíritos. 
Conheci  de  perto  a  geração  de  quantos  foram  beneficiados  pelas  suas 
mãos misericordiosas, fiquei conhecendo a história dos leprosos, limpos ao 
toque  do  seu  amor;  dos  cegos  em  cujos  olhos mortos  fluiu  uma vibração 
nova de vida, em virtude da sua palavra carinhosa e soberana; dos pobres 
de todos os matizes, que se enriqueceram da sua fé e da sua paz espiritual. 
Nas margens do lago de suas pregações inesquecíveis, pareceu­me 
ver ainda o sinal luminoso dos seus passos, quando, alma em prece, rogava 
ao Mestre de Nazaré as suas bênçãos dulcificantes!... 
– Mas Jesus Nazareno não era um perigoso visionário? – perguntou 
Cneio Lucius, profundamente surpreendido. – Não prometia um outro reino, 
menosprezando as tradições do nosso Império? 
– Vovô – respondeu a donzela sem se perturbar –, o Filho de Deus 
não desejou jamais fundar um reino belicoso e perecível, qual o possuem os 
povos da Terra. Nem se cansou jamais de esclarecer que o seu reino ainda 
não é deste mundo, antes ensinou que a sua fundação se destina às almas
28 – Francisco Cândido Xavier  
que desejem viver longe do torvelinho das paixões terrestres. 
Revolucionária  a  palavra  que  abençoa  a  todos  os  aflitos  e 
deserdados  da  sorte?  Que  manda  perdoar  o  inimigo  setenta  vezes  sete 
vezes?  Que  ensina  o  culto  a  Deus  com  o  coração,  sem  a  pompa  das 
vaidades humanas? Que recomenda a humildade como penhor de todas as 
realizações para o Céu? 
O Evangelho do Cristo, que  tive ocasião de  ler em fragmentos de 
pergaminho, nas mãos dos  nossos escravos, é um cântico de sublimadas 
esperanças no caminho das lágrimas da Terra, em marcha, porém, para as 
glórias sublimes do Infinito. 
O respeitável ancião esboçou um sorriso complacente, exclamando, 
bondoso: 
–  Filha,  para  nós  a  humildade  e  o  desprendimento  são  dois 
postulados  desconhecidos.  Nossas  águias  simbólicas  jamais  poderão 
descer  dos  seus  postos  de  domínio  e  nem  os  nossos  costumes  são 
passíveis  de  se  acomodarem ao  perdão,  como  norma  de  evolução  ou  de 
conquista... 
Tuas  considerações,  porém,  interessam­me  sobremaneira.  Mas 
dize­me: onde hauriste semelhantes conhecimentos? Como pudeste banhar 
o  espírito  nessa  nova  fé,  a  ponto  de  argumentares  fervorosamente  em 
desfavor  das  nossas  tradições  mais  antigas?...  Conta­me  tudo  com  a 
mesma sinceridade que sempre reconheci no teu caráter! 
– Primeiramente,  vim  a  conhecer  os  ensinamentos  do Evangelho, 
ouvindo, curiosamente, as conversas dos escravos de nossa casa... 
Após  haver  pronunciado  essas  palavras  reticenciosas,  Célia 
pareceu  meditar  gravemente,  como  se  experimentasse  uma  dificuldade 
indefinível  para  atender  aos  bons  desejos  do  querido  avô,  naquelas 
circunstâncias. 
Em  seguida,  como  se  travasse  consigo  mesma  um  diálogo 
silencioso,  entre  a  razão  e  o  sentimento,  ruborizou­se,como  receosa  de 
expor toda a verdade. 
Cneio  Lucius,  todavia,  identificou­lhe  imediatamente  a  atitude 
mental, exclamando: 
– Fala, filha! Teu velho avô saberá entender o teu coração. 
– Direi – respondeu ela ruborizada, dirigindo­lhe os olhos súplices, 
na sua timidez de menina e moça. –Vovô, será pecado amar?! 
– Certo que não – respondeu o velhinho, adivinhando um mundo de 
revelações no inopinado da pergunta. 
– E quando se ama a um escravo? 
O venerável  patrício  sentiu  constritiva  emoção,  ao  ouvir  a  penosa 
revelação da neta adorada; respondeu, contudo, sem hesitar: 
– Filhinha, estamos muito distantes da sociedade em que a filha de 
um patrício possa unir seu destino ao de algum dos seus servos. 
–  Todavia  –  acrescentou  depois  de  ligeira  pausa  –  chegaste  a 
querer tanto a um homem sujeito a tão dolorosas circunstâncias? 
Mas, vendo que os olhos da jovem se umedeciam e adivinhando­lhe
29 – CINQUENTA ANOS DEPOIS (pelo Espírito Emmanuel) 
as  comoções  penosas  e  constrangedoras  em  face  daquelas confidências, 
atraiu­a num beijo, de encontro ao coração, murmurando­lhe ao ouvido em 
tom carinhoso: 
– Não temas os julgamentos do avozinho, inteiramente devotado ao 
teu  bem­estar. Revela­me  tudo  sem omitir  detalhe  algum da verdade,  por 
mais  dolorosa  que  ela  seja.  Saberei  compreender  a  tua  alma,  acima  de 
tudo. Ainda que as  tuas aspirações amorosas e os  teus sonhos áureos de 
menina  hajam  pousado  no  ser  mais  abjeto  e  desprezível,  não  te  amarei 
menos por  isso, e, confiando em ti mesma, saberei  respeitar a  tua dor e a 
tua dedicação! 
Confortada  com  aquelas  palavras,  que  deixavam  transparecer 
generosidade e sinceridade absolutas, Célia prosseguiu: 
– Faz dois anos que papai nos  levou em uma de suas  excursões 
encantadoras, pelo lago extenso, na região onde possuímos a nossa casa. 
Além  de  mim,  da  mamãe  e  da  Helvídia,  ia  conosco  um  jovem  escravo 
adquirido na véspera e o qual, em vista da sua perícia nos remos, auxiliava 
a tarefa de abrir caminho ao longo das águas. 
Ciro, chama­se esse escravo de vinte anos, que a vontade do Céu 
deliberou fosse parar em nossa casa. 
Íamos  todos  alegres,  observando  a  linha  do  horizonte  e  o  recorte 
das nuvens no claro espelho das águas marulhantes. 
De vez em quando, Ciro me dirigia o olhar lúcido e calmo, que me 
produzia uma emoção cada vez mais intensa e indefinível. 
Quem poderá  explicar  esse mistério  santo  da  vida? Dentro  desse 
divino  segredo  do  coração,  basta,  às  vezes,  um  gesto,  uma  palavra,  um 
olhar, para que o espírito se algeme a outro para sempre... 
Fez  uma  pausa  na  exposição  de  suas  reminiscências,  e, 
observando­lhe a emotividade a desbordar dos olhos úmidos, Cneio Lucius 
animou­a:
–  Continua,  filhinha.  Faço  questão  de  ouvir  e  sentir  a  tua  história 
toda. 
–  Nosso  passeio  –  prosseguiu  ela  com  os  olhos  da  alma 
mergulhados no painel de suas mais íntimas recordações – corria sereno e 
sem  tropeços,  quando,  em  dado  instante,  se  levantou  uma  onda  larga, 
impelida pelo vento forte. Um abalo mais violento, justamente no ponto onde 
me instalara, fez­me cair, absorta nos meus pensamentos, de borco no seio 
espesso das águas.. 
Ainda ouvi os primeiros gritos de mamãe e da irmãzinha, supondo­ 
me perdida para sempre; mas, quando me debatia, inutilmente, para vencer 
o peso enorme que me oprimia o peito, sob a massa líquida, senti que dois 
braços vigorosos me arrancavam do  fundo  lodoso do  lago,  trazendo­me à 
tona, mercê de um desesperado e imenso esforço. 
Era Ciro que me salvara da morte, com o seu espírito de sacrifício e 
lealdade, conquistando com esse ato espontâneo a gratidão sem limites de 
meu pai, e de todos nós um reconhecimento carinhoso e sincero. 
No dia imediato, meu pai concedeu­lhe a liberdade, muito comovido
30 – Francisco Cândido Xavier  
pelos sucessos da véspera. 
No instante da sua emancipação, o jovem liberto beijou­me as mãos 
com os  olhos  úmidos,  na  sua  gratidão  profunda  e  sincera,  conservando­o 
meu pai em nossa casa, como serviçal prestimoso e livre, quase um amigo, 
se outras fossem as condições do seu nascimento. 
Ciro, porém, não me conquistou somente gratidão e estima a  toda 
prova, como também o meu afeto dalma, espontâneo e profundo. 
Em tardes serenas e claras, sob as árvores do pomar, contou­me a 
sua história singular, cheia de episódios interessantes e comovedores. 
Em  tenra  idade,  vendido  a  um  rico  senhor  que  o  conduziu  desde 
logo  ao  país  do  Ganges  –  terra  misteriosa  e  incompreensível  para  os 
romanos  –,  ali  teve  ocasião  de  conhecer  os  princípios  populares  de 
consoladoras filosofias religiosas. 
Nessa  região  do  Oriente,  cheia  de  segredos  confortadores,  ele 
aprendeu  que  a  alma  não  tem  apenas  uma  existência,  mas  vidas 
numerosas, mediante as quais adquire novas faculdades, purificando­se ao 
mesmo tempo dos erros passados, em outros corpos, ou redimindo­se das 
aflições, no doloroso resgate dos crimes ou desvios do seu passado. 
Todavia,  após  a  aquisição  desses  conhecimentos,  foi  levado  à 
Palestina,  onde  se  saturou  dos  ensinos  cristãos,  tornando­se  adepto 
fervoroso do Messias de Nazaré! 
Então,  era  de  ver­se  como  a  sua  palavra  se  impregnava  de 
inspiração divina e luminosa! 
Apaixonado  pelas  ideias  generosas  que  trouxera  do  ambiente 
religioso  da  Índia,  acerca  dos  formosos  princípios  da  reencarnação,  sabia 
interpretar  com  simplicidade  e  clareza  de  raciocínio,  para  mim,  muitas 
passagens  evangélicas,  algo  obscuras  para  o  meu  entendimento,  qual 
aquela  em que  Jesus  afirma  que  "ninguém poderá  atingir  o  reino  do Céu 
sem nascer de novo"! 
Fosse ao crepúsculo langoroso da Palestina, fosse ao luar caricioso 
das  suas  noites  estreladas,  quando  descansava  das  fadigas  do  trabalho 
diuturno, falava­me ele das ciências da vida e da morte, das coisas da Terra 
e do Céu, com os dons divinos da sua inteligência, mantendo o meu espírito 
suspenso  entre  as  emoções  da  vida  física  e  as  gloriosas  esperanças  na 
vida espiritual. 
Enlevada pela doce carícia de suas expressões e gestos de ternura, 
afigurava­se­me ele a alma gêmea do meu destino,  reservada por Deus a 
me estimar e compreender, desde as vidas mais remotas. 
Durante  um  ano  a  vida  nos  correu  em mar  de  rosas,  porque  nos 
amávamos intensamente. Em nossos idílios calmos, falávamos de Jesus e 
de suas glórias divinas, e, quando eu lhe suscitava a possibilidade da nossa 
união  à  face  deste  mundo,  Ciro  ensinava­me  que  deveríamos  esperar  a 
felicidade  no  Reino  do  Senhor,  alegando  que,  na  Terra,  não  era  ainda 
possível  um  matrimônio  feliz,  entre  um  escravo  miserável  e  uma  jovem 
patrícia. 
Por  vezes,  entristecia­me  com  as  suas  palavras  despidas  de
31 – CINQUENTA ANOS DEPOIS (pelo Espírito Emmanuel) 
esperanças  terrenas,  mas  as  suas  inspirações  eram  tão  elevadas  e  tão 
puras  que,  num  relance,  sabia  o  seu  coração  levantar  o  meu  para  as 
jornadas  da  fé,  que  levam a  tudo  esperar,  não  da Terra  ou  dos  homens, 
mas do Céu e do amor infinito de Deus. 
O valoroso ancião tudo ouvia, sem um reproche, embora sua atitude 
mental se caracterizasse pela mais funda consternação. 
Observando  que  a  neta  fizera  uma  pausa  na  encantadora  e  triste 
narrativa, Cneio Lucius interrogou­a com benevolência: 
– Qual a atitude desse rapaz para com teu pai? 
– Ciro admirava­lhe a generosidade franca e espontânea, revelando 
no  íntimo  a  mais  santa  gratidão  pelo  seu  ato  de  fraternidade,  quando  o 
alforriou para sempre. A todo propósito, ensinava­me a respeitá­lo cada vez 
mais  e  a  lhe  realçar  as  qualidades  mais  elevadas;  falava­me, 
constantemente, de suas atitudes generosas, com entusiasmo, admirando­ 
lhe a dedicação ao trabalho e a singular energia.–  E  Helvídio  nunca  soube  do  teu  amor?  –  perguntou  o  avô 
admirado.
–  Soube,  sim  –  respondeu  Célia  humildemente.  –  Contar­vos­ei 
tudo, sem omitir um só detalhe. 
Em nossa casa havia um chefe de serviço, que dirigia as atividades 
de  todos  os  servos  da  família.  Pausanias  era  um  coração  amigo  do 
escândalo  e  nada  sincero.  Meu  pai,  atendendo  à  necessidade  de  viajar 
constantemente, conservava­o quase como mandatário de sua vontade, em 
função  dos  seus  numerosos  interesses,  e  Pausanias,  muita  vez,  abusou 
dessa confiança generosa para estabelecer a discórdia em nosso lar. 
Observando  a  minha  intimidade  com  o  jovem  liberto,  cujos  dotes 
morais tão fortemente me haviam impressionado o coração, esperou, certa 
feita, o regresso de meu pai, de uma viagem à Indumeia, envenenando­lhe 
então o espírito com insinuações caluniosas da minha conduta. 
–  E  que  fez  Helvídio?  –  interrogou  o  velhinho  bruscamente, 
cortando­lhe  a  palavra,  como  se  adivinhasse  o  desenrolar  de  todas  as 
cenas ocorridas a distância. 
– Repreendeu minha mãe, asperamente,  inculpando­a, e chamou­ 
me  à  sua  presença,  de  maneira  que  lhe  recebesse  as  admoestações  e 
conselhos  necessários,  sem  jamais  permitir  que  eu  lhe  expusesse  tudo, 
com a sinceridade e franqueza com que o faço agora. 
–  E  quanto  ao  liberto?  –  perguntou  Cneio  Lucius  ansioso  por 
conhecer o desfecho do caso. 
– Mandou  pô­lo  a  ferros,  ordenando  a  Pausanias  lhe  aplicasse  a 
punição que julgasse necessária e conveniente. 
Atado  ao  tronco, Ciro  foi  açoitado várias vezes,  pelo  crime  de me 
haver ensinado a amar pelo coração e pelo espírito com o mais carinhoso 
respeito  a  todas  as  tradições  do  mundo  e  da  família,  no  altar  do 
devotamento silencioso e do sacrifício espiritual. 
No segundo dia de seus  indizíveis padecimentos,  consegui avistá­ 
lo,  apesar  da  vigilância  extrema  que  todos  resolveram  exercer  sobre  os
32 – Francisco Cândido Xavier  
meus passos. 
Como nos dias de nossa  tranquilidade  feliz, Ciro  recebeu­me com 
um sorriso de ventura, acrescentando que eu não deveria alimentar nenhum 
sentimento de amargor pela decisão de meu pai, considerando que o  seu 
espírito era bom e generoso e que, se não podíamos quebrar preconceitos 
milenários  da Terra,  também não  deveríamos  dar  guarida  a  pensamentos 
de ingratidão. 
O sofrimento, porém – prosseguia a jovem, enxugando as lágrimas 
de suas reminiscências –, era dilacerante para minha alma. 
Reconhecendo a situação penosa daquele que polarizava todas as 
minhas esperanças, cheguei a maldizer sinceramente da minha posição de 
afortunada. Que me valiam os mimos da família e as prerrogativas do nome 
que me felicitava, se a alma gêmea do meu destino estava encarcerada em 
pavorosa noite de sofrimentos? 
Expus­lhe,  então,  minha  tortura  íntima  e  os  meus  amargurados 
pensamentos. Ciro ouviu­me com resignação e brandura, respondendo­me, 
depois,  que  ambos  tínhamos  um modelo,  um mestre,  que  não  era  deste 
mundo,  e  que  o Salvador  nos  guardaria  no Céu  um ninho  de ventura,  se 
soubéssemos  sofrer  com  resignação  e  simplicidade,  à maneira  dos  bem­ 
aventurados de sua palavra sábia e doce. Acrescentou que o Cristo também 
amara  muito  e,  entretanto,  perlustrou  os  caminhos  da  incompreensão 
terrestre, sozinho e abandonado; se éramos vítimas de um preconceito ou 
de  perseguições,  tais  sofrimentos  deviam  ser  justos,  por  certo,  dados  os 
desvios do nosso passado espiritual, de eras prístinas, acrescentando que 
Jesus se sacrificara pela Humanidade inteira, embora de coração imaculado 
como o lírio e manso como cordeiro. 
– Que valem nossos sofrimentos comparados aos d’Ele, no alto da 
cruz  da  impiedade  e  da  cegueira  humanas?  –  dizia­me valorosamente.  – 
Célia,  minha  querida,  levanta  os  olhos  para  Jesus  e  caminha!...  Quem 
melhor  que  nós  poderá  compreender  esse  doce  mistério  do  amor  pelo 
sacrifício?
Sabemos  que  os mais  felizes  não  são  os  que  dominam  e  gozam 
neste mundo, mas os que compreendem os desígnios divinos, praticando­ 
os na vida, ainda que nos pareçam as criaturas mais desprezíveis e mais 
desventuradas.  .  . Além disso, querida, para os que  se amam pelos  laços 
sacrossantos  da  alma,  não  existem  preconceitos  nem  obstáculos,  no 
espaço e no  tempo. Amar­nos­emos, assim, constantemente, esperando a 
luz do Reino do Senhor. Soa, agora, o penoso instante da separação, mas, 
aqui  ou  além,  estarás  sempre  viva  em meu  peito,  porque  hei  de  amar­te 
toda a vida, como o verme desprezado que recebeu o suave sorriso de uma 
estrela... Poderão, acaso, separar­se os que caminham com Jesus através 
das  névoas  da  existência  material?  Não  prometeu  o  Mestre  o  seu  reino 
ditoso a quantos sofressem de olhos voltados para  o amor  infinito do seu 
coração?  Sejamos  conformados  e  tenhamos  coragem!...  Além  destes 
espinhais, desdobram­se estradas floridas, onde repousaremos um dia sob 
a luz do Ilimitado. Se sofremos agora, deve haver uma causa justa, oriunda
33 – CINQUENTA ANOS DEPOIS (pelo Espírito Emmanuel) 
de tenebroso passado, em sucessivas existências terrenas. Mas a vida real 
não  é  esta,  e  sim  a  que  viveremos  amanhã,  no  ilimitado  plano  da 
espiritualidade radiosa!... 
– Enquanto as suas expressões consoladoras me retemperavam o 
ânimo  combalido,  via­lhe  o  rosto macerado  e  os  cabelos  empastados  de 
copioso suor, que me deixavam entrever um sofrimento físico martirizante e 
infinito. 
Embora  a  sua  palidez  extrema,  Ciro me  sorria  e  confortava.  Sua 
lição  de  paciência  e  fé  embalsamou­me  o  coração  e  aquela  corajosa 
serenidade  deveria  constituir,  para  mim,  precioso  incitamento  à  fortaleza 
moral, em face das provas. 
Consolei­o,  então,  do  melhor  modo,  testemunhando­lhe  minha 
compreensão  funda  e  sincera,  quanto  ao  sentido  daquelas  palavras  de 
bondade  e  ensinamento,  compreensão  que  eu  guardaria  no  imo,  para 
sempre. 
Prometemo­nos, reciprocamente, a mais absoluta calma e confiança 
em Jesus, bem como eterna fidelidade neste mundo, para nos unirmos, um 
dia, nos céus. 
Terminados  os  rápidos  minutos  que  consegui  para  falar  ao 
encarcerado,  reconstituí  as  energias  interiores  da  minha  fé,  enxugando 
corajosamente as próprias lágrimas. 
Procurei minha mãe, implorei sua intercessão afetuosa, de modo a 
cessarem as  cruéis  punições  que Pausanias  impusera  ao  bem­amado  de 
minhalma, dando­lhe ciência dos quadros penosos que presenciara. 
Ela comoveu­se profundamente com a minha narrativa e obteve de 
meu pai a ordem para que Ciro fosse libertado, sob certas condições, que, 
apesar de penosas, constituíram para mim um brando alívio! 
–  Que  condições?  –  perguntou  Cneio  Lucius,  admirado,  ante  o 
romance comovedor da neta, cujos dezoito anos atestavam a mais profunda 
intensidade de sofrimento. 
–  Meu  pai  acedeu,  sob  a  condição  de  que  não mais  avistasse  o 
jovem  liberto  para  qualquer  despedida,  providenciando,  na  mesma  noite, 
para que ele fosse, escoltado por dois escravos de confiança, até Cesareia, 
em  cujo  porto  deveria  ser  internado  numa  galera  romana,  desterrado  a 
critério dos que a comandavam! 
–  E  chegaste,  filha,  a  alimentar  algum  rancor  contra  Helvídio,  em 
face da sua atitude? 
– Não  –  respondeu  com espontânea  sinceridade.  – Se  tivesse  de 
alimentar qualquer rancor, seria contra o meu próprio destino. 
Aliás,  Ciro  ensinava­me  sempre  que  não  podem  caminhar  para 
Jesus aqueles  que não honrarem pai e mãe, de acordo com os preceitos 
divinos. 
Cneio Lucius encontrava­se eminentemente surpreendido. Quando 
Helvídio  lhe  solicitara  a  intervenção moral  junto  da  neta,  longe  estava  de 
presumir  tão  doloroso  romance  de  amor  num  coração  de  dezoito  anos, 
cheio de juventude e de

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