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Livro Transtorno Mental e o Cuidado na família

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Livro Transtorno Mental e o Cuidado na família (autora Lucia Rosa)
Capítulo 4: A relação da família com o portador de transtorno mental
4.7 O provimento de cuidado doméstico ao portador de transtorno mental e a questão de gênero do cuidador
	O provimento de cuidado e as relações que lhe são consideradas próprias foram historicamente construídas. A partir do século XVIII, houve um aprofundamento da divisão de gênero do trabalho que procurou separar as esfera pública da privada, estabelecendo lugares sociais conforme o sexo do sujeito, forjando-se uma hierarquia entre as pessoas a partir do gênero. Às desigualdades econômicas reproduziram-se outras formas de desigualdades. As desigualdades sexuais foram apropriadas e ressignificadas socialmente, ficando o homem com o domínio sobre a mulher. Nesse contexto, o homem passa a ser associado com o espaço da rua, da política, da competição, do trabalho remunerado e assume a condição de provedor da unidade doméstica bem como o status de autoridade moral da família. A mulher torna-se vinculada à esfera doméstica, privada. Os serviços ‘’invisíveis’’, realizados no lar pela mulher e voltados para a reprodução social do grupo familiar, convertem-se em “atos de amor’’. A mulher também passa a comportar as funções de articuladora da coesão da unidade familiar, administradora do orçamento e consumo doméstico, educadora e prestadora de cuidados para o homem e para seus filhos. Tal divisão sexual, portanto, institui-se socialmente pela fusão que se estabeleceu entre o social e o biológico por intermédio do corpo feminino.
	A condição natural da mulher de engravidar e amamentar são relacionadas com a atividade da maternagem, criando assim, o “mito do amor materno”. A maternagem também foi associada ao despojamento, à renúncia e ao auto sacrifício da individualidade feminina. A maternagem ou o cuidado de pessoas foi, então, inserida na relação hierárquica e diferenciada da divisão social e sexual do trabalho como uma atividade subalterna, com valor social insignificante, pois, como foi referenciada à condição biológica da mulher, foi naturalizada. E como atividade natural e pessoal, persiste ainda sem reconhecimento social como trabalho. O que se pode interpretar dessas informações é que o cuidado é majoritariamente um encargo da família de origem e é um trabalho feminino. Ex.: pressão da sociedade como relação mãe-filho como um mito e obrigatória – “quem pariu Matheus que o balance”, deixando a mulher sem muitas possibilidades de escolhas, assim como para o portador de transtorno mental (PTM); o amor da mãe é gratuito e abnegado.
Atitude paradoxal da mãe/cuidadora: ao mesmo tempo em que sente-se sobrecarregada com os cuidados encarregados por ela, ela mesma age de forma a centralizar o cuidado, dando início a um ciclo vicioso de controle.
Regras gerais apresentadas na pesquisa: o cuidado é uma atividade feminina; o marido abandona a mulher quando entra em crise; se permanece na relação é apenas como o provedor. O homem passa a ser um cuidador se não há a possibilidade outro cuidador do gênero feminino.
4.7.1 O impacto do provimento do cuidado na individualidade da mulher cuidadora
	O impacto que o provimento de cuidado produz na individualidade da mulher está, de um lado, intrinsicamente relacionado ao estágio de evolução em que se encontra o transtorno mental e ao grau de comprometimento que provoca na autonomia e independência do PTM; e, de outro, à posição que a mulher ocupa em relação ao PTM.
	A cada regressão do quadro psicopatológico e reinternação do PTM, o cuidador adquire experiência e aprende também a manejar suas próprias expectativas. Age de forma mais calculada a medida que interage com o serviço de saúde, se apropria dos recursos do meio e toma conhecimento que o transtorno mental é incurável, nos termos médicos atuais. Assim, para o responsável do PTM ele estar bom e poder ir para casa é, em primeiro lugar, estar calmo na sua agressividade.
	O provimento de cuidado recai normalmente em apenas uma pessoa. Além da divisão sexual do trabalho no grupo familiar, mais três aspectos contribuem para que isso ocorra: a própria tendência centralizadora do cuidador, o mito da maternidade e o simbolismo que ganha a representação legal do PTM diante do hospital psiquiátrico.
	O ato de superproteger o PTM, em nome de sua segurança, tornando-o dependente de terceiros, também cerceia a liberdade do cuidador. “Proteção demais bloqueia relações”. Para a mulher, mãe, que é a principal agente socializadora, é muito mais difícil, tendo em vista que assume o descontrole comportamental do filho como um fracasso pessoal, pela própria “ferida narcísica”.
	“Mãe de família”, historicamente a principal provedora de cuidador dos enfermos no grupo familiar, se manifesta como e uma experiência desindividualizadora, que, ao mesmo tempo, foi imposta e assumida, embora com resistência, pelas mulheres. A mulher é, então, pressionada socialmente a tomar para si tal encargo que frequentemente assume como seu próprio desejo. Nota-se com mais frequência em mulheres de baixa renda.
	Aspectos comprometidos da vida do cuidador: descanso relacionado às interrupções noturnas do sono representado em 75%. A qualidade do sono está diretamente relacionada a preservação da saúde mental. Assim, pode-se inferir o somatório de cargas psíquicas que pesam sobre o cuidador. (*stress, noites sem dormir, cuidado ininterrupto, insegurança), a própria saúde (geralmente adiados) e o trabalho remunerado (normalmente ficam como ambulante).
	A abnegação, a renúncia a si próprio aparece como um sentimento introjetado entre as mães, que assumem o provimento de cuidado como um destino imutável, que a leva a se preocupar e querer administrar o futuro do PTM até mesmo após sua morte.
4.7.2 O cotidiano do cuidado
	Prestar cuidado a um PTM adulto, com transtorno mental grave, embora implique uma série de atividades que homogeneízam o cotidiano de diversos cuidadores, é também uma atividade heterogênea, pois está relacionada a uma série de fatores, dentre os quais se destacam as diferentes formas como se manifesta o transtorno mental na singularidade da cada PTM, que se pode tornar parcial ou integralmente dependente de cuidados de outras pessoas.
	O nível de comprometimento produzido pelo transtorno mental pode ser avaliado a partir do fato de ter atingido a autonomia e a independência da pessoa enferma. A autonomia refere-se às condições de domínio do meio físico e social que permite ao PTM preservar ao máximo sua privacidade e dignidade. Independência refere-se à faculdade do PTM de decidir sem ajuda de terceiros sobre questões que lhe dizem respeito.
	Cabe à família, principalmente ao cuidador, vocalizar as necessidade do PTM. O cuidador traduz as necessidades do PTM no comportamento do mesmo através da observação, já que a escuta é secundarizada. O olhar, o observar e o avaliar são os principais instrumentos de trabalho do cuidador.
	Três situações foram observadas no cotidiano do cuidador e do PTM: 37% dos PTM permanecem ociosos em crise e fora delas; 37% dos PTM ajudam em atividades domésticas quando não estão em crise e 24% dos PTM trabalham fora de casa em atividades remuneradas quando fora da crise.
	Percebeu-se também que o cuidador tem dificuldade em compreender adequadamente o que é o transtorno mental e identificar o nível de comprometimento que provoca no PTM, apontando suas novas necessidades. Dessa forma, fica muito difícil para o cuidados saber se o PTM pode ter um nível de autonomia e independência, quando e em que nível, devido às dificuldades no manejo sintomatológico.
	Associado à insônia, que é a principal queixa da família com 69% entre os motivos de internação, as principais questões que se colocam para a família referem-se a agressividade (55%) e a inquietação (53%). A perda do controle comportamental faz a família recorrer a internação, sobretudo quando o cuidador é uma mulher e o PTM é um homem, estabelecendo uma relação física desigual. Sendo assim, a expectativa do cuidador relaciona-seao controle da agressividade, pois quanto maior for a crença de poder controlar este comportamento, maior será a intenção de permanecer com o doente mental em casa. Com a continuidade da doença, as famílias vão aprendendo a manejar seus próprios sentimentos.
	O cuidado no cotidiano também implica frequentemente nos cuidados higiênicos, questão muito comprometida quando o PTM está em crise. Outras vezes, é necessário uma vigilância mais intensa e contínua, quando o risco de suicídio é iminente.
	Os cuidadores que melhor obtiveram o consentimento do PTM no tratamento/cuidado são aqueles que conseguiram desenvolver algumas qualidades relacionais positivas com ele. Portanto, construíram uma relação baseada na paciência, no amo, no respeito, no conhecimento sintomatológico, na confiança, qualidades referenciadas historicamente à mulher. Entretanto, se houver persistência na agressividade do PTM, o cuidador busca sua internação, muitas vezes manipulando os sintomas, intensificando ou dramatizando para obter a internação. Como consequência do distanciamento prolongado, vemos o enrijecimento nas relações.
	Prover cuidado, portanto, requer inicialmente um mínimo de conhecimento, além de um trabalho intenso na dimensão da aceitação do transtorno mental, de seu manejo sintomatológico e no convencimento do PTM de que precisa de tratamento. No entanto, o próprio serviço de saúde encontra-se despreparado para acolher essa necessidade da família, visto que sua intervenção está concentrada na remissão dos sintomas. Por sua vez, os profissionais de saúde têm uma melhor acolhida em relação aos sintomas que mais se aproximam do comportamento socialmente desejável. (“os pacientes mais quietinhos tornam-se os queridinhos”)
	A dependência do PTM em relação ao cuidador se acentua quando as possibilidades de negociação são extremamente reduzidas, como com os dependentes químicos, frente aos quais os cuidadores desenvolvem uma hipervigilância, tolhendo a individualidade do PTM e a sua própria. A hipervigilância frequentemente está associada a um intenso nível de fusão – simbiose, entre cuidador e o PTM, assim como a cristalização de relações que colocam o PTM num lugar fixo e imutável de “louco” ou de eterno dependente.
	A observação permitiu observar que nem todos os PTM se adequam a determinadas repetitivas e rotineiras. A maioria que se envolve com essas atividades tem expectativa de um trabalho que gere renda e que tenha reconhecimento social, caso não possa ser assim, há um desinteresse.
	O cuidador tem que ressocializar e ressocializar o PTM, ambas pessoas com uma leitura do mundo consolidada e uma experiência vivida que tem que ser revista para se adequar à nova realidade. Assim, o cuidador procura, nem sempre com êxito, normalizar o cotidiano do PTM e ampliar suas trocas sociais pelo trabalho, pelo lazer e pelo estudo.
4.7.3 O cuidado diário na família e a medicação
	O tratamento tende a manter-se com características impositivas e de subordinação, pois o PTM, quando não rejeita a medicação, tende a esquecer de tomá-la. Tal fato pode se dar pelo PTM não se aceitar como enfermo, não assumir o tratamento, querer manter seu espaço de liberdade e por medo dos efeitos colaterais. (Ex. efeitos do Haldol). Além disso, o cuidador também contribui com o abandono do tratamento por causa do seu despreparo para lidar com o medicamento e por desejar uma efeito imediatista. 
	A forma como os profissionais orientam as famílias também contribuem com a desorientação geral. Muitos médicos orientam diluir o medicamento nos alimentos, comprometendo a confiança entre o PTM e cuidador, quando o PTM não quer tomar o remédio e descobre que foi enganado, parando, muitas vezes, de aceitar alimentar-se.	Muitas vezes, a recusa da medicação, contraditoriamente, torna-se a única possibilidade de manifestação de liberdade do PTM.
	A família é, mais uma vez, culpabilizada pelo desconhecimento da importância do uso da medicação, ficando relativamente intocada a pedagogia institucional e a relação profissionais-cuidador.
	O abandono do uso do medicamento também pode estar relacionado ao uso do álcool, muito comum entre a população psiquiátrica de baixa renda. Sobretudo do sexo masculino. Por sua vez, com as reinternações constantes e as novas experiências da família, o cuidador modifica sua relação com o próprio psicotrópico, demandando maiores dosagens ou se automedicando.
	O tipo de relação que se estabelece entre o PTM/cuidador e o medicamento diz muito sobre a relação que se construiu entre esses e o serviço de saúde, que por sua vez, pode influir de forma positiva na continuidade do tratamento na esfera doméstica. No cuidado de UM PTM, a sua manutenção em casa e a estabilização de seus sintomas estão estreitamente relacionados ao uso do medicamento. Aliás, a recusa do medicamento por parte do PTM em casa é um dos critérios adotados para sai internação integral. Internado, a administração medicamentosa inicialmente é injetável, fato que por sua vez, é interpretado pelo PTM como uma punição por não ter aceito por via oral. Logo, administrar a medicação torna-se um desafio constante para o cuidador e ganha contornos persuasivos pela constante ameaça de internação integral.

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