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1 Bernardino (2014) afirma sobre o papel dos liberais contratualista jusnaturalistas: “[...] vemos aparecer ao final da Idade Média uma tentativa de definição do ius naturale buscando justificar a ordem existente. O ius naturale é subjetivo: ele é poder da pessoa. As premissas do contrato social fazem sua aparição, mas com o único objetivo de dar uma legitimidade ao que existe, e não para inventar uma nova filosófica política. Pretendeu-se haver um estado natural no qual os cristãos, através do ius naturale, estabeleceram voluntariamente convenções que formaram a ordem existente: os cristãos entraram, assim, na ordem civil. O mito é realmente endossado e não é tomado ao pé da letra, pois o que importa sobretudo, é compreender a ordem existente em si, e não suas origens reais, sem dúvida complexas. O mito é apenas um substituto”. “Todavia persiste que o ius naturale se torna cada vez mais importante dentro das discussões sobre o Direito. E é com a descoberta do Novo Mundo que ele toma um impulso considerável: eis aí os selvagens que não conhecem a ordem civil cristã. Como poderiam eles estar interessados e envolvidos pela Justiça particular? Seria por isto, no entanto, justo de os torturar, os massacrar, ou os traficar como escravos? O neo- tomismo, notadamente da Escola de Salamanca, reverte a ordem dos três direitos. Não havia dúvida entre os romanos que o verdadeiro Direito era o Direito civil. Mas, o primeiro Direito, este que deve ser examinado em prioridade, é o ius naturale, pois a humanidade não está toda inserida na ordem civil e os homens estão ainda no estado natural. Eis aí o nascimento do Direito natural como Direito ao estado natural”. “{34} Ora, o que caracteriza o estado natural? Sua ausência de ordem, o múltiplo e o diverso. Não existem homens, existem indivíduos. Não há relações entre estes homens, todos distintos, todos independentes, todos individuais: não pode então existir o justo e a Justiça particular. No estado natural, existem apenas potências e poderes diversos. Eis aí o que é o ius naturale, direito do estado natural: um conjunto de potestas, de poderes. O direito natural é o poder do indivíduo”. “{35} O direito natural advém plural: existem direitos naturais, que pertencem aos indivíduos. Direitos subjetivos que caracterizam a potência dos indivíduos. Direitos 2 ilimitados do indivíduo, ao menos enquanto ele não for submetido pelo constrangimento do outro. Um indivíduo submetido a outro tem menos direito que o segundo. Tem menos poderes, ele se submete a uma coerção que limita seus direitos naturais”. “{36} Uma nova definição da liberdade faz aparição, em complemento desta nova consideração do direito natural: a liberdade não é mais o estado do homem que se realiza em seu ser, não é mais beatitude do cristão, é simplesmente o estado sem constrangimento do indivíduo. {37} É livre não este que se realizou enquanto ser, em seu ser, mas o que não se submeteu ao constrangimento dos outros, quem pode gozar de sua potência, e então, de seus direitos naturais. Liberdade animal, dirão os conservadores, sem cometer um erro grosseiro. Evidentemente, pois o estado natural é sinônimo de potências ilimitadas, e todo mundo é submetido aos constrangimentos de outros, e então, todo mundo é ao mesmo tempo livre e não livre”. “{38} É o ponto de partida da Filosofia de Hobbes, precursor do liberalismo. O homem goza dos direitos naturais em estado natural na mesma quantidade que ele não goza devido ao erro dos outros: o homem é um lobo para o homem. Insegurança manifesta neste estado natural, que priva os indivíduos do direito mais elementar: o de se conservar. É por isto é necessário abandonar o estado natural por um estado civil, abandonar sua potência ilimitada por um contrato social, em benefício de um soberano onipotente, garantia de segurança. O que não retira em nada o direito de se conservar, quando somos ameaçados diretamente pelo soberano”. “{39} Com Locke, o estado natural não é tão perigoso quanto em Hobbes, mas lhe falta uma Justiça que fará serem respeitados os direitos naturais de cada um. Por isso, o contrato social, que não visa abandonar os direitos naturais em benefício de uma legislação civil arbitrária, mas que visa, ao contrário, instituir uma potência civil servindo para lhes garantir ao máximo e igualmente a cada um estes direitos. Igualdade de poderes, igualdade de direitos, igualdade da liberdade. E ao mesmo tempo que estas igualdades, direitos ilimitados, direitos absolutos”. 3 “{40} O direito natural aristotélico era realista: ele reconhecia nas coisas existentes as relações justas. Ele era organizador, conservador mas capaz de evolução, equilibrado, e sobretudo abordável ao jurista. {41} Os direitos naturais dos primeiros liberais são inversamente idealistas, e a crítica a isto é cômoda: eles encontram seus fundamentos em um mítico estado natural levado demasiadamente a sério. Eles são revolucionários no sentido em que impõem uma realização nova, uma mudança de ordem; são niilistas por não reconhecerem nada além da potência; e são muito generalizados, ilimitados, absolutos, inconsistentes para poderem ser abordados por juristas. Eles estão eternamente destinados a não ser satisfeitos, como provou a História. Estabeleceram numerosas constituições no mundo ocidental, proclamaram direitos naturais do homem ao preço de revoluções sangrentas, e para quais resultados? Estados enormes legiferando a torto e a direito. Os direitos naturais fizeram cair as barreiras à potência, e se encontraram rapidamente ultrapassados. Mas, já em teoria, eles eram insustentáveis, serviam para justificar tanto a potência absoluta do soberano (Hobbes) quanto os direitos oponíveis do povo face ao mesmo soberano (Locke), prova de sua profunda inconsistência, e é por isto que ninguém hoje em dia os defende mais, mesmo os que pretendem ser seus herdeiros [...].”
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