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Lei omissa

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Lei omissa: a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito
Gilmara Monteiro Baltazar OAB/SC 28.056
Quando o magistrado, ao solucionar um caso, não encontra uma norma que lhe seja aplicável, não podendo subsumir o fato a nenhum preceito, porque há falta de conhecimento sobre um status jurídico de certo comportamento, devido a um defeito do sistema que pode consistir numa ausência de norma, na presença de disposição legal injusta ou em desuso, estamos diante do problema das lacunas.
Os autores dividem-se em duas principais correntes antitéticas: a que afirma, pura e simplesmente, a inexistência de lacunas, sustentando que o sistema jurídico forma um todo orgânico sempre bastante para disciplinar todos os comportamento humanos; e a que sustenta a existência de lacunas no sistema, que, por mais perfeito que seja, não pode prever todas as situações de fato, que, constantemente, se transformam, acompanhando o ritmo instável da vida.
A expressão “lacuna” concerne a um estado incompleto do sistema, ou seja, há lacuna quando uma exigência do direito, fundamentada objetivamente pelas circunstâncias sociais, não encontra satisfação na ordem jurídica. Diz-se “lacuna” nos possíveis casos em que o direito objetivo não oferece, em princípio, uma solução.
A evolução da vida social traz com ela novos fatos e conflitos, fazendo como que os legisladores, constantemente, passem a elaborar novas leis; juízes e tribunais, de forma cotidiana, estabelecem novos precedentes, e os próprios valores sofrem mutações, devido ao dinamismo da vida.
Dessa forma, no direito as experiências históricas, sociológicas e axiológicas se complementam, porém, por mais completas que sejam, são apenas uma parte do direito, não podendo identificar-se com ele.
O direito não se reduz, portanto, à singeleza de um único elemento, donde a possibilidade de se obter uma unidade sistemática que o abranja em sua totalidade. Três são as principais espécies de lacuna: 1ª) normativa, quando se tiver ausência de norma sobre determinado caso; 2ª) ontológica, se houver norma, mas ela não corresponder aos fatos sociais: quando, por exemplo, o grande desenvolvimento das  relações sociais e o progresso técnico acarretaram o ancilosamento da norma positiva; 3ª) axiológica, ausência de norma justa, isto é, existe um preceito normativo, mas, se for aplicado, sua solução será insatisfatória ou injusta.
A decisão judicial nem ao menos elimina as lacunas e os conflitos. O juiz, ao aplicar a um caso não previsto a analogia, o costume e os princípios gerais do direito, não fecha a lacuna através de uma construção judicial, na qual substitui o legislador.
Ao elaborá-las, o juiz age indutivamente, pois, partindo de sua experiência vivencial, procede à observação de fatos particulares, dando-lhes uma significação, extraindo uma regra, de conformidade com aquilo que de mais comum sucede. São, portanto, juízos de valores que, apesar de individuais, têm autoridade, por trazerem em seu bojo a idéia de consenso geral ou da cultura de certo grupo social. O órgão judicante pode aplicá-las ao interpretar uma lei, ao avaliar provas, ao verificar as alegações das partes, ao deslindar o significado de certos conceitos normativos indeterminados, e ao exercer sua função integrativa ao aplicar a analogia, o costume e os princípios gerais de direito. As máximas de experiência podem ser objeto de prova, e o juiz tem a permissão de se informar sobre elas.
Desta forma, é impossível desejar que existam dentro do ordenamento jurídico normas regulando e prescrevendo as relações jurídicas presentes e todas as que progresso trará, assim, o direito será sempre lacunoso.
A instauração de um modelo jurídico geral cabe ao Poder Legislativo, bem como as modificações e correções da norma, procurando novas formas que atendam e satisfaçam às necessidades sociais, pois o juiz cria apenas uma norma jurídica individual valendo para cada caso concreto, e pondo fim aquele conflito, sem dissolver a lacuna, pois o caso sub judice por ele resolvido não pode generalizar a solução para outros casos, mesmo que sejam idênticos.
Admitida a existência das lacunas jurídicas, surge a sua identificação, a sua constatação, que abrange duas facetas: 1ª) a concernente ao ordenamento jurídico, que se caracteriza pelo fato de se saber em que limite a norma é omissa; 2ª) a referende à dificuldade da determinação da medida em que a ausência de norma pode ser tida como lacuna.
A constatação e o preenchimento são aspectos correlatos, porém independentes. Correlatos porque o preenchimento pressupõe a constatação, e esta, os meios de colmatação. Assim sendo, a analogia é, ao mesmo tempo, meio para mostrar a “falha” e para completá-la. São independentes porque pode haver constatação de lacunas cujo sentido ultrapasse os limites de preenchimento possível e porque o preenchimento da lacuna, salvo disposição expressa, não impede a sua constatação em novos casos e circunstâncias.
Para integrar a lacuna, o juiz recorre primeiro à analogia, que consiste em aplicar, a um caso não contemplado de modo direto ou específico por uma norma jurídica, uma norma prevista para uma hipótese distinta, mas semelhante ao caso não contemplado.
É a analogia um procedimento quase lógico, que envolve duas fases: “a constatação (empírica), por comparação, de que há uma semelhança entre fatos-tipos diferentes e um juízo de valor que mostra a relevância das semelhanças sobre as diferenças, tendo em vista uma decisão jurídica procurada”.
Com efeito, prescreve o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil: “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”, com isso reconhecendo a validade da lógica do razoável no estabelecimento de critérios de valoração para a aplicação da norma, não podendo deixar de se estender ao uso da analogia.
Percebe-se que o problema da aplicação analógica não está na averiguação das notas comuns entre o fato-tipo e o não previsto, mas sim em verificar se essa coincidência sobreleva, em termos valorativos, de maneira a justificar plenamente um tratamento jurídico idêntico para os fatos ora em exame.
A analogia é tão-somente um processo revelador de normas implícitas.
O costume é outra fonte supletiva. No nosso sistema de direito civil foi o costume relegado a plano inferior, porém, com o art. 4º da atual Lei de Introdução, situa-se o costume imediatamente abaixo da lei, pois o magistrado só poderá recorrer a ele quando se esgotarem todas as potencialidades legais para preencher a lacuna. O costume é uma fonte jurídica, porém em plano secundário.
Sustenta-se que o costume jurídico é formado por dois elementos necessários: o uso e a convicção jurídica, sendo, portanto a norma jurídica que deriva da longa prática uniforme, constante, pública e geral de determinado ato com a convicção de sua necessidade jurídica. A convicção da obrigatoriedade do costume funda-se no processo de institucionalização, que repousa no engajamento pelo silêncio presumidamente aprovador e caracteriza-se como parte integrante do sistema pelas regras estruturais que assim se expressam: “conforme usos e costumes”, em “respeito aos bons costumes”.
O juiz ao aplicar o costume deverá levar em conta os fins sociais deste e as exigências do bem comum, ou seja, os ideais de justiça e de utilidade comum, considerando-o sempre na unidade de seus dois elementos essenciais.
Em relação à lei, três são as espécies de costume: 1) O secundum legem, previsto na lei, que reconhece sua eficácia obrigatória; 2) O praeter legem, quando se reveste de caráter supletivo, suprindo a lei nos casos omissos. Este costume é invocado quando malsucedida a argumentação analógica, nas hipóteses de lacuna;
3) O contra legem, que se forma em sentido contrário ao da lei. Seria o caso da consuetudo abrogatoria, implicitamente revogatória das disposições legais, ou da desuetudo, que produz a não-aplicação da lei, em virtude do desuso, uma vez que a norma legal passa a ser letra morta.
Assim, não se pode negar a valiosa funçãodo direito exercida pela prática jurisprudencial, pela doutrina e pelo costume, decorrente do povo, na hipótese de lacuna normativa e, principalmente, nos casos: 1) de lacuna axiológica, ou seja, quando há lei aplicável ao fato, mas ante a injustiça ou inconveniência, que sua aplicação traria, deve ser afastada; 2) de lacuna ontológica, quando há desajustamento entre os fatos e as normas.
Se a realidade define a situação de certo modo e a norma legal de outro, a doutrina ou a jurisprudência são levadas, autorizadas pelo art. 5º da LICC, a concluir pela inaplicabilidade de tais normas, que estão em pleno desuso, aplicando-se, então, na impossibilidade de analogia, um costume. Surge com a mutação social.
Se a analogia e o costume falharem no preenchimento da lacuna, o magistrado deverá suprir a deficiência da ordem jurídica, adotando princípios gerais do direito, que são cânones que não foram ditados, explicitamente, pelo elaborador da norma, mas que estão contidos de forma imanente no ordenamento jurídico.
Os princípios gerais do direito contêm múltipla natureza: a) São decorrentes das normas do ordenamento jurídico, ou seja, dos subsistemas normativos. Princípios e normas não funcionam separadamente; ambos têm caráter prescritivo. Atuam os princípios como fundamento de integração do sistema normativo e como limite da atividade jurisdicional; b) São derivados das idéias políticas e sociais vigentes, ou seja, devem corresponder ao subconjunto axiológico e ao fático, que norteiam o sistema jurídico, sendo, assim, um ponto de união entre consenso social, valores predominantes, aspirações de uma sociedade com o sistema de direito; c) São reconhecidos pelas nações civilizadas os que tiveram substractum comum a todos os povos ou a alguns deles em dadas épocas históricas.
O juízo empregando deduções, induções, e, ainda, juízos valorativos, deverá seguir um roteiro, ao aplicar o princípio geral de direito, da seguinte forma: 1º) buscar os princípios norteadores da estrutura positiva da instituição a que se refere o caso sub judice; 2º) sendo inócua a primeira medida, deverá atingir os princípios que informam o livro ou a parte do diploma onde se insere a instituição, depois os do diploma onde se encontra o livro, a seguir os da disciplina a que corresponde o diploma, e assim por diante até chegar aos princípios gerais de todo o direito escrito, de todo o regime jurídico-político e da própria sociedade das nações, embora esses últimos só digam respeito às questões de direito internacional público; 3º) procurar os princípios de direito consuetudinário, que não se confundem com as normas costumeiras, mas que são o ponto de partida de onde aquelas advêm; 4º) recorrer ao direito das gentes, especialmente ao direito comparado, onde se descobre quais são os princípios que regem o sistema jurídico das nações civilizadas, desde que estes não contradigam os princípios do sistema jurídico interno; 5º) invocar os elementos de justiça, isto é, os princípios essenciais, podendo para tanto penetrar o campo da jusfilosofia.
Porém, quando o juiz não puder contar com a analogia, com o costume, nem como os princípios gerais de direito, lhe é permitido socorrer-se da eqüidade.
A eqüidade é o elemento de adaptação da norma ao caso concreto, apresentando-se como a capacidade que a norma tem de atenuar o seu rigor, adaptando-se ao caso sub judice. O do art. 5º da LICC permite corrigir a inadequação da norma ao caso concreto. Assim, a eqüidade seria uma válvula de segurança que possibilita aliviar a tensão e a antinomia entre a norma e a realidade, a revolta dos fatos contra os códigos.
Requisitos da eqüidade: 1º) decorrência do sistema e do direito natural; 2º) inexistência, sobre a matéria, de texto claro e inflexível; 3º) omissão, defeito, ou acentuada generalidade da lei; 4º) apelo para as formas complementares de expressão do direito antes da livre criação da norma eqüitativa; 5º) elaboração científica, da regra de eqüidade, em harmonia com o espírito que rege o sistema e, especialmente, com os princípios que informam o instituto objeto da decisão.
Esse é o poder conferido ao magistrado para revelar o direito latente, apesar de interferir, na elaboração de normas jurídicas gerais ou de leis, traçando diretivas ao comportamento do órgão judicante ao aplicá-las.
Fonte: http://www.oab-sc.org.br/artigos/lei-omissa-analogia-os-costumes-e-principios-gerais-do-direito/115. Disponivel em: 02/04/2017

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