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Metodologia do trabalho cientifico

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METODOLOGIA DO TRABALHO CIENTÍFICO
INTRODUÇÃO
 
Provavelmente você, universitário, imagine que a ciência sempre foi parte das universidades, mas esse é um fenômeno relativamente recente. A universidade antiga, ou medieval, aquela que surgiu na Idade Média e se espalhou rapidamente por toda a Europa e depois pelo mundo, apresentava duas funções básicas:
• preparar os jovens, privilegiando áreas como gramática, lógica, geometria, música e astronomia;
• preparar para o exercício de profissões, a exemplo de teologia, medicina e advocacia, até então entendidas como nobres, notadamente as últimas.
Valorizando o uso da razão e a competência intelectual, as universidades encontraram grande resistência ao seu desenvolvimento devido ao choque com ideais enraizados nos credos religiosos, baseados sobretudo na autoridade constituída segundo a tradição e seus dogmas. De certa forma, podemos atribuir a proximidade do ambiente acadêmico ao mundo da ciência à Revolução Industrial, que passou a exigir das universidades contribuições que permitissem desenvolvimento tecnológico e crescimento econômico.
Ainda assim, e mesmo nos dias de hoje, algumas transformações tecnológicas ocorreram fora do ambiente acadêmico. Como exemplo, podemos citar a revolução da internet: embora a estrutura teórica da ideia de redes tenha sido desenvolvida por instituições militares, a disseminação da tecnologia da informação não teria ocorrido sem a participação decisiva de Steve Wozniak e Steve Jobs, que em 1976 criaram o primeiro computador pessoal (Apple), e de Bill Gates e Paul Allen, que em 1975 criaram a Microsoft e passaram a desenvolver softwares que pudessem ser utilizados em computadores com preços acessíveis, tanto para uso doméstico quanto para uso empresarial.
No Brasil, a implantação de um sistema educacional complexo ocorreu pela demanda de profissionais para os serviços públicos e a administração do país. As áreas pioneiras foram a medicina, a engenharia e o direito. Em 1808, com a chegada da Família Real ao Brasil, foram criados os primeiros estabelecimentos de ensino médico-cirurgião de Salvador e do Rio de Janeiro. Criaram-se a Imprensa Régia, a Biblioteca Nacional e os primeiros periódicos científicos. Pela necessidade de modernizar a ciência e a tecnologia do país, em 1920, no Rio de Janeiro, surgiu a primeira universidade brasileira criada pelo governo federal, que aglutinou as escolas Politécnica, de Medicina e de Direito já existentes.
Reunir escolas e/ou faculdades tornou-se uma marca do desenvolvimento do sistema de ensino universitário brasileiro. Com base na universidade do Rio de Janeiro, foram criadas universidades federais em diversos estados. O regime militar também imprimiu suas marcas via reforma universitária, a qual procurava modernizar a universidade para um projeto econômico de crescimento, direcionando o ensino universitário ao mercado de trabalho por meio do acesso da classe média ao Ensino Superior. Para tanto, foi necessário o desenvolvimento de um sistema de vestibular e o ingresso dos estudantes de acordo com uma classificação determinada pelo próprio vestibular, diante do limitado número de vagas oferecidas.
A década de 1990 trouxe o surgimento de um grande número de universidades privadas, ou particulares, o que ofereceu uma alternativa ao imenso contingente de alunos que buscavam vagas no Ensino Superior. Ainda, a associação entre o capital privado e a revolução tecnológica no campo da comunicação ensejou o crescimento de cursos realizados a distância, permitindo o acolhimento de estudantes de todos os cantos do país e tornando possível a formação de profissionais e pesquisadores de todas as áreas do conhecimento, mesmo que em localidades distantes dos centros de pesquisa.
Nos dias de hoje, a vida universitária moderna está totalmente ligada à ciência e ao desenvolvimento científico. As universidades atuais são centros de produção e transmissão de conhecimento – portanto, de ciência. Em outras palavras, o mundo acadêmico é percebido como o principal polo de produção de conhecimento científico. Como em todas as outras atividades humanas, o fazer científico desenvolveu uma linguagem própria e uma forma própria de investigar e refletir. Será sobre essa linguagem e essa forma que trataremos, será a respeito da natureza do conhecimento científico que refletiremos, e será sobre o fazer acadêmico, em todas as suas variantes, que discutiremos aqui.
1 CONHECIMENTO COMUM, CONHECIMENTO TEOLÓGICO E CONHECIMENTO FILOSÓFICO
 
Primeiramente, tratemos de entender o que vem a ser conhecimento e sua importância. Podemos dizer que conhecer é ter noção de algo. Assim, o conhecimento tem início com a informação sobre determinado assunto ou situação. Podemos dizer também que o conhecimento se inicia pelo vivenciar, pela curiosidade. Ele tem origem, desse modo, na curiosidade, na vontade de ir além do que se sabe, do que se está vendo ou daquilo com o que se está tomando contato. Trata-se de desvendar, decifrar, decodificar. Segundo Matallo Jr. (2000, p. 13),
a preocupação com o conhecimento não é nova. Praticamente todos os povos da Antiguidade desenvolveram formas diversas de saber. Entre os egípcios a trigonometria, entre os romanos a hidráulica, entre os gregos a geometria, a mecânica, a lógica, a astronomia e a acústica, entre os indianos e muçulmanos a matemática e a astronomia, e entre todos se consolidou um conhecimento ligado à fabricação de artefatos de guerra. As imposições derivadas das necessidades práticas da existência foram sempre a força propulsora da busca dessas formas de saber. 
O conhecimento começa a ser obtido a partir da leitura, da convivência com amigos, da escola e dos grupos sociais dos quais fazemos parte. A observação, os sentidos, o raciocínio, a tradição e, por que não dizer, a família também são fontes de conhecimento. Nossas relações sociais são ainda uma excelente fonte de informação (por exemplo, o convívio familiar, afetivo, nas relações de trabalho, nos bancos escolares, nos bate-papos informais com amigos).
Figura 1 – A leitura é uma das principais fontes de conhecimento. Permite conhecer diversos assuntos e ter contato com diferentes linguagens. Livros, revistas, jornais, pôsteres, fôlderes – qualquer tipo de mídia impressa e não impressa – possibilitam o acesso a miríades de informações inimagináveis.
Todas essas opções podem ser consideradas fontes de conhecimento e estão associadas a diferentes formas de pensar, agir e explorar ideias e assuntos.
No entanto, fica a dica: Qual a diferença entre a fala de um cientista que afirma que a temperatura da Terra vem aumentando de forma sistemática e a fala de um indivíduo que, independentemente de ter ou não formação acadêmica, discorda do aquecimento global? Qual a diferença entre a busca de respostas para a origem do mundo e a busca de respostas para a finalidade da vida humana? Qual a diferença entre atribuir a existência do mundo a um ser superior, criador e onipresente, e entender que o mundo se constituiu a partir de uma sucessão de improváveis eventos?
Veremos agora, portanto, as características do conhecimento comum, do conhecimento filosófico e do conhecimento teológico.
1.1 Conhecimento comum
De acordo com Santos (1989), o conhecimento comum é elaborado a partir das nossas opiniões e daquilo que os nossos sentidos captam, não estando sujeito a qualquer tipo de crítica ou verificação. Quando alguém diz: “Acho que vai chover”, não há nesse enunciado qualquer força de verdade, qualquer compromisso com a verdade. Quando alguém diz: “Aquela estrada parece perigosa”, tampouco há nessa fala qualquer indício de certeza; aliás, o que é perigoso para mim, pode não sê-lo para outra pessoa. Em contrapartida, a ciência busca romper com o distanciamento entre o que é dito e a realidade à qual o dito se refere. Como afirma Santos (1989, p. 35), “o abandono dos conhecimentos do senso comum é um sacrifício difícil. A observação científica é sempre uma observação polêmica e, por isso, a teoria [é construída] contraum conhecimento anterior”.
Vejamos: para desconstruir a afirmação “Acho que vai chover”, um cientista pode apresentar o histórico de precipitações pluviais nos últimos dias, ou no mesmo período em anos passados; caso os dados mostrem uma probabilidade grande de ocorrência de chuva, ele poderá dizer: “Há X% de probabilidade de chover no dia de hoje”, ou “Há Y% de probabilidade de não chover no dia de hoje”. É possível perceber, portanto, a diferença entre afirmar que vai chover e prever chuva dentro de determinados parâmetros de probabilidade: a primeira afirmação é usual no contexto do senso comum; a segunda, no contexto do mundo científico.
Podemos realizar o mesmo procedimento em relação ao enunciado sobre o perigo da estrada. Um cientista partiria, inicialmente, da definição de perigo: o que representa perigo na estrada? Número de acidentes fatais? Número de desabamentos? Em qualquer dos dois casos, bastariam os dados de ocorrência de acidentes na estrada para confirmar ou negar a afirmação realizada no âmbito do senso comum. Aliás, essa afirmação poderia ser negada se associássemos perigo a outra variável: teríamos então uma situação em que, caso perigo fosse representado por número de acidentes fatais, seria possível afirmarmos ser a estrada perigosa; caso perigo significasse número de curvas acentuadas, poderíamos negar ser a estrada perigosa. Marconi e Lakatos (2003, p. 76) confirmam essa abordagem com outro exemplo:
Saber que determinada planta necessita de uma quantidade X de água e que, se não a receber de forma “natural”, deverá ser irrigada pode ser um conhecimento verdadeiro e comprovável, mas nem por isso científico. Para que isso ocorra, é necessário ir mais além: conhecer a natureza dos vegetais, sua composição, seu ciclo de desenvolvimento e as particularidades que distinguem uma espécie de outra.
Observação: O senso comum não é universal. Ele depende das condições sociais e históricas de cada grupo social.
Figura 2
Segundo Santos (2008), o senso comum é, essencialmente, um saber prático, que é gerado no fazer e que necessita ser pragmático. Ele serve para que possamos dar sentido às situações que nos são apresentadas a todo momento e agir diante delas. Assim, ele resulta das experiências da comunidade – ou dos grupos sociais –, que lhe dão corpo e significado. Europeus e brasileiros têm opiniões diferentes a respeito da educação dos filhos. No Brasil, os hábitos e costumes diferem de estado para estado, de cidade para cidade. Em consequência, o senso comum não é universal, e depende das condições sociais e históricas de cada grupo social.
O senso comum é superficial. É a consciência diante dos objetos da natureza que faz com que ele seja constituído. O senso comum não se preocupa em teorizar ou apresentar provas que o ratifiquem. Agimos no dia a dia sem qualquer compromisso com a teoria, apenas guiados pelos nossos instintos e por esse saber prático que nos diz o que fazer e como fazer. Assim, o senso comum não é resultado de qualquer procedimento sistemático ou metódico. Santos (2008, p. 90) afirma:
O senso comum é indisciplinar e imetódico; não resulta de uma prática especificamente orientada para o produzir; reproduz-se espontaneamente no suceder quotidiano da vida. O senso comum aceita o que existe tal como existe; privilegia a ação que não produza rupturas significativas no real. 
Ao afirmar que o senso comum é produzido e reproduzido espontaneamente, Santos está dizendo que esse é um saber que não é produzido de modo intencional. Quando receitamos determinado chá para alguém que está resfriado, de forma alguma o fazemos com base em evidências empíricas, tampouco por termos a intenção de testar se esse chá tem algum efeito curativo. Sugerimos o chá por acreditarmos que essa é uma atitude correta, não nos interessando, de maneira nenhuma, excluir algum tratamento medicamentoso. Não temos qualquer intenção de convencer alguém a fazer o mesmo em situações similares; aliás, nem sequer podemos provar qualquer efeito benéfico do chá. Tampouco pretendemos afirmar que a ingestão do chá pode gerar melhores resultados do que a ingestão de um medicamento à base de paracetamol.
Senso comum: Pode-se dizer que o senso comum não pretende ensinar nada; ele apenas quer persuadir.
Parece razoável, então, considerarmos o que Marconi e Lakatos (2003, p. 76) propõem com base em Mario Bunge (1919), físico argentino:
Se excluímos o conhecimento mítico (raios e trovões como manifestações de desagrado da divindade pelos comportamentos individuais ou sociais), verificamos que tanto o “bom senso” quanto a ciência almejam ser racionais e objetivos: “são críticos e aspiram à coerência (racionalidade) e procuram adaptar-se aos fatos em vez de permitir-se especulações sem controle (objetividade)”. Entretanto, o ideal de racionalidade, compreendido como uma sistematização coerente de enunciados fundamentados e passíveis de verificação, é obtido muito mais por intermédio de teorias, que constituem o núcleo da ciência, do que pelo conhecimento comum, entendido como acumulação de partes ou “peças” de informação frouxamente vinculadas. Por sua vez, o ideal de objetividade, isto é, a construção de imagens da realidade, verdadeiras e impessoais, não pode ser alcançado se não ultrapassar os estreitos limites da vida cotidiana, assim como da experiência particular.
Exemplo de aplicação
Há muita controvérsia, tanto na comunidade científica quanto na civil, a respeito das teorias sobre o aquecimento global. Alguns grupos dizem que não há qualquer evidência de aquecimento na temperatura do globo; ao contrário, afirmam existir sinais de esfriamento. Os que acreditam na elevação da temperatura estão divididos em dois grupos. O primeiro diz que há aquecimento global, mas que a atividade humana não tem qualquer participação nesse processo; para estes, o efeito estufa seria um fenômeno natural, que independeria da ação humana. O segundo diz que o aquecimento global, um fenômeno natural, tem sido potencializado e intensificado pela ação humana; para estes, são fundamentais ações que limitem a atividade predatória sobre a natureza e que assegurem a sustentabilidade da vida no nosso planeta.
Como há opiniões contrárias e inúmeros interesses políticos em jogo, a mídia, em geral, emite sinais confusos a respeito do tema. O artigo “A Terra ‘quente’ na imprensa: confiabilidade de notícias sobre aquecimento global”, de Celso Dal Ré Carneiro e João Cláudio Toniolo (2012), analisa esse cenário. Com base nele, propomos uma pergunta: quanto da opinião que você tem a respeito do aquecimento global pode ser ratificada por explicações científicas? 
Partindo do princípio de que há perceptível diferença entre as expressões “eu acho que” e “eu sei que”, o conhecimento vulgar – comum ou popular – é aquele que as pessoas adquirem em seu cotidiano, por meio de experiências vivenciadas ou da simples observação de fenômenos do dia a dia. Por não ter preocupação com explicações científicas, ou ditas corretas, o senso comum é, na maioria das situações, limitado, incoerente e impreciso (MARTINS; THEÓPHILO, 2009), e está no nível da opinião, pois esta pode ser emitida por qualquer sujeito a partir de informações previamente armazenadas, tomadas de modo corriqueiro ou simplesmente pelo hábito de emitir opiniões sem que haja argumentação passível de comprovação (MATALLO JR., 2000). Assim,
o senso comum é um conjunto de informações não sistematizadas que aprendemos por processos formais, informais e, às vezes, inconscientes, e que inclui um conjunto de valorações. São informações fragmentárias e podem incluir fatos históricos verdadeiros, doutrinas religiosas, lendas ou partes delas, princípios ideológicos às vezes conflitantes, informações científicas popularizadas pelos meios de comunicação de massa, bem como a experiência pessoal acumulada (MATALLO JR., 2000, p. 18).
Caso não seja colocado a dialogar com o conhecimento científico, o senso comum torna-se conservador. Se na ciência moderna o grande salto qualitativo do saberse dá por meio da passagem do senso comum para o conhecimento científico, na ciência pós-moderna o salto é outro: trata-se de transformar o conhecimento científico em senso comum. “O conhecimento científico pós-moderno só se realiza enquanto tal na medida em que se converte em senso comum.” Em outras palavras, a ciência pós-moderna, “ao sensocomunizar-se, não despreza o conhecimento que produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimento se deve traduzir em autoconhecimento, o desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em sabedoria de vida” (SANTOS, 2008, p. 90-91). No quadro a seguir, apresentamos as formas de representação a partir das quais o senso comum se manifesta.
 
Quadro 1 – Principais características do conhecimento comum e respectivas formas de representação
	Característica
	Forma de representação
	Valorativo e sensitivo
	Baseado em crenças, valores, emoções e hábitos.
	Reflexivo, não conclusivo
	Não pode ser tomado como verdadeiro nem representa formulações gerais.
	Assistemático
	Visa à repetição de experiências, mas não à sistematização de ideias no que concerne a validá-las.
	Verificável e qualitativo
	Limita-se aos acontecimentos do cotidiano, ao que se percebe no dia a dia, codificando objetos como grandes ou pequenos, doces ou azedos, pesados ou leves, novos ou velhos, belos ou feios
	Falível e inexato
	Conforma-se com a aparência e com o que se ouviu dizer a respeito do objeto. Não permite formular hipóteses
	Superficial
	Conforma-se com a aparência, com aquilo que se pode comprovar simplesmente estando junto das coisas (“porque vi”, “porque senti”, “porque disseram”, “porque todo mundo diz”).
Interatividade 1
 
Avalie as assertivas acerca do apresentado até então:
 
I. Atividades laborativas, ou mesmo de comunicação, necessitam de pensamento, preparação, descrição e razão.
II. A observação é uma forma de obtenção de conhecimento.
III. A observação permite produzir conhecimento.
É possível afirmar que está correta apenas:
a) I.
b) I e II
c) I, II e III
d) II
e) II e III
1.2 Conhecimento teológico e conhecimento filosófico
 
O conhecimento humano desenvolveu-se a partir da investigação da natureza por parte do homem, desejoso de interpretá-la, entendê-la e, quem sabe, dominá-la. Afinal, o homem
 
não vive isolado. Vive no concreto, cercado pelas circunstâncias. O ser irracional não reage diante da natureza, submete-se. O ser racional coloca-se diante da natureza assumindo uma atitude de reação. Por sua capacidade intelectual, alia-se ao que o rodeia e cria coisas novas, lapida sua consciência, domina a natureza. Vivendo dentro de uma realidade que o condiciona, o humano se constrói. O que é aparentemente negativo traz riquezas. Por interpretar o que o rodeia, o que lhe possibilita o crescimento, o humano manipula as circunstâncias, transformando-as, adaptando-as, modificando-as em vista do seu crescimento. Assim, de produto do meio ele passa a ser o recriador da natureza (BASTOS; KELLER, 2000, p. 54-55).
Com isso, percebe-se claramente certa independência entre o homem e natura: ou seja, a realidade. Para entendê-la de maneira mais racional e objetiva do que o senso comum, o homem desenvolveu o pensamento teológico e o pensamento filosófico.
O homem os utiliza dependendo daquilo que quer conhecer, ou conforme sua percepção da realidade. Vejamos cada um deles.
1.2.1 Conhecimento teológico
 
A teologia é o estudo da natureza do divino, dos atributos do divino e das relações entre o homem e o divino. Em geral, está associada à cristandade, mas pode aplicar-se a qualquer religião. Assim, podemos falar de uma teologia cristã da mesma forma que de uma teologia judaica ou uma teologia budista. Segundo Stigar, Torres e Ruthes (2014, p. 143),
 
a teologia problematiza o fenômeno religioso, analisa o caráter histórico do tema da construção do humano – dos valores, do sagrado e do discurso teológico – a partir de uma fundamentação baseada nos referenciais teóricos do dogma e da fé (vínculo do homem com o sagrado ou transcendente).
 
Nas universidades, e em alguns cursos, a teologia é dada como uma disciplina acadêmica, vinculada ou não a outras disciplinas. Ela é parte fundamental dos cursos de Filosofia e Ciências da Religião e, em geral, costuma provocar polêmicas,
 
por causa de seu tema, história, relação com outras disciplinas sobre questões religiosas e por causa da natureza das universidades que lhe dão suporte. A teologia acadêmica se distingue de teologia em geral, principalmente por sua relação com as várias disciplinas da academia.
Observação: Uma definição preliminar para a teologia acadêmica é que ela busca a sabedoria e a compreensão de questões como verdade, beleza e prática, que são levantadas por, sobre e entre as religiões.
Essas questões são levantadas por meio da relação com uma gama de disciplinas acadêmicas (STIGAR; TORRES; RUTHES, 2014, p. 144).
Do ponto de vista histórico, a teologia já foi chamada de metafísica, o que justifica o fato de ela ser considerada também uma área da filosofia. Resultado da fé humana na existência de forças sobrenaturais, consideradas criadoras do universo, o conhecimento teológico, ou religioso, surge com as revelações do mistério, do oculto, por alguma manifestação divina, sagrada. Essas revelações são transmitidas por alguém, por uma tradição ou por escritos também tidos como sagrados (MARTINS; THEÓPHILO, 2009), e que, portanto, devem ser adorados e obedecidos. Conforme Demo (1985, p. 20),
 
quando na Bíblia se montou uma história da criação do mundo e do surgimento do mal, não se pensou em fazer uma alegoria, um conto interessante ou qualquer outra coisa, mas certamente em dar uma explicação de como começou o mundo, o homem e o mal.
Observação: A metafísica diz respeito ao que está além da realidade, ou daquilo que nossos sentidos podem captar.
Os teólogos partem do pressuposto de que há um ser divino que pode ser estudado por meio das manifestações mentais, religiosas ou sociais que suas representações provocam. O mundo, a natureza, os homens, o bem e o mal foram criados por esse ser, e estudá-lo significa compreender os textos sagrados, representados, no caso do cristianismo, pela Bíblia.
A teologia, embora possa questionar dados ou interpretações comunicadas pela tradição, não questiona a tradição em si. Ela admite, como premissa de sua reflexão, ser a tradição uma doadora de sentido consistente. Isto é, a tradição representa uma fonte com chance de ser verdadeira por remontar a um conjunto coerente de testemunhas referenciais, por sua vez conectadas a uma origem ontológica presumida (STIGAR; TORRES; RUTHES, 2014, p. 142).
Observação: A ontologia é um ramo da filosofia que estuda o ser, a existência do ser e a existência da realidade.
Figura 3
Lembrete: A teologia não pretende ser uma ciência objetiva. Apresenta-se como um saber existencial.
De forma genérica, os teólogos estudam as manifestações religiosas a partir da própria fé, ou seja, considerando a sua própria religião como parâmetro para entender as outras. Ainda, o teólogo busca distanciar-se de toda e qualquer descrença pessoal que tenha em relação à existência do divino ou à espiritualidade. Ao estudar a religião à qual pertence ou ao estudar outras religiões, ele deve, portanto, assumir-se como crente e como alguém que tem fé na criação do mundo por um ser superior, ser esse que possui atributos divinos. Por isso, em muitas ocasiões, a teologia é associada ao pensamento religioso ou à filosofia religiosa.
No entanto, há que diferenciar teologia e religião. Em outras palavras, distinguir o pensamento teológico do religioso, e distinguir a teologia da ciência da religião. O pensamento religioso diz respeito a uma religião específica. Em contrapartida, a ciência da religião procura estudar a religião a partir do ponto de vista da ciência. Assim, para empreender um estudo científico sobre a religião, não é requisito acreditar na existência de um ser divino. Estudam-se quais motivos levam as pessoas a entender o mundo a partirde determinados pressupostos religiosos.
1.2.2 Conhecimento filosófico
 
Antes do surgimento da filosofia, o ser humano, já em busca de explicações a respeito do mundo que o cercava, interpretava a realidade a partir de elaborações míticas, ou seja, elaborações mágicas que tinham força de verdade pela sistematicidade com que eram utilizadas e pela autoridade das vozes que as declaravam. A repetição e a memória estabeleciam os critérios de verdade, independentemente do quanto essa narrativa aderia à realidade. O historiador e antropólogo francês Jean-Pierre Vernant (1914-2007), no livro O universo, os deuses, os homens, resgata parte da tradição mítica que buscou compreender o mundo com base nas forças divinas e nas relações entre essas forças. Como costumava fazer ao contar essas histórias aos seus netos, ele nos traz uma interpretação da origem do mundo extremamente interessante a partir das narrativas mitológicas gregas.
O universo, os deuses, os homens
 
O que havia quando ainda não havia coisa alguma, quando não havia nada? A essa pergunta os gregos responderam com histórias e mitos.
No início de tudo, o que primeiro existiu foi o Abismo: os gregos dizem Kháos. O que é o Caos? É um vazio, um vazio escuro onde não se distingue nada. Espaço de queda, vertigem e confusão, sem fim, sem fundo. Somos apanhados por esse Abismo como por uma boca imensa e aberta que tudo tragasse numa mesma noite indistinta. Portanto, na origem há apenas esse Caos, abismo cego, noturno, ilimitado.
Depois apareceu Terra. Os gregos dizem Gaîa, Gaia. Foi no próprio seio do Caos que surgiu a Terra. Portanto, nasceu depois de Caos e representa, em certos aspectos, seu contrário. A Terra não é mais esse espaço de queda escuro, ilimitado, indefinido. A Terra possui uma forma distinta, separada, precisa. À confusão e à tenebrosa indistinção de Caos opõem-se a nitidez, a firmeza e a estabilidade de Gaia. Na Terra tudo é desenhado, tudo é visível e sólido. É possível definir Gaia como o lugar onde os deuses, os homens e os bichos podem andar com segurança. Ela é o chão do mundo. […]
Nascido do vasto Abismo, o mundo agora tem um chão. De um lado, esse chão se eleva bem alto, na forma de montanhas; de outro, desce bem baixo, na forma de subterrâneo. Essa subterra se prolonga infinitamente, e assim, de certa forma, o que existe na base de Gaia, sob o solo firme e sólido, é sempre o Abismo, o Caos. A Terra, que surgiu do Abismo, liga-se a ele em suas profundezas. Esse Caos evoca para os gregos uma espécie de névoa opaca onde todas as fronteiras perdem nitidez. No mais profundo da Terra encontra-se esse aspecto caótico original.
Embora a Terra seja bem visível, tenha uma forma recortada, e tudo o que dela nascer também terá limites e fronteiras distintas, nem por isso ela deixa de ser, em suas profundezas, semelhante ao Abismo. Ela é a Terra negra. Os adjetivos que a definem nos relatos são similares aos que se referem ao Abismo. A Terra negra se estende entre o baixo e o alto; entre, de um lado, a escuridão e o enraizamento no Abismo, representado em suas profundezas, e, de outro, as montanhas encimadas de neve que ela projeta para o céu, montanhas luminosas cujos picos mais altos atingem a zona celeste continuamente inundada de luz.
A Terra constitui a base dessa morada que é o cosmo, mas não tem só essa função. Ela engendra e alimenta todas as coisas, salvo certas entidades […] [saídas do Caos]. Gaia é a mãe universal. Florestas, montanhas, grutas subterrâneas, ondas do mar, vasto céu, é sempre de Gaia, a Mãe-Terra, que eles nascem. Portanto, primeiro houve o Caos, imensa boca em forma de abismo escuro, sem limites, mas que num segundo tempo abriu-se para um chão sólido: a Terra. Esta se lança para o alto e desce às profundezas.
[Por meio de Éros primordial a] Terra engendra um personagem muito importante, Ouranós, Céu, e até mesmo Céu estrelado. Depois traz ao mundo Póntos, isto é, a água, todas as águas, e mais exatamente a Onda do Mar, palavra que em grego é masculina. Terra os concebe sem se unir a ninguém. Pela força íntima que tem, Terra desenvolve o que já estava dentro de si e que, ao sair dela, torna-se seu duplo e seu contrário. Por quê? Porque produz um Céu estrelado igual a si mesma, como uma réplica tão sólida, tão firme quanto ela, e do mesmo tamanho. Então, Urano se deita sobre ela. Terra e Céu constituem dois planos superpostos do universo, um chão e uma abóbada, um embaixo e um em cima, que se cobrem completamente. […]
Assim, o mundo se constrói a partir de três entidades primordiais: Kháos, Gaîa e Éros, e, em seguida, de duas entidades paridas por Terra: Ouranós e Póntos. Elas são ao mesmo tempo forças naturais e divindades. Gaia é a terra onde andamos, e ao mesmo tempo é uma deusa. Ponto representa as ondas do mar e também constitui uma força divina, à qual se pode prestar um culto. A partir daí surgem relatos de outro tipo, histórias violentas e dramáticas.
 
Fonte: Vernant (2000, p. 17-18).
Para certa linhagem de historiadores, o nascimento da filosofia “significa descontinuidade ou ruptura integral com a religião e os mitos. […] A filosofia nasce quando as velhas explicações míticas e religiosas da realidade já não podiam explicar coisa alguma”. Para outros historiadores, no entanto, haveria uma relação de continuidade entre mitologia e filosofia. Segundo eles, a explicação para a diferenciação entre esses dois contextos estaria não na distinção entre o campo mitológico e o campo filosófico, mas na distinção entre teogonia, cosmogonia e cosmologia:
Teogonia: narraria a geração das coisas do mundo por meio da atividade sexual dos deuses;
Cosmogonia: apresentaria o surgimento do mundo ordenado a partir do caos e da genealogia de forças vitais;
Cosmologia: por fim, a cosmologia trataria de despersonalizar os elementos, atribuindo a eles características naturais, embora algumas ainda de natureza divina. Buscaria a explicação da ordem do mundo por meio da “determinação de um princípio originário e racional que é a origem e a causa das coisas e de sua ordenação”.
A ordem poderia ser apreendida por meio da razão e da inteligibilidade de um princípio originário; em consequência, a filosofia “continuaria carregando dentro de si as construções míticas, mas agora de forma laica ou secularizada” (CHAUI, 2009, p. 30-37).
Independentemente das relações de continuidade ou ruptura com o pensamento anterior, a filosofia nascente buscou diferenciar-se dos mitos teogônicos e cosmogônicos que lhe haviam dado origem por meio da racionalidade e da busca de respostas, provas e demonstrações. Dessa filosofia nasceu nossa ciência, e a versão histórica hegemônica sobre o seu desenvolvimento tratou de manter afastados os terrenos da racionalidade religiosa e/ou mística e os da racionalidade da ciência.
Observação: Há inúmeras relações entre o pensamento científico, o filosófico e o teológico. Ao longo da história, inclusive, essas relações aproximaram ou afastaram esses diferentes campos do saber, mesclando ou diferenciando seus elementos mais básicos.
O conhecimento filosófico tem por origem a capacidade de reflexão do homem e, por instrumento exclusivo, o raciocínio (MARTINS; THEÓPHILO, 2009). O estudo filosófico, pelo emprego da lógica, tem por objetivo a ampliação dos limites de compreensão da realidade, bem como o estabelecimento de uma concepção geral do universo. Especulativo, utiliza-se de experiências, e não de experimentações. O olhar e a interpretação da filosofia, predominantemente dedutivos, partem de ideias e relações entre conceitos que não são redutíveis à realidade material (MARCONI; LAKATOS, 2003).
A filosofia nasceu no século IV a.C. já com a pretensão de se diferenciar do pensamento vulgar. Platão (428/427 a.C.-348/347 a.C.), filósofo e matemático da Grécia antiga, havia proposto essa reflexão. Na obra A república, da qual destacamos um fragmento a seguir, Platão encena um diálogo entre Glauco e Sócrates.
A república
 
Imagina, pois, homens que vivem em uma morada subterrânea em forma de caverna.A entrada se abre para a luz em toda a largura da fachada. Os homens estão no interior desde a infância, acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que não podem mudar de lugar nem voltar a cabeça para ver algo que não esteja diante deles. A luz lhes vem de um fogo que queima por trás deles, ao longe, no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um caminho que sobe. Imagina que esse caminho é cortado por um pequeno muro, semelhante ao tapume que os exibidores de marionetes dispõem entre eles e o público, acima do qual manobram as marionetes e apresentam o espetáculo. […]
Então, ao longo desse pequeno muro, imagina homens que carregam todo tipo de objetos fabricados, ultrapassando a altura do muro; estátuas de homens, figuras de animais, de pedra, madeira ou qualquer outro material. Provavelmente, entre os carregadores que desfilam ao longo do muro, alguns falam, outros se calam. […] Eles são semelhantes a nós. Primeiro, pensas que, na situação deles, eles tenham visto algo mais do que as sombras de si mesmos e dos vizinhos, que o fogo projeta na parede da caverna à sua frente? […] Então, se eles pudessem conversar, não achas que, nomeando as sombras que veem, pensariam nomear seres reais? […]
E se, além disso, houvesse um eco vindo da parede diante deles, quando um dos que passam ao longo do pequeno muro falasse, não achas que eles tomariam essa voz pela da sombra que desfila à sua frente? […] Assim sendo, os homens que estão nessas condições não poderiam considerar nada como verdadeiro, a não ser as sombras dos objetos fabricados. […] Vê agora o que aconteceria se eles fossem libertados de suas correntes e curados de sua desrazão. Tudo não aconteceria naturalmente como vou dizer? Se um desses homens fosse solto, forçado subitamente a levantar-se, a virar a cabeça, a andar, a olhar para o lado da luz, todos esses movimentos o fariam sofrer; ele ficaria ofuscado e não poderia distinguir os objetos, dos quais via apenas as sombras anteriormente. Na tua opinião, o que ele poderia responder se lhe dissessem que, antes, ele só via coisas sem consistência, que agora ele está mais perto da realidade, voltado para objetos mais reais, e que está vendo melhor? O que ele responderia se lhe designassem cada um dos objetos que desfilam, obrigando-o com perguntas a dizer o que são? Não achas que ele ficaria embaraçado e que as sombras que ele via antes lhe pareceriam mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora? […]
E se o forçassem a olhar para a própria luz, não achas que os olhos lhe doeriam, que ele viraria as costas e voltaria para as coisas que pode olhar e que as consideraria verdadeiramente mais nítidas do que as coisas que lhe mostram? […] E se o tirassem de lá à força, se o fizessem subir o íngreme caminho montanhoso, se não o largassem até arrastá-lo para a luz do sol, ele não sofreria e se irritaria ao ser assim empurrado para fora? E, chegando à luz, com os olhos ofuscados pelo brilho, não seria capaz de ver nenhum desses objetos, que nós afirmamos agora serem verdadeiros. […]
É preciso que ele se habitue para que possa ver as coisas do alto. Primeiro ele distinguirá mais facilmente as sombras, depois as imagens dos homens e dos outros objetos refletidos na água, depois os próprios objetos. Em segundo lugar, durante a noite, ele poderá contemplar as constelações e o próprio céu, e voltar o olhar para a luz dos astros e da lua mais facilmente que durante o dia para o sol e para a luz do sol. […] Finalmente, ele poderá contemplar o sol, não o seu reflexo nas águas ou em outra superfície lisa, mas o próprio sol, no lugar do sol, o sol tal como é. […] Depois disso, poderá raciocinar a respeito do sol, concluir que é ele que produz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível, e que é, de algum modo a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna. […]
Nesse momento, se ele se lembrar de sua primeira morada, da ciência que ali se possuía e de seus antigos companheiros, não achas que ficaria feliz com a mudança e teria pena deles? […] Quanto às honras e louvores que eles se atribuíam mutuamente outrora, quanto às recompensas concedidas àquele que fosse dotado de uma visão mais aguda para discernir a passagem das sombras na parede e de uma memória mais fiel para se lembrar com exatidão daquelas que precedem certas outras ou que lhes sucedem, as que vêm juntas, e que, por isso mesmo, era o mais hábil para conjeturar a que viria depois, achas que nosso homem teria inveja dele, que as honras e a confiança assim adquiridas entre os companheiros lhe dariam inveja? Ele não pensaria antes, como o herói de Homero, que mais vale “viver como escravo de um lavrador” e suportar qualquer provação do que voltar à visão ilusória da caverna e viver como se vive lá? […]
Reflete ainda nisto: supõe que esse homem volte à caverna e retome o seu antigo lugar. Dessa vez, não seria pelas trevas que ele teria os olhos ofuscados, ao vir diretamente do sol? […] E se ele tivesse que emitir de novo um juízo sobre as sombras e entrar em competição com os prisioneiros que continuaram acorrentados, enquanto sua vista ainda está confusa, seus olhos ainda não se recompuseram, enquanto lhe deram um tempo curto demais para acostumar-se com a escuridão, ele não ficaria ridículo? Os prisioneiros não diriam que, depois de ter ido até o alto, voltou com a vista perdida, que não vale mesmo a pena subir até lá? E se alguém tentasse retirar os seus laços, fazê-los subir, acreditas que, se pudessem agarrá-lo e executá-lo, não o matariam? […]
E agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar exatamente essa alegoria ao que dissemos anteriormente. Devemos assimilar o mundo que apreendemos pela vista à estada na prisão, a luz do fogo que ilumina a caverna à ação do sol. Quanto à subida e à contemplação do que há no alto, considera que se trata da ascensão da alma até o lugar inteligível, e não te enganarás sobre minha esperança, já que desejas conhecê-la. Deus sabe se há alguma possibilidade de que ela seja fundada sobre a verdade. Em todo caso, eis o que me aparece, tal como me aparece; nos últimos limites do mundo inteligível, aparece-me a ideia do Bem, que se percebe com dificuldade, mas que não se pode ver sem concluir que ela é a causa de tudo o que há de reto e de belo. No mundo visível ela gera a luz e o senhor da luz, no mundo inteligível ela própria é a soberana que dispensa a verdade e a inteligência. Acrescento que é preciso vê-la se se quer comportar-se com sabedoria, seja na vida privada, seja na vida pública.
Fonte: Paviani (2003, p. 60-64).
O que o mito da caverna nos ensina? Platão mostra que as sombras podem nos enganar, que a visão parcial ou deturpada da realidade pode nos levar a conclusões equivocadas, que devemos sair da caverna para ver o mundo exposto à claridade e que precisamos permitir que a luz nos mostre os objetos em todos os seus detalhes.
Figura 4 – O mito da caverna nos ensina que o conhecimento científico se opõe ao senso comum, que se coloca contra o senso comum, exigindo que a lógica se associe à obtenção de evidência empírica para que determinados enunciados sejam feitos
A filosofia é, portanto, a área do conhecimento que se ocupa em “não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valores e os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido” (CHAUI, 2000, p. 12).
Tratemos de refletir um pouco mais sobre isso. Imagine que, de repente, você encontre um amigo que não via há anos. Como se não houvesse transcorrido tempo algum, vocês retomam a conversa do ponto em que haviam parado, riem das mesmas piadas de antes, comportam-se como se tivessem se visto no dia anterior. Tal situação pode gerar estranheza, em especial se você se questionar a respeito do significado do tempo:
Sobre o tempo
1. O que é o tempo?
2. E o que se sucede dia a dia
3. E o que é marcado pelo relógio ou pelo movimento da Terra ao redor do Sol?
4. Há um tempo real e um tempo imaginário?
É provávelque você jamais tivesse refletido antes sobre o significado do tempo. No entanto, a situação favorece que a pergunta seja formulada. Se, há poucos minutos, você imaginava ter uma resposta pronta a essa questão, agora, após uma experiência específica, está refletindo a respeito da realidade e do que você imaginava certo a respeito dessa realidade. Para Chaui (2000), inclusive, a distância entre o que se crê e o que efetivamente é abre espaço para a crítica e para a descoberta, o que se define aqui como atitude filosófica.
Passamos por uma árvore e dizemos que ela é bela; no entanto, jamais paramos para refletir a respeito do significado de beleza. Se algo é belo para uns, será belo para todos? O que define a beleza? O que significa liberdade? Quais os atributos daquilo que é justo? Beleza, liberdade, justiça: todos esses temas, a respeito dos quais, na vida cotidiana, imaginamos ter o conhecimento necessário, podem se tornar objeto de reflexão filosófica. É a essa reflexão, a que fazemos sobre fatos ou conceitos sobre os quais temos a impressão de tudo saber, que damos o nome de atitude filosófica.
A reflexão filosófica ocorre a partir de dois momentos cruciais. No primeiro, por meio da atitude crítica, rejeitamos o conhecimento do senso comum, aquilo que pensamos saber.
Rejeitamos o “eu acho”, “eu penso”, e colocamo-nos na posição de quem nada sabe. No segundo, questionamo-nos a respeito do real significado das coisas e dos fenômenos. Colocamo-nos na posição de uma criança que descobre a sua própria mão, que vê tudo pela primeira vez e para quem o mundo é surpreendentemente novo. Digamos de outra forma: rejeitamos o julgamento parcial, as opiniões pessoais que temos em relação aos objetos, afastamo-nos da subjetividade; em contrapartida, buscamos a objetividade, a percepção do mundo mais isenta possível.
Nossos sentidos podem nos enganar, nossas opiniões podem ter se formado a partir de erros de observação ou erros de apreensão de causalidade – no nosso cotidiano, podemos afirmar que A causou B. É evidente que não há percepção totalmente isenta, não há como, na nossa apreensão do mundo, isolarmos a influência do que somos, do que pensamos, do que gostamos. Vemos o mundo a partir de lentes que podem ampliar, reduzir ou deformar nossa visão da realidade.
 
A filosofia oferece a possibilidade de nos distanciarmos da avaliação subjetiva dos objetos: Permite-nos, em especial, a consciência das nossas limitações na percepção e na avaliação do que nos cerca.
Figura 5 – Para pensar sobre o que é o pensamento, temos que utilizar palavras precisas, conceitos e ideias claras
Pensar sobre o pensamento significa não apenas estar disposto a conhecer o mundo, mas também a si mesmo.
Lembrete: A atitude filosófica nos permite compreender melhor como pensamos e formulamos opiniões a respeito das coisas, como construímos o conhecimento, como agimos a partir desse conhecimento. Tornamo-nos melhores porque nos interrogamos e nos questionamos a respeito das formas pelas quais construímos nossa visão de mundo.
Como conquistar esse autoconhecimento por meio do pensar sobre o pensamento? Parece claro que o método que usamos para conhecer e agir no nosso cotidiano não serve para a reflexão filosófica. Precisamos, inicialmente, utilizar palavras e conceitos claros. Depois, devemos empregar a nossa razão para formar um conjunto lógico de princípios e encadeamento de ideias.
O quadro a seguir sistematiza as principais características do conhecimento filosófico, bem como suas respectivas formas de representação.
Quadro 2 – Principais características do conhecimento filosófico e respectivas formas de representação
	Característica
	Forma de representação
	Valorativo
	O ponto de partida são hipóteses que não podem ser submetidas à observação. O conhecimento emerge da experiência, e não da experimentação.
	Não verificável
	Os enunciados das hipóteses filosóficas não podem ser confirmados nem refutados, mas são logicamente correlacionados.
	Sistemático
	Suas hipóteses e enunciados visam à representação coerente da realidade estudada, na tentativa de apreendê-la integralmente.
	Infalível e exato
	Seus postulados e hipóteses não são submetidos ao teste da experimentação. Há um esforço da razão pura, com a finalidade de questionar os problemas humanos e discernir entre o certo e o errado. A filosofia emprega o método racional, em que prevalece a coerência lógica.
Fonte: Marconi e Lakatos (2003, p. 78-79).
Interatividade 2
 
Acerca dos tipos de conhecimento, notadamente o filosófico e o teológico, indique a alternativa correta
a) O conhecimento filosófico é resultado da existência de forças sobrenaturais.
b) O conhecimento filosófico é necessariamente verificável.
c) O conhecimento religioso é impregnado de inspiração
d) O conhecimento religioso é verificável pela expressão da fé.
e) Tanto o conhecimento filosófico quanto o religioso não podem ser sistemáticos.
2 CONHECIMENTO CIENTÍFICO, PESQUISA TEÓRICA E PESQUISA EMPÍRICA
 
Vimos, anteriormente, o conhecimento comum, o teológico e o filosófico. Falemos, agora, do conhecimento científico. Comecemos com o surgimento da ciência.
Muitas das perguntas mais elementares que os seres humanos se propõem podem ter dado origem a estudos científicos. Em outras palavras, a ciência desenvolveu-se a partir de perguntas feitas pelos homens em relação ao que os cercava. Evidentemente, no início, muitas das respostas às perguntas que os seres humanos se faziam (por exemplo: “Por que chove?”, “O que são estrelas?”) tinham fundamentação nas explicações míticas e religiosas. Tratava-se, simplesmente, de explicações para alguns fenômenos naturais. Distanciando-se dessa visão, o valor da ciência variou bastante ao longo da história, até chegar ao status atual.
 
Figura 6 – A ciência desenvolveu-se a partir de perguntas feitas pelos homens em relação ao que os cercava, cuja natureza e funcionamento eles tinham interesse em entender
O conhecimento científico resulta de investigação metódica e sistemática da realidade. Utilizando-se do intelecto, o homem procura respostas para as causas dos fatos; a partir de classificações, comparações e análises – enfim, de métodos –, pode chegar a leis gerais que os regem. O processo de investigação, descoberta e expansão do conhecimento faz do ser humano sujeito ativo em relação a fatos e objetos (MARTINS; THEÓPHILO, 2009).
O conhecimento é uma adequação do sujeito ao objeto: O sujeito tem seus meios de conhecimento, e o objeto revela-se a ele conforme tais meios. Segundo Fachin (2003), o sujeito entra em contato com o objeto por intermédio de uma relação determinada, e esse contato se transforma em conhecimento mediante essa mesma relação. Toda compreensão necessita de um contato com o real.
 
É importante destacar que o sujeito não conhece tudo de todas as coisas, e que o pesquisador, o cientista,
 
procura tratar seu objeto dentro de certos rituais reconhecidos como importantes. De modo geral, evita a credulidade, assume atitude distanciada, cita autores, usa uma linguagem estereotipada, quase um dialeto, busca definir os termos da forma mais precisa possível, emprega técnicas complexas de quantificação, confia apenas em testes rigorosos, e assim por diante. Pratica-se uma forma de treinamento voltada […] a uma visão crítica da realidade, uma atitude mais objetiva, um domínio de autores e teorias, uma produção argumentativa insistente […]. Há um rol de cuidados específicos que, uma vez seguidos, parecem produzir o resultado imaginado, a saber, a ciência (DEMO, 1985, p. 33-34).
 
Desse fragmento, pode-se depreender que o desenvolvimento do conhecimento científico passa por um ritual, por uma espécie de culto ou práticas consagradas pelo uso de alguma norma. Deve ser guiado por uma sequência de atitudes que faz dele, então, um ritual. O pesquisador não crê com facilidade nos fatos que analisa, mas toma-os como condicionantes exteriores às suas crenças. É, portanto, não crédulo.
Uma das principais características dos pesquisadores,enquanto disseminadores do conhecimento científico, é que sua crença não se confunde com os objetos investigados. Os cientistas não os julgam por valores nem os tomam por crença, mas os assumem simplesmente como fatos a serem analisados, explicados e, por que não dizer, teorizados. Assim, o conhecimento científico é formado por atitudes distanciadas da ocorrência dos fenômenos. O cientista não se aproxima do objeto a ser estudado por paixão, mas sim pelo próprio estudo, pela análise, pela compreensão, pela possibilidade de dissecar, explicar a ocorrência dos fenômenos. Quanto mais for investigado, maior será o distanciamento entre o conhecimento científico e o fenômeno analisado, porém maior será a aproximação da ocorrência do fenômeno.
Isso somente é conseguido depois de muito treino.
 
OBSERVAÇÃO: O conhecimento científico requer abstração, observação, investigação, sistematização de ideias, interpretação, raciocínio e explicação. Cada uma dessas atitudes não está dissociada da outra nem ocorre de forma independente, mas no mesmo instante. Enquanto se observa e se investiga, há também raciocínio. Enquanto se exerce o raciocínio, chega-se a conclusões e, a partir delas, à explicação.
A observação e as investigações não são efetuadas sem critério. Muito pelo contrário: é preciso estabelecer certos procedimentos e, entre eles, escolher as melhores alternativas. Nesse aspecto, a investigação recorre ao que foi efetuado anteriormente, não obstante a abstração e a observação. Lembramos aqui os escritos existentes sobre a ocorrência de fenômenos, bem como as explicações já formuladas acerca da realidade. O uso de teorias já consagradas propostas por autores reconhecidos é de elevada importância no processo investigativo. Devemos ter em mente que a ciência é algo inacabado, que o conhecimento científico está em permanente construção e que um mesmo fenômeno ou uma mesma realidade podem ser verificados de formas distintas. Portanto, o uso de autores, teorias e conhecimentos desenvolvidos anteriormente muito contribui para o conhecimento presente e o futuro.
Quando se desenvolve o conhecimento científico, o recurso a autores e teorias proporciona a possibilidade de crítica. Como vimos, o senso comum não permite críticas, apenas opiniões. Não significa que inexista opinião crítica no conhecimento vulgar, porém esta, se existe, na maioria das vezes não está fundamentada em estudos, em abordagens teóricas, mas em hábitos, preconceitos, tradições, costumes. O conhecimento científico não admite opiniões desse tipo. Ele possibilita argumentos solidamente construídos pela crítica. Mesmo assim, não se trata de crítica pela crítica em si, como censura, condenação. Entende-se aqui a existência do criticar em sua forma analítica, examinada, julgada a partir de determinados parâmetros técnicos, não necessariamente complexos, mas qualificados e, se necessário, quantificados. A crítica permitida ao conhecimento científico é a do comentário e da apreciação teórica, assumindo o papel de renovação, afirmação ou negação do que se estuda, do que se analisa. Assim, o sujeito torna-se ativo no processo. O conhecimento científico não se apresenta somente como repetição do já existente. Procura ir além do que existe. Nesse aspecto, o cientista dialoga com autores, “briga” com teorias, refuta ou aceita ideias tomadas como certas.
De acordo com Santos (2008, p. 17), o conhecimento científico que temos hoje é herdeiro da Revolução Científica dos séculos XVII e XVIII, a qual produziu uma racionalidade que defendeu serem “mais científicas” as ciências naturais, comparativamente às sociais e humanas, e que buscou distinguir-se do senso comum. Não é uma ciência que se outorgue o direito de revelar grandes verdades. Ao contrário, “estamos de novo perplexos, perdemos a confiança epistemológica; instalou-se em nós uma sensação de perda irreparável, tanto mais estranha quanto não sabemos ao certo o que estamos em vias de perder”.
OBSERVAÇÃO: A epistemologia estuda o conhecimento, as etapas para o alcance dele e os limites do conhecimento alcançado. Quando Santos (2008) fala de confiança epistemológica, ele faz referência às normas e regras aceitas como legítimas para a construção do conhecimento científico.
O conhecimento científico resulta da observação e da experiência empírica, que ocorrem posteriormente à seleção de fatos por meio da dedução e do esforço teórico. Tende-se a quantificar, pressupondo-se que a mensuração pode ser uma garantia de certeza. O rigor científico exige medições e, portanto, “o que não é quantificável é cientificamente irrelevante” (SANTOS, 2008, p. 28).
O conhecimento científico, portanto,
 
é um conhecimento causal que aspira à formulação de leis, à luz de regularidades observadas, com vista a prever o comportamento futuro dos fenômenos. A descoberta das leis da natureza assenta, por um lado, e como já se referiu, no isolamento das condições iniciais relevantes (por exemplo, no caso da queda dos corpos, a posição inicial e a velocidade do corpo em queda) e, por outro lado, no pressuposto de que o resultado se produzirá independentemente do lugar e do tempo em que se realizarem as condições iniciais (SANTOS, 2008, p. 29).
 
Evidentemente, ser capaz de formular leis significa acreditar que o mundo pode ser compreendido por meio delas, quer dizer, que o mundo tem uma ordem natural passível de ser conhecida – que o mundo funciona como uma máquina, cujos movimentos e funcionamento são previsíveis (ao menos, em condições normais). Por isso mesmo, mais do que explicar, o conhecimento científico permite que operemos no mundo, que o transformemos, que o dominemos.
Figura 7 – “Esta ideia do mundo-máquina é de tal modo poderosa que se vai transformar na grande hipótese universal da época moderna, o mecanicismo” (SANTOS, 2008, p. 31)
 
Espera-se que o conhecimento científico seja capaz de explicar a realidade. Espera-se que, por meio dele, possamos formular leis simples que deem conta de apreender a complexidade que nos cerca, e essa também será uma marca das ciências sociais e aplicadas que surgem a partir do século XIX. Como ocorre nas ciências naturais, acredita-se que a sociedade possa ser investigada com o objetivo de abstrair leis gerais que expliquem os fenômenos sociais, culturais, psicológicos e econômicos.
Pelo exposto, entendemos ser a ciência constituída por conhecimentos sobre um objeto passível de estudo e expressa por linguagem própria, precisa. As conclusões a que chega, além de totalmente independentes de juízo de valor, devem ser passíveis de verificação para posterior explicação ou teorização. Quanto ao cientista, este se utiliza de fatos para produzir conhecimento, cuja elaboração dá origem a teorias que deverão ser novamente submetidas à realidade para conferir sua validade.
 
A ciência se apresenta como uma maneira uniforme de achar alguma razão na observação dos fatos. Sua estrutura permite a acumulação do conhecimento de forma organizada e fundamentada em sistemas lógicos, sempre sob a direção de um elenco de procedimentos da metodologia científica. A classificação das diversas ciências é importante porque é uma preocupação que, ao longo do tempo, tem se tornado uma problemática intelectual do ser humano (FACHIN, 2003, p. 15).
 
Santos (2008, p. 14) observa:
 
E de tal modo é assim que é possível dizer que em termos científicos vivemos ainda no século XIX e que o século XX ainda não começou, nem talvez comece antes de terminar. E se, em vez de no passado, centrarmos o nosso olhar no futuro, do mesmo modo duas imagens contraditórias nos ocorrem alternadamente. Por um lado, as potencialidades da tradução tecnológica dos conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar de uma sociedade de comunicação e interativa libertada das carências e inseguranças que ainda hoje compõem os dias de muitos de nós: o século XXI a começar antes de começar. Por outro lado, uma reflexão cada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor científico combinada com os perigos cada vez mais verossímeisda catástrofe ecológica ou da guerra nuclear fazem-nos temer que o século XXI termine antes de começar.
 
Por sua vez, Lungarzo (1990, p. 15) afirma:
 
A ciência é uma parte da cultura dos povos modernos, como a religião, a arte, a literatura etc. Mas nem sempre a palavra “ciência” é usada com um único significado. Frequentemente, entende-se por ciência a atividade científica em geral. Eis alguns exemplos desse uso: sociedade científica, homem de ciência, visão científica da vida […]. Outras vezes, “ciência” tem o significado mais específico de conhecimento científico. […] Ainda, a ciência é usualmente identificada com o conjunto ou sistema organizado de conhecimento científico. […] A ciência, considerada como conhecimento, tem forte relação com métodos e técnicas de descoberta […]. Considerada como teoria, sua relação mais importante é com a estrutura lógica e linguística.
 
Complementando, Ferrari (1982, p. 2) define: “A ciência é todo um conjunto de atitudes e atividades racionais dirigidas ao sistemático conhecimento, com objetivo limitado, capaz de ser submetido à verificação”.
É possível agora sintetizar as características do conhecimento científico, conforme mostra o quadro a seguir.
Quadro 3 – Principais características do conhecimento científico e respectivas formas de representação
	Característica
	Forma de representação
	Real
	Lida com fatos, com ocorrências.
	Contingente
	Proposições ou hipóteses são validadas ou falseadas pela experiência, e não simplesmente pela razão.
	Sistemático
	Segue uma ordem precedida por ideias concebidas em teorias.
	Verificável
	Procura, a partir de uma situação-problema, de uma dúvida, trabalhar com hipóteses, as quais poderão se mostrar verdadeiras ou falsas.
	Falível
	É um produto inacabado, não definitivo, absoluto ou final.
	Aproximadamente exato
	Aceita reformulações interpretativas e teóricas.
Fonte: Marconi e Lakatos (2003, p. 77).
A partir de Fachin (2003), Lungarzo (1990) e Marconi e Lakatos (2003), é possível proceder à classificação e à divisão da ciência. É o que vemos na figura a seguir.
Divisão das ciências e suas classificações
Humanas
Naturais
Factuais
Formais
CIÊNCIAS
As ciências formais são aquelas que lidam com dados não concretos, com abstrações cujos teoremas e argumentos dispensam experimentos. Trabalham sobre a forma do conhecimento, e não sobre seu conteúdo. A exemplo da matemática e da lógica, trabalham com ideias. Já as chamadas factuais procuram lidar com situações reais, baseadas em fatos. A existência de seus objetos independe de nossa mente, e suas características são geralmente perceptíveis aos sentidos. As ciências factuais, que também podem ser designadas como experimentais ou empíricas, são divididas em duas grandes áreas, em razão das diferenças entre os objetos de investigação, bem como entre os métodos de investigação, análise e conclusão.
As ciências factuais naturais são aquelas relacionadas à astronomia, à biologia, à física, à geologia e à química, para listar algumas. Operam com os dados fornecidos pela natureza. Exemplos:
· Astronomia: estudo dos astros, das estrelas.
· Biologia: estudo dos seres vivos, a fim de conhecer o funcionamento dos organismos.
· Física: estudo da natureza em seus aspectos mais gerais.
· Geologia: estudo das ciências da Terra, no que diz respeito à sua composição e estrutura.
· Química: estudo das substâncias da natureza, dos elementos e suas características.
As ciências factuais humanas preocupam-se, em sentido mais amplo, com fenômenos e atividades relacionadas com o homem. Assim, a antropologia, o direito, a economia, a história, a política, a psicologia social e a sociologia fazem parte dessa divisão. Podem ainda ser designadas como ciências sociais ou, simplesmente, humanas. Tratam do homem, de seu comportamento, de sua vida grupal.
As ciências estão divididas exclusivamente para fins didáticos. Lungarzo (1990, p. 38-39) observa:
A divisão entre os dois campos está definida pela natureza que umas e outras estudam. Por exemplo, não há nenhuma ciência da natureza dedicada ao estudo dos conflitos sociais, dos hábitos de tribos, clãs, grupos familiares etc., da direção da história e de outros problemas específicos do homem. Essas propriedades específicas das ciências humanas têm algo diferente das propriedades relevantes para as ciências naturais. O homem é um ser pensante e afetivo: ele tem uma forma “superior” de inteligência, tem emoções que influem em suas atividades e tem a capacidade de transformar o mundo. O homem não é um objeto “passivo” como as forças, a energia, a luz, as células, os planetas ou outras entidades que fazem parte das ciências naturais. […] as atividades humanas são bem mais difíceis de predizer. Um astrônomo pode predizer com exatidão quando terá lugar o próximo eclipse do Sol. Pelo contrário, ninguém pode predizer, nem com uma aproximação razoável, quando acontecerá uma nova guerra mundial.
Já vimos que o conhecimento científico exige a formulação de hipóteses que sejam verificadas e interpretadas. Tal contexto enseja a formulação de algumas perguntas:
Atividade
1) A pesquisa cientifica deve envolver necessariamente, procedimentos experimentais?
2) Só pode ser considerado científico o conhecimento que é produzido em laboratório?
3) É científico o conhecimento que não gera qualquer resultado prático, que apenas produz teorias?
A resposta a esses questionamentos surge da diferenciação entre pesquisa teórica e pesquisa empírica. A pesquisa teórica, de forma simplificada, tem a intenção de enriquecer teoricamente a ciência; em contrapartida, a pesquisa empírica é aquela que busca um resultado prático. Por isso, as pesquisas teóricas são chamadas de puras, e as empíricas, de aplicadas.
Observação: Segundo Gil (2008, p. 26), “pode-se definir pesquisa como o processo formal e sistemático de desenvolvimento do método científico. O objetivo fundamental da pesquisa é descobrir respostas para problemas mediante o emprego de procedimentos científicos”. Em outras palavras, a pesquisa representa o conjunto de procedimentos científicos levados a cabo para resolver determinado problema ou responder a determinada pergunta.
Uma teoria em ciência, é um conjunto de hipóteses que permite que formulemos explicações gerais: Posso supor que alunos que estudem em determinado polo ou campus o fazem por causa da proximidade com a residência ou com o trabalho.
Evidentemente, essa hipótese foi gerada a partir de muitas observações. Logo, caso um aluno afirme estudar no campus/polo X, posso dizer que ele provavelmente fez essa escolha pela proximidade com a casa ou com o trabalho. A conclusão geral a que cheguei por meio de observações me permite explicar casos particulares, mesmo que não os conheça a fundo. As teorias, portanto, têm valor explicativo e são utilizadas para explicar fenômenos, ainda que não estudados individualmente. Mais: além de explicativas, elas generalizam e sintetizam o conhecimento.
A pesquisa teórica, desse modo, tem o objetivo de avançar na formulação teórica, complementando-a ou confirmando-a, ou modificar uma teoria já existente. São exemplos de pesquisa teórica: a elaboração de um artigo científico a respeito do comportamento social em situações de estresse intenso, o estudo sobre a história da física no que respeita à transição entre o geocentrismo e o heliocentrismo, a análise dos indicadores de desempenho da economia, a investigação sobre as principais causas de acidente de trânsito nas capitais do país etc. Como é possível perceber, em geral, essas são pesquisas documentais ou bibliográficas. É importante ressaltar que a pesquisa teórica, embora não tenha esta meta como objetivo central, pode gerar aplicações práticas.
Em oposição, a pesquisa empírica preocupa-se em oferecer uma solução prática para determinado problema. Por isso, ela é também chamada de aplicada, já que os métodos científicos são postos em ação – ou seja, são aplicados – com a intenção de obter um resultado prático. São exemplos de pesquisas empíricas:o teste de uma nova vacina, o estudo do fluxo de processos numa fábrica para diminuir o tempo de manipulação da matéria-prima na linha de produção, a realização de entrevistas com os funcionários de uma empresa para a elaboração de uma nova matriz de promoção salarial, a diminuição da luminosidade em uma sala de aula para verificar o aumento do desempenho dos alunos etc. Vale uma ressalva: o fato de essas pesquisas terem uma natureza prática não significa que elas dispensem a teoria; ao contrário, todas elas devem ter nascido de reflexões teóricas a respeito de medicamentos, de logística, de relações organizacionais e de práticas de ensino e educação, por exemplo. No entanto, dizemos que elas são empíricas porque: a) elas coletam dados empíricos, quer dizer, dados que resultam da experiência; b) elas devem atender a objetivos práticos e pragmáticos. Como é possível perceber, grande parte das pesquisas empíricas é realizada em laboratório.
Figura 9
Observação: Não há pesquisa empírica que dispense a base teórica. As perguntas que são feitas, e que serão respondidas pelas pesquisas práticas, supõem um referencial teórico que permita a sua formulação.
Lembrete: Toda observação pressupõe uma teoria, a qual é levada em conta no momento da seleção dos dados. Há milhões e milhões de dados no mundo. Selecionamos aqueles que nos parecem relevantes em função de teorias prévias que temos a respeito do funcionamento do mundo e da natureza que nos cerca.
Há muita controvérsia a respeito da importância de cada uma dessas modalidades de pesquisa. Há quem defenda que, por serem escassas, as verbas para pesquisa devem priorizar estudos empíricos/práticos. Segundo essa corrente, as pesquisas teóricas, por não apresentarem resultados práticos imediatos, são de pouca serventia, especialmente no caso de economias em desenvolvimento que sofrem com problemas crônicos de miséria, fome e epidemias. No entanto, é importante lembrar que, muitas vezes, pesquisas teóricas acabaram por resultar em aplicações práticas extremamente úteis. Além disso, o desenvolvimento da ciência depende da reflexão teórica.
Saiba mais: A esse respeito, sugerimos o filme Contato. Baseado no livro homônimo de Carl Sagan, Contato narra a jornada da cientista Ellie Arroway, uma física que procura sinais de inteligência extraterrestre. Em dado momento da narrativa, o chefe de Ellie questiona o uso de verbas públicas para o estudo sobre “homenzinhos verdes” (forma irônica pela qual ele se refere à pesquisa sobre inteligências extraterrestres); para ele, recursos financeiros escassos devem ser utilizados em pesquisas que gerem resultados e benefícios para os contribuintes e pagadores de impostos.
CONTATO. Direção: Robert Zemeckis. Estados Unidos: Warner Brothers; South Side Amusement Company, 1997. 150 min.
Sobre o mesmo filme, sugerimos o artigo “Contato: a mulher cientista no cinema”. Nesse texto, os autores fazem uma reflexão sobre a participação da mulher no mundo científico, levantando questões sobre a representação social do feminino no cinema e sobre as dificuldades que o gênero encontra em termos de papel e função no ambiente da ciência.
JUDENSNAIDER, I.; FIGUEIRÔA, S. F. M.; SANTOS, F. S. Contato: a mulher cientista no cinema. Prometeica, n. 19, p. 80-92, 2019. Disponível em: https://periodicos.unifesp.br/index.php/prometeica/article/view/9529. Acesso em: 4 nov. 2019.
Na mesma direção, há conflito entre os cientistas sociais que pretendem que as ciências sociais e humanas tenham como base os mesmos procedimentos e métodos das ciências naturais e os cientistas que defendem para as ciências sociais uma metodologia própria, que prescinda do empirismo e da evidência empírica.
De forma resumida, os que advogam o menor valor científico das ciências sociais usam como principais argumentos os fatos de que
as ciências sociais não dispõem de teorias explicativas que lhes permitam abstrair do real para depois buscar nele, de modo metodologicamente controlado, a prova adequada; as ciências sociais não podem estabelecer leis universais porque os fenômenos sociais são historicamente condicionados e culturalmente determinados; as ciências sociais não podem produzir previsões fiáveis porque os seres humanos modificam o seu comportamento em função do conhecimento que sobre ele se adquire; os fenômenos sociais são de natureza subjetiva e como tal não se deixam captar pela objetividade do comportamento; as ciências sociais não são objetivas porque o cientista social não pode libertar- se, no ato de observação, dos valores que informam a sua prática em geral e, portanto, também a sua prática de cientista (SANTOS, 2008, p. 36).
Saiba mais: A questão da mensuração e da previsibilidade nas ciências sociais é abordada na trilogia de ficção científica Fundação (Fundação, Fundação e império, Segunda fundação), de Isaac Asimov. Os livros narram a transição de um mundo imperial para um mundo científico. Curiosamente, essa transição é prevista e acompanhada por cientistas especializados em “psico-história”, um saber fictício que faz uso da estatística para prever fenômenos sociais.
ASIMOV, I. Fundação. Tradução: Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2019.
Em contrapartida, os que defendem o caráter científico das ciências sociais argumentam que não há como pretender, para estas, a objetividade alcançada por experiências em laboratório ou medições instrumentais. Ao contrário: considerando-se que o objeto das ciências sociais é o homem e suas realizações, seus atos, seu trabalho e seu comportamento, há que ponderar que a subjetividade é elemento indissociável das variáveis que serão estudadas. Por isso mesmo, são necessários métodos específicos, diferentes daqueles utilizados no campo das ciências naturais. Ou no campo das ciências sociais, ou no campo das ciências naturais, conclui-se que o conhecimento científico depende, para a sua produção, de normas, procedimentos e métodos. Em suma, de metodologia.
2.1 Algumas relações entre ciência, filosofia e religião
Segundo Brooke e Numbers (2011), do ponto de vista histórico, a religião e a ciência estabeleceram relações de conflito, de tensão e, não raras vezes, de hibridização entre seus elementos.
Lembrete: A religião é o conjunto de crenças e valores que dão suporte à fé em determinado poder divino na criação e na gestão do mundo. Ela é, portanto, o objeto de estudo da teologia, que se ocupa da investigação do discurso construído a respeito de um ser superior, em geral onisciente e onipresente.
Henri Atlan, médico e biólogo associado à Faculdade de Ciências de Paris e à Universidade Hebraica de Jerusalém, em entrevista à jornalista científica francesa Guitta Pessis-Pasternak, alerta: não é possível misturar os conteúdos de um e de outro campo. Para Atlan, constituiria um “erro ver alusões à mecânica quântica em uma tradição hindu, do mesmo modo que é um erro ver alusões aos antibióticos no Talmud, ou procurar uma consciência ao nível de uma célula viva. Isso implica confusão de gêneros, de níveis e de vocabulários” (PESSIS-PASTERNAK, 1993, p. 53).
Para Atlan (1994), não faz sentido tentar construir uma unidade fundamental do universo por meio da conjunção entre os elementos da reflexão religiosa e os do fazer científico. Embora ambos sejam fruto do desejo de racionalização, eles têm conteúdo totalmente distinto. Tanto um quanto o outro fazem uso da razão como instrumento, e é possível que os dois modos de reflexão se alimentem mutuamente (em especial no contexto de descoberta de ideias e teorias). No entanto, apesar das semelhanças e do fato de serem ambos escolhas do mesmo sujeito cognoscente (ou seja, do sujeito que faz uso da cognição para compreender o mundo), ainda assim eles pertencem a terrenos distintos e incomensuráveis, sendo a intercrítica a melhor forma de diálogo entre eles (PESSIS-PASTERNAK, 1993). Segundo Atlan (1994), dialogar implica a delimitação dos domínios de legitimidade de cada campo, para que as diferentes regras dos jogos (o da investigação científica e o da iluminação religiosa)não se confundam.
Atlan (1994) observa ainda que o distanciamento entre a reflexão religiosa e o fazer científico pode ser explicado no contexto da história da ciência e das ideias: construiu-se um ideal científico com base na objetividade, deslocando-se a subjetividade para o terreno das ilusões. Mais: a suposta “irracionalidade” da experiência mística e religiosa teria sido percebida como contrassenso (ou seja, má utilização da razão), embora ela se constituísse muito mais como uma tentativa de antirrazão – portanto, ainda um movimento que fazia uso da razão.
De acordo com Brooke e Numbers (2011), a religião e a ciência não estabeleceram, necessariamente, uma relação excludente do ponto de vista histórico. Mesmo as ideias de Isaac Newton, símbolo da Revolução Científica, ainda traziam as marcas da intersecção da ciência com a religião. Para ele e para pensadores contemporâneos a ele, o campo da ciência incluía a discussão sobre Deus e sua relação com a natureza, bem como sobre os atributos divinos materializados na natureza. Outros exemplos podem vir de comunidades na Europa e na América do Norte, nas quais são perceptíveis as ligações entre tratamentos médicos e rituais religiosos, e das cosmologias africanas pós-coloniais, nas quais é possível identificar uma profunda conexão entre conhecimento médico e cosmologia ancestral.
Figura 10 – As ideias de Isaac Newton, símbolo da Revolução Científica, ainda trouxeram as marcas da intersecção da ciência com a religião. Para ele e para pensadores contemporâneos a ele, o campo da ciência incluía a discussão sobre Deus e sua relação com a natureza, bem como sobre os atributos divinos materializados na natureza.
A China oferece outros exemplos de diálogo entre os contextos científicos e religiosos. No período pré-colonial, sinos de bronze eram utilizados como indicadores de integridade moral e força política, ao mesmo tempo que funcionavam como símbolos religiosos. Do século III a.C. ao século XVI, é possível perceber traços da influência do islamismo e do cristianismo na cultura local, traços esses visíveis nas práticas médicas, que estabeleciam relações com ciclos naturais, e nas experiências alquímicas, que buscavam materializar a conexão entre macro e microcosmo.
Como exemplo de diálogo conflituoso, Brooke e Numbers (2011) fazem referência aos astrônomos chineses, que demonstraram estranheza em relação à indiferença ocidental a respeito de saberes que estabeleciam conexão entre os eventos da natureza e o destino do homem. Como exemplos de hibridização, Brooke e Numbers (2011) mencionam: a adoção dos numerais hindus pelos matemáticos muçulmanos; a transmissão de saberes médicos e astronômicos entre a Índia e o islã; a disseminação dos ideais científicos na Índia pós-independência, tanto para fins de desenvolvimento quanto para efeito de erradicação da pobreza; a preservação da cultura grega pelos árabes; o diálogo entre islamismo, judaísmo e cristianismo dos séculos IX a XI; e as contribuições da cultura muçulmana nas áreas de cartografia, geografia e astronomia.
Como exemplo de relações ambíguas entre ciência e religião (ou seja, situações nas quais esses dois contextos se opuseram, embora em outras se colocassem lado a lado), Brooke e Numbers (2011) assinalam os efeitos da teoria de Darwin (1809-1882) nos ambientes científicos e religiosos. Afinal, para alguns pensadores cristãos, o darwinismo não se opunha ao cristianismo de maneira radical, já que considerava a possibilidade de uma ancestralidade comum e de um processo de evolução como superação do sofrimento. Nesse mesmo sentido, as ideias de Darwin foram absorvidas na Índia em razão da possível analogia entre a teoria da seleção natural e o crescimento e desenvolvimento espiritual como movimento de evolução. A mesma receptividade positiva surgiu na comunidade religiosa judaica, uma vez que Darwin nada mais fazia senão reconhecer a associação entre o texto sagrado e sua teoria de evolução, que incluía a ideia da criação do homem a partir da matéria inanimada.
Também podemos identificar inúmeros pontos de contato entre a teologia e a filosofia. Na Idade Média, e até o século XIX, a teologia tinha conexões profundas com a filosofia natural, caracterizando-se como um conhecimento tão legítimo quanto aquele relativo aos fenômenos da natureza. Vejamos, por exemplo, os períodos da Patrística (do século II ao século VIII) e da Escolástica (do século IX ao século XVI), momentos nos quais a conexão entre religião, filosofia e teologia se aprofundou.
Reflitamos primeiro sobre o caso da Patrística. Naquele tempo, o cristianismo ocidental se dedicava a deter as práticas pagãs e a converter os infiéis. Ainda, tinha que se proteger dos ataques que, dentro da própria Igreja, se dirigiam a Roma. Como uma das formas de se preservar, o catolicismo buscou fundamentar suas crenças no arsenal filosófico existente. Era necessário que, além das verdades reveladas aos cristãos pelos pregadores da mensagem de Jesus, os preceitos teológicos pudessem ser confirmados pela filosofia. Assim, para dotar o cristianismo de um arcabouço filosófico, a Patrística foi buscar inspiração na obra dos filósofos gregos e de seus sucessores. Esse material acabou permitindo a construção de uma verdadeira filosofia cristã, capaz de provar os principais fundamentos da nova religião que se estruturava. Entre os fundamentos filosóficos cristãos elaborados pela Patrística, destacam-se:
· a existência de apenas um Deus;
· a criação do mundo a partir do nada, por vontade de Deus;
· a existência do homem como centro do mundo;
· a crença em Deus como a fonte e a origem da moral, o que impunha obediência aos seus mandamentos;
· a crença na salvação por meio de Deus;
· a fé na história como caminho capaz de levar os homens à salvação e à realização no reino de Deus.
Os filósofos cristãos também buscaram explicar a existência do mal: se tudo havia sido criado por Deus, puro, perfeito e bondoso, como era possível que o mal existisse? A elaboração de uma resposta a essa questão ficaria a cargo de Santo Agostinho, responsável por explicar “a ideia de ‘homem interior’, isto é, da consciência moral e do livre-arbítrio, pelo qual o homem se torna responsável pela existência do mal no mundo” (CHAUI, 2000, p. 44).
No caso da Escolástica, também temos o contato entre a filosofia e a religião, porém por caminhos distintos daqueles percorridos pela Patrística. Enquanto a Patrística se servira da filosofia para dotar a religião de fundamentos éticos e morais, a Escolástica procurava comparar os dois terrenos, evidenciando que ambos concordavam na interpretação do mundo e da natureza. Assim, a Escolástica, escola de pensamento filosófico desse período, bebeu da fonte das obras clássicas e buscou conciliar fé e razão.
Nos monastérios, monges trataram de acolher e traduzir os textos gregos, romanos, árabes e judaicos, adaptando-os à teologia cristã. O Corpus aristotelicus (o conjunto de obras de Aristóteles), por exemplo, ao ser traduzido para o latim, foi alvo de correções e ajustes (ALFONSO-GOLDFARB, 1994).
Observação: É importante ressaltar que todas as obras clássicas teriam se perdido caso não tivessem sido preservadas pelas instituições católicas. As primeiras universidades, inclusive, seriam criadas em torno desse arsenal e, nesses locais, os alunos estudariam geometria euclidiana, lógica, metafísica, ética, medicina, física e direito.
Figura 11 – Enquanto houver seres humanos procurando dar sentido ao mundo e às coisas, teremos áreas de convergência entre as diversas formas de apreender a realidade e atribuir significado ao que vemos e vivemos.
Finalmente, podemos refletir sobre as relações entre a teologia e a ciência da religião, relações essas que estão longe de serem harmônicas – afinal, as duas competem em espaços muito semelhantes, e ambas se recusam a abrir mão da sua epistemologia e da sua área de atuação (STIGAR; TORRES; RUTHES, 2014).
A ciência da religião, como o próprio nome diz, é uma área do saber que, com base no

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