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BERNARDO, João Aviso aos distraídos

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Aviso aos distraídos 
João Bernardo 
«Depois dos primeiros anos da década de 1980, depois do Camboja e de outras 
lamentáveis catástrofes do mesmo género, eu jugava que estaríamos definitivamente livres 
desses fantasmas estatistas e terceiro-mundistas», escrevia-me há dias Loren Goldner, um 
velho comunista de esquerda norte-americano que desde há muito tempo anda espalhado pelo 
mundo. «E eis que eles surgem de novo, incluindo agora o islamismo. Em Londres, em Julho 
do ano passado, o Socialist Workers Party organizou uma manifestação contra a guerra no 
Líbano onde quinze mil pessoas gritavam “Somos todos Hezbollah!”. Pergunto a mim mesmo 
se desta vez, com a idade que temos, viveremos o suficiente para podermos aplaudir o fim 
desse regresso dos velhos fantasmas». 
É que em política, se eu aprendi alguma coisa com uma longa actividade de militante, 
nenhuma vitória é segura ou definitiva. Precisamente quando nos julgamos desembaraçados 
para sempre de um inimigo, ele aparece à nossa frente, eventualmente sob formas novas, e às 
vezes nem tão novas assim. Recebi aquela mensagem do Loren Goldner no contexto de uma 
troca de correspondência acerca de Hugo Chávez e da Revolução Bolivariana, onde eu 
defendera que o actual regime venezuelano, pretendendo assimilar e recuperar em seu 
benefício os movimentos sociais de base e usá-los para reorganizar o aparelho de poder e para 
desenvolver novas formas de capitalismo de Estado, prossegue um caminho inaugurado em 
Portugal, faz mais de trinta anos, por Otelo Saraiva de Carvalho. 
«Eu encaro a situação actual da maneira seguinte», respondeu-me Loren Goldner, 
situando a questão do chavismo num vasto contexto histórico e estratégico. «O império do 
dólar, fundado em 1944-1945, está a desmoronar-se. Na ausência de uma revolução 
proletária mundial (como aquela que em 1917-1921 fracassou por uma multiplicidade de 
razões), quem se irá aproveitar desse desmoronamento, tal como os Estados Unidos se 
aproveitaram do desmoronamento do império britânico em 1914-1945? O “centro” de um 
eventual sucessor do império norte-americano é, evidentemente, uma eventual “união 
 
 Encontram-se numerosos textos de Loren Goldner no site Break Their Haughty Power em 
http://home.earthlink.net/~lrgoldner 
económica” dos países da Ásia oriental: China, Japão, Coreia do Sul e Taiwan. Mas esta 
união económica não se há-de constituir a curto prazo, sem o equivalente a uma guerra 
mundial (ou qualquer cataclismo semelhante) como aquela que preparou as condições de 
existência da União Europeia. Portanto, o mundo está a atravessar uma transição turbulenta 
multicentrada, em que cada um dos poderes procura vantagens imediatas. A economia 
chinesa caracteriza-se por um boom à primeira vista inesgotável, enquanto o “consumidor 
norte-americano” continua a endividar-se para consumir e os outros países (os países 
asiáticos e os países exportadores de petróleo) continuam a financiar este endividamento e 
este consumo. O boom chinês desencadeia uma acentuada expansão económica na América 
Latina (exportação de matérias-primas para a China) e na África (exportação de petróleo e 
de matérias-primas). A pouco e pouco, todos procuram desembaraçar-se do dólar, mas 
ninguém quer desencadear a avalanche que irá desvalorizar todos esses “dólares nómadas”. 
Entretanto, Chávez vai estabelecendo elos de amizade e de relacionamento económico não só 
com vários países latino-americanos mas igualmente com a Rússia e a Bielo-Rússia, com o 
Irão e com a China. Graças à corrente “alteromundista” (Porto Alegre) está a desenvolver-
se uma aliança semelhante à ideologia “tricontinental” da década de 1960, tendo como base 
ideológica o antiamericanismo e o “anti-imperialismo”. E assim, a pouco e pouco, o Hamas, 
o Hezbollah, o Irão e até os Taliban vêem-se postos a par das forças “progressistas” e “anti-
imperialistas” pelo facto de “se baterem contra os Estados Unidos e contra Israel”. Chávez é 
actualmente o principal eixo ideológico desta constelação, à qual serve de camuflagem “de 
esquerda”, tal como o antifascismo e “a democracia contra o fascismo” serviram desde 1935 
(Frente Popular) até 1945. Portanto, aqueles que, conscientemente ou inconscientemente, 
ainda se reclamam da teoria do imperialismo formulada por Lenin (antes de mais os 
trotskistas, mas estão longe de ser os únicos) serão obrigados a aplaudir uma eventual 
derrota da NATO pelos Taliban como uma “vitória anti-imperialista” – o que de modo algum 
implica qualquer apoio da minha parte à NATO! De uma ou outra forma (é impossível prever 
a natureza exacta da gestação da nova ordem) essa nova constelação será a “ala esquerda” 
ideológica de uma nova fase de acumulação do capital, passando além do império norte-
americano, como o foram os “democratas anti-fascistas” até 1945. E esta nova fase será 
obrigatoriamente edificada, tal como a fase anterior, sobre montanhas de cadáveres 
proletários. Em suma, os elos que se tecem a partir de Chávez e que, passando pela China, 
englobam o Hamas, o Hezbollah e até os Taliban são completamente reaccionários e 
devemos combatê-los com todos os nossos meios». 
A isto eu respondi, como faço desde há bastantes anos, insistindo no carácter 
transnacional da actual economia. Em primeiro lugar, o enorme desenvolvimento conseguido 
pelas companhias transnacionais tornou necessária uma nova geopolítica, que no caso asiático 
resulta da combinação entre o transnacionalismo supra-estatal e o regionalismo inter-estatal. 
Aliás, neste quadro deve ser incluída também a Índia. Em segundo lugar, os sistemas 
bancários centrais têm vindo a perder o controlo sobre a moeda dos respectivos países desde o 
início da década de 1970, quando se pôs termo à função do dólar tal como havia sido definida 
nos acordos de Bretton Woods, devido ao facto de a quantidade de dólares depositada nos 
bancos norte-americanos não conseguir compensar a quantidade de petrodólares depositada 
fora dos Estados Unidos. Por outro lado, em 1970 o montante de dólares mantido no 
estrangeiro pelas instituições oficiais estava já quase a ser ultrapassado pelo montante detido 
por particulares, e o desequilíbrio não deixou de se agravar em detrimento das instituições 
oficiais. Aliás, a própria distinção entre depósitos nacionais e estrangeiros perde muito do seu 
significado ao sabermos que em 1980 quase metade dos depósitos internacionais dos grandes 
bancos estava já redepositada noutros bancos internacionais. E nos dias que correm, a difusão 
das formas electrónicas de dinheiro é outro factor a contribuir decisivamente para reduzir a 
capacidade de controlo monetário das instituições oficiais. O «império do dólar», pelo menos 
no que diz respeito ao dólar, é uma ficção desde há muito. 
Todavia, quanto ao diagnóstico político do chavismo eu estou inteiramente de acordo 
com Loren Goldner. Já num artigo publicado no nº 106 desta revista pretendi alertar aqueles 
que dão agora nova vida às ilusórias dicotomias ideológicas da época do anti-fascismo e da 
época da guerra fria. Procurei mostrar nesse artigo que nos devemos situar num terceiro 
campo, constituído pela luta directa dos trabalhadores, por todas aquelas iniciativas e todos 
aqueles movimentos que contribuam para ultrapassar a fragmentação em que os trabalhadores 
actualmente se encontram e, através da progressiva unificação das lutas, organizem os 
trabalhadores novamente como uma classe não só no plano económico, em que nunca deixam 
de sê-lo, mas também no plano político. Encontra-se difundida na extrema-esquerda uma tão 
grande veneração pelo poder imediato que, à falta de um poder próprio, muitos preferem 
alojar-se como parasitas no poder alheio, em vez de procederem como a velha toupeira cuja 
paciente e discreta, mas eficaz, obstinação Marx apontou como exemplo. 
Tudo isto disse eu já, mas digo-o agora outra vez porque proliferamentre nós os 
distraídos, condenados a carpir, nas palavras de Loren Goldner, as «montanhas de cadáveres 
proletários».

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