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Utopia e Direito _ Alysson Mascaro

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ALYSSON LEANDRO MASCARO
Doutor e Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP
UTOPIA E DIREITO
ERNST BLOCH E A ONTOLOGIA JURíDICA DA UTOPIA
Editora Quartier Latin do Brasil
São Paulo, verão de2008
quartierlatin@quartierlatin.art.br
www.editoraquartierlatin.com.br
EDITORAQUARXIER LATIN DO BRASIL
RM San» Amaro, 316 - Gela Vista - São Paulo
Coordenaçãoeditorial: Vinícius Vieira
Capa: Miro Issamu Sawada
Diagramação: Paula Passarelli
Revisão gramatical: Silvana Moreli Vicente
MASCARO, Alysson Leandro
Utopia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia
Jurídica da Utopia - São Paulo : Quartier Latin,
2008.
ISBN: 85-7674-298-5
1. Teoria geral do Direito. 2. Utopia e Direito
I.Título
índices para catálogo sistemático:
1. Brasil: Utopia e Direito
2. Brasil: Direito
Contato: editora@quartíerlatin.art.br
www.editoraquartierlatin.com.br
SUMáRIO
Nota 9
Introdução 11
Utopia concreta, justiça e dignidade 12
Sobre a obra 16
Capítulo 1 — Modernidade, tempo e revolução 17
A geometria do tempo e da história 18
Das esperanças da modernidade 24
A transformação é moral 27
Da secularização à revolução 30
Capítulo 2 - Marx, transformação e utopia 35
Uma divisa fundamental: a transformação 36
Que marxismo para qual utopia? 38
A teoria da revolução de Marx 42
A dialética do progresso 44
A utopia em Marx 48
Engels e o projeto utópico do marxismo 51
Capítulo 3 - Psicanálise e utopia 55
Freud: desejo e repressão 56
Para além do freudismo 61
Wilhelm Reich 62
Erich Fromm 67
Capítulo 4 - A utopia em Marcuse 71
Teoria crítica: Adorno e Horkheimer 72
Da Escola de Frankfurt a Marcuse 78
Psicanálise e libertação 79
A Utopia em Marcuse 83
Pu
Capítulo 5 — Bloch e Lukács: o marxismo heterodoxo 93
A intelectualidade que se torna marxista 94
Messianismo, escatologia e romantismo 96
Uma divergência nas concordâncias: o expressionismo 99
O caminho ao marxismo nas primeiras obras: sobre a totalidade 103
Capítulo 6 -0 Ser-Ainda-Não 111
A utopia concreta 113
As características da utopia concreta: o sonho diurno 115
A ontologia do ser-ainda-não: a natureza 119
A ontologia do ser-ainda-não: a possibilidade 125
A ontologia do ser-ainda-não: S ainda não é P 128
Capítulo 7 - Utopia jurídica: história e dignidade humana 131
Direito Natural e Dignidade Humana 133
A utopia que é jurídica 134
A utopia jurídica construída na história: antigos e medievais 137
A utopia jurídica construída na história: os modernos 143
A utopia jurídica construída na história: os contemporâneos 148
Capítulo 8 — A ontologia jurídica da utopia 155
A utopia das três cores revolucionárias 155
O direito em Marx 159
Crítica da teoria geral do direito: direito subjetivo e objetivo 164
Crítica da teoria geral do direito: direito e moral 168
Crítica da teoria geral do direito: direito penal 170
Crítica da teoria geral do direito: direito e Estado 171
Capítulo 9 — Energias políticas da utopia 177
A não-contemporaneidade 178
A escatologia da libertação 186
Conclusão 193
Bloch entre os marxistas 193
Bloch entre os juristas 195
Bloch entre os de hoje 196
Bibliografia 199
INTRODUçãO
Ao tempo em que trevas se anunciavam na Europa, as armas dos
liberais e dos socialistas foram ambas soterradas em favor de mistifica¬
dos argumentos de raça e da força de exércitos imperialistas. Tempos
de obscuridade e de guerra, como, de outro modo, parecem ser os
atuais novamente. Naquela altura, boa parte da política, da filosofia e
das religiões se lançou ou ao silêncio ou ao pacto de legitimação dos
poderes existentes. Ao pensamento crítico, restou a retaguarda.
No direito, o resultado de tal política de trevas foi a destruição de
qualquer respeito institucional aos direitos humanos, à dignidade existen¬
cial, em troca dos argumentos da força do Estado ou de distinções como a
de amigo-inimigo. Em oposição a esse quadro, as velhas forças humanistas
- a maior parte delas vinculada às mesmas religiões que, em sua outra
faceta, silenciavam quanto ao Reich - proclamaram, sem maior crítica, a
volta do direito natural, eterno, metafísico e quase que revelado.
Nesse cenário de pesadas desesperanças e de frágeis oposições
apoiadas em direitos divinos, levanta-se em contraste uma filosofia dos
sonhos diurnos, da clareza, da esperança racional e concreta num novo
amanhã de Ernst Bloch. O direito natural se transforma, na sua insó¬
lita reflexão jusfilosófica, ao mesmo tempo humanista e marxista, em
uma espécie de bandeira crítica de uma aspiração à dignidade huma¬
na. Filósofo da totalidade, apoiado numa leitura hegeliana de Marx e
ancorado nas longas experiências comuns de reflexão intelectual com
Lukács, Bloch apostará que a dignidade humana só se concretizará
quando for total e plena: o homem totalmente livre das amarras mer¬
cantis, da exploração do trabalho, o homem socialista, pois, será o ho¬
mem digno. Os marcos de sua utopia jurídica, assim, ampliar-se-ão e
chegarão a limites muito mais vastos que as tradicionais expectativas
dos juristas sobre um mundo, de leis, mais justo.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
A estrutura filosófica da utopia concreta de Bloch revela-se um
sistema bastante insólito, porque se abre como urna espiral, crescente,
que amarra diversas perspectivas, experiencias, lutas históricas e dese¬
jos pequenos e muito grandes em torno de uma ontologia do ser-ain-
da-não. Buscando fundar uma pioneira versão marxista de humanismo
calcada na natureza e na práxis como aberturas ao futuro, Bloch aponta
a filosofia e a existência como a possibilidade.
O resultado do pensamento blochiano é uma petição de luz em
trevas. De maneira insólita a um marxista, encontra energias liberadoras
e revolucionárias até mesmo na religião, caso esta seja tomada a partir
de um prisma bastante progressista. Paradoxalmente, nos tempos atu¬
ais, em que o sentido reacionário da religião volta a ser, hipocritamen¬
te, um fundamento aparente de legitimação de guerras e de reputa¬
das alianças dos governantes com Deus, o pensamento de Bloch é um
alento crítico, postulando urna nova moral racional, dotada de grande
sensibilidade para concretizar na terra uma comunidade fraternal.
Para o direito, que chegando ao auge da mecánica capitalista
sacralizou a condição dos juristas como técnicos sem objetivos últimos,
o reclame de Bloch a uma radicalidade da sociedade justa e da digni¬
dade humana, que se alce para além do Estado e da dominação
institucional, é um contraste que pode forçar a existência jurídica a
dar-se um sentido político-histórico transformador. Para Bloch, é che-
gado o tempo de concretizar o justo.
UTOPIA CONCRETA, JUSTIçA E DIGNIDADE
Os sonhos da utopia são uma velha tradição. Para não remontar
ao passado grego, nas idéias de Platão, ou então nos sonhos medievais
de Joaquim de Fiori do Terceiro Reino onde Cristo fosse Senhor, por
exemplo, basta dizer que o início da modernidade viu florescer o so-
UTOPIA E DIREITO
nho de sociedades e cidades imaginadas exemplarmente, sendo delas
mais famosa a Utopia de Thomas Morus, cujo termo, não-lugar, desde
então veio a identificar uma série de projeções de uma existência di¬
versa da presente.
A história dessas idealizações é bastante conhecida e, no geral,
tomada como literatura ficcional do amanhã melhor. Uma segunda
grande etapa de florescimento de utopias se deu com o movimento
socialista do século XIX, buscando criar fábricas, cidades e hábitos
sociais diversos, carregados de uma inspiração de solidariedade e
fraternidade. Saint-Simon, Fourier, Owen e outros dedicaram-se à
transformação de grupos sociais, sendo denominados posteriormente,
por Marx e Engels, como socialistas utópicos. Neste momento, a uto¬
pia passava a adquirir a carga pejorativa de ilusão, de quimera. O não-
lugar não seria apenas o lugar ao qual não se havia chegado: tratava-se
de um lugar para todo sempre inexistente.
' O descrédito em relação à utopia, nos séculos XIX e XX, torna-se
então bastante acentuado. As perversões totalitárias, os grandes plane¬
jamentos económicos, políticos e sociais, as máquinas de guerra que
buscavam novashumanidades, tudo isso foi responsável por conside¬
rar a utopia até mesmo a pior das projeções humanas, como o atesta,
por exemplo, um Aldous Huxley. A filosofia, de modo geral, abando¬
nava a utopia a uma espécie de metafísica das quimeras. -
É neste quadro que se levantou, em sentido contrário, o pensa¬
mento de Ernst Bloch. Judeu alemão, nascido pobre, exilado ao tem¬
po de Hitler, perseguido na Alemanha Oriental pelos staiinistas, viveu
92 anos de atividade intelectual e política com olhos voltados ao futu¬
ro. Quando faleceu, no final da década de 1970, havia conseguido
restituir para até então combalida idéia de utopia uma dignidade filo¬
sófica ímpar: de braços dados com o humanismo, o messianismo, a
escatologia, de um lado, Bloch abraçava-se ao marxismo, de outro, na
AI.YSSON LEANDRO MASCARO
tarefa de empreender o lançamento de uma nova utopia, aquela que
denominou de utopia concreta.
O desenvolvimento de sua nova postulação utópica vai distante
dos idealismos filosóficos que acompanhavam até então o tema. A uto¬
pia concreta é uma práxis voltada ao amanhã. Descobre as
potencialidades transformadoras e revolucionárias e insiste no fato de
que o novo amanhã só será diverso do presente por conta da carência
e da fome do hoje. Como o presente é incompleto, urge um novo
amanhã. Para isso, Bloch há de se valer de uma série de ferramentas
filosóficas distintas das tradicionais: os sonhos diurnos, em contraposição
aos sonhos noturnos de Freud; a consciência antecipadora, que nada
lembra as velhas metafísicas dedutivas da sociedade ideal; a não-
contemporaneidade, que dá conta de uma pluralidade temporal que
permite a diversidade das ações e motivações revolucionárias.
Como marxista desde sua juventude, Bloch estava convencido de
que a utopia dos filósofos e dos velhos socialistas estava fadada a ser
apenas um discurso de legitimação do hoje pelo amanhã. Por isso le¬
vantou não um sonho idealista, e sim a utopia concreta. Como, de
outro lado, a ciência e a filosofia estavam reféns da realidade tal qual
ela se apresentava no hoje, a utopia concreta é um passo além do já
dado. Para Bloch, o hoje é sempre o potencial do amanhã.
Seu pensamento é, assim, na história da filosofia, aquele que mais
longe chegou no sentido de afirmar que a filosofia é a possibilidade.
Como os tempos presentes reiteram a impossibilidade, pode-se dizer
que até hoje, em todo o mundo e inclusive no Brasil, o pensamento de
Bloch é um novo e está ainda para ser desvendado.1
No Brasil, as noticias filosóficas sobre Ernst Bloch vêm da década de 1960-ao mesmo tempoda introdução dos pensamentos de Lukács e da Escola de Frankfurt - por meio dos pioneirosestudos sistemáticos do francês Pierre Furter. Nas décadas seguintes, destacam-se os estudosde Lu ía Bicca, do Rio de Janeiro, tratando da ontologia e da política de Bloch, e, no sul, de
1
UTOPIA E DIREITO
A absorção de Bloch pelo pensamento jurídico tem se revelado
bastante esparsa. Enquanto na filosofia geral Bloch é respeitado tanto
por um viés radical quanto por um viés reformista da esquerda - o
humanismo o reclama, e os radicais até se fazem passar por seus discípu¬
los — , a filosofia do direito somente sabe de Bloch por meio de alguns
poucos e rápidos esquemas a respeito da esperança e da utopia concreta.
Tal leitura por alto é responsável pelo grande desconhecimento
acerca do pensamento jurídico blochiano. Os motes principais da sua
filosofia do direito, direito natural e dignidade humana, quando lidos
rapidamente, permitem até identificá-los com algum passadismo
jusfilosófico. Trata-se justamente do contrário. Bloch rechaça o méto¬
do jusnaturalista, e sua construção jurídica é, na verdade, uma dialética
da dignidade. Daí que poucos tenham se atentado, até o presente,
para sua incursão profunda nos limites do discurso jurídico tradicio¬
nal e para sua postulação radical de uma sociedade sem domínio.
Bloch está na imbricação explosiva da filosofia do direito e da filo¬
sofia política. Sua filosofia interfere no centro nevrálgico da administra¬
ção do já dado e existente. A concepção política blochiana, por ser
transformadora e revolucionária, enfrenta a reação do conservadorismo,
que passará a enxergar, também na sua filosofia do direito, uma mera
escatologia, cujo anúncio não se fará nunca cumprir.
Suzana Albornoz, dedicando-se à ética e à pedagogia blochianas. C. E. Jordão Machado, na
Unesp, voltou-se à estética em Bloch. Michael Lõwy, sempre presente no debate filosófico
brasileiro, dedica reflexões a Bloch, dentre outras á reas, também no campo da filosofia da
religião. Deve-se ressaltar, ainda, que talvez o mais Importante estudioso de Bloch em todo o
mundo na atualidade, o franco-alemão Arno Munster, esteve presente em algumas ocasiões
no Brasil, lecionando em universidades brasileiras e publicando, em português, duas relevan¬
tes obras sobre o pensamento blochiano. De todo o conjunto dos livros de Ernst Bloch,
somente no começo da década de 1970 se deu a publicação da primeira tradução, em l íngua
portuguesa, de sua obra Thomas Miinzer, Teólogo da Revolução, pela Editora Tempo Brasilei ¬
ro, e, após um interregno de muitos anos, em 2005 começou a publicação da importante obra
O Princípio Esperança, em 3 volumes, pela Editora Contraponto. Direito Natural e Dignidade
Humana, a principal obra de filosofia do direito de Ernst Bloch, será traduzida e publicada
pela editora Quartier Latin do Brasil.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
SOBRE A OBRA
O ambiente intelectual de Ernst Bloch é claramente o do marxis¬
mo, mas sua filosofía - que é bastante aberta e com uma envergadura
de análise ímpar - dialoga constantemente com uma tradição filosófi¬
ca, que vai desde o aristotelismo ao iluminismo, e com toda urna vasta
corrente do pensamento contemporâneo, que vai da Escola de Frank¬
furt até a psicanálise. A presente obra, por conta disso, pode ser dividi¬
da em duas grandes unidades. Uma primeira parte, compreendendo
os capítulos um a quatro, pode ser tomada como uma espécie de cami¬
nho ao pensamento blochiano, tratando da reflexão sobre o tema da
utopia por autores que serão referenciais a Bloch. Posteriormente, dos
capítulos cinco a nove, trata-se de analisar, na filosofia do próprio Bloch,
seus pressupostos gerais de pensamento e sua filosofia jurídica, des¬
vendando então sua específica ontologia jurídica da utopia.
Uma filosofia jurídica que trate da utopia se revela uma reflexão
incómoda, mas necessária, para o direito atual. Embora os tempos pre¬
sentes se anunciem categoricamente como impossibilidade, há multi¬
dões de injustiçados, explorados, angustiados, indignados e mesmo li¬
vres esperançosos cujas energias acumuladas reclamam a possibilidade.
A dialética do amanhã novo saído das lutas de hoje ainda é um projeto
de muitos. Por estes, pensamentos como os de Bloch fazem sentido.
CAPíTULO 1
MODERNIDADE, TEMPO E REVOLUçãO
Quando,na Segunda Epístola de Pedro,anuncia o apóstolo “Mas
há uma coisa,caríssimos,de que não vos deveis esquecer: um dia dian¬
te do Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia”,2 já tinha
curso um trajeto de luta com o tempo e a história que seria causa dos
mais candentes desesperos e de grandes, ilusorios e concretos sonhos e
utopias.A luta pelo tempo entrava em causa para a humanidade. Que
um dia possa concretizar o que demoraria mil anos, ou que haja um
milenio de novos dias.
De fato, a historia e o tempo revelam-se como urna especie de
luta aparentemente escondida dos impulsos humanos, pois determi¬
nam vontades, esperanças e sentidos que escapam, muitas vezes, dos
acontecimentos imediatos e das contradições objetivas e plausíveis.Por
exemplo, a escatologia judaico-cristã, ao anunciar a salvação, faz por
dar um sentido à história que um observador externo é incapaz de
dimensionar: o hoje é pelo amanhã.
Mas, na multiplicidade de sentidos do tempo, não se pode dizer
simplesmente que haja um tempo de salvação e um tempo dito “natu¬
ral”, contraposto a este. Há uma pluralidade de perspectivas que re¬
clama a história parasentidos muito distintos. O Iluminismo, que
rechaça veementemente a escatologia cristã, põe em seu lugar a salva¬
ção do homem por si mesmo. O marxismo,herdeiro e crítico contun-
2 II Pedro (3, 8).
ALYSSON LEANDRO MASCARO
dente da modernidade, ainda assim anuncia novos tempos, os da hu¬
manidade efetivamente socialista. A modernidade, de tal sorte, se apre¬
sentará, entre tantas facetas, também como uma luta pelo tempo, pela
sua interpretação e suas esperanças.
A GEOMETRIA DO TEMPO E DA HISTÓRIA
O discurso da moral ifuminista pressupõe um sentido claro do
tempo, das trevas para a luz. Ironicamente, também o arcabouço cris¬
tão pressupõe um sentido do tempo, que também sai da treva para a
luz, ainda que a luz cristã possa ser a treva iluminista.
Pode-se perceber um sentido relativamente próximo do tempo
na tradição judaico-cristã e na tradição iluminista. A salvação judaica,
a redenção pelo Messias, é a linha que estabelece o eixo de compreen¬
são da história. Para os cristãos, simbolicamente, o “ antes de Cristo” e o
“ depois de Cristo” , que dividem a contagem do tempo ocidental, são o
exemplo de uma forma de visão filosófico-teológica da temporalidade
muito específica: o tempo como uma reta. Trata-se de uma linha que
tem passado e terá futuro. E, mais que isso, o futuro orienta o presente
e explica o passado.
A linearidade do tempo cristão e do tempo iluminista opõe-se à
circularidade do tempo antigo, o tempo do retorno ou o tempo pa¬
gão, no contraste dos cristãos. A noção grega do tempo circular, esfé¬
rico, do “começo e fim como um ponto comum na periferia do círcu¬
lo” , conforme o verso de Heráclito, é a espinha dorsal a ser quebrada
pelo pensamento cristão.3 Se o tempo antigo era baseado na constatação
V.G.íVA , ,
3 " Neste aspecto, o cristianismo incontestavelmente prova ser a religião do 'homem caído': e
isso até o ponto em que o homem moderno se vê irremediavelmente identificado com a
história e o progresso, e para o qual a história e o progresso representam uma queda, ambos
implicando o abandono final do para íso dos arquétipos e da repetição". ELIAOE, Mircea. Mito
do Eterno Retorno. São Paulo, Mercuryo, 1992, p. 137.
UTOPIA E DIREITO
da geração e da corrupção da natureza, portanto numa perspectiva
calcada à physis mesma das coisas, o tempo cristão é um tempo basea¬
do numa construção interna, subjetiva, da fé no futuro como salva¬
ção. O tempo cristão, assim, é o tempo trabalhado, internalizado, em
face do tempo antigo, objetivado, que se baseia no nascimento e no
perecimento constantes. Santo Agostinho, na Cidade de Deus e em
um capítulo todo das suas Confissões, outra coisa não faz do que cha¬
mar o cristão ao tempo novo.
O seu [de Agostinho] argumento final contra o conceito clássi¬
co de tempo é, por conseguinte, de ordem moral: a doutrina
pagã encontra-se perdida, pois a esperança e a fé estão basica¬
mente relacionadas com o futuro e não pode existir um futuro
real se tempos passados e futuros forem fases iguais num retor¬
no cíclico sem princípio nem fim. Com base numa revolução
duradoura de ciclos definidos, só poderíamos esperar uma rota¬
ção cega de infelicidade e felicidade, isto é, de ilusória beatitude
e verdadeira miséria, mas nenhuma bem-aventurança eterna —
apenas uma repetição infinita do mesmo, sem nada de novo,
redentor e derradeiro. A fé cristã promete efetivamente a salva¬
ção e a bem-aventurança àqueles que amam Deus, enquanto a
doutrina pagã de ciclos fúteis paralisa a esperança e o próprio
amor. Se tudo viesse a acontecer sempre de novo com intervalos
fixos, de nada serviria a esperança cristã numa nova vida.4
A redenção e a salvação, fenômenos que foram intrínsecos à tra¬
dição cristã medieval, por exemplo, revelam assim uma estrutura
escatológica de progresso do tempo. A vinda do Cristo representa o
final de uma etapa da história e a anunciação de novos tempos. Da
mesma forma, o futuro também já anunciado dá razão de ser e estru¬
tura o presente cristão. Para a escatologia cristã, o futuro anunciado é
o tempo do eterno, do regozijo perene em Deus. Assim Agostinho:
LôWITH, Kart O sentido da história. Lisboa, Edições 70, 1991, p. 164.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
Precedeis, porém, todo o passado, alteando-Vos sobre ele com a
Vossa eternidade sempre presente. Dominais todo o futuro por¬
que está ainda para vir. Quando ele chegar, já será pretérito. Vós,
pelo contrário, permaneceis sempre o mesmo e os Vossos anos
náo morrem. OsVossos anos não vão nem vêm. Porém os nossos
vão e vêm, para que todos venham. Todos os Vossos anos estão
conjuntamente parados, porqueestão fixos, nem os anos queche¬
gam expulsam os que vão, porque estes não passam. Quanto aos
nossos anos, só poderão existir todos, quando já todos não existi¬
rem. Os Vossos anos são como um só dia, e o Vosso dia não se
repete de modo que possa chamar-se quotidiano, mas é um per¬
pétuo hoje, porque este Vosso hoje não se afasta do amanhã, nem
sucede ao ontem. O vosso hoje é a eternidade.5
O Iluminismo, de uma certa maneira, não se insurge contra essa
linearidade do tempo orientada pelo amanhã, ainda que não voltada
ao porvir eterno como nos cristãos. Mas também o movimento das
luzes aposta no presente melhor que o passado e no futuro melhor que
o presente. A linearidade do tempo faz pressupor ainda, no pensa¬
mento iluminista, a superação do problema da religião, como forma
de cumprir o progresso natural da humanidade. Mas não é a negação
do sentido do tempo que está em causa no Iluminismo: ele mantém a
estrutura judaico-cristã, apenas elimina seu conteúdo e seus métodos.
A estrutura linear do tempo, assim, apresenta ao menos duas gran¬
des variantes de uma mesma visão. Para a variante cristã, a esperança se
dará pela promessa, pelo anúncio, pela revelação. O futuro desnudo
pelo anúncio revela o sentido do presente. Já a variante iluminista olha o
passado como constatação do progresso do hoje e induz a esperança no
futuro como decorrência. A esperança iluminista, assim, é indutiva, ao
passo que a judaico-cristã é dedutiva, decorrente das promessas. Desta-
5 AGOSTINHO, Sto. Confissões. Petrópolis, Vozes, 2001, p. 277.
UTOPIA E DIREITO
r
ca-se disso,¡mediatamente, o caráter voluntarista da esperança moder¬
na, ao contrário do caráter contemplativo da esperança judaico-cristã.
O voluntarismo da modernidade, que se revela crucial para as filosofias
política e jurídica do Iluminismo, também é o elemento estruturante do
arcabouço psicológico do tempo moderno. O amanhã virá pela vonta¬
de, porque por esse impulso o ontem se fez hoje.
A cada dia a razão penetra na França, tanto nas lojas dos co¬
merciantes como nas mansões dos senhores. Cumpre, pois,
cultivar os frutos dessa razão, tanto mais por ser impossível
impedi-los de nascer.6
Não se põe ainda claramente, no quadro do tempo iluminista, a
decadência dentro da civilização, como esta também não se punha no
pensamento teológico a partir do momento da vida expulsa do paraí¬
so. Todos os passos do tempo cristão, depois do pecado original, são
tempos felizes porque só fazem por se aproximar do tempo da reden¬
ção. Não há possibilidade de regressão no tempo. O afastamento do
tempo e a sua decadência não são lógicos para a perspectiva cristã.
De algum modo, o Iluminismo adota por vontade - e talvez
não por decorrência lógica — a linearidade impassível do tempo. O
sentido do futuro decorre do fato de ter sido o passado também
linear. Ora, sendo os mecanismos do universo mecânicos, a física
moderna impede o futuro de ser diverso do passado, devendo ser,
então, sua repetição esplêndida. A imagem do relojoeiro perfeito,
criador do perfeito relógio, o universo, faz ver, no movimento do
passado, a anunciação do infinito futuro. Se o mundo foi barbárie
que se civilizou, a tendência é a civilização total. O movimento do
tempo moderno é, para os iluministas, a inexorável saída de toda a
treva para a chegada a toda a luz.
6 VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 115.
AurssoN LEANDRO MASCARO
As esperanças medievale moderna, sendo o resultado de um sentido
já dado, são a esperança no máximo reformista, mas não necessariamente
revolucionária. Não é necessária a revolução da história para a chegada do
amanhã. Ele virá pela promessa divina-e então a esperança judaico-cristã
não será nem sequer reformista, será só conservadora — ou virá pela ação
cadenciada da humanidade, repetindo uma marcha inexorável do passa¬
do ao futuro- e então a ação iluminista, moderna, será reformista, para
ser hoje melhor do que ontem, mas sem a necessidade de romper a mar¬
cha. No direito, esta marcha linear - mas controlada - do reformismo
buscará o controle do próprio tempo jurídico, processualizando-o:
Vivia-se, assim, numa sociedade relativamente estável, com
valores estáveis capazes de controlar, no seu grau de abstração,
a pequena complexidade social. Ora, as crises que culmina¬
ram na Revolução Francesa acabaram por inverter esta posi¬
ção. Numa sociedade tornada complexa, formas difusas de
controle são substituídas por instrumentos de atuação mais
rápida e efetiva. [...] Com isto, também, há uma inversão na
relação mudança/permanência. O Direito positivo institu¬
cionaliza a mudança, que passa a ser superior à permanência,
e as penadas do legislador começam a produzir códigos e re¬
gulamentos que, posteriormente, serão revogados e de novo
restabelecidos, num processo sem fim.7
Os primeiros abalos na linearidade do tempo virão somente após a
filosofia do Iluminismo. Até então, as disputas entre conservadores cris¬
tãos e progressistas iluministas eram de forma e conteúdo, mas nunca de
fundo. Somente a inauguração do conceito filosófico da História, a par¬
tir de Hegel, trará impasse estrutural ao jogo filosófico alicerçado por
séculos judaico-cristão-iluministas. O tempo hegeliano - e marxista -
impõe outras tarefas ao sentido do progresso e da história.
7 FCRRAZ JR., Tercio Sampaio. Função Social da Dogmática lurídica. Sao Paulo, Max Limonad,
1998, p. 193.
UTOPIA E DIREITO
Lateralmente, é preciso ressaltar, o próprio auge da modernidade
produziu, além daquela de Hegel e Marx, outra aguda tensão na
linearidade do tempo, que, de modo distinto, seria um reclame filosó¬
fico muito próximo do tempo grego, da circularidade pagã. Nietzsche,
Spengler e Heidegger hão de acentuar - contra qualquer utopia do
amanhã melhor lastreada no progresso - o presente como sendo a
esperança que irá se esgotar em si mesma, sem portas abertas ao hipo¬
tético futuro. Passado e presente se fundiriam, então, num futuro que
é sempre o retorno.8
Confrontados com tal destino, uma só concepção da vida é dig¬
na de nós, aquela que já foi designada por “ Escolha de Aquiles” :
mais vale uma vida breve, plena de ação e brilho, que uma vida
longa mas vazia. O perigo é tão grande, para cada indivíduo,
para cada classe, para cada povo, que tentar ocultá-lo é deplorá¬
vel. O tempo não pode deter-se; não há retrocessos prudentes,
nem renúncias cautelosas. Só os sonhadores poderão acreditar
em tais saídas. O otimismo é cobardia. Nascidos nesta época,
temos de percorrer até o final, mesmo que violentamente, o
caminho que nos está traçado. Não existe alternativa. O nosso
dever é permanecermos, sem esperança, sem salvação, no posto
já perdido, tal como o soldado romano cujo esqueleto foi en¬
contrado diante de uma porta em Pompéia, morto por se terem
esquecido, ao estalar a erupção vulcânica, de lhe ordenarem a
retirada. Isso é nobreza, isso é ter raça. Esse honroso final é a
única coisa de que o homem nunca poderá ser privado.9
8 "A partir do século XVII em diante, o linearismo e a concepção progressista da história afirmam-
se cada vez mais, colocando a fé numa linha de progresso infinito, uma fé que já havia sido
proclamada por Leibniz, predominante no século do 'iluminismo', e popularizada no século
XIX pelo triunfo das ideias dos evolucionistas. Temos de esperar até o nosso próprio século para
vero começo de determinadas reações contra esse linearismo histórico, e um certo reavivamento
do interesse na teoria dos ciclos; é assim que, na economia pol ítica, estamos sendo testemunhas
da reabilitação da idéia de ciclo, flutuação, oscilação periódica; que, na filosofia, o mito do
eterno retorno é reavivado por Nietzsche; ou que, na filosofia da história, um Spengler ou um
Toynbee manifestam preocupação com o problema da periodicidade". EUADE, op. cit., p. 126.
9 SPENGLER, Oswald. O homem e a técnica. Lisboa, Guimarães Editores, 1993, p. 119.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
As pesadas palavras de Spengler são contundentes acerca desse
reverso do tempo da modernidade. Há uma sombra do ontem como
amanhã em Spengler que animará, potencialmente, até mesmo Cari
Schmitt — ambos muito próximos do nazismo — , a quem posterior¬
mente Bloch, campeão da esperança e dos sonhos, dedicará a estes
palavras de embate político-filosófico duras e virulentas.
DAS ESPERANçAS DA MODERNIDADE
O Iluminismo é a esperança na luz do futuro com os olhos volta¬
dos à negação das trevas do passado. Seu efeito libertário é espetacu¬
lar: o novo amanhã será, ao mesmo tempo, o escombro do ontem.
Libertar-destruir -e construir são as duas faces da moeda. Um gênio
da filosofia prática e popular, como Voltaire, talvez mais tenha se dedi¬
cado a dissecar as idiossincrasias da religião do que pregar a tolerância.
O não, em muitos momentos, ocupa mais espaço que o sim na filosofia
moderna. A luz resulta da ojeriza da sombra.
De qualquer modo, não e sim apontam para além, e, neste senti¬
do, a filosofia moderna, assim como o Iluminismo de modo geral, são
progressistas. Misturam-se, nesta esperança no amanhã, ao mesmo tem¬
po, a novidade do nunca pensado - a afirmação da tolerância, dos
direitos - e a revolta contra o já dado - o absolutismo, as trevas do
saber. Neste ponto, o Iluminismo do século XVIII olha adiantè7 tãl
qual a filosofia que despontou no século XIX com Marx. Tal qual o
reformismo iluminista, o revolucionarismo também aponta ao novo,
ainda que, para a revolução, o novo pareça ser o inexistente até então
e, para o reformismo, pareça ser a mudança do já existente. O que os
unifica é o futuro reinterpretando a história.
A modernidade, portanto, não está separada da moderniza¬
ção, o que já era o caso na filosofia do Iluminismo, mas ela se
UTOPIA E DIREITO
reveste de muito mais importância num século em que o pro¬
gresso não é mais unicamente o das idéias, mas torna-se o das
formas de produção e de trabalho, onde a industrialização, a
urbanização e a extensão da administração pública transtor¬
nam a vida da maioria. O historicismo afirma que o funciona¬
mento interno de uma sociedade se explica pelo movimento
que a conduz à modernidade. Todo problema social, em últi¬
ma análise, é uma luta entre o passado e o futuro. O sentido
da história é ao mesmo tempo sua direção e sua significação,
porque a história tende para o triunfo da modernidade.10
De certo modo, se tratássemos de uma geografia política da filo¬
sofia, o oposto absoluto do Iluminismo quanto ao progresso não é a
filosofia baseada na história, revolucionária, que perpassa o pensamento
de Hegel e principalmente o de Marx, porque ambos apontam para o
futuro também. Os opostos absolutos do Iluminismo quanto a essa
geografia política serão, sim, o reacionarismo e o conservadorismo,
que até esse tempo se exprimiam religiosamente e, posteriormente,
passaram a ser um corpo de pensamento filosófico estruturado, arro¬
gando a si um lugar na história.
Em um certo momento da passagem da Idade Moderna para a
Contemporânea, o Iluminismo e sua perspectiva liberal passaram a
congregar o espaço do conservadorismo, deixando ao religiosismo o
estigma de reacionário, ao lado daqueles que postulavam uma revolu¬
ção como volta ao passado. Mas, ainda neste momento em que o
Iluminismo passa a ocupar o espaço do institucionalismo liberal con¬
servador, ele manterá sua outra faceta, libertadora, como arma na mão
a favor da transformação. Daí poder-se dizer que há uma constante
face libertadora do Iluminismo até a atualidade, em que pese sua apa¬rente maior face conservadora.
10 TOURAINE, Alaí n. Crítica da Modernidade. Petrópolis, Vozes, 2002, p. 71.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
A característica do Iluminismo na historia é a de um frescor ainda
não esgotado. As suas promessas não-cumpridas não parecem ser a rejei¬
ção total dos seus próprios ideais. O marxismo, na crítica às classes que
empunharam esses ideais e na crítica aos seus métodos, parece ainda
respeitar um corpo mínimo comum de aspirações e objetivos - a liber¬
dade e a igualdade exprimem, ao mesmo tempo, os sonhos anti-absolu¬
tistas iluministas e os desejos igualitários marxistas. Ao não negar todo o
passado, o Iluminismo incorpora os eventuais tesouros do ontem em
busca do melhor do futuro. O marxismo, por sua vez, anuncia o cum¬
primento de todos os ideais que o Iluminismo é incapaz de oferecer.
A trajetória das esperanças iluministas é radiante, mas, de certo
modo, fracassada. O estigma desse frescor juvenil derrotado se arrasta
junto às esperanças das Luzes: as brisas do novo foram perpassadas pelos
furacões revolucionários. Por isso, desde a dialética de Hegel, a ruptura
passou a ser a marca da esperança, tendo em vista que as brisas reformis¬
tas do Iluminismo não lograram refrescar e balançar a humanidade como
pretendiam. Daí constatar-se que, em termos de intensidade e talvez de
paixão, o marxismo tenha encampado a tarefa de modelar os tempos
novos, tal qual Sartre já advertia nas suas conhecidas palavras ao dizer
que o marxismo é a fronteira última da filosofia.11 A força utópica do
marxismo confirmou-se como a mais ampla; seus sonhos socialistas, mai¬
ores e mais hercúleos que os liberais iluministas.
Comum ao marxismo e ao iluminismo, no entanto, é a esperança
fundada na razão. No caso do Iluminismo, é o progresso da razão o
próprio motor do progresso da história, como se fossem engrenagens
mecanicamente ligadas.
11 "Uma pretensa 'superação' do marxismo limitar-se-á, na pior das hipóteses, a um retorno ao pré-
marxismo e, na melhor, à redescoberta de um pensamento já contido na filosofia que se acreditou
superar". SARTRE, Jean-Paul. Crítica da razão dialética.Rio de Janeiro, DP&A, 2002, p. 21.
UTOPIA E DIREITO
Assim, a racionalização, componente indispensável da
modernidade, se torna além disso um mecanismo espontâneo
e necessário de modernização. A idéia ocidental de
modernidade confunde-se com uma concepção puramente
endógena da modernização. Esta não é a obra de um déspota
esclarecido, de uma revolução popular ou da vontade de um
grupo dirigente; ela é a obra da própria razão e, portanto,
principalmente da ciência, da tecnologia e da educação, e as
políticas sociais de modernização não devem ter outro objeti¬
vo que o de desembaraçar o caminho da razão suprimindo as
regulamentações, as defesas corporativistas ou as barreiras al¬
fandegárias, criando a segurança e a previsibilidade de que o
empresário necessita e formando administradores e operado¬
res competentes e conscienciosos.12
Ao iluminismo, a razão trata de esclarecer e, neste processo, ela é
suficiente em si mesma para a consecução da libertação. No marxis¬
mo, trata-se da razão crítica, que reconhece seus próprios limites mas
que, ainda assim, só conhece uma dialética que seja um esclarecimen ¬
to racional para chegar à praxis da transformação. Isso porque, para o
marxismo, nem toda razão é transformadora, e nem toda transforma¬
ção é esperançosa.
A TRANSFORMAÇÃO É MORAL
O processo de dessacralização do mundo moderno representa a
utopia do céu na terra. Esta utopia, da emancipação do homem em
relação aos seus preconceitos e superstições, tem um caráter nitidamen¬
te moral e religioso embalando movimentos políticos, económicos e so¬
ciais. Enquanto a transformação contemporânea apregoa um ideário
praticamente laico e técnico, afastado em grande parte do humanismo,
12 TOURAINE, op. C/í., p . 19.
UTOPIA E DIREITO
Assim , a racionalização, componente indispensável da
modernidade, se torna além disso um mecanismo espontâneo
e necessário de modernização , A idéia ocidental de
modernidade confunde-se com uma concepção puramente
endógena da modernização. Esta não é a obra de um déspota
esclarecido, de uma revolução popular ou da vontade de um
grupo dirigente; ela é a obra da própria razão e, portanto,
principalmente da ciência, da tecnologia e da educação, e as
políticas sociais de modernização não devem ter outro objeti¬
vo que o de desembaraçar o caminho da razão suprimindo as
regulamentações, as defesas corporativistas ou as barreiras al¬
fandegárias, criando a segurança e a previsibilidade de que o
empresário necessita e formando administradores e operado¬
res competentes e conscienciosos.12
Ao iluminismo, a razão trata de esclarecer e, neste processo, ela é
suficiente em si mesma para a consecução da libertação. No marxis¬
mo, trata-se da razão crítica, que reconhece seus próprios limites mas
que, ainda assim, só conhece uma dialética que seja um esclarecimen¬
to racional para chegar à praxis da transformação. Isso porque, para o
marxismo, nem toda razão é transformadora, e nem toda transforma¬
ção é esperançosa.
A TRANSFORMAÇÃO É MORAL
O processo de dessacralizaçao do mundo moderno representa a
utopia do céu na terra. Esta utopia, da emancipação do homem em
relação aos seus preconceitos e superstições, tem um caráter nitidamen¬
te moral e religioso embalando movimentos políticos, económicos e so¬
ciais. Enquanto a transformação contemporânea apregoa um ideário
praticamente laico e técnico, afastado em grande parte do humanismo,
12 TOURAINE, op. cit ., p . 19.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
a modernidade guardará uma tensão entre o religioso e o moral, entre a
eternidade da velha religião e a universalidade da nova moral.
A nova moral moderna é a esperança de um novo homem. O
caminho da transformação moderna é pelo indivíduo, daí seu caráter
essencialmente moral. A pedagogia do homem novo, a ortopedia do
andar ereto, a libertação da moral opressora, tudo isso representa uma
alavanca ao novo a partir do indivíduo. É preciso localizar a transfor¬
mação, então, no conhecimento, em sua forma e conteúdo. É preciso
situá-la no espaço entre a iconoclastia e a contemplação. A veneração
da verdade é a arma da libertação e, no fundo, é a própria libertação.
A construção da nova moral agrupa a mais vasta rede da
intelectualidade iluminista, desde homens que estão no limite entre a
teologia antiga e a ruptura total, como Espinosa, até espíritos já bas¬
tante libertos do passado religioso, como Diderot. O Iluminismo in¬
glês, que passa por Locke, teve na filosofia moral um de seus mais
importantes momentos. Kant, na Alemanha, devia grande parte de
sua visão moral aos ingleses.
Na França, a nova moral iluminista revelou-se grandemente
contestadora, de tal modo que nem o século XIX logrou conseguir
repetir a radicalidade que anteriormente foi apregoada. Os radicais
que tratam da teologia no século XIX, a partir de Feuerbach, têm pela
religião uma postura filosófica mais compreensiva que refutadora. O
Iluminismo, no entanto, não se preocupa em enterrar o passado em
sua sepultura, mas sim em matá-lo.
A nova moral iluminista é de esperança, no entanto ela se sobre¬
põe a uma velha moral que também argüía a esperança. A razão cristã
medieval também era uma moral que apontava para a felicidade, ain¬
da que submetida à divisão em dois reinos, dos quais o último e afasta¬
do da vida terrena era o limiar do regozijo. Para subverter a escatologia
UTOPIA E DIREITO
da felicidade futura, o Iluminismo anuncia ajglicidadc presente. No
fundo, há na passagem da filosofia medieval para a iluminista uma
atualização temporal: o tempo da esperança vai-se aproximando. O
caráter messiânico do passado judaico-cristão continuará subjacente,
de certo modo, no arcabouço das esperanças modernas.
Existe, pois, para o homem mortal, além da realização
messiânica de seus ideais básicos, num tempo extremamente
afastado, uma outra forma de realização, à qual o “ Pregador”
faz igualmente alusão com as palavras (Ecl 3,13): “ Também,que todo homem coma e beba e reconheça o bem em todo o
seu trabalho, é um dom de Deus” . [...] Chegamos, dessa for¬
ma, a uma realização bem diferente que consiste na integração
da vida cotidiana nos ensinamentos do passado, numa “ Lei”
válida em todos os tempos. [...] No entanto deve ser lembra¬
do sempre que o tempo sagrado não é, propriamente, um
tempo fenoménico, mas um tempo revivido, contendo um
conjunto de modelos do que aconteceu no passado, capazes
de orientar e dar sentido à nossa vida presente.13
O Iluminismo não rompe, em relação à velha teologia, com o que
diz respeito à questão de fundo da transformação individual como
premissa da transformação geral social. O Iluminismo substitui uma
moral velha por outra nova, mas, ainda assim, está trabalhando no
campo da moral: é preciso o homem novo para que então seja dado
um mundo novo. Neste sentido, o Iluminismo é herdeiro das estrutu¬
ras gerais do humanismo teológico anterior. Sua ruptura se dá no tem¬
po, ao trazer a esperança para mais próximo, e se dá no campo lógico,
ao afastar a incompatibilidade racional dos dogmas e arcabouços teo¬
lógicos da moral antiga. Essa linha reta de aproximação do futuro com
o presente se verifica, pois, desde os cristãos medievais, passando pelo
13 REHFELD, Walter. Tempo e Religião, São Paulo, Perspectiva, 1988, p. 123.
gj
ALYSSON LEANDRO MASCARO
Iluminismo, até o marxismo. Tal escatologia será a marca de toda a
trajetória do progresso que constrói a modernidade e o ocidente.1'*
A ruptura iluminista, assim, é um pedaço de uma total ruptura
com o passado, mas não toda a rupturac Em termos de esperança,
rompe com o passado no local e no tempo: a felicidade será na terra e
poderá ser para o hoje. Mas, em termos de estrutura e de ação, o
Iluminismo está preso ao passado: a felicidade é individual e reformis¬
ta. A moral revolucionária, que se pode vislumbrar no século XIX no
marxismo, será neste sentido uma total ruptura: no tempo e no espaço
(na terra hoje), assim como na ação (a práxis social) . ^
DA SECULARIZAçãO à REVOLUçãO
Pode-se perceber, na evolução política da Idade Moderna, um
processo crescente de secularização que redunda, no campo do direi¬
to, na construção de um novo modelo de saber jurídico, afastado da
metafísica teológica e dos princípios da prudência antiga, que anima¬
vam o direito romano e mesmo o pensamento jusfilosófico grego.
A separação iluminista entre metafísica moral e direito é a mais
acabada vitória da razão livre contra o dogma, mas não é, entretanto,
todo o processo. O Iluminismo fere de morte um monstro que estava
enjaulado, mas não foi o Iluminismo o responsável pela caça e pelo
confmamento. O movimento dos direitos subjetivos, que estão na base
14 Voegeiin, opondo-se em bloco ao que reputa gnose da modernidade, identifica os vastos
traços comuns dessa escatologia: "É essencial a n ítida compreensão de que essas experiências
constituem o núcleo ativo da escatologia imanentista, pois de outro modo se tolda a lógica
interna do desenvolvimento pol ítico ocidental a partir do imanentismo medieval até chegar
ao marxismo, passando pelo humanismo, iluminismo, progressivismo, liberalismo e positivismo.
Os símbolos intelectuais elaborados pelos vários tipos de imanentistas freqiientemente são
conflitantes, assim como os vários tipos de gnósticos se opõem uns aos outros. É fácil
imaginar a indignação de um liberai humanista se lhe dissermos que seu particular de
imanentismo é um passo na estrada que leva ao marxismo". VOECELIN, Eric. A nova ciência da
política. Brasília, UnB, 1982, p. 95.
UTOPIA E DIREITO
da dinâmica capitalista e na base da Reforma Religiosa, é um compo¬
nente da segregação do teológico e do laico tão forte quanto o
Iluminismo. As luzes iluministas matam o teológico, porque lhe ne¬
gam espaço, mas a pura dinâmica capitalista e a Reforma, no entanto,
foram o passo inicial que culminou na morte da teologia.
A idéia da individualidade que se assume portadora de direitos,
que é a necessária mónada da ação burguesa — o portador de direitos
e deveres, livre para contratar -, é também a idéia da individualidade
que crê independente do espaço político externo. A recusa da
heteronomia é a descoberta da autonomia jurídica. O movimento,
aqui, é o inverso do que tradicionalmente se calcula. Não são a Refor¬
ma e o capitalismo que criam o espaço estatal, a soberania, a ação laica.
Pelo contrário, a Reforma e o capitalismo criam o espaço individual,
reafirmam o teológico, demarcando-lhe então um espaço legítimo: a
fronteira entre o político e o teológico não nega este último, antes o
consolida e o torna inatingível pelo primeiro. ' ' o v - v v i *
A secularização, assim, é a legitimação do espaço espiritual è, nes¬
te sentido, faz surgir a legitimação do espaço político por oposição. Os
Iluminismos francês e inglês, quando se insurgem contra a religião e a ,
teologia, têm uma raiz diversa dos primeiros movimentos que levaram
ao direito subjetivo. Enquanto a Reforma levou à independência dos
EUA e à legitimação do espaço do privado em face do político, a Re¬
volução Francesa e o Iluminismo radical levaram à morte da teologia
em face da Razão. Neste sentido é que se pode dizer que a Reforma
tem uma razão ainda conservadora, porque é a última tentativa de
salvaguardar a teologia, enquanto o Iluminismo radical tem uma ra¬
zão reformista quase revolucionária, porque quer destruir a legitimi¬
dade do teológico para fazer surgir em seu lugar a secularização total.
Todo este encadeamento parece demonstrar que a idéia dos
direitos fundamentais do indivíduo não é uma idéia de ori-
ALYSSON LEANDRO MASCARO
gem política mas uma idéia de origem religiosa: “o que se
acreditava ser urna obra da Revolução é, na realidade, um pro¬
duto da Reforma” . Seu primeiro apóstolo não foi Lafayette,
mas Roger Williams, cujo nome é ainda proferido pelos ame¬
ricanos com a maior veneração; este apóstolo, levado pelo en¬
tusiasmo religioso, emigrou na solidão para ali fundar “ um
império baseado na liberdade religiosa” .15
No balanço entre a saída do mundo medieval e a chegada ao
mundo contemporâneo, a modernidade se apresenta, à primeira vis¬
ta, como um só movimento de consolidação do indivíduo e da sobera¬
nia. Mas este movimento é dúplice: trata-se de fazer surgir o Estado
por contraste com a religião, ou então de fazer surgir a política por
negação total da teologia. A tolerância de Calvino e Lutero era pela
primeira dessas vias. A tolerância do Iluminismo de Voltaire era da
última cepa.
A partir do fim do século XVIII, a secularização transpôs os
confins juscanônicos e juspublicistas para transformar-se em
categoria geral indissoluvelmente coligada com o novo con¬
ceito unitário de tempo histórico. Deste enlace (em meio ao
qual a secularização se encontra cercada por outras coordena¬
das simbólicas da condição moderna: emancipação e progres¬
so, liberação e revolução) produzem-se radicais redefinições e
deslocamentos de significado do par espiritual/mundano.16
Baseada na inspiração das ciências naturais, a filosofia do direito
há de se encaminhar na construção de um modelo estável, repetível —
abrindo-se, assim, o caminho da técnica jurídica - a fim de que o
direito não seja obra do acaso das crenças pessoais ou das revelações
15 SOION, Ari Marcelo. "A Polêmica acerca da origem dos Direitos Fundamentais: do Contrato
Social à Declaração americana". In Revista da Pós-Graduaçâo da Faculdade de Direito da USP,
vol. 4. Porto Alegre, Síntese, 2002, p. 135.
MARKAMAO, Giacomo. Céu e Terra. Genealogia da Secularização. São Paulo, Ed. Unesp,
1997, p. 23.
1 6
UTOPíA E DIREITO
sagradas, mas sim da razão. O jusnaturalismo moderno arroga para si
a razão como secularização de toda a metafísica jurídica até então exis¬
tente. Assim exprime Tercio Sampaio Ferraz Jr.:
O rompimento com a prudência antiga é claro. Enquanto esta
se voltava para a formação do caráter, tendo, na teoria jurídica,
um sentido mais pedagógico, a sistemática moderna terá um
sentido mais técnico, preocupando-se com afeitura de obras e
o domíniovirtuoso (Maquiavel) de tarefasobjetivadas (por exem¬
plo, como fundar e garantir, juridicamente, a paz entre os po¬
vos). A teoria jurídica jusnaturalista, assim, constrói uma rela¬
ção entre a teoria e a práxis, segundo o modelo da mecânica
clássica. A reconstrução racional do direito é uma espécie de
física geral da socialização. Assim, a teoria fornece, pelo conhe¬
cimento das essencialidades da natureza humana (no “estado ' f f .
de natureza” ), as implicações institucionais a partir das quais é 'T'
possível uma expectativa controlável das reações humanas e a
instauração de uma convivência ordenada.17
Pode-se dizer que tal processo de secularização jurídica revela a
atualização de uma utopia jurídica: ao tomar nas mãos do indivíduo
em sociedade o poder de dizer suas próprias leis e de se julgar, a huma¬
nidade traz para o hoje a escatologia do amanhã justo. O caminho
para a revolução estava aberto pelo próprio Iluminismo: é preciso rom¬
per com as amarras antigas para instaurar o novo: “ E o direito, que
libera e institui, contribuirá para a realização deste programa, conju¬
gando a emancipação dos homens com o estabelecimento da lei” .18
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1 7 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação.
São Paulo, Atlas, 2003, p. 71.
18 OST, François. O tempo do direito. Bauru, Edusc, 2005, p. 193: "Ê bem em direção a um paraíso
terrestre que colocamos o pé na estrada, e a promessa da felicidade- uma idéia nova ela também
- está no fim do caminho. Um caminho aclarado pelas luzes da razão e aberto pela energia
formidável de idéias-forças como liberdade, igualdade e, talvez mesmo, fraternidade. Sem
dúvida, ainda estamos longe do cômputo final, mas a humanidade é perfectível - logo, a
pedagogia estará inscrita no centro do projeto prometêico. Desde o início, uma certeza: a sorte
das gerações futuras será mais invejável do que a das gerações presentes".
AI.YSSON LEANDRO MASCARO
O marxismo, ao constatar as limitações e os vícios da burguesia
no processo revolucionário iluminista, nada mais faz do que diminuir
ainda mais essa hipotética distância entre o céu e a terra das esperan¬
ças jurídicas. O justo estava na ordem do dia porque já era possível
transformar o hoje em amanhã. Prossegue o imperativo da história,
para frente e para o alto.
CAPíTULO 2
MARX, TRANSFORMAçãO E UTOPIA
Na historia do pensamento político e filosófico contemporáneo, a
obra de Marx representa uma referência ao mesmo tempo crucial mas
potencialmente plurívoca quando trata da utopia. Marx pode ser to¬
mado como o mais alto expoente da utopia da transformação humana
no mundo contemporâneo e também como o maior negador da uto¬
pia, podendo ser ambas essas visões frutos de elogios à sua obra. Não
só os pensadores do marxismo divergem a respeito dos seus encami¬
nhamentos da questão utópica, mas também divergem da leitura a
respeito do tema no próprio Marx.
É conhecida a tentativa de distanciamento de Marx em relação
ao socialismo utópico, o que o tornaria, por oposição, fundador do
socialismo dito científico. No entanto, não é pela rotulação que se re¬
solve a questão da utopia em Marx. Pelo contrário, a obra de Marx é
permeada de referências utópicas, e o devir da transformação históri¬
ca e social habilita que se o entenda ainda como um socialista utópico,
mas aviado numa ciência da transformação.
A evolução histórica do pensamento de Marx permite essa
duplicidade de leituras em relação à utopia, ora a negando, ora sendo
seu artífice. A filosofia de Marx transparece ser um projeto contradi¬
tório e de possibilidades múltiplas. Nela, pode-se ver, ao mesmo tem¬
po, a esperança nas leis económicas que conduziriam o mundo
inexoravelmente ao socialismo ao lado de páginas convocando o pro¬
letariado à luta revolucionária, sem a qual não se daria a superação do
AJLYSSON LEANDRO MASCARO
capitalismo. Esta duplicidade de Marx é constante, perpassando sua
obra de uma tensão muito fina. Por toda sua obra passa uma dificul¬
dade profunda, que é a de se divisar um cerne único para o entendi¬
mento da grande questão da transformação do capitalismo.
Surgindo do imo de todas as ambigüidades de Marx, no entanto,
está um horizonte profundo e singular, que talvez seja o unificador
maior de seu pensamento e tábua comum de todos os marxismos, por
mais variados quesejam: o marxismo é uma filosofia da transformação,
do anúncio do amanhã da libertação. Seja por causas económicas ne¬
cessárias - Engels, dentre tantos mais — , seja por razão da luta - Rosa
Luxemburgo e outros tantos ainda -, o marxismo é uma filosofia que
se vale do passado e do presente para vislumbrar o futuro. Embora as
correntes de interpretação de Marx queiram inscrevê-lo ou afastá-lo
da questão da utopia, é inegável e comum a todas as vertentes do mar¬
xismo o fato de que este aponta para o futuro, para a transformação
do presente em um amanhã de superação do capital.19 E, assim sen¬
do, se ainda se quiser em algum momento imputar a Marx alguma
espécie de messianismo, ela é necessariamente de pés no chão e calca¬
da na práxis ou, dizendo de outra forma, uma espécie de utopia sem
ser jamais idealista nem, ironicamente, utópica. Nisto convergem to¬
das as interpretações sobre Marx.
UMA DIVISA FUNDAMENTAL: A TRANSFORMAçãO
Gramsci tratava, nos Cadernos do Cárcere, o marxismo como filo¬
sofia da práxis. O fundamento de sua interpretação de Marx residia,
justamente, na tentativa de escapar das cisões hermenêuticas dos
19 "O ímpeto utópico que anima a teoria de Marx constitui, para o melhor e para o pior, uma
dimensão necessária de seu desenvolvimento". MALER, Henri. Congédier L'Utopie? L'utopie
selon Karl Marx. Paris, L'Harmattan, 1994, p. 12.
UTOPíA E DíREITO
continuadores do marxismo, que já desde o final do século opunham
reformistas e revolucionários, revolucionarios intemacionalistas e sovi¬
éticos, democratas e centralistas, dentre outros mais. O conceito de
praxis valorizado por Gramsci é justamente a ruptura de Marx com
toda a filosofia alemã, idealista, que se bastava em interpretar o mun¬
do. Tal novidade se exprime de modo explícito ñas Teses Sobre Feuerbach,
em especial ñas Teses I, II e VIII. Nesta última, diz Marx: “ Toda vida
social é essencialmente prática.Todos os mistérios que orientam a teo¬
ria para o misticismo encontram sua solução racional na prática hu¬
mana e na compreensão desta prática” .20
No entanto, o ápice da diferenciação entre o velho idealismo como
imobilismo da interpretação e a práxis como atividade de interpreta¬
ção revolucionária será o encaminhamento da filosofia para a trans¬
formação. Por isso o conhecido fecho das Teses sobre Feuerbach é ex¬
plícito: “ Os filósofos apenas interpretaram o mundo de forma dife¬
rente; o que importa é mudá-b” .21 De certo modo, Marx sela um
destino inarredável à atividade filosófica e a seu pensamento geral: a
filosofia deve servir à transformação.
A partir da divisa fundamental é que se dá início ao projeto mar¬
xista de compreensão do capitalismo e das formas de sua superação. É
desta maneira que se poderá aceitar, posteriormente, que um pensa¬
mento extremamente calcado na leitura de O Capital, como o de
Pachukanis, seja tão marxista quanto a crítica da música de Theodor
Adorno ou o onírico O Princípio Esperança de Ernst Bloch. Todos se
ocupam da sociedade dominada, capitalista, e das possibilidades de
sua transformação, e nisto reside o cerne do pensamento de Marx.
20 MARX. "Teses Sobre Feuerbach". In LABICA, Georges. As 'Teses sobre Feuerbach' de Karl Marx.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990, p. 34.
21 Ibid., p. 35.
AIYSSON LEANDRO MASCARO
QUE MARXISMO PARA QUAL UTOPIA?
A história da interpretação da transformação por parte dos mar¬
xistas revela compreensões distintas do processo revolucionário, dos
passos, táticas e alternativas do marxismo. Os intérpretes de Marx po¬
dem ser divididos em vários rótulos, dicotomias, correntes. É possível,
por exemplo, opor a uma visão mecanicista de Marxuma visão mais
acurada, filosófica, essencialmente dialética. No que tange ao proble¬
ma da interpretação da utopia em Marx, bem como a outras questões
mais, podem ser vistas duas grandes correntes filosóficas cujas respos¬
tas encaminham posições específicas dentro do quadro do marxismo.
A primeira delas é a que enxerga em Marx um pensador que acumula
o pensamento aberto da juventude com o pensamento aprofundado
da maturidade, com uma continuidade de propósitos desde o começo
até o final de sua obra. A segunda delas é a que compreende o pensa¬
mento de Marx a partir de uma cisão entre suas reflexões do início de
suas obras - o dito jovem Marx - e sua obra de maturidade, na qual,
então, estaria o cerne do próprio marxismo. Para esta última visão, o
jovem Marx ainda não é marxista.
Tais metodologias de compreensão do pensamento de Marx
resultam em dois modos distintos de interpretar a utopia marxista.
No caso dos que consideram o pensamento marxista um processo
continuado desde o início até o final de sua obra, há uma abertura
para um grande humanismo que resultará numa aceitação da uto¬
pia como horizonte do futuro socialista apregoado por Marx já nas
suas obras de juventude.
1 A obra de Marx não está fundada sobre uma “ dualidade” de
que o autor, por falta de rigor ou por confusão inconsciente,
não teria percebido; pelo contrário, ela tende para um monismo
rigoroso no qual fatos e valores não estão “ misturados” , mas
organicamente ligados ao interior de um único movimento
UTOPIA E DIREITO
de pensamento, de uma “ ciência crítica” , em que a explicação
e a crítica do real estão dialeticamente integradas.22 j
Na segunda vertente, que cinde o jovem Marx do pensador da
maturidade, o tema da utopia será mais estrito. Abandonando qualquer
possibilidade de compreensão alargada do tema da transformação da
história, esta visão enxergará na utopia um produto derivado e tangencial
de um dado estrutural, que é a própria transformação das relações pro¬
dutivas. Dado que a revolução que encaminha ao socialismo é resultante
da luta de classes, a utopia somente poderá ser entendida como um
espectro ideológico estruturalmente vinculado à própria luta.
No período de A ideologia alemã Marx estabelece o princípio
de determinação imediata entre a base económica e a superes¬
trutura, resultando disso que esta última aparece como uma
“ emanação direta” das relações económicas. Ele estabelece tam¬
bém o princípio do primado das forças produtivas sobre as
relações de produção, segundo o qual são as forças produtivas
que “comandam” o desenvolvimento histórico.
Pois bem, essas teses não encontram sustentação quando Marx
realiza a análise científica do modo de produção capitalista.
Embora a antiga concepção subsista e continue a atravessar a
trama científica que Marx tece, é justo considerar que uma
retificação em sua concepção do materialismo histórico está se
operando — particularmente em O Capital.10
Não se pode dizer, contudo, que haja uma mera oposição entre
aqueles que, por serem humanistas, divisam uma utopia alargada ao
marxismo e aqueles que, por serem estruturalistas, rejeitam a aborda¬
gem do tema da utopia. Isto porque Ernst Bloch, que é quem, dentre
os marxistas, mais se dedica ao aprofundamento do tema, não pode
22 LOWY, Michael. A teoria da revolução no¡ovem Marx. Petrópolis, Vozes, 2002, p. 38.
23 NAVéS, Márcio Bilharinho. Marx. Ciência e Revolução. São Paulo, Moderna/Unicamp,
2000, p. 79.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
ser encaixado facilmente em nenhuma dessas divisões estanques do
marxismo e, ao mesmo tempo em que alarga a compreensão da trans¬
formação social, buscando sujeitos revolucionários e inspirações até
mesmo na religião e nas heranças dos ideais jurídicos, também é bas¬
tante estrito e cônscio de que a concretude da utopia somente se dá
com o socialismo que rompa os vínculos estruturais da sociedade capi¬
talista. Há um possível humanismo dentro de uma visão estrutural,
bem como o humanismo marxista não é somente um vago comboio
de idéias múltiplas e incongruentes.
A divisão de interpretações entre um marxismo “ aberto” ,
humanista, e um estrito, vinculado às estruturas econômico-produti-
vas, embora de caráter didático, revela os horizontes da utopia jurídi¬
ca do marxismo. No humanismo que junta, na mesma trilha, o jovem
Marx e o pensador maduro,24 é possível que se compreenda o proces¬
so de transformação social como uma evolução que possa se valer até
mesmo das instituições político-jurídicas burguesas para sua própria
destruição. A social-democracia estaria nesta vertente. Surpreenden¬
temente, o stalinismo perfilha esta mesma perspectiva, na medida em
que há de considerar o uso do Estado e da ditadura do proletariado —
um tema bastante marginal no próprio Marx - como elementos de
consecução da luta socialista.
Na segunda vertente, estrutural, a revolução em Marx é vista
como ruptura, isto é, como superação das condições económicas,
políticas e sociais capitalistas. Representa dizer, a partir desta pers-
24 "Gramsci definiu, numa fórmula muito feliz, o marxismo como um historicismo absoluto e um
humanismo absoluto. A feitura de O Capital-com a condição, bem entendido, de se ler o que
está escrito nele, e não um suposto 'discurso silencioso', 'reconstitu ído', 'apesar da letra de
Marx' - confirma inteiramente essa definição. [...) Parece-nos que os principais momentos do
humanismo em O Capital são: a) o desvendamento das relações entre os homens atrás das
categorias reificadas da economia capitalista; b) a crítica da 'desumanidade' do capitalismo;
c) o socialismo como possibilidade objetiva de uma sociedade onde a produção é racional ¬
mente controlada pelos homens". Lõwv, Michael. Método dialético e teoria política. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1978, pp. 62 e 63.
UTOPIA E DIREITO
pectiva, que o socialismo não arrasta consigo as instituições que são
próprias ao capitalismo e que, portanto, não se dá um processo con¬
tinuado e indefinido de transformação do sistema capitalismo a par¬
tir de si mesmo. Pelo contrário, tal visão estrutural acentua a luta de
classes como elemento emancipador e revolucionário, que suprima
o Estado e suas instituições.25
O marxismo jurídico desde cedo se dividiu entre aqueles que
perfilhavam a alternativa institucional - os que concebiam um socia¬
lismo de Estado, baseado no direito- e aqueles que lançavam mão de
uma visão socialista como a negação do capitalismo e de todas suas
instituições, inclusive as jurídicas. Na União Soviética, este debate ocu¬
pou o centro das reflexões jurídicas nas décadas de 1920 e 1930, opon¬
do Stutchka e, principalmente, Vichinscki, de um lado, a Pachukanis,
de outro, tendo os dois primeiros o apoio do stalinismo, porque apre¬
goavam uma função jurídica revolucionária, ao mesmo tempo em que
defendiam a existência de um Estado socialista e, portanto, davam
margem à ditadura de Stalin.
Logo se percebe, desta divisão, que o tema da utopia no marxis¬
mo não comporta uma dicotomia clara. Pachukanis, que liderava uma
interpretação jurídica do marxismo muito próxima daquela exposta
por Marx em O Capital, apresentava um horizonte utópico (e
“ humanista” ) bem mais largo que os stalinistas que defendiam o uso
do Estado e do direito. Bloch, o campeão do humanismo marxista,
que em Direito Natural e Dignidade Humana faz suas as visões jurídi-
25 ! "Isso significa que a ideologia proletá ria não é o diretamente oposto, a inversão, o reverso da
’ ideologia burguesa, mas é uma ideologia totalmente diferente, que leva em si outros valores,
que é crítica e revolucionária. Porque é, já agora, apesar de todas as vicissitudes de sua história,
portadora desses valores, já agora realizados nas organizações e nas práticas de luta operá ria,
pelo que a ideologia proletária antecipa o que serão os aparelhos ideológicos do Estado da
transição socialista, adianta, pela mesma razão, a supressão do Estado e a supressão dos
aparelhos ideológicos de Estado no comunismo". AITHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de
Estado. Rio de Janeiro, Graal,1985, p. 128.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
cas de Pachukanis, é um defensor da utopia extrema do fim do Estado
e de qualquer forma de dominação institucional sem ser, no entanto,
urn estrito analista do Marx da maturidade contra o jovem Marx.
A TEORIA DA REVOLUÇÃO DE MARX
Há uma teoria da revolução em Marx que se gesta desde suas
primeiras obras e que se constitui no primeiro ponto — para dentro e
depois da divisa fundamental da transformação-em que começam as
divisões e multiplicidades do marxismo.
Ñas obras finais da sua juventude, marcadamente na Ideologia Ale¬
mã, Marx já aponta para urna teoría revolucionaria de acento politico¬
económico, fugindo de qualquer armadilha humanista de tipo
institucionalista-liberal. Marx, desde o inicio, afasta-se da compreensão da
revolução como mera alteração política e jurídica. No entanto, A Ideofogia
Alemã e as primeiras obras são fundadas numa expectativa de que as con¬
tradições do capital levariam a oposição de classes a urna extrema tensão e
daí necessariamente à ruptura da dominação económica.
Nas obras de sua maturidade e, em especial, em O Capital, Marx
estabelece um outro nível de abordagem a respeito da relação entre
forças produtivas e relações de produção (procedendo a uma retifica¬
ção, segundo as palavras de Naves). Ao invés de propor um procedi¬
mento mecânico no qual a mudança dos meios de produção gera ne¬
cessariamente a mudança do sistema económico, Marx propõe uma
dialética entre forças produtivas e relações de produção. As relações
de produção capitalistas geram forças produtivas específicas, e a tran¬
sição ao socialismo é ao mesmo tempo a ruptura com as forças produ¬
tivas capitalistas e sua relação de produção.26
26 Sobre as divergências em relação à teoria da revolução no itinerá rio do pensamento de Marx,
UTOPIA E DIREITO
O papel das superestruturas, dentre as quais o direito, nesta pro¬
posta da análise marxista, é bastante importante. O direito não se presta
apenas como elemento que se reiteraria tanto no capitalismo quanto
em qualquer sociedade pós-revolucionária, de sorte que até mesmo se
pudesse esboçar algum socialismo jurídico dentro do capitalismo. Pelo
contrário, o papel exercido pelo direito no capitalismo é vital, na me¬
dida em que, por meio das categorias jurídicas, do sujeito de direito e
do contrato, por exemplo, dá-se a própria estruturação do sistema.
Assim, as forças produtivas e a superestrutura, como o direito, hão de
se revelar necessárias e dialéticas em face das relações de produção,
implicando-se mutuamente. A proposta de Pachukanis, de considerar
o fim do capitalismo o fim do direito, explica-se por essa vertente de
interpretação do marxismo, mais fiel a O Capital.
O resultado dessa visão dialética entre forças produtivas e rela¬
ções de produção é o extremo refinamento teórico da posição de Marx
na maturidade, em O Capital, tendo em vista que tal implicação mú¬
tua abre campo à ação revolucionária, e não ao mero mecanicismo da
evolução histórica. Numa visão mecanicista do pensamento de Marx,
poder-se-ia interpretar que o mero agravamento das contradições le¬
vasse ao fim do capitalismo, por força de uma instabilidade inerente às
relações de exploração do capital. A perspectiva económica de Marx,
no entanto, se baseia em outros pressupostos e, nessa dialética, conduz
sua interpretação da revolução para os quadrantes da luta de classes.
Nesse ponto, revela-se um importante humanismo, de nível profun¬
do, na perspectiva política, económica e filosófica de Marx: não se
Carlos Nelson Coutinho enxerga duas possíveis visões paradigmáticas, uma mais apropriada
ao jovem Marx, outra ao Marx maduro, respectivamente: a revolução como ruptura imediata
ou como um processo contínuo, ligando-se ao problema da tomada do poder do Estado e de
seu perecimento. "A depender do modo 'restrito' ou 'amplo' de conceber o Estado, resulta -
na história da teoria pol ítica marxista - a elaboração de dois diferentes paradigmas de revolu¬
ção socialista , que definiria esquematicamente como 'explosivo' e 'processual'". COUTINHO,
Carlos Nelson. Marxismo c política. A dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo,
Cortez, 1996, p. 13.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
trata de considerar a revolução como escatologia mecânica e necessá¬
ria a partir de dados pré-estabelecidos, mas sim como luta e praxis
transformadora. A revolução, pois, se faz e não se espera.
A DIALÉTICA DO PROGRESSO
É possível identificar, permeando a obra de Marx, inúmeras re¬
flexões a respeito do sentido da história. Revelam as possíveis diferen¬
ças e ambigiiidades de interpretação em relação ao progresso. Tradici¬
onalmente, é contra Engels que se volta a crítica do século XX, acu¬
sando-o de, na parte final do século XIX, ter convertido o marxismo
numa espécie de positivismo ou num tipo de determinismo similar ao
dos estudiosos da natureza. Engels seria a base do mecanicismo que
depois foi denominado por materialismo vulgar.
Há também, no entanto, uma dialética conflituosa do conceito
de progresso não só em Engels ou nos intérpretes do marxismo, mas
também dentro da própria reflexão de Marx. Porém, tal dialética não
se resolve facilmente pela oposição do jovem Marx ao pensador da
maturidade, porque, atravessando sua obra, está sempre presente o
problema da determinação do sentido histórico e da forma de apreci¬
ação da posição do capitalismo em face de outros modos de produção.
Em grande parte de sua obra, Marx se pronuncia por uma posi¬
ção aberta em relação ao sentido da história e do progresso, o que
encaminha sua análise para a refutação da necessariedade da evolução
e do progresso. No Manifesto Comunista, exprime claramente a possi¬
bilidade de o conflito de classes e a evolução das forças produtivas
degenerarem. A alternativa da superação dos conflitos, portanto da
revolução, não é o único passo da história, nem está garantida por leis
económicas necessárias, havendo a possibilidade do perecimento:
UTOPIA E DIREITO
Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mes¬
tre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e
oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra
ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que ter¬
minou sempre, ou por uma transformação revolucionária da
sociedade inteira, ou pela destruição das suas classes em luta.27
Expressa assim Marx a revolução como possibilidade, e não como
necessidade histórica. Ao mesmo tempo, não se trata apenas de dizer
que aquilo que revoluciona é, necessariamente, um progresso no sen¬
tido de conquista à qual não se oponha crítica. Na análise da formação
económica capitalista, Marx há de verificar, ao mesmo tempo, o pro¬
gresso e a decadência, a evolução e o retrocesso. O fluir da história e
da revolução, pois, não é necessariamente o galgar do melhor. O capi¬
talismo, desse modo, como revolução das estruturas produtivas feu¬
dais, é ao mesmo tempo a destruição da velha dominação e a ocorrên¬
cia de uma nova, expressando, historicamente, o melhor e o pior que a
história já possa ter conhecido, ao mesmo tempo.
A burguesia desempenhou na história um papel eminente¬
mente revolucionário. Onde quer que tenha conquistado o
Poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais, patriar¬
cais e idílicas.Todos os complexos e variados laços que prendi¬
am o homem feudal a seus “ superiores naturais” ela os despe¬
daçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para
homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do “ paga¬
mento à vista” . [...] A burguesia só pode existir com a condi¬
ção de revolucionar incessantemente os instrumentos de pro¬
dução, por conseguinte, as relações de produção e, com isso,
todas as relações sociais. [...] Dissolvem-se todas as relações
sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e
de idéias secularmente veneradas; as relações que as substitu-
27 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. Vol. I . São Paulo, Alfa-Ômega, s/d, p. 22.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
em tornam-se antiquadas antes de se ossificar.Tudo que era
sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado,
e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenida¬
de suas condições de existência e suas relações recíprocas.28
A possibilidade de entender o modo de produção capitalista como
sendo, ao mesmo tempo, o ápice do melhor e do pior na história, dá
margem a uma compreensão do progresso em Marx como evento aber¬
to, não vinculado aos determinismos evolucionistas que foram típicos
no século XIX. Antecipando, de certa forma, a crítica ecológica ao
capitalismo, Marx aponta em O Capital-.
Além disso, todo progresso realizado na agricultura capitalis¬
ta não é somente um progresso na arte de exaurir o trabalha¬
dor, mas também na arte de exaurira terra, e cada passo que se
dá na intensificação de sua fertilidade dentro de um período
de tempo determinado é, por sua vez, um passo dado no es¬
gotamento das fontes perenes que alimentam tal fertilidade.
Este processo de aniquilação é tão mais rápido quanto mais se
apoia um país, como ocorre por exemplo com os Estados Uni¬
dos da América, sobre a grande indústria, como base de seu
desenvolvimento. Portanto, a produção capitalista só sabe de¬
senvolver a técnica e a combinação do processo social de pro¬
dução esgotando ao mesmo tempo as duas fontes originais de
toda riqueza: a terra e o homemP
Ao mesmo tempo em que se revela a abertura para o progresso e
a evolução histórica como possibilidade, em várias passagens, desde as
obras da juventude até as da maturidade, Marx deixa entrever uma
espécie de valoração positiva do progresso, podendo-se perceber, ain¬
da, um papel generoso ao capitalismo nesta evolução. Sempre há de se
ressaltar, neste sentido, a admiração de Marx por Darwin, o que daria
28 Ibid., pp. 23 e 24.
29 MAKX, Carlos. £/ Capital. Vol. 1. México, Fondo de Cultura Económica, 1982, p. 423.
UTOPIA E DIREITO
margem a uma inspiração do progresso histórico, em Marx, bastante
similar a uma evolução da natureza. Isto não representa dizer, no en¬
tanto, que Marx seja um positivista no sentido próprio do termo, nem
tampouco um ensaísta apologético do futuro.A aposta no futuro soci¬
alista parece se revelar, muito mais acertadamente, num cântico de
louvor à luta pelo futuro, o que representa, ainda ao final, dizer que a
história é aberta e o progresso é possibilidade. A luta socialista é que
seria a responsável por sua concretização.
Marx desautoriza, assim, a ideia de que as forças produtivas da
sociedade comunista constituam-se no interior do capitalismo,
que elas possam ser as mesmas forças produtivas do capitalis¬
mo, que, por força das contradições inerentes a esse modo de
produção, vão se tornando cada vez mais socializadas, cabendo
à sociedade comunista tão-somente receber essas forças produ¬
tivas completamente adequadas a ela, e as quais, libertadas das
relações de propriedade (capitalistas) que as entravavam, po¬
dem agora expandir-se livremente.Ao contrário dessa concep¬
ção mecanicista e evolucionista do processo histórico, as análi¬
ses de Marx permitem apreender que as forças produtivas de¬
pendem sempre da luta de classes, que elas nunca se desenvol¬
vem independentemente das relações de produção.30
Um passo bastante favorável à inexorabilidade do progresso, situ¬
ando-o num âmbito similar ao da natureza, ocorrerá, um pouco mais
tarde, com o pensamento de Engels. A admiração de Marx por Darwin
é o pano de fundo para posições que sustentarão um certo
evolucionismo da história- e, portanto, o determinismo da revolução
socialista - que não foram típicas apenas de Engels, mas também de
personagens dos primeiros tempos do marxismo como Kautsky e
Lafargue, genro de Marx.
30 NAVES, Márcio Bilharinho. Marx. Ciência e Revolução, op. cit, p. 80.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
Essa aproximação entre a concepção da história elaborada por
Marx e as ideias de Darwin (abusivamente deslocadas da bio¬
logia para as ciências sociais) tinha como conseqiiência um
excessivo fortalecimento da continuidade na história (o novo
não irrompia subversivamente, era apenas um desdobramen¬
to “ natural” do que já existia, quer dizer, era uma decorrência
do crescimento do “ embrião” ).31
É de se ressaltar, no entanto, que, se a posição dos marxistas sobre
o pensamento de Marx, logo nos tempos posteriores de seus escritos,
era a de uma inexorabilidade da revolução, posteriormente tal confi¬
ança ou se refina ou se transforma, mesmo, em uma espécie de crítica
ao progresso. Rosa Luxemburgo, ao se pronunciar a respeito das alter¬
nativas da revolução ou da barbárie,32 é o exemplo cristalino de que o
marxismo não-mecanicista não prosseguiu acompanhando a interpre¬
tação da inexorabilidade histórica da revolução, que, de resto, não se
revelou a única nem a melhor leitura do próprio Marx.
A UTOPIA EM MARX
A utopia em Marx é, mais que um tema, um resultado implícito
- e raras vezes por ele próprio explicitado - de seu pensamento e do
apontamento de sua praxis política.33 Por isso, não é um sistema fe-
31 KONOER, Leandro. O futuro da filosofía da praxis. Rio de laneiro, Paz e Terra, 1992, p. 65.
32 "Mesmo em obras de forte caráter economicista como Reforma social ou revolução?, A acumu¬
lação do capital e a Anticrítica, em que insiste na teoria do colapso, Luxemburg repete que o
socialismo não resulta automaticamente das contradições objetivas do capitalismo, que é
necessá rio o 'conhecimento subjetivo, por parte da classe operá ria, da inelutabilidade da
supressão da economia capitalista por meio de uma revolução (Umwálzung) social'. Ou seja,
ela compreendeu, desde o início de sua carreira política, que a economia por si só não levará
ao socialismo". LOUREIRO, Isabel Maria. Rosa Luxemburg. Os dilemas da ação revolucionária.
São Paulo, Ed. Unesp, 1995, p. 33.
33 "Retomando a expressão de Marx no Dezoito Brumário, é ciara que os homens estão limitados
pelas condições herdadas do passado, no entanto, eles fazem a história, não fazem apenas
repetir o que se sabe, cada geração faz algo diverso. (...|Trata-se da ação em que os homens
são capazes de criar o novo, os projetos iluminadores da criação de uma nova sociedade. São
os sonhos de sonhar acordado que propiciam isto, são as utopias". LORES, losé Reinaldo de
Lima. Direito e transformação social. Belo Horizonte, Nova Alvorada, 1997, p. 62.
UTOPIA E DIREITO
chado, e sim uma abertura decorrente da tomada de posição em face
da sociedade e da história.
Pode-se perceber, no itinerário do pensamento de Marx, fases
bastante claras quanto à proposta da utopia. Em suas obras iniciais, o
socialismo utópico é-lhe uma referência fundamental, ainda que seja,
no mais das vezes, como nas suas obras da década de 1840 - o Mani¬
festo Comunista., por exemplo — , para negá-lo em face de uma suposta
cientificidade revolucionária.O pensamento de Marx, nesta fase, opon¬
do um socialismo científico ao até então existente socialismo utópico, é
o que anima Engels até o final de sua vida a manter e a aprofundar a
cisão entre essas duas correntes do socialismo.
No entanto, na fase madura do pensamento marxista, há um salto
qualitativo que, se representa de um lado abandonar a temática explíci¬
ta da utopia, parece, pelo contrário, melhor delineá-la na medida em
que ela passa a ser a resultante necessária e óbvia do processo de crítica
do capital e de revolução social. Deixando de lado o binómio socialismo
utópico versus socialismo científico, Marx mergulha estruturalmente nas
entranhas do capital para analisar as formas de sua superação numa
economia que seja resultante da mudança das relações de produção e
do desenvolvimento das forças produtivas. É neste ponto que a utopia
em Marx, estando encoberta, mais se ressalta: as contradições do capita¬
lismo restam, em seu pensamento, insolúveis. Assim sendo, há um im¬
pulso dialético de superação que arrasta a ação político-revolucionária a
um patamar de expectativa e de delineamento de um futuro de solução
dos impasses e da insolubilidade do capitalismo.34
Demonstra-se, assim, que Marx rechaça o socialismo utópico

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