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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL Lil ian Keli Rech ABRINDO A CAIXA DE PANDORA: O desvelamento do abuso sexual contra a criança e o adolescente Florianópolis, 2005. 2 Dissertação de Mestrado Abrindo a Caixa de Pandora: O desvelamento do abuso sexual contra a criança e o adolescente Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Serviço Social da UFSC como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Serviço Social pela aluna: Lilian Keli Rech. Profª Drª Catarina Maria Schmickler Orientadora Florianópolis, março de 2005. 3 Lilian Keli Rech Abrindo a Caixa de Pandora: O desvelamento do abuso sexual contra a criança e o adolescente Essa dissertação de mestrado foi examinada e julgada adequada para a obtenção do t í tulo de Mestre em Serviço Social e aprovada na sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 18 de março de 2005. Profª Drª Catarina Maria Schmickler Coordenadora do PPGSS/UFSC Banca examinadora Profª Drª Catarina Maria Schmickler Orientadora Profª Drª Ingrid Elsen 1ª Examinadora Profª Drª Josiane Petry Veronese 2ª Examinadora 4 Dedico este trabalho para Rosa e João, meus nonos, in memorian . 5 “Conte a eles que você jamais é realmente uma pessoa inteira se permanece em silêncio, porque há sempre aquele pedacinho dentro de você que deseja ser verbalizado, e se você continua ignorando-o, ele f ica cada vez mais indignado, e se você não falar, um dia ele simplesmente vai levantar e soqueá-la na boca, vindo de dentro”. (AUDRE LORDE, Sister Outsider, 1984) 6 Resumo Esta dissertação tem como objeto o abuso sexual contra a criança. O objetivo foi o de reflet ir sobre o processo de desvelamento do abuso denunciado na insti tuição governamental SOS Criança do município de Florianópolis. O método, quali tat ivo de abordagem exploratória, uti l izou a pesquisa documental como instrumento para a coleta de dados, tendo sido discutidas quatro categorias centrais: o contexto do abuso, o segredo, o contexto do desvelamento e, a denúncia. O universo da pesquisa consti tuiu as 175 denúncias registradas no ano de 2003. A amostra de 19 dossiês foi selecionada com base no cri tério de diagnóstico posit ivo para abuso sexual intrafamiliar por agressor convivente (à vít ima). Os resultados revelaram que os abusos aconteceram dentro do que denominamos vulnerabil idade de contexto, abrangendo a tr íade: vulnerabil idades l igadas à criança, associação de outras violências familiares e, estabelecimento de segredo. O desvelamento dos abusos ocorreu especialmente em razão da comunicação das crianças e pela interdição do abuso por pessoas do entorno, o que desencadeou circuitos que culminaram em denúncias. Conclusões: Encontramos no padrão familiar abusivo o principal vetor do contexto de vulnerabil idade que ambientou o abuso sexual. Ao invés de o abusador proteger e capacitar a criança vulnerável, esta fragil idade foi usada para alcançar seu desejo criminoso. O medo foi o elemento gerador do segredo e foi gestado em uma trama de sanções, ameaças e represálias ocultas tanto pelos agressores, como por outras pessoas que concorreram direta ou indiretamente para as violências. Uma intenção somada a uma ação de interdição do abuso, pela criança ou outrem, traduziram o protagonismo pelo qual o processo de desvelamento foi possível . A denúncia foi um instrumento privilegiado para o diagnóstico do abuso sexual, e, a intervenção sobre ela pode ser igualada a equação de um mapa enigmático com "hieróglifos" complexos que revelam poderes perversos de adultos sobre crianças. Por este motivo, o trabalho a part ir das denúncias requer uma polí t ica de atendimento art iculada pelos eixos da defesa e da responsabil ização, com controle de resultados. Palavras chave : Abuso sexual, criança, segredo, denúncia, desvelamento. 7 Abstract The theme of this dissertat ion is the sexual abuse against child. The objective was to reflect on the process of exposing the abuses denounced in governmental insti tution “SOS Criança” in the city of Florianópolis. The method, quali tat ive of exploratory approach, used the research documentary as primary instrument for the collection of data, and four main categories have been considered: the context of the abuse, the secret , the context of the exposing and, the denouncing. The universe of the research had been the 175 denouncing registered during the year of 2003. The sample of 19 dossiers was selected on the basis of the cri terion of affirmative diagnosis for inter- familiar sexual abuse for accomplice aggressor. The results have noticed that the abuses had happened inside of we call vulnerable context, enclosing the tr iad: child’s vulnerabil i ty, associated with other familiar violence and secret’s establishment. The child’s communication and the interception of the abuse by people around the child were the mainly reasons for exposing the abuses and they unchained circuits that had culminated in denunciations Conclusions: It was found in the abusive familiar standard the main factor of the vulnerabil i ty context that enables the sexual abuse. Instead of the abuser protects and capacitates the vulnerable child, the child’s fragil i ty was used to reach the abuser’s criminal desire. The fear was the generating element of the secret and was created in a middle of sanctions, coercions and revenge; they are hidden not only by the aggressors but also by other people who had concurred direct or indirectly for the violence. An intention added to a discontinuation of the abuse, ei ther the child or another people had been the protagonist for which the exposing process was possible. The denouncing was a privileged instrument for the diagnosis of the sexual abuse, and, i ts complexity can be equalized to an enigmatic map with complex “pictorial symbols" that reveal the adults’ perverse power upon children. For this reason, the work from the denunciations requires an attendance poli t ic art iculated for the protection axles and the entrust , with the control of the results. Key words: Sexual abuse, child, secret , denunciation, exposing. 8 Sumário Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .14 Capítulo 1. A Denúncia de Abuso Sexual contra as Crianças e os Adolescentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .20 1.1 Um mapa enigmático nas mãos, um campo minado sob os pés: a averiguação de denúncias pelo Serviço Social em Florianópolis. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .20 1.1.1 O atendimento de denúncias e as dificuldades para a suspeição da violência sexual. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .24 1.1.2 O atendimento de denúncias e as questões l igadas ao profissional do Serviço Social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29 1.1.3 Algumas implicações polí t ico-insti tucionais no atendimento de denúncias. . . . . . .33 1.2 A dinâmica do abuso sexual intrafamiliar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .36 1.2.1 O segredo na relação abusiva.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .44 1.2.2 Desfechos do abuso sexual. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .54 1.2.3 O processo de desvelamento.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .57 Capítulo 2. O Contexto da Ocorrência e do Desvelamento do Abuso Sexual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .61 2.1 A metodologia da pesquisa.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .61 2.1.1. A história dos abusos.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .65 2.2 O contexto do abuso sexual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .76 2.2.1.QUEM estava envolvido nos abusos?.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .76 2.2.2 ONDE e QUANDO aconteciam: a ambientação dos abusos.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .92 2.2.3 O QUÊ e COMO aconteceram?.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .98 2.2.3.1. Segredo: Formação e manutenção.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .101 9 2.3 O contexto do desvelamento do abuso sexual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .108 2.3.1 Origens do desvelamento.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .109 2.3.2 Circuitos de desvelamento.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .117 2.3.3 A denúncia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .122 2.3.4 Os tempos insti tucionais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .130 Considerações f inais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .135 Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .140 Anexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .152 Apêndice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .161 10 Listagem de siglas APOMT: Aviso por Maustratos contra Crianças e Adolescentes BO: Boletim de Ocorrência CT: Conselho Tutelar DP: Delegacia de Polícia OG: Organização Governamental RAIVVSF: Rede de Atenção Integral às Vítimas de Violência Sexual do Município de Florianópolis 11 Listagem de quadros Quadro 01: Alguns desfechos possíveis de um abuso sexual intrafamiliar Quadro 02: Status da denúncia Quadro 03: Sexo e idade das vít imas Quadro 04: Singularidades de algumas vít imas Quadro 05: O agressor Quadro 06: Convivência entre vít ima(s) e agressor Quadro 07: Históricos familiares de violência contra crianças I Quadro 08: Históricos familiares de violência contra crianças II Quadro 09: Local de ocorrência dos abusos Quadro 10: Oportunidade para abusar Quadro 11: Freqüência do abuso Quadro 12: Natureza dos Abusos Quadro 13: Elementos de segredo: construção e manutenção Quadro 14: A Segunda pessoa de confiança Quadro 15: Circuitos do desvelamento Quadro 16: Chegada da denúncia ao SOS Criança Quadro 17: Tempos de aguardo de atendimento dos casos nas insti tuições Quadro 18: Situação atual dos casos 12 Apêndice Apêndice 01: Pseudônimo das Vítimas Pesquisadas 13 Anexos Anexo 1 - Tipificação de Crimes Sexuais no Brasil Anexo 2 - Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSC 14 Introdução “Casal preso dia 8 deste mês, em Pouso Redondo. O homem é acusado de estuprar a enteada, de nove anos; a mulher, de ser conivente.” (Jornal Diário Catarinense, 17/11/2002) Como uma denúncia que pode resultar em uma notícia de jornal como esta chega até os serviços de proteção? Como um abuso sexual é desvelado? Quem denuncia? Qual o teor da denúncia? Quais os argumentos, ou ainda, quais os elementos de suspeição de violência sexual que consubstanciam uma denúncia passível de averiguação? Como o denunciante teve acesso às informações? Como o SOS Criança1, operacionalizado pela Prefeitura Municipal de Florianópolis - atuante no recebimento e no atendimento de denúncias de violência contra crianças e adolescentes - interage com o denunciante? Como inicia o atendimento da denúncia registrada? Quais dificuldades pode encontrar? Ao abrir a "Caixa de Pandora2" do abuso sexual contra crianças e adolescentes através da pesquisa que consubstancia esta dissertação, pretendemos auxil iar na compreensão de como o abuso ocorreu e de como ele foi desvelado aos olhos do denunciante e dos serviços de proteção. Para tanto, investigamos parte das denúncias 1 O SOS Criança faz par te do Programa Sentinela do município de Flor ianópolis , locus da pesquisa. É uma extensão do Plano Nacional de Enfrentamento à Violência e Exploração Sexual , vinculado ao Governo Federal , Ministér io da Assistência Social . O plano está disponível em: ht tp: / /www.mj .gov.br /exploracao/plano.htm 2 A Caixa de Pandora é uma figura da trama da mitologia grega e simboliza a pr imeira mulher na Terra (Pandora) , que chega ao mundo com uma caixa: um cast igo de Zeus para os homens. A caixa, quando aber ta , deixa escapar muitos males, como dor , ódio , morte e desunião. Mas, também presa à caixa está a esperança . Aqui, lançamos mão da Caixa de Pandora como metáfora para a denúncia de violência sexual: uma denúncia pode trazer contíguos sentimentos e fatos negativos, como o medo, a raiva, o desconfor to , aquebra dos mitos famil iares, mas acreditamos que também pode trazer a esperança. A esperança do fim do abuso sexual . Consultar : ht tp : / /www.centroreichiano.com.br/ar t igos/anais/Sandra%20Mara%20Volpi .pdf (Acesso em 20/01/2005) . 15 de abuso sexual3 registradas em 2003 em Florianópolis, assim como os respectivos Prontuários de atendimento contendo os registros dos Assistentes Sociais que averiguaram a veracidade das informações e desencadearam ações, no caso de uma confirmação. Neste trabalho, conceituamos a "denúncia de violência sexual como o exercício de cidadania no qual, todo e qualquer cidadão deve informar para os serviços de proteção um fato ou suspeita de crime sexual contra crianças ou adolescentes de que tenha conhecimento4", para que a si tuação seja averiguada desencadeando ações de proteção, defesa e responsabil ização cabíveis. A denúncia costuma ter sua gênese em alguma forma de desvelamento do abuso sexual, ocasião em que o denunciante, frente a uma determinada si tuação, suspeita e decide denunciar. Desde o registro da denúncia até seu atendimento, identificamos interlocuções importantes, que nos ajudam na compreensão do processo de desvelamento que inclui a denúncia. A primeira interlocução ocorre entre a pessoa que suspeita ou afirma a ocorrência de um abuso sexual e o serviço de proteção, através do operador do disque- denúncia que faz o registro da denúncia. Trata-se de um momento delicado e crucial implicando, de um lado alguém com uma informação que, se confirmada, aponta para uma criança/adolescente com direitos já violados e em risco de revit imização, e de outro, alguém responsável por captar e registrar com precisão de detalhes esta informação. 3 Para Guerra (1996, p .8) vi t imização sexual ou abuso sexual contra cr ianças e adolescentes é “todo ato ou jogo sexual , re lação heterossexual ou homossexual , entre um ou mais adultos e uma cr iança ou adolescente menor de 18 anos, tendo por final idade est imular sexualmente a cr iança ou ut i l iza-la para obter uma est imulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa”. 4 Optamos por este conceito de denúncia, haja vista t rês argumentos: o pr imeiro , por entendemos que o ar t igo 18 da Lei 8069/90 resume os demais ar t igos do Estatuto da Criança e do Adolescente, uma vez que explíci ta ou implici tamente tratam da questão. São eles: Art igos 13, 18, 56, 70 e 245, como também os ar t igos 15, 16 e 17, uma vez que a própria cr iança ou adolescente pode lançar mão deste recurso para reclamar sua proteção em caso de violação. O segundo, baseadas no fluxo estabelecido entre o SOS Criança de Flor ianópolis e o Conselho Tutelar , em que o pr imeiro , após a aver iguação da denúncia, repassa o diagnóst ico da mesma, via relatór io , cumprindo assim, o disposto do ar t igo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O terceiro considera os dados da pesquisa “A denúncia pelos olhos do denunciante” (AHLERT et a l l . , 2003) , os quais revelam que os denunciantes entrevistados consideram sua ação como um “ato de cidadania”, que corresponde a um “dever do poder público” em prestar o devido atendimento à si tuação denunciada. 16 O registro na ficha de denúncia pode ser comparado a um mapa enigmático , pelo qual o assistente social vai referenciar seu trabalho estabelecendo os caminhos para averiguar as informações, abrindo espaço para a segunda interlocução : desta fei ta com a família e as demais pessoas envolvidas. A complexa si tuação que costuma se configurar é a de um profissional num campo minado com um mapa enigmático nas mãos , metáfora que i lustra um momento do processo de trabalho do assistente social que tem a responsabil idade de averiguar uma denúncia de abuso sexual contra uma criança ou um adolescente. Está, pois, num terreno insóli to repleto de poderes e interesses confli tantes uma vez que se trata de um assunto proibido, envolvendo segredos, tabus, ameaças e crimes previsionados a sanções legais. Qualificando este terreno no qual intervém o profissional como um campo minado , encontramos a interposição de certas condições que tornam o processo de atendimento de uma denúncia um trabalho difíci l e complexo (PALOMERO, 2002; FALEIROS, 2003b), uma vez que este tem como desafio a missão de transformar a denúncia em um diagnóstico, o que, por um lado, pode redundar no seu arquivamento - no caso de não se confirmarem as suspeitas – ou, pode desencadear as ações do complexo de proteção, defesa e responsabil ização - no caso de confirmação das suspeitas. Este metier é, não sem freqüência, soli tário, em razão de defasadas equipes multi e interdisciplinares e é, ainda, fragil izado pela restrição de recursos necessários para um trabalho competente. Por outro lado, a inoperância de uma rede5 inst i tucional (MORALES e SCHRAMM, 2002) e a existência de uma pressão psicológica sobre o profissional para abreviar o processo de averiguação das denúncias em razão de uma “fi la de espera6" também são condições insti tucionais recorrentes vivenciadas pelos técnicos. No centro destas questões está o técnico enquanto servidor público e mediador de parte das conturbadas relações entre os atores mencionados no art igo 4º do Estatuto 5 Moratel l i et a l l (2003) desenvolveram uma pesquisa em 2003 junto aos técnicos do Programa Sentinela de Flor ianópolis , sobre os fatores de estresse no trabalho, identificando os três fatores mais apontados: a morosidade da just iça, a deficiência na integração entre os serviços da rede de atendimento às cr ianças e adolescentes vi t imizados e , a fal ta de apoio da própria famíl ia da ví t ima. 6 Na data de 25 de janeiro de 2005, 77 denúncias de abuso sexual aguardavam atendimento (fi la de espera) no SOS Criança de Flor ianópolis . 17 da Criança e do Adolescente7, ou seja, a Família, a Sociedade (denunciante e outros) e o Estado (SOS Criança e demais insti tuições públicas envolvidas). Diante desta complexidade, o Assistente Social deve estabelecer objetivos profissionais, para além dos objetivos insti tucionais da intervenção, uma vez que ambos podem ser discrepantes. Isto implica dizer que muitas vezes a insti tuição não disponibil iza ao profissional os recursos adequados para o atendimento de uma denúncia, e este, como resposta, tem a opção de circunstancializar seu parecer social sobre tais l imites insti tucionais, como também construir metodologias de atendimento e desenvolver estudos que fomentem a reorientação insti tucional. Enfim, os objetivos profissionais podem qualificar os objetivos insti tucionais. Um mapa enigmático retrata uma denúncia que em geral é desenhada em esboço pelo denunciante, contendo informações de cunho sexual abusivo, muitas vezes dúbias ou descri tas em meias-palavras; indicações de pessoas protetivas8 e “perigosas” para a criança e o relato de falas, sinais e códigos familiares, ou, ainda, si tuações de fora do contexto familiar. É a comunicação cifrada e em “migalhas” de um possível abuso sexual de criança e/ou adolescente, que requer a providência da verificação9. O Assistente Social interpretará estas informações preliminares, contidas na ficha da denúncia, para planejar sua intervenção junto à família, trabalho este que pode ser 7 “É dever da famíl ia , da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar , com absoluta pr ior idade, a efet ivação dos direi tos referentes à vida, à saúde, à al imentação, à educação, ao esporte , ao lazer , à profissionalização, à cul tura, à d ignidade, ao respeito, à l iberdade e à convivência famil iar e comunitár ia ( . . . )” Lei 8069/90 ar t igo 4º. 8 Pessoas protetoras ou pessoas protet ivas à cr iança vi t imizada são termos usuais entre técnicos de serviços e órgãos de proteção, e se referem a pessoas do convívio da cr iança (famil iares ou não) capazes de assumir ati tudes concretas e contundentes de proteção, d iante de uma si tuação aversiva, como uma surra , uma ameaça ou um abuso sexual . No trabalho junto às denúncias, geralmente o diagnóst ico real izado pelos técnicos elenca os fatores de r isco e os fatores de proteção relacionados à recidiva da violência , e , dentre os fatores de proteção, as pessoas protet ivas são imprescindíveis para a ar t iculação de uma rede de proteção social para a cr iança. Os técnicos costumam manter expectat ivas em relação às pessoas protet ivas , no sentido destas serem elei tas pela cr iança como pessoas de confiança , a ponto de comunicarem outras ou novas violências. 9 Uti l izamos aqui alguns termos como “estudo social da denúncia”, “atendimento de denúncias”, “ver ificação social de denúncias”, “invest igação psicossocial das denúncias” (quando envolve profissionais de Serviço Social e Psicologia) ou ainda “aver iguação de denúncias”. Contudo, na maior par te dos casos atendidos, a lém de os técnicos buscarem a verdade relacionada ao fato denunciado, e les se deparam com outras necessidades que precisam ser supridas junto a famíl ia ou das pessoas envolvidas na denúncia, sendo que tal terminologia não dá conta de traduzi-los. Providências como cuidados de saúde, encaminhamentos na área da educação formal e extra-escolar , documentação, emprego, a l imentação, registro policial (Bolet im de Ocorrência) , entre outros, são absolutamente usuais no cotidiano dos serviços prestados pelo SOS Criança. 18 impedido, dificultado ou facil i tado em razão das informações oferecidas pelo denunciante e da qualidade do registro feito. A intervenção tomará a direção da equação do mapa enigmático , chegando ao diagnóstico de ocorrência e impacto do abuso. O trabalho que apresentamos estudou estes mapas , com suas histórias de violência esclarecidas, no propósito de conhecer o processo de vit imização e como ela se desvelou a ponto de ser denunciada. O objetivo candente foi encontrar os "elementos emancipadores" na dinâmica do abuso sexual, responsáveis por fazer eclodir o segredo deste abuso. Nossa contribuição para a pesquisa está: 1) no fomento de metodologias de atendimento de denúncia, não apenas para o Serviço Social , mas para todas as disciplinas que compõem os serviços de proteção, assim, contemplando o art igo 87, inciso III10 do Estatuto da Criança e do Adolescente; 2) nas reflexões acerca dos casos subnotificados ou escondidos pela cifra oculta das violências, cujas vít imas dispõem de menos oportunidades para revelar seu sofrimento, como os bebês, sem o recurso da l inguagem, crianças portadoras de deficiência e doença mental , desacreditadas e até mesmo os meninos, desprotegidos pela homofobia; e, 3) no fomento aos serviços de prevenção, ainda uma miragem na nossa realidade. Nesta proposta, dividimos o trabalho em dois capítulos, sendo que o capítulo 1 discute o trabalho de atendimento de denúncias de violência sexual sob três lentes: a ( in) suspeição da violência sexual; aspectos da profissão do Serviço Social; e, questões polí t ico-insti tucionais relacionados. Neste capítulo também apresentamos algumas reflexões sobre a dinâmica familiar sexualmente abusiva, part indo de idéias de autores como Tillman Furniss, Reynaldo Perrone e Martine Nannini e Evan Imber- Black. No capítulo 2, apresentamos os dados da pesquisa em três tópicos. O primeiro faz um relato do processo metodológico, do t ipo de pesquisa (documental) , dos cri térios para o recorte da amostra inicial (70 prontuários), da forma de apresentação dos resultados, entre outros. 10 Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90): "Art . 87 São l inhas de ação da polí t ica de atendimento: I I I – serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às ví t imas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão; . . ." 19 O segundo tópico buscou retratar as 19 histórias de abuso intrafamiliares, através de contextos11 que incluem elementos objetivos como local de ocorrência dos abusos, dados censitários das pessoas envolvidas e factuais, como também elementos mais subjetivos, como histórico familiar de violências, circunstâncias de convivência entre as vít imas e seus agressores, e estabelecimento de pactos de segredo. O terceiro tópico, âmago da pesquisa, apresenta o contexto em que o abuso sexual foi descoberto e, de alguma maneira, interditado por pessoas do entorno da criança: o contexto de desvelamento do abuso. Procura mostrar o encadeamento de percepções, comunicações e ações frente ao abuso, por parte de diferentes pessoas que dele tomam conhecimento (incluindo as próprias crianças vit imizadas) até chegar a denúncia e aos serviços e órgãos de proteção. No espaço das considerações finais, reflet imos sobre a vulnerabil idade da criança vít ima no lar e, sobre a possibil idade de emancipação desta frente ao abuso do adulto, quando ela consegue comunicá-lo para pessoas sensíveis que a ouçam, nela crêem e a ajudem. 11 A teci tura de um contexto de abuso sexual envolve muitos " fios" de diferentes nuances, como as questões psicológicas, cul turais , comunitár ias, sociais entre tantas outras, a lgumas ci tadas neste t rabalho e outras não ci tadas. Mesmo cientes dessas restr ições na abordagem do abuso sexual , optamos por ut i l izar o termo contexto , uma vez que nos passa a idéia de um resultado de elementos diferentes que se complementam, noção coerente no caso do contexto do abuso, como no caso do contexto do desvelamento. No contexto do abuso, a t r íade vulnerabil idade, poder adultocêntr ico e dependência parental , são elementos circunstanciais para a ocorrência do abuso intrafamil iar . No contexto do desvelamento, a t r íade comunicação, confiança e proteção são elementos circunstanciais favoráveis ao rompimento do segredo. 20 CAPÍTULO 1 A DENÚNCIA DE ABUSO SEXUAL CONTRA AS CRIANÇAS E OS ADOLESCENTES 1.1 Um mapa enigmático nas mãos, um campo minado sob os pés: a averiguação de denúncias pelo Serviço Social em Florianópolis. Os munícipes de Florianópolis atualmente podem lançar mão de algumas alternativas para comunicar um crime sexual12 contra crianças e/ou adolescentes13, a f im de receberem atenção insti tucional; ou seja: 1. Dirigir-se à Delegacia de Polícia14 mais próxima do local onde ocorreu o fato, e efetuar o Registro de Ocorrência Policial; 2. Dirigir-se à Promotoria Pública ou Juizado da Infância e da Juventude15; 3. Entrar em contato com o Conselho Tutelar16; 4. Se houverem lesões físicas ou suspeita de lesões físicas, conduzir a vít ima ao Hospital Infanti l Joana de Gusmão caso tenha menos de quinze anos; ao Hospital Universitário ou Maternidade Carmela Dutra, no caso de a idade ser de quinze a dezoito anos; ou ainda, 5. Entrar em contato com o SOS Criança, serviço público que recebe denúncias através do disque-denúncia - fei tas pessoalmente ou por escri to - com a garantia de anonimato para o denunciante. 12 No ANEXO 1 l istamos a t ip ificação dos cr imes sexuais, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8 .069/1990) e no Código Penal (Lei nº 2 .848/1940) . Costa et a l l ( in MORALES, 2002) , emar t igo em que tece cr í t icas ao sistema judiciár io no tocante aos procedimentos relat ivos ao abuso sexual , coloca que "não é possível na sociedade de hoje, ter como referência , por exemplo, o Código Penal de 1940." ( Idem, p . 69) O autor problematiza a t ip ificação dos cr imes como não condizente com a real idade que se apresenta nos casos, em sua grande maior ia , sem marcas externas [ato l ib idinoso] . Ainda, que a despeito disso, na just iça penal , o exame de corpo de del i to ainda tem lugar como prova fundamental no processo de cr iminalização, em detr imento das avaliações psicossociais , muitas vezes ignoradas nos processos. 13 Na seqüência deste t rabalho ut i l izaremos o termo “cr iança” para designar cr iança e/ou adolescente, com o objet ivo de dar fluidez ao texto . 14 Flor ianópolis conta hoje com 10 Delegacias de Polícia , sendo que a 6ª DP tem caracter íst ica ‘especial izada’ de proteção à mulher , à cr iança e ao adolescente, denominada “Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente e à Mulher”. 15 O antigo “Juizado de Menores” foi implantado em Flor ianópolis em 1945. 16 Conselho Tutelar I lha ou Conselho Tutelar Continente. Implantados no município em 1994. 21 Os elementos de suspeição da violência são registrados nas fichas17 de denúncia as quais contêm especificidades de acordo com o t ipo de violência e do contexto onde esta ocorreu sendo que cada uma das cinco possibil idades acima apontadas poderá desencadear diferentes fluxos para a elucidação da violência, protegendo a vít ima e responsabil izando seu ofensor. É bastante comum o Juizado da Infância e da Juventude, os hospitais e os Conselhos Tutelares acionarem o SOS Criança para, em parceria, efetuar a verificação social da denúncia com o objetivo de diagnosticar a violência e prestar atendimento psicossocial à família. As Delegacias de Polícia também lançam mão deste recurso, porém com menor incidência. Em linhas bastante gerais, a verificação social da denúncia pelo SOS Criança compreende os seguintes procedimentos: a localização da criança e/ou adolescente e de seus responsáveis; o diagnóstico da suspeita de violência e de seus supostos atores; a identificação de elementos de risco e de proteção presentes no caso, assim como orientações e cuidados necessários dependendo da si tuação apresentada. Também desencadeia medidas de proteção, defesa da vít ima e responsabil ização18 do agressor 17 A f icha de denúncia do SOS Criança de Flor ianópolis tem 4 campos de informações, que são preenchidos de acordo com os dados fornecidos pelo denunciante, ou seja , dados de identificação e local ização: da(s) ví t ima(s) e seus responsáveis; do(s) suposto(s) agressor(es) ; do denunciante ( identificação opcional) ; e da si tuação, episódio e/ou ameaça eminente de violência . Noutras palavras, são preenchidos dados de identificação e dados ou elementos de suspeição da violência . A aber tura de uma denúncia requer um mínimo de informações que possa local izar , mesmo que indiretamente, a cr iança ou o adolescente e que traga informações sobre a violência que possam ser interpretadas como suspeita de violência ( física e/ou psicológica e/ou negligência e/ou sexual) . 18 Para reflet irmos a questão da responsabil ização de autores de cr imes contra cr ianças, buscamos amparo nos estudos de Pereira (2000) , acerca da responsabil idade . Segundo a autora, o termo traz uma idéia complexa, com diferentes conceitos que divergem no tempo e no contexto social . De forma geral , responsabil idade abstrai a idéia de dever , de obrigação de responder por algo. Relacionada ao dever jur ídico, o agir i r responsável estará l igado a sanções legais, e a 4 pressupostos, a saber : a) ação ou omissão; b) nexo causal (entre direi to e norma); c) imputabil idade e , d) sanções legais, indenizações, entre outras. Na ocorrência do abuso sexual intrafamil iar , muitas vezes encontramos a associação de responsabil idades, que vão além do próprio abuso sexual , e de seu autor . O agir i r responsável pode estar relacionado ao fato de parentes não agirem para proteger a cr iança, quando isso era possível , quando a mãe t inha conhecimento sobre o abuso e usava de violências para manter o si lêncio da cr iança. Neste sentido, a responsabil ização de que nos reportamos está l igada a todas os atos i r responsáveis relacionados às pessoas do entorno da cr iança, envolvendo o conjunto de ações cr iminais e civis d isponíveis na legislação. Também evidenciamos as medidas terapêuticas, com o objet ivo de transformação do padrão abusivo e capacitação para a responsabil idade na l ide com cr ianças, vinculadas ou não às sanções legais. Como exemplos de responsabil ização, nos reportamos a Frota ( in PEREIRA, 2000) , que defende a existência de varas cr iminais pr ivat ivas para processar e julgar pessoas acusadas da prát ica de cr imes 22 junto às demais insti tuições e programas de atendimento. Noutras palavras, a verificação social objetiva confirmar ou descartar o teor de violência denunciado e tomar as providências fundamentais. Uma denúncia pode ser comparada a um mapa, cujas informações costumam se apresentar distorcidas e confusas, precisando ser traduzidas num esforço para interpretá-las. Tanto mais claras e melhor apuradas estas informações, maiores e melhores serão as possibil idades de desvelamento da violência e das práticas interventivas de proteção e defesa de crianças e adolescentes vít imas, e mais rápida será a responsabil ização dos agressores. Nosso propósito foi conhecer o processo de desvelamento da violência sexual contra crianças, sem deixar de incluir a denúncia. A opção por esta modalidade de violência encontra razão no fato de esta possuir os símbolos mais cifrados e os elementos de suspeição mais peculiares dentre as demais formas de violência. A verificação social da denúncia culmina, necessariamente, em quatro si tuações: 1º- a não localização da vít ima (endereço incorreto ou mudança súbita da família); 2º- a localização da vít ima e a confirmação dos fatos; 3º- a localização dos envolvidos e a não confirmação da suspeita; e, 4º- a localização dos envolvidos e um diagnóstico impreciso frente às questões: o quê exatamente ocorreu?/ quem está envolvido?/ quando ocorreu?/ onde? e, especialmente, como? a violência teria ocorrido, ou seja, o desvelamento do abuso. contra cr ianças e adolescentes, e ações cíveis de indenização por dano mater ial e moral contra o autor do ato i l íc i to e todos os demais que t iverem concorr ido para sua prát ica, de forma independente da ação cr iminal e sem prejuízo de infrações administrat ivas. Pereira ( idem) fala do afastamento do agressor do lar (ar t igo 130 do Estatuto da Criança e do Adolescente) e da Convenção Internacional dos Direi tos da Criança e do Adolescente, que prevê no seu ar t igo 19, a inclusão de disposi t ivos legais que responsabil izem tais autores. Também cita o ar t igo 226 do Código Penal , que acresce a pena, em alguns casos de parental idade do agressor com a ví t ima. Um exemplo interessante de interação entre as medidas de proteção e as medidas de responsabil ização vem do CRAMI Campinas (Centro Regional de Atenção aos Maus-tratos na Infância) , c i tado por COSTA et a l l ( in MORALES, 2002) está no disposi t ivo metodológico junto ao trabalho com famíl ias incestogênicas: o caso recebe acompanhamento inst i tucional sócio-psico-jur ídico enquantodurar o processo cr iminal , chegando a somar 7 anos de intervenção, com comunicação entre os fluxos de proteção e responsabil ização. 23 Respostas incompletas, superficiais ou equivocadas a estas questões, por certo não confirmam e nem tampouco descartam a ocorrência de violência sexual19, fato que obstaculiza a definição de risco de recidiva da violência e a promoção de medidas de proteção, defesa e responsabil ização, como já apontamos. As fichas de denúncia contêm especificidades, de acordo com o t ipo de violência e do contexto onde esta ocorre ou ocorreu. Tais especificidades evidenciam que cada denúncia tem “corpo e espíri to” próprios, demandando esforços técnicos diferenciados. Neste sentido, denúncias de violência física e de negligência tendem a descrever sinais f ísicos, relatos da criança e/ou o testemunho de outras pessoas. As denúncias de violência psicológica tendem a descrever cenas desta violência presenciadas pelos denunciantes, por seus afins e/ou relatadas a eles pela criança/adolescente vit imizados. As denúncias de violência sexual, entretanto, costumam não apresentar um padrão descri t ivo, ou um padrão de visibil idade. Elas são, certamente, especialíssimas, desde sua entrada no órgão de proteção (registro da denúncia) até seu processo diagnóstico (verificação social da denúncia), bem como no acompanhamento psicossocial às famílias. Nos serviços de proteção de Florianópolis, estas denúncias têm prioridade no atendimento, no âmbito do cri tério de definição de risco para as vít imas20, sendo designado um profissional de Serviço Social21 desde o primeiro contato com os envolvidos na denúncia. Isto é necessário para que a criança possa construir um vínculo de confiança, facil i tando a revelação da vit imização e possa também, sentir-se mais segura em relação às providências possíveis para a proteção. Estas denúncias também têm prioridade na agenda do profissional de Psicologia. 19 Não raro , denúncias de violência sexual não confirmadas re incidem após cer to per íodo, com teor similar , porém com maiores elementos, sendo que, após nova ver ificação social , confirma-se a vi t imização. 20 Existem outras si tuações entendidas pelos profissionais do SOS Criança como emergenciais e que requerem pronto-atendimento, quais sejam: denúncias envolvendo bebês (al tamente vulneráveis) , lesões físicas (existência de mater ial idade e necessidade de cuidado de saúde) , entre outras, que são definidas a par t i r da denúncia. Não raro , o plantão do SOS Criança precisa “escolher” dentre o conjunto de denúncias pendentes, a que informa maiores elementos de r isco para que seja atendida, em detr imento das demais. Isto ocorre devido ao fato de a demanda de denúncias ser super ior à capacidade de atendimento do serviço. Importante ci tar que atualmente a Prefei tura Municipal de Flor ianópolis responde a Inquéri to Civil Público Nº 03/2002 da Promotoria Pública da Infância e da Juventude, devido à média de 830 denúncias que aguardam atendimento, desde 2000. 21 As outras formas de violência podem receber o pr imeiro atendimento por educadores sociais , sendo poster iormente assumidos pelo assistente social , que elaborará o respectivo diagnóst ico e parecer técnico da si tuação. 24 Chegar ao diagnóstico de violência sexual, pela via da denúncia, agrega complexidades de três campos, quais sejam: 1º) campo da suspeição ou, complexidades de identificação da violência; 2º) campo técnico ou, dificuldades no processo de averiguação e, 3º) campo político ou, fragil idades da polí t ica de atendimento do município. Cada dimensão apresenta uma interface com as demais, sendo aqui apresentadas de per si por uma opção didática. 1.1.1 O atendimento de denúncias e as dificuldades na suspeição da violência sexual O atendimento de denúncias e as dificuldades na suspeição da violência sexual dizem respeito às primeiras pistas e informações capazes de indicar a existência de violência sexual o que possibil i ta ao profissional planejar a intervenção a ser realizada junto à família. Esta modalidade de violência remete a denúncias que comumente não indicam testemunhas , ou, muitas vezes, “a testemunha” é o próprio denunciante, que opta por permanecer anônimo por “não se dispor a se indispor” com os envolvidos na vit imização. A inexistência de testemunhas pode ocasionar pressões psicológicas à vít ima de diversas formas: por sofrer intimidação pelo agressor ou por familiares para que retrate o ocorrido; por passar pela si tuação desconfortável de ter a sua palavra confrontada com a do outro, que em geral é um adulto; ou ainda por ser impelida à construção de histórias falsas que objetivem encontrar um motivo para que minta sobre o abuso22. Existem ainda outras si tuações delicadas que fazem a vít ima sentir-se “sozinha”, muitas vezes sem forças para se defender e sem contar com a ajuda de seus familiares, o que leva ao caminho mais fácil : optar por retratar ou retornar ao si lêncio. No ato da denúncia, a coleta de informações sobre a existência de testemunhas é fundamental para decifrar o “mapa enigmático” da violência. Quando não há testemunhas identificadas, a estratégia de atendimento requer cuidados e a inclusão de outras al ternativas de verificação, aspectos preferencialmente planejados 22 Como o exemplo de um padrasto que fez a enteada ”ensaiar” o que deveria falar ao juiz , ou seja , que fur tara dinheiro de sua car teira e por isso inventou uma histór ia de abuso sexual , por medo de ter que retornar para casa. Caso atendido pelo SOS Criança no ano de 2000. 25 interdisciplinarmente. O conceito de testemunha deve ser amplo, ou seja, um colega de escola confidente da criança pode ser uma testemunha importante para ampliar o conhecimento do contexto da vit imização. Em relação à violência sexual, as denúncias podem também indicar testemunhas não confiáveis”23 ou cúmplices si lenciosas e, uma vez citadas no corpo da denúncia, provavelmente serão ouvidas pelos técnicos, ocasionando viés no diagnóstico, com tendência a desconfirmação do abuso, inviabil izando providências. A violência sem materialidade é t ípica desse t ipo de denúncias24, porquanto a vit imização sexual mais freqüente é a prática de atos l ibidinosos, e não os contatos com penetração anal e/ou vaginal (RODRIGUES apud VERONESE, 2002). Contudo, algumas formas de violência sexual sem penetração deixam vestígios materiais, ainda que não seja comum e, quando ocorrem, nem sempre são percebidos, quer por: a) questões temporais, b) pela omissão de informação, ou ainda, c) pela aparente desconexão da lesão com a violência sexual. Para i lustrar estas questões, apresentamos alguns exemplos i lustrativos: a) Temporalidade : é o caso de uma criança que ficou com hematomas que não foram identificados e periciados em razão de a denúncia ter sido realizada somente após os mesmos terem desaparecido naturalmente. Igualmente, o caso de adolescente acorrentado para ser abusado sexualmente. A denúncia foi fei ta em tempo hábil para a detecção das lesões, porém o serviço de proteção levou vários dias para fazer o atendimento, ocasião em que as marcas já haviam desaparecido, da mesma forma. b) Omissão da informação : quando a criança/adolescente está com alguma lesão, mas esta não é indicada pelo denunciante, ou é omitida pela mesma (criança). Os técnicos envolvidos na verificação social f icam, então, numa difíci l si tuação, pois se solici tarem à criança/adolescente que se dispa, sem uma informação plausível sobre a existência de lesão, podem causar constrangimento ou até mesmo podem revit imizá-23 Consideramos “testemunhas não confiáveis” as pessoas que têm laços com o agressor ou têm desejo de manter a famíl ia unida omit indo a ocorrência da violência sexual . O SOS Criança registra , de modo recorrente, casos de mães que afirmam aos técnicos nada terem percebido acerca da vi t imização sexual protagonizada pelo seu marido contra o fi lho (a) , ao mesmo tempo em que a cr iança relata aos mesmos técnicos que já contara para a mãe sobre o que acontecia . 24 Mater ial idade como lesões corporais, excreções, equimoses, hematomas e outros. 26 la. Por outro lado, se não o fizerem, perdem a possibil idade de constatar a material idade, tão valorizada no sistema de justiça criminal25. c) Desconexão aparente da lesão com a violência sexual : é o exemplo do agressor que, durante a vit imização, aperta os ombros da criança/adolescente, deixando impressas as marcas de suas mãos. Estas marcas podem ser negligenciadas pelos profissionais enquanto lesões provenientes da violência sexual. Um grande facil i tador para aqueles que realizam a averiguação das denúncias, sem dúvida, é a informação da ocorrência de lesão no relato da denúncia, o que pode subsidiar a abordagem dos técnicos. As principais modalidades de violência sexual “com contato físico” perpetradas contra crianças/adolescentes não incluem a penetração pênis-vagina ou pênis-ânus, o que vem desmistif icar a crença, comum na sociedade e mesmo para profissionais, de que a criança/adolescente “só foi abusada se o exame (médico) for posit ivo”. Este é um dos mitos mais freqüentes26 evocados pelos agressores e/ou por aqueles que não acreditam na criança/adolescente, insist indo na prova material , em detrimento do relato. Zorman, Pérard e Bouhet ( in GABEL, 1997) apresentam dados da pesquisa “Rhône-Alpes”, realizada na França em 1989, em que num universo de 130 atos sexuais cometidos contra crianças e adolescentes, somente 17 consist iram em alguma forma de penetração. Para uti l izarmos dados locais, o Projeto Mel27 desenvolve uma pesquisa28, buscando informações sobre a vit imização sexual (ocorrida na infância e/ou 25 Kreter ( in PEREIRA, 2000, p .400) aler ta para a necessidade de reversão de um equívoco bastante comum em nosso sistema judicial : o pr ivi légio da prova física como elemento determinante para que ocorra a condenação. O autor reporta-se às pesquisas de Rosemary L. Fl int , que indicam percentuais acima de 80% para casos de incesto que não evidenciaram sinais físicos, com índices de condenação de apenas 5%, por este motivo. Tais circunstâncias aumentam consideravelmente o r isco de recidiva da violência sexual . 26 Para conhecer mais sobre os mitos envolvidos na violência sexual , ver DUARTE, Patr ícia et a l . Manual sobre maltrato y abuso sexual a los niños: aspectos psicologicos, sociales e legales. COVAC (Asociacion Mexicana Contra la Violencia a las Mujeres) e UNICEF. México, D.F. :1994/1995. 27 O Projeto Mel : “Prevenindo e combatendo a violência para resgatar a doçura da infância”, “nasceu” como um subprojeto do SOS Criança em 1996, com o objet ivo de desenvolver ações de prevenção pr imária , secundária e terciár ia à violência contra cr ianças e adolescentes. Em 2000, com a adesão do município ao Programa Federal Sentinela , o Projeto Mel assumiu status de “projeto independente” dentro deste , sendo seu foco pr ior i tár io , a prevenção secundária . Dentre outras at ividades, desenvolve pesquisas. 27 adolescência) de profissionais das áreas da saúde, social e da educação. Num universo de 122 questionários aplicados, 35 informaram a ocorrência de abusos sexuais na infância, com contato e/ou sem contato físico, sendo que a modalidade “penetração” foi apontada somente em 3 questionários. Sobre o recorte específico do incesto pai-fi lha, Finkelhor (apud AZEVEDO e GUERRA, 1988) fornece alguns elementos para entender porque um pai biológico não lança mão do intercurso nas relações sexuais com a fi lha: 1º) devido o fato de o intercurso causar dor e danos ao corpo infanti l ; 2º) devido a possibil idade de o adulto preferir uma forma infanti l de gratif icação sexual e, 3º) devido a hipótese de o pai não querer sentir culpa, acreditando que se não provocar o intercurso, não estará violando a criança. Apesar de Finkelhor (Idem) se reportar ao incesto ordinário, ou seja, o incesto pai-fi lha, é possível que tais explicações se apliquem ao contexto de outros abusos sexuais ( intrafamiliares ou extrafamiliares) de crianças/adolescentes. Existem ainda outras possíveis explicações pelas quais o intercurso sexual não é a modalidade mais comumente encontrada nos casos de violência sexual, como o temor que tem o violador pela hospital ização da criança em razão das lesões, fragil izando seu “controle” sobre esta a aumentando o risco de denúncia. Também pelo fato de que o processo de vit imização sexual costuma ser gradativo (inicia com conversas de cunho sexual, avança para carícias íntimas e, por últ imo, o intercurso), sendo que a denúncia pode ter sido concretizada na fase “sem contato físico” ou na fase dos atos l ibidinosos. Noutras si tuações, a criança pode omitir o intercurso, informando apenas carícias íntimas, por medo de ser examinada, por medo da prisão do violador - como fruto das ameaças deste - ou mesmo para não magoar alguém que ficaria entristecido com tal revelação. Existe ainda a hipótese de o abusador lançar mão de práticas sexuais al ternativas ao intercurso como uma estratégia de evitação de lesões, resultando na 28 A pesquisa int i tula-se “Eu, profissional: minha experiência de violência na infância”. Pesquisadoras: AZEVEDO, Alice Gonçala; DIAS, Salete Laurici Marques e RECH, Líl ian Keli . 28 inexistência de provas materiais. Estas, por outro lado, também costumam ser ocultadas29 com o objetivo de impedir a sua visibil idade. A material idade ainda é supervalorizada enquanto requisi to de crença na vit imização pelas famílias, pela sociedade de modo geral , pelo sistema judicial , pela mídia, e por muitos técnicos dos serviços de proteção, que atrelam medidas de proteção ao resultado de exames mais do que ao testemunho da criança30. A violência sexual também tem sua visibil idade prejudicada e sua investigação dificultada quando comparada às outras formas de violência. Um “aparente ambiente de normalidade” é conseqüência de um conjunto de circunstâncias (algumas já 29 Em alguns casos atendidos pelo SOS Criança ao longo de seus treze anos de atuação, detectou-se que as ví t imas recebiam instruções para lavar peças de roupas que continham esperma. Dentre elas, o uso de água sanitár ia , “deixar a roupa de molho no balde”, estender a roupa em local d istante , queimar o papel higiênico sujo , e tc . Em um caso específico, a tendido em 1996 pelo SOS Criança, sempre lembrado quando do treinamento de novos técnicos, em razão da peculiar idade do modus operandi dos abusadores, a ví t ima-fi lha apontou os locais específicos nos terrenos em que t inham residido nos úl t imos anos, onde a mesma enterrava suas calcinhas e t rapos sujos de sangue e esperma. Após o intercurso, o pai costumava “l impar” os fluidos provenientes de sua violência com trapos e às vezes com a calcinha da menina. A vit imização durou cinco anos, tendo iniciado aos sete anos de idade da cr iança. 30 Francis Bail leau (apud BRITO, apud HASSELMANN, 2000)fez a pesquisa et imológica da palavra infante: do lat im in fants , seu significado é in [non ] ou não, e fari [parler] é falar . A or igem do uso do termo significa que infante é aquele que não fala . Trazendo esta idéia para o direi to , Jaqueline Lascoux (apud BRITO, apud HASSELMANN, 2000) lembra que "desde o direi to romano, a cr iança é calada, não possuindo o verdadeiro poder que anima a just iça, o da palavra." ( Idem, p . 363) Tais restr ições histór icas sobre o direi to e o valor da fala da cr iança t iveram um importante contraponto em 1989: a rat ificação pelo Brasi l da Convenção Internacional dos Direi tos da Criança, a través do Decreto nº 99710 de 21/11/1990. A Convenção traz para o Brasi l pr incípios aprovados internacionalmente para a proteção da cr iança, com o objet ivo de fundamentar medidas judiciais e procedimentos administrat ivos relacionados à cr iança e ao adolescente. Determina o ar t igo 12 da Convenção: "Os Estados- Partes assegurarão à cr iança que est iver capacitada a formular seus próprios juízos o direi to de expressar suas opiniões l ivremente sobre todos os assuntos relacionados com a cr iança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e da matur idade da cr iança. Com tal propósi to , se proporcionará à cr iança, a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrat ivo que afete a mesma, quer diretamente por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional ." Segundo Simas ( in PEREIRA, 2000) , a o i t iva de cr ianças somente nos dias atuais começa a ser d ifundida, embora não faça par te do Código de processo Civil . Ainda, que "a fala da cr iança deve ser , por tanto , a soberana das provas e essencial na instrução dos processos que envolvam seus interesses." (SIMAS in PEREIRA, 2000, p . 611) . Acrescentamos às idéias dos autores, a observação de que o direi to da cr iança em procurar refúgio, previsto no ar t igo 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente, no sentido de que seu pedido de ajuda, formulado a qualquer pessoa, seja legi t imado, como uma forma de expressão de seus interesses. Fonte or iginal de Bri to: BRITO, Leila Maria Torraca de. Criança: Sujei to de Direi to nas Varas de Família? In: ALTOÉ, Sônia (Coord.) . Sujei to de Direi to , Sujei to do Desejo . Rio de Janeiro: Revinter , 1999. 29 descri tas, como a ausência de lesões e de testemunhas) que camuflam a si tuação abusiva. Por vezes, papéis psicológicos e papéis sociológicos aparentemente bem definidos entre os familiares, assim como manifestações de afetividade e aparente coesão, podem influenciar precocemente os profissionais envolvidos a considerar a denúncia como não-procedente, o que inviabil iza providências de proteção, defesa e responsabil ização, caso o diagnóstico não corresponda à realidade. Guerra (1996) alerta que a violência intrafamiliar está l igada a mensagens verbais e não verbais, implícitas ou explíci tas que objetivam a manutenção do segredo do incesto. Elementos de suspeição sobre a dinâmica familiar, muitas vezes presentes nas denúncias - como a informação de que o pai escreve bilhetes secretos para a criança, que só ela pode ler - , são importantes e devem ser consideradas durante o processo de verificação social e diagnóstico. Outro aspecto é o das denúncias com parcas informações fornecidas pelo denunciante31, que não permitem a localização e/ou identificação dos envolvidos no abuso, o que gera o arquivamento da denúncia e possivelmente a revit imização, no caso de a denúncia ser procedente. Quando o denunciante revela incredulidade e insegurança quanto a sua suspeição ou mesmo temor pela possibil idade de criminalização de alguém com quem convive, este costuma repassar um número inferior de dados de que realmente tem conhecimento, dificultando o processo diagnóstico. A bibliografia disponível (DESLANDES,1994; POZO et all , 2003; FRÍAS, 2003; DREZETT, 2002) acerca dos indícios de violência sexual fornece estudos sobre pistas ou sinais f ísicos, comportamentais e/ou familiares, que não são exclusivos da vit imização sexual e não são de domínio do saber popular, em sua grande maioria, dificultando a identificação da violência sexual. 1.1.2. O atendimento de denúncias e questões l igadas ao profissional 31Em algumas si tuações o denunciante não tem relação direta com os envolvidos , repassando ao SOS Criança informações que lhe foram informadas por outrem e que podem ter sofr ido alguma al teração crucial prejudicando o processo de ver ificação social . É o caso, por exemplo, da denunciante que soube da vi t imização sexual através da vendedora de produtos de beleza, a qual lhe comentou “por al to” o endereço e as circunstâncias do abuso sexual . 30 Há dificultadores do processo de averiguação das denúncias em razão do poder adultocêntrico (SAFFIOTI, 1989) que envolve a violência sexual, ao mesmo tempo em que há carência de um enfrentamento conjunto por parte dos profissionais e das insti tuições responsáveis pelos serviços de proteção. Outro problema no processo de averiguação das denúncias é uma possível obstaculização da intervenção , pela família, nas ocasiões em que esta está impelida a manter o segredo familiar, ou tem dificuldades para rompê-lo, ou ainda, no caso de o agressor ser extrafamiliar e a família temê-lo. A família pode não atender à porta; não permitir a abordagem individualizada da criança; não comparecer aos atendimentos agendados; não fornecer informações sobre a família mais ampla; não permitir o exame pericial e/ou médico da criança, entre outros l imites impostos. Quando estas informações sobre tais característ icas familiares não constam das fichas de denúncia os profissionais podem intervir neste ambiente familiar sem o devido cuidado, respeito e perspectiva de auxíl io para sustar a violação dos direitos. Denúncias originadas somente da observação do denunciante , sem a verbalização da criança vit imizada, podem ter o processo de verificação social dificultado, uma vez que esta criança/adolescente pode não estar disponível ou preparado(a) para revelar os fatos que vivencia ou vivenciou, por medo ou outro sentimento que dificulta a comunicação. Mais uma vez o profissional precisa considerar esta informação, que pode estar presente na denúncia, em seu planejamento de intervenção. Um exemplo emblemático desta si tuação é o que revela a obra de Bass (1983) que reúne tr inta e cinco relatos de mulheres que escreveram suas histórias de vit imização sexual na infância e/ou adolescência, coletados na Califórnia, através de workshops de redação inti tulados “Nossas vidas” e através de anúncios em revistas. Os relatos foram agrupados em quatro modalidades de abusos sexuais: cometidos pelos pais, ou por parentes, ou pelos amigos e vizinhos e ou ainda por estranhos. O que há de comum a todas as mulheres, é a não verbalização do abuso sofrido até a chegada da vida adulta. Bass (Idem) enfatiza a pressão psicológica - oriunda do entorno familiar e social - sofrida pelas mulheres no passado e no presente, para que as horas de tortura permanecessem em silêncio por anos. Os vetores do si lêncio oscilaram desde a vergonha, o sentimento de cumplicidade e culpa, até a certeza do descrédito e o medo de magoar parentes que amavam o agressor e nele confiavam. 31 Outra dificuldade técnica diz respeito a denúncias cujas vít imas têm déficits intelectuais e/ou emocionais, problemas na fala e/ou audição, ou quaisquer outros dif icultadores da comunicação , mesmo quando a criança/adolescente efetuar tentativaspara enviar mensagens não suficientemente inteligíveis. Aqui sinalizamos fundamental a habil idade do profissional, ou a inclusão de outro profissional (especialista, preferencialmente que já tenha vínculo com a criança), que possa auxil iar no deciframento das mensagens ou possa favorecer a comunicação e interpretação da mesma32. Denúncias que chegam aos serviços de proteção tardiamente, após a suspeita ser “exposta à comunidade”, com a interveniência de muitas pessoas na família, e principalmente destas junto à criança, também podem significar problemas, prejudicando sobremaneira o processo de verificação social , especialmente a abordagem pelos profissionais, uma vez que a (suposta) vít ima poderá reproduzir informações que lhe foram orientadas33, ou revelar detalhes “contaminados” com outras informações, prejudicando o diagnóstico de ocorrência de violência como aponta Van Gijseghem (apud THOVENIN, 1992). O autor reflete sobre as influências que podem interferir no testemunho da criança, alertando para certas condições da memória: a lembrança diminui com o passar do tempo, assim como pode haver “contaminação” por informações induzidas após o acontecimento (principalmente através de perguntas sugestionáveis) . Devido ao fato de a criança dispor de uma percepção de tempo diferente, costuma relatar fatos a part ir de detalhes, não a part ir da sucessão temporal dos fatos; e, a criança pode também incorporar um enredo, em decorrência de vários interrogatórios, prejudicando a credibil idade dos fatos por ela relatados. 32 A t í tulo de i lustração, t razemos o caso de uma adolescente portadora de deficiência mental a tendida pelo Projeto Acorde (este oferece acompanhamento psicossocial de famíl ias em que houve a ocorrência de violência sexual e/ou violência física severa contra cr ianças e adolescentes) desde 2000, sendo que esta só verbalizou a identidade de seu agressor sexual – o padrasto , que reside na mesma casa – em 2002, quando os técnicos já t inham vínculo com a mesma, e já conseguiram compreender sua forma peculiar de comunicar-se. Somente com a intervenção dos serviços de proteção, a adolescente ingressou em programa educativo, o que melhorou sua comunicação consideravelmente. 33 O Projeto Acorde atende uma cr iança, encaminhada pelo Conselho Tutelar a par t i r da recomendação do SOS Criança, que sofreu estupro em 2002 aos 7 anos. O relatór io diagnóst ico do SOS Criança informava que toda a famíl ia afirmava que a cr iança sofrera ta l abuso na escola, mas a abordagem da criança gerava dúvidas, por esta reproduzir falas da famíl ia . Com a evolução do acompanhamento psicossocial , hoje os profissionais do Acorde descar tam o agressor escolar , embora ainda não tenha sido possível identificar , com segurança, a identidade de seu agressor . 32 As denúncias de violência sexual também demandam processos de verif icação mais complexos , por exigirem uma intervenção que considere os códigos morais e o campo dos segredos, priori tariamente os segredos de família. Assim, tais denúncias demandarão maior número de abordagens, investigações, exames periciais, visi tas domicil iares, entre outras, quando comparadas às demais formas de violência. Outro dificultador no processo de atendimento é o fato de a abordagem com a vítima ser algo excepcionalmente delicado , por envolver sentimentos de culpa, medo e vergonha, além de que muitas vezes a criança/adolescente não dispõe do recurso da fala ( tenra idade) e não tem vínculo suficiente com os profissionais. A violência sexual consti tui o corpo de denúncias com maior número de casos “não comprovados”34, pelas dificuldades aqui apresentadas. Queremos destacar que a expressão “não comprovada” não é o equivalente a “denúncia falsa”35. Ambas as si tuações não promovem medidas de defesa, proteção e responsabil ização, embora parte dos técnicos leve em consideração a denúncia não comprovada em seus diagnósticos, recomendando a continuidade do atendimento por um período maior, por exemplo, através de acompanhamento temporário36. A violência sexual, por excelência, pode também desencadear reticências psicológicas (AZEVEDO, 1996) dos profissionais envolvidos. Uma vez que a intervenção pode incidir sobre si tuações assemelhadas à biografia do técnico, uma série de sentimentos e valores pessoais sobre os fatos pode precipitar-se, causando reações específicas, consideradas normais, não chegando a comprometer o trabalho. Em alguns casos, entretanto, as reações pessoais do técnico podem resultar em 34 Dados estat íst icos do SOS Criança, referentes ao pr imeiro semestre de 1998 revelam uma média de 15 % de denúncias não comprovadas, considerando as quatro formas de violência . De acordo com Duarte (2001, p . 20) , a través de um levantamento estat íst ico sobre uma amostra de 107 casos de violência sexual , real izado na mesma inst i tuição, 46 foram considerados não procedentes (42 %). 35 Os técnicos do SOS Criança atr ibuem acento à diferença dos termos, sendo que “denúncia não comprovada” é aquela em que não se chegou à confirmação da violência , mas não é possível descar tá-la plenamente (é o exemplo do bebê que ter ia sido submetido a sexo oral , e como não dispõe do recurso da fala , não pode confirmar ta l violência) . “Denúncia falsa” é aquela cuja ver ificação social descar ta integralmente o teor denunciado. 36 O Projeto Acorde, também vinculado ao Programa Sentinela real iza acompanhamento de alguns casos diagnost icados com “for te suspeita” de violência sexual , porém sem confirmação pelos envolvidos, pr incipalmente, pela cr iança/adolescente. A idéia é que o acompanhamento famil iar possibi l i te a construção de vínculos e uma rede de proteção, favorecendo a revelação da violência possivelmente sofr ida. Importante destacar que o termo “confirmação” requer discussões, uma vez que não há entendimento unívoco entre os técnicos. 33 reticências psicológicas, traduzidas na resistência em acreditar na palavra da criança; em mecanismos de defesa ou escrúpulos, todos prejudiciais à segurança da mesma. O receio de registrar o Boletim de Ocorrência; os temores pessoais infundados; o adiamento de visi tas domicil iares; a oit iva apenas dos adultos e não das crianças; a negação de contato com o denunciante e, o encerramento abrupto e precoce da verificação são alguns dos possíveis indicadores de que o profissional possa estar sendo vít ima de reticências psicológicas37. Conhecer e assumir seus sentimentos e valores traz a consciência desta l imitação, e enfrentá-la depende do trabalho em equipe, do estudo do fenômeno “violência” e das estratégias de superação de nível pessoal, como por exemplo, através de terapia psicológica. 1.1.3. Algumas implicações polí t ico-insti tucionais no atendimento de denúncias. Tendo como premissa “o fato de o profissional ser menor que sua insti tuição” (OLIVEIRA, apud COSTA, 1997), reportamo-nos a alguns fragmentos da ação estatal - governo municipal , estadual e federal - enquanto polí t ica de enfrentamento à violência (não exclusivamente sexual) contra crianças. Muito embora toda e qualquer intervenção dos profissionais dos serviços de proteção se consti tuir em ação polí t ica, as questões polí t icas insti tucionais merecem uma análise diferenciada, tendo a clareza de que nesta pesquisa, estaremos olhando para as questões polí t icas somente “pela fresta”. Há denúncias cujo endereço dos envolvidos está localizado nas chamadas “áreas de risco”38 do município e para onde os profissionais não se dirigem, ou não37Na obra autobiográfica de Thomas (1986) , a autora, sobrevivente de incesto , revela as tentat ivas de superar os agravos da violência sexual sofr ida os quais insistem em condicionar sua vida adulta: relata o fato de uma aluna ter cochichado em seu ouvido estar sendo abusada pelo pai , e e la , mergulhada em sua própria histór ia , protelar a conversa por não conseguir agir . 38 “Áreas de risco” caracter izam-se por serem locais onde a equipe do SOS Criança não está efetuando atendimentos atualmente em razão da violência (assal tos com armas de fogo, homicídios, agressões, t ráfico de drogas, entre outras) relatada pela mídia e que já vi t imaram alguns dos profissionais, inclusive. Atualmente o SOS Criança não presta atendimento in loco em pontos específicos do “maciço central” (área insular) e da comunidade Chico Mendes (área continental) . Uma comissão foi formada a fim de promover uma discussão entre a Prefei tura Municipal de Flor ianópolis , Just iça da Infância e Juventude, Conselho Tutelar e 34 efetuam atendimentos. A vulnerabil idade para a violência da comunidade é, pois, mais um aspecto que agrava a possibil idade do abuso sexual contra crianças/adolescentes, bem como de outras formas de violência. Atualmente o SOS Criança usa como alternativa atender as denúncias em parceria com outras insti tuições, si tuadas nestas comunidades: creche e escola, por exemplo, muito embora tal al ternativa não seja viável em todos os casos. Reportando-nos especificamente ao nosso objeto – as denúncias de abuso sexual - tais restrições implicam em defasagens substanciais tanto na identificação quanto na proteção da criança, pois não é incomum encontrar si tuações em que: proíbe-se a mesma de sair de casa; se proíbe pessoas de falar com os técnicos; lesões são “tratadas” em casa com remédios caseiros; “esconde-se” a vít ima em local ermo ou aprisionada em um “cativeiro sexual”; impede-se que a criança vá à escola até que as lesões desapareçam, etc. A si tuação certamente potencializa a ação do violador, agrava as seqüelas e até mesmo fomenta a continuidade da vit imização. A premência de um trabalho em rede para o atendimento das denúncias de violência sexual consti tui-se em mais uma questão polí t ica que reflete o engajamento do município – e de todos os segmentos do poder público – em relação à violência contra crianças e adolescentes. Quando o atendimento das ocorrências não flui como uma rede insti tucional, pode resultar num quadro de tensão entre as insti tuições, gerando falhas de sintonia ou negligência na atenção às necessidades que a si tuação requer. É o caso de profissionais da saúde que se negam a colher exames de crianças que choram “demais” e plantonistas que não se propõem a atender nas últ imas horas do turno, entre outros. Desde 2000 o município de Florianópolis conta com um esforço para o trabalho em rede, formalizado por um PROTOCOLO - Rede de Atenção às Vítimas de Violência Sexual do Município de Florianópolis39. Mensalmente representantes dos serviços envolvidos se reúnem para o planejamento de ações educativas e para a identificação de vulnerabil idades na rede, estabelecendo ações e estratégias de resolubil idade. Conselho Municipal dos Direi tos da Criança e do Adolescente (CMDCA), com o objet ivo de organizar um fluxo diferenciado para a ver ificação social das denúncias nestes locais. 39 Protocolo assinado em 04 de agosto de 2000 pela Prefei tura Municipal de Flor ianópolis , Secretar ias Estaduais da Saúde, Segurança Pública e da Just iça e Cidadania e Universidade Federal de Santa Catar ina. Amplia e organiza o atendimento às ví t imas de violência sexual no município , de qualquer idade ou gênero, integrando as áreas de saúde, segurança e atendimento psicossocial , de forma mult idiscipl inar e inter inst i tucional . Disponível em: ht tp: / /www.pmf.sc.gov.br /saude/saude_violencia .htm 35 Em estreita relação com a questão anterior, está a indisponibil idade de recursos humanos e materiais necessários para a demanda. A verificação de denúncias pode demandar certos recursos como exames médicos, coquetéis medicamentosos (casos de estupro), vales al imentação, vales transporte, atendimentos de saúde especializados (psiquiatria infanto-juvenil – não disponíveis na rede de saúde municipal) , próteses, roupas especiais para queimaduras, materiais de construção para dar privacidade para algum membro familiar, melhorar as condições de moradia, ou ainda, propiciar uma moradia, entre outros. A indisponibil idade de recursos materiais e humanos prejudica ou inviabil iza possibil idades de reorganização das famílias, deixando lacunas na responsabil idade da esfera pública. Nesta mesma direção encontram-se as demais responsabilidades40 do poder público , inerentes a interveniência deste junto às famílias, a part ir do momento em que a denúncia é recebida pelo disque-denúncia41. Independentemente de quem seja o agente violador (seja ele um familiar, uma pessoa da comunidade ou um servidor público), o município assume uma gama de responsabil idades previstas na legislação concernentes ao atendimento prestado, tais como a ética dos profissionais envolvidos; o dever de notificação dos casos ao Conselho Tutelar; a proteção da criança na condução dos exames; a primazia de receber proteção e socorro em relação aos demais serviços, entre outros. Sobre o processo diagnóstico e sobre os encaminhamentos subseqüentes também incidem responsabil idades. O cumprimento destas responsabil idades e as oportunidades oferecidas para as famílias também refletem a polí t ica municipal no enfrentamento da questão. Outro problema de cunho polí t ico volta-se para a “zona de conflito” entre o Estado (poder público), a sociedade e a família (que possui o poder familiar) . Há prováveis confli tos nos casos em que o ofensor detém poderes socialmente construídos e não deseja a interveniência dos serviços de proteção. Extremos como os movimentos 40 Para Sauwen Filho (apud FIRMO, 1999, p . 111) , Responsabil idade “é a força coerci t iva que coloca o indivíduo (ou o Estado) na si tuação de ter que sofrer, inexoravelmente, as conseqüências de suas eventuais transgressões às normas que lhe são impostas”. (Grifo nosso) . 41 Schmickler , Gomes e Rech (2003) , em ar t igo sobre a denúncia de violência contra cr ianças e adolescentes, apresentam aspectos essenciais sobre o espaço da denúncia de violência contra cr ianças e adolescentes, como a publicidade acerca da abrangência de atendimento e a garantia de aver iguação das denúncias registradas. 36 pró-abusador (que aos olhos da comunidade está acima de qualquer suspeita, enquanto a vít ima pode “ser uma namoradeira” e por isso, capaz de mentir); a interferência no atendimento por parte de polí t icos que foram eleitos com muitos votos no bairro do acusado; a abordagem do caso pela mídia de forma a incitar a sociedade a tomar part ido sem o conhecimento do panorama geral do caso, entre outros tantos exemplos, são confli tos cotidianos que envolvem o trabalho com as denúncias, causando problemas quando dirigidos a parte mais vulnerável (por não dispor de poderes sociais): a criança ou adolescente vit imizado. Enfim, uma denúncia é uma demanda legít ima de direitos, no contexto de uma situação-limite, que é a violência e seu desvelamento, parametrado por um referencial técnico e polí t ico adequado, pode mudar o status da vít ima para a condição de sobrevivente (THOMAS, 1988); de sobrevivente à condição
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