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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DOUTORADO EM DIREITO PÚBLICO DIREITOS FUNDAMENTAIS INDISPONÍVEIS – OS LIMITES E OS PADRÕES DO CONSENTIMENTO PARA A AUTOLIMITAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA LETÍCIA DE CAMPOS VELHO MARTEL RIO DE JANEIRO 2010 LETÍCIA DE CAMPOS VELHO MARTEL DIREITOS FUNDAMENTAIS INDISPONÍVEIS – OS LIMITES E OS PADRÕES DO CONSENTIMENTO PARA A AUTOLIMITAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA Tese de Doutoramento, apresentada ao Centro de Pós-Graduação em Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito para obtenção do título de Doutor em Direito Público. Orientador: PROF. DR. LUÍS ROBERTO BARROSO RIO DE JANEIRO 2010 Elogio da sombra Jorge Luis Borges1 A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão) pode ser o tempo de nossa felicidade. O animal morreu ou quase morreu. Restam o homem e sua alma. Vivo entre formas luminosas e vagas que não são ainda a escuridão. Buenos Aires, que antes se espalhava em subúrbios em direção à planície incessante, voltou a ser a Recoleta, o Retiro, as imprecisas ruas do Once e as precárias casas velhas que ainda chamamos o Sul. Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas; Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar; o tempo foi meu Demócrito. Esta penumbra é lenta e não dói; flui por um manso declive e se parece à eternidade. Meus amigos não têm rosto, as mulheres são aquilo que foram há tantos anos, as esquinas podem ser outras, não há letras nas páginas dos livros. Tudo isso deveria atemorizar-me, mas é um deleite, um retorno. Das gerações dos textos que há na terra só terei lido uns poucos, os que continuo lendo na memória, lendo e transformando. Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte convergem os caminhos que me trouxeram a meu secreto centro. Esses caminhos foram ecos e passos, mulheres, homens, agonias, ressurreições, dias e noites, entressonhos e sonhos, cada ínfimo instante do ontem e dos ontens do mundo, a firme espada do dinamarquês e a lua do persa, os atos dos mortos, o compartilhado amor, as palavras, Emerson e a neve e tantas coisas. Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro, a minha álgebra e minha chave, a meu espelho. Breve saberei quem sou. 1 BORGES, Jorge Luís. Elogio da sombra. In: BORGES, Jorge Luis. Elogio da Sombra e Um ensaio autobiográfico. Trad. [para Elogio da Sombra] Carlos Nejar e Alfredo Jacques; Trad. [para Um ensaio autobiográfico] Maria da Glória Bordini. 5.ed. São Paulo: Globo, 1993, p.67. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS Abr./Apr. Abril ACP Ação Civil Pública ADIn ou ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade Ago/Ag. Agosto AMM Associação Médica Mundial CCB Código Civil Brasileiro CEDH Corte Européia de Direitos Humanos CF/88 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 CFM Conselho Federal de Medicina Cit. Citado CNS Conselho Nacional de Saúde COE Conselho Europeu CP Código Penal CPC Código de Processo Civil CPP Código de Processo Penal CRM Conselho Regional de Medicina Des. Desembargador(a) Dez. Dezembro DJ Diário de Justiça e.g. exempli gratia ECA Estatuto da Criança e do Adolescente Extr. Extraordinário Fev. Fevereiro FMC Fundamentação da Metafísica dos Costumes GT Grupo de Trabalho HC Habeas Corpus i.e. isto é IEE Intervenção Efetiva Estabelecida Jan. Janeiro Jul. Julho Jun. Junho LCT Limitação Consentida de Tratamento LICC Lei de Introdução ao Código Civil M.S. Ministério da Saúde Mai. Maio Mar. Março Min. Ministro(a) MP Ministério Público MPT Ministério Público do Trabalho MS Mandado de Segurança n. Número nº Número Nov. Novembro NSV Não-oferta de suporte vital ii OMS Organização Mundial da Saúde ONR Ordem de Não-Ressuscitação ONU Organização das Nações Unidas Out./Oct. Outubro PGR Procuradoria Geral da República POP Procedimento Operacional Padrão RE Recurso Extraordinário Rel. Relator(a) REsp. Recurso Especial RISF Regimento Interno do Senado Federal RSV Retirada de Suporte Vital Set. Setembro STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça TJ Tribunal de Justiça TJRJ Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro TJRS Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TJSP Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo TRF Tribunal Regional Federal TST Tribunal Superior do Trabalho UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura UTI Unidade de Terapia Intensiva v. Versus v. Volume iii LISTA DE SÍMBOLOS ^ Combinado com (conjuntivo) = Igual ⌐ Negação ↔ Logicamente Equivalente C Competência D Direito E Destinatário do Direito (Estado) F Operador deôntico indicador de Proibição G Objeto do Direito O Operador deôntico indicador de Mandato P Operador deôntico indicador de Permissão S Sujeição X Titular do Direito Y Destinatário do Direito (particular) A Titular do Direito B Destinatário do Direito (particular) iv Tese defendida em 18 de Março de 2010. Aprovada com nota máxima (10,0), Distinção e Louvor. Banca examinadora: Luís Roberto Barroso - UERJ Ricardo Lobo Torres – UERJ Daniel Antônio de Moraes Sarmento – UERJ Clemerson Merlin Cleve – UFPR Cláudio Pereira de Souza Neto – UFF RESUMO O tema da tese é a indisponibilidade dos direitos fundamentais de cunho pessoal. Está delimitado no exame da possibilidade de disposição de posições subjetivas do direito fundamental à vida e na análise dos limites e padrões do consentimento para a autolimitação, no contexto da morte com intervenção, à luz do sistema constitucional brasileiro. Como marco teórico, foi adotado o liberalismo igualitário, aliado a teorias primariamente baseadas em direitos. O objetivo geral foi discutir a possibilidade de disposição de posições subjetivas do direito fundamental à vida e os limites e padrões do consentimento autolimitador, no contexto da morte com intervenção. Para atender ao objetivo, foram traçados quatro objetivos específicos, cada qual correspondente a um Capítulo. O primeiro foi delimitar conceitualmente a disposição de direitos fundamentais, distinguindo-a de figuras afins. Concluiu-se que a indisponibilidade é normativa e que dispor de um direito fundamental significa enfraquecer, por força do consentimento do titular, uma ou mais posições subjetivas de direito fundamental perante terceiros, quer seja o Estado, quer sejam particulares, permitindo-lhes agir de forma que não poderiam, tudo o mais sendo igual, se não houvesse o consentimento. Reputado indisponível um direito, apenas o consentimento do titular não será suficiente a alterar posições subjetivas de direito fundamental, não justificando a interferência de terceiros, nem criando novos deveres de mesmo conteúdo para o titular. O consentimento é necessário à disposição e opera como justificação procedimental. O segundo objetivo específico foi investigar as teses de justificação da (in)disponibilidade. O estudo levou à adoção da premissa operativa da tese, a disponibilidade prima facie das posições subjetivas de direitos fundamentais. Concluiu-se pela necessidade de justificação para o emprego de argumentos de paternalismo jurídico e afins, bem como para a dignidade como heteronomia, eis que o sistema constitucional, à luz da integridade, tende mais à dignidade como autonomia. O terceiro objetivo específico foi investigar as teses de aplicação sobre a disponibilidade. Concluiu- se que a genuinidade do consentimento, centrada na escolha livre e informada, é elemento aplicativo nuclear, ao lado das modalidades de disposição, da relação de base, dos postulados normativos aplicativos e do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Concluiu-se que para que o titular possadispor, é preciso que seja um sujeito do consentimento. Em hipóteses de julgamento por substituição e de atuação de representantes, poderá ocorrer disposição, se houver recondução ao consentimento ou modo de decidir do titular. O quarto objetivo específico consistiu em compreender e discutir a autolimitação de posições jurídicas subjetivas do direito fundamental à vida no contexto da morte com intervenção. Como conclusão central, entendeu-se que é justificável que sejam reputadas indisponíveis as posições subjetivas do direito fundamental à vida como linha de princípio, em função da proteção dos direitos de terceiros, da manutenção dos níveis de proteção do direito à vida em sua dimensão objetiva e da dignidade humana como heteronomia. As condicionantes fáticas e jurídicas da morte com intervenção modificam a justificação para a indisponibilidade das posições subjetivas do direito fundamental à vida quanto à LCT, em razão: (a) das diferenças entre a LCT e os cuidados paliativos, de um lado, e a eutanásia e o suicídio assistido, de outro; (b) do equacionamento diferenciado na aplicação do postulado da proporcionalidade; (c) da dignidade humana como autonomia; (d) da vedação do paternalismo e afins injustificados. Em assim sendo, há hipóteses permitidas de disposição de posições subjetivas do direito fundamental à vida, quais sejam, a recusa genuína em iniciar ou persistir em intervenções médicas de prolongamento e de manutenção de vida. Concluindo-se pela permissão da LCT e das disposições de posições subjetivas do direito à vida que acarreta, elaboraram-se as diretrizes para a genuinidade do consentimento. Além das diretrizes básicas, expostas no Capítulo 3, na LCT são necessárias: (a) verificação da origem da decisão e da maturidade da manifestação por profissionais habilitados, após o adequado processo de informação; (b) confirmação do diagnóstico e do prognóstico; (c) verificação da inocorrência de depressão tratável; (d) verificação da adequação dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos; (e) verificação de eventuais conflitos de interesses entre a instituição hospitalar, a equipe de saúde e os interesses dos pacientes e de seus responsáveis; (f) garantia de assistência plena, se desejada, e verificação da inexistência de conflitos econômicos; (g) verificação da inexistência de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou representantes; (h) debate dos casos e condutas por Comitês Hospitalares de Bioética, quando ainda não houver posicionamento em situações análogas; (i) formulação de TCLE específico. Conjuntamente às salvaguardas, concluiu-se pela necessidade de adoção de quatro políticas públicas: (a) regulamentação dos contornos da LCT; (b) incentivo, aperfeiçoamento e promoção dos sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor; (c) incentivo, aperfeiçoamento e promoção dos CBs; (d) educação dos profissionais da saúde para a tomada de decisões morais complexas e para o trato com a finitude humana, além de informação do público em geral. AGRADECIMENTOS “No fim da minha visita ao hospital, ele começou a contar suas lembranças. Lembrou-me de coisas que devo ter dito quando tinha dezesseis anos. Naquele momento, compreendi o único sentido que a amizade pode ter hoje. A amizade é indispensável ao homem pata o bom funcionamento de sua memória. Lembrar-se do passado, carregá-lo sempre consigo é talvez condição necessária para conservar, como se diz, a integridade do seu eu. Para que o eu não se encolha, para que guarde seu volume, é preciso regar as lembranças como flores num vaso e essa rega exige um contato regular com testemunhas do passado, quer dizer, com os amigos. Eles são nosso espelho; nossa memória; não exigimos nada deles, a não ser que de vez em quando nos lustrem esse espelho para que possamos nos olhar nele. Mas estou pouco ligando para o que fazia no ginásio! O que sempre desejei, desde a adolescência, desde a infância talvez, foi outra coisa: a amizade como valor elevado acima de todos os outros. Gostava de dizer: entre a verdade e o amigo, escolho sempre o amigo. Dizia para provocar, mas acreditava seriamente nisso. Hoje sei que esta máxima está superada. Podia ser válida para Aquiles, amigo de Pátroclo, para os mosqueteiros de Alexandre Dumas, até mesmo para Sancho, que era um amigo verdadeiro de seu amo, apesar de todas as suas desavenças. Mas para nós ela não vale mais. Vou tão longe no meu pessimismo que hoje estou pronto a preferir a verdade à amizade. (…) A amizade para mim era a prova de que existe alguma coisa mais forte do que a ideologia, do que a religião, do que a nação. No romance de Dumas, os quatro amigos se encontram muitas vezes em campos opostos, obrigados assim a lutar uns contra os outros. Mas isso não altera a amizade deles. Não deixam de se ajudar (…). Como a amizade nasceu? Certamente como uma aliança contra a adversidade, sem a qual o homem ficaria desarmado perante seus inimigos. Talvez não se tenha mais necessidade de alianças desse tipo. (…) [os inimigos] são invisíveis e anônimos (…). Atravessamos nossas vidas sem grandes perigos, mas também sem amizade”.2 Ao pensar em como redigir os agradecimentos, lembrei de um trecho de Milan Kundera, sobre a diferença entre caminhos e estradas. Minha memória me traiu e procurei na obra errada. Foi então que encontrei o excerto que transcrevi. As personagens de Kundera invariavelmente levam-me à reflexão sobre a formação do caráter e da identidade e sobre o nosso relacionamento com o outro. Jean-Marc que me perdoe, mas penso que o pessimismo incorre em petição de princípio. Posso até compreender que, diante de inimigos invisíveis, as amizades desmanchariam no ar. Como diria Baumann, nossas relações liquefeitas, em rede distante e virtual. Compreender não significa concordar. Ainda creio na amizade como uma das virtudes nicomaquéias, aquelas amizades que são preciosamente cultivadas nos mais diversos âmbitos da existência, cada qual com suas nuances, na vida familiar, íntima, profissional. Acredito na solidez em tempos líquidos e creio que os agradecimentos que seguem dão uma boa prova. Agradeço imensamente a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuíram na construção deste trabalho. Os agradecimentos não se restringem às pessoas e instituições que colaboraram de modo direto para a pesquisa, mas àquelas que, por algum meio, tornaram-na viável. Meu sincero muito obrigada: 2 KUNDERA, Milan. A identidade. Trad. Teresa Bulhões de Carvalho. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.43-46. vi À Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Aos meus olhos que buscam cor, a primeira impressão foi cinzenta. Mas as cores estão nas pessoas que compõem a Universidade. Bastou saber olhar para encontrar um ambiente de aprendizagem, respeito e efervescência acadêmica. Agradeço especialmente à Pós-Graduação em Direito, pela acolhida, seriedade, republicanismo e espaço proporcionado. À CAPES, por viabilizar materialmente parte da realização da pesquisa, bem como pela manutenção dos portais de periódicos e de teses e dissertações. À Universidade do Extremo Sul Catarinense, por proporcionar aos seus docentes a constante busca pelo saber. Ao Prof. Dr. Luís Roberto Barroso, pelo exemplo. Pela confiança. Pela sabedoria. Por ser a pessoa que é. Mais do que exemplo acadêmico, exemplo de vida. Em um dos seus discursos, ele escreveu que teve uma pitada de sorte em sua carreira (mas eu creio que o merecimento, no seu caso, não depende de sorte alguma...). De qualquer modo, desta vez a sorte esteve comigo, por ser orientada por um estudioso tão competente e com tantas virtudes morais. Como aprendi com meu orientador de mestrado, existem virtudes que só os espíritos elevados possuem. Felicidade a minha conviver academicamente com uma pessoa assim, que não apenas crê no bem, na tolerância e igualdade,mas os pratica, sem perder a leveza e o bom humor. Tudo isso em conjunto a um conhecimento jurídico inigualável. Obrigada. Ao Prof. Dr. Daniel Sarmento, pesquisador incansável, que constrói e pratica o direito sempre ao ensejo do igual respeito e consideração. Como Professor, instiga os estudantes ao exercício do pensar, com abertura, inteligência e, claro, com igual respeito e consideração. Obrigada por todos os ensinamentos, pelo espaço, pelas indicações de leitura, troca de ideias. Com certeza minha trajetória acadêmica estará profundamente marcada pelas suas aulas. Obrigada. À Profª. Drª. Bethânia de Albuquerque Assy, uma daquelas surpresas inacreditáveis que a vida nos traz. Obrigada pelos ensinamentos, pelos debates, pela confiança. Obrigada por mostrar a sabedoria, o tempero da força com a gentileza, da razão com a sensibilidade. Obrigada pela inspiração. Ao Prof. Dr. Ricardo Lobo Torres, pela sua seriedade e amor pela vida acadêmica, que se transmite aos seus alunos. Agradeço também pela paciência e incentivo. Expresso minha intensa admiração pela combinação ímpar de conhecimento e humildade. À Profª. Drª. Maria Celina Bodin de Moraes e à turma de civil-constitucional pela instigação ao conhecimento e pela acolhida. À Professora Ana Paula de Barcellos, pela seriedade, caráter e receptividade. Ao Prof. Dr. Ingo Sarlet, pelos ensinamentos e, especialmente, por ter enviado um texto crucial para o desenvolvimento do projeto de doutoramento. A todos os professores da Pós-Graduação em Direito da UERJ, em especial às professoras Jane Reis Gonçalves Pereira, Patrícia Glioche e Paulo Galvão. Agradeço imensamente à Sônia Leitão, que, com gentileza, simpatia e competência, está sempre pronta a auxiliar e amparar os pós-graduandos da UERJ. Ao Prof. Dr. Cláudio Ladeira de Oliveira, pelo grande apoio acadêmico. Ao Prof. Dr. Salo de Carvalho, pela colaboração acadêmica. vii Aos colegas do mestrado e do doutorado em Direito da UERJ, em especial: Amália, uma amiga de verdade. Bruno e Antônio, colegas, interlocutores e amigos. Fábio Andrade e Rachell, pela amizade e gentileza. Fábio Leite, pela interlocução e amizade. À Ana Maria, pela força e constância. Aos Professores Sílvio Dobrowolski e Moacyr Motta da Silva, sempre presentes. Ao meu grande e primeiro amigo Daniel Aragão, ou seria Dartagnan? À minha grande e primeira amiga, Carla Ribeiro, ou seria Aramis? À minha amiga Cristiane de Menezes. Única. Demorei mais de dez anos para perceber sua estatura real, tão grande a alma... À minha amiga Leca. À minha amiga Mônica, “em todo tempo ama o amigo, e na angústia se faz o irmão” (Rogério, você também...). Ao meu amigo Carlos Strapazzon, ou seria Athos? À minha amiga Liana Lins, que sabe onde a beleza está. À minha amiga Dida, presente enviado pela Liana, a riqueza em pessoa. À minha querida amiga Débora, “presença certa nas horas incertas”. As amigas de sempre, Dani Estevão, Fofa, Bila, Luthi, Karen (eu estou muito ligando para o que fazíamos no ginásio!), Di, Simone, Kümell, Pati, Josi, Flica&Fábio. Agradeço também à Aline Daronco, Valerinha, Bibi, Rogério e Ekatherina. Ao Gustavo Pedrollo, pela trilha sonora. À Ju, por cuidar de como pisar com alma leve. Agradeço à Diana, Ivi e Maíra, pelo apoio. Aos colegas e estudantes da UNESC, principalmente os Professores Luís Afonso, Gildo Volpatto, Félix, Ricardo Pinho, João Quevedo, Michel Alisson, Aline Bez, Alfredo Engelmann, Janete, Sheila, Geralda, Carlos Magno, Clélia, Tânia, Vanessa e Karina. À Patrícia Gaspar dos Santos. E, mais do que especial, à Louvani de Fátima Sebastião da Silva. Aos amigos da Prorunner, especialmente Riro e Kari, Santi e Vavá, Gerusa e ao Marco. Aos amigos da Água Doce, por entenderem a falta de horários... À Maria Joana, presença constante, forte e discreta na minha vida acadêmica. Creio que todos os meus textos passaram por suas mãos... À Ana Agassi e sua família, verdadeiros amigos. Reservei o final àqueles a quem mais grata sou. Sempre: Nadão (in memorian), Izara, Teca, João, Gué (a terceira), Paulo, Inho, Greice, Camilinha, Kenji, Fer, Zé, Ellen, João, Rafa, Catito, Clarice, Lelo, Jamile, Lucca e Jaime. A propósito, o doutorado foi um caminho, não uma estrada. E a obra era A imortalidade... SUMÁRIO 1. (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: DEMARCAÇÕES CONCEITUAIS E DISTINÇÃO DE FIGURAS AFINS................................................................. 15 1.1 DIREITOS INDISPONÍVEIS: CONCEITO LACÔNICO, CONSEQUÊNCIAS DUVIDOSAS ...................... 17 1.1.1 A DOUTRINA: TENDÊNCIA CONCEITUAL E DISTINTOS POSICIONAMENTOS ................................... 17 1.1.2 A LOCUÇÃO DIREITOS INDISPONÍVEIS: SEUS DIVERSOS SENTIDOS NA LEGISLAÇÃO E NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRAS ............................................................................................................. 22 1.1.3 SÍNTESE CONCLUSIVA .................................................................................................................. 34 1.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS: COMPREENDER A ESTRUTURA PARA COMPREENDER O CONCEITO ............................................................................................................................................................... 37 1.2.1 CONFUSÃO CONCEITUAL E A IMPORTÂNCIA DA CLAREZA ........................................................... 37 1.2.2 OPÇÃO METODOLÓGICA ............................................................................................................... 38 1.2.3 ESTRUTURA DE UM DIREITO FUNDAMENTAL................................................................................ 40 1.2.4 SÍNTESE CONCLUSIVA E TOMADA DE POSIÇÃO............................................................................. 57 1.3 DISPOSIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: UMA PROPOSTA CONCEITUAL ............................... 60 1.3.1 O TRIPÉ: TITULARIDADE DA DIMENSÃO SUBJETIVA, INTERSUBJETIVIDADE E O OBJETO DA RELAÇÃO JURÍDICA JUSFUNDAMENTAL................................................................................................. 60 1.3.2 CONDIÇÃO NECESSÁRIA: MANIFESTAÇÃO AUTÔNOMA ................................................................ 63 1.3.3 ENFRAQUECIMENTO DE POSIÇÕES JURÍDICAS SUBJETIVAS DE DIREITO FUNDAMENTAL.............. 67 1.4 DISTINÇÃO DE FIGURAS AFINS ...................................................................................................... 75 1.4.1 NÃO-EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL............................................................................... 75 1.4.2 RESTRIÇÃO HETERÔNOMA DO DIREITO ........................................................................................ 77 1.4.3 O DANO A SI E A AUTOCOLOCAÇÃO EM RISCO.............................................................................. 83 2. (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: UM INVENTÁRIO DAS TESES DE JUSTIFICAÇÃO............................................................................................................. 85 2.1 CONCEPÇÕES DE DIREITO SUBJETIVO: AS TEORIAS DA VONTADE E DO INTERESSE .................. 88 2.1.1 DIREITO SUBJETIVO, TEORIA DA VONTADE E DISPOSIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS ............ 89 2.1.2 DIREITO SUBJETIVO, TEORIA DO INTERESSE E DISPOSIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS........... 91 2.2 A EXTENSÃO DO DIREITO DE LIBERDADE E SEUS REFLEXOS SOBRE A DISPOSIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................................................................................................................... 93 2.2.1 O DIREITO GERAL DE LIBERDADE: DIREITOS FUNDAMENTAIS DISPONÍVEIS PRIMA FACIE ............ 94 2.2.2 LIBERDADES BÁSICAS: EXERCÍCIO INTERPRETATIVO PARA DETERMINAR O PONTO DE PARTIDA 99 iv 2.2.3 SÍNTESE CONCLUSIVA E TOMADA DE POSIÇÃO........................................................................... 108 2.3 LIMITES À LIBERDADE:O PRINCÍPIO LIBERAL DO DANO E O PATERNALISMO JURÍDICO ........ 113 2.3.1 O PRINCÍPIO LIBERAL DO DANO .................................................................................................. 115 2.3.2 O PATERNALISMO JURÍDICO ....................................................................................................... 121 2.3.3 PATERNALISMO JURÍDICO E INDISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS...................... 142 2.4 A DIGNIDADE HUMANA: A TENSÃO ENTRE AS VERSÕES AUTÔNOMA E HETERÔNOMA ............ 147 2.4.1 A DIGNIDADE HUMANA COMO CONCEITO INÚTIL ....................................................................... 149 2.4.2 A DIMENSÃO MATERIAL DA DIGNIDADE HUMANA ..................................................................... 151 2.4.3 DIGNIDADE HUMANA COMO VIRTUDE ....................................................................................... 153 2.4.4 A DIGNIDADE HUMANA COMO AUTONOMIA ............................................................................... 154 2.4.5 A DIGNIDADE HUMANA COMO HETERONOMIA ........................................................................... 172 2.4.6 DIGNIDADE HUMANA E DISPOSIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: ASSUMINDO UMA POSIÇÃO188 3 (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: UM INVENTÁRIO DAS TESES DE APLICAÇÃO................................................................................................................. 201 3.1 AS MODALIDADES DE DISPOSIÇÃO DE POSIÇÕES JURÍDICAS SUBJETIVAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................................................................................................................. 203 3.2 QUALIDADE DO CONSENTIMENTO.............................................................................................. 212 3.2.1 OS SUJEITOS DO CONSENTIMENTO.............................................................................................. 217 3.2.2 GENUINIDADE DO CONSENTIMENTO .......................................................................................... 232 3.3 OS SUJEITOS DA RELAÇÃO JURÍDICA DE DIREITO FUNDAMENTAL .......................................... 267 3.4 OS POSTULADOS NORMATIVOS................................................................................................... 275 3.5 O CONTEÚDO ESSENCIAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DISPOSIÇÃO: O LIMITE DOS LIMITES?............................................................................................................................................. 289 4 (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: O DIREITO À VIDA NO CONTEXTO DA MORTE COM INTERVENÇÃO ..................................................................... 297 4.1 O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA: UM VELHO (DES)CONHECIDO............................................ 303 4.1.1 O DIREITO À VIDA: APONTAMENTOS INICIAIS ......................................................................... 303 4.1.2 A ESTRUTURA BÁSICA DO DIREITO À VIDA................................................................................. 311 4.2 DA INDISPONIBILIDADE DO DIREITO À VIDA ........................................................................... 326 4.3 DISPOSIÇÃO DE POSIÇÕES SUBJETIVAS DO DIREITO À VIDA NO CONTEXTO DA MORTE COM INTERVENÇÃO ..................................................................................................................................... 333 4.3.1 MORTE COM INTERVENÇÃO: UM DIÁLOGO SOBRE NOVOS CONCEITOS E SEUS REFLEXOS JURÍDICOS ............................................................................................................................................ 333 v 4.3.2 CONCLUSÕES PARCIAIS SOBRE OS NOVOS CONCEITOS ............................................................ 358 4.3.2 HIPÓTESES DE DISPOSIÇÃO DE POSIÇÕES SUBJETIVAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NA MORTE COM INTERVENÇÃO................................................................................................................. 360 4.4 REVISITANDO A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA: A LIMITAÇÃO CONSENTIDA DE TRATAMENTO 364 4.4.2 LIMITAÇÃO CONSENTIDA DE TRATAMENTO: OUTRA INTERPRETAÇÃO POSSÍVEL NA MOLDURA DO DIREITO PENAL ............................................................................................................................... 373 4.4.3 LEGISLAÇÃO PENAL E LIMITAÇÃO CONSENTIDA DE TRATAMENTO: A NECESSÁRIA FILTRAGEM CONSTITUCIONAL.................................................................................................................................. 377 4.4.4 A LEGISLAÇÃO CIVILISTA: A VEDAÇÃO DA RENÚNCIA, TRANSMISSÃO E NÃO-EXERCÍCIO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE E A LIMITAÇÃO CONSENTIDA DE TRATAMENTO.................... 392 4.4.5 LIMITAÇÃO CONSENTIDA DE TRATAMENTO: QUAL DIGNIDADE? .......................................... 398 4.5 AINDA É LONGO O CAMINHO: AO PERMITIR, É PRECISO REGULAMENTAR .......................... 402 4.5.2 A LIMITAÇÃO CONSENTIDA DE TRATAMENTO: DIRETRIZES BASILARES ................................. 404 4.5.3 OS SISTEMAS DE CUIDADOS PALIATIVOS ................................................................................ 410 4.5.4 OS COMITÊS HOSPITALARES DE BIOÉTICA ............................................................................. 414 4.5.5 EDUCAÇÃO DOS PROFISSIONAIS E INFORMAÇÃO DO PÚBLICO ................................................ 417 REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 430 INTRODUÇÃO “Gosto imensamente desta vida e desejo falar sobre ela com liberdade: dá-me o orgulho de minha condição de homem. Sobre o mar, o silêncio enorme do meio- dia. Todo ser belo tem o orgulho natural de sua beleza, e o mundo, hoje, deixa seu orgulho destilar por todos os poros. Diante dele, por que haveria de negar a alegria de viver, se conheço a maneira de não encerrar tudo nessa mesma alegria de viver? Não há vergonha alguma em ser feliz. Há um tempo para viver e um tempo para testemunhar a vida. (…). Penso agora em flores, sorrisos, desejo de mulher, e compreendo que todo o meu horror de morrer está contido em meu ciúme de vida. Sinto ciúme daqueles que virão e para os quais as flores e o desejo de mulher terão todo o seu sentido de carne e de sangue. Sou invejoso porque amo demais a vida para não ser egoísta... Quero suportar minha lucidez até o fim e contemplar minha morte com toda a exuberância de meu ciúme e de meu horror.”3 “Aqui, compreendo o que se “Aqui, compreendo o que se “Aqui, compreendo o que se “Aqui, compreendo o que se chama glória: o direito de chama glória: o direito de chama glória: o direito de chama glória: o direito de amar sem medida”amar sem medida”amar sem medida”amar sem medida”4 “Eu amo a vida, eis minha verdadeira fraqueza. Amo-a tanto que não tenho nehuma imaginação para o que não for vida”5 3 CAMUS, Albert. Núpcias, o verão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. 4 CAMUS, Albert. Núpcias..., Op. cit. 5 Atribuído a Albert Camus, na obra A Queda, por Jorge Luis Gutiérrez. 2 Conta-se que Sigmund Freud, após dezesseis anos de sofrimentos atrozes em decorrência de um câncer de maxilar, solicitou ao seu fiel amigo e médico Schur a abreviação daquilo que chamou tortura. Com a aquiescência de Anna, o médico despediu-se do amigo e ministrou doses demasiadamente altas de morfina. Diz-se que Freud havia viajado à Inglaterra para morrer em liberdade (parafraseando Veríssimo, é assim que nascem os mitos)*. Setenta anos se passaram. Neste longo lapso, o mundo assistiu à barbárie nazista, à matança, dita eugênica, de milhões de pessoas. Forjaram-se Declarações Internacionais de Direitos, manifestou-se, mais e mais, o intenso e sagrado valor da vida e da liberdade humanas. Paralelamente,muito avançou a medicina, tanto em suas técnicas, como na discussão do seu papel ético. Também mudaram muito as sociedades políticas ocidentais, que vem se modificando, se reconstruindo criticamente e quebrando muitos tabus, como os referentes à sexualidade, à família, e também à morte. Repudiada a ideia eugênica, segue aceso o debate a respeito da escolha, livre, do momento e das condições da própria morte. Sabe-se que o tema da eutanásia voluntária, do suicídio assistido e da recusa e da suspensão de tratamentos médicos está na ordem do dia. Na linguagem cinematográfica, o morrer voluntariamente foi retratado em quatro magnânimas obras, todas galardoadas com prêmios de destaque. No canadense As Invasões Bárbaras, um professor, acometido de incurável enfermidade, escolhe morrer entre seus amigos, e recusa, com veemência, a internação em um sistema de saúde altamente avançado, para manter-se fiel às suas mais altas convicções político-sociais. No espanhol Mar adentro, versão artística de um caso real, um homem luta com todas as forças para despedir-se da vida, diante de uma condição que considerava exageradamente sofrível. No estadunidense Menina de Ouro, sentimentos confusos levam um treinador, a pedido da amiga boxeadora, a realizar um homicídio piedoso. Mais leve, o Escafandro e a Borboleta mostrou, biograficamente, a realidade de quem padece e os diferentes modos de enfrentar o sofrimento. São representações simbólicas de um assunto da mais alta seriedade e complexidade. Os profissionais e pesquisadores da saúde, os bioeticistas, os juristas, os ativistas dos direitos humanos, os pacientes e a sociedade em geral abordam-no sob os mais variados ângulos. * A palavra “conta-se” foi utilizada porque não há certeza histórica a respeito dessa passagem da vida de Freud, que é largamente repetida, por vários autores e até mesmo via internet. Informa-se que, a título de estruturação de texto e ordenação metodológica, a Introdução e a Conclusão da tese não trazem indicações bibliográficas, pois as informações nelas contidas encontram-se devidamente atribuídas ao longo da tese. Salvo quando tal não ocorre é que se faz a menção completa. 3 Variam entre extremos: há tabus, há estudos profundos à luz da principiologia da bioética, de teorias da moral e da justiça, há pesquisas sob a ótica da dignidade da pessoa humana, da intangibilidade do direito à vida, da exaltação da liberdade humana, há visões religiosas. Há preocupação com o perigo constante da ladeira escorregadia, de reviver os tempos hitlerianos. Há preocupação com o perigo constante da submissão compulsória de pessoas acometidas por doenças incuráveis, debilitantes, no limiar da vida, a sofrimentos exasperadores. O debate atinge a arena das instituições jurídico-políticas em diversos países. Legisladores propõem desde proibições mais árduas às práticas de abreviamento piedoso da vida até permissões relativamente amplas da limitação consentida de tratamento, da eutanásia voluntária e do suicídio assistido. Nancy Cruzan, Sue Rodriguez, Ramon Sampedro, Diane Pretty, Anthony Bland, Terry Schiavo, Hannah Jones e Eluana Englaro tiveram seus dramas privados expostos na arena pública quando eles, ou seus representantes, levaram ao Judiciário seus pleitos pela abreviação do processo de morrer ou pelo direito de recusar intervenções médicas de prolongamento de vida, pela permissão de suicidar-se com auxílio e até pelo assim chamado direito de morrer. Também há casos como os dos médicos Thimothy Quill, Jack Kervockian e Maurice Genereux, que foram acusados por haver, deliberadamente, auxiliado ou causado as mortes de seus pacientes. Então, os órgãos judicantes são chamados a se manifestar, quer quando da acusação de pessoas que realizaram estes atos, quer quando da arguição de inconstitucionalidade de leis restritivas ou permissivas. Já houve, inclusive, decisões judiciais reconhecendo o direito à morte digna e também o direito de recusar ou exigir suspensão de tratamento médico. Está-se frente a uma importante gama de problemas práticos da justiça. Não somente os legisladores e julgadores de países específicos enfrentam a questão. Organismos, Cortes e Associações Profissionais, nacional e internacionalmente, são chamados ao debate. Juridicamente, o assunto faz emergir muitas perguntas, dentre elas, se é possível dispor do direito fundamental à vida. É possível, mediante consentimento genuíno, despojar alguns ou diversos indivíduos dos deveres gerados pelo direito fundamental à vida? Responder essas indagações exige enfrentar, no plano jurídico-constitucional, a teoria dos direitos fundamentais, em especial no que toca a uma característica que é comumente impingida ao direito à vida: a indisponibilidade. 4 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em que pese manifestar a inviolabilidade de uma série de direitos fundamentais, não expressa proibição geral acerca da livre disposição dos direitos fundamentais pelo titular. O Código Civil brasileiro, por seu turno, ao tratar dos direitos da personalidade, proíbe expressamente sua renúncia e a limitação voluntária do seu exercício, ressalvando os permissivos legais. Ora, se a Constituição brasileira não elencou tal enunciado geral de indisponibilidade dos direitos fundamentais, poderia o legislador ordinário fazê-lo quanto aos direitos da personalidade6? Ao categorizar um direito fundamental como indisponível, não seria lançada sobre o titular uma ablação correlata em seu âmbito de liberdade? Tal não significaria que, na exata medida em que o titular não pudesse dispor do direito, existiria constrição à sua liberdade quanto ao destino de seus próprios direitos? Além disso, quando um direito fundamental é identificado como indisponível, recairia, sobre todos os demais, o dever de não infringi-lo mediante consentimento do titular. Haveria, nesse dever, ablação de posições jusfundamentalmente protegidas?7 Se efetivamente houver ablação de posições jusfundamentalmente protegidas, quer do titular, quer de terceiros, é necessária justificação adequada, é preciso arcar com o ônus argumentativo. Quando se tem em mente o direito fundamental à vida, a justificação para a indisponibilidade soa autoevidente. Trata-se de proteger zelosamente o direito que se afigura como pré-condição à titularidade e exercício de todos os outros direitos; trata-se de demonstrar a valorização e o respeito que uma determinada sociedade lança sobre o valor vida humana; trata-se, prioritariamente, de proteger direitos de terceiros. Acaso fosse o direito fundamental à vida reputado disponível, considerar-se-ia o consentimento do titular, mesmo em circunstâncias banais e simplistas, mecanismo hábil a ensejar seu desrespeito. Com dois exemplos, um singelo, outro até macabro, inspirados em casos reais, pode-se ilustrar a situação. Um jovem, ao colocar uma garrafa na boca, consente que outro atire na garrafa, assumindo declaradamente o risco de perder a vida com a brincadeira. Quando o tiro é proferido, acerta o alvo e o jovem, que falece. Noutra hipótese, 6 Nesta tese, entende-se, com apoio em Luís Roberto Barroso, que os direitos da personalidade são algumas projeções dos direitos fundamentais na esfera das relações privadas. Já os direitos humanos, como situa Ingo Sarlet, referem-se aos sistemas de proteção internacional dos direitos (sistemas regional e global) e os direitos fundamentais ao sistema nacional de proteção. 7 Não se desconhece a problemática da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, apenas se está a referir o direito à vida como aplicável a estas relações em razão das mediações concretizadoras já existentes. Tampouco é ignorada a diferença entre Estado e particulares na violação de direitos fundamentais.As distinções serão formuladas ao longo da tese. 5 dois homens adultos pactuam que um pode matar o outro, dividir seu corpo e comê-lo, com o consentimento da vítima e evidências, inclusive escritas, da aquiescência. Teria o consentimento, emitido em frente a testemunhas, ou devidamente comprovado, o condão de neutralizar os efeitos jurídicos do ato praticado, bem como de absolver o agente? Se a resposta a esta indagação for afirmativa, diversos problemas serão postos. Um deles, de fundo, é a vulgarização da vida humana e até a aceitação de uma cultura da morte. Outro deles refere-se a uma séria diminuição da capacidade de um sistema jurídico de responder a ataques ao direito à vida. Dificilmente um homicida deixaria de alegar que a vítima consentira na sua conduta. Desta feita, a tutela do direito à vida de terceiros não consententes estaria sob sério risco. Percebe-se, com certa nitidez, que pode haver coerência e plausibilidade na justificação da indisponibilidade do direito fundamental à vida, e, por conseguinte, na eventual restrição do âmbito de liberdade do titular e dos outros indivíduos. Sustentar a indisponibilidade do direito à vida acarretaria uma série de benesses e produziria impactos mínimos sobre outros direitos ocasionalmente colidentes. Todavia, a questão foi exemplificada a partir de um de seus extremos. Existe outro ângulo a considerar. Uma vez categorizado o direito à vida como indisponível, uma outra gama de situações será abrangida. Incluem-se nesse extrato pessoas que, em condições nada ordinárias, reclamam a possibilidade de dispor de posições subjetivas do direito à vida, seja por estarem acometidas por doenças terminais extremamente dolorosas ou por enfermidades degenerativas que conduzem à perda paulatina da independência. Ou, ainda, por pessoas que, antevendo algumas condições que julgam demasiadamente penosas para suportar, manifestam formalmente sua vontade no sentido de não serem mantidas em estado vegetativo persistente, ou de não serem submetidas a processos de ressuscitação. Em posição distinta, mas incluídos na mesma gama, estão os profissionais da saúde. Versados na arte do cuidado e da cura, os profissionais da saúde podem ser levados a tratar alguns pacientes que não mais querem receber tratamento, iniciando uma relação que não se funda no consentimento nem no reconhecimento do outro como um sujeito jurídico-moral pleno, mas na autoridade ou no paternalismo. Nestas ocasiões, pode-se dar vazão à chamada distanásia, ao prolongamento sacrificado da vida, até com o emprego da futilidade médica, ou mesmo à obstinação terapêutica. A arte de curar se transmuda, então, na arte de prolongar a vida a qualquer custo e sob quaisquer condições. Além disso, os profissionais da saúde, 6 acuados pelas normas jurídicas vigentes, podem lançar mão das técnicas referidas, não apenas contra a vontade dos pacientes, mas em violação à sua própria consciência. Nestas situações in extremis, a equação formulada para fundamentar a indisponibilidade do direito à vida parece inverter-se. Se a linha geral, a indisponibilidade, quando aplicada a um sem-número de casos distintos, atinge resultados plausíveis e acordes com a proteção dos direitos fundamentais, da vivência societária e da dignidade humana, quando aposta neste outro extremo, composto por um grupo bem seleto de casos, torna-se perversa. Começam a pesar, ao lado da liberdade, outros direitos e metas societárias, como a prevenção do sofrimento, o bloqueio de tratamentos desumanos ou degradantes, a dignidade na morte e a memória póstuma. Aqui, as justificações da indisponibilidade mostram-se mais tênues, e as inquietações mais salientes. É justificável que um sistema jurídico, ancorado nas teses de indisponibilidade do direito fundamental à vida, exija que um indivíduo sofra dolorosamente? É justificável que exija que as relações dos profissionais da saúde com seus pacientes sejam autoritárias e paternalistas? É justificável a limitação da esfera de liberdade de pacientes e profissionais da saúde? Nestas situações, são efetivamente mínimos os danos proporcionados por figurar o direito à vida no rol dos direitos indisponíveis? Para que a indisponibilidade do direito à vida siga plausível mesmo nessas condições, seus argumentos de sustentação devem possuir relevância suficiente frente aos mencionados direitos e interesses. Foi exatamente a partir deste segundo extremo que nasceu o problema de pesquisa desta tese de doutoramento: “Podem-se considerar hipóteses de disposição de posições jurídicas do direito fundamental à vida? Quais os limites e padrões a serem observados, sob o enfoque constitucional, para a autolimitação de posições jurídicas subjetivas do direito à vida?” Como hipótese, foi formulada a seguinte: Apesar de ser justificável, em linha de princípio, que um sistema jurídico repute o direito à vida indisponível, poderá ocorrer a autolimitação, mediante consentimento genuíno, quando associada a determinadas condicionantes de fato e de direito. Então, a par de todas estas vertentes de exame e das questões práticas, a tese que ora se apresenta tem como meta estudar a temática em um recorte epistemológico bastante definido. Em virtude da muito difundida tese da indisponibilidade dos direitos fundamentais, lança-se como questão central a possibilidade de se considerar hipóteses de disposição do direito fundamental à vida, bem como a existência de limites e padrões a serem observados, sob o enfoque constitucional, para a autolimitação, mediante consentimento, de posições jurídicas subjetivas deste direito fundamental. 7 A pesquisa é justificada em face da gravidade dos casos-limite apontados linhas atrás. Como será visto, é necessário definir com precisão e rigor a locução indisponibilidade dos direitos fundamentais. Faz-se mister que sejam densamente conhecidas as origens e as razões das teses de defesa da indisponibilidade dos direitos fundamentais, assim como é necessário aprofundar o estudo das consequências dessa classificação. Importa conhecer, ainda, as teses que negam a indisponibilidade dos direitos fundamentais e examinar os resultados da sua adoção. Assevera-se que essas investigações são necessárias, pois a indisponibilidade do direito fundamental à vida (assim como dos demais direitos), se tomada como simples comando a priori, ou como dogma, pode se converter em um absoluto que oblitera o debate. Sem que se conheçam suas raízes e suas formulações teóricas, pode ela demudar-se em um rótulo que traduz tanto as mais sinceras e aceitáveis defesas constitucionais do direito à vida, quanto as mais arraigadas vertentes ideológicas, religiosas ou morais abrangentes, muitas vezes situadas à longa distância dos argumentos constitucionalmente admissíveis. Sem o devido aprofundamento teórico, a indisponibilidade pode tornar-se um locus argumentativo privilegiadíssimo, cuja simples invocação é capaz de encerrar e fundamentar o deslinde de um problema concreto, por mais que ele se afigure um hard case. Mais premente se torna este exame, na medida que se visualiza, na doutrina e na jurisprudência nacionais, uma imprecisão conceitual muito intensa no cenário da indisponibilidade dos direitos fundamentais. Os vocábulos jurídicos adicionados aos direitos fundamentais, absolutos, indisponíveis, irrenunciáveis, intransferíveis e invioláveis, são compreendidos de diversas maneiras, havendo quem iguale absolutização, indisponibilidade e inviolabilidade, quem elabore distinções entre tais termos, ainda que tais distinções sejam, por vezes, divergentes e até antagônicas. Ademais, algumas concessões já são feitas à tese da indisponibilidade dos direitos fundamentais, tanto no plano de justificação quanto no aplicativo. No primeiro, são construções teóricas sobre as funções dos direitos fundamentais, sobre a extensão do direito deliberdade, o paternalismo jurídico e seus institutos afins e, também, sobre a dignidade humana. No segundo, são construções teóricas referentes ao núcleo mínimo dos direitos fundamentais, à diferenciação entre um direito e seu exercício, entre um direito e seu objeto, e, ainda, à categorização de modalidades de disposição. Neste ponto, o direito à vida mostra sua singularidade. É extremamente difícil tentar imaginar situações nas quais o titular possa 8 dispor do bem protegido ou do exercício do direito à vida sem que esteja a abrir mão do próprio direito, assim como parece o direito à vida confundir-se com seu conteúdo essencial. A temática da indisponibilidade do direito à vida é carregada de nuances que a tornam unicamente intrincada. Várias das propostas de relativização da tese da indisponibilidade mostram-se falhas ou superficiais quando a ele aplicadas. O direito possui certos elementos distintivos que efetivamente dificultam a situação. Entretanto, é preciso manifestar que da dificuldade teórica não se pode retirar a indisponibilidade de um direito. Pois, frisa-se, ao passo que se caracteriza o direito à vida como indisponível, pode-se impactar negativamente outros direitos do titular ou de terceiros, sem, muitas vezes, haver uma proteção correlata de outros direitos, tampouco cumprimento do ônus argumentativo. O exposto torna clara a razão da escolha do direito à vida. Suas singularidades teóricas e os problemas práticos e atuais relativos à sua indisponibilidade são justificativas suficientes. O problema da indisponibilidade do direito à vida reclama propostas de solução acordes com o sistema constitucional. Não podem valer soluções demasiadamente simplistas, calcadas em noções paternalistas de proteção do indivíduo contra seus próprios atos, à revelia de seus interesses, direitos, e das suas mais profundas convicções, nem soluções cujo lastro são axiomas intocáveis, que, com a palavra mágica indisponíveis, fundamentam hard cases e desconsideram direitos fundamentais. Na mesma esteira, não são aceitáveis soluções vazias de argumentação, como aquelas que alçam o direito à vida à posição hierarquicamente superior aos demais e, portanto, o excluem de qualquer debate. Cada uma das soluções propostas deve estar respaldada em profundas reflexões quanto ao desenho de políticas públicas de proteção dos direitos fundamentais. E qualquer olhar acurado não pode prescindir da análise do impacto adverso nos mais variados leques de situações, não pode abster-se de investigar detidamente todos os direitos fundamentais em jogo, nem pode deixar de considerar a proteção de terceiros. É necessário, pois, um arrazoado qualificado e o estabelecimento de mecanismos razoáveis de tutela. Nesse sentido, o objetivo geral da tese consiste em investigar a possibilidade de disposição de posições jurídicas subjetivas do direito fundamental à vida e os limites e padrões para o consentimento autolimitador, à luz do atual sistema brasileiro de regras e de princípios constitucionais, no contexto da morte com intervenção. Para tanto, há quatro objetivos específicos, cada qual correspondente a um capítulo da pesquisa: (a) delimitar conceitualmente a disposição de direitos fundamentais, distinguindo-a de figuras afins e de outros institutos jurídicos; (b) investigar as teses de justificação da (in)disponibilidade dos 9 direitos fundamentais, ou seja, os motivos pelos quais se aceita-se ou se rechaça a possibilidade de disposição; (c) investigar as teses de aplicação propostas para o problema da disponibilidade; (d)compreender e discutir a autolimitação de posições jurídicas subjetivas do direito fundamental à vida à luz do atual sistema constitucional brasileiro de princípios e de regras no contexto da morte com intervenção. Para tanto, a tese está dividida em quatro capítulos. No Capítulo 1, será formulado um mapeamento dos sentidos conferidos à expressão direitos indisponíveis na doutrina e na jurisprudência brasileiras, pois a expressão parece confusa e de aplicação discutível. A seguir, será estudada a estrutura dos direitos subjetivos e as posições jurídicas subjetivas de direito fundamental, a fim de melhor apreender a primeira parte da expressão direitos indisponíveis. Compreendida a estrutura dos direitos subjetivos fundamentais, será discutido o sentido de indisponível e proposto um conceito para a indisponibilidade de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental. Por fim, a (in)disponibilidade será diferenciada de institutos que podem com ela confundir-se, como o não-exercício de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental, a interferência heterônoma nos direitos fundamentais, a autocolocação em risco e o dano a si. Perceber-se-á que a disposição está associada ao consentimento, condição necessária à disposição. No Capítulo 2, serão inventariadas as teses de justificação tanto da disponibilidade quanto da indisponibilidade. Nem todas as teses pertencem ao mesmo marco teórico. Por isso, será discutida sua possível adequação ao marco teórico adotado na tese e, também, ao sistema constitucional brasileiro. Será visto que nem todas as teses admitem ou recusam de plano a disponibilidade ou a indisponibilidade de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental. No fundo, trata-se de discutir a suficiência do consentimento para a disposição diante de aspectos substantivos, ou seja, trabalhar as razões pelas quais o consentimento deve ou não ser suficiente à disposição em um sistema jurídico. Neste rumo, serão apreciadas as seguintes justificações: (a) a concepção de direito subjetivo; (b) a extensão do direito de liberdade; (c) o paternalismo jurídico e seus institutos afins; (d) a dignidade humana. No Capítulo 3, serão investigadas as teses de aplicação propostas para o exame da disponibilidade de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental. A simples existência das teses denota certa aceitação da disponibilidade, dando a perceber que já existe relativização da propagada ideia de indisponibilidade de todos os direitos fundamentais. Serão examinadas as seguintes propostas: (a) as modalidades de disposição de posições jurídicas subjetivas de direitos fundamentais; (b) a qualidade do consentimento; (c) os sujeitos da 10 relação de disposição; (d) a proteção de direitos de terceiros; (e) os postulados normativos aplicativos; (f) o conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Enfim, no Capítulo 4, os elementos dos três primeiros capítulos serão conjugados para aplicação no problema da morte com intervenção, que envolve disposição de posições jurídicas subjetivas do direito fundamental à vida. Neste ensejo, será, inicialmente, formulada a estrutura do direito subjetivo fundamental à vida, com demarcação das posições subjetivas e discussão das suas características e alcance. Logo após, serão trabalhadas as situações referentes à terminalidade da vida, à luz dos conceitos adotados no campo hegemônico da bioética. Discutir-se-á a limitação consentida de tratamento (forma de recusa de tratamento médico), a extensão do dever de salvamento e a disposição de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental no ponto. Como se trata de uma tese de doutoramento, serão propostos alguns limites e padrões à disposição de posições jurídicas subjetivas do direito à vida em cada uma das hipóteses. Como será percebido, nesse Capítulo final sustentar-se-á que as posições jurídicas subjetivas do direito à vida são, em linha de princípio, indisponíveis. Para defender esta posição, serão evitados alguns argumentos, anteriormente descartados na tese. O ponto é muito relevante, uma vez que a tese gira em torno da possibilidade de disposição de posições jurídicas subjetivas do direito fundamental à vida. Ou seja, demonstrar-se-á, primeiro, que é substantivamente justificável que o sistema jurídico brasileiro reputeas posições jurídicas subjetivas do direito à vida indisponíveis, considerando o consentimento, ainda que válido, insuficiente para que terceiros ajam ou deixem de agir de forma que não poderiam se não houvesse o consentimento. Depois, mostrar-se-á que a justificação não é absoluta e válida para toda e qualquer situação. Haverá situações nas quais não subsiste a justificação e o consentimento passa a adquirir suficiência, pois associado a outras condicionantes fáticas e jurídicas. Embora pareça circular e até contraditório primeiro sustentar a indisponibilidade das posições jurídicas subjetivas do direito à vida para depois mostrar situações nas quais haverá disponibilidade, trata-se apenas de uma aparência. Em primeiro lugar, porque efetivamente existem razões de monta para que se considere o direito à vida indisponível. Ademais, este é o pensamento corrente na doutrina e na jurisprudência. Em sendo assim, a pesquisa acadêmica exige não apenas compreender tais razões com olhar crítico, como arcar com o ônus argumentativo caso se pretenda defender posturas diversas, ainda que em casos bem determinados. Em segundo lugar, porque o direito à vida é delicadíssimo. Considerado 11 jusfundamental desde as primeiras Declarações de Direitos e Constituições em sentido moderno (século XVIII), componente da bem conhecida tríade lockeana, ele possui força não apenas substantiva, mas também instrumental. Alguns salientam, inclusive, que seu valor é intrínseco. O direito à vida, por sua estrutura, características e funções, é um direito individual. Todo o engendramento teórico da tese é formulado prioritariamente para os direitos individuais. De início, pode ser semelhante a uma teoria geral, aplicável a todos os direitos. Mas não é este o foco. Alguns argumentos podem, até mesmo, em novas pesquisas, ser transladados para outros tipos de direitos, mas a tarefa exige muito cuidado e atenção às peculiaridades de cada tipo, segundo suas características, estrutura e, especialmente, sua razão de ser e funções em um sistema jurídico. A clivagem epistemológica inclui os direitos individuais. Utilizar os argumentos e conclusões que serão expostos para outros grupos de direitos exige honestidade intelectual. Outro recorte da tese é o tipo de disposição que será examinada. Tratar-se-á apenas dos casos de disposição não-onerosa, ligados ao viés pessoal dos direitos. Estão excluídas do objeto de estudo as hipóteses de disposição onerosa e ligadas ao viés patrimonial ou econômico das posições jurídicas subjetivas de direito fundamental. Então, o centro está nos direitos pessoais (em oposição aos direitos reais), no seu viés existencial (em oposição a um eventual viés econômico dos direitos pessoais). Em sendo o foco primário o sistema jurídico nacional, entendeu-se oportuno centrar a discussão sobre a disponibilidade de posições subjetivas do direito à vida no contexto da morte com intervenção, mais precisamente na limitação consentida de tratamento e nos cuidados paliativos. A agenda dos direitos fundamentais, no que tange à disposição de posições subjetivas do direito à vida, está nesses dois pontos. Há um relevante processo em andamento (ACP da Ortotanásia) e discussões legislativas de monta, inclusive com a realização de audiência pública e aprovação, em uma das Casas Legislativas, da excludente de ilicitude de formas de limitação consentida de tratamento. Cumpre tornar claro que o marco teórico selecionado é o liberalismo igualitário, no qual se concebe o sujeito como hábil a fazer escolhas morais relevantes no que toca à sua existência e também visualiza os sujeitos como iguais entre si8. O marco teórico possui como 8 Compreende-se que se situam nesse marco autores como John Rawls, Ronald Dworkin, Joel Feinberg, Robert Alexy e Cass Sustein, respeitadas suas peculiaridades, é claro. Nesta tese, exercerão influência determinante o 12 pressuposto o fato do pluralismo9. Não se pode confundir o liberalismo igualitário com o libertarianismo, tampouco com o liberalismo clássico e suas neoversões. O liberalismo igualitário situa no indivíduo a unidade de agência, não o substituindo por outras agências coletivas, como a comunidade. Porém, não adota um sujeito completamente ilhado, autossuficiente por si só e absolutamente distanciado de manifestações coletivas do eu. No amplo arco liberal, o liberalismo igualitário não é refratário à ideia de justiça social e suas manifestações na formulação de políticas públicas. Também não recusa de plano a ideia da formação de alguns consensos substantivos a serem protegidos pela força estatal ou promovidos pelo Estado, desde que não sejam produto exclusivo de doutrinas morais abragentes, que penetram nos mais variados ângulos da vida dos sujeitos sem uma base comum de justiça política que eles possam razoavelmente endossar. Tais consensos substantivos, no marco do liberalismo igualitário, coexistem com o fato do pluralismo e com o respeito devido ao sujeito, normalmente traduzido em seus direitos jusfundamentais. A tradução do respeito ao sujeito a partir de seus direitos, que funcionam como seu invólucro protetor, indica que se está a trabalhar com uma teoria baseada em direitos e não com teorias baseadas em deveres ou em metas10. método da integridade de Ronald Dworkin, a concepção dos sujeitos como destinários de igual respeito e consideração, o que exige considerar-se que eles possuem habilidades de agência, dentre elas a de ter uma concepção moral do bem e considerar uns aos outros desse modo”. Ademais, “a identidade pública ou legal do sujeito não se altera se se alterar a sua concepção de bem”. Também são relevantes os estudos de Alexy, especialmente acerca da estrutura dos direitos fundamentais e também, em certa medida, da ponderação, com suas características e seus limites. Joel Feinberg vem à cena especialmente por sua habilidade em precisar conceitos. Cass Sunstein, por seu turno, mostra-se no final do trabalho, em razão da sua proposição de um minimalismo judicial e de seus estudos sobre o Estado regulatório. 9 O termo é de John Rawls. O fato do pluralismo razoável “consiste em profundas e irreconciliáveis diferenças nas concepções religiosas e filosóficas, razoáveis e abrangentes, que os cidadãos têm do mundo, e na idéia que eles têm dos valores morais e estéticos a serem alcançados na vida humana”. Outro fato que Rawls toma como um dado (premissa ora aceita) é o fato da opressão: certas compreensões do bem não podem ser abandonadas a não ser autonomamente, se a constrição for heterônoma, haverá opressão e isso se mostra de modo particularmente forte ao longo da história, especialmente em sociedades calçadas em uma doutrina moral abrangente. Por doutrina moral abrangente, no pensamento de Rawls, são “doutrinas - filosóficas, morais, religiosas - pessoais que englobam, de maneira mais ou menos sistemática e completa, os diversos aspectos da existência humana e, portanto, que ultrapassam as questões meramente políticas, considerando-as como um caso particular de uma concepção mais ampla”. Cf. RAWLS, John. Justiça como eqüidade – uma reformulação. Trad. Claudia Berliner. Rev. Técnica: Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.04-05. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997. RAWLS, John. Justiça e Democracia. Sel. Catherine Audard. Trad. Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. AUDARD, Catherine. Glossário. In: Justiça e democracia. Trad. Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.376. 10 Diferenciam-se aqui as teses (a) baseadas em direitos; (b) baseadas em metas; (c) baseadas em deveres. Nas primeiras, o centroestá no exercício e na preservação de direitos morais (e jurídicos) e os interesses que eles protegem. Nas segundas, o foco está nas consequências produzidas, normalmente à luz de um critério de utilidade. Nas terceiras, o foco está em conformar o comportamento humano segundo proibições estipuladas para manutenção da integridade moral (e jurídica). A respeito, consultar: DWORKIN, Ronald. Levando os 13 Acredita-se que a combinação do liberalismo igualitário a uma teoria baseada em direitos está em ampla conformidade com a ordem constitucional vigente no Brasil, bem como as teorias e doutrinas formuladas no período que se segue à abertura democrática do país. Algumas peculiaridades de índole mais comunitária podem se mostrar na ordem vigente, mas, como será argumentado adiante, são pequenas aberturas do sistema liberal igualitário ao comunitarismo, sem que este se torne a marca da ordem constitucional atual. Ao liberalismo igualitário e a uma teoria baseada em direitos há outra parte do conjunto. Procurar-se-á, o máximo possível, lidar com a ideia de coerência interna do sistema jurídico, buscando reconstrutivamente a integridade principiológica subjacente ao seu conjunto constitucional, legal e jurisprudencial. Intui-se que a tarefa nem sempre seja possível, principalmente em um sistema jurídico produto de ruptura constituinte recente – final da década de 1980 –, no qual as tradições ainda estão em formação. Como toda pesquisa acadêmica, esta tese tem seus contornos delineados. Centra-se nos problemas da morte com intervenção e da (in)disponibilidade de posições jurídicas do direito fundamental à vida. Diante dos acalorados debates sobre as técnicas de abreviação da vida em circunstâncias extremas, não se pretende, logicamente, que esta pesquisa seja capaz de pôr fim à contenda, muito menos de abrangê-la integralmente. Soa sequer desejável que tal aconteça, pois, com tão precioso direito em liça, em uma sociedade pluralista, a maturação democrática (leia-se, diálogo constitucional, envolvendo os três poderes e a sociedade) há de ser o rumo inexorável para o estabelecimento de políticas públicas. Contudo, é importante tentar contribuir academicamente para o desenlace de alguns tópicos correlacionados ao tema. A tese, a partir de um enfoque epistêmico bastante delimitado, visa a cooperar com a construção de elementos de objetivação e de racionalização do discurso jurídico acerca da indisponibilidade do direito à vida. Salienta-se que não se trata de uma tese sobre a morte, o morrer e sua leitura jurídica. O tema é a (in)disponibilidade de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental, aplicado ao direito à vida no contexto da morte com intervenção. O elemento maturação democrática traz à superfície um assunto: as correlações entre o direito e a bioética. Em primeiro lugar, embora seja comum referir-se à bioética como um sistema uno de pensar, os estudos empreendidos nesse ramo do conhecimento possuem diretrizes e marcos teóricos diversos. Pode-se falar em uma bioética principiológica (hoje direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, Capítulo 6. BROCK, Dan W. Life and death: philosophical essays in biomedical ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p.95-99. 14 hegemônica), comunitarista, utilitarista, feminista, kantiana, fundada na ética da virtude, laica, não-laica, enfim, a bioética encampa diferentes enfoques. Isso não permite que se faça referência ao termo como uno e fechado. Em segundo lugar, os estudos realizados por bioeticistas são forjados, via de regra, na ambiência da filosofia moral e da ética aplicada. Portanto, não podem ser tomados como as soluções únicas e necessárias a um sistema jurídico simplesmente porque se forma certo consenso entre bioeticistas e profissionais envolvidos com as ciências da vida. Se esta postura for adotada, adentra-se em um elitismo epistemológico, no qual um grupo de iniciados em um ou alguns ramos do saber ditam as regras e os princípios de conduta autoritativamente para toda a sociedade política. As soluções e diretrizes eventualmente sustentadas pelos bioeticistas e pelas associações profissionais carecem de ligação com o arcabouço jurídico, especialmente quanto ao debate nas instituições democráticas de cada sistema, sejam elas o Legislativo, o Executivo ou o Judiciário. Nesse sentido, se trabalha, aprioristicamente, nesta tese, com argumentos oriundos de ramos diversos da bioética como autoritativos para solucionar questões jurídicas sem qualquer crivo democrático. O que se propõe é um diálogo entre as vertentes da bioética e o sistema jurídico, ou, parafraseando Potter, a construção de pontes entre as bioéticas, os sistemas jurídicos e as ciências da saúde. 1. (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: DEMARCAÇÕES CONCEITUAIS E DISTINÇÃO DE FIGURAS AFINS “SINÔNIMOS“SINÔNIMOS“SINÔNIMOS“SINÔNIMOS Esses que pensam que existem sinônimos, desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor”11. “AH! OS RELÓGIOS “AH! OS RELÓGIOS “AH! OS RELÓGIOS “AH! OS RELÓGIOS Amigos, não consultem os relógios quando um dia eu me for de vossas vidas em seus fúteis problemas tão perdidas que até parecem mais uns necrológios... Porque o tempo é uma invenção da morte: não o conhece a vida - a verdadeira - em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira. Inteira, sim, porque essa vida eterna somente por si mesma é dividida: não cabe, a cada qual, uma porção. E os Anjos entreolham-se espantados quando alguém - ao voltar a si da vida - acaso lhes indaga que horas são...12” ““““A COISAA COISAA COISAA COISA A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa... e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita”13. 11 QUINTANA, Mário. Caderno H. Rio de Janeiro: Globo, 2007, p.190. 12 QUINTANA, Mário. A cor do invisível. Rio de Janeiro: Globo, 2006. 13 QUINTANA, Mário. Caderno H, p.156. 16 O que significa afirmar a tradicionalmente aceita indisponibilidade dos direitos fundamentais enunciada na introdução? O objetivo nuclear deste Capítulo é enfrentar essa indagação, pois o conceito de disposição dos direitos fundamentais é impreciso. Notam-se diferenças significativas no seu emprego. Algumas vezes, ele é invocado como um axioma, não carecedor de maiores explicações, tampouco de justificação; noutras, integra contextos tão diferenciados entre si que se torna realmente difícil encontrar um mínimo denominador comum que lhe confira utilidade e clareza14. Além disso, a assertiva indisponibilidade dos direitos fundamentais assume duas conotações. A primeira sustenta que a indisponibilidade é parte integrante do conceito de direito fundamental, constituindo-o. Na hipótese, a afirmação da indisponibilidade é meramente descritiva. A segunda, cuja afirmação da indisponibilidade é normativa, entende que é justificável que um sistema jurídico repute os direitos fundamentais como indisponíveis, apresentando razões para que aos titulares não seja permitido dispor dos seus direitos. Nesse sentido, o primeiro item do Capítulo (1.1) destina-se justamente a expor a imprecisão conceitual que reina sobre o assunto. Em seguida, a tarefa consistirá em lapidar o conceito. Porém, para fazê-lo, será necessário ultrapassar outra questão: o entendimento do que seja um direito fundamental. No exame dos direitos fundamentais, não se deterá atenção nas funções que exercem, nem nas razões para se ter direitos, nem na sua justiciabilidade. A opção14 O termo axioma é aqui utilizado no sentido que lhe empresta Humberto Ávila: “Axioma denota uma proposição cuja veracidade é aceita por todos, dado que não é nem possível nem necessário prová-la. Por isso mesmo são os axiomas aplicáveis exclusivamente por meio da lógica, e deduzidos sem a intervenção de pontos de vista materiais. A veracidade dos axiomas é demonstrada pela sua própria e mera afirmação, como se o fossem autoevidentes. Não se encontram, portanto, no mundo jurídico do dever ser, cuja concretização é sempre prático-institucional”. No entender de Ávila, um axioma é tratado “como se fosse descoberto a priori, sem o prévio exame da sua referência ao ordenamento jurídico” [sem grifos no original]. ÁVILA, Humberto. Repensando “o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular”. In: SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo a supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.176-177. ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização jurídica, v.I, n. 4, jul. 2001. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. 17 metodológica consistirá em apreciar a estrutura de um direito fundamental, lançando mão de um olhar analítico e formal, com foco, apenas nas posições e nas relações jurídicas de direito fundamental (itens 1.2.). A partir da compreensão estrutural de um direito fundamental, apresentar-se-á e discutir-se-á um conceito de disposição de direitos fundamentais (item 1.3). Por fim, serão exploradas as diferenças entre a disposição de direitos fundamentais e outras figuras afins, como o não-exercício, a perda, a suspensão e a interferência heterônomas de direitos fundamentais, a autocolocação em risco e o dano a si (item 1.4.). 1.1 Direitos indisponíveis: conceito lacônico, consequências duvidosas Para compreender o sentido da proclamada indisponibilidade dos direitos fundamentais, faz-se necessário investigar na doutrina, na legislação e na jurisprudência os significados atribuídos e as consequências advindas da locução direitos indisponíveis. Assim, iniciar-se-á o estudo pelo levantamento doutrinário quanto aos direitos fundamentais e aos direitos da personalidade, sendo, depois, exposto um amplo levantamento constitucional-legal e jurisprudencial, formulado e redigido com o intuito de desnudar o sentido da expressão direitos indisponíveis e seus impactos15. Analisar- se-á a plurissignificação dos termos direito e indisponível e sua reverberação em diferentes entendimentos sobre o conceito e as consequências da indisponibilidade dos direitos fundamentais. Nesta etapa do estudo, a atenção é primordialmente conceitual. Nos capítulos seguintes, atentar-se-á para questões de justificação e para critérios de aplicação. 1.1.1 A doutrina: tendência conceitual e distintos posicionamentos A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88) não consagrou dispositivo específico referente à indisponibilidade dos direitos fundamentais, nem foi a palavra indisponibilidade esculpida no preâmbulo constitucional. Existe, apenas, referência à indisponibilidade dos interesses individuais no art. 127, associada à legitimidade processual do Ministério Público16. Já o Código Civil, no Capítulo destinado aos direitos da personalidade, trata da indisponibilidade 15 Foi realizada uma ampla coleta jurisprudencial, com enfoque prioritário para os tribunais superiores. Dos dados obtidos, foi elaborado um catálogo com os sentidos da expressão direitos indisponíveis. Não foram excluídos os acórdãos que lidavam com direitos não-fundamentais. Constam aqui os principais sentidos e os acórdãos considerados determinantes. 16 Ver art. 127 da CF/88. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. São Paulo: Saraiva, 2008. 18 desses direitos, ressalvando a limitação voluntária apenas na medida de lei autorizadora17. A doutrina publicista brasileira refere, com poucas exceções, que os direitos fundamentais são indisponíveis18. Na mesma esteira, os privatistas afirmam que os direitos da personalidade são indisponíveis19, e os internacionalistas, que os direitos 17A proibição mencionada encontra-se no artigo 11 do CC: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo seu exercício sofrer limitação voluntária”. BRASIL. Código Civil. Lei nº10.406, de 10/01/2002. São Paulo: Saraiva, 2009. 18 No que se refere ao pensamento constitucional brasileiro, não há aprofundados estudos sobre a temática da existência de direitos fundamentais indisponíveis e suas consequências. O assunto é normalmente tratado de forma pouco generosa e recebe espaço, no mais das vezes, como simples dictum nos manuais, quando da explanação das características dos direitos fundamentais. Como exemplo de publicistas que consideram os direitos fundamentais indisponíveis, José Afonso da Silva: “II – inalienabilidade: são direitos intransferíveis, inegociáveis, porque não são de conteúdo econômico patrimonial. Se a ordem constitucional os confere a todos, deles não se pode se desfazer, porque são indisponíveis. […] IV – Irrenunciabilidade: não se renunciam direitos fundamentais. Alguns deles podem até não ser exercidos, mas não se admite sejam renunciados. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 166. [sem grifos no original]. Tupinambá Miguel Castro do Nascimento assim se refere: “Os direitos e garantias individuais são indisponíveis. Seus titulares não podem transferi-los, negociá-los ou aliená-los a quem quer que seja. Configuram-se como direitos públicos subjetivos que, ingressando na esfera jurídica de alguém, passam a ser tratados como personalíssimos. Por isso, se demonstram intransferíveis, inegociáveis e inalienáveis. […] por idênticas razões, são irrenunciáveis”. NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Comentários à constituição federal: direitos e garantias fundamentais – artigos 1º a 17. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p.17. Luiz Alberto David de Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior mencionam que uma das “características intrínsecas” aos direitos fundamentais é a irrenunciabilidade. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.125. Exatamente no mesmo sentido: CAPEZ, Fernando et al. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva: 2004. Para Alexandre de Moraes, os direitos fundamentais estão “em elevada posição hermenêutica em relação aos demais direitos previstos no ordenamento jurídico, apresentando diversas características: imprescritibilidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade, universalidade, efetividade, interdependência e complementaridade: […] inalienabilidade: não há possibilidade de transferência dos direitos humanos fundamentais, seja a título gratuito, seja a título oneroso; irrenunciabilidade: os direitos humanos fundamentais não podem ser objeto de renúncia. Dessa característica surgem discussões importantes na doutrina e posteriormente analisadas, como a renúncia ao direito à vida e a eutanásia, o suicídio e o aborto”. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. Comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil:. doutrina e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2000, (Coleção Temas Jurídicos) p.41 [itálicos do original. Os grifos não constam do original]. 19 A menção ocorre, normalmente, em relação ao art.11 do Código Civil. Não obstante o fato de os autores enunciarem a indisponibilidade, muitos reconhecem casos de disposição, sem, no entanto, abandonar a classificação. Cite-se,
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