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ANDRÉ MENDES ESPÍRITO SANTO ORTOTANÁSIA E O DIREITO À VIDA DIGNA MESTRADO EM DIREITO PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2009 ANDRÉ MENDES ESPÍRITO SANTO ORTOTANÁSIA E O DIREITO À VIDA DIGNA Dissertação de mestrado apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação do Professor Doutor Gabriel Benedito Issaac Chalita. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2009 Banca Examinadora _______________________________ _______________________________ _______________________________ À Celeste Macêdo Mendes (in memoriam) Aos meus queridos pais, Álvaro e Ângela, pelo amor com que criaram seus filhos e pelo exemplo de vida que representam. Agradecimento Em que pese a dificuldade em listar em poucas linhas todas as pessoas que de alguma forma contribuíram para que este trabalho fosse concluído, não poderia deixar de agradecer ao professor Gabriel Chalita, pela orientação, amizade e apoio incondicional. À professora Márcia Cristina de Souza Alvim, pelo convívio e aprendizado. À Maria Lúcia Borba Rolim, bibliotecária incomparável, cujo amor pela profissão é contagiante. À professora Sandra Konrad, companheira de magistério, pela ajuda e estímulo. Ao professor Fabiano Albuquerque de Moraes, estimado amigo, pelas sugestões e cuidadosa revisão. A todos os amigos queridos, pelo apoio e carinho. “Como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música”. (Rubem Alves) RESUMO Esta dissertação propõe-se a estudar a ortotanásia à luz dos princípios constitucionais do direito à vida e da dignidade da pessoa humana. Pretende refletir sobre o conceito de “vida” e tentar demonstrar que a vida protegida pelo texto constitucional de 1988 não é qualquer vida, mas sim a vida digna. O texto apresenta uma reflexão sobre o direito à liberdade e ao princípio bioético da autonomia e a influência que esses direitos exercem sobre os pacientes terminais. Discute-se, ainda, a teoria de Ronald Dworkin no tocante à interação de princípios, regras e valores, e a relação que estes três aspectos possuem na busca de respostas e soluções para aparentes conflitos entre princípios constitucionais. Procura-se demonstrar, ainda, as diferentes classificações existentes acerca da eutanásia, bem como as convergências e diferenças com relação à ortotanásia. Analisa-se também, recentes textos normativos infraconstitucionais, em especial a nº. 1.085/2006 do Conselho Federal de Medicina, que passou a determinar, de forma expressa, a permissão do médico em limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, acometidos de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. Preocupa-se em apresentar a polêmica surgida na comunidade jurídica e médica e apresenta-se um posicionamento acerca da constitucionalidade da Resolução e da ortotanásia. Por fim, traz-se à reflexão alguns casos reais de pacientes terminais em outros países e no Brasil, a fim de se analisar, por um lado, qual o tratamento que é dado ao tema no direito estrangeiro, e por outro, qual tem sido a conduta adotada por médicos e pacientes brasileiros quando se deparam com o fim da vida iminente. ABSTRACT This dissertation aims at studyi ng ortotanasia according to the constitutional principles of the right to life and dignity of the human being, with the intent to reflect on “life” concept and try to show that the life protected by the 1988 Constitution is not any life, but a worthy life. The text presents a reflection on the right to freedom and the bioethical principle of autonomy and the influence that such rights exercise over terminal patients. Further, it is discussed the theory of Ronald Dworkin with regard to the interaction of principles, rules and values and the relation that these three aspects have in the search for answers and solutions for apparent conflicts among constitutional principles. Furthermore, the different classifications about euthanasia as well as the convergences and differences with regard to ortotanasia are intended to be shown. Recent normative texts below the Constitution are also under analysis, especially No. 1.085/2006 of t he Medicine Federal Council which expressly determined the author ization from the physician to restrict or suspend procedures and treatments extending the life of the terminal patient with a serious and incurable disease, subject to the will of the person or his/her legal representative. The concern in this dissertation is to present the debate arisen amidst the legal and medical communities, with an opinion on the constitutionality of the Resolution and the ortotanasia. Finally, some actual cases of termi nal patients in other countries and in Brazil are presented so as to be analyzed, on the one hand, what is the treatment given to the subject in foreign law, and on the other hand, which has been the conduct adopted by Brazilian physi cians and patients when faced with the imminent end of life. SUMÁRIO Introdução 1. A Vida, a Liberdade e a Dignidade no Ordenamento Jurídico Brasileiro ........................................................................................................ 1.1 O princípio constitucional do direito à vida ........................................... 1.1.1 Os princípios jurídicos fundamentais: noção e alcance ............ 1.1.2 A vida como direito individual fundamental e a polêmica em torno de seu marco inicial e final ..................................... 1.2 O princípio constitucional do direito à liberdade ................................... 1.2.1 Noção sobre o direito à liberdade e sua relação com a igualdade ................................................................................... 1.2.3 A autonomia como princípio bioético ......................................... 1.3 O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana ............... 1.3.1 Mudança de paradigma: o direito à vida digna .......................... 1.3.2 Direito de morrer com dignidade: a construção da norma a partir da interpretação do sistema de valores, princípios e regras: a teoria de Dworkin ............................................... 2. O Problema da Conceituação da Eutanásia “lato sensu” e a Tentativa de Classificação ........................................................................... 2.1 Ortotanásia, distanásia e mistanásia .................................................... 2.2 Tentativa de classificação: as diferentes “espécies” de eutanásia ...... 2.2.1 A eutanásia quanto ao modo de atuação do agente (ativa e passiva): a relevante distinção entre eutanásia passiva e ortotanásia ............................................................................ 2.2.2 A eutanásia quanto à intenção do agente: eutanásia de duplo efeito ..................................................................... 2.2.3 A eutanásia quanto à vontade do doente/paciente .................... 2.2.4 A eutanásia quanto à finalidade do agente: a classificação de Jimenez de Asúa ............................................................................. 05 05 05 10 19 19 29 33 37 45 51 53 64 69 73 76 83 2.3 Suicídio assistido .................................................................................. 2.4 Aspectos extra-jurídicos da eutanásia: aspecto religioso ..................... 3 Eutanásia e Ortotanásia no Direito Estrangeiro ......................................... 3.1 Estados Unidos da América e o Polêmico Caso Terri Schiavo ............ 3.2 Espanha e a batalha de Ramón Sampedro ......................................... 3.3 França e o Pedido de Vincent Humbert................................................ 3.4 Holanda ................................................................................................ 4. A Possibilidade da Ortotanásia como Garantia Fundamentada no Princípio do Direito à Vida Digna ........................................................... 4.1 A interpretação da Resolução nº. 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina .................................................................. 4.2 Ortotanásia: constitucionalidade ou inconstitucionalidade? ................ 4.2.1 Análise da esfera infraconstitucional: a ortotanásia à luz do atual Código Penal brasileiro e os anteprojetos de 1994, 1998 e 1999 ................................................................................ 4.2.2 A legalidade e a constitucionalidade da ortotanásia .................. 5 A Ortotanásia como Forma de se Alcançar um Final de Vida Sereno: Análise de Casos Reais ......................................................... 5.1 Em Busca de Um Final Sereno ............................................................ 5.2 A recusa de obstinação terapêutica para um bebê de 8 meses, portador “Amiotrofia Espinhal Progressiva Tipo I” – Consagração da ortotanásia ...................................................................................................... Conclusão ................................................................................................................. Bibliografia ............................................................................................................... 86 88 95 95 98 101 105 113 113 130 130 135 142 142 149 156 159 Anexos 1 INTRODUÇÃO A bioética tem apresentado uma série de novas realidades e novos desafios àqueles que se dispõem a estudar o fenômeno jurídico na órbita constitucional. Vida, liberdade e dignidade, enquanto direitos fundamentais protegidos sob o manto da Carta de 1988, têm sido, a todo tempo, chamados a oferecerem respostas, nem sempre claras, a novas realidades que a evolução da ciência e da medicina ora apresentam. Aborto de fetos portadores de anencefalia, possibilidade de pesquisas com células-tronco embrionárias, clonagem humana, eutanásia, ortotanásia, são alguns temas que estão na pauta de discussão nacional, dos bancos acadêmicos ao Supremo Tribunal Federal. São inúmeras as perguntas ainda carentes de respostas definitivas: afinal, quando começa e quando termina a vida? A vida protegida pela Constituição de 1988 é qualquer vida humana, em qualquer estágio, em quaisquer situações? No tocante à ortotanásia, tema que nos interessa em especial na presente reflexão, trata-se de medida constitucionalmente possível? Quais suas implicações e diferenças em relação à eutanásia em seu sentido estrito? As modernas Cartas Constitucionais possuem como fundamento, a defesa da dignidade humana, elevando a proteção da vida, da dignidade, da liberdade e da igualdade como direitos inerentes a todo ser humano. A Constituição da República Federativa do Brasil, tal como outras constituições ocidentais contemporâneas, apresentam, de igual forma, amplo repertório no tocante aos direitos fundamentais e garantias individuais. Resta saber se a interpretação do chamado superprincípio da dignidade da pessoa humana, tal como até hoje tem prevalecido, está em 2 consonância com os anseios dos pacientes terminais, ou daqueles que, privados do gozo de uma vida digna são impedidos – sob o argumento da prevalência da vida a qualquer custo – de permanecerem na indignidade e no sofrimento. Os hospitais brasileiros estão lotados de pacientes internados em Unidades de Terapia Intensiva, acometidos por doenças incuráveis ou em situações clínicas irreversíveis, sendo a morte uma certeza científica irrefutável. Presos a farta aparelhagem técnica, fruto do avanço tecnológico galopante, permanecem dias, meses, anos, presos em uma fria cama de hospital, aguardando seu fim inevitável. Será importante analisar casos reais, sejam nacionais ou estrangeiros, a fim de se verificar como é o processo de tratamento médico, em que condições são tratados esses pacientes, e tentar precisar em que momento a vida de alguém deixa de ser digna. Será isso possível? Na experiência brasileira, tem-se debatido com afinco a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº. 1.085/2006. Publicada em 28 de novembro de 2006, causou comoção na comunidade jurídica ao estabelecer de forma objetiva que “é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal”. Trata-se de norma constitucionalmente aceita? A questão ganhou relevo e impulsionou o Ministério Público Federal a ingressar com Ação Civil Publica pretendendo, em síntese, revogar referida resolução, pois, na concepção do parquet, o direito à vida é absoluto e uma mera resolução não pode ter o condão, mesmo que de forma tangencial, de relativizar este direito fundamental. A sociedade, os operadores do Direito, os filósofos e os médicos se dividem na argumentação: os que defendem a prática da ortotanásia prendem- se ao argumento de que, na medicina, existem quadros clínicos irreversíveis em que o paciente, muitas vezes passando por terríveis dores e sofrimentos, almeja a 3 “morte na hora certa”, como é comumente chamada a ortotanásia - como forma de se livrar do padecimento que se torna viver. Rejeitam o uso de aparato tecnológico que permite a sobrevida do paciente, quando já não há mais nada a fazer e a interferência médica muitas vezes só resulta em mais dor e sofrimento. Os que se opõem à prática da ortotanásia sustentam ser dever do Estado preservar, a todo custo, a vida humana, que é o bem jurídico supremo. O poder público estaria obrigado a fomentar o bem-estar dos cidadãos e a evitar que sejam mortos ou colocados em situações de risco. Eventuais direitos do paciente estariam, muitas vezes, subordinados aos interesses do Estado, que obrigaria a adoção de todas as medidas visando ao prolongamento da vida, até mesmo contra a vontade da pessoa ou de seus familiares. À luz do direito brasileiro, uma das questões que emergem é a seguinte: ainda que existam regras específicas sobre o homicídio, poder-se-ia, diante de casos concretos, proceder a julgamentos com fulcro em princípios atinentes à situação, a fim de se buscar uma decisão justa, de modo a respeitar a integridade do Direito, tal como preconiza Dworkin? Vale dizer: há possibilidade de se construir a norma a partir da interpretação do sistema de valores, princípios e regras? Interesses conflitantes estão em xeque: de um lado o princípio da liberdade, da autonomia; de outro, o princípio da indisponibilidade da vida – ou inviolabilidade do direito à vida. Mas a vida que se busca e se protege é qualquer vida? Qual o alcance do princípio da dignidade da pessoa humana? Será que vida digna – tal qual aquela defendida em nossa Carta Magna – é aquela segundo a qual o indivíduo, a despeito de todas as dores e sofrimentos que lhe tenham sido causados por determinada doença, ainda se mantenha ligado a aparelhos até o fim? Nessa linha de raciocínio, a vida só deveria prevalecer como direito fundamental oponível erga omnes enquanto for possível se viver bem. Entende-se que outros valores deveriam ser repensados a partir do momento em que a saúde do corpo e da mente já não mais garanta o bem-estar do indivíduo. 4 Não se tem aqui, a pretensão de trazer respostas últimas sobre o tema, sob pena de, o fazendo, banalizar matéria tão importante. Pretende-se tão apenas contribuir de alguma forma para o debate da ortotanásia, enquanto tema central da bioética. A presente dissertação é um exercício de reflexão que tenta harmonizar princípios constitucionais, na busca de encontraralguns caminhos possíveis para perguntas ainda carentes de respostas. 5 CAPÍTULO 1 A VIDA, A LIBERDADE E A DIGNIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO 1.1 O Princípio Constitucional do Direito à Vida 1.1.1 Os princípios constitucionais fundamentais: noção e alcance São incontáveis as acepções encontradas para o vocábulo “princípio”. Desde os dicionários tradicionais, como o Houaiss, a defini-lo como “o primeiro momento da existência (de algo), ou de uma ação ou processo; começo, início; o que serve de base a alguma coisa; causa primeira, raiz, razão; proposição elementar e fundamental que serve de base a uma ordem de conhecimentos; lei de caráter geral com papel fundamental no desenvolvimento de uma teoria e da qual outras leis podem ser derivadas; proposição lógica fundamental sobre a qual se apóia o raciocínio”, até a concepções modernas, trazidas por ferramentas contemporâneas de pesquisa, como a Wikipédia, a entender que princípio “pode ser definido como causa primária, ou, o momento, local ou trecho em que algo tem origem, de uma ação ou de um conhecimento, a proposição que lhe serve de base, ainda que de modo provisório, e cuja verdade não é questionada. Sinônimo de início”1. Aristóteles desdobrou a noção de princípio em sete acepções: ponto de partida do movimento de algo; ponto de partida de uma ciência; o primeiro elemento na construção de uma coisa (um navio, ou uma casa, por exemplo), ou no desenvolvimento de um organismo vivo; aquilo de que se origina algo, como os pais em relação ao filho, ou a contenda após o insulto; os chefes ou príncipes nas cidades, assim como os diferentes políticos; as artes ou técnicas, sobretudo que se sobrepõem às outras, recebendo, por isso, a qualificação de 1 http://pt.wikipedia.org 6 arquitetônicas; o ponto de partida do conhecimento de algo, como as premissas ou hipóteses, em relação à conclusão de raciocínio ou da pesquisa.2 O elemento comum a todos esses significados, na concepção aristotélica, é o de princípio ou começo de onde algo provém ou é gerado, ou de onde emana o conhecimento. Na idade moderna, enquanto o sentido ontológico e lógico do vocábulo princípio foi aos poucos sendo abandonado, o seu uso como causa ou norma de ação tornou-se predominante. Montesquieu funda suas reflexões políticas na noção de princípio, como mola mestra do funcionamento dos diferentes sistemas de governo .“Há a seguinte diferença entre a natureza do governo e o seu princípio: sua natureza é o que o faz ser o que é, ao passo que o seu princípio, o que o faz agir. Uma é a sua estrutura particular e a outra, as paixões humanas que o fazem mover-se”. E acrescenta em nota: “Esta distinção é muito importante, e eu deduzirei dela várias conseqüências; ela é a chave de uma infinidade de leis”.3 Na seara do direito, os princípios desempenham papel estrutural. Sobre os princípios jurídicos, De Plácido e Silva assevera que no sentido jurídico, notadamente no plural, princípio quer significar as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa. E assim, princípios revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixaram para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica. Desse modo, exprimem sentido mais relevante que o da própria norma ou regra jurídica. Mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-se em perfeitos axiomas. Princípios jurídicos, sem dúvida, significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito. Indicam o alicerce do Direito. 2 ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. Leonel Vallandro. Globo, Porto Alegre, 1936, p. 316. 3 MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 104. 7 E, nesta acepção, não se compreendem somente os fundamentos jurídicos, legalmente instituídos, mas todo o axioma jurídico derivado da cultura jurídica universal. Compreendem, pois, os fundamentos da Ciência Jurídica, onde se firmaram as normas originárias ou as leis científicas do Direito, que traçam as noções em que se estrutura o próprio Direito. Assim, nem sempre os princípios se inscrevem nas leis. Mas, porque servem de base ao Direito, são tidos como preceitos fundamentais para a prática do Direito e proteção aos direitos.4 Geraldo Ataliba assevera que “...princípios são linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurídico. Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos órgãos do governo (poderes constituídos). Eles expressam a substância última do querer popular, seus objetivos e desígnios, as linhas mestras da legislação, da administração e da jurisdição. Por estas não pode ser contrariados; têm que ser prestigiados até as últimas conseqüências”5. Na visão de José Afonso da Silva, “a palavra princípio é equívoca. Aparece a acepção de começo, de início. Norma de princípio (ou disposição de princípio), por exemplo, significa norma que contém o início ou esquema de um órgão, entidade ou de programa, como são as normas de princípio institutivo e as de princípio programático”6. Não é nesse sentido que se acha a palavra princípios da expressão princípios fundamentais do Título I da Constituição. Princípio aí exprime a noção de “mandamento nuclear de um sistema”7. Para o autor, os princípios são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas8, “são núcleos de condensações” nos quais confluem valores e bens constitucionais. Ou, como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, “os princípios, que começam por ser a base de normas jurídicas, 4 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico: Rio de Janeiro: Forense, 1961. V3, p. 1220. 5 ATALIBA, Geraldo.Hipótese de Incidência Tributária. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 1992. 6 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Melhoramentos, p. 107 e ss. 7 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Criação de secretarias municipais, RDP, n. 15, jan/mar 1971 e Curso de direito administrativo. São Paulo: Melhoramentos, p. 450 e 451, onde define o princípio jurídico como “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”. 8 Ibidem, p. 92. 8 pode estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípio e constituindo preceitos básicos da organização constitucional”.9 Já Luiz Antônio Rizzato Nunes, entende que os princípios constitucionais “são verdadeiras vigas mestras, alicerces sobre os quais se constrói o sistema jurídico. Os princípios constitucionais dão estrutura e coesão ao edifício jurídico. Assim, devem ser estritamente obedecidos, sob pena de todo o ordenamento jurídico se corromper”10. Nessa mesma linha, assevera Gabriel Chalita: Todo sistema legislativo deve obedecer a princípios que estabeleçam com clareza o tipo de sociedade que se quer construir. Por isso existe uma hierarquia entre essas leis. A Constituição Federal é superior a qualquer legislação infraconstitucional e os seus princípios orientam, norteiam o legislador que resolve inovar o sistema, o executor que precisa de parâmetros para exercer o seu ofício e o julgador que não pode se distanciar do núcleo central do sistema estatal11. Na ordem constitucional brasileira, os chamados princípios constitucionais fundamentais representam os pilares do Estado Democrático de Direito. É fato, entretanto, que são de natureza variada, e sendo assim, não é tarefa fácil fixar-lhes um conceito preciso em um enunciado sintético. Mais uma vez é J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira que dãoo norte do conceito: Os princípios fundamentais visam essencialmente definir e caracterizar a coletividade política e o Estado e enumerar as principais opções político- constitucionais. Revelam a sua importância capital no contexto da constituição e observam que os artigos que os consagram constituem por assim dizer a síntese ou matriz de todas as restantes normas 9 CANOTILHO, J. J. Gomes, e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 50. 10 RIZZATO NUNES, Luiz Antônio. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 37. 11 CHALITA, Gabriel Benedito Issaac. Os dez mandamentos da ética. São Paulo: Nova Fronteira, 2003, p. 110. 9 constitucionais, que àquelas podem ser directa ou indirectamente reconduzidas.12 Por fim, a opinião do constitucionalista Celso Ribeiro Bastos, a ensinar que Os princípios constitucionais são aqueles que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica. Isto só é possível na medida em que estes não objetivam regular situações específicas, mas sim desejam lançar a sua força sobre todo o mundo jurídico. Alcançam os princípios esta meta à proporção que perdem o seu caráter de precisão de conteúdo, isto é, conforme vão perdendo densidade semântica, eles ascendem a uma posição que lhes permite sobressair, pairando sobre uma área muito mais ampla do que uma norma etabelecedora de preceitos. Portanto, o que o princípio perde em carga normativa ganha como força valorativa a espraiar-se por cima de um sem-número de outras normas.13 A partir dos conceitos e reflexões acima destacadas, vê-se que, embora não seja fácil definir com precisão e síntese o que venha a ser os chamados “princípios constitucionais fundamentais”, é fato – e quase um consenso – que constituem o norte de todo o ordenamento jurídico, servindo de base e referência para aplicação de qualquer norma dentro de um sistema. A partir da noção de princípios constitucionais fundamentais, pode- se dar início à análise do principal direito individual fundamental, elevado à condição de princípio constitucional, dada sua importância enquanto direito norteador de toda ordem constitucional e do Estado Democrático de Direito: o direito à vida. É verdade que há correntes divergentes, a entender que os direitos da pessoa humana rigorosamente não seriam princípios, “mas ‘valores supremos’ de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, conforme o preâmbulo da própria Constituição”14. Concorda-se em parte com essa opinião. Apesar de se entender que os direitos da pessoa humana, tal como o direito à vida, são de fato, valores 12 J.J Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., vol. I, p.66. 13 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional.São Paulo: Saraiva, p. 143-144. 14 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 5ª Ed. São Paulo: Malheiros, p. 28. 10 supremos, isso não significa que não possam constituir, ao mesmo tempo, princípios constitucionais fundamentais. 1.1.2 A vida como direito individual fundamental e a polêmica em torno de seu marco inicial e final Insculpido no caput do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil15, dentro do Titulo II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) e Capítulo I (Dos Direitos e deveres Individuais e Coletivos), o direito à vida constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos. No conteúdo de seu conceito se envolvem o direito à dignidade da pessoa humana16, o direito à privacidade, o direito à integridade físico-corporal, o direito à integridade moral e, especialmente, o direito à existência. Parece razoavelmente claro que a vida a que se refere e quis proteger o texto constitucional é a vida humana. Mas o que vem a ser vida? Na concepção comum é “o estado de atividade funcional, peculiar aos animais e vegetais; existência; tempo decorrido entre o nascimento e a morte; origem. Conjunto de propriedades e qualidades graças às quais animais e plantas, ao contrário dos organismos mortos ou da matéria bruta, se mantém em contínua atividade, manifestada em funções orgânicas tais como o metabolismo, o crescimento, a reação a estímulos, a adaptação ao meio, a reprodução e outras”.17 15 Art. 5º da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito á vida, à liberdade, á igualdade, à segurança, e à propriedade, nos termos seguintes”. 16 De que trataremos em profundidade posteriormente, no item 1.3. 17 BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário escolar da língua portuguesa. MEC; Dicionário básico da língua portuguesa/Aurélio. “Características que têm certos fenômenos de se produzirem ou se regenerarem por si mesmos, ou a totalidade de tais fenômenos. Essa caracterização é aqui dada apenas por ser aquela em torno da qual é mais amplo o acordo entre filósofos e cientistas e a título puramente descritivo, sem que o reconhecimento de uma característica própria dos fenômenos da Vida implique o reconhecimento de um princípio ou de uma causa em si desses fenômenos”. 11 Maria Celeste C. dos Santos assevera que sob o ponto de vista biológico, o desenvolvimento da vida humana antes de seu aparecimento, até o fim, constitui um “processo contínuo: o respeito à vida é respeito a todas as formas de vida humana”18. Para Alexandre de Moraes, “o direito humano fundamental à vida deve ser entendido como direito a um nível de vida adequado com a condição humana, ou seja, direito à alimentação, vestuário, assistência médica- odontológica, educação, cultura, lazer e demais condições vitais. O Estado deverá garantir esse direito a um nível de vida adequado com a condição humana respeitando os princípios fundamentais da cidadania, dignidade da pessoa humana e valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e, ainda, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional e erradicando-se a pobreza e a marginalização, reduzindo, portanto, as desigualdades sociais e regionais”19. Quando iniciaria a vida humana? A legislação brasileira como um todo não apresenta, de forma suficientemente clara, resposta a esta pergunta. A Constituição de 1988, embora garanta expressa “proteção à vida”, não sinaliza sobre quando esta começa e termina. Em geral, tem sido papel dos magistrados, analisando o caso concreto, determinar se em determinada situação já se poderia ou não falar da existência de “vida” propriamente dita. Recentemente, tem-se assistido a polêmicas discussões sobre qual seria o verdadeiro marco inicial e final da vida humana. Em 20 de abril de 2007, numa iniciativa inédita, o Supremo Tribunal Federal realizou audiência pública reunindo 22 especialistas das mais diferentes 18 O equilíbrio do pêndulo. A bioética e a lei. São Paulo: Icone, 1998, p. 152-153. 19 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 176. 12 áreas do conhecimento (médicos, biólogos, sociólogos, antropólogos, juristas etc.) para que respondessem, entre outras, à seguinte pergunta: “quando começa a vida e a partir de quando ela deve ser protegida pelo Estado?”. Durante 7 horas, os 22 especialistas debateram a questão, sem chegar, entretanto, a um consenso. O evento aconteceu por iniciativa do Ministro Carlos Ayres Brito, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) nº 3540 movida pelo antigo Procurador Geral da República Claudio Fontelles, em que se requeria a inconstitucionalidade de dispositivosda Lei de Biossegurança (Lei nº. 11.105/2005), em especial o artigo 5º, relativo às pesquisas relacionadas às células-tronco embrionárias. Insurgiu-se o nobre jurista contra a permissão de utilização, para fins de pesquisa e terapia, de células-tronco obtidas de embriões humanos, produzidos mediante fertilização in vitro, e que não foram transferidos para o útero materno. A tese central sustentada na ação é a de que a “vida humana acontece na, e a partir da, fecundação”. Fundado em tal premissa, alega que a legislação aprovada violaria os preceitos constitucionais que consagram o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana. Analisando com propriedade a questão, o professor Luis Roberto Barroso assim analisou a questão: 1. As pesquisas com células tronco embrionárias representam uma perspectiva de tratamento eficaz para inúmeras doenças que causam sofrimento e morte de milhões de pessoas. A legislação trata da matéria com moderação e prudência, somente permitindo a utilização de embriões remanescentes dos procedimentos de fertilização in vitro. 2. As células-tronco embrionárias somente podem ser extraídas até o 14º dia após a fertilização, antes do início da formatação do sistema nervoso central ou da existência de qualquer atividade cerebral. De acordo com a maior parte das concepções existentes, ainda não existe vida humana nesse momento. A Lei. 11.105/2005, ademais, veda expressamente a clonagem humana, a engenharia genética e a comercialização de embriões. 3. Não há violação do direito à vida, nem tampouco da dignidade humana, porque embrião não se equipara à pessoa e, antes de ser transferido para o útero materno, não é sequer nascituro. A Lei nº. 11.105/2005 protege, todavia, a dignidade do embrião, impedindo 13 sua instrumentalização, ao determinar que só possam ser utilizados em pesquisas embriões inviáveis ou não utilizados no procedimento de fertilização. 4. A questão acerca das pesquisas com células-tronco tem sido debatida em todo o mundo, ensejando visões contrapostas. No Brasil, o Poder legislativo, por votação expressiva, tomou posição na matéria, produzindo disciplina que se harmoniza com mo tratamento dado na maior parte dos países ocidentais. O tem não se situa no espectro dos consensos mínimos protegidos pela Constituição, devendo prevalecer a deliberação.20 A ADIN foi a julgamento em maio de 2008 e por um placar apertado (6 votos a 5) o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a Ação, decidindo pelo constitucionalidade do citado artigo 5º da Lei de Biossegurança. O voto do relator do caso foi emblemático e sua leitura àqueles que se debruçam sobre a seara da bioética é fundamental21. Mas apesar de histórico, o julgamento do Supremo Tribunal Federal não definiu, como se esperava, em que momento começa a vida humana. Se é na fecundação, se é no 14º dia de gestação, em outro momento de gestação ou no nascimento. O ministro Celso de Mello em seu voto afirmou que “vários podem ser os inícios da vida humana, tal seja a opção que se faça por determinada formulação teórica ou tese”22. Diante disso, os ministros restringiram-se apenas a concluir que a Constituição brasileira não assegura ao embrião humano mantido em laboratório a garantia da inviolabilidade à vida e à dignidade. Outro embate jurídico, ainda pendente de julgamento de mérito pelo Supremo Tribunal Federal é a constitucionalidade (ou não) de aborto realizado em fetos portadores de anencefalia. Trata-se de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 54, formulada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, através do ilustre advogado Luís Roberto Barroso. O Ministro relator 20 BARROSO, Luís Roberto. In: Nos Limites da Vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006, p.263. 21 Íntegra do voto do Ministro Carlos Ayres Brito disponível em www.stf.jus.br 22 Íntegra do voto do Ministro Celso de Mello disponível em www.stf.jus.br 14 Marco Aurélio Mello, concedeu liminarmente, em 1º de julho de 2004, ad referendum do Tribunal Pleno, o direito à gestante de optar pela submissão à operação terapêutica de parto de feto anencéfalo, a partir de laudo médico confirmatório dessa anomalia. Vale aqui transcrever pequeno trecho do despacho que concedeu a liminar pleiteada, eis que seus argumentos interessam à presente reflexão: Os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza de 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencéfalos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando o período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. (...) A gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é – e ninguém ousa contestar – trata-se de situação concreta que foge à glosa própria do aborto – que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia da vontade. A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físico, mental e social.23 Muito embora a decisão liminar ora concedida pelo Ministro Marco Aurélio Mello tenha sido cassada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, fato é que suas afirmações e raciocínio lançaram um debate fundamental na ordem jurídica e social contemporânea ao por em xeque a idolatria que desde sempre se teve em relação ao direito – “sagrado” - à vida. Além disso, temas como a possibilidade de se autorizar o aborto em casos de comprovada anencefalia fetal, trouxe novamente ao debate a polêmica questão sobre o início e o fim da vida. 23 Diário da Justiça, n 147, de 02 de agosto de 2004, p 64/65. 15 Ao lado dessas situações que têm provocado discussões acaloradas, tem-se também a questão da obstinação terapêutica (distanásia) versus ortotanásia. O avanço tecnológico tornou possível manter uma pessoa muito doente ou em estágio terminal indefinidamente viva, porém ligada a aparelhos de sustentação artificial, como a ventilação mecânica. A obstinação terapêutica (distanásia) se caracteriza por um excesso de medidas terapêuticas que impõem sofrimento e dor à pessoa doente, cujas ações médicas não são capazes de modificar o quadro mórbido24. Por outro lado, tem-se a ortotanásia, entendida como “morte no tempo certo”, e significando a suspensão ou limitação de tratamento ou suporte terapêutico (que não mais trarão benefício ao paciente cuja morte é irreversível).25 A obstinação terapêutica é resultadode um ethos irrefletido das carreiras biomédicas. Os profissionais da saúde são socializados em um ethos que, erroneamente, associa a morte ao fracasso. O paradoxo dessa associação moral é que se, por um lado, são os profissionais de saúde os que mais intensamente lidam com o tema da morte, por outro lado, são também os que mais resistem a reconhecer a morte como um fato inexorável da existência. Uma possível explicação para este fenômeno de enfrentamento técnico e ocultamento moral da morte é a confusão entre sacralidade da vida e santidade da vida26-27. O direito a se manter vivo é um direito fundamental expresso em nosso ordenamento e compartilhado por diferentes concepções filosóficas e religiosas. O pressuposto desse direito é que a existência é um bem individual garantido publicamente e, em termos éticos, pode ser traduzido pelo princípio da sacralidade da vida28. 24 PESSINI, Leocir. Eutanásia: porque abreviar a vida? São Paulo: Ed. Loyola, 2004 apud DINIZ, Débora. Quando a morte é um ato de cuidado. In: Nos Limites da Vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006, p.295. 25 Tratar-se-á desses conceitos e suas polêmicas no capítulo seguinte. 26 KUHSE, Helga. Should the Baby Live? The Problem of Handicapped Infants, Cambridge: Ashgate Publishing, 1994. 27 SINGER, Peter e Kuhse. Unsanctifying Human Life: Essays on Etics. London: Blacwell, 2002. 28 DINIZ, Débora. Quando a morte é um ato de cuidado. In: Nos Limites da Vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006, p.296. 16 Débora Diniz explica com clareza referido princípio e sua contraposição ao chamado princípio da “santidade da vida”: O princípio da sacralidade da vida assegura o valor moral da existência humana e fundamenta diferentes mecanismos sociais que garantem o direito de estar vivo. Esse é um princípio laico, também presente em diferentes códigos religiosos. Mas o princípio da sacralidade da vida não é o mesmo que o princípio da santidade da vida. Reconhecer o valor moral da existência humana não é o mesmo que supor sua intocabilidade. O princípio da santidade da vida é de fundamento dogmático e religioso, pois pressupõe o caráter heterônomo da vida humana. Em um estado laico como é o Brasil o que está expresso em nosso ordenamento jurídico público é o princípio da sacralidade da vida humana e não o princípio da santidade da vida humana. O valor moral compartilhado é o que reconhece a vida humana como um bem, mas não como um bem intocável por razões religiosas. A socialização dos profissionais de saúde confunde sacralidade da vida com santidade da vida, o que acaba por sobrepor valores privados e metafísicos sobre o sentido da existência e da morte a princípios coletivos como o da sacralidade da vida e o da autonomia.29 Nenhuma tomada de posição mostra-se adequada se não se partir de uma consideração básica: vida e morte constituem um processo contínuo, gradual e complexo, não um episódio isolado e, como processo, tem um desenrolar encadeado no tempo. Assim sendo, é evidente que o conceito de vida ou de morte se insere num dado momento desse desenvolvimento biológico, mas aí não se cuida mais de um conceito de biologia ou de medicina, e sim de algo que ultrapassa esses limites e chama à colação a filosofia, a ética, a lei e a própria sociedade. Diego Gracia, citado por Carlos Gherardi, salienta, com propriedade, que a morte é um fato cultural, humano. Tanto o critério da morte cardiopulmonar, como o da morte cerebral e o da morte cortical são construções culturais, mas que não se identificam diretamente com a morte natural. Não há morte natural. Toda morte é cultural. E os critérios da morte também o são. É o homem quem diz o que é a vida e o que é a morte. E pode ir mudando sua definição desses termos com o transcurso do tempo. Dito de outro modo: o problema da morte é um tema sempre aberto. É inútil pretender encerrá-lo de uma vez por todas. A única coisa que se pode exigir é que explicitemos as razões das opções e que atuemos com suma prudência. Os critérios da morte podem, devem e têm que ser racionais e prudentes; não podem nunca aspirar que sejam certos.30 29 Ob. Cit., p. 296-297. 30 GHERARDI, Carlos. La muerte cerebral: uma mirada critica y reflexiva, em GARAY, Oscar. La responsabilidad Professional de los medicios. Bioética, ética, jurídica civil y penal, Buenos Aires, La Ley, 2001 e http://www.medicoecuador.com , p 10. 17 Desde o informe publicado pelo Comitê da Escola de Medicina de Harvard em 1968 que o coração deixou de ser o órgão central da vida e a falta de batimentos cardíacos, a representação da morte. Elegeu-se, em substituição, o cérebro, de forma que a morte passou a ser definida como a abolição total da função cerebral (whole brain criterion), o que “importa a perda da função integradora do organismo como um todo, por parte do sistema nervoso central e inclui o comprometimento de todo o encéfalo, do tronco encefálico e de outras funções neocorticais”31. A partir da nova definição de morte, estabeleceu-se um limite na assistência dada a pacientes propiciando um inquestionável progresso na área dos transplantes. Na prática, adotou-se a retirada do suporte vital respiratório no tocante a determinado pacientes em estado crítico, desde o momento em que foi dado como morto, do ponto de vista cerebral. Entre 1968 e os anos iniciais do terceiro milênio, as novas tecnologias, na área da biomedicina, demonstraram, de forma inconteste, que o conceito de morte cerebral ou encefálica não possuía o nível de segurança desejável e, mais que isso, dava azo a ponderáveis dúvidas sobre sua legitimidade. Comprovaram-se casos em que, com “a manutenção da respiração mecânica em pacientes com diagnóstico firme de morte cerebral, persistiam sinais vitais (circulação, respiração, diurese, concepção materna, regulação hormonal) durante meses e até anos”32, de sorte que não encontra sustentação, na atualidade, “uma justificação biológica da morte cerebral sob o argumento da perda irreversível da função cerebral completa”33. Desfez-se, então, a plena identificação da morte com a morte cerebral. Essa, em verdade, serve apenas como um diagnóstico clínico ou mais precisamente, como um critério a partir do qual se admite a abstenção ou a interrupção de suporte vital para efeito de transplante. Não é, nem nunca será, um método seguro de confirmação da morte. “O avanço no conhecimento neurofisiológico não permitiu encontrar um exame que delimite uma fronteira nítida entre a vida e a morte 31 MARTINEZ, Stella Maris. La incorporación de La reflexión bioética a las decisiones judiciales: um puente al futuro. Nueva doctrina penal. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2000, p. 663. 32 GHERARDI, Carlos. La muerte cerebral. Um permanente debate. Reflexiones sobre um simpósio internacional, Cuadernos de Bioética, n. 0. Buenos Aires: Ad Hoc, 1996, p 132. 33 Idem. La muerte cerebral: uma mirada critica y reflexiva, ob. Cit., p. 10. 18 neurológica (funções corticais e troncais) de sorte que os testes diagnósticos de morte cerebral tendem com o passar dos anos a ser mais clínicos do que instrumentais”34. Muitos autores fazem distinção entre morte cerebral e encefálica, entendendo como conceitos distintos. Na lição de Maria Elisa Villas-Bôas é comum ocorrer a confusão entre as expressões morte cerebral e morte encefálica. É mister, porém, distinguir tecnicamente as expressões: por “cérebro”, a ciência médica entende apenas a porção superior do sistema nervoso central, cuja abertura externa, o córtex, concentra as funções consideradas nobres e caracterizadoras da espécie humana. Já a expressão morte encefálica, denominação atual e mais adequada, abarca também o tronco encefálico e cerebelo, lembrando-se que é no tronco encefálico, situado abaixo docérebro propriamente dito, que se sediam os controles vitais vegetativos mais primários para a subsistência do organismo em suas atividades basais a exemplo do bulbo raquidiano, onde se encontra o centro respiratório.35 Pelos conceitos, afirmações a análises feitas até então, conclui-se que, com relação ao “fim da vida” há um entendimento mais sedimentado do que com relação ao “início da vida”. Conforme se asseverou anteriormente, nem a ciência, nem o direito, conseguiram chegar a um consenso com relação ao início da vida. Com relação ao término, contudo, a ciência tem dado melhores respostas, o que ajuda o operador do direito na análise de casos concretos e ao magistrado autorizar ou coibir que pacientes em estados terminais sejam considerados “vivos” ou “mortos”. A par dessa discussão sobre a primazia do direito à vida, há outros princípios constitucionais que têm fundamental relevância na análise da possibilidade (ou autorização) constitucional em relação à ortotanásia. Trata-se dos princípios do direito à liberdade e da igualdade, que se passa a analisar. 34 GHERARDI, Carlos. Ob cit. O autor relata ainda a controvérsia ocorrida na Inglaterra entre médicos de terapia intensiva e anestesias sobre a aplicação ou não da anestesia ao doador (morto cerebral) para efetuar-se a ablação de órgãos (p. 4). 35 VILLAS-BOAS, Maria Elisa. Da eutanásia ao prolongamento artificial. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 203. 19 1.2 O Princípio Constitucional do Direito à Liberdade 1.2.1 Noção sobre o direito à liberdade e sua relação com a igualdade A liberdade e a igualdade encontram-se enraizadas na consideração do homem como pessoa. Tanto a liberdade quanto a igualdade servem de fundamento à democracia e é certo dizer que um regime é mais ou menos democrático pela maior ou menor liberdade que têm os cidadãos e pela maior ou menos igualdade existente entre eles. Ao tratar desses valores, Sartori afirma que “a igualdade pressupõe a liberdade”, o que não significa dizer que um princípio seja mais importante que o outro. A consideração feita pelo referido autor é no sentido de indicação de uma ligação procedimental: a materialização da liberdade no tempo e de fato antes da igualdade. Sartori ensina que: A liberdade vem primeiro, então, com base na simples consideração de que a igualdade sem liberdade é algo que não pode sequer ser reivindicado, Existe, claro está, uma igualdade que precede a liberdade e não tem relação com ela; é a igualdade que existe entre escravos, entre indivíduos que são iguais por nada possuírem ou por nada valerem, ou por ambos, iguais em sua completa sujeição. No entanto, a igualdade dos escravos ou dos súditos escravizados não é uma vitória da igualdade e não tem nada a ver, assim espero, com as igualdades que prezamos. É difícil não reconhecer, então, que a liberdade vem primeiro no sentido de que quem não é livre nem seque tem voz na questão36. Contudo, o mesmo autor alerta para o fato de que quando um estado de liberdade abre espaço para a igualdade, o primeiro princípio passa à desvantagem, eis que o apelo de igualdade torna-se mais forte. Segundo Sartori, a razão disso é que: Em primeiro lugar, a idéia de igualdade é mais acessível, pois é possível atribuir a ela um significado mais tangível (mesmo que seja enganoso), ao passo que à liberdade, não. Em segundo lugar, a igualdade resulta na concessão de benefícios tangíveis, benefícios materiais, ao passo que os benefícios da liberdade são, enquanto são desfrutados, intangíveis37. 36 SARTORI,Giovanni. A teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática, 1994, v. 2., p. 133. 37 Idem, p. 134. 20 Sartori indaga quando a igualdade realiza a liberdade. Para ele, a fórmula a ser adotada é aquela que concede “oportunidades iguais para se tornar desigual”. É que: Para aquele que busca a liberdade, há tanta injustiça em impor uniformidade àquilo que é diferente, quanto em aceitar desigualdades hereditárias. Equalizar ‘todos em tudo’ é criar um situação tão saturada de privilégios quanto a que aceita desigualdade em tudo. Seu critério é que é preciso opor-se tanto às igualdades injustificadas quanto às desigualdades injustificadas, e exatamente pela mesma razão38. A menção e proteção da igualdade ganhou destaque principalmente na modernidade, no contexto da Revolução Francesa. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1979, já afirmava, em seu artigo 1º, que os homens permanecem livres e iguais em direito. Outro texto que deu destaque à proteção jurídica da igualdade entre as pessoas foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que já em seu artigo I preceitua: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidades e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. José Luiz Quadros de Magalhães, estudando a igualdade jurídica, ensina que Da mesma forma que as Declarações de direitos afirmam que os homens nascem livres, também afirmam que estes nascem iguais em direitos. Esta igualdade é a base sólida sobre a qual se sustentarão as liberdades individuais. Não haverá jamais a liberdade onde não haja igualdade (...). A igualdade a partir do pensamento de Rousseau e dos filósofos do século XVIII será inseparável da liberdade, pois será condição fundamental para a realização desta39. Os ecos dos princípios contidos na Declaração surtiram efeito em praticamente todos os textos constitucionais das sociedades ocidentais. 38 Idem, p. 135. 39 MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, t. 1, p. 89. 21 No Brasil não poderia ser diferente. Eis que no caput do artigo 5º da carta Magna de 1988, diz-se que Todos são iguais perante as lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade à igualdade, à segurança e à propriedade. (grifo nosso) Também no preâmbulo dessa mesma constituição assegura “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. O princípio da igualdade, além de base dos direitos individuais, fundamenta todos os direitos humanos, no momento em que vários são os preceitos constitucionais que tratam do assunto, podendo-se citar o artigo 3º, IV; artigo 5º, I, XLII; incisos XXX, XXXI e XXXII do artigo 7º e artigo 14, todos da Constituição da República. Mas a garantia da igualdade, muitas vezes, tem como conseqüência o tratamento desigual em relação às pessoas, assunto que é abordado por diversos doutrinadores pátrios, dentre eles, Manoel Gonçalves Ferreira Filho: O princípio da isonomia oferece na sua aplicação à vida inúmeras e sérias dificuldades. De fato, conduziria a inomináveis injustiças se importasse em tratamento igual aos que se acham em desigualdade de situações. A justiça que proclama tratamento igual para os iguais pressupõe tratamento desigual dos desiguais. Ora, a necessidade de desigualar os homens em certos momentos para estabelecer no plano do fundamental a sua igualdade cria problemas delicados que nem sempre a razão humana resolve adequadamente (...). O legislador há de estabelecer tratamento desigual para situações desiguais, mas se tratar desigualmente situações que não são desiguais, o que sucede quando beneficia desarrazoadamente determinadas categorias, incide em inconstitucionalidade40. Eis aí um dos pontos fundamentais desta questão: a idéia de tratamento igual aos iguais, tratando desigualmente os desiguais, entendendo que aquele que está enfermo, em situação debilitada em demais, sem perspectiva de 40 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 581. 22 recuperação quelhe devolva a sadia qualidade de vida41, pode ter o mesmo tratamento daquele que desfruta de uma vida plena de dignidade? À pessoa humana são reconhecidos direitos individuais, sociais, econômicos e políticos, próprios de um Estado de Direito. São direitos protegidos tanto no campo internacional - pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais – bem como internamente, precipuamente pela Constituição Federal. Pergunta-se, contudo: de que adianta o reconhecimento de todos esses direitos se, para muitos, não há possibilidade de desfrutá-los? Como garantir o princípio da igualdade entre pessoas tão distintas, especificamente para o caso deste trabalho, entre pessoas sãs e sadias, que têm a vida atrelada à saúde do corpo e da mente, e aquelas que sofrem as conseqüências de doenças várias, tendo a vida, nesses casos, se transformado em dever de sofrimento? O ponto de convergência entre os dois aspectos, de modo a garantir igualdade, é que a vida só deve prevalecer como direito fundamental oponível erga omnes quando for possível viver bem. No momento em que a saúde do corpo não mais conseguir assegurar o bem-estar da vida que se encontra nele, há de serem considerados outros direitos, sob pena de infringência ao princípio da igualdade. É que a vida passará a ser dever para uns e direitos para outros. E a confirmação desta afirmação é resultado de situações verídicas, que, ao contrário do que pode parecer, vêm acontecendo de maneira freqüente, principalmente devido ao grande avanço das ciências biotecnológicas. A propósito do acima mencionado, é oportuno apresentar trecho escrito pela Dra. Elisabeth Kubler-Ross, psiquiatra americana, que se dedicou, por longos anos, ao estudo da morte e ao processo de morrer e que foi acometida por doença grave que a deixou na cama, minando-lhe o exercício de suas faculdades mais rudimentares: 41 Conforme previsto no art. 225 da Constituição Federal. 23 A morte em si é uma experiência positiva e maravilhosa, mas o processo de morrer, quando prolongado como o meu, é um pesadelo. Vai minando as nossas faculdades, em especial a paciência, a resistência e a equanimidade. Durante todo o ano de 1996, lutei com as dores constantes e as limitações impostas por minha paralisia. Dependendo de cuidados alheios vinte e quatro horas por dia. Se toca a campainha da porta, não posso atender. E a privacidade? Pertence ao passado. Depois de quinze anos de total independência, é uma lição difícil de aprender. As pessoas entram e saem. Às vezes minha casa parece a Grand Central Station. Outras vezes, fica quieta demais. Que tipo de vida é essa? Uma vida desgraçada42. Será que a garantia do princípio da igualdade, em casos como esse, não dependeria da liberdade de escolha de cada um, após acompanhamento médico e psicoterápico, de acordo com pensamentos e ideologias próprias? No caso acima citado, a Dra. Elisabeth manifestou-se, em seu livro, contrariamente a Jack Kevorkian (o famoso Dr. Morte), sob a alegação de que o mesmo tira a vida das pessoas prematuramente, apenas porque elas estão sentindo dores ou desconforto. Segundo as convicções da médica, as pessoas não podem ser privadas de suas últimas lições. De outro lado, há aqueles que discordam da linha de raciocínio apresentada pela Dra. Elisabeth. Será que para eles a escolha não garantiria a igualdade de tratamento, já que têm outras concepções acerca da dignidade da vida? Vê-se a necessidade de abordar a questão relativa a outro princípio constitucional, o da liberdade. Discorrer sobre liberdade não é tarefa fácil, vista ser tema poroso, que admite uma vasta gama de interpretações. Assim, o emprego do termo sempre reflete uma teoria específica, sendo certo que a liberdade, incomensurável, exerce, sem qualquer dúvida, um enorme fascínio em todos os contextos em que é tratada. O vocábulo latino líber, do qual deriva “livre”, teve a princípio o sentido de “pessoa na qual o espírito de procriação se acha naturalmente ativo”, donde a possibilidade de se chamar líber ao jovem, quando, ao alcançar a maturidade sexual, se incorpora como homem capaz de assumir 42 KUBLER-ROSS, Elisabeth. A roda da vida. Trad. Maria Luiza Newsland Silveira. 2. ed. Rio de Janeiro: GMT, 1998, p.308. 24 responsabilidades. Recebe, então, a toga virilis ou toga libera. Nesse sentido, o homem livre é aquele que não é escravo.43 Ser livre é estar disponível para fazer algo por si mesmo. Nesse sentido, a liberdade afigura-se como a possibilidade de decidir e, ao decidir, autodeterminar-se. Mas a liberdade pressupõe responsabilidades do indivíduo para consigo mesmo e ante a comunidade. Os romanos a definiam: A liberdade é a faculdade natural de fazer cada um o que deseja, se a violência ou o direito lhe não proíbe. Libertas est naturalis facultas ejus quod cuique facere libet, nisi si quid vi aut jure prohibetur.44 Na visão de Gerson Bóson, são duas as maneiras de atuação da liberdade: “a liberdade natural da existência na marcha da sua temporalização primordial – a vida em busca de si mesma, construindo-se – e a liberdade absoluta do espírito”45. A primeira se desenvolve no campo da natureza, sendo certo que o homem age através de instintos, emoções e sentimentos. A segunda, a liberdade absoluta do espírito, tem seu desenvolvimento pela lógica da sua projeção intencional. E, a partir daí, o espírito elabora as suas idéias, nelas estando incluída a idéia do Direito. Na opinião de Bóson: É graças a este seu modo de ser livre que o espírito pode elaborar idéias, dentre as quais as idéias éticas e nestas a idéia do Direito, oferecidas às forças impulsivas da existência, juntamente com os valores jurídicos a fim de que possam realizar, na liberdade de sua temporalização natural, e segundo as formas oferecidas, as valorações do seu interesse – as valorações necessárias à construção da vida – sem os riscos precipitados da morte, os riscos do nada46. O homem elabora a idéia do Direito através da liberdade absoluta do espírito e as formas normadas conduzem o comportamento do homem. A título de exemplo, uma determinada norma proíbe o homicídio; outra limita a validade desta mesma norma pelo fato de que exclui a condenação de um homem que agiu em legítima defesa, e assim por diante. 43 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. Transplante de órgãos e eutanásia. São Paulo: Saraiva, 1992, p; 5. 44 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. 22 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, v. III, p. 84. 45 BOSON, Gerson de Britto Mello. Filosofia do direito. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 280. 46 Idem, p. 281. 25 A liberdade é o fundamento do direito em Kant47, sendo traduzida em fundamento transcendental, porquanto não pode ser demonstrada por não se dar na experiência. Somente sob o pressuposto da liberdade é que são possíveis a moral e o direito. A moral constitui a legislação interna do homem, na forma de imperativos categóricos48, enquanto o direito traduz-se na legislação externa, reguladora do convívio das liberdades individuais através da coação. A partir daí, tem-se o conceito de direito que é, portanto, a liberdade exteriorizada. Para Kant, há um único direito natural: a liberdade. O homem deve sair do estado de natureza com a finalidade de constituir o estado civil, por ser livre. A liberdade é conditio sine qua non do direito, diversamente da coação, esta última vista como garantidora do convívio dos arbítrios, dando eficácia ao direito (conditio per quam). Ainda segundo Kant, a liberdade é um fim em si mesma, e o direito aparece como meio capaz de tornar possível o convívio das vontades mediante uma lei universal de liberdade. Para Joaquim Carlos Salgado: Nisto se mostra a importância de Kant: ter sido o pensador que, pela primeira vez, voltoutodo o interesse de sua investigação filosófica para a questão da liberdade, enquanto exigência racional da possibilidade da eticidade do homem. Exatamente por isso permanece a atualidade de Kant: porque ainda não foi possível construir uma sociedade racional ou livre. As perguntas fundamentais de sua filosofia do direito ainda 47 Outro é o entendimento do professor Edgar da Mata Machado. Segundo o ilustre mestre, “é freqüente a afirmação de que, para Kant, o fundamento do direito reside na liberdade. Nada mais falso. A conciliação das liberdades não passa de um princípio formal apriorístico. Tudo está em saber como se faz, como se obtém dita conciliação, como se move, se motiva a ação humana na ordem jurídica, como se realiza a lei universal do direito: para o filósofo prussiano só há um meio de realizar-se, de concretizar-se semelhante lei: a coação física, a força, que, em estágio de mais estrita organização será exercida pelo estado”. MATA MACHADO, Edgar. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995., p. 109. 48 “Os imperativos categóricos, ao contrário dos hipotéticos, declaram a ação como objetivamente válida sem intenção de qualquer finalidade e valem como princípio apodítico (necessário-prático). O imperativo categórico é, pois, o mandamento da moralidade, que traz consigo a necessidade incondicionada de obediência, mesmo contra as inclinações. São necessários para o homem que, pertencente ao mundo sensível, pode agir em desacordo com a lei universal”, GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento de validade do direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 64. 26 perduram: ‘como é possível uma sociedade racional’? ou ‘como é possível uma sociedade livre’?49 Para se entender a ética kantiana, mister se faz pressupor que o homem é livre e a liberdade vincula o conteúdo do direito. Segundo Maria Celeste Cordeiro dos Santos, “quando Kant diz que o fim (a suprema lex) do Estado é a liberdade, entende por tal a liberdade individual, ou, usando uma contraposição hoje habitual, a liberdade a frente do estado, a liberdade no Estado”50. E continua dizendo que: O ideal de paz que aspira Kant há de alcançar-se mediante a extensão às relações entre estados da constituição legal própria das relações entre indivíduos. Coincide com o ideal da extensão e reforço da liberdade civil, isto é, da liberdade que o direito garanta, em contraposição à liberdade brutal e selvagem do estado de natureza51. A conceituação mais genérica de liberdade, como atributo do homem – indivíduo e também ser social, verte, não raro, em duas direções em que, de um lado, é explicada como a não-sujeição do arbítrio humano ao universo de circunstâncias e causalidades em que se encontra imersa a pessoa, em si mesma, e em suas relações; de outro lado, explicam-se os caminhos percorridos pela escolha humana como não sendo livres, mas balizados ou orientados pela sanção, pela pena ou por uma recompensa ou quaisquer outros valores que, existentes no homem ou extrínsecos a ele, impossibilitam, simplesmente por existirem, a ocorrência de desvinculo, de irresponsabilidade, de liberdade pura e não, meramente, de intenções orientadas. Para Hans Kelsen, a ciência jurídica não é uma ciência do “ser” e não descreve fatos, mas sim uma ciência normativa, ou seja, aquela que 49 SALGADO,K Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1995, p. 18. 50 SANTOS, 1992, p. 35. 51 Ibidem, p. 36. 27 prescreve normas, através do princípio da imputação – as normas têm caráter coercitivo52. Fazendo uso da imputação, o jurista, referindo-se à liberdade do homem, o faz de forma diversa dos conceitos acima mencionados, apresentando a idéia de que o que caracteriza a liberdade do homem é o fato de que à sua conduta corresponda uma conseqüência, ou seja, por se imputar uma pena, uma recompensa ou uma sanção a um proceder humano, por este motivo mesmo é que ele é livre. Portanto, para descrever seu objeto, a ciência jurídica formula regras de direito, através da norma. E esta norma é o sentido que se dá a um ou a muitos atos que os homens cumprem no espaço e no tempo,e aos quais se denomina costume, lei, sentença, ato administrativo etc. Nas palavras de Kelsen, “não se imputa algo ao homem porque ele é livre, mas ao contrário, o homem é livre porque se lhe imputa algo”53. A liberdade sobre o corpo encontraria co-respectiva imputação? O livre dispor do corpo existe por que se lhe proíbe algo? Eis aí a exaustão do modelo kelseniano de liberdade. Na esfera individual, o homem é livre para dispor de seu corpo, não porque se lhe impute a proibição ou sanção. É que o sujeito de direito seria livre, mas como não se pune sequer a forma tentada de suicídio, a sanção não seria a causa eficiente. Confundidos o sujeito e o objeto do direito, prejudicada a liberdade concertada no direito subjetivo, que, assim, deixa de ser a única expressão de faculdade ou poder de ação conforme a norma. Está-se diante de uma encruzilhada, nascida do conflito de interesses na dimensão individual (ou de interesses em conflito): o corpo humano 52 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à ciência do direito – temas. Trad. Moisés Nilve. 15 ed. Buenos Aires.: Universitária de Buenos Aires, 1977, p. 140. 53 KELSEN, 1977, p. 148. 28 é um só e há de satisfazer a uma de duas necessidades: a liberdade individual, egoísta ou altruísta, que consulta ao jusnaturalismo; ou a liberdade social, coletiva, atrativa ou repulsiva, que vem do positivismo. A este propósito, há que se trazer à baila novamente as palavras de Gerson Bóson, citado por Maria de Fátima Freire Sá: Inventou-se uma controvérsia equívoca entre o Direito Natural e o que, especificamente, chamam de Direito Positivo. E, não raro, os que procuram conhecer os seus lances se deparam com ridículas conclusões de um desses direitos negando o outro. Para negar o que dizem ser o Direito Positivo, normas legisladas pelo estado, chamam-no de Direito Natural, apelidam-no de Direito Ideal, aspiração, quando não o confundem com o próprio valor-justiça.54 Certo é que a dicotomia “direito natural – direito positivo” encontra- se enfraquecida. Em se tratando de um Estado Democrático de Direito, a necessidade da ordem jurídica é indiscutível, sendo ela a responsável pelas garantias individuais e sociais estabelecidas pelo direito positivo. É que em nome da vida e da liberdade – valores invocados como naturais – muitos abusos foram cometidos ao longo da história, o que hoje afigura-se inconcebível.55 De qualquer sorte, a “questão da liberdade” é tema central da bioética. Foi essa a conclusão do médico e professor da faculdade de medicina da Unesp/Botucatu, Dr. William Saad Hossne, que publicou na internet interessante trabalho em que procura demonstrar que a Bioética não é simplesmente a ética com nova roupagem, embora não deixe de ser “na essência e no fundo, à ética (e das) ciências da vida, da saúde e do meio ambiente”, 54 BOSON, Gerson de Britto Mello apud SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de Morrer – eutanásia, suicídio assistido. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p.93. 55 O tema ‘liberdade’, como há foi dito, é denso e profundo, não havendo qualquer pretensão de nossa parte em esgotar a matéria, mas tão somente buscar embasamento para as proposições que serão feitas ao final desta reflexão. Não obstante, mister se faz a transcrição da conceituação feita por Bobbio sobre a liberdade positiva e negativa: “A liberdade negativa é uma qualificação da ação; a liberdade positiva é uma qualificação da vontade. Quando digo que sou livre no primeiro sentido, quero dizer que uma determinada ação minha não é obstaculizada e , portanto, posso realizá-la; quando digo que sou livre no segundo sentido, quero dizer que o meu querer é livre, ou seja, não é determinado pelo querer do outro, ou sendo, maisgeral, por forças estranhas ao meu próprio querer. Mais do que de liberdade negativa e positiva, seria talvez mais apropriado falar de liberdade de agir e liberdade de querer, entendendo-se pela primeira, ação não impedida ou não forçada, e, pela segunda, precisamente a referência á ausência de (...) em ambas as definições serve para explicar, melhor do que a qualificação negativa e positiva, por que tanto a linguagem comum como a linguagem técnica empregam o mesmo termo para as duas diferentes acepções”. BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997, p. 52. 29 conceito que, entretanto considera insuficiente sem menção a seus diversos desdobramentos, dos quais os principais seriam: A Bioética não é mais apenas a análise e a discussão dos dilemas éticos (feita por médicos) relacionados aos avanços da biomedicina. Ela abrange os dilemas de avanços, sim, e também do ‘cotidiano’ (expressão feliz criada por Berlinguer) das ciências da vida, da saúde e do meio ambiente. A Bioética, enquanto ética, se preocupa com a reflexão crítica sobre valores; um juízo sobre valores diante dos dilemas. Nesse sentido, o advento da Bioética muito contribuiu para estabelecer a distinção entre moral e ética. A moral diz respeito a valores consagrados pelos usos e costumes de uma determinada sociedade. Daí a origem da palavra moral. Valores morais são, pois, valores eleitos pela sociedade e que cada membro a ela pertencente recebe (digamos passivamente) e os respeita. Ao passo que a ética é um juízo de valores – é um processo ativo que vem de ‘dentro de cada um de nós para fora’, ao contrário de valores morais que vem ‘de fora para dentro’ de cada um. A ética exige um juízo, um julgamento, em suma, uma opção diante dos dilemas. Nesse processo de reflexão crítica, cada um de nós vais pôr em jogo seu patrimônio genético, sua racionalidade, suas emoções e, também, os valores morais. A Bioética é ética. Nesse sentido, não se pode dela esperar uma padronização de valores – ela exige uma reflexão sobre os mesmos e, como dito, implica opção. Ora, opção implica liberdade. Não há Bioética sem liberdade. Liberdade para quê? Para se poder fazer opção, por mais ‘angustiante’ que possa ser’.56 (grifo nosso) 1.2.2 A autonomia como princípio bioético Entre as mais distintas correntes que se debruçam ao estudo da Bioética, acredita-se que a mais aceita seja o Principialismo57, basicamente refletido na obra “Principles os Biomedical Ethics”58, em que os autores (Tom Beauchamp e James Childress) apontam alguns princípios básicos que devem ser levados em conta quando da abordagem de um paciente e nas decisões a serem tomadas em relação à sua vida. Entre esses princípios está o da “autonomia”, estreitamente relacionado ao princípio da liberdade. 56 Disponível em <www.comciencia.br>. Acesso em 25.6.2006. 57 Além do principialismo, outros modelos se prestam ao estudo da bioética, a exemplo do modelo casuístico de Jonsen e Toulmin (1988), do modelo libertário ou autonomista de Engelhardt, do modelo do cuidado (dito por isso um modelo feminista), da “bioética dura” de que fala Volnei Garrafa, entre outras correntes. Para um aprofundamento da questão, cf. ARAÚJO, Antônio Fpabio Medrado de. Elementos para a Construção de uma Bioética Fundada no Amor de Amizade. 2003. Dissertação de Mestrado em Ciências da Família – Pontifícia Universidade Lateranense de Roma/Pontifício Instituto João Paulo II (Seção Brasileira). Salvador, 2003. 58 Citado por VILLAS BÔAS, Maria Elisa, 2005, p. 115. 30 A expressão autonomia advém da junção das palavras auto (próprio) e nomos (norma, regra, lei etc.), relacionando-se com a capacidade de autodeterminação do indivíduo. Por esse princípio, o paciente é tomado por alguém apto a decidir acerca de seu próprio corpo e da conveniência de se submeter ou não a determinados tratamentos, conforme seus valores pessoais e dentro dos limites legais, após o devido esclarecimento por parte do médico que o auxilia. A autonomia tem, portanto, íntima ligação com a noção de liberdade e legalidade, uma vez que o enfermo não estará obrigado a fazer algo ou a consentir que se lhe faça, se não há lei que o obrigue, podendo autogerir-se livremente dentro desse espaço juridicamente permitido. A autonomia resulta da própria deferência à dignidade da pessoa59. Ela se opõe ao paternalismo médico, vigente até o século passado (ou seja, à premissa de que o paciente é obrigado a sujeitar-se a tudo o que o médico determinar). Representa o reconhecimento do protagonismo do paciente na decisão e na assunção de condutas a ele pertinentes. Na autonomia se incluem, além da liberdade, outras noções, consagradas pela evolução dos direitos humanos e da deontologia médica, a exemplo do respeito à privacidade e do direito à confidência, aspectos intimamente relacionados. Violar a autonomia, segundo Beauchamp e Childress60, em consonância com o pensamento de Kant, é tratar a pessoa como meio e não como um fim em si mesma. Luís Salvador de Miranda Sá Júnior distingue autonomia (autodeterminação) de autarcia (auto-suficiência) e os aponta como sendo “os dois vetores essenciais do conteúdo significativo da expressão liberdade, que constitui a essência da idéia de independência na linguagem comum”61. Embora nem sempre o paciente possa conservar sua autarcia, por limitações físicas, passando a depender de outros para seu cuidado, sua autonomia deve ser respeitada, sempre que haja competência para tanto. 59 Conforme será analisado no item seguinte. 60 BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS, James. Princípios de ética biomédica. Trad. Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2002, p. 137. 61 SÁ JR. Luís Salvador de Miranda. Autonomia, Autarcia e Consulta Médica. In: Tempo de Vida e Tempo de Morte Actas do VII Seminário Nacional do Conselho nacional de Ética para as Ciências da Vida. Lisboa: Presidência do Conselho de Ministros, 2001, p. 33-57. 31 A expressão de conteúdo ético competência relaciona-se de modo imperfeito à expressão jurídica capacidade, uma vez que a competência relaciona-se à potencialidade fática de autodeterminar-se em dadas situações, enquanto a capacidade legal segue orientações bem mais objetivas. Pode haver coincidência entre esses conceitos, como em caso de incapacidade superveniente, decorrente de patologia, mas se observa particular distinção no que tange ao paciente menor. No Brasil, para fins de amparo legal à conduta médica, tem-se tendido a dar prevalência à capacidade jurídica, em detrimento da teoria do menor maduro, adotada em alguns países europeus e nos Estados Unidos da América, também chamada maioridade sanitária.62 Por essa teoria – indicada pela Associação Americana de Pediatria desde a década de 80 – o adolescente deve ter sua competência reconhecida e sua autonomia respeitada sempre que, em caráter pessoal, for considerado apto a compreender os efeitos de sua decisão, embora não tenha alcançado a maioridade legal63. É possível verificar alguma influência dessa corrente no Código de Ética Médica brasileiro, quando, em seu artigo 103, veda ao médico revelar segredo profissional referente a paciente menor, mesmo a seu representante, se o menor tiver “capacidade de avaliar seu problema e de conduzir-se por seus próprios meios para solucioná-lo, salvo quando a não revelação possa acarretar danos ao paciente”. A norma inserida no Código de Ética Médica além de ter raízes na chamada teoria do menor maduro ou maioridade sanitária, possui irrefutável abrigo no princípio constitucional do direito à intimidade e vida privada64, 62 VILLAS-BÔAS, 2005, p. 119-120. 63 Cf. a respeito RODRIGUES, João Vaz. O Consentimento Informado para o Acto Médico no Ordenamento Jurídico Português: Elementos para o Estudo da Manifestação da Vontade do Paciente. Coimbra: Coimbra, 2001, p. 202 e SS. Em 1998, a 50ª Assembléia Geral da Associação Médica Mundical, ocorrida
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