Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 DISCIPLINA DO PARCELAMENTO DO SOLO URBANO Rochelle Jelinek1 1 FORMAS DE PARCELAMENTO DO SOLO URBANO 1.1 Loteamento, desmembramento e desdobro Parcelamento do solo urbano é o processo cuja finalidade é proceder à divisão de gleba para fins de urbanização, edificação e ocupação, podendo ser executado sob as formas de loteamento, desmembramento ou desdobro. Para compreensão desse processo, convém definir alguns aspectos por ele abrangidos. A Lei Federal n.° 6.766/79, que rege o parcelamento do solo urbano, não define2 o que seja gleba, embora utilize essa palavra em diversos dispositivos. Diógenes Gasparini conceituou gleba como “toda área em que se pode, nos termos da lei, implantar um loteamento para fins urbanos”3. E complementa que não podem ser consideradas glebas “as áreas (lotes e quadras) resultantes de urbanizações já efetivadas”. Em outras palavras, gleba é “a área de terreno que ainda não foi objeto de parcelamento urbano regular, isto é, aprovado e registrado”4. Após o registro do parcelamento do solo no Cartório do Registro de Imóveis, o imóvel deixa de existir juridicamente como gleba e passa a existir juridicamente como coisa loteada ou desmembrada, composta de lotes e áreas públicas.5 Na lei tem-se uma imprecisa e vaga definição de lote inserta no art. 2o, §4o, da lei n.° 6.766/79: “considera-se lote o terreno servido de infra-estrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situe”. Amadei define lote como “a porção de terra resultante do parcelamento urbano destinada à edificação ou recreação”6. Distinção que também se impõe é entre as formas de parcelamento do solo: loteamento, desmembramento e fracionamento. O art. 2o, §1o, da Lei n.° 6.766/79, conceitua loteamento como sendo a subdivisão de gleba em lotes destinados à edificação7, com abertura de novas 1 Promotora de Justiça-Ministério Público do RS, Especialista em Direito Ambiental pela Universidade Federal do RS-UFRGS, Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do RS-PUC/RS. 2 Sobre esse aspecto, entende-se que a lei não existe para definir conceitos, mas sim para prescrever regras. 3 GASPARINI, Diógenes. O município e o parcelamento do solo. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p.12. 4 AMADEI, Vicente Celeste; AMADEI, Vicente de Abreu. Como lotear uma gleba: o parcelamento do solo urbano em seus aspectos essenciais. 2.ed. Campinas: Millenium, 2002, p. 1-3. 5 A distinção é importante, pois, identificado o terreno como lote e não gleba, há tendência de, em caso de novo parcelamento, ser evitada nova destinação de espaços livres de uso público (o que significa não haver perda de área útil de domínio privado), quando reparcelamento estiver dentro da mesma finalidade do parcelamento original, o que, às vezes, pode configurar burla às exigências da Lei n.° 6.766/79, como se verá adiante. 6 AMADEI; AMADEI, Como lotear uma gleba..., p. 3-4. 7 Quando a lei fala em edificação, não especifica que espécie, podendo abranger qualquer tipo, inclusive as que não sejam destinadas unicamente à moradia habitual dos adquirentes dos lotes, podendo ser sítios de recreio, hotéis, escolas, parques e outros quaisquer. COUTO, Sérgio A. Frazão do. Manual prático e teórico do parcelamento urbano. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 27. 2 vias de circulação8, de logradouros públicos9 ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes. A conceituação é bastante em si, encerrando qualquer discussão. A Lei n.° 9.785/99, que alterou a Lei n.° 6.766/79, teve vetado10 o §2o do art. 2o, que conceituava o desmembramento. Mesmo deixando de conceituá-lo, a lei manteve o instituto, ao determinar, no art. 11, que devem ser aplicadas ao desmembramento, no que couberem, as disposições urbanísticas vigentes para as regiões em que se situem, ou, na ausência destas, as disposições para os loteamentos. Os dois institutos diferem significativamente porque no loteamento há abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes, enquanto no desmembramento ocorre um aproveitamento do sistema viário existente, sem se cogitar de prolongamento, modificação ou ampliação de ruas ou avenidas. Em ambas as modalidades de parcelamento do solo, entretanto, há indispensabilidade da observância das normas da Lei n.° 6.766/79: para ser regular, o parcelamento deve ter aprovação do projeto pelo Município, registro11 no Registro de Imóveis competente e execução de infra-estrutura12. O fracionamento ou desdobro de área é o reparcelamento de lote (e não gleba). Não foi mencionado pela Lei n.° 6.766/79, porque o §2o do art. 2o da Lei n.° 9.785/99 também foi vetado, com o escopo de evitar a prática do desdobro sucessivo de lotes, pela qual deixaria o loteador de atender às exigências legais. Mas, na prática, o fracionamento de lotes continua a existir. A controvérsia que surge é quanto à sujeição desta forma de parcelamento às normas da Lei n.° 6.766/79. É que, em muitos casos, o desdobro pode ser uma forma de burla à lei do parcelamento do solo, um subterfúgio para fugir às obrigações legais, especialmente de execução de obras de infra-estrutura. No entanto, somente no caso concreto poderá ser aferida a necessidade da aplicação das normas do parcelamento do solo urbano, pela administração municipal, pelo registrador público e pelos aplicadores da lei. 8 As vias de circulação interna no loteamento são necessárias para facultar o acesso a todos os lotes. Ao estabelecer a obrigatoriedade destas, a lei visou evitar a necessidade dos ocupantes dos lotes centrais de valerem de servidões em propriedades de terceiros para chegar aos seus lotes ou ir deles às vias públicas próximas. Ibidem, p. 28. 9 A exigência que a lei faz de existência de espaços públicos (reservas florestais, praças, play-grounds, campos ou quadras de esporte, locais para reuniões coletivas, etc.) para utilização comum dos que ali vierem a morar objetiva atender às necessidades de lazer, esportes, divertimento, para que o loteamento não se torne local insípido. Ibidem, p. 29. 10 O veto se deu sob duplo fundamento: a um, porque o dispositivo admitia o desmembramento com acréscimo do sistema viário, o que poderia causar confusão com o instituto do loteamento; a dois, porque no desmembramento, não havendo exigência de destinação de área ao Poder Público, o que, segundo o veto, provocaria escassez de espaço para a implantação de escolas, de centro de saúde, praças e outros equipamentos necessários aos futuros parcelamentos, em prejuízo da comunidade local. 11 O art. 167, inc. II, n.° 4, da Lei de Registros Públicos, dispõe que o loteamento deve ser registrado, ao passo que o desmembramento é simplesmente averbado. Já o art. 18 da Lei n.° 6.766/79 diz que, aprovado o projeto de desmembramento ou parcelamento, deverá o loteador levá-lo a registro imobiliário, sem fazer diferenciação quanto ao ato notarial. Entende-se que, independente da denominação, os efeitos e as exigências para a anotação registral são os mesmos, razão pela qual não há por que haver distinção, utilizando-se, doravante, a palavra “registro”. 12 Sobre a questão, ver requisitos urbanísticos do parcelamento do solo para fins urbanos, no capítulo 4. 3 Quando a divisão da área não chegar a formar novo aglomerado habitacional, não houver abertura, prolongamento ou ampliação das vias e, sobretudo, quando o seu proprietário não visar ao parcelamento para fins de venda de várias unidades isoladas (novos lotes), não há desmembramento ou loteamento sujeito à Lei n.° 6.766/7913. Amadei cita, com base em decisões administrativas da Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo, que a dispensa das exigências da Lei n.° 6.766/79 é admitida para desdobrosde pequeno porte, objetivando a divisão da área em dois, três, ou até dez lotes, quando não houver razão jurídica para a exigência, porque evidente a desnecessidade da tutela urbanística e de proteção dos adquirentes dos lotes. Também menciona a existência de casos em que não foi admitida dispensa das exigências legais para desdobro em dezessete, dez e até quatro lotes, quando se verificou que visava burla à Lei n.° 6.766/7914. Destarte, tem-se que a aplicação da Lei n.°6.766/79 ao fracionamento não se dá necessariamente de acordo com o número de lotes divididos, mas sim em razão da necessidade de tutela urbanística, ambiental e consumeirista no caso concreto, de modo a exercer controle sobre a instalação de conglomerados urbanos desordenados ou sem recursos infra-estruturais urbanos necessários. 1.2 Formas irregulares de parcelamento do solo Os parcelamentos urbanos podem ser regulares ou irregulares, conforme atendam ou não aos preceitos legais. A Lei n.° 6.766/79 não distingue com precisão essas formas de parcelamento; apresenta os limites do regular e, por conseqüência, do irregular. É regular o parcelamento urbano que atende a todas as exigências administrativas do Poder Público e, depois de aprovado pelo Município, é registrado perante o Registro de Imóveis da circunscrição onde se encontra a gleba fracionada. É irregular, num sentido amplo, todo o parcelamento que não obedeceu às regras técnico-administrativo-jurídicas exigidas na lei, que não foi registrado no Registro de Imobiliário ou que não foi executado de acordo com os projetos. Esses parcelamentos em desacordo com a lei podem ser clandestinos ou irregulares (stricto sensu).15 1.2.1 Parcelamentos clandestinos ou irregulares Irregulares são os parcelamentos cujos projetos são aprovados pela autoridade municipal e não registrados no Registro de Imóveis competente ou 13 Nesse sentido: “Se não é gleba que está sendo dividida em lotes, mas, simplesmente, um lote de 500m2 que está sendo desdobrado em duas partes, não se trata de desmembramento, mas de simples desdobre, não sujeito à Lei n.° 6.766/79.” (Ap. 826-0, do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo. Rel.: Arnaldo Rizzardo. j. 17/02/82). 14 AMADEI; AMADEI, Como lotear uma gleba... p. 4-5. 15 Sobre as irregularidades nos loteamentos, ver mais no capítulo 6. 4 cujas obras de urbanização não foram executadas ou o foram em desacordo com a licença expedida, apesar de ter sido efetivada a venda, cessão ou ocupação de lotes. Clandestinos são os parcelamentos que não têm projeto aprovado pela autoridade municipal – e conseqüentemente não registrados –, mas implementados de fato, como aponta José Carlos de Freitas16: Clandestino não é, apenas, o loteamento feito às ocultas. Tanto é aquele desconhecido oficialmente pelo Poder Público, porque inexistente solicitação de aprovação, quanto o que deriva do indeferimento do respectivo pedido, por não atender às exigências legais. Num e noutro caso, sempre sem a chancela oficial, ele é implantado fisicamente pelo loteador, com a abertura de ruas, demarcação de quadras e lotes e com a edificação de casas pelos adquirentes. Rosângela Staurenghi17 anota que a doutrina jurídica tradicionalmente classifica o parcelamento do solo em loteamentos ou desmembramentos, regulares, irregulares ou clandestinos. E acrescenta que os assentamentos informais – invasões – também são formas de parcelamento clandestino do solo, que exigem regularização fundiária, com correção dos aspectos dominiais, urbanísticos e ambientais.18 2 RESTRIÇÕES URBANÍSTICAS E AMBIENTAIS 2.1 Zonas urbanas e zonas rurais O parcelamento do solo para fins urbanos somente é admitido em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou em lei municipal (art. 3o, caput, da Lei n.° 6.766/79). A lei do parcelamento excluiu de sua órbita de aplicação os loteamentos para fins rurais19. 16 FREITAS, José Carlos de. Loteamentos clandestinos: uma proposta de prevenção e repressão. In: FREITAS, José Carlos de (coord.). Temas de direito urbanístico. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: Ministério Público do Estado de São Paulo, 2000, v.2, p. 335. 17 STAURENGHI, Rosângela. Regularização fundiária de assentamentos informais. Texto inédito, produzido para orientar debate ocorrido em 12/11/2003 na Câmara Federal de Deputados – Comissão de Desenvolvimento Urbano, sobre a alteração da Lei n.° 6.766/79. Edésio Fernandes também anota que as favelas são consideradas forma de loteamento, ainda que com características peculiares, justificando sua classificação como áreas de urbanização específica. FERNANDES, Edésio. Perspectivas para a regularização fundiária em favelas à luz do Estatuto da Cidade. In: FREITAS, José Carlos de (coord.). Temas de direito urbanístico. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: Ministério Público do Estado de São Paulo, 2001, v.3, p. 197. 18 Sobre os parcelamentos a margem da lei, ver capítulo 6. 19 Os loteamentos para fins rurais ou agrários obedecem a normas especiais editadas pela legislação agrária: Estatuto da Terra (Lei n.° 4.504/64), seu regulamento (Decreto n.° 59.428/64), pela Lei n.° 5.868/72, pelo Decreto-Lei n.° 58/37 e pela Instrução do INCRA n.° 17-b/80. 5 Importante definir-se algumas terminologias – ‘fins urbanos’, zonas urbanas, de expansão urbana e de urbanização específica, ‘fins rurais’ e zona rural – para que se possa aferir a incidência da lei em comento. No dizer de Sérgio Frazão do Couto20, o parcelamento do solo com fins urbanos refere-se ao fracionamento do espaço territorial especificamente destinado a abrigar contingentes humanos para formação, expansão ou conservação das cidades. Nesse enfoque, define as espécies de solo urbano que contém o conceito de parcelamento para ‘fins urbanos’: solo urbano propriamente dito – porção territorial onde existem erigidas, continuamente, as moradias dos seus habitantes, as vias de circulação entre as unidades residenciais, os serviços próprios, direção político-administrativa; solo de expansão urbana – porção territorial indefinida aos redor das cidades, para onde possa seu crescimento se dirigir, pela agregação de novos componentes urbanísticos constantes da zona urbana propriamente dita; solo urbanizável – aquele onde as condições geológicas, sanitárias, ecológicas, etc., impedem atualmente sua ocupação pela população, sem riscos para ela, até as correções necessárias para torná-lo habitável. Assevera, ainda, que esses tipos de solo urbano podem sofrer mutações nas categorias classificatórias por força de normas legais pertinentes ou fatos sociais e obras governamentais que incidam sobre eles. Por esse prisma, são zonas urbanas, além daquelas de edificações contínuas de povoação, as partes adjacentes e as áreas que, a critério do Município, venham a, possivelmente, ser também ocupadas por edificações e concentrações demográficas contínuas.21 O crescimento das cidades, não só no sentido vertical, mas também horizontal, é uma constante, de modo que áreas isoladas passam, em pouco tempo, a ser ocupadas por edificações e concentrações urbanas. A expansão dos limites horizontais da cidade se dá inicialmente com o deslocamento das classes menos favorecidas para áreas periféricas (os “cinturões de pobreza”) e, também, da ocupação de campos por sítios de recreio, casas de campo, chácaras, para onde a população procura deslocar-se em busca de tranqüilidade aos finais de semana e até para moradia. Nesse contexto vislumbram-se 20 COUTO, Manual prático..., p. 8-11. 21 O Código Tributário Nacional (Lei n.° 5.172/66) traz em seu bojo uma definição de zona urbana (para fins de incidência de imposto sobre a propriedade prediale territorial urbana), no art. 32, §1o e §2°: §1o – Para os efeitos desse imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal, observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público: I – meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais; II – abastecimento de água; III – sistema de esgotos sanitários; IV – rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; V – escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado. §2o – A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinadas à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior. Essa referência é relevante, uma vez que muitos parcelamentos irregulares, executados em zonas rurais, mas com fins urbanos, não observaram as exigências da Lei n.° 6.766/79, sendo interessante a continuidade dessa condição de irregularidade tanto para o loteador – que não precisa executar todas as obras de infra-estrutura nem outorgar escritura pública de transferência do domínio dos lotes, quanto para os adquirentes, que preferem a incidência do ITR à do IPTU. 6 as zonas de expansão urbana, áreas para onde tende o crescimento das cidades, com a localização de novas levas humanas. A expansão horizontal da cidade também ocorre com o deslocamento das indústrias encravadas nos núcleos urbanos, para evitar a falta de sossego da população em razão da poluição sonora e ambiental, que determina a criação de áreas ou distritos industriais mais afastados, o que acaba por levar os operários a residirem mais perto do local de trabalho e, em seguida, vem o comércio para servi-los. As áreas destinadas pela legislação municipal para criação de distritos industriais, por exemplo, seriam zonas de urbanização específica. De acordo com o art. 3o da Lei n.° 6.766/79, ao Município compete, privativamente, delimitar o perímetro urbano dentro de seu território, notadamente para fins urbanísticos. Mas não cabe ao Município estabelecer critérios de definição de zona urbana ou de expansão urbana. Cabe à lei urbanística estabelecer os requisitos que darão à área condição de urbana ou urbanizável, e, atendidos esses requisitos, a lei especial municipal delimitará o perímetro urbano, as áreas de expansão urbana e os núcleos em urbanização22. Em contraponto às zonas urbanas (em sentido amplo), existem as zonas rurais, que Frazão do Couto23 conceitua como as destinadas à produção e exploração de bens necessários à alimentação das populações existentes nos núcleos urbanos.24 As normas jurídicas incidentes sobre a matéria fazem concluir que podem existir áreas rurais em zonas urbanas e áreas urbanas em zonas rurais. Como assevera Diógenes Gasparini25, um imóvel rural pode estar localizado em zona urbana, expansão urbana ou em zona rural. Diante disso, afirma-se haver a possibilidade de existir área urbana (se sua destinação não for agrícola ou pecuária, nem medir mais de um hectare) em zona rural e área rural em zona urbana lato sensu. E, por fim, contrapondo as definições de zona urbana e zona rural, imóvel urbano e imóvel rural, chega-se à conclusão que parcelamento para ‘fins urbanos’ é o que se destina à urbanização, edificação e ocupação, com a 22 No âmbito do Rio grande do Sul, a Lei de Desenvolvimento Urbano (Lei Estadual n.° 10.116/94) definiu áreas urbana e de expansão urbana, nos arts. 11 a 14. 23 COUTO, Manual prático..., p. 41. 24 O Estatuto da Terra, em seu art. 4o, inc. I, define imóvel rural como o prédio rústico aquele de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial. O critério da destinação afasta os demais, eis que a lei, para considerar um imóvel como rural (fora da esfera da Lei n.° 6.766/79), não leva em conta sua localização nem sua dimensão. Já o Código Civil estabelece que os imóveis devem ser considerados urbanos ou rurais conforme estejam localizados na área urbana ou na área rural, inadmitindo a existência de área rural encravada em zona urbana ou de imóvel urbano (independente de seu aproveitamento e sua destinação) em zona rural. A Lei n.° 5.868, para fins de incidência do imposto sobre a propriedade territorial rural, considera imóvel rural aquele que se destina à exploração agrícola, pecuária, extrativa, vegetal ou agro-industrial, independente de sua localização, e tiver área superior a 1 (um) hectare, levando em consideração, dessa forma, dois aspectos – destinação e dimensão, com prevalência deste último, de modo que as áreas menores que um hectare deverão ser consideradas urbanas (em sentido amplo). Mais sobre a questão: BALBINO FILHO, Nicolau. Registro de imóveis. 9. ed. São Paulo: Saraiva, p.355. MENDONÇA, Rafael Augusto de. Direito agrário. 2..ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.301. 25 GASPARINI, O município..., p.182. 7 finalidade de habitação, indústria ou comércio, enquanto parcelamento para ‘fins rurais’ é o que se destina à exploração econômica da terra - agrícola, pecuária, extrativa ou agro-industrial. Já se disse que o parcelamento do solo para ‘fins urbanos’ somente é admitido em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou em lei municipal, restando excluídos da órbita da Lei n.° 6.766/79 os loteamentos para ‘fins rurais’. E nas hipóteses em que áreas rurais são fracionadas mediante loteamentos ou desmembramentos para ‘fins urbanos’, qual a lei aplicável à espécie? O art. 53 da Lei n.° 6.766/7926 prescreve que toda alteração de uso do solo rural para fins urbanos dependem de prévia audiência do INCRA, do órgão metropolitano (quando for o caso), e da aprovação da Prefeitura Municipal, segundo as exigências da legislação pertinente. Este dispositivo teve como objetivo regrar a alteração do uso do solo rural para fins urbanos – e não o parcelamento do solo rural para finalidade urbana27, porque não disciplinou como este poderia ocorrer. Feita essa premissa, conclui-se que o art. 53 não abriu uma exceção ao art. 3o da Lei n.° 6.766/79 (que só admite parcelamento para ‘fins urbanos’ em zonas urbanas lato sensu). Assim, o parcelamento de imóvel rural (localizado em zona rural) para ‘fins urbanos’ só será factível se lei municipal redefinir o seu zoneamento, transformando a zona rural ou parte dela (onde se encontra o imóvel) em zona urbana ou de expansão urbana. Sobre a questão, Toshio Mukai conclui que, se um imóvel rural perdeu suas características de exploração agrícola, extrativa vegetal, pecuária ou agro-industrial, deverá ele obedecer duas condições para o loteamento para fins de sítios de recreio ou núcleos urbanos: atender ao art. 53 da Lei n.° 6.766/79 e ser incluído, por lei municipal, em zona de expansão urbana. Sem tais condições, o parcelamento será ilegal e irregular, incidindo sobre os responsáveis as sanções penais do art. 50 da lei retromencionada, uma vez 26 A Instrução n.° 17-B/80 do Instituto nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA – derrogada pelo teor da Constituição Federal, que dá autonomia aos Municípios – dispõe sobre o parcelamento de imóveis rurais, preceituando que o parcelamento para ‘fins urbanos’ de imóvel rural situado em zona urbana ou de expansão urbana, assim definida em lei municipal, rege-se pelas disposições da Lei n.° 6.766/79, além da legislação estadual e municipal pertinente ao parcelamento. A referida instrução, quanto aos imóveis rurais situados fora de zona urbana ou de expansão urbana, ou seja, em zona definida em lei como rural, define que o seu parcelamentopara ‘fins urbanos’ com vistas à formação de núcleos urbanos, sítios de recreio ou industrialização, é regido pelo disposto no art. 96 do Decreto n.° 59.428/66 e o art. 53 da Lei n.° 6.766/79. 27 Imagine-se, por exemplo, a implantação de um hotel-fazenda em imóvel rural localizado em zona rural e de uma escola técnica em imóvel rural situado em zona urbana. Em ambos os casos há alteração da destinação do solo rural para fins tipicamente urbanos, sem o objetivo de parcelamento do imóvel. Esses exemplos demonstram o limite e o alcance do disposto no art. 53 da lei n.° 6.766/79, que regrou unicamente as exigências para as alterações do solo rural. Nesse sentido, Diógenes Gasparini, ao comentar o referido artigo, anota que o dispositivo não cuida do parcelamento de imóvel rural para fins urbanos, pois se relaciona ao uso do solo, e não à sua divisão. GASPARINI, O município..., p.180. Na mesma linha de raciocínio, Toshio Mukai, Alaor Caffé Alves e Paulo José Vilella Lomar concluem que essa disposição se coaduna com o mandamento contido no art. 3o da Lei n.° 6.766/79. MUKAI, Toshio; ALVES, Alaor Caffé; LOMAR, Paulo José Vilella. Loteamentos e desmembramentos urbanos. 2.ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1987, p.290. 8 que, desde a Lei n.° 6.766/79, não pode mais ser autorizada a implantação de loteamento para sítios de recreio ou núcleos urbanos na zona rural28. No que tange à alteração do zoneamento em que está localizado o imóvel objeto do parcelamento, destaca-se que a competência legislativa municipal não está submissa a nenhum outro órgão29. Basta o devido processo legislativo para alterar a transformação de determinada zona rural em zona urbana ou de expansão urbana. Operada a publicação da lei que alterou o zoneamento, deverá o Município, então, comunicar a transformação da área rural em urbana ao INCRA, para deixe de lançar o ITR, no próximo exercício, em relação aos imóveis localizados naquela zona; cadastrar esses imóveis para efeito de cobrança de IPTU e providenciar a retificação, junto ao Registro de Imóveis competente, da qualificação da zona alterada pela lei municipal, passando o Poder Público Municipal a ter a prerrogativa de ordenar e coordenar a ordenação territorial daquela zona. 2.2 Áreas urbanizáveis Nem todas as áreas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica são passíveis de parcelamento do solo. O parágrafo único do art. 3o da Lei n.° 6.766/79 limita o parcelamento em determinadas áreas ditas ‘urbanizáveis’, enquanto não corrigidos os seus aspectos desfavoráveis e criadas condições de utilização do solo, por razões de segurança e saúde publica. Áreas urbanizáveis não são necessariamente áreas inaproveitáveis, mas sim áreas que, por questões técnicas ecológicas ou geológicas não permitem edificação, ocupação ou habitação. A impossibilidade de parcelamento e ocupação, nestes casos, não é absoluta, porque os impasses podem, em alguns casos, ser sanados por correções do solo e pela conseqüente criação de condições adequadas à ocupação habitacional. O parágrafo único do art. 3o da Lei n.° 6.766/76, in verbis, define as restrições: 28 MUKAI, Toshio. Direito urbano-ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2000, p. 119-120, 133 e 296. No mesmo sentido: SIQUEIRA, Aluízio Cândido. Direito e legislação de terras. São Paulo: Saraiva, 1980, p.499. Também VIANA, Geraldo Camargo: “Se destinam-se à morada, eventual ou permanente, tais sítios ou chácaras caracterizam-se como propriedade urbana, não se prendendo ao zoneamento onde estão localizados. VIANA, Rui Geraldo Camargo. O parcelamento do solo urbano. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 48. Ainda sobre a questão: “Núcleos urbanos e sítios de lazer, vale dizer, se objetivados pelo loteamento de solo rural, configuram parcelamentos para fins urbanos, pois que no conceito de imóvel rural está a exploração extrativa, agrícola, pecuária ou agro-industrial” (TJSP, 2a Câm.Civ., Ac 78282-2-S. São José dos campos. Rel. Des. Carlos Ortiz). 29 A Constituição Federal de 1988, nos arts. 23, 29, 30 e 182, definiu de maneira explícita a autonomia municipal em termos políticos, legais e financeiros e, posteriormente, as leis orgânicas municipais consolidaram tal quadro. Diante desse preceito constitucional, não se pode pretender que a audiência prévia do INCRA prevista no art. 53 da lei n.° 6.766/79 (anterior, pois, à CF), tenha caráter vinculativo para autorizar ou não o Município a alterar o seu zoneamento. Sobre a autonomia municipal para transformar áreas rurais em urbanas, sem estar o Município adstrito à prévia anuência da União, do Estado ou do INCRA: COUTO, Manual teórico..., p. 47-48. Também sobre a autonomia dos Municípios sobre as zonas rurais: FERNANDES, Edésio. O mito da zona rural. IRIB-Instituto do Registro Imobiliário do Brasil, São Paulo, n. 775, ago. 2003. Disponível em: <http://irib.org.br/salas/boletimel775a.asp>. Acesso em: 12 ago. 2004. 9 Parágrafo único – Não será permitido o parcelamento do solo: I – em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas; II – em terrenos que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde pública, sem que sejam previamente saneados; III – em terreno com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento), salvo se atendidas exigências especiais das autoridades competentes; IV – em terrenos onde as condições geológicas não aconselham a edificação; V – em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção. Nas situações mencionadas30, as áreas impróprias para a edificação não poderão ser objeto de parcelamento ou nelas terão de ser realizadas obras, pelo loteador, que afastem as impossibilidades técnicas.31 A limitação quanto às áreas alagadiças visa a assegurar condições de habitabilidade em termos de saúde pública. Assim, em terrenos alagadiços ou sujeitos a inundações, onde a proliferação de doenças encontra lugar próprio para disseminar-se, deve o loteador prever no projeto e executar obras para escoamento das águas32. A mens legis também é de garantia da saúde pública quando estabelece restrições para o parcelamento de terrenos insalubres que tenham sido aterrados com material nocivo. Depois de saneadas, estas áreas poderão ser passíveis de parcelamento, se o trecho territorial em foco for considerado habitável, em termos de salubridade, pela autoridade sanitária competente. Nos terrenos com declive igual ou superior a 30%, segundo a lei, somente poderão ser procedidos parcelamentos para fins urbanos se atendidas as exigências específicas da autoridade municipal competente, que poderão consistir em obras de lastreamento dos desvãos, para prevenir deslizes de encostas, desabamentos, avalanches e outros fenômenos geológicos semelhantes. Depois de constatada a segurança do local pelos técnicos municipais, mediante laudos periciais específicos, pode a área ser passível de parcelamento. Em locais com condições geológicas adversas desfavoráveis à edificação, mediante retificações do solo, aterros e compactações, é possível 30 No Rio Grande do Sul, a Lei Estadual n.° 10.116/94 (Lei do Desenvolvimento Urbano) estabeleceu, além dessas hipóteses, a restrição de parcelamento em terrenos situados fora do alcance dos serviços públicos de abastecimento de água potável e de energia elétrica, salvo se atendidas as exigências específicas dos órgãos competentes (art. 17, inc. VI), e em terrenos dos quais resultem lotes encravados ou em desacordo com os padrões estabelecidos no plano diretor ou nas diretrizes gerais de ocupação do território. 31 Em havendo aprovação do parcelamento do solo em tais condições, sem a devida correção, cabe o pleito judicial de anulação do ato administrativo de aprovação irregular.32 A Lei Estadual n.° 10.116/94 vedou expressamente o parcelamento do solo em terrenos sujeitos a inundações. Para os terrenos alagadiços, exige que seja procedida à drenagem definitiva e à compactação do solo (art. 17, inc. I e II). 10 dar condições adequadas para o solo receber edificação e ser passível de parcelamento. Quanto às áreas poluídas, lançando mão o parcelador de providências para correção da degradação ambiental, poderá atender aos requisitos urbanísticos para afastar a vedação legal de parcelamento no local. 2.3 Áreas de preservação ecológica Situação diversa das acima esposadas é a existente em relação aos locais denominados pela Lei n.° 6.766/79 como ‘áreas de preservação ecológica’. É questão de ordem legal que não depende da ação do parcelador para afastá-la, cabendo ao Poder Público obstar o parcelamento naquele local, em função dos interesses preservativos ecológicos. A imprecisão da expressão ‘áreas de preservação ecológica’ – que não encontra qualquer citação em outra norma ou mesmo na literatura da área técnica – levou a doutrina à conclusão de que a defesa do meio ambiente impõe uma definição extensiva, podendo abranger todas aquelas áreas que as normas instituam como relevantes para os ecossistemas, como assevera Fernando Reverendo Vidal Akaoui33, que acrescenta estarem abrangidas as unidades de conservação (reservas ecológicas, estações ecológicas, parques nacionais, estaduais e municipais, áreas de proteção ambiental, florestas nacionais, estaduais e municipais, áreas de relevante interesse ecológico e reservas extrativistas ou outras a serem criadas pelo Poder Público). Paulo Affonso Leme Machado34 diz que as áreas de proteção ecológica podem abranger as chamadas de interesse especial (art. 13, inc. I, da Lei n.° 6.766/79), bem como as áreas de preservação permanente, os parques nacionais, estaduais e municipais, as reservas biológicas, as reservas de caça, as estações ecológicas e as áreas de proteção ambiental. Guilherme José Purvin de Figueiredo diz que constituem ‘espaços protegidos’ as áreas de preservação permanente, áreas de reserva legal (que são existentes apenas em zona rural), as áreas tombadas (como por ex. monumentos naturais, paisagens e sítios ecológicos tombados) em razão de seu valor ecológico e as unidades de conservação da natureza35. Nesse prisma, entende-se que a expressão ‘áreas de preservação ecológica’ abrange os espaços ecológicos (existentes em área urbana lato sensu) protegidos pela legislação: as áreas de preservação permanente36, as 33 AKAOUI, Fernando Reverendo Vidal. Parcelamento do solo em áreas de proteção ecológica: a tentativa de burla à legislação urbanística através da instituição de condomínio ordinário. FREITAS, José Carlos de (Coord.). Temas de direito urbanístico. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: Ministério Público do Estado de São Paulo, 1999, v.1, p.149-156. 34 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2003, p.262. 35 FIGUEIREDO, A propriedade..., p.256. 36 Áreas de preservação permanente (APP) são aquelas protegidas nos termos dos arts. 2o e 3o do Código Florestal (Lei n.° 4.771/65), situadas ao longo ou ao redor dos corpos hídricos; no topo dos morros, montes, montanhas e serras; nas encostas com declividade superior a 45%; nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues; nas bordas dos tabuleiros ou chapadas; em altitude superior a 1800metros; cobertas ou não por vegetação nativa, que têm a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade ecológica, a biodiversidade, o fluxo gênico da fauna e da flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas. 11 áreas tombadas e as unidades de conservação37. Estas as áreas em que não seria permitida a implantação de loteamentos e desmembramentos. 2.3.1 Áreas de preservação permanente Questão tormentosa em relação à matéria em comento é a ampla conceituação das áreas de preservação permanente38 e sua aplicação nas zonas urbanas das cidades, onde o adensamento demográfico e a ocupação desordenada do solo tornam difícil compatibilizar o desenvolvimento das atividades econômicas, o direito à moradia e a preservação do meio ambiente, sendo real e pontual o conflito entre os que buscam a regularização fundiária e os que colimam a proteção ambiental39. A primeira indagação que surge é sobre a aplicabilidade dos dispositivos da Lei n.° 4.771/65 (Código Florestal) em relação à delimitação e proteção das áreas de preservação permanente em área urbana40, especialmente em face das disposições dos arts. 3o, par. único, inc.V, e 4o, inc.III, da Lei n.° 6.766/79. Para aprofundar a questão, insta trazer à colação os dispositivos pertinentes: Lei n.° 4.771/65: No âmbito do Rio Grande do Sul, o Código Estadual de Meio Ambiente (Lei n.º 11.520/2000), no art. 192, § único, inciso IV, proibiu expressamente o parcelamento do solo em APP. 37 As unidades de conservação estão arroladas na Lei n.° 9.985/00: unidades de proteção integral (estações ecológicas, reservas biológicas, parques nacionais, estaduais e municipais, monumentos naturais, refúgios de vida silvestre e RPPNs-reservas particulares de patrimônio natural) e unidades de uso sustentável (áreas de proteção ambiental, área de relevante interesse ecológico, florestas nacionais, reservas extrativistas, da fauna e de desenvolvimento sustentável). 38 A limitação estabelecida pela instituição das áreas de preservação permanente consiste na sua imodificabilidade. 39 A pressão política para que se afastem os limites impostos pelo Código Florestal nas áreas urbanas tem sido grande e o argumento mais usado recai sobre o déficit habitacional brasileiro (atualmente em torno de 6,6 milhões, segundo dados do IBGE. O mesmo instituto divulga outro dado que deve ser contraposto: existem no Brasil cerca de 4,6 milhões de imóveis vagos, o que evidencia a face injusta da questão habitacional e leva-nos a afirmar que a solução do problema não está na ocupação das áreas de preservação permanente. Edésio Fernandes, tratando da compatibilização entre as agendas Verde e Marrom, enfatiza que tanto o direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado quanto o direito à moradia são elementos do direito à vida. FERNANDES, Edésio. Estatuto da Cidade: promovendo o encontro das agendas “verde” e “marrom”. In: LEITE; José Rubens Morato; FERREIRA, Heline Sivini (Org.). Estado de direito ambiental: tendências. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p.317. Em que pese os esforços existentes para arredar o conflito entre o direito à moradia e o direito à preservação ambiental, na prática esse é um dos dilemas que assolam os administradores e demais operadores que lidam com a questão da ocupação da terra urbana. Problema de difícil solução, traduz a macroconflituosidade interna típica dos interesses difusos, dos quais o direito ao ambiente desponta como uma das expressões mais típicas. 40 As normas do Código Florestal aplicam-se às áreas urbanas, uma vez que o art. 1° do referido diploma legal não faz distinção entre meio rural e urbano. Nesse sentido: FINK, Daniel Roberto; PEREIRA, Márcio Silva. Vegetação de preservação permanente e área urbana: uma interpretação do parágrafo único do art. 2° do Código Florestal. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, n.2, p.77-90, abr./jun 1996. Também: FREITAS, Matas ciliares. Em sentido contrário, entendendo que o Código Florestal só se aplica às zonas rurais, e que a faixa não edificável de 15 metros prevista na Lei n.° 6.766/79 se aplica às áreas urbanas: AMADEI; AMADEI, Como lotear uma gleba..., p. 403. 12 Art. 2° - Consideram-se de preservação permanente, pelo sóefeito desta lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d água desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima será: (redação dada pela Lei nº 7.803/89) 1 - de 30 (trinta) metros para os cursos d água de menos de 10 (dez) metros de largura; 2 - de 50 (cinqüenta) metros para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinqüenta) metros de largura; 3 - de 100 (cem) metros para os cursos d’água que tenham de 50 (cinqüenta) a 200 (duzentos) metros de largura; 4 - de 200 (duzentos) metros para os cursos d’água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura; 5 - de 500 (quinhentos) metros para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 (seiscentos metros); b) ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d’água naturais ou artificiais. c) nas nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados “olhos d’água”, qualquer que seja a sua situação topográfica, num raio mínimo de 50 (cinqüenta) metros de largura; d) no topo de morros, montes, montanhas e serras; e) nas encostas ou partes destas, com declividade superior a 45°, equivalente a 100% na linha de maior declive; f) nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues; g) nas bordas dos tabuleiros ou chapadas, a partir da linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais; h) em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer que seja sua vegetação. Parágrafo único - No caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas no perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, observar-se-á o disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo. Art. 3° - Consideram-se, ainda, de preservação permanente, quando assim declaradas por ato do Poder Público, as florestas e demais formas de vegetação natural destinadas: a) a atenuar a erosão das terras; b) a fixar as dunas; 13 c) a formar faixas de proteção ao longo de rodovias e ferrovias; d) a auxiliar a defesa do território nacional a critério das autoridades militares; e) a proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico ou histórico; f) a asilar exemplares da fauna ou flora ameaçados de extinção; g) a manter o ambiente necessário á vida das populações silvícolas; h) a assegurar condições de bem-estar público. (grifos nossos) Lei n.° 6.766/65: Art. 3° - [...] Parágrafo único – Não será permitido o parcelamento do solo: V – em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção. Art. 4o – Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos: III – ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínios público das rodovias e ferrovias, será obrigatória a reserva de uma faixa non aedificandi de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica.41 (grifos nossos) A Lei n.° 6.766/79, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, é de natureza urbanística: visa à organização (uso e ocupação) do solo. Ao tratar de faixas non aedificandi no art. 4o, inc. III, não pretendeu promover a proteção da biodiversidade, e sim a segurança da população, o que fica evidenciado pelo próprio teor do dispositivo, que também trata das faixas de domínio público das rodovias e ferrovias. Qualquer construção que fosse autorizada dentro da faixa de 15 metros das margens dos rios, rodovias ou ferrovias, traria risco de vida à população que a utilizasse, daí porque, com propriedade, o legislador estabeleceu tais requisitos urbanísticos para loteamentos42. Já o Código Florestal tem natureza nitidamente de proteção ecológica e, no art. 2o, ‘a’, teve em mira a função ambiental das matas ciliares, a preservação dos recursos hídricos, a estabilidade geológica, o fluxo gênico, com o objetivo maior de assegurar o bem estar das populações presentes e futuras. Com o advento da Lei n.° 10.257/01 (Estatuto da Cidade), editada pela União no exercício de sua competência constitucional legislativa, que 41 A Lei n.° 10.932, de 03/08/2004, deu nova redação ao inc. III do art. 4° da lei n.° 6.766/79, suprimindo a obrigatoriedade das faixas não edificáveis de 15m para cada lado ao longo de dutovias, remetendo a avaliação dessa necessidade ao licenciamento ambiental. 42 FIGUEIREDO, A propriedade..., 229. 14 regulamentou o capítulo da Constituição Federal sobre a política urbana43, a temática ambiental tornou-se obrigatória na fixação das exigências fundamentais de ordenação da cidade. A título exemplificativo, tomem-se as seguintes diretrizes gerais mencionadas no estatuto: suas normas, de ordem pública e interesse social, regulam o uso da propriedade urbana em prol do equilíbrio ambiental (art. 1o, par. único); a política urbana deve garantir o direito a cidades sustentáveis44, que pressupõe o saneamento ambiental (art. 2o, inc. I); o planejamento urbano deve evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente (art. 2o, inc.IV); a política urbana deve promover a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, inclusive o cultural (art. 2o, inc. XII); a política urbana deve ouvir a população nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído (art. 2o, inc. XIII); na regularização fundiária e urbanização de favelas, a política urbana deverá considerar as normas ambientais (art. 2o, inc. XIV); a ordenação do solo das cidades deve coibir o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana, e evitar a poluição e a degradação ambiental (art. 2o, inc. VI, ‘c’ e ‘g’). Diante das diretrizes para a política urbana estabelecidas no Estatuto da Cidade, não se pode vislumbrar uma aplicação estrita da Lei n.° 6.766/79, sem estar em consonância com a legislação de tutela ao meio ambiente. O parcelamento do solo urbano deve observância não só à Lei n.° 6.766/79, mas também a toda legislação federal e estadual. José Afonso da Silva, tratando das áreas verdes urbanas, afirma que a política dos espaços verdes revela-se na proteção da natureza, a serviço da urbanização, com o objetivo de ordenar a coroa florestal em torno das grandes aglomerações, manter os espaços verdes existentes no centro das cidades, criar áreas verdes abertas ao público, preservar áreas verdes entre as habitações – tudo visando a contribuir para o equilíbrio do meio em que vive e trabalha o homem. E conclui que a política dos espaços verdes há de ser estabelecida pelo planos diretores e leis de uso do solo dos Municípios ou regiões metropolitanas, mas no que se refere às áreas de preservação permanente ali existentes, terão que observar os princípios e limites previstos no art. 2o do Código Florestal (leia-se metragens para as áreas de preservação permanente), conforme determinação de seu par. único, acrescentado pela Lei n.° 7.803/8945. Da mesma posição comunga Paulo Affonso Leme Machado, que, ao discorrer sobre a questão em tela, esposa que o legislador, ao introduzir o parágrafo único do art. 2° do Código Florestal, quis deixar claro que os planos e leis de uso do solo do Município têm que estar em consonância com as normas do mencionado art. 2º, porque a autonomia municipal deve 43 O art. 182 da CF trata das políticas de desenvolvimento urbano e o art. 183 do usucapião especial constitucional. 44 A expressão cidade sustentável deriva de desenvolvimento sustentável, expressão que consta do relatório “Nosso futuro paratodos” ou “Relatório Brundtland” – elaborado por uma comissão formada na Assembléia Geral das Nações Unidas em 1985 –, que pregou a necessidade de uma política de desenvolvimento que levasse em conta os limites ecológicos do planeta, utilizando-se adequadamente os recursos ambientais, para satisfação das necessidades das gerações presentes sem sacrifício das gerações futuras. 45 SILVA, Direito ambiental..., p. 75. 15 estar entrosada com as normas federais e estaduais protetoras do meio ambiente46. Considerando as diferentes funções das áreas de preservação permanente no ambiente urbano47, conclui-se que o conceito de desenvolvimento sustentável veio mostrar que só se pode progredir, com qualidade de vida, se preservar-se o meio ambiente para a nossa e para as futuras gerações. Progredir retirando da natureza o desnecessário ou além de sua capacidade não significa que estamos nos desenvolvendo. É por este motivo que o Código Florestal determina que os planos diretores e as leis de uso do solo devem respeitar os princípios e limites referentes às áreas de preservação permanente e do ambiente geral, pois a função primordial da cidade é garantir aos seus integrantes uma vida com qualidade, e isto só é possível preservando-se o meio ambiente48. Destarte, as políticas de ordenação do solo urbano não podem descuidar da legislação ambiental. Face ao argumento sustentado por alguns estudiosos no sentido de que o legislador federal teria remetido às legislações municipais a livre definição das áreas de preservação permanente quando situadas em área urbana49, a nosso ver desprovido de fundamentação, por desconsiderar o regime de repartição de competências constitucionais em matéria ambiental e o relevante papel ecológico desempenhado por tais áreas protegidas. Nesse contexto, necessário trazer a lume a questão das competências constitucionais50. O art. 21, inc. XX, da CF, fixa a competência da União para instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos. O art. 24, inc. I, por seu turno, fixa a 46 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 385- 386. 47 A vegetação no entorno dos cursos d’água – as matas ciliares – exerce importante papel no controle hidrológico, no ciclo e na qualidade da água. Essa vegetação segura a água proveniente da chuva, outra parte escoa sobre o caule e ingressa no solo atingindo as raízes da vegetação, criando no solo canais que permitem que boa parte da água do solo seja absorvida, perenizando rios e nascentes, formando os aqüíferos freáticos e profundos, essenciais para a manutenção dos corpos hídricos. Também funcionam como filtro para as águas da chuva que não foram absorvidas pelo solo, agindo como um filtro de escoamento superficial, impedindo ou dificultando a ação dos agentes poluentes como defensivos agrícolas, sedimentos e resíduos. Impedem erosões das margens, coíbem inundações e enchentes, evitam o assoreamento dos corpos hídricos (com isso garantindo a constância do volume de água que abastece as populações, viabiliza a navegação e a geração de energia e irrigação). A mata ciliar também garante o povoamento da fauna silvestre e aquática, a maior reprodução da flora e o controle da temperatura, proporcionando um clima mais ameno. Sobre a questão: FINK; PEREIRA, Vegetação de preservação..., p.77-90. ARFELLI, Amauri. Áreas verdes e de lazer: considerações para sua compreensão e definição na atividade urbanística de parcelamento do solo. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, n. 33, p. 42-44, jan./mar. 2004. FREITAS, Matas ciliares. BRAGA, Rodrigo Bernardes. Parcelamento do solo urbano: doutrina, legislação e jurisprudência de acordo com o novo Código Civil. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004, p. 55. Se considerar-se que a degradação das matas ciliares e a impermeabilização das áreas de várzea constituem talvez os principais geradores de enchentes e inundações nas cidades, chegar-se-á à conclusão de que o descumprimento do disposto no art. 2o, par. único, do Código Florestal, nas áreas urbanas, acarreta um custo social elevadíssimo para os cofres públicos e sacrifícios incomensuráveis para a população atingida. FIGUEIREDO, A propriedade..., 221. 48 Nessa linha: MUSETTI, Rodrigo Andreotti. Da proteção jurídico-ambiental dos recursos hídricos. São Paulo: LED, 2001, p. 183-184. 49 Essa a conclusão de MAGRI, Ronald Vitor Romero; BORGES, Ana Lúcia Moreira. Vegetação de preservação permanente e área urbana: uma interpretação do parágrafo único do art. 2° do Código Florestal. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, n. 2, abr./jun. 1996. 50 Sobre o tema, ver item 1.2. 16 competência da União e dos Estados para legislar concorrentemente sobre direito urbanístico. Já o art. 30 diz que compete aos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local (inc. I), suplementar a legislação federal (inc. II), promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (inc. VIII). Das regras constitucionais de competência, combinadas, ainda, com o art. 225 da CF, conclui-se que os Municípios somente podem legislar em matéria ambiental sobre assuntos de interesse local, atendendo às diretrizes gerais estabelecidas na legislação federal e estadual, podendo estabelecer regras específicas mais rígidas, mas nunca mais liberais que as normas federais e estaduais. Assim, o respeito aos limites e princípios estabelecidos pelo Código Florestal deve ser interpretado como a impossibilidade legal de que os Municípios tornem mais flexíveis os parâmetros estabelecidos na lei federal51. Consoante assevera Ana Maria Moreira Marchesan52, os Municípios podem e devem legislar em matéria de zoneamento urbano-ambiental, mas jamais para reduzir a proteção já alcançada pela lei federal ou estadual. Se, no exercício da sua competência concorrente e suplementar, resolverem enfrentar o tema das áreas de preservação permanente em meio urbano, não poderão trabalhar com limites e definições menos protetivos que os já eleitos pela Lei Federal n.° 4.771/65, assim como não poderão autorizar empreendimentos que causem danos às áreas de preservação permanente, salvo as hipóteses legais. De tudo, pode-se concluir que as leis e políticas de uso do solo dos Municípios, no que se referem às áreas de preservação permanente, terão que observar os princípios e limites previstos no art. 2o do Código Florestal, conforme determinação de seu parágrafo único. Estabelecida esta premissa, pode-se responder aos questionamentos acerca da delimitação e proteção das áreas de preservação permanente em área urbana, no tocante aos loteamentos e desmembramentos do solo. Não há qualquer dificuldade em reconhecer-se a aplicabilidade do Código Florestal para as áreas de preservação permanente no topo dos morros, montes, montanhas e serras; nas encostas com declividade superior a 45%; nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues; nas bordas dos tabuleiros ou chapadas; em altitude superior a 1800metros; cobertas ou não por vegetação nativa, cuja imodificabilidade deverá ser respeitada. A Resolução do CONAMA n.° 303/2002, no seu art. 3°, regulamentou o art. 2o do Código Florestal no que tange às faixas de proteção dessas encostas, não havendo qualquer conflito aparente de norma (a Lei n.° 6.766/79 nada prevê sobre estas). A controvérsia cinge-se à delimitação das áreas de preservação permanente ao longo e ao redor dos corpos hídricos, em face do conflito aparente de normas. O art. 2o, alínea ‘a’, do Código Florestal, estabelece restrições maiores que o art. 4o, inc. III, da Lei n.° 6.766/79, em relação às 51 ANTUNES, Direito ambiental, p.254. No mesmo sentido: AKAOUI, Apontamentos acerca..., p. 287.Também: FREITAS, Matas ciliares. Na lição de Paulo José Leite Farias, na dúvida sobre a norma a ser aplicada, na hipótese de mais de um ente, de diferente hierarquia, legislar sobre o mesmo tema, deve entrar em cena o princípio do in dubio pro ambiente, segundo o qual deve prevalecer a norma que mais proteja o meio ambiente. FARIAS, Competência federativa..., p. 430. 52 MARCHESAN, As áreas de preservação... 17 faixas marginais de cursos d’água que atravessam perímetro urbano. Enquanto esta faz alusão à área non aedificandi de 15 metros no entorno das margens de águas correntes (rios, arroios, etc.) e dormentes (lagoas, açudes, reservatórios naturais e artificiais, etc.), o Código Florestal fixa um mínimo de 30 metros para as áreas de preservação permanente ao longo dos rios e cursos d’água, e, para as áreas ao redor dos corpos hídricos dormentes, não fez menção à metragem. A não fixação desta metragem levou o CONAMA a regulamentar o dispositivo, através da Resolução n.° 303/02, art. 3o, inc. III, ‘a’, que esclareceu que essa área de preservação permanente será de 30 metros ao redor de lagos e lagoas naturais situados em áreas urbanas. Havendo divergência de limites métricos das faixas marginais a serem preservadas em zonas urbanas, estabelecidos pelo Código Florestal e pela Lei do Parcelamento do Solo Urbano, qual dos limites deve prevalecer? Além das diretrizes já expendidas anteriormente, acrescenta-se que a Lei n.° 7.803/89, que alterou o Código Florestal e manteve os 30 metros de faixa marginal (instituídos pela Lei n.° 7.511/86), é posterior à Lei n.° 6.766/79, de modo que, observando os preceitos reguladores do direito intertemporal, a doutrina majoritariamente sustenta ter sido derrogado o art. 4o, inc. III, da Lei n.° 6.766/79, no tocante às áreas de preservação permanente no entorno dos corpos hídricos, permanecendo a restrição de 15 metros para o entorno das faixas de domínio público estabelecida pela lei do parcelamento do solo53. Concluímos, pois, que os planos diretores, as leis de uso do solo e os atos administrativos (declarações de condição de ocupação do solo, licenças, aprovações de projetos) que autorizem a implantação de loteamentos e desmembramentos urbanos devem adequar-se às restrições impostas pelas normas ambientais, devendo respeitar a metragem de mínima de 30 metros (que pode ser maior, conforme a largura do corpo hídrico) de preservação das áreas situadas ao longo ou ao redor dos corpos hídricos correntes e dormentes (rios, lagos, lagoas, arroios, etc.), aplicando-se, in casu, o Código Florestal (art. 2o, ‘a’ e ‘b’- este regulamentado pela Resolução n.° 303/02 do CONAMA, art. 3o, inc. III, ‘a’). A metragem de 15 metros estabelecida na Lei n.° 6.766/79 servirá para balizar somente a reserva mínima de área non aedificandi ao longo das faixas de domínio público das rodovias e ferrovias. Essa conclusão pela incidência das restrições ambientais se dá, acima de tudo, porque as normas urbanísticas – que visam à organização dos espaços urbanos – não são suficientes para assegurar a sadia qualidade de vida aos moradores das zonas urbanas. A expansão das cidades tem atingido as proximidades das áreas de preservação que são de vital importância para a manutenção do equilíbrio ecológico do meio onde vive a população. Fernando Reverendo Vidal Akaoui assevera que os maiores problemas enfrentados com o parcelamento do solo urbano dizem respeito à intervenção nas margens de curso d’água, uma vez que as cidades passaram a se aproximar de tal forma dos rios, e os loteamentos a abranger estas áreas, que o desrespeito passou a ser uma realidade cotidiana das cidades brasileiras54. Nesse ponto, importante destacar que o grande problema do futuro próximo será a escassez de água, em face da degradação das condições dos corpos hídricos, que, comprometidos em razão da remoção das matas ciliares, do lançamento de 53 Nesse sentido: BRAGA, Parcelamento..., p. 54-55. Também: FIGUEIREDO, A propriedade..., p. 218- 235. 54 AKAOUI,. Apontamentos acerca..., p. 286. 18 poluentes domésticos, industriais e rural-agrícolas, não se prestarão à captação de água para tratamento e consumo humano. Portanto, a restrição consistente na manutenção da faixa non aedificandi de preservação permanente, ao longo de qualquer corpo d’água, que recairá sobre o parcelamento do solo para fins urbanos, é necessária para a preservação do meio ambiente natural e para a qualidade de vida das populações. Assim, o desenvolvimento urbano sustentável das cidades deve, necessariamente, respeitar os limites ecológicos. Sob esse prisma passa-se a analisar a proteção das áreas de preservação permanente. A limitação em relação a estas áreas consiste na sua imodificabilidade, existindo restrição ao direito de construir55, não meramente por interesse urbanístico, mas por razões ambientais e de equilíbrio ecológico, como já dito alhures. A intangibilidade das áreas de preservação permanente não é absoluta56, porquanto o Código Florestal, com a redação dada pela Medida Provisória n.° 2.166-67/200157, prevê a excepcional possibilidade de supressão de vegetação em áreas de preservação permanente, quando necessária à execução de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública ou interesse social (assim definidos no art. 1o, §2o, inc. IV e V58), quando inexistir alternativa técnica e locacional59. 55 O art. 1o do Código Florestal dispõe que todas as formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do país, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que a legislação estabelece. Assim, o direito de usar e fruir a propriedade pública ou particular – que difere do direito de construir – deve observar as restrições legais quanto à supressão de vegetação e às edificações, estando o direito limitado pela função sócio- ambiental da propriedade e pelo bem estar da coletividade. 56 No âmbito do Rio Grande do Sul, o Código Estadual de Meio Ambiente (Lei n.º 11.520/2000), no art. 14, inc. IX, considera as APPs privadas de qualquer regime de exploração direta ou indireta dos recursos naturais, sendo apenas admitida com prévia autorização do órgão ambiental competente quando for necessária à execução de obras, planos, atividades, ou projetos de utilidade pública ou interesse social, após a prévia realização de estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e relatório de impacto ambiental (RIMA). Presente a hipótese de utilidade pública ou interesse social, o órgão ambiental competente poderá autorizar a supressão de vegetação, eventual e de baixo impacto ambiental, em APP, e deverá indicar as medidas mitigadoras e compensatórias que deverão ser adotadas pelo empreendedor público ou particular. 57 Esta medida provisória está em vigor por força da Emenda Constitucional n.° 32/2001, que dispôs que as MPs editadas em data anterior à da publicação da emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional. 58 Art. 1o – [...] §2o - Para os efeitos deste Código, entende-se por: IV – Utilidade pública: a) as atividades de segurança nacional e proteção sanitária; b) as obras essenciais de infra-estrutura destinadas aos serviços públicos de transporte, saneamento e energia; c) demais obras, planos, atividades ou projetos em resolução do CONAMA. V – Interesse social: a) as atividades imprescindíveis à proteção da integralidade da vegetação nativa, tais como: prevenção, combate e controle do fogo, controle da erosão, erradicação de invasoras e proteção de plantio com espécies nativas, conforme resolução do CONAMA; b) as atividades de manejo agro-florestal sustentável praticadas na pequena propriedade ou posse rural familiar, que não descaracterizem a cobertura vegetale não prejudiquem a função ambiental da área; c) demais obras, planos, atividades ou projetos definidos em resolução do CONAMA. 59 Não há livre poder discricionário – baseado em juízo de conveniência e oportunidade – da Administração Pública para reconhecer as hipóteses de utilidade pública ou interesse social que 19 O parcelamento do solo urbano, contudo, não está elencado no Código Florestal como hipótese de utilidade pública ou interesse social autorizativa da alteração e ocupação de área de preservação permanente. O art. 3o, par. único, inc. V, da Lei n.° 6.766/79, dispõe que não será permitido o parcelamento do solo urbano em áreas de preservação ecológica – que abrangem as áreas de preservação permanente, como já dito alhures. Eventual licença que autorizasse a implantação de loteamento em área de preservação permanente seria nula de pleno direito nos termos da ordem jurídica vigente60. 3 REQUISITOS URBANÍSTICOS O art. 4o da Lei n.° 6.766/79 estabelece os requisitos mínimos que um loteamento deve conter. O art. 2o da mesma lei diz que o parcelamento do solo urbano “poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento, observadas as disposições desta lei”, e o art. 11 determina que devem ser aplicadas ao desmembramento, “no que couber, as disposições urbanísticas vigentes para as regiões em que se situem, ou, na ausência destas, as disposições para os loteamentos”. Assim, salvo havendo disposições diversas para loteamentos e desmembramentos em legislação estadual ou municipal, os requisitos urbanísticos do art. 4o devem ser observados em qualquer forma de fracionamento que caracterize parcelamento do solo para fins urbanos61. Evidentemente, nem todos os requisitos serão exigidos para o desmembramento ou desdobro, porque estes são, na verdade, refracionamento de lotes decorrentes de loteamento, e já possuem, por ex., sistema de circulação (que é justamente o que os diferencia do loteamento). Além disso, o loteamento original onde será executado esse refracionamento pode já ter o percentual de área pública destinada conforme exigência da lei. Mas não podem ser dispensadas as exigências de infra-estrutura básica, dimensão dos lotes e reserva de áreas non aedificandi no imóvel objeto de desmembramento ou desdobro. O inc. I do art. 4o da Lei n.° 6.766/79 encerra as áreas destinadas ao sistema de circulação, à implantação de equipamentos urbanos e comunitários, bem como os espaços livres de uso público, que deverão ser proporcionais à densidade da ocupação prevista pelo plano diretor ou aprovada por lei municipal para a zona em se situem.62 autorizem a alteração de área de preservação permanente. Há, in casu, o que a doutrina chama de ‘discricionariedade técnica imprópria’, em que a lei usa termos que dependem da manifestação dos órgãos técnicos, cabendo ao administrador, face aos critério técnicos, a adoção de uma única solução juridicamente válida para o caso concreto. A discricionariedade da interpretação da adequação do caso concreto aos conceitos indeterminados está limitada pelos estudos técnicos e pelo princípio da legalidade, que vincula o administrador aos dispositivos legais. Assim, o ato administrativo que declara a utilidade pública ou o interesse social do empreendimento fica sujeito ao controle judicial. 60 CRUZ, Ana Paula Fernandes Nogueira da Cruz. Licenciamento ambiental irregular em áreas de preservação permanente. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v.27, p.299, jul./set. 2002. 61 Sobre a questão, ver item 2, que trata das formas de parcelamento do solo: loteamento, desmembramento e desdobro. 62 A Lei Estadual n.° 10.116/94 refere, no art. 2o, que deverão ser observadas pelo Estado do Rio Grande do Sul e pelos Municípios as diretrizes ali elencadas para promoção do desenvolvimento urbano, entre elas o controle do uso e ocupação do solo de modo a evitar densidades inadequadas aos equipamentos 20 3.1 Áreas institucionais Parte da gleba onde será implementado o parcelamento para fins urbanos deve ser destinada aos fins coletivos e institucionais exigidos pelo Poder Público, com o escopo de satisfazer a função social da propriedade imóvel. São as chamadas áreas institucionais, que José Carlos de Freitas definiu como “todo espaço público de loteamento destinado ao sistema de circulação, à implantação de equipamentos urbanos e comunitários, áreas verdes, espaços livres de uso público, vias, praças e jardins e áreas destinadas a edifício públicos”63. A Lei n.° 6.766/79 previa, originariamente, no §1o do art. 4o, uma proporcionalidade mínima dos espaços de uso público, estabelecendo em 35% da totalidade da gleba a parte que deveria ser destinada para este fim e transferida ao domínio do poder público. Esta disposição foi alterada pela Lei n.° 9.785/99, que deu nova redação ao §1o, estabelecendo que caberá à legislação municipal definir, para cada zona em que se divida o Município, os usos permitidos e os índices urbanísticos de parcelamento e ocupação do solo, que incluirão, obrigatoriamente, as áreas mínimas e máximas dos lotes e os coeficientes máximos de aproveitamento. A Lei Estadual n.° 10.116/94 prevê, no art. 20, que a percentagem destinada ao sistema viário e à implantação de equipamentos urbanos e comunitários será proporcional às densidades populacionais previstas para a gleba, nunca inferior a 35% da mesma, salvo nos loteamentos para fins industriais cujos lotes forem maiores do que 15.000m2, caso em que a porcentagem poderá ser reduzida.64 Considerando que a destinação de áreas institucionais é requisito urbanístico – que pode ser simplificado por lei municipal para os casos de parcelamentos de interesse social65 ou de urbanos e comunitários instalados ou previstos (inc. X, ‘c’) e a adoção de padrões de equipamentos urbanos e comunitários consentâneos com a realidade sócio-econômica local e regional (inc. XII). 63 FREITAS, José Carlos de. Bens públicos de loteamentos e sua proteção legal. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v.46, p.186. 64 É inegável que, com a instalação de distrito industrial, à medida que as oportunidades de emprego vão se deslocando para fora da zona central urbana, há tendência natural de o operariado que exerce atividade nas indústrias construir suas moradias nas proximidades, em razão do custo mais baixo de moradia em locais mais afastados e também com o objetivo de obter transporte mais rápido e mais barato – até porque, atualmente, uma das condições estipuladas pelas empresas para contratação é residir próximo ao local de trabalho, dado o alto custo dos encargos sociais com os empregados, especialmente relativo ao transporte. Assim, o fim inicialmente colimado de criação de uma zona estritamente industrial muitas vezes cai por terra. Por isso, a faculdade de o Poder Público diminuir as proporções de áreas de uso público deve ser utilizada de forma cautelosa, a fim de evitar a superveniência de adensamento demográfico em torno do núcleo industrial sem condições favoráveis à moradia habitual. Ao examinar a possibilidade de reduzir a proporcionalidade das áreas institucionais em loteamentos, deverá o Poder Público exigir que o memorial descritivo dos lotes especifique com precisão o fim (industrial) a que se destinam e as dimensões dos mesmos (não inferiores a 15.000m2) e atentar para as peculiaridades do caso concreto, a fim de aferir se existe risco de instalação de moradias nas proximidades. 65 A instituição de zonas ou áreas especiais de interesse social (ZEIS ou AEIS) pelo Poder Público é necessária para possibilitar a aprovação do parcelamento do solo com padrões urbanísticos especiais, sobretudo em casos deregularização fundiária de loteamentos clandestinos ou irregulares e de assentamentos informais. Isso possibilita a aprovação do loteamento sem que o mesmo apresente percentual mínimo de áreas públicas, já que muitas áreas irregulares (já ocupadas) não apresentam condições de reservar locais para parques e equipamentos comunitários. 21 regularização fundiária –, nestas hipóteses pode haver redução da porcentagem de área a ser transferida para o Poder Público. Essas áreas destinadas a fins coletivos (logradouros públicos: vias de circulação, praças, áreas verdes, etc.) são transferidas pelo loteador ao Poder Público, procedimento denominado pela doutrina como ‘concurso voluntário’66, em que o loteador propõe e a Administração Pública, com a aprovação do projeto de parcelamento, aceita a transferência ao Município do domínio e posse dos espaços públicos. O parcelador perde uma parte de sua propriedade, mas recebe, em contrapartida, uma parte da cidade, na medida em que a área bruta e isolada que lhe pertencia passa a integrar a malha urbana. A transferência dessas áreas públicas pode parecer, à primeira vista, uma forma de aquisição compulsória da propriedade pelo Município, mas importa uma mais valia auferida pelo parcelador em virtude de obras e serviços públicos proporcionados pelo Poder Público, como o recolhimento de resíduos, a segurança pública, o atendimento à saúde dos moradores67. A incorporação das áreas de interesse público ao patrimônio municipal se dá por determinação legal68, por força do art. 22 da Lei n.º 6.766/79, in verbis: Art. 22 – Desde a data do registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo. Não se faz mister o registro do parcelamento para que sejam incorporados ao patrimônio do Município esses bens de uso comum do povo, decorrentes da urbanização de áreas particulares. O registro é exigível para fins de alienação de lotes, mas não é requisito para tornar públicos os espaços livres, não sujeitos às normas de direito civil e às exigências de comercialidade dos bens particulares69. A aprovação do parcelamento, ou a destinação possibilitando o uso comum de todos, faz públicos os espaços livres, tornando- os inalienáveis, não passíveis de ação reivindicatória70. Nos empreendimentos regulares, a materialização do concurso voluntário tem início com a indicação, pelo parcelador, das áreas a serem destinadas ao uso público, ou seja, com a apresentação do projeto de parcelamento, no qual estão apontadas as áreas a serem afetadas ao uso público quando da execução do empreendimento. A perfectibilização da 66 DALLARI, Adilson Abreu. Parcelamento do solo – Desmembramento – Concurso voluntário. Cadernos de Direito Municipal, São Paulo, v. 98, abr./jun. 1991. 67 BRAGA, Parcelamento..., p. 16-17. 68 Os bens públicos podem ser adquiridos pelas formas próprias do direito privado (compra e venda, permuta, usucapião, etc.) ou pelas vias peculiares do direito administrativo – desapropriação, perdimento de bens (art. 243 da CF) ou determinação legal. A determinação legal é a transferência automática do bem para o patrimônio público, em decorrência de lei, como no caso dos espaços livres em loteamentos. O reconhecimento da determinação legal como modo de aquisição da propriedade de bem público é aplicação do princípio do concurso voluntário. 69 MEIRELLES, Hely Lopes. Loteamento fechado e condomínio deitado. apud CASTRO, José Nilo. Direito municipal positivo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992, p. 156. 70 Nesse sentido: Ap. 60212-1, 6ª Câmara Cível TJSP, j. em 30.05.85 (RT 600/67); Ag. Pet. 66575, 2ª Câmara cível TASP, j. em 06.04.64 (RT 359/425). 22 incidência ocorre com a aceitação pelo Município do projeto de parcelamento, e por conseguinte das áreas afetadas ao uso público, o que ocorre com o ato de aprovação. Se no decorrer do processo de execução do parcelamento há desvirtuamento do projeto ou qualquer outra questão praticada pelo parcelador que o torne irregular, não se pode pretender que o concurso voluntário não tenha ocorrido. Isso porque a sua incidência inicia com a manifestação de vontade de fazer o parcelamento, indicando, para tanto, as áreas institucionais. Ademais, ele opera tanto no plano teórico (indicação no projeto antes da execução do parcelamento) quanto no plano dos fatos (abertura das vias, destinação de área de praça, etc.), pois o que visa resguardar é a afetação pública dos bens de uso comum do povo. Disso conclui-se que também opera o concurso voluntário nos parcelamentos clandestinos. Com a definição física do parcelamento, a abertura de vias, a demarcação de lotes, mesmo sem a aprovação do respectivo projeto, a simples existência fática dos espaços de uso público faz incidir o concurso voluntário, ocorrendo a incorporação de caráter público a estas áreas. Nesta hipótese o parcelador manifesta a sua vontade, dando início ao concurso voluntário, com a materialização do parcelamento de fato, seja abrindo vias, seja alienando lotes. A existência de fato do loteamento ilegal gera a incidência da norma (determinação legal do concurso voluntário) e a afetação dessas áreas de uso comum do povo. Não reconhecer a incidência do concurso voluntário nos parcelamentos clandestinos e irregulares e exigir o registro do loteamento para tornar públicos os espaços institucionais seria privilegiar o infrator, aquele que age ao arrepio da lei.71 O art. 43 da lei n.º 6.766/79 reporta-se indiretamente à questão, contemplando exatamente esse entendimento, ao estabelecer que também nos loteamentos não aprovados (clandestinos) a destinação das áreas públicas exigidas no art. 4º, inc. I, não pode ser alterada. Esses espaços institucionais são dotados de indisponibilidade72, por constituírem parte do loteamento destinada à satisfação do interesse público, especialmente no âmbito comunitário do bairro. O art. 2o, §5o, da Lei n.° 6.766/79, contempla que parte das áreas institucionais deve ser reservada para a implantação da infra-estrutura básica, que abrange equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, redes de esgoto sanitário73 e abastecimento de água potável, de energia elétrica pública e domiciliar e as vias de circulação pavimentadas ou não. 71 Os infratores não podem alegar em seu benefício a própria torpeza. Assim, se implantaram loteamento clandestino ou irregular, não podem alegar que a área verde lhes pertence e por isso têm o direito de reivindicá-la ou exigir eventual indenização do Poder Público. 72 Os bens públicos são dotados de características próprias, sendo legalmente impenhoráveis, imprescritíveis e inalienáveis. É por este motivo que não há reconhecimento de atos possessórios sobre bem público, ocorrendo mera detenção naqueles casos em que os mesmos são irregularmente ocupados por terceiros. 73 Esta exigência é atenuada para os parcelamentos de interesse social, assim definidos por lei municipal, nos quais é admitida solução menos onerosa de esgotamento sanitário – o chamado esgotamento primário ou sistema de esgoto individual, que consiste na instalação de fossa séptica, sumidouro e filtro anaeróbio por cada adquirente ou ocupante, em seu respectivo lote, com obediência aos parâmetros e recomendações da NBR 7.299/93 da ABNT: a distância entre qualquer poço de captação de água e qualquer sumidouro ou vala de infiltração não poderá ser inferior a 30 metros. Sobre a questão: PINTO, Victor Carvalho. O parcelamento do solo urbano e a Lei n.° 9.785/99. SAULE JÚNIOR., Nelson (Coord.). Direito à cidade. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 244. Também: AMADEI; AMADEI, Como lotear uma gleba..., p. 42. 23 3.1.1 Sistema interno de circulação
Compartilhar