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"Compreender o sentido de uma polftica publica recla- maria transcender sua esfera espedfica e entender o significado do projeto social do Estado como um todo e as contradic;oes gerais do memento hist6rico em questao. [ ... ] Temos a convic~ao de que as polfticas educacionais, mesmo sob semblante muitas vezes humanitario e benfeitor, expressam sempre as contra- dic;oes suprarreferidas. Nao por mera casualidade. Ao Iongo da hist6ria, a educa~ao redefine seu perfil repro- dutorjinovador da sociabilidade humana. Adapta-se aos modos de formac;ao tecnica e comportamental adequados a produc;ao e <11 reproduc;ao das formas par- ticulares de organizac;ao do trabalho e da vida. 0 pro- cesso educative forma as aptidoes e comportamentos que lhes sao necessaries, e a escola e um dos seus loci privilegiados. Foi no ambito dessas questoes e desse direcionamento te6rico que pensamos em escrever este livro." leia mais lamparina \ ,.., :"u '0 lr- :c:=i~ ~ n P> tn 0 c h ~ ,,o. !& t !Z 0> r $ ~ I Fz •rn io w)> IP ~~ II EO c:e> I ~ s: '~ ~ 1 ~. r 5> s: 0 I I~ 0 ~~ !~VI \ 0 r 'z 0 )> m '< )> z (') 1m ,~ tq I: " ... , ,, ' / ; ) -----·- ---- ' .. ' ! ! .. ~ \~ \' ~:-:=::-- POLfTICA EDUCACIONAL ENEIDA OTO SHIROMA MARIA CELIA MARCON DES DE MORAES OLINDA EVANGELISTA A ..... .::--~, ~ Politica educacional Eneida Oto Shiroma Maria Celia Marcondes de Moraes Olinda Evangelista I. ed. (2ooo); 2. ed. (2002); 3· ed. (2004). Rio de Janeiro: DPL{A. 4· ed. (2007). Rio de Janeiro: Lamparina. © Lamparina editora . Projeto gra.fico e capa Fernando Rodrigues Revisao (t. ed.) Paulo Telles Ferreira 0 texto deste livro foi adaptado ao Acordo Ortografico da Lingua Portuguesa, assinado em I990, que come~ou a vigorar em I0 de jarieiro de 2009. Proibida a reprodu~ao, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja reprografico, fotografico, grafico, microfilmagem etc. Estcis proibi~oes aplicam-se tambem as caracte- risticas grancas efou editoriais. A viola~ao dos direitos autorais e punivel como crime (C6digo Penal, art. I84 e §§;Lei 6.895/8o), com busca, apreensao e indeniza~oes diversas (Lei g.6Iofg8- Lei dos Direitos Autorais- arts. I22, I23, I24 e I26}. Cataloga~ao na fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros S56p Shiroma, Eneida Oto Politica educacional 1 Eneida Oto Shiroma, Maria Celia Marcondes. de Moraes, Olin- da Evangelista- Rio de Janeiro: Lamparina, 20II, 4· ed, I. reirnp. 5.ooo exemplares. I28p. I4 x 2I em Anexos Inclui bibliografia ISBN 978-85-9827I-44-6 I. Educa~ao e Estado. 2. Politica e educa~ao. I. Moraes, Maria Celia Marcondes de. II. Evangelista, Olinda. III. Titulo. Lamparina editora CDD 379 CDU 37.0I4 Rua Joaquim Silva, 98, 2° an dar, sal a 201, Lapa CEP 20241-110 Rio de Janeiro RJ Brasil Tel./fax: (21) 2252-0247 {21) 2232-1768 www.lamparina.com.br lamparina@lamparina.com.br L POLfTICA EDUCACIONAL Eneida Oto Shiroma Maria Celia Marcondes de Moraes Olinda Evangelista 4a edi~ao Ia reimpressao ~ lamparina ANEXO A pen dice Sobre a educa~;ao infantil Sobre o ensino fundamental Sobre o ensino medio, o tecnico e a educa~;ao pro.fissional Sobre o ensino superior Sobre a educa~;ao especial Sobre a formafao de professores Decreto 3.276, de 6 de dezembro de 1999 Decreto 3·554· de 7 de agosto de 2000 Bibliografia comentada Referencias Abreviaturas IOI IOI !02 103 104 105 I06 107 IIO III II7 123 INTRODU<;AO 0 uso corrente do termo "politica" prenuncia uma multiplicidade de significados, presentes nas multiplas fases hist6ricas do Ocidente. Em sua acep<_;:ao classica, deriva de urn adjetivo originado de po- lis - politik6s - e refere-se a tudo que diz respeito a cidade e, por conseguinte, ao urbano, ao civil, ao publico, ao social. A obra de Arist6teles A poUtica, considerada o primeiro tratado sobre o tema, introduz a discussao sobre a natureza, as funroes e a divisao do l ~ ' Estado e sobre as formas/de governo. Bobbio assinala d desloca- mento que teria ocorrido rio significado do termo: do conjunto das relas:oes qualificadas pelo adjetivo "politico", para a constitui<;ao de urn sab~r mais ou menos organizado sobre·c::~se mesmo conjunto de relas:oes. Politica passa, entao, a designarum campo dedicado ao es- tudo da esfera de atividades humanas articulada as coisas do Estado. Na modernidade, o termo reporta-se, fundamentalmente, a atividade ou ao conjunto de atividades que, de uma forma ou de outra, sao imputadas ao Estado moderno capitalista ou dele ema- nam. 0 conceito de politica encadeou-se, assim, ao do poder do Estado - ou sociedade politica - em atuar, proibir, ordenar, plane- jar, legislar, intervir, com efeitos vinculadores a urn grupo social definido e ao exercicio do dominio exclusivo sobre urn territ6rio e da defesa de suas fronteiras. De Hobbes a Hegel-- nao obstante a diversidade das varias solus:oes -, o pensamento politico moderno tende a considerar o Estado em contraposic;:ao ao "estado da nature- za", ou sociedade natural, e a defini-lo como o momento supremo da vida coletiva dos seres humanos, quando as for<_;as desregradas, os instintos, os egoismos e paixoes, se subjugamao reino da tiber- dade regulada. 0 Estado e compreendido como produto da razao, ambiencia social marcada pela racionalidade, unica na qual o ser humano encontrara a possibilidade de viver nos termos da razao, POLITICA EDUCACIONAL ou seja, de acordo com sua natureza. Para Hegel, o Estado e com- preendido como o fundamento da sociedade civil e da familia, deixa de ser urn modelo ideal, e sua racionalizas:ao celebra seu proprio triunfo como movimento historico real: realidade da ideia etica, o racional em si e para si. Em 0 capital, Marx afirma o Estado como "violencia concen- trada e organizada da sociedade", evidenciando a relas:ao entre socie- dade civil (conjunto das relas:oes economicas) c Estado (sociedade politica). Longe de ser urn prindpio superior, racional e ordena- dor, como queria Hegel, o Estado institui-se, nesse entendimento, como expressao das formas contraditorias das relas:oes de produs:ao que se instalam na sociedade civil, delas e parte essencial, nelas tern fincada sua origem e sao elas, em ultima instancia, que histo- ricamente delimitam e determinam suas as:oes. 0 Estado, impos- sibilitado de superar contradis:oes que sao constitutivas da socie- dade- e dele proprio, portanto -, administra-as, suprimindo-as no plano formal, mantendo-as sob cqntrole no plano real, como urn, poder que, procedendo da sociedade, coloca-se acima dela, estra- 1 nhando-se cada vez mais em relas:io a ela. As politicas publicas, emanadas do Estado anunciam-se 1nessa correlas:ao de fors:as, e nesse confronto abrem-se as possibilidades para im_p:iementar sua face social, em urn equilibria instavel de compromissos, empenhos e responsabilidades. E estrategica a importancia das politicas publicas de carater social - saude, educas:ao, cultura, previdencia, seguridade, infor- mas:ao, habitas:ao, defesa do consumidor- para o Estado capitalista. Por urn lado, revelam as caracteristicas pr6prias da intervens:ao de urn Estado submetido aos interesses gerais do capital na organiza- s:ao e na administras:ao da res publica e contribuem para assegurar e ampliar os mecanismos de cooptas:ao e controle social. Por outro, como o Estado nao se define por estar a disposis:ao de un1a ou outra classe para seu uso alternativo, nao pode se desobrigar dos compro- rnetimentos com as distintas fors;as sociais em confronto. As politi- cas publicas, particularmente as de carater social, sao mediatizadas pelas lutas, pressoes e conflitos entre elas. Assim, nao sao estaticas ou fruto de iniciativas abstratas, mas estrategicamente empregadas no decurso dos conflitos sociais expressando, em grande medida, a capacidade administrativa e gerencial para implementar decisoes 8 INTRODU<;AO de goven;10.Capacidade que burocratas contemporaneos tern por habito chamar "governanc;a". Por isso mesmo, uma analise das politicas sociais se obrigaria a considerar nao apenas a dinamica do movimento do capital, seus meandros e articulas:oes, mas os antagonicos e complexos proces- sos sociais que com ele se confrontam. Compreender o sentido de uma politica publica reclamaria transcender sua esfera espedfica e entender o significado do projeto social do Estado como urn todo e as contradis:oes gerais do momento historico em questao. Ambic;:ao desmedida para este pequeno livro. As ideias que apresentamos em Polftica educacional tern, no en- tanto, essa compreensao de realidade e de politica como referenda. Temos a convics;ao de que as politicas educacionais, mesmo sob semblante muitas vezes humanitario e benfeitor, expressam sem- pre as contradis;oes suprarreferidas. Nao por mera casualidade. Ao Iongo da historia, a educas;ao redefine seu perfil reprodutorj inovador da sociabilidade humana. Adapta-se aos modos de forma- s;ao tecnica e comportamental adequados a produs:ao e a reprodu- c;:ao das formas particulares de organizas:ao do trabalho e da v~da. 0 processo educativo forma as aptidoes e comportamentos que lhes sao necessarios, e a escola e urn dos seus loci privilegiados. Foi no-ambito dessas questOes e desse direcionamento teorico que pensamos em escrever este livro. 0 texto esta dividido em tres capitulos. No primeiro, apre- scntamos uma sintese das politicas educacionais empreendidas no Brasil, a partir dos anos 1930, e as reformas de ensino delas decorrentes. Nao foi nossa intenc;:ao realizar uma sistematizac;:ao exaustiva post fostum dessas politicas ou das contradis:oes que as en- volveram. Lhnitamo-nos a indicar alguns aspectos que nos patece- ram indispensaveis para o esclarecimento de uma sequencia logica de acontecimentos na historia das reformas na educas:ao brasileira. Nao nos pareceu relevante, para os objetivos do livro, descrever os detalhes de cada uma das politicas educacionais do periodo. Seguimos a sucessao cronologica das iniciativas governamentais, e sempre que necessaria buscamos integra-las procurando dar- -lhes maior inteligibilidade ou indicar eventuais tendencias em seu evolver historico. Por isso mesmo, pudemos concluir o capitulo com indicas:oes sobre o consenso produzido entre os educadores 9 POLITICA EDUCACIONAL a partir de rneados da decada de 1970 e que encontraria, nos anos r98o, as condi~oes para florescer. Ap6s esse breve relata inicial, a exposi~ao privilegia, nas duas partes subsequentes, a politica educacional do Estado brasileiro dos anos 1990, com enfase nas que foram implementadas nos go- vernos Fernando Henrique Cardoso. Procuramos, em urn primei- ro momenta, apresentar as recomenda~oes gerais para a defini~ao de politicas educacionais, especialmente para a America Latina e Caribe, veiculadas em documentos elaborados por organismos multilaterais como Banco Mundial, uNEsco, CEPAL, OREALC, entre outros. Observamos, ademais, documentos produzidos por insti- tui~oes empresariais brasileiras e as reflexoes de alguns intelec- tuais afinados com essas propostas. A eles chamamos de arautos da reforma que estava por vir, os arquitetos do consenso que a ela daria sustenta~ao. Em urn segundo momenta, voltamos nossa aten~ao para as ini- ciativas reformistas dos governos Fernando Henrique Cardoso em rela~ao a educa~ao. Procuramos indicar que as reformas - a politica educacional deste governo -, a anunciada "revolu~ao copernicana" da educa~ao nacional, materializou-se por meio da legisla~ao, mas tambem pelo financiamento de programas governamentais, em suas tres esferas, e por uma serie de a~oes nao governamentais. Foi operada capilarmente envolvendo inumeros intelectuais em an<lli- ses de projetos curriculares, em f6runs, em reunioes da area, na explora~ao midiatica de iniciativas educacionais desenvolvidas por empresas, campanhas espedficas e no processo de difusao de suas propostas em publica~oes oficiais e oficiosas. Ao fim e ao cabo, essa "revolu~ao copernicana" indica a presen~a e a orienta~ao das ideias veiculadas pelos seus diversos arautos, nacionais e internacionais. A analise dos documentos nao deixa duvidas. As medidas que vern sendo implementadas no pais estao sinalizadas ha anos, cuidadosamente planejadas. Sao evidentes as articulac;oes entre as reformas in1plementadas nos anos 1990, pelos governos brasilei- ros do periodo, e as recomenda~oes dos organismos multilaterais. Recomendac;:oes, alias, repetidas em unissono e a exaustao. Para legitimar as reformas, os governos dos anos 1990, sobre- tudo os de Fernando Henrique Cardoso, nao se constrangem em se apropriar e inverter, sem mais, o rico consenso que educadores brasileiros construiram sabre pontos basicos da educa~ao brasi- IO I INTRODU<;(AO leira, na luta pela democratiza~ao do pais, nas decadas de 1970 e 1980. Estudos, reflexo~s. debates - e embates -, exercidos em tan- tos e multiples f6runs nacionais, proporcionaram a sua efetiva~ao. Agora, porem, a forma de estabelecer o consenso e outra, distante dos f6runs democraticos e do debate publico com os principais interessados. Tatica e estrategicamente, a centralidade da educa~ao e rea- firmada nos documentos e na defini~ao de politicas governamen- tais. A escola tradicional, a educa~ao formal, os antigos parametres educacionais, os modelos prevalecentes de universidade, sao con- siderados obsoletes. Demanda-se, agora, uma nova pedagogia, urn projeto educative de outra natureza, urn novo modelo de ensino em todos OS niveis. 0 discurso e claro: nao basta apenas educar, e preciso aprender a empregar convenientemente os conhecimentos adquiridos. A reestrutura~ao produtiva, afirma o discurso, exige que se desenvolvam capacidades de comunica~ao, de raciodnio 16gico-formal, de criatiyidade, de articula~ao de conhecimentos multiples e diferen~ados de modo a capacitar o educando a en- frentar sempre novas e desafiantes problemas. Mais ainda, diante da velocidade das mudan~as, as requalifica~oes tornam-se impe- rativas,. 0 :iesenvolvimento de "competencias" exige niveis sem- pre superiores de escolaridade, posto que repousam no dominio te6rico-metodol6gico que a mera experiencia e incapaz de garantir. Nessas circunstancias, percebem-se dois movimentos simul- taneos e articulados: de urn lado, a afirma~ao da ideia de educa~ao continuada que rompe as fronteiras dos tempos e locais destinados a aprender. A educa~ao torna-se processo para a vida inteira, a tao propalada lifelong learning. Da familia ao trabalho e a comunidade, todo lugar e Iugar de aprendizagem. Difundem-se rapidamente as no~oes de organiza~oes e empresas como learning places. Afinada aos novas tempos, a propria LDBEN estabelece que sejam reconhe- cidas e certificadas as aprendizagens realizadas em outros espa~os que nao o escolar e, antevendo os diferentes e nao progran1ados per:iodos de estudo, propoe o ensino, por m6dulos, que permite a alternancia entre periodos de ocupa~ao e de estudo. Sem duvida, uma rnedida consensualn1ente aceita e apropriada a urn mercado de trabalho cada vez mais restrito e excludente. Por outro lado, reafirma-se a importancia do sistema de en- sino. Se o sistema que tinhamos perde a serventia na "sociedade II POLITICA EDUCACIONAL cognitiva", ou "sociedade da informac;:ao", do "conhecimento", "aprendente", e que tais, trata-se entao de pensar outro mais ade- quado, urn ensino flexivel em que a ordem e reduzir o insucesso para alcanc;:ar menor desperdicio de recursos humanos e materiais. Dai as inumeras politicas a ele ligadas: a do livro didatico, da ava- liac;:ao, das reformas curriculares, da formac;:ao de professores, da universidade. Quer nos parecer que, contraditoriamente, busca-se resolver no e pelo sistema de ensino aquilo que ele, por si s6, e incapaz de solucionar. Nao foi nossa intenc;:ao discutir as implicac;:oes do conjunto dessas propostasem urn pais com gravissima exclusao social, indi- ces hist6ricos de desemprego e perversa desigualdade na distribui- c;:ao de renda como o Brasil. Nosso recorte e claro: acompanhamos apenas os discursos governamental, de organismos multilaterais e empresarios brasileiros, os quais desaguam, necessariamente, na afirmac;:ao da importancia estrategica da escola para a "nova ordem" mundial. Nao e de surpreender, portanto, que tal questao venha se configurando como uma das te111aticas prioritarias nao s6 de 6rgaos governamentais, como de varies setores da sociedade. 0 texto aponta tambem para outro aspecto: 0 carater hist6rico da "centralidade" da educac;:ao na politica brasileira. Pelo menos ate os anos 1970 as politicas publicas para a educac;:ao sempre foram revestidas de uma forte motivac;:ao centralizadora, associada a dis- cursos de "construc;:ao nacional" e a propostas de fortalecimento do Estado. Discursos abrangentes que sustentavam propostas de reformas na economia e na politica, e para as quais a educac;:ao da populac;:ao brasileira era considerada patamar fundamental. Foi o que ocorreu no periodo de 1930 a 1937 e no desenrolar do Estado Novo, nos anos de construc;:ao do regime militar, entre 1964 e a crise economica que caracterizou o fim do "milagre". Tempos em ·que se conjeturou sobre a construc;:ao ejou o fortalecim.ento do Estado e, em seu entorno, a construc;:ao ejou a redefinic;:ao da nacio- nalidade educada. As varias politicas educacionais implementadas foram pensa- das de modo a promover reformas de ensino de carater nacional, de Iongo alcance, hom.ogeneas, coesas, ambiciosas em alicerc;:ar projetos para uma "nac;:ao forte". Tratava-se, tambem, de preparar e formar a populac;:ao para se integrar as relac;:oes sociais existentes, especificamente as demandas do mercado de trabalho, uma popu- I2 INTRODU<;:AO lac;:ao a ser submetida aos interesses do capital que se consolid;1va no pais. Nessa hist6ria, as reformas do ensino constituiram-se e foram apresentadas como importante instrumento de persuasao. Se nao chegavam a compor urn consenso no ambito da sociedade civil, nao deixava de convencer a audiencia bern informada que, com elas, estariam asseguradas pelo menos as condic;:oes basicas de uma mudanc;:a qualitativa na sociedade. Algumas vezes, como nos anos 1930, reivindicou-se para a educac;:ao a func;:ao de "criar" cidadaos e de reproduzirjmodernizar as "elites", simultaneamente a de contribuir para 0 trato da "ques- tao social". Em outras, como no regime militar, a ela foi atribuido o oficio de formar o capital humano, moldado pela ideologia da seguranc;:a nacional. Nos anos 1990 renova-se o pleito da centrali- dade da educac;:ao, mas em termos mais adequados aos tempos de celebrac;:ao - ou recelebrac;:ao? - das virtudes do mercado: realidade inescapavel que aloca recursos e beneficios sob o imperativo da e:ijciencia capitalista. Nesse con~exto, trata-se de convencer como uso minimo da ac;:ao estatal e da forc;:a. Trata-se de persuadir e cons- truir novo consenso .. I Ha outro aspecto interessante a considerar. Uma forma de obter .._,Q consenso· t-:?m sido o sutil exerdcio linguistico posto em pratica nos ultimos tempos. Termos e conceitos vern sendo absor- vidos pela corrente ret6rica pragmatica. Alguns foram naturali- zados- como o capitalismo, por exemplo -, outros construidos, ressignificados ou simplesmente substituidos. Desenhados com o objetivo de instigar a obediencia e a resignac;:ao publica, o novo vocabulario se faz necessaria para erradicar o ,que se considera obsoleto e criar novas formas de controle, regulac;:ao e regimes administrativos. Em revelador artigo, Fernando Henrique Cardoso afirma que ha de se substituir a "ac;:ao estatal" - burocratica, ineficiente - pela "ac;:ao publica", baseada na responsabilidade e na solidariedade do cidadao. Onera assim a populac;:ao e desresponsabiliza o Estado pela tragica situac;:ao da educac;:ao no pais. Incorre o presidente em urn dos mais graves pecados politicos indicados por Weber: a irres- ponsabilidade associada a falta de objetividade. Weber, tao citado pelo presidente, lembra que muitas vezes por vaidade o demagogo se obriga a contar como "efeito". Corre o risco de tornar-se urn "ator, bern como o de ver com leviandade a responsabilidade das I3 POLITICA EDUCACIONAL consequencias de seus atos, passando a interessar-se apenas pela 'impressao' que causa". Mas ha dados reais tao asperos que sao capazes de anular qualquer discurso de "efeito". Convidamos os leitores e leitoras para refletirem conosco sobre os seguintes dados, fornecidos pelo proprio IPEA, sobre as condis:oes fisicas de estabelecimentos de en- sino no pais: "25% deles nao tern nenhum banheiro; em 27% nao existe sequer agua, nem de pos:o. No meio rural este numero sobe para 33%, sendo que 48% nao dispoem de energia eletrica, nem mesmo de bancos suficientes para os alunos, obrigados a dividir a carteira e a sentar no chao". Como se nao bastasse, pesquisa da cNTE revela que, em 1997, nada menos do que nove estados bra- sileiros pagaram a seus professores salaries inferiores ao salario minimo, em uma flagrante violas:ao constitucional. Quer nos parecer que nao cabe ao cidadao comum ou a co- munidade a responsabilidade de solucionar esse esca.ndalo que encontra raros .I,Jarametros na America Latin~. Tambem nao nos parece que as u:Q.issonas e recorrentes recomeridas:oes dos organis- mos multilatere1is tenham atentado para este :- digamos assim - peculiar detalhE/. Post scriptum: Gostariamos de informar que, por orientas:ao edito- rial, nao utilizamos referencias bibliograficas ao Iongo do texto ou notas de rodape. Os autores que foram mencionados tern seus livros ou artigos listados na bibliografia ao final do livro. Segue-se tam- bern bibliografia comentada e indicas:oes de leituras para estudo e aprofundamento do tema abordado. *** Nota a 4a edigiio: Este livro foi originalmente escrito e publicado no a.no de zooo, a partir de pesquisas realizadas pelas autoras, para compor a colec;:ao "0 que voce precisa saber sobre ... ", da editora DPB[A. A epoca, o presidente da Republica era Fernando Henrique Cardoso, e o ministro da Educas:ao, Paulo Renato Souza, dai as referencias a ambos estarem no tempo presente. I4 CAPITULO I REFORMAS DE ENSINO, MODERNIZA~AO ADMINISTRADA Reformas do ensino, anos 1930: primeiro ato Os debates politicos que se travavam no alvorecer dos anos 1930 incluiam urn crescente interesse pelas questoes educacionais. Herans:a de anos anteriores, ganhava fors:a entre varios inte- lectuais e politicos da epoca a ideia de que era indispensavel a modernizas:ao do Brasil a montagem <;le urn Estado nacional, · centralizador, antiliberal e intervenciortista. 0 movimento que resultou na Revolus:ao de 1930 dava carater de urgencia a essa discussao. Eram tempos em que se forjavam diversos projetos de construc;:ao de nacionalidade, alguns modernizantes, outros mais reacionarios. Todos valorizavam o papel que a educac;:ao deveria cumprir para sua realizas:ao, coerentemente com o seu horizonte ideol6gico. Nesse ideario reformista, que tomava forma desde as decadas de 1910 e 1920, as possibilidades de intervens:ao do processo educa- tive eram superestimadas a tal ponto que nele pareciam estar con- tidas as solus:oes para os problemas do pais: socials, economicos ou politicos. Uma concepc;:ao francamente salvacionista convencia-se de que a reforma da sociedade pressuporia, como uma de suas condis:oes fundamentais, a reforma da educac;:ao e do ensino. Nos anos 1930, esse espirito salvacionista, adaptado as condic;:oes postas pelo primeiro governo Vargas, enfatiza a importancia da "criac;:ao" de cidadaos e de reprodus:aofmodernizac;:ao das "elites", acrescida da consciencia cada vez mais explicita da funs:ao da escola no trato da "questao social": a educac;:ao rural, na 16gica capitalista, para conter a migrac;:ao do campo para as cidadese a formac;:ao tecnico- POLITICA EDUCACIONAL -profissional de trabalhadores, visando solucionar o problema das agita~oes urbanas. Uma das primeiras medidas do Governo Provis6rio instalado com a Revolu~ao de 1930 foi a de criar o Ministerio dos Neg6cios da Educa~ao e Saude Publica- alias, uma antiga reivindica~ao de educadores e intelectuais brasileiros -, conferindo a Uniao poder para exercer sua tutela sobre os varios dominios do ensino no pais. Tratava-se de adaptar a educac;:ao a diretrizes que, notadamente a partir dai, se definiam tanto no campo politico quanto no educa- cional. 0 objetivo era o de criar urn ensino mais adequado a mo- dernizac;:ao que se almejava para o pais e que se constituisse em complemento da obra revolucionaria, orientando e organizando a nova nacionalidade a ser construida. Consequencia da estrutura federativa da Primeira Republica, a estrutura de ensino vigente no Brasil ate 1930 nunca pudera se organizar como urn sistema nacional integrado. Ou seja, inexis- tia uma politica nacional de educac;:ao que prescrevesse diretrizes gerais e a elas subordinasse os sistemas estaduais. Os projetos im- plementados pela Uniao, ate aquele momento, limitav?m-se, quase que exclusivamente, ao Distrito Federal e, embora a'presentados como "modelo", os estados da Federac;:ao nao eram obrigados a adota-los. As reformas empreendidas pelo Governo Provis6rio, se nao alcan~aram a totalidade dos ramos do ensino, puderam fornecer uma estrutura organica ao ensino secundario, comercial e supe- rior. Pela primeira vez na hist6ria do pais, uma mudanc;:a atingia varios niveis de ensino e se estendia a todo o territ6rio nacional. Uma serie de decretos efetivou as chamadas Reformas Francisco Campos- o primeiro titular do recem-criado ministerio- na edu- cac;:ao brasileira. Foram eles: r6 1. Decreto 19.850, de II de abril de 1931, que criou o Conselho Nacional de Educac;:ao; 2. Decreto 19.851, de II de abril de 1931, que dispos sobre a organiza~ao do ensino superior no Brasil e adotou o regime universitario; 3· Decreto 19.852, de 11 de abril de 1931, que dispos sobre a organizac;:ao da Universidade do Rio de Janeiro; 4· Decreto 19.890, de 18 de abril de 1931, que dispos sobre a organiza~ao do ensino secundario; REFORMAS DE ENSINO, MODERNIZA<;AO ADMINISTRADA 5· Decreto 19.941, de 30 de abril de 1931, que instituiu o ensi- no religioso como materia facultativa nas escolas publicas do pais; 6. Decreto 20.158, de 30 de junho de 1931, que organizou o ensino comercial e regulamentou a profissao de contador; 7· Decreto 21.241, de 14 de abril de 1932, que consolidou as disposi~oes sobre a organiza~ao do ensino secundario. Foge ao objetivo deste livro discutir detalhadamente os decre- tos, suas possibilidades e limites de efetiva~ao pratica. Mas vale lembrar a rigidez da tutela sobre o ensino nacional a que se pro- puseram as Reformas Francisco Campos, o que pode ser exem- plificado pelo Decreto 19.852, que dispos sobre a organizac;:ao da Universidade do Rio de Janeiro. Tinha 328 artigos que tudo re- gulamentavam: a escolha do reitor, dos diretores, dos membros do conselho tecnico-consultivo e suas atribuic;:oes; a definic;:ao do programa, ano por ano, de todas as disciplinas n1inistradas em cada uma das faculdades; as regras de escolaridade; os criterios de nomea~ao do~ professores e os seus salarios, e assim por diante. Parecia ao governo que, uma vez equacionados no ap1bito da legis- lac;:ao, os problemas educacionais encontrariam soluc;:ao real, como decorrencia n'atural da lei bern formulada. Entre os educadores, sol:hetudo no ambito da Associac;:ao Bra- sileira de Educac;:ao (ABE), os projetos de constru~ao de nacionali- dade e de civismo vinham se estruturando desde os anos 1920. Havia, por exemplo, a mobiliza~ao da Igreja Cat6lica. Se ao final do seculo XIX e inicio do seculo XX eram pOUCOS OS cat6licos militantes que manifestavam a consciencia das exigencias e do alcance dos desafios da vida economica, politica e social, o mesmo nao acontece a partir dos anos 1920. Mobilizado por D. Sebastiao Leme e engaja- do em sua proposta de recristianiza~ao do pais, urn grupo de cat6li- cos- formado por intelectuais, politicos, diplomatas- impunha-se o clever de defender a religiao cat6lica a qualquer custo. Embora nao fosse mais a religiao oficial do Estado - como nos tempos do Imperio-, era sem duvida a religiao nacional. Nesse sentido, resgata-la pelo conhecimento de seus principios fundamentais sig- nificava, para a Igreja, reencontrar a alma nacional, o Brasil verda- deiro que, a seu ver, havia se perdido com a Constituic;:ao de 1891. Aquela Carta Constitucional acolhia os prindpios do liberalismo e, entre outros aspectos, instituia a separac;:ao entre Estado e Igreja 17 POLITICA EDUCACIONAL e a laicidade do ensino ministrado nos estabelecimentos publicos. A exigencia da lei de urn espac;o publico e laico para o ensino era considerada pelos cat6licos uma violencia imposta a consciencia crista, uma vez que conflitava com a crenc;a da maioria dos alunos e a fe professada pela nac;ao. Para a Igreja, a educac;ao moral do povo brasileiro deveria ser de sua exclusiva competencia. Tratava-se, para os cat6licos, de urn esforc;o politico, patriota, uma vez que colaborando para a pureza dos costumes, estaria formando homens uteis e conscientes, com os conhecimentos necessarios aos bons cidadaos. Esse projeto, conservador e tradicionalista, mas muito bern articulado por seus defensores, se desdobrou nos anos 1930. Ap6s uma certa hesita- c;ao quanto ao apoio a Revoluc;ao 1930- Amoroso Lima e outros intelectuais cat6licos relutaram em aceita-la -, o grupo cat6lico, inspirado por D. Leme, retomou suas atividades de mobilizac;ao e transformou-se em importante forc;a politica no processo de defi- nic;ao de diretrizes educacionais. Em 1931, pressionou o Governo Provis6rio e obteve a jnclusao do ensino religioso ;nas escolas primarias, normais e secundarias do pais, ainda que em carater facultativo. Nesse mesmo c:ino, pro- moveu a festa deN. S. Aparecida, em Aparecida do Ndrte, Sao Paulo, e a momentosa inaugurac;ao do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, en tao capital da Republica, reunindo urn impressionante numero de pessoas na antiga capital federal; em 1932, fundou a Liga Eleitoral Cat6lica {LEe) como objetivo explicito de alistar, orga- nizar e instruir os eleitores cat6licos, em todo o pais, para votarem em candidatos a Assembleia Constituinte favoraveis a religiao e que promovessem a protec;ao e a defesa dos principios cristaos - inclusive a defesa do ensino religioso. Evidentemente, o projeto da Igreja encontrava forte reac;ao entre intelectuais, politicos e educadores mais afeitos a reformula- c;ao, em outros moldes, do ensino brasileiro. Muitos deles haviam participado, direta ou indiretamente, das reformas estaduais de ensino primario e normal dos anos 1920. Reunido sob a generica denominac;ao de "reformadores" ou "pioneiros" - nao obstante sua marcada heterogeneidade -, esse grupo nao hesitava em atribuir a educac;ao urn importante papel na constituic;ao da nacionalidade, tendo em vista as novas relac;oes sociais que se objetivavam no pais. 18 REFORMAS DE ENSINO, MODERNIZA<_;:AO ADMINISTRADA Para esse setor de intelectuais e educadores, o emergente pro- cesso de industrializac;ao demandava politicas educacionais que assegurassem uma educac;ao moderna, capaz de incorporar novos metodos e tecnicas e que fosse eficaz na formac;ao do perfil de cida- dania adequado a esse processo. As ideias de uma nova pedagogia- as vezes mais, as vezes menos referenciada em pensadores da Esco- la Nova-, que desde a decada anterior vinham inspirando as varias reformas estaduais, bern como o debate entre os educadores na ABE, constituiam-se na versao pedag6gica do horizonte ideol6gico dessa formac;ao de cidadania. E evidente, por exemplo, a importancia que a organizac;ao ra- cional do trabalho encontrouno seio da ABE e como, em alguns casos, essa questao traduziu-se na valorizac;ao dos metodos de uma pedagogia que viabilizasse, no meio escolar, a realizac;ao das maxi- mas organizadoras exigidas pelo trabalho industrial. E interessante notar como a apropriac;ao dessa pedagogia foi funcional, no plano ideol6gico •. para afrouxar as tensoes sociais e atualizar projetos re- formistas espedficos. A organizac,:ao racional do trabalho, entretan- to, nao se ~eduzia; a adequac;ao do trabalhador ou da trabalhadora a uma determinada ocupac;ao industrial. Ao contrario, refl.etia-se tambem na proposta de fixac;ao de homens e mulheres ao campo, .-,. de forma a conter o processo de crescimento urbano mediante uma distribuic;ao "racional" da populac;ao pelas atividades rurais e urbanas. 0 projeto de nacionalidade articulado a essa politica educacio- nal modernizante parecia estar mais sintonizado com os prop6si- tos do governo no periodo. De fato, no inicio dos anos 1930, nao s6 os intelectuais, politicos e educadores defensores desse projeto exerceram influencia e ocuparam cargos na burocracia estatal, abrindo e ampliando seu espac;o de atuac;ao politica, como suas propostas encontraram ressonancia em varios dos discursos de Vargas e de Francisco Campos. Dois projetos educacionais, da Igreja Cat6lica e dos defensores de uma educac;ao nova, adequada aos novos ten1pos, sobrelevaram em importancia, mas eram, sem duvida, diversos apenas na super- fide. Nao existia discordancia de fundo entre eles: ambos se ade- quavam, cada urn a seu modo, as relac;oes sociais vigentes e nem urn nem outro as colocavam em questao. Na defesa de seus inte- resses, porem, lutavam pela hegemonia de suas propostas em nivel 19 POLITICA EDUCACIONAL de governo. De urn lado, a Igreja e seu enorme poder de infl.uencia sobre a populas:ao e de pressao sobre o proprio governo; de outro, os que propugnavam novos conceitos educacionais e seu presti- gio como "educadores" na sociedade brasileira. Vargas e Campos procuraram conciliar as reivindicas:oes divergentes e, sempre que puderam, manipularam-nas em seu proveito. Decorrencia de articulas:oes desenvolvidas na IV Conferencia Nacional de Educas:ao promovida pela ABE, em I93I- realizada sob acentuada pressao politico-ideol6gica e em cuja sessao de abertu- ra estiveram presentes Getulio Vargas e Francisco Campos - o Manifosto dos Pioneiros da Educagao Nova (I932) contribuiu defini- tivamente para par em relevo as clivagens ideol6gicas existentes entre as fors:as em confronto. Redigido por Fernando de Azevedo e assinado por mais 26 educadores e intelectuais, o documento dirigido ao povo e ao governo trazia a marca da diversidade te6ri- ca e ideol6gica do grupo que o concebeu. Mas apresentava ideias consensuais, como a proposta de urn programa de reconstrus:ao educacional em ambito nacional e 0 principio da escola publica, leiga, obrigat6ria e gratuita e do ensino comum para os dois sexos (coeducas:ao). Movia-se, ainda, no ambito das conceps:oes educacio- nais de -!"<::corte escolanovista, enfatizando os aspectos biol6gicos, psicol6gicos, administrativos e didaticos do processo educacional. 0 !vfanifosto, a rigor, expressava urn amalgama de teorias que di:ficilmente poderiam ser aproximadas - Fichte e Dewey, por exemplo -, o que indica uma certa ambiguidade te6rica em sua for- rnulas:ao. Fato que nao causa espanto, dada a heterogeneidade do grupo que por ele se responsabilizou. Mesrpo assim, a divulgas:ao do documento provocou violentoscontra-ataques da direita cat6lica e da hierarquia da Igreja. Quando os "renovadores" ganharam a he- gemonia na dires:ao da ABE, em I932, o grupo cat6lico abandonou em massa a associa<;ao, fundando a Conferencia Cat6lica Brasileira de Educas:ao (ccBE). Todavia, se alem dessas querelas ouvirmos outras vozes, nem sempre perceptiveis na narrativa oficial, como a de Jose Neves, do Sindicato dos Trabalhadores do Ensino, perceberemos criticas de outro teor: uma inequivoca denuncia da despolitizas:ao das propos- tas de tal "Escola Nova". Em I93I, pouco antes da realizas:ao da IV Conferencia, Neves fazia publicar no Diario de Not(cias, do Rio de Janeiro, uma nota- com palavras tao atuais!- reivindicando uma 20 REFORMAS DE ENSINO, MODERNIZA~AO ADMINISTRADA "escola para a vida e pela vida a quem nem o direito a vida tern se- guro", uma "escola do trabalho a quem encontra no trabalho meio de morte" e uma "escola da liberdade a quem nunca teve liberda- de na escola". E acrescentava que, se os professores e professoras tivessem compreendido mais cedo a necessidade premente de sua organizas:ao em sindicatos de resistencia, ja teriam podido organi- zar urn congresso nacional, com urn programa bern diferente do proposto pela ABE. Urn programa que incluiria: uma estatistica dos vencimentos dos professores e professoras brasileiros e duras:ao do trabalho diario; a elaboras:ao de uma tabela de salarios minimos; a fixas:ao do tempo maximo de trabalho de forma a nao prejudicar a eficiencia do ensino; urn plano de luta pela ados:ao da tabela e pelo maximo de trabalho eficiente. Porem, ate la, afirmava Neves, "deixemos que fas:am metafisica sobre o Brasil educado. E sobre a Escola Nova tambem". Apesar das farpas certeiras lans:adas por Neves, nao era me- tafisico o enfrentamento pelo dominio do mercado pecJag6gico. Basta observar a iptensa mobilizas:ao realizada pelas fors:as em disputa para ocupdr espa<;os na Assembleia Constituinte de I933· Os intelectuais e educadores "renovadores", muitos dos qhais com impqrtantes cargos na burocracia educacional no Governo Provi- s6rio e em nivel estadual, contavam com defensores de sua pro- posta entre os que se opunham ao conservantismo cat6lico. Esses ultimos, por sua vez, colhiam os resultados favoraveis do trabalho realizado pela LEe e podiam contar como votode todos os deputa- dos que haviam se comprometido como seu programa. Dada a correlas:ao de fors:as que impedia a vit6ria de urn ou de outro grupo, os debates se orientaram no sentido de uma acomoda- s:ao, por parte do governo, dos interesses divergentes. Alcanc;:ou-se, por urn lado, a aprovas:ao de propostas de ensino primario obriga- t6rio, gratuito e universal, da amplias:ao da competencia da Uniao, por meio do Conselho Nacional de Educac;:ao- resguardada a auto- nomia dos estados e munidpios- para "adaptar" as determinas:oes federais as condic;:oes locais. A Constituinte atribuiu ao Conselho a tarefa de elaborar urn Plano Nacional de Educas:ao e de garantir os recursos para o sistema educativo. 0 grupo cat6lico, por outro, viu atendidas suas reivindica<;oes quanto ao ensino religioso nas escolas, a manutens:ao da liberdade de ensino, ao reconhecimento de estabelecimentos particulares e a isens:ao de impostos de esta- 2I POLI'I'ICA EDUCACIONAL belecimentos privados de ensino tidos como idoneos, bern como do papel desempenhado pela familia na educa~ao. A Constituic;ao foi promulgada em julho de 1934. Menos de urn ano e meio depois, a repressao generalizada e os sucessivos estados de sitio que se seguiram a mobilizac;ao popular e aos mo- vimentos da Alianc;a Nacional Libertadora, em 1935, fariam letra morta das propostas liberais, da liberdade de catedra e de outras garantias constitucionais. Nao obstante as enfaticas declarac;oes de Vargas sobre a relevancia da educac;ao na formac;ao politica do "povo" - haja vista sua Mensagem ao Povo Brasileiro, de janeiro de 1936 -, o que realmente ocorria era uma forte repressao do Estado as tentativas de mobilizac;ao e organizac;ao dos setores mais politizados da sociedade. Os comunistas eram o alvo preferencial dessas iniciativas. Por outro lado, os dados disponiveis demonstram que, mesmo tendo havido uma elevac;ao no numero de matriculas no periodo, o atendimento escolar mantinha-se deficitario. Assim, entre a inten- , c;ao oficial de implantar no B;rasil uma educac;ao que contribuisse ,~ para realizar, segundo Vargas, uma obrapreventiva e de sanea- ,! mento e o atendimento escolar havia uma distancia consideravel. i A repressao direta se apresentava como muito mais eficaz em curto prazo para a "prevenc;ao e o saneamento". A implantac;ao do Estado Novo, em 1937, definiu o papel da educac;ao no projeto de nacionalidade que o Estado esperava cons- truir. A nova Constituic;ao dedicou bern menos espac;o a educac;ao do que a anterior, mas o suficiente para inclui-la em seu quadro estrategico com vistas a equacionar a "questao social" e combater a subversao ideol6gica. Nao foram casuais os discursos e as referen- cias a urn ensino especifico para as classes n~enos tavorecidas, o pn~-vocacional e profissional. Tal ensino era considerado o primeiro clever do Estado, a ser cumprido com a colabora<_;:ao das industrias e sindicatos economicos - o que fazia da escola, oficialmente, urn dos loci da discriminac;ao social. Nem, tampouco, o acento sobre a obrigatoriedade da educac;ao fisica e do ensino dvico, mecanismos de disciplina e controle corporal e ideol6gico. Demarcavam-se, enfim, os termos de uma politica educacional que reconhecia o Iugar e a finalidade da educac;ao e da escola. Por urn lado, Iugar da ordenac;ao moral e civica, da obediencia, do ades- tramento, da forma~ao da cidadania e da forc;a de trabalho necessa- 22 REFORMAS DE ENSINO, MODERNIZA<;AO ADMINIS'I'RADA rias a modernizac;ao administrada. Por outro, finalidade submissa aos designios do Estado, organismo politico, economico e, sobre- tudo, etico, expressao e forma "harmoniosa" da nac;ao brasileira. Reformas do ensino, anos 1940: segundo ato Nos primeiros anos do Estado Novo, por forc;a do fechamento poli- tico e suspensao das liberdades civis, o debate educacional foi carac- terizado por reduzida circulac;ao de ideias. Da parte do governo nenhuma movimentac;ao significativa na definic;ao de politicas para a educac;ao se anunciou ate 1942, quando o entao ministro da Educac;ao e Saude Publica, Gustavo Capanema, implementou uma serie de reformas que tomaram o nome de Leis Organicas do Ensino, que flexibilizaram e ampliaram as Reformas Campos. As Leis Organicas foram complementadas por Raul Leitao da Cunha, que o sucedeu no ministerio ap6s o termino do Estado Novo, em 1945. Entre 1942 e 1946 foram postos em execuc;ao os seguintes decretos-leis: f r. Decreto-lei 4·048, de 22 de janeiro de 1942, Lei Organica do Ensino · lhdustrial; 2. Decreto-lei 4.073• de 30 de janeiro de 1942, cria o Servic;o ·~·Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI)- outros de- cretos se seguiriam a este, completando a regulamentac;ao da materia; 3· Decreto-lei 4.244, de 9 de abril de 1942, Lei Organica do Ensino Secundario; 4· Decreto-lei 6.141, de 28 de dezembro de 1943, Lei Organica do Ensino Comercial; 5· Decretos-leis 8.529 e 8.530, de 2 de janeiro de 1946, Lei Organica do Ensino Primario e Normal, respectivamente; 6. Decretos-leis 8.621 e 8.622, de 10 de janeiro de 1946, cria o Servic;o Nacional de Aprendizagem Comercial (sENAc); 7· Decreto-lei 9.613, de 20 de agosto de 1946, Lei Organica do Ensino Agricola. Tambern nesse caso nao cabe discutir em detalhes o conjunto de decretos que compos as Leis Organicas. Interessa assinalar que tais leis completaram o processo politico aberto com a cria~ao do Ministerio dos Neg6cios da Educac;ao e Saude Publica, em 1930. Ademais, possibilitaram ao governo da Uniao o poder de estabele- 23 POLITICA EDUCACIONAL cer diretrizes sobre todos os niveis da educac;ao nacional, diferen- temente das Reformas Campos que, do ponto de vista do ensino profissional, s6 atentaram para o ensino comercial- evidenciando os limites de uma sociedade presa aos interesses de uma economia agroexportadora. As Leis Organicas, ao contrario, contemplaram os tres departamentos da economia, regulamentando o ensino tecnico-profissional industrial, comercial e agricola. Contempla- ram, tambem, os ensinos primario e normal, ate entao assunto da alc;ada dos estados da Federac;ao. Nem por isso o conjunto das Leis Organicas e sua legislac;ao complementar propiciaram ao sistema educacional a desejavel unidade a ser assegurada por diretrizes gerais comuns a todos os ramos e niveis de ensino. Persistia o velho dualismo: as camadas mais favorecidas da populac;ao pro- curavam o ensino secundario e superior para sua formac;ao, e aos trabalhadores restavam as escolas primarias e profissionais para uma rapida preparac;ao para o mercado de trabalho. Para efetivar o ensino industrial- a mais urgente demanda de uma economia que acelerava o processo de substituic;ao de impor- tac;oes e destinado a uma parcela da classe operat;ia ja engajada no processo fabril -, por exemplo, o governo se obrigou a recorrer a Confederac;ao Nacional da Industria (CNI), criando urn sistema paralelo ao ensino oficial, o Servic;o Nacional dos Industriarios, pos- teriormente Servic;o Nacional de Aprendizagem Industrial (sENAI). ·Nessa iniciativa estava implicito o reconhecimento da incapaci- dade governamental em prover a formac;ao profissional em larga escala, tanto pela dificuldade na alocac;ao de recursos quanto pela inoperancia do proprio sistema de ensino oficial para oferecer a formac;ao tecnica almejada. Mas era patente, entre os empresa- rios, a quimera liberal de fazer da fabrica uma escola, o locus ideal da forrnac;ao para os valores do industrialismo. Assim, o sistema deveria ser mantido pela contribuic;ao dos filiados da CNI e sua func;ao seria a de organizar e administrar escolas de aprendizagem e treinamento industrial em todo o pais. Nao demoraria muito, no entanto, para o SENAI desistir de ser ator principal e reivindicar utn papel coadjuvante no processo educacional. Em 1948, reconhecia que era tarefa do poder publico cuidar da alfabetizac;ao e da educac;ao geral primaria. Em palavras de grande atualidade, constatava que a escola primaria era o grande instrumento formador da maior parte do operariado de todos os 24 REFORMAS DE ENSINO, MODERNIZA<;:AO ADMINISTRADA paises industriais e sua ausencia cohstituia-se em impedimenta a aprendizagem no emprego. Para o SENAI, a formac;ao de trabalha- dores nao se reduziria nem a sua "capacidade eficiente de leitura nem a utilizac;ao pratica das operac;oes matematicas elementares", mas a sua capacidade de compreensao dos fenomenos que cercam o homem todos os dias, "seus deveres para consigo e para com a sociedade". Ao longo dos anos, o sENAI foi abandonando, gradual- mente, os cursos e atividades com vinculac;ao direta a preparac;ao da mao de obra industrial e dedicando-se a formac;ao mais especia- lizada de nivel tecnico. Ap6s a remodelac;ao sofrida no pos-1964, desvencilhou-se definitivamente da educac;ao geral, devolvendo ao Estado essa tarefa. Voltando ao fio condutor de nossa hist6ria, em 1945, os anos ditatoriais do Estado Novo chegaram ao fim e, no ano seguinte, foi promulgada a nova Constituic;ao, liberal como os tempos que se anunciavam. A Carta de 1946 defendia a liberdade e a educas:ao dos brasilei;ros. Esta era assegurada com~ direito de todos, e os poderes publicos foram obrigados a garantlr, ria forma da lei, a edu- cac;ao em todos os niveis, juntamente com, a iniciativaprivada. Foi dentro dessk espirito que o entao ministro da Educac;ao, Clemente Maria,no, nomeou uma corr-:ssao de especialistas- presidida por Lourenc;o Filho - com o objetivo de estudar e propor uma reforma geral da educac;ao nacional. Em 1948, apresentado por mensagem presidencial, o resultado dessa proposta foi enviado ao Congresso Nacional. Iniciou-se, entao, urn longo e intense debate e luta ideo- l6gica sobre os rumos da educac;ao brasileira, que iria persistir ate 1961, quando foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educac;ao Nacional, Lei 4.024, de 20 dezembro daquele ano, com a vit6ria das forc;as conservadoras e privatistas e serios prejuizos quanto a distribuis:ao de recursos publicos e a ampliac;ao das opor- tunidades educacionais.De fato, foram fortes as pressoes conservadoras e privatistas no vagaroso- 13 anos!- processo de discussao das propostas edu- cacionais em sua tramitac;ao no Congresso Nacional. Contra elas insurgiu-se o Movimento em Defesa da Escola Publica, difundidoa partir da Universidade de Sao Paulo (usP) e congregando nomes como Florestan Fernandes, Fernando de Azevedo, Anisio Teixeira, Lourenc;o Filho, entre outros. Posteriormente, em 1959, divulgou-se urn novo manifesto, mais uma vez enderec;ado ao povo e ao governo, 25 POLITICA EDUCACIONAL assinado por 189 intelectuais, educadores e estudantes e, como em sua primeira versao, tambem redigido por Fernando de Azevedo. A velha geras:ao dos anos 1930 persistia na luta. Agora nao se tratava mais de reafirmar os prindpios de uma nova pedagogia, mas de discutir os aspectos sociais da educas:ao e a intransigente defesa da escola publica. Como antes, os publicistas signatarios do manifesto opunham-se aos setores privatistas, notadamente a Igreja Cat6lica que pretensiosamente se assumia como a unica capaz de ministrar "uma filosofia integral de vida", formando a inteligencia e o carater dos alunos. Em 1961, finalmente, o Legislativo brasileiro confir- mando sua vocas:ao conservadora votou uma Lei de Diretrizes e Bases da Educas:ao Nacional submissa aos interesses da iniciativa privada -previa ajuda financeira a rede privada de forma indiscri- minada - e aos da Igreja. Aqueles foram anos de embate e de vit6ria de fors:as conser- vadoras - nao se pode esquecer que eram tempos de Guerra Fria, agravada com a vit6ria de Fidel Castro, em Cuba, em 1959, o que favorecia o clima de tadicalizas:ao ideol6gica no pais. Mas o foram tambem de intensa '~fervescencia cultural e politip. 0 pil:fs con- vivia com as contrad~s:oes de uma crise economica decorrente da redus:ao dos indices de investimentps, da diminuis:ao da entrada de capital externo, da queda da taxa de lucro e do crescimento da inflas:ao. Crescia a organizas:ao de sindicatos de trabalhadores ur- banos e rurais, estruturavam-se as Ligas Camponesas, estudantes fortaleciam a Uniao Nacional dos Estudantes (uNE), militares su- balternos organizavam-se. Mobilizas:oes populares reivindicavam Reformas de Base - reforma agraria, reformas na estrutura eco- nomica, na educas:ao, reformas, enfim, na estnttura da sociedade brasileira. Essa movimentas:ao repercutiu intensamente no campo da cultura e da educas:ao. Os chamados "movimentos de educas:ao popular", articulados no inkio dos anos 1960, tiveram atuas:ao surpreendente e atrai- ram intelectuais e militantes preocupados com questoes educa- tivas. Expressam bern esses niovimentos: os Centros Populares de Cultura, os celebrados cPcs da UNE, que levavam "o teatro ao povo", improvisando a encenas:ao de pes:as politicas em portas de fabricas, sindicatos, favelas; os Movimentos de Cultura Popular (McP), originarios de Pernambuco e Rio Grande do Norte, que inauguravam programas de alfabetizas:ao eficientes e altamente 26 REFORMAS DE ENSINO, MODERNIZA<;:AO ADMINISTRADA politizados, como ode Paulo Freire eo "De pes no chao tambem se aprende a ler", liderado por Moacyr de Goes; o Movimento de Educas:ao de Base (MEB), ligado a Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e as fors:as progressistas da Igreja, que chegou a criar urn sistema de radiodifusao educativa. Os MCP, por exemplo, comes:aram em 1959, com Miguel Arraes, prefeito de Recife e candidato ao governo de Pernambuco. As al- fabetizas:oes em massa propostas pelo governo estadual tinham dois claros objetivos politicos. Por urn lado, uma alfabetizas:ao que contribuisse para a "conscientizas:ao politica" da populas:ao esta- ria colaborando para minorar a indigencia e a marginalizas:ao das massas populares, fortalecendo-as contra a demagogia eleitoral. Tratava-se, por conseguinte, de organizar a populas:ao em torno de interesses reais, como a cidade, o bairro, a profissao. Por outro, havia uma finalidade eleitoral imediata: alfabetizar para aumentar 0 numero de eleitores, uma vez que, a epoca, 0 voto ainda nao era facultado aos iletrados. Foi nessas circunstancias que Paulo Freire desenvolveu seu metodo de alfabetizas:ao de adultos que concebe a leitura como uma fors:a no jogo de dominas:ao social. Por isso, o metodo procura, a partir de palavras-chave, levar o analfabeto a palavra escrita com a consciencia de sua situas:ao politica. Nao por acaso 0 educadorjpolitico foi preso logo ap6s 0 golpe; nao por coincidencia, tambem, viria a tornar-se o educador brasileiro de maior reconhecimento internacional. Roberto Schwarz descreve esse momenta com palavras for- tes: o vento pre-revolucionario, assinala, descompartimentava a consciencia nacional e enchia os jornais de manchetes sobre a reforma agraria, o voto do analfabeto, o imperialismo, a agitas:ao camponesa, o movimento operario, a nacionalizas:ao de empresas americanas. Populismo? Talvez, mas para o autor "o pais estava irreconhecivehnente inteligente". Eram as reformas de base postas em discussao aberta. Nessa ambiencia de discussoes e iniciativas ousadas, o governo Joao Goulart, em janeiro de 1964, propos o Plano Nacional de Alfabetizas:ao, inspirado no "metodo que alfabe- tizava em 40 horas", de Paulo Freire, com o objetivo de alfabetizar 5 milhoes de brasileiros ate 1965. 0 Plano, porem, tal como a discussao das reformas, teve vida curtissima: uma das primeiras iniciativas do governo impasto pelo golpe militar, ainda em abril de 1964, foi sua extins:ao. Sinal do 27 POLITICA EDUCACIONAL que se avizinhava. Como assinala Schwarz, tempos de revanche da provincia, dos ratos de missa, dos bachareis em lei, das damas da sociedade que defendiam em marcha pelas ruas e com velas acesas nas janelas a triade "Deus, familiae liberdade", e que tais. 0 momento de gloria dessas fors:as, entretanto, tambem seria curto. Em sequencia pos-se em seu Iugar o tecnocratismo dos militares. Reformas do ensino, anos 1960 e 1970: terceiro ato Desde os anos 19 50 ocorria vigoroso debate em torno de propos- tas para a educas:ao brasileira pensada como parte das "reformas de base" que se cogitavam para o pais. A vit6ria conservadora e o acerto entre os generais, entretanto, interromperam o processo. 0 regime militar- como afirma Roberto Schwarz-, instalado no Brasil a fim de garantir o capital e o continente contra o socia- lismo, abafou sem hesitas:ao quaisquer obst:kulos que no ambito da sociedade civil pudessem perturbar o processo de adaptas:ao economica e politica que se impunha ao pais. Urn Poder Executi- ve hipertrofiado e repressor controlava os sindicatos, os !meios de comunicas:ao, a universidade. A censura, OS expurgos, as aposen- tadorias compuls6rias, o arrocho salarial, a dissolus:ao de partidos politicos, de organizas:oes estudantis e de trabalhadores chegaram para ficar por longo tempo. Pouco mais tarde, introduzir-se-ia tam- hem a pratica da tortura. Com esses recursos os militares, de fato, contiveram a crise economica, abafaram a movimentas:ao politica e consolidaram os caminhos para o capital multinacional. E inegavel que as reformas do ensino empreendidas pelos go- vernos do regime militar assimilaram alguns elementos do debate anterior, contudo fortemente balizados por recomendas:oes advin- das de agendas internacionais e relat6rios vinculados ao governo norte-americano (Relat6rio Atcon) e ao Ministerio da Educas:ao nacional (Relat6rio Meira Mattos). Tratava-se de incorporar com- promissos assumidos pelo governo brasileiro na Carta de Punta del Este (1961) e no Plano Decenal de Educas:ao da Alians:a para o Progresso- sobretudo os derivados dos acordos entre o MEC e a AID (Agency for International Development), OS tristemente celebres Acordos MEC-USAID. Outras organizas:oes nacionais que reuniam intelectuais bra- sileiros organicos ao regime, como o complexo Instituto de Pesqui- 28 REFORMAS DE ENSINO, MODERNIZA<;AO ADMINISTRADA sas e Estudos Sociaise Instituto Brasileiro de As:ao Democratica (IPES/IBAD), o Instituto Euvaldo Lodi (IEL), criado pela CNI, tambem se interessaram e atuaram na formulas;ao de diretrizes politicas e educacionais para o pais. Importante registrar a parceria entre o IPES e a Puc-Rio, promovendo f6runs de debates que resultaram em uma publicas:ao, A educa~ao que nos convem (1969), formulando a sintese das aspiras:oes de empresarios e intelectuais aliados do regime sobre a educas:ao. Em espas:o e tempos pr6prios, particular- mente na segunda metade da decada de 1950, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), mesmo resguardado por urn aparente descomprometimento, desenvolveu estudos que viriam a inspirar as linhas principais das reformas educacionais dos anos 1960. A reforma do ensino dos anos 1960 e 1970 vinculou-se aos termos precisos do novo regime. Desenvolvimento, ou seja, edu- cas:ao para a formas:ao de "capital humano", vinculo estrito en- tre educas:ao e mercado de trabalho, modernizas:ao de habitos de consumo, integras:ao da politica educacional aos planos gerais de desenvolvimento elsegurans:a nacional, defesa do ;Estado, repressao e controle politico~'ideol6gico da vida intelectual e artistica do pais. A politica des·~nvolvimentista articulou-se a uma significativa reorganizas:ao do Estado em vista dos objetivos que deveria efetivar para a'tender aos interesses econ6micos vigentes. Assim, nao sur- preende que se houvesse adotado uma perspectiva "economicista" em relas:ao a educas:ao, confirmada no Plano Decenal de Desenvol- vimento Economico e Social (1967-1976), para o qual a educas:ao deveria assegurar "a consolidas:ao da estrutura de capital humano do pais, de modo a acelerar o processo de desenvolvimento eco- nomico". 0 regime militar, dessa forma, procurou equacionar 0 sisten1a educacional em vista dessa finalidade, subordinando-o, como ressalta Kowarick, aos imperativos de uma conceps:ao estrita- mente economica de desenvolvimento. Nao surpreende, tambem, que durante o regime militar o planejamento da educac;ao tivesse sido exercido por economistas - o que parece ter feito escola nos anos 1990! No que concerne a legislac;ao educacional, implementou-se uma serie deleis, decretos-leis e pareceres referentes a educac;ao, visando assegurar uma politica educacional organica, nacional e abrangente que garantisse o controle politico e ideol6gico sobre a educac;ao escolar em todos os niveis e esferas. Na exposic;ao de 29 POLiTICA EDUCACIONAL motivos da Lei s-692/71, o entao ministro Jarbas Passarinho decla- rou as intenc;:oes legislativas do regime: "Em vez de elaborar uma (mica lei, embora a isso se deva chegar, preferiu-se atuar por apro- ximac;:oes sucessivas com visao clara da unidade de conjunto" - o que, aparentemente, foi feito. As "aproximac;:oes sucessivas" inclui- ram, entre outros: r. Lei 4.464, de 9 de novembro de 1964, que regulamentou a participac;:ao estudantil; 2. Lei 4-440, de 27 de outubro de 1964, que institucionalizou o salario-educac;:ao, regulamentado no Decreto 55·551, de 12 de janeiro de 1965; 3· Decreto 57.634, de 14 de janeiro de 1966, que suspendeu as atividades da UNE; 4· Decretos 53, de 18 de novembro de 1966, e 252, de 28 de fevereiro de 1967, que reestruturaram as universidades fe- derais e modificaram a representac;:ao estudantil; 5· Decreto-lei 228, de 28 de fevereiro de 1967, que permitiu que reitores e diretores enquadrassem o movimento estu- dantil na legislac;:ao pertinertte; ! 6. Lei 5·540, 28 de novembro de 1968, qtie fixou as normas de organizac;:ao e funcionamento do ensino superior; 7· Decreto-lei 477, de fevereiro de 1969, e suas portarias 149-A e 3.524, que se aplicavam a todo o corpo docente, discente e administrative das escolas, proibindo quaisquer manifesta- c;:oes politicas nas universidades; 8. Lei 5·370, de 15 de dezembro de 1967, que criou o Movimen- to Brasileiro de Alfabetizac;:ao (MOBRAL), regulamentado em setembro de 1970; 9· Lei 5.692, de rr de agosto de 1971, que fixou as diretrizes e bases para o ensino de 1° e 2° graus; ro. Lei 7·044, de 18 de outubro de 1982, que alterou dispositi- vos da Lei 5.692, referentes a profissionalizac;:ao no ensino de 2° grau. Em meio a esse processo legislative, foi promulgada a Consti- tuic;:ao de 1967- que nao previa percentuais minimos a serem. des- pendidos obrigatoriamente com a educac;:ao pelo poder publico-, delineando o perfil grosseiro do novo regime. Em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional no 5 pintaria com minucias seu retrato por inteiro. lmportante registrar, ademais, que, paralelamente ao 30 REFORMAS DE ENSINO, MODERNIZA<;AO ADMINISTRADA esforc;:o legislative, os varios goverrios militares cuidaram de ela- borar programas de ac;:ao, pianos decenais, programas estrategicos, que incluiam a educac;:ao em suas propostas de planejamento para o pais. E consenso entre pesquisadores desse periodo que, nao obs- tante a ampla legislac;:ao reformista, a politica educacional do regi- me militar apoiou-se basicamente nas leis 5·540/68- que refor- mou o ensino superior- e 5.692/71- que reformou o ensino de 1° e 2° graus. Mesm.o relativizando o peso dos acordos MEC-USAID na definic;:ao das diretrizes da educac;:ao brasileira, as duas leis, como toda a legislac;:ao educacional do regime militar, nao fugiram do quadro geral de suas recomendac;:oes. Entre outros, podem-se apontar dois importantes objetivos das leis configurados quando o regime equacionava a economia e ja se anunciavam os anos euf6ricos do "milagre economico bra- sileiro". 0 primeiro era ode assegurar a ampliac;:ao da oferta do ensino h.mdamental para garantir forrnac;:ao e qualificac;:ao mini- mas a in~erc;:ao de amplos setores das cb.sses trabalhadoras em urn processo produtivo ainda pouco exigente. 0 segundo, o de criar as condic;:oes para a formac;:ao de uma mao de obra qualificada para os es_qloes mais altos d c. ·administrac;:ao publica e da industria e que viesse a favorecer o processo de importac;:ao tecnol6gica e de modernizac;:ao que se pretendia para o pais. 0 Plano Decenal da Alianc;:a para o Progresso eo Conselho Interamericano Economico e Social (ciEs) - secretaria da Organizac;:ao dos Estados Americanos (oEA} para assuntos culturais, cientificos e de informac;:ao- indi- cavam com desconcertante franqueza que educador e educando haviam se transformado em capital humano - capital que, rece- bendo investimento apropriado e eficaz, estaria apto a produzir lucros individual e social. De todo modo, visando construir sua hegemonia, o regime instituiu en1 todos os niveis escolares urn en- sino propagandistico do regime e da "Revoluc;:ao": "Ensino de Moral e Civica", no I 0 e no 2° graus, e "Estudo de Problemas Brasileiros", na universidade, inclusive na p6s-graduac;:ao. Investir significava tambem moldar o "capital humano". Quanto ao ensino superior, a politica educacional favoreceu, por urn lado, a expansao da oferta publica, com a proliferac;:ao de universidades federais em varios estados da Federac;:ao. Por outro, ao tornar possivel a transferencia de recursos publicos para ins- 31 J;>OLITICA EDUCACIONAI. tituis:oes privadas de ensino superior, beneficiou seu crescimen- to indiscriminado por todo o pais e com controle governamental praticamente zero. Basta lembrar que, na decada de 1990, a rede particular de ensino superior atendia a 66,97% dos alunos, res- tando a oficial33,03%. Em ambas as iniciativas, o regime ampliava sua base de sustentas:ao polftica: satisfazia o orgulho ornamenta- do das oligarquias provincianas e atendia as classes medias que, beneficiadas pelo "milagre", pressionavam cada vez mais por seu acesso a universidade. A Lei 5·540 talvez tenha sido urn dos mais contradit6rios empreendimentos do regime militar. Promoveu uma reforma no ensino superior brasileiro, extinguiu a catedra - suprimindo o que se considerava ser o bastiao do pensamento e do compor- tamento conservadores na universidade-, introduziu o regime de tempo integral e dedicas:ao exclusiva aos professores, criou a estrutura departamental, dividiu o curso de graduas:ao em duas partes, ciclo basico e ciclo profissional, criou o sistema de creditos por disciplinas, iiJ!stituiu a periodicidade semestral e o vestibular eliminat6rio. Ou~ra mudans:a substantiva se ef~tivou, ainda, em relas:ao ao modeloi de 1931: foi implementada a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensao. "No regime anterior, essa ideia nao estava claramente presente, mas havia referenda a pesquisa e ao ensino como tarefas do professor catedratico, para o que era agraciado com contrato de dedicas:ao integral. No caudal dos atos de exces:ao da ditadura militar, a universi- dade brasileira foi obrigada a testemunhar a repressao, a persegui- s:ao policial, a expulsao, o exilio, as aposentadorias compuls6rias, a tortura, a morte de muitos de seus melhores pensadores. Entre- tanto, se por urn lado a reforma de 1968 significou uma violencia a inteligencia, por outro trouxe elementos de "renovas:ao", sobretudo no que respeita a p6s-graduas:ao, fortalecida em algumas areas, instituida ern outras. Germano lem_bra que, contraditoriamente, ao mesmo tempo que o Estado exercia o mais severo controle politico- -ideol6gico na educac;:ao, possibilitava, no ambito universitario, o exerdcio da critica social e politica nao somente ao regime politico vigente no pais, como ao proprio capitalismo. Florestan Fernandes destaca o fato de que talvez a pressao constante de tendencias modernizadoras originarias no pais, ou em organismos economicos, educacionais e culturais internacio- 32 REFORMAS DE ENSINO, MODERNIZA<,:AO ADMINISTRADA nais, bern como a ameac;:a permanente de rebeliao estudantil, tives- sem levado as fors:as reacionarias a optar pela liderans:a politica da reforma universitaria. Entretanto, a crens:a de que a ciencia e a tecnologia impulsionariam 0 desenvolvimento economico pode tambem ter estimulado os governos militares a tomar essa inicia- tiva. Mais uma vez, porem, mantendo a velha tradis:ao das elites brasileiras, procurando mudar para nao mudar, modernizar sem romper com os antigos las:os de poder, nem ferir os interesses constituidos. A Lei 5·692/71, por sua vez, introduziu mudans:as profundas na estrutura de ensino vigente ate entao. Dessa vez nao ocorreram as disputas entre a Igreja e os defensores da escola publica e laica, ou entre privatistas e publicistas, como nas Constituic;:oes de 1934 e 1946 ou na tramitas:ao da LDBEN de 1961. Os partidarios da esco- la publica estavam desarticulados ou haviam sido cooptados pela reforma, e os interesses privados foram plenamente atendidos. A nova lei assegurava espas:o para o ensino religioso e ampliava o prindpio privatizante, garantindo amparo tecrnico e financeiro a iniciativa privada. · ~ Das mudans:as introduzidas pela referida lei, uma das mais import~ptes foi a de ampliar a obrigatoriedade escolar para oito anos, com a fusao dos antigos cursos primario e ginasial, ou seja, instituiu-se a obrigatoriedade escolar para a faixa etaria entre os 7 e os 14 anos, eliminando-se assim o excludente exame de admissao ao ginasio. Ampliar a escolaridade, antiga demanda de educadores bra- sileiros, exigiria uma mudans:a estrutural na educas:ao elementar, uma vez que a expansao do ensino decorrente requereria urn grau de elasticidade e capacidade de adaptas:ao a realidade inexistente nos antigos cursos primario e ginasial. Como assinala Horta, a alta seletividade do antigo curso primario, a elevada proporc;:ao de vagas na rede particular e a inexistencia de escolas do antigo nivel medio na zona rural tornaram impraticaveis a extensao e a obrigatorieda- de da escolaridade previstas na lei. A lei privilegiou urn enfoque quantitativo e nao considerou aspectos elementares para afians:ar a qualidade do ensino, tais como a necessidade de rever a organizas:ao da escola e as pr6prias condis:oes de efetivas:ao real do ensino basico. Na verdade, o regime militar diminuiu drasticamente os recursos para a educas:ao, que alcans:aram os mais baixos indices de aplicas:ao na hist6ria recente 33 POLITICA EDUCACIONAL do pais, menos de 3% do orc;amento da UnHio. 0 sahirio-educac;ao (Lei 4·420/64), originalmente concebido como objetivo de incre- mentar o ensino ofi.cial de 1° grau, cumpriria o papel de principal fonte de recursos para fazer frente as necessidades do ensino fun- damental. Adicionalmente, garantia apoios politicos mais fortes e seguros ao regime. A Uniao, ao repassar recursos do salario-educa- c;ao aos estados da Federac;ao para a construc;ao de escolas, atendia a interesses de politicos e empreiteiros locais, criando, dessa forma, uma rede de favores e dependencias. Por outro lado, as verbas do salario-educac;ao, gradativamente, foram aplicadas para subsidiar o ensino privado. No momento, entao, em que a escola basica com oito anos de obrigatoriedade exigia uma intervenc;ao clara em seus desdobramentos, fortes investimentos para sua implementac;ao em todo o territ6rio nacional, ampla discussao com educadores e edu- cadoras de todo o pais, o governo limitou-se a ampliar o cliente- lismo e a formular projetos de gabinete. Rezava a lei que o ensino de 2° grau- com tres anos de dura- c;ao- perdia seu tradicional perfil propedeutico e tr<tnsformava-se em uma estrutura que, como recomendava o art. IP, visava "pro- porcionar ao educando a formac;ao necessaria ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de autorrealizac;ao, quali- ficac;ao para o trabalho e preparo para o exercicio consciente da ci- dadania". Em menos palavras, a lei pretendia aliar a func;ao forma- tiva a func;ao profissionalizante. Tambem nesse caso os resultados estiveram Ionge de cumprir as belas promessas. A profissionalizac;ao descuidada e indiscriminada, aliada a expansao das vagas particulares do ensino superior, visava mais controlar a procura por esse nivel de ensino do que propriam.ente a qualificac;ao do nivel medio. Diminuiu-se a carga horaria das disci- plinas de formac;ao basica- afastou-se o ensino de Filosofi.a, Socio- logia e Psicologia desse grau de ensino -, introduziu-se urn grande n{tmero de disciplinas supostamente profissionalizantes, mas que longe estavam de qualificar alunos para a obtenc;ao de urn empre- go. Nao era dificil perceber o despreparo dos cursos para atender as reais demandas do mercado. Frigotto assinala o contraste entre uma escola que brincava de profissionalizac;ao, em seus "labora- t6rios" ou "oficinas", mediante rudimentos de trabalho manual defasados no tempo, com o estagio de desenvolvimento industrial da epoca que experimentava crescente automac;ao do processo de 34 REFORMAS DE ENSINO, MODERNIZA«;AO ADMINISTRADA trabalho. A falacia da func;ao profissionalizante da escola trouxe, como uma de suas mais graves consequencias, a desarticulac;ao da ja precaria escola publica de 2° grau. Urn crime cujos efeitos s6 fizeram se agravar com as politicas educacionais posteriores. Nao se pode deixar de reportar ao fato de que o acentuado descompromisso do Estado em financiar a educac;ao publica abriu espac;o para que a educac;ao escolar, em todos os seus niveis, se transformasse em neg6cio altamente lucrativo. As empresas pri- vadas envolvidas com a educac;ao contavam com todo tipo de faci- lidades, incentivos, subsidios fiscais, credito e mesmo com a trans- ferenda de recursos publicos. 0 favorecimento ao capital privado, aliado ao clientelismo, ao desperdicio, a corrupc;ao, a burocracia e a excessiva centralizac;ao administrativa, minguou, por assim dizer, a fonte de recursos para as escolas publicas. Em meados dos anos 1970, porem, exauriam-se os tempos do "milagre". A crise economica, que coincidiu e se articulou a do capitalismo internacional - estagflac;ao, aumento do prec;o do pe- tr6leo, crise fis¢al do Estado -, gerou forte press~o sobre o regime militar e possipilitou fissuras irremediaveis~m sua 'estrutura de apoio politico. Ifm decorrencia, buscou-se uma mudanc;a na forma de conduc;ao das politicas sodais, inclusive a educac;ao. Em uma especi~·de terapia sintomatol6gica de emergencia, foram adotadas estrategias mais sutis de legitimac;ao e incluidos novos problemas e metas na agenda governamental. Questoes sociais passaram a ser tratadas como quest5es politicas e o discurso da seguranc;a nacional a ceder lugar a outro que enfatizava a integrac;ao social, o redistributivismo e os apelos participacionistas, aspectos reco- mendados pelos Pianos de Desenvolvimento Economico (PND) dos governos militares. 0 regime parecia querer consolidar o que ja- mais fora instituido. Voltou-se, entao, para o desenvolvim.ento de programas e ac;oes dirigidas as areas mais pobres do pais, como os estados do Nordeste, a zona rural e as periferias urbanas. A educac;ao perdia, assim, parte do papel que possuia no projeto desenvolvimentista e tecnocratico, e passou a servir - no plano do discurso - como instrumento para atenuar, a curto prazo, a situac;ao de desigualdade regional e de po- breza gerada pela cruel concentrac;ao de renda decorrente do modelo economico. Urn sem-numero de projetos foi desencadeado nessa di- rec;ao: Polo Nordeste, Programa de Extensao e Melhoria para o Meio 35 POLITICA EDUCACIONAL Rural {EDURURAL), Programas de A<;oes Socioeducativas e Culturais para as Popula<;oes Carentes do Meio Urbano (PRODASEC) e do Meio Rural (PRONASEC), Programa de Educa<;ao Pre-Escolar, entre varios outros, com a inevitavel pulverizas:ao de recursos e a fragmenta<;ao da outrora coesa poHtica educacional. Tais projetos, como nao poderia deixar de ser, padeciam de vicios estruturais. Formulados de forma centralizada em nivel de governo federal, no mais das vezes os recursos alocados perdiam- -se nos entraves burocraticos das muitas instancias administrati- vas intermediarias. Poucos recursos alcan<;avam as necessitadas escolas das regioes ou localidades a que se dirigiam. Mas sua le- gitimas:ao era assegurada mediante uma ideologia compensat6ria que pregava a "participa<;ao da comunidade" -alias, uma recomen- da<;ao do proprio Banco Mundial. 0 governo mantinha, todavia, o controle centralizado das fontes de financiamento e efetivava uma descentralizas:ao fatalmente clientelista na aloca<;ao dos recursos. Ao fim e ao cabo, cabia ao Executivo federal decidir quando e a que descentralizar. As pressoes sobre o regime militar, nch entanto, nao cediam. A crise economica, a infla<;ao, os conflitos entre as diferentes fac<_;:oes militares, o enfraquecimento de suas antigas alian<;as, o desencan- to de setores das classes medias, OS quebra-quebras no Rio deJa- neiro e Sao Paulo, os saques no Nordeste, na Baixada Fluminense e Sao Paulo, o Movimento pela Anistia, as greves operarias organi- zadas pelo novo sindicalismo tornavam imperativas as mudan<;as. Entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Asso- cia<_;:ao Brasileira de Imprensa (ABI), a Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (cNBB), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciencia (sBPc), simbolos de uma sociedade civil fortalecida, agre- gavam, paulatinamente, ao lado de outras, grande capacidade de intervenc_;:ao coletiva nas politicas publicas e, mais particularmente, nas educacionais. A anistia, decretada em 1979, eo retorno de mui- tos exilados brasileiros refor<;aram os movimentos oposicionistas e as preocupa<;oes com o sentido social e politico da educac_;:ao. Nao cabe aqui lembrar as varias facetas desse movimento. Mas e impossivel nao mencionar, pelo menos, as emblematicas e memoraveis reunioes anuais da SBPC, que atraiam milhares de pessoas e a ira, algumas vezes a violencia explicita, dos militares. De todo modo, estavam dadas as condi<;oes para a forma<;ao de urn 36 REFORMAS DE ENS! NO, MODERNIZA<;AO ADMINISTRADA consenso sobre urn projeto educacional pensado em novos termos e que comes:a a tomar forma com .a divulga<;ao das bandeiras de luta dos educadores na decada seguinte. A elei<;ao direta de governadores, a partir de 1982 - mesmo situacionistas, em sua maioria .::..., possibilitou-lhes uma relativa au- tonomia para implementar politicas educacionais proprias. Nessas circunstancias foi organizado o Forum de Secretaries Estaduais de Educas:ao {transformado depois em Conselho Nacional de Secreta- ries de Educas:ao - CONSED), reunindo os secretaries de Educas:ao do pais com o objetivo de defender os interesses comuns de melho- ria da educa<;ao publica nacional, bern como o de subsidiar o MEc na busca de solus:oes que respondessem as diversidades regionais. Ao mesmo tempo, buscavam fortalecer a participa<;ao dos estados na defini<;ao de perspectivas para a politica educacional brasileira e, na medida do possivel, ampliar o consenso sobre as novas pro- pastas educacionais. Em bora enfraquecida, a fors:a do regime militar ainda se fazia sent~lr. Assim, em urn primeiro momento, juntamente com a atua- s:ao g.ireta do MEC nos municipios, so cresceram as contradi<;oes. entr~ o poder centralizador do governo federal - que manteve o controle das verbas, d0s criterios de distribuis:ao e repasse do sala- rio-ed.;_Ica<_;:ao, entre outros - e os propositos de descentralizas:ao. Uma das estrategias utilizadas pelo governo federal foi a de atuar diretamente nos municipios, passando ao largo das administra- <;6es estaduais, aumentando o clientelismo. Outro resultado foi a dualidade sem controle das redes municipal e estadual. A politica confusa pulverizou ainda mais as fontes de financiamento e com- prometeu definitivamente qualquer esfor<;o de planejamento global e articulado da educa<;ao. Em meados da decada de 1980, o quadro educacional brasi- leiro era dramatico: 50% das crian<;as repetiam ou eram excluidos ao Iongo da ra serie do I 0 grau; 30% da populas:ao eram analfabetos, 23% dos professores eram leigos e 30% das crians:as estavam fora da escola. Alem disso, 8 milhoes de crian<;as no 1° grau tinham mais de 14 anos, 6o% de suas matriculas concentravam-se nas tres primeiras series que reuniam 73% das reprova<;oes. Ademais, e importante lembrar que 6o% da populas:ao brasileira viviam abaixo da linha da pobreza. Tais dados forneciam as condis:oes para a exigencia de redirecionamento na legisla<;ao educacional vigente. 37 POLITICA EDUCACJ.ONAL Nessa decada, o bordao da oposic,:ao era mudan~a: de regime poli- tico, na economia, na gestao dos neg6cios publicos - mudanc;:a democratica que se assentasse em uma ativa participac,:ao popular. Como evidencia a hist6ria do pais, nao foi o que ocorreu. 0 regime militar terminou ofi.cialmente em 1985, com a subs- tituic,:ao do general Figueiredo, seu ultimo presidente, por Jose Sarney. Tancredo Neves, eleito pelo Colegio Eleitoral, havia mor- rido antes da posse e seu vice, Sarney, foi entao indicado para a presidencia. Iniciava-se, entao, a "Nova Republica". Seus atributos principais, a ambiguidade e a incoerencia, constituiam o cerne da conciliac;:ao conservadora, n6dulo central da chamada transic,:ao para a democracia conduzida pelo esquema de alianc;as que, "pelo alto", conduziu o processo politico. Conservantismo civilizado, re- velou-se apenas mais uma faceta do mesmo poder autocratico das classes dominantes brasileiras. A esse respeito, nao e desprezivel que a passagem tivesse sido de Figueiredo a Sarney. E a democra- cia, anseio df tantos brasileiros, permaneceria confinada a uma solw;:ao longfnqua, perdida no emaranhado ret6rico das correntes politicas organizadas. No que ¢oncerne a educac;ao, esse periodo manteve o modelo herdado do regime militar, n0t'1damente quanto ao financiamento. Mello e Silva indicam que urn dos indicios da manutenc;ao dessa heranc;a teri.a sido a cria~ao, sob a tutela do MEC - e em meio a uma teia de interesses contradit6rios -, da Uniao Nacional dos Dirigen- tes Municipais de Educac,:ao (uNDIME) eo incentivo ao processo de municipalizac,:ao do
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