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HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO AULA 5 Profª Ana Carolina Contin Kosiak 2 CONVERSA INICIAL Nesta etapa, temos como temas principais a temática da educação como motor do desenvolvimento (a partir da perspectiva do nacional desenvolvimentismo e seus reflexos) e a educação no período ditatorial brasileiro, marcado pela repressão e por diversas reformas e rupturas. Para isso, vamos analisar os principais debates que culminaram na aprovação de documentos relevantes que estruturaram, criaram metas e delinearam o planejamento do sistema educacional. TEMA 1 – LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO DE 1961 Antes de tratar especificamente da institucionalização da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), de 1961, é necessário tratar sobre o contexto e os documentos produzidos nesse momento de debates, oposições e busca pela reestruturação da educação brasileira. O primeiro deles, chamado “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” (1932), teve como objetivo delinear o “planejamento do sistema educacional” e esboçar um “plano de reconstrução educacional” (Saviani, 2013, p. 247). Fixando as linhas gerais do plano, o documento reitera a necessidade de romper com a estrutura tradicional marcada pelo divórcio entre o ensino primário e profissional, de um lado, e o ensino secundário e superior, de outro, formando dois sistemas estanques que concorrem para a estratificação social. Propõe-se, então, um sistema orgânico com uma escola primária organizada sobre a base das escolas maternais e jardins de infância, articulada com a educação secundária unificada, abrindo acesso às escolas superiores de especialização profissional ou de altos estudos. A nova política educacional deverá romper com a formação excessivamente literária, imprimindo à nossa cultura um caráter eminentemente científico e técnico e vinculando a escola ao meio social produtivo, sem negar os valores especificamente culturais representados pela arte e pela literatura. (Saviani, 2013, p. 247-248) Esse documento foi apresentado como um instrumento político que defendia a escola pública, com uma proposta de construção mais ampla e abrangente de um sistema nacional de educação pública. Entretanto, algumas esferas da política e da sociedade brasileira não aceitaram muito bem essas ideias – dentre elas, a Igreja Católica. Tristão de Ataíde, por exemplo, chamou o manifesto de “absolutismo pedagógico”, considerando-o “anticristão, antinacional, antiliberal, anti-humano e anticatólico” (Saviani, 2013). Isso deu 3 início à reação católica, que representou uma ruptura entre os católicos e o grupo dos renovadores. No início dos anos de 1930, a principal bandeira de luta dos católicos na frente educacional era o combate à laicização do ensino. Segundo esse grupo, “somente a escola católica seria capaz de reformar espiritualmente as pessoas como condição e base indispensável à reforma da sociedade” (Saviani, 2013, p. 257-258). A escola leiga era criticada pois estimularia o individualismo e neutralizaria as normas morais, “incitando atitudes negadoras da convivência social e do espírito coletivo” (Saviani, 2013, p. 257). Vê-se que, para os católicos, tanto a laicidade, como o monopólio estatal do ensino atentam contra a ordem natural e divina. Eles reconhecem a importância do Estado, mas entendem que seu papel, no interesse do bem comum, é o de orientar, articular e coordenar as ações da Igreja e da família no exercício da tarefa educativa. E justificavam sua posição com duas ordens de argumento. A primeira ordem era de caráter filosófico-teológico, tendo, pois, sentido universal, fundamentado na filosofia de Santo Tomás de Aquino. A segunda ordem de argumento é de caráter empírico e histórico: a laicidade e o monopólico estatal do ensino chocam-se com a moral e os sentimentos católicos da maioria do povo brasileiro. (Saviani, 2013, p. 258) Como resposta, a Igreja Católica passou a atuar institucionalmente na questão da educação e na avaliação da política para o ensino superior, chegando à conclusão de que era preciso criar as suas próprias instituições. Assim, em 15 de março de 1941, foram oficialmente inaugurados os oito cursos previamente autorizados pelo Vaticano, no núcleo original da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Na esteira da PUC-RJ, foram sendo constituídas outras universidades católicas pelo país. No âmbito político-eleitoral, a posse do governo Dutra, em janeiro de 1946, ainda sob a vigência da Constituição de 1937, significou a permanência no poder das forças que haviam dominado todo o Estado Novo. Com a formação da Constituinte, foi promulgada, em setembro de 1946, a nova Constituição brasileira, que estabelecia, dentre outros elementos, a competência da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional. Para atender a esse dispositivo constitucional, o então Ministro da Educação e Saúde, Clemente Mariani, constituiu uma Comissão para elaborar o anteprojeto da LDB. Nesse processo, foram constituídas três subcomissões: do ensino primário, do ensino médio e do ensino superior. Os estudos que se voltavam para a construção do projeto estavam pautados na discussão, no âmbito pedagógico, sobre a descentralização da 4 educação, a obrigatoriedade do ensino primário e a gratuidade de todos os níveis de ensino. Considerava-se ainda a normatização e a regulamentação dessa obrigatoriedade (Lima, 2017, p. 257). No campo administrativo, havia uma proposta de criação de um Conselho Nacional de Educação, que auxiliaria o ministro, com o intuito de que fossem cumpridas as responsabilidade da União (Lima, 2017). Também foi proposto um sistema federal de educação, para que fosse administrados, de maneira supletiva, a educação e os sistemas estaduais, tendo em vista que a administração e a organização seria responsabilidade dos Estados (Lima, 2017). Entre outras demandas, foi proposto ainda um exame para a conclusão de cursos, com a defesa da autonomia administrativa, didática e financeira das universidades. Um tema controverso foi a proposta de supervisão das escolar privadas pelo poder público. Vê-se que a supremacia dos renovadores na composição da comissão geral foi flagrante. De seus 16 membros, a grande maioria integrava essa tendência pedagógica. E apenas dois representavam claramente a corrente dos educadores católicos. Essa supremacia refletiu-se, obviamente, no projeto que resultou dos trabalhos da Comissão. Do ponto de vista da organização da educação nacional, a concepção dos renovadores era claramente descentralizadora. No anteprojeto da comissão, o sentido descentralizador foi incorporado de forma moderada à vista do estabelecido na Constituição e das peculiaridades da situação brasileira. Assim, o foco foi posto nos sistemas estaduais, admitindo-se, porém, o sistema federal como caráter supletivo. Ideia também cara aos renovadores era a consideração da educação como uma questão precipuamente de caráter técnico-científico. Daí a proposta de um Conselho Nacional de Educação como um órgão decisivo com amplas atribuições não só consultivas, mas também deliberativas. Essa determinação contida no anteprojeto da Comissão foi atenuada pelas modificações introduzidas pelo ministro no projeto original, reforçando o papel de sua pasta ao reduzir o Conselho a um órgão coadjuvante do Ministério. (Saviani, 2013, p. 282) A orientação resultante dos trabalhos da comissão estava em consonância com a coalização conservadora que sustentava o governo Dutra, mantendo a característica de “modernização conservadora” (Saviani, 2013). Entretanto, o projeto foi arquivado pelo líder do governo na Câmara, o ex-ministro da educação da ditadura, Gustavo Capanema. Os embates para a aprovação de novos projetos educacionais não terminam por aqui. Em 1952, ganhou força o conflito entrea instituição de escolas particulares versus escolas públicas. Enquanto, de um lado, havia uma luta pela implantação de uma escola “verdadeiramente pública, universal e gratuita”, de outro, a Igreja Católica sentiu-se ameaçada, pois interpretou que, 5 “universalizando-se a escola pública e gratuita, ela estenderia a todos e atenderia a todas as necessidades educacionais da população. Não haveria, pois, espaço para outro tipo de escola” (Saviani, 2013, p. 288). A argumentação foi amplamente desenvolvida no âmbito doutrinário. Do lado católico, a questão foi centrada na liberdade de ensino, com a precedência da Igreja e da família, ressaltando o caráter supletivo do Estado no que diz respeito à educação (Saviani, 2013, p. 291). Em defesa da escola pública, destacamos três correntes básicas de pensamento: a liberal-idealista, a liberal- pragmatista e a de tendência socialista – essa última contribuiu para que a discussão sobre a LDB chegasse às massas e aos sindicatos operários. Nesse contexto, foi publicado o segundo “Manifesto” (1959), intitulado “Manifesto dos Educadores: mais uma vez convocados”, que teve como objetivo principal a defesa da escola pública, considerando o “dever do Estado de manter e expandir os sistemas de ensino e da necessidade de que os recursos públicos reservado à educação fossem destinados exclusivamente ao ensino público” (Saviani, 2013, p. 296). Além disso, o documento defendia a educação como direito, a partir da noção de liberdade do ensino. Considerando esse percurso, percebemos que a elaboração (e a consequente aprovação) da primeira LDB, em 1961, a partir da edição da Lei n. 4.024/1961, ocorreu em meio a uma ampla discussão teórica sobre as mudanças necessárias para a educação brasileira, com seus reflexos para o período. A LDB/61 voltou-se para a base curricular dos três graus de ensino por ela consignados: o primário, o médio e o superior. O sistema educacional brasileiro foi formulado de acordo a partir da seguinte terminologia: primeiro grau, constituído por escolas maternais, jardins de infância e ensino primário de quatro anos; grau médio, compreendendo dois ciclos, o ginasial de quatro anos, que abrangia o secundário e os cursos técnico-industrial, agrícola e comercial, e um ciclo colegial de três anos, com as modalidades de clássico e científico, que complementavam o secundário, bem como as formações que finalizavam o primeiro ciclo de natureza técnica, além do curso normal, voltado para a formação de professores; e grau superior, com os cursos de graduação, pós- graduação, especialização, aperfeiçoamento e extensão (Marchelli, 2014, p. 1483). A LDB ordenou os princípios curriculares da educação brasileira, com um espírito conciliador muito interessante para a época. Considerava que “a 6 educação nacional está voltada para os princípios de liberdade e os ideais de solidariedade que têm por fim a preservação dos direitos e deveres individuais, da família, das instituições sociais e do Estado” (Brasil, 1961, art. 1º). Tanto liberais como conservadores foram contemplados em relação aos seus desejos historicamente instituídos (Marchelli, 2014, p. 1486). Em que pese a relevância da legislação que dispõe sobre parâmetros e diretrizes do currículo educacional brasileiro – homogeneizando, de certa forma, o tratamento que deve ser dado a ela em dimensões nacionais –, a LDB foi um instrumento legislativo repleto de lacunas, com diversas más formulações, oferecendo diferentes interpretações de sentido. Dentre as críticas ao texto, é possível citar: descentralização abrangente do sistema de ensino; falsa autonomia financeira dos conselhos de educação; proposta curricular pouco compreensível; massificação dos métodos de produção didática; e dificuldade de aplicação de suas disposições (Marchelli, 2014). TEMA 2 – EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO Durante o governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1961), a educação foi tratada como um “instrumento eficaz de difusão ideológica para qualificar a mão de obra” (Amâncio; Castioni; Magalhães, 2021, p. 103). Em posição divergente, no governo de Jânio Quadros (1961), foi considerada “instrumento para ampliar a consciência do povo para o fortalecimento nacional” (Amâncio; Castioni; Magalhães, 2021, p. 103). Já no governo de João Goulart (1961-1964), “a educação se tornou o meio para conscientizar o povo da necessidade de uma melhor distribuição dos resultados do crescimento econômico já atingidos” (Amâncio; Castioni; Magalhães, 2021, p. 114). Logo, afirmamos que a educação ocupou um lugar de destaque justamente pela sua capacidade de impulsionar o desenvolvimento nacional. Embora houvesse a concordância de que o desenvolvimento dependia da educação como fator social construtivo, havia uma divergência na compreensão do que seria desenvolvimento: Na visão dos educadores como Anísio Teixeira entre outros, que se articulavam em torno do Manifesto dos Pioneiros, desenvolvimento confundia-se ou tinha como pressuposto básico a democracia, ou seja, um Estado democrático nunca deixa de atender culturalmente a todos para privilegiar somente alguns. Isso porque para eles um Estado que privilegia poucos compromete seu próprio desenvolvimento econômico. Esta era, pois, uma concepção humanista de 7 desenvolvimento. Na cabeça do governo, o que estava em jogo era a sobrevivência do sistema, ou seja, nossa herança cultural e política [...] dos laços que nos ligavam à velha ordem social aristocrática de velho sistema pré-capitalista – abrir a educação a todos, realizar a tarefa de conscientização das massas, seria pôr em risco a própria sobrevivência do sistema. (Fazenda, 1985, p. 46-47) Assim, em 1955, foi instituído o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Os educadores do ISEB defendiam um modelo de educação que oferecesse ao aluno a percepção e a compreensão das condições políticas e ideológicas com que se defrontava (Amâncio; Castioni; Magalhães, 2021, p. 115). Eram objetivados o estudo, o ensino e a divulgação das ciências sociais, que seriam aplicados à análise e à compreensão crítica da realidade brasileira. Com isso, os seus idealizadores acreditavam que o Brasil ultrapassaria a fase de subdesenvolvimento, pela intensificação da industrialização (Abreu, 2015). Nesse cenário de final da década de 1950, a palavra de ordem que embasou os fóruns organizados pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) foi economia. Em sua participação nos fóruns, o Brasil se posicionou em defesa da tese de que era necessário promover o desenvolvimento econômico da América Latina. Para isso, foram realizadas diversas conferências que buscavam a vinculação da educação com a economia. Os relatórios apresentados na Cepal ofereceram um importante diagnóstico da realidade da educação no país, contribuindo para a definição de metas e diretrizes a serem seguidas, o que culminou no processo de elaboração do primeiro PNE. Em contrapartida a essa visão mais progressista, foi fundado, em 1962, o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), resultado da fusão de grupos de empresários organizados na região sudeste. O instituto promoveu intensa campanha antigovernamental, utilizando os mais diversos meios de comunicação (além do financiamento de cursos, seminários, conferências públicas e publicação de livros), na defesa da “democracia” e da livre iniciativa, buscando sobretudo barrar a “infiltração comunista” no país. TEMA 3 – PNE DE 1962 O primeiro Plano Nacional de Educação (PNE) foi elaborado no ano de 1962, pelo Conselho Federal de Educação, atendendo às disposições da Constituição Federal de 1946 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961. O documento foi elaborado por um grupo de educadores, 8 composto por nomes importantes da educação brasileira (em especial considerando a discussãode suas vertentes e as propostas de transformação do cenário educacional), com liderança de Anísio Teixeira. O Ministro da Educação do período era Darcy Ribeiro. Anísio Teixeira foi o conselheiro mais atuante do Conselho Federal de Educação (CFE) entre os anos de 1962 e 1964, tendo sido responsável pelos parecereis mais substantivos, como o relativo ao Plano Nacional de Educação, entre 1964 e 1968 (Saviani, 2013). Considerava a educação como “elemento- chave do processo de inovação e modernização da sociedade que em alguns contextos ele denomina processo revolucionário” (Saviani, 2013, p. 222). Anísio permaneceu nessa atividade até 1951, quando retornou ao Rio de Janeiro, assumindo nesse mesmo ano, no governo federal, o cargo de secretário geral da CAPES, na época Campanha e depois Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior, que ainda hoje desempenha papel central na educação superior de todo o país. Em 1952 assumiu também o cargo de diretor do INEP, então denominado Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, acumulando com a função exercida na CAPES. Permaneceu em ambos os postos até 1964, quando, em decorrência da ditadura militar, teve seus direitos políticos cassados e foi afastado da vida pública, perdendo todos os seus cargos, com exceção da condição de membro do Conselho Federal de Educação (CEF), cujo mandato se encerraria em 1968. (Saviani, 2013, p. 221) Apesar da trajetória de grande importância no campo da educação brasileira, a sua atuação enfrentou diversos obstáculos, relacionados às resistências “que forças sociais ainda dominantes no Brasil contrapunham às transformações da sociedade brasileira que visassem a superar o grau de desigualdade que sempre marcou a nossa realidade” (Saviani, 2013, p. 222). Em resumo, o seu ideal de educação abrangia a superação das desigualdades, para que não fosse tratada apenas como algo permitido apenas às elites. Para encaminhar a solução dos problemas educacionais brasileiros, Anísio Teixeira empenhou-se na organização e na administração do sistema público de ensino. Nesse contexto, insere-se a discussão que culminou na aprovação do texto do Plano Nacional de Educação (PNE). O documento definia metas quantitativas e qualitativas para os níveis de ensino. Trazia uma preocupação com as matrículas nas escolas, a inclusão no sistema escolar e a luta contra a evasão. Sua intenção era de melhorar progressivamente o ensino e aperfeiçoar os serviços de educação. Além das metas, foram estabelecidas normas para a aplicação dos recursos do Fundo Nacional de Ensino, o que também possibilitou novas linhas de financiamento, 9 buscando favorecer experiências educativas e culturais com as camadas populares, como a viabilização do Plano Nacional de Alfabetização. Entretanto, o PNE foi praticado apenas nos anos de 1962 e 1963, por conta do início da ditadura-civil militar, em 1964, que estabeleceu novos parâmetros para a educação brasileira, como trataremos na sequência. TEMA 4 – EDUCAÇÃO NA DITADURA CIVIL-MILITAR De 1964 a 1985, o Brasil vivenciou práticas arbitrárias de governo, com a utilização sistemática e cotidiana da violência, como forma de garantir a “ordem” nacional, silenciar pessoas e grupos e assegurar que os planos de governo fossem aplicados (Kosiak; Gonçalves, 2020, p. 125). Como resultado, cassações aos direitos políticos, restrições às liberdades e violações a toda sorte de direitos humanos tornaram-se lugares-comuns em nossa sociedade. A ditadura civil- militar brasileira se consolidou e se institucionalizou, servindo de modelo a outros governos autoritários e anticomunistas latino-americanos, trabalhando incessantemente para impedir experiências de esquerda, no território nacional e em países vizinhos. O regime ditatorial brasileiro não apresentou uma visão hegemônica. Mesmo aqueles grupos que convergiam sobre a oposição ao governo João Goulart divergiam bastante entre si. Daniel Arão Reis Filho (2014, p. 53) destaca as “forças díspares que haviam apoiado o golpe: liberais conservadores, conservadores arcaicos, liberais-internacionalistas, corporativistas-estatais, anticomunistas radicais”. Rodrigo Patto Sá Motta (2014, p. 288-89) expõe esse dissenso no âmbito das políticas educacionais, afirmando que “o grande paradoxo do regime militar – e essa afirmação não vale apenas para o sistema universitário – residiu no fato de expressar, a um só tempo, impulsos conservadores e modernizantes que por vezes geraram ações contraditórias”. No início da década de 1960, ainda sob o governo civil e eleito, diversos fatores contribuíram para o esgotamento do modelo de educação escolar vigente. Nessa época diferentes projetos de reforma de ensino se delineavam. O golpe de 1964 se apropriaria dessa discussão, direcionando-a para os seus próprios objetivos (Saviani, 2013). É possível evidenciar isso a partir de, pelo menos, duas concepções de educação internas ao regime civil-militar: a educação patriótico-conservadora e a educação tecnicista (Ehrlich, 2018). A primeira era defendida pelos setores 10 mais conservadores da sociedade e do regime (Ehrlich, 2018, p. 340). A sua ênfase estava no âmbito da moral. O maior símbolo disso talvez fosse “a introdução como disciplinas obrigatórias da grade curricular nas escolas brasileiras de Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política Brasileira (OSPB)” (Ehrlich, 2018, p. 341). A escola era vista como um meio de preparação de mão de obra e de “difusão de valores e atitudes que auxiliassem na legitimação do governo” (Gonçalves; Ranzi, 2012, p. 32). Isso acontecia com a imposição de valores e com a censura e o controle do ambiente e da atividade profissional dos docentes – por exemplo, através de agentes infiltrados em salas de aula e da exigência de atestados de antecedentes para os professores (Ehrlich, 2018, p. 344). Valério (2007, p. 14-15) traz outros exemplos: Em consonância com esses objetivos, fazia-se o culto à bandeira, a organização em filas para a entrada dos alunos, o uso do uniforme escolar etc. Dessa forma, dava-se o treinamento da obediência às regras e à ordem, mutas vezes, compreendida pela comunidade das escolas como questão importante de respeito, bons modos e asseio. A segunda concepção era defendida principalmente por setores civis (empresariado e liberais que apoiaram o golpe). Preconizava uma educação supostamente despolitizada e voltada para a qualificação da mão de obra para o mercado de trabalho (Ehrlich, 2018, 341). “Com base no pressuposto da neutralidade científica e inspirada nos princípios de racionalidade, eficiência e produtividade, a pedagogia tecnicista advoga a reordenação do processo educativo de maneira que o torne objetivo e operacional” (Saviani, 2013, 381). De modo geral, a concepção tecnicista de educação se centrava na perspectiva econômica, enquanto a educação patriótica preconizava a moral e a cultura (Ehrlich, 2018, 341). Vejamos: Uma das teorias norteadoras da educação brasileira desse período foi elaborada por um grupo de norte-americanos, em 1950, coordenados por Theodore W. Schultz. A Teoria do Capital Humano (TCH), como ficou conhecida, buscava explicar os principais motivos para as variações de níveis de desenvolvimento socioeconômico entre os países. De acordo com os princípios de Schultz, a relação dada entre qualificação, força de trabalho e crescimento econômico é direta, na medida em que a aquisição de conhecimentos levaria ao aumento de produtividade, à elevação de renda do trabalhador e, consequentemente, ao desenvolvimento da sociedade como um todo (Valério, 2007, 28) A reforma universitária de 1968 produziu efeitos paradoxais no ensino superior brasileiro. Por um lado, modernizou uma parte significativa das 11 universidades federais e de determinadas instituições estaduais e confessionais, que incorporaramgradualmente as modificações acadêmicas propostas pela Reforma (Martins, 2009, p. 16). Foram criadas condições propícias para que determinadas instituições passassem a articular as atividades de ensino e de pesquisa. Além disso, o regime departamental foi introduzido e a carreira acadêmica foi institucionalizada (Martins, 2009, 16). Também foi criada uma política nacional de pós-graduação, conduzida pelas agências de fomento do governo federal. Por outro lado, surgiram condições para a formação de um ensino privado em instituições organizadas a partir de estabelecimentos isolados, voltados para a mera transmissão de conhecimento de cunho profissionalizante (Fernandes, 1975). O ensino superior privado que surgiu após a Reforma de 1968 tende a ser qualitativamente distinto, em termos de natureza e objetivos, do que existia no período precedente. Trata-se de outro sistema, estruturado nos moldes de empresas educacionais voltadas para a obtenção de lucro econômico e para o rápido atendimento de demandas do mercado educacional. Esse novo padrão, enquanto tendência, subverteu a concepção de ensino superior ancorada na busca da articulação entre ensino e pesquisa, na preservação da autonomia acadêmica do docente, no compromisso com o interesse público, convertendo sua clientela em consumidores educacionais (Martins, 2009, p. 17) A educação profissionalizante atingiu também os 1º e 2º graus, especialmente com a edição da Lei n. 5.692/1971. Entre as justificativas pela reformulação do ensino, foi dado especial destaque à preocupação com o “homem concreto” e com um ensino mais articulado e integral, útil às necessidades da sociedade da época. Em outras palavras, buscava-se afirmar é que, se muitos não conseguissem chegar à universidade, teriam ao menos uma profissão para ingressar no mercado de trabalho, podendo servir à nação de alguma forma. A carta de exposição dos motivos da lei assim expõe: Não se entende, evidentemente, desenvolvimento sem educação, pois que a educação é o pressuposto e lídimo fundamento do progresso econômico, social, tecnológico e científico. Por isso, os novos sistemas preconizam preparar o homem para as responsabilidades do cotidiano real, com educação geral e humanística de primeiro grau e técnica e profissionalizante no segundo grau, a fim de que o estudante brasileiro, mesmo sem alcançar a Universidade, possa desde logo afirmar-se como elemento produtivo dentro da comunidade, tão respeitado quanto útil no seio da família e da sociedade. (Costa, 1971, p. 1) Em relação ao tema do desenvolvimento, trata-se de um assunto caro à ditadura, que tinha no desenvolvimento econômico um de seus eixos 12 fundamentais. Segundo Michel Ehrlich, até a década de 1960, o discurso oficial é que a educação é uma “benesse concedida por um Estado paternalista” – que como tal, não necessariamente abrangia a todos. Na década de 1960, em contrapartida, esse discurso começa gradualmente a ser alterado, pois a educação passa a ser tratada como um “direito dos cidadãos e um dever do Estado” (Ehrlich, 2018, p. 350). “Passa-se de uma população necessitada para uma população com direitos; e de um Estado outorgador para um Estado com deveres, isto é, um Estado que deve a escola à população” (Machado, 1983, p. 144). TEMA 5 – EDUCAÇÃO, MUDANÇA E TRANSIÇÃO No fim da década de 1970, o governo Geisel (1974-1979) gerenciou um processo de liberalização política controlada, dando início a uma fase de lenta, gradativa e segura distensão. A crise do desenvolvimento econômico do país, por conta do aumento do custo do petróleo e do crescente endividamento externo, levou à perda de legitimidade econômica do regime civil-militar, o que feria a legitimidade do regime, que muito se sustentou devido ao projeto de “milagre econômico”. Entretanto, a transição para um governo com pretensões democráticas ocorreu sem rupturas evidentes. As mudanças na conjuntura política, na verdade, registraram uma continuidade política. A transição brasileira foi caracterizada não apenas pela continuidade institucional entre o antigo e o novo regime, mas também pela manutenção de um conjunto de valores que os militares arraigaram em toda a máquina pública, valendo-se do consenso que puderam obter com as elites. O fim do AI-5 e a Lei de Anistia, editada em 1979, são indicativos desse caminho. Além disso, essa época teve um caráter silencioso, com esquecimento do passado, uma vez que o discurso vigente buscava criar um governo civil que impulsionasse o crescimento do Brasil. Para isso, seria necessário esquecer o passado. Segundo Abrucio (1998), as eleições de 1982 tiveram o caráter de eleições fundadoras, em um momento de reorganização política do Brasil. O Brasil vivia um contexto de crise do poder central e de falência da antiga aliança que sustentava o Estado nacional. Nesse período, encontramos um sistema político que obedecia mais a padrões regionais do que nacionais. A própria 13 Constituição Federal de 1988 estabeleceu o seu contorno legal. Soma-se a isso o fato de que a redemocratização teve como uma de suas mudanças mais importantes o fortalecimento do poder legislativo. Somente com o fim da ditadura civil-militar outras concepções conseguiram ganhar espaço no âmbito das políticas oficiais (Saviani, 2013). Mesmo assim, “um ensino eminentemente tecnicista e voltado para a aquisição de competências valorizadas no mercado de trabalho ainda prepondera deste então” (Ehrlich, 2018, p. 363). A partir desse período, inaugurado em 1985, encontramos um sistema educacional com forte presença dos educadores e suas representações de classe. Além disso, em razão de maior participação popular nos processos de mudança, é possível verificar a presença de demandas e reivindicações populares, especialmente a partir da criação, da participação e do desenvolvimento de fóruns e conferências para se discutir e pensar a educação. NA PRÁTICA Um bom exemplo de mídia para contextualizar os conteúdos é o filme argentino La Historia Oficial (A História Oficial), de 1985, primeiro filme argentino a vencer o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1986. A película narra a história de Alicia, uma professora de História que, impossibilitada de ter filhos, passa a criar a menina Gaby, uma criança que o seu marido levou para casa, em uma espécie de adoção “não formalizada”. Alicia, apesar de professora, não tinha consciência do período histórico ditatorial vivenciado pela Argentina, no período que compreende os anos de 1976 a 1984. Quando a sua amiga Ana retorna do exílio, as duas começam a conversar sobre a realidade que assolava o país – o que culmina na desconfiança de que Gaby é filha de desaparecidos políticos perseguidos durante a ditadura. A narrativa mostra, justamente, a personagem principal em um processo de (re)descobrimento da história recente de seu país, e também de sua história pessoal, com questionamentos em relação à estrutura política e repressiva do país, que abrangem os desaparecimentos forçados. Apesar de a história ser ambientada na Argentina, é possível perceber muitas semelhanças e conexões com o período ditatorial brasileiro. Além disso, é interessante analisar como ela se constrói ao redor da vida de uma professora, cuja atividade era controlada pelo Estado – por não poder refletir e se questionar 14 sobre a sua realidade, ela acabava apenas reproduzindo o conteúdo que recebia, a própria visão estatal sobre o regime. FINALIZANDO É importante entender que o contexto que compreende as décadas de 1940 a 1980 influenciou profundamente a estrutura do ensino brasileiro como a conhecemos hoje. Assim, o seu estudo continua sendo essencial perceber as continuidades vivenciadas, além das necessárias revisões e adaptações. No entanto, mais do que apenas conhecer os projetos e idealizações da educação brasileirano período, é necessário compreender que esse processo e esse projeto enfrentaram (e enfrentam) debates, lutas e disputas, tanto por conta do conteúdo, como pela busca do controle de seu desenvolvimento. 15 REFERÊNCIAS ABREU, A. A. de. O ISEB e o desenvolvimentismo. Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/artigos/Economia/ISEB>. Acesso em: 25 abr. 2022. ABRUCIO, F. Os barões da federação: os governadores e a redemocratização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1998. AMÂNCIO, M. H.; CATIONI, R.; MAGALHÃES, G. L. de. 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