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Literatura, cinema e realidade: novas experiências ESTÉTICAS
 J. Angélica Guilherme da Silva 
 Universidade Federal de Pernambuco
RESUMO: O presente estudo tem por objetivo apresentar as relações intersemióticas entre o conto A Escuridão do escritor e cineasta brasileiro André Carneiro e o filme O Ensaio Sobre a Cegueira de Fernando Meirelles como adaptação da obra de José Saramago na tentativa de veicular possíveis diálogos entre diferentes artes.
PALAVRAS-CHAVE: literatura, cinema, intersemiose
ABSTRACT: This study aims to present the relationship between the tale intersemiotic Darkness writer and filmmaker André Carneiro and Brazilian film The Blindness by Fernando Meirelles and adapted the work of José Saramago in an attempt to convey possible dialogues between different arts. 
KEYWORDS: literature, cinema, intersemiosis
DO MUNDO PARA OS MUNDOS: O CONTO, O ROMANCE E O CINEMA
"A grandeza de uma obra de arte está fundamentalmente no seu caráter ambíguo, que deixa ao espectador decidir sobre o seu significado."
Theodor Adorno
A FUSÃO DAS LINGUAGENS: JOSÉ SARAMAGO, ANDRÉ CARNEIRO E FERNANDO MEIRELLES
Pensar a relação que hoje o cinema, enquanto arte estabelece com a literatura, é pensar nas várias formas de dizer o mundo sob as diferentes visões que as artes nos podem ofertar. Embora essa relação tenha sido conturbada e tenha despertado sérias discussões, por ainda haver um preconceituoso julgamento de valor acerca da relação hierárquica que a literatura parece exercer sobre o cinema, é bem verdade que as adaptações fílmicas carregam consigo uma nova forma de dizer a realidade e não apenas um transpor de textos de uma unidade a outra, já que é o cinema um exemplo de inter-relação de vários discursos. 
O livro O Ensaio sobre a Cegueira do romancista português José Saramago, publicado em 1995, é antes um retrato do possível real do que dele propriamente dito. Partindo da descrição de uma obra ficcional como fonte empreendedora de múltiplas facetas do mundo, a literatura acaba por invalidar o conceito mimético de cópia da realidade e dimensioná-lo a recriação da criação, se tomarmos a realidade como fabricação. Assim, O Ensaio sobre a Cegueira trará considerações acerca do mundo para construção de um mundo que é antes deste que daquele e nos convidará a um mergulho luminoso numa cegueira que mais revela que mascara uma realidade. 
Construindo um universo de imagens, Fernando Meirelles figura nas telas as letras saramaguianas e com maestria conduz o telespectador a sentirem-se tão cegos e tão sãos quanto os personagens de “branca visão” que não vêem. Essa adaptação da obra de Saramago vai às telas em 2008. Embora o Nobel tenha alegado que o cinema destrói a imaginação, e por isso vetou várias tentativas de adaptação de sua obra, acreditamos que a curiosidade de ver outra visão particular de uma obra pré-existente acabou por fazendo-o ceder. Temos agora duas formas de perceber o mundo dos cegos e um dizer diferente sobre uma mesma cegueira branca. É a realidade sendo transfigurada pela arte e as artes, (cinema e literatura), dialogando entre si para dizer aquilo que deixa de ser esta ou aquela para ser ela mesma por uma relação intersemiótica. 
As primeiras linhas que abrem o romance português nos ofertam uma visão já cansativa e vertiginosa do excesso de luz que assola a modernidade. Temos já dentro da própria obra um diálogo coma pintura. A cena descrita pelo narrador mais se parece uma tela impressionista aos nossos olhos.
“O disco amarelo iluminou-se. Dois dos automóveis da frente aceleraram antes que o sinal vermelho aparecesse. Na passadeira de peões surgiu o desenho do homem verde. A gente que esperava começou a atravessar a rua pisando as faixas brancas pintadas na capa negra do asfalto, não há nada que menos se pareça com uma zebra, porém assim lhe chamaram”. (Saramago, 1995, p. 11).
 Temos aqui uma sugestão de imagens puramente acentuadas ao descrever o excesso que os olhos são obrigados a ver. A arte se vale da arte para comunicar. Na obra de Fernando Meirelles, a obra abre-se numa cena de coloridos como podemos ver nas figursa adiante. Os faróis, o sinal verde, vermelho, a faixa de pedestres preta e branca num dia claro. Saramago nos sugere, Meirelles nos mostra, as duas obras juntas nos levam a um lugar que a arte bem conhece: um lugar intersemiótico. 
 
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Em O Sentido do Filme, Eisenstein propõe uma investigação pelo campo da cor. Sua escolha se dá pela correspondência pictórica que existe entre o som e as emoções sentidas. O fastio que sentimos ao ver o excesso de luz em Meirelles é uma emoção que surge através do uso da cor. No filme pelas imagens, na narrativa pela sugestão. (1990, p.49-72).
Partindo de uma realidade mecânica, a qual embota o homem em formas sociais pré- fabricadas, encontramos A Escuridão. Escrito pelo cineasta e escritor André Carneiro em 1963, o conto nos retira do modelo pronto e nos lança na natureza obscura de nós mesmos. A escuridão que paira sobre a cidade indaga o homem: quem és tu? E este agora é um indivíduo ainda mais fragmentado. 
Ao iniciar a investigação que A Escuridão estabelece com a obra de Saramago e, por conseguinte de Fernando Meirelles, pudemos experienciar três recortes na forma de enxergar um dado da realidade. O primeiro recorte temos na obra de Carneiro, o qual nos oferece um mundo que escurece subitamente. Todas as pessoas têm suas vidas alteradas por haverem perdido a luz. O início da escuridão é, assim como em Saramago e Meirelles eterno pavor. No entanto, em Carneiro temos a sugestão de total escuridão. Os personagens são cegos de luz, pois não a tem.
Aqueles mesmos homens de bengala branca e óculos escuros que perguntavam humildes qual o ônibus que vinha, ou se distanciavam devagar, atravessando os olhares piedosos dos passantes, eram agora rápidos, eficientes, milagrosos com sua habilidade manual. (...) Tornara-se de todo o mundo a desgraça particular deles. Alguns esqueciam-se, às vezes, que aqueles homens que contavam sua vida de um mês atrás no mundo das luzes e cores, tornavam-se inexperientes como criancinhas na negridão que eles dominavam. (...) Quanta piedade hipócrita e superficial teriam suportado com seus óculos escuros e bengalas brancas (CARNEIRO, 1963, p. 151).
O segundo quem nos dá é o narrador de O Ensaio sobre a Cegueira. O mundo é tão claro que acaba por cegar. Não que tenha sido esse o motivo físico da cegueira, haja vista que para esse não tem explicação, mas do ponto de vista filosófico, se enxergarmos a sociedade como presa as aparências, foi o apreço ao que se vê que tornou cegos os homens. “A certa altura apercebeu-se que tinha começado a olhar as luzes de um modo que estava a se tornar obsessivo”. (SARAMAGO, 1995, p. 27).
O terceiro é apresentado nas cenas de Meirelles, quando ao recortar a realidade do romance a desmascara com um excesso de luz aterrador que mais cega que permite ver. É a impossibilidade de não ver. A mesma realidade é apresentada dita diferente. Nas três distintas obras temos o “não ver”, ou como se pode chamar uma cegueira. No entanto, cada uma delas, embora cause os mesmos desconfortos, a mesma insegurança e sentimento de impotência nos personagens, embora seja essa ausência do ver a mesma que altera os modos convencionais de se relacionarem os homens uns com os outros, é mostrada e percebida de forma particular. Em A Escuridão, assim como em O Ensaio sobre a Cegueira temos o surgir de um mundo caótico. Uma obra é meramente negra, as outras acentuadamente brancas, nas três, porém o “não ver”. As construções ficcionais aqui apresentadas foram cuidadosamente selecionadas para este estudo por mostrarem num mesmo idioma e sobre um mesmo dado do real, uma ótica singular do mundo que muito se relacionam, embora não possam ser compreendidas como cópias umas das outras.Isso nos permite falar nas relações entre as artes que dizem algo novo, independente e diferente do que dizem sozinhas. 
De acordo com Júlio Plaza (2003), a tradução intersemiotica é a tradução que consiste em interpretação de signos entre sistemas semióticos, ou ainda, de um sistema de signos para outro, e está pautada na utilização de suportes, os quais apresentam estruturas técnicas e expressivas necessárias para que as linguagens se materializem em signos que, por sua vez, servem também como interfaces, ou seja, mediações. A interpretação de signos lingüísticos por outros não lingüísticos, significa uma transmutação de signos lingüísticos para não lingüísticos, paralelizando uma posição verbal x não-verbal. A tradução nos diversos meios se dá a “partir de uma estratificação ou demarcação de fronteiras nítidas entre diversos e diferentes sistemas de signos, dividindo-os em códigos separados, tais como: verbal, pictório, fotográfico, fílmico, televisivo, gráfico, musical, etc.” (PLAZA, 2003 p.67).
Para estudar, portanto, a intersemiose é necessário alargar o conceito de texto e entendê-lo como discurso. Processo pelo qual se compreende todas as artes. Assim, poderemos entender as relações entre as obras aqui tomadas para análise como uma forma de compreender um texto que significa com outro texto. Dominique Maingueneau nos afirma que “a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de troca entre vários discursos [...]”. (1984, p. 11-13). A prática discursiva se define pela unidade de um conjunto de enunciados, e também é uma prática intersemiótica que integra produções na dependência de outros domínios semióticos. 
A narrativa de Carneiro nos leva de um lugar organizado e aparentemente pacífico-momento em que Wladas se encontra no seu apartamento acreditando que a sombra escura logo se dissipará, (C.f: carneiro, 1963, p.151), a um lugar em que os cegos realmente são os únicos a se sentirem confortáveis e são os mesmos a levarem segurança aqueles que antes viam tudo claro. “O cego contou-lhe que auxiliaram pessoas perdidas e recolheram algumas, mas o estoque de alimentos era escasso, não podiam hospedar mais ninguém. A escuridão permanecia, sem nenhum sinal de que fosse terminar”. (Ibidem, 151). A narrativa saramaguiana, da mesma forma, e isso é curioso observar, pois trata-se de obras em tempos distintos, a distância temporal de uma criação a outra é de aproximadamente 32 anos e percebe-se que Saramago não toma o conto de Carneiro como inspiração, nos leva de um conforto aparente, em que em sua velocidade a cidade caminha, entre cores e luzes, a uma dependência mútua onde cegos ajudarão cegos. Assim também, Fernando Meirelles ao sugerir a interdependência dos personagens agora sem luz após deixarem o manicômio, de mãos dadas para não perderem-se uns dos outros, numa linguagem fora da escrita, e muito mais oral e fotográfica, arrisca dizer essa realidade de cegos. As ações tanto em uma obra quanto em outra não são descritas a toa, há uma necessidade de representar o mundo sob uma ótica. Ponty sobre isso afirmará: “Do mesmo modo que não falamos por falar, que falamos a alguém de uma coisa ou de alguém e que, nessa iniciativa da palavra, está implícita uma visão de mundo e dos outros da qual tudo o que dizemos está suspenso. (Merleau-Ponty, 1971, p. 102). A narrativa escrita nos conta, a cinematográfica nos mostra, as duas juntas nos revelam o indizível.
O crítico Ricardo Zani destaca o cinema “como sendo uma imagem em movimento dialógica por excelência” (2003, p.125). A forma dita do transtorno causado pela ausência da visão na obra de Meirelles põe em movimento a narrativa saramaguiana. Agora a realidade é figurada por três olhares e a visão dessas três artes deságua numa outra linguagem que somados conto, romance e cinema nos oferta uma novíssima e porque não dizer particular forma de dizer o mundo. A isso nos permite as relações intersemióticas. Às novas experiências estéticas sobre uma mesma realidade. Seria a experiência não vista em cada obra isoladamente, mas na inter-relação entre estas. 
As relações intersemióticas entre O ensaio sobre a Cegueira e A Escuridão acontecem no plano dos objetos tomados do real para a ficção: a cegueira e o comportamento humano num mundo cego. Já as que se acentuam entre romance e sua adaptação fílmica é uma diferente forma de dizer o mesmo. Uma cegueira branca cujas razões extrapolam a lógica humana. Saramago define-a como uma cegueira branca leitosa, Meirelles a denuncia pelo excesso de luz. Após de estabelecer o contrato de leitura com a ficção, lido o romance e assistido ao filme, o leitor-telespectador acaba por sentir um prazer estético que é mais que em um e mais que no outro. É um prazer de sentir na tela as letras e as letras na tela. Embora o romance seja a “obra-mãe”, o filme não é menor, um outro recorte é feito e outras lentes são acionadas.
 
É bem verdade que o escritor e roteirista têm diferentes percepções da matéria narrada, e por isso a adaptação fílmica não pode ser percebida como cópia, mas novo texto, cuja relação com o primeiro desaguará numa obra que apenas é sentida por quem as percebe em suas relações. Na adaptação de Meirelles, a voz do narrador é conservada para indicar as ações das personagens, é como se o filme fosse agora o livro: “Y durante uma canción... el reino de los ciegos si reunió... junto a un radio de AM... no sólo se podía imaginar lãs cabezas inclinadas... los ojos abiertos las lágrimas... porqué perguntan si son lágrimas de alegria o tristeza?...”(00h41min:27-00h42min:00). Em Saramago, a fala do narrador se funde a do personagem como num filme: Acompanhou-a até a cama, Vá, deite-se, a senhora é muito boa, disse a rapariga, depois, baixando a voz, não sei que fazer[...]”. (SARAMAGO, 1995, p.101).
 Xavier (1983) nos dirá que a adaptação deve dialogar não somente com o texto original, mas também com o seu contexto, atualizando o livro, mesmo quando o objeto é a identificação com os valores nele expressos. Assim, numa linguagem intersemiótica, o contexto também acenderá o novo prazer. Tanto o de uma obra, como o da outra, como o de ambas concomitantemente.
De acordo com Lauriti, (2002, p.63), “as novas leituras, versões, adaptações, interpretações, traduções, inspirações e criações” são geradas a partir de textos desmaterializados, cuja transformação ocorre num processo cultural intertextual ou multitextual para assim significarem, definindo-se agora pela presença do outro.Nesse encontro sugestivo de vozes e palavras, de cores e sons, dos ditos e escritos são bordadas novas formas. É como a visão do céu que só pode ser sentida pela visão do inferno. É o definir-se pelas relações com o outro que permitirá uma nova experiência que é mais literária, artística e estética que aquela dita num só monólogo o que se queria dizer com o outro.
REFERÊNCIAS
CAMPOS, Flávio de. Roteiro de cinema e televisão: A arte e a técnica de imaginar, perceber e narrar uma estória. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. 
CARNEIRO, André. "A Escuridão". In: Diário da Nave Perdida. São Paulo: EdArt, 1963.
CUNHA, Renato. As Formigas e o Fel. Literatura e cinema em um copo de cólera. Annablume, 2006.
EISENSTEIN, Sergei. (1990). O Sentido do Filme. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, p. 49-72.
FERREIRA, Sandra Aparecida. "Formas Híbridas de Representação da Barbárie em Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. In: Caderno de Resumos: 54º Seminário do GEL. São Paulo: Ferrari Editora e Artes Gráficas, 2006.
AUMONT, J. A imagem . 2. ed. Campinas: Papirus, 1995.
LAURITI, Nádia C. Bakhtin: do palimpsesto ao hipertexto. Dialogia, V.1, Out., 2002. 
LEITE, Lígia C. M. O foco narrativo. 7ª ed. São Paulo: Ática, 1994. 
MACHADO, A. A câmera subjetiva. In: Regimes de Imersão e Modos de Agenciamento. XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação: Salvador, 2002. 
 LAURITI, Nádia C. Bakhtin: do palimpsesto ao hipertexto. Dialogia, V.1, Out., 2002. 
PLAZA, Júlio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.210 p.
PONTY, Merleau. O invisível e o invisível. São Paulo, Perspectiva, 1971.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2003
ZANI, Ricardo. Intertextualidade: considerações em torno do dialogismo. In: Em Questão. Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 121-132, jan./jun., 2003. 
XAVIER, Ismail (org). A ordem do olhar: a codificação do cinema clássico, as novas dimensões da imagem. In: A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilmes, 1983.
REFERÊNCIAS FÍLMICAS
MEIRELLES, Fernando. Ensaio Sobre a Cegueira, 2008.

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