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Brasília-DF. Burocracia e Gestão De Políticas PúBlicas Elaboração Leandro Molhano Ribeiro Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário APRESENTAÇÃO .................................................................................................................................. 4 ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA ..................................................................... 5 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 7 UNIDADE I CAPÍTULO 1 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, BUROCRACIA, GESTÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS ................................ 9 CAPÍTULO 2 BUROCRACIA COMO ESTRUTURA E ATOR RELEVANTE .................................................................................................................. 15 UNIDADE II CAPÍTULO 3 REFORMA DO ESTADO E GESTÃO .......................................................................................... 32 PARA (NÃO) FINALIZAR ...................................................................................................................... 44 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 45 4 Apresentação Caro aluno A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade. Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da Educação a Distância – EaD. Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo. Elaborou-se a presente publicação com a intenção de to rná-la subsídio valioso, de modo a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira. Conselho Editorial 5 Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam a tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta, para aprofundar os estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos e Pesquisa. Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Praticando Sugestão de atividades, no decorrer das leituras, com o objetivo didático de fortalecer o processo de aprendizagem do aluno. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. 6 Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Exercício de fixação Atividades que buscam reforçar a assimilação e fixação dos períodos que o autor/ conteudista achar mais relevante em relação a aprendizagem de seu módulo (não há registro de menção). Avaliação Final Questionário com 10 questões objetivas, baseadas nos objetivos do curso, que visam verificar a aprendizagem do curso (há registro de menção). É a única atividade do curso que vale nota, ou seja, é a atividade que o aluno fará para saber se pode ou não receber a certificação. Para não finalizar Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado. 7 Introdução O material didático está organizado da seguinte forma: a primeira unidade trata da relação entre burocracia e a política – particularmente a forma como a burocracia tem sido analisada na área de políticas públicas. Nessa abordagem, são discutidos os seguintes temas: a burocracia como estrutura do Estado e particularmente do Estado democrático de direito (capítulo 1) e a burocracia como ator relevante do processo decisório de implementação de políticas públicas; ou seja, a burocracia como policymaker (capítulo 2). Ao discutir esses temas, serão abordadas questões específicas sobre controle e independência da burocracia em contextos democráticos e as consequências que isso pode ter para a produção de políticas públicas. A primeira unidade se encerra com um capítulo sobre a burocracia no Brasil, como estrutura do Estado e como ator relevante no processo decisório. A segunda unidade trata dos aspectos de gestão da administração pública e como tais aspectos se relacionam com as fases de implementação, monitoramento e avaliação de políticas. Importante 1: conteúdo do Caderno e recursos complementares Este manual sintetiza proposições teóricas e estudos empíricos da literatura especializada sobre burocracia e gestão. A intenção do material não é oferecer ideias novas sobre o assunto tratado, mas apresentar de forma mais didática possível as principais abordagens consolidadas na literatura pertinente. Como sempre enfatizamos, não é preciso e não podemos cair no risco pretensioso de “inventar a roda” em áreas que têm estudos de boa qualidade e bastantes importantes. Nesse sentido, o Caderno “Burocracia, gestão e políticas públicas” é uma compilação do “estado da arte” dos principais temas e objetos de estudo sobre o tema da literatura especializada. Sendo assim, o manual apresenta: » breve exposição sobre o tema ou objeto a ser tratado, com base na literatura especializada; » textos complementares de artigos, manuais, jornais etc., que consideramos importantes reproduzir no próprio Caderno para complementar a exposição sobre o assunto tratado. Tais textos ilustram as proposições e os posicionamentos oficiais sobre práticas de administração pública e gestão pública relacionados com a exposição, sempre que possível; » referências de leituras sobre o tema ou objeto tratado que deverão ser acessadas na plataforma do curso ou na internet. Procuramos fornecer referências importantes e, ao mesmo tempo, de fácil acesso. Essas leituras devem ser concebidas como complementares ao manual e, portanto, é fundamental que sejam realizadas sempre que recomendadas. Importante 2: como usar o Caderno Pelos motivos expostos acima, o material “Burocracia, gestão e políticas públicas” deve ser concebido como um guia para orientar os estudos e as discussões sobre o tema, os quais serão complementados de várias formas no decorrer da interação com o professor e com o coordenador do curso, nas atividades propostas. É importante que o material complementar indicado seja concebido como um componente deste manual. Importante 3: a dinâmica da disciplina Por todos os motivos apresentados acima,a interação dos alunos com o professor e a interação entre os alunos são fundamentais. Como ressaltado, a exposição básica sobre o tema tratado no manual será sempre seguida de estudos complementares, os quais podem ser estudos teóricos ou estudos aplicados. Todo este material (Caderno + material complementar) será utilizado nas atividades programadas. Essas atividades, por sua vez, procurarão ser a mais aplicada possível. Isso porque a familiarização com os processos e procedimentos da administração pública e gestão pública dependem não apenas da teoria, mas também (e muito) da atividade prática. Lembramos, por fim, que estamos sempre prontos para dialogar com os alunos. Por isso, estamos à disposição para interagir sobre os temas discutidos neste material. Sendo assim, fiquem à vontade para entrar em contato conosco sobre tudo que lhes interessar sobre o tema da administração pública, gestão e políticas públicas. Objetivos » Familiarizar os alunos com os principais conceitos, temas e proposições de melhorias quanto à burocracia e gestão, particularmente no que diz respeito à realidade brasileira. » Referenciar sobre o tema da burocracia e gestão. 9 UNIDADE I BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS CAPÍTULO 1 Administração pública, burocracia, gestão e políticas públicas Importância do estudo da burocracia na análise de políticas públicas Para iniciar nossa abordagem sobre a administração pública e sua relação com as políticas públicas, leia o trecho abaixo escrito por Guy Peters e Jon Pierre na introdução do livro “Administração Pública: coletânea”, publicado pela Editora Unesp em parceria com a Enap, em 2010: A administração pública é essencial para a governança efetiva. Embora as instituições políticas do governo sejam naturalmente importantes, especialmente para a governança democrática, a burocracia pública é importante para o fornecimento de serviços públicos. Além disso, a expertise contida na burocracia pública pode ser crucial para a qualidade das políticas elaboradas pelo governo. A administração pública é essencial para os contatos com organizações públicas e da sociedade civil e, portanto, a imagem que os cidadãos têm de seu governo é aquela projetada pela burocracia. Os cidadãos raramente encontram os funcionários eleitos cara a cara, mas encontram membros da burocracia pública com muita frequência (PETERS; PIERRE, 2010, p. 11). O trecho acima aborda diversos temas importantes que relacionam administração pública e as políticas públicas. Percebemos que há pelo menos dois elementos importantes que nos permite apreender as formas pelas quais a administração pública pode ser estudada no campo das políticas públicas: por meio da dimensão da burocracia pública e pela gestão pública. Outras dimensões podem ser pensadas, mas burocracia pública e gestão pública são elementos imprescindíveis para estudarmos as políticas públicas. 10 UNIDADE I │ BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS Administração pública, burocracia e políticas públicas Como pôde ser percebido pelo pequeno trecho acima, a burocracia pública pode ser inserida na análise de políticas públicas pelos motivos expostos a seguir. » Em primeiro lugar, a administração pública pode ser considerada um elemento importante das instituições políticas públicas. Nesse sentido, a burocracia pode ser pensada como um arcabouço de regras e organizações sob as quais os atores relevantes atuam, ou seja, a burocracia tem um aspecto organizacional que orienta e impõe limites às ações dos atores relevantes. Nesse sentido, ela pode facilitar determinados cursos de ação e dificultar outros; pode facilitar determinadas escolhas (objetivos de políticas e estratégias para resolver problemas) e dificultar outras. Burocracias impõem “regras do jogo” aos atores que produzem políticas públicas, seja no processo de elaboração, no de implementação ou no de monitoramento e avaliação. Em todos os sentidos descritos acima, portanto, a burocracia pode ser pensada na análise de políticas públicas como um elemento estrutural da ação dos atores relevantes. Por isso, mesmo pensada como instituições, os “legados”, ou seja, as experiências anteriores da burocracia são fundamentais para entender o seu funcionamento hoje. As burocracias, portanto, podem ser inseridas como fator importante de descrição e explicação de políticas públicas a partir das lentes teóricas do institucionalismo histórico, sociológico e da escolha racional. » Relacionado à característica acima da burocracia pública, esta pode ser concebida como elemento importante de “ligação” ou de relacionamento Estado-sociedade. Nesse sentido, a burocracia se relaciona diretamente com a matéria dos sistemas de governança. De fato, as organizações burocráticas “estruturam” os canais de relacionamento entre atores da sociedade civil e os atores governamentais; elas podem propiciar um relacionamento mais ou menos acessível, mais ou menos transparente e accountable. » Em terceiro lugar, a partir de tudo o que foi dito acima, a burocracia pode ser pensada como um ator relevante; ou seja, a burocracia pode constituir-se como um ator interessado e participativo na produção de políticas. Ator este que se relaciona com outros atores relevantes do setor público e do setor privado. Dependendo do país, estado, município ou setor, a burocracia pode constituir-se como um ator mais ou menos “forte” na arena de tomada de decisão; pode constituir-se como ator de veto importante na produção de políticas, seguindo a linha do institucionalismo da escolha racional. Nesse sentido, burocracia pública pode ser “politizada”, no sentido de agir como ator político que tem objetivos de políticas públicas e que deseja e tem meios para fazer valer tais objetivos. 11 BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS │ UNIDADE I A importância da burocracia pública pode ser percebida, principalmente, no processo de elaboração e implementação de políticas, como mostra o trecho abaixo de Guy Peters (PETERS; PIERRE, 2010, p. 16): A principal atividade da burocracia é implementar as leis, no entanto, há também um largo número de outras importantes funções exercidas por tal segmento. Uma é que as burocracias fazem a política e, em certo sentido, fazem a lei. As leis aprovadas pelos legisladores são, por vezes, genéricas e requerem elaboração pela administração. A regulamentação das leis preparadas pela burocracia não apenas torna seu sentido claro, como permite a aplicação da expertise de servidores de carreira para a política. Este estilo de fazer política pode levantar questões sobre accountability democrática, mas quase certamente também a política a ser implementada de modo mais tecnicamente apropriado para as circunstâncias, e com maior flexibilidade. Além disso, ainda menos visível que seu papel de executor das atividades, a burocracia exerce uma função de arbitragem. As burocracias públicas, portanto, permitem analisar a administração pública a partir de sua dimensão política: como uma estrutura, ou seja, um conjunto de organizações que emitem e fazem valer regras que orientam e delimitam as ações dos atores relevantes e como um ator com capacidade de fazer valer seus interesses de políticas. Administração pública, gestão e políticas públicas A administração pública tem, também, seu lado técnico, que realiza a gestão das políticas públicas. Contudo, antes de continuar essa discussão, é fundamental observar que essa divisão entre a dimensão política e técnica é apenas analítica. Seria ingenuidade de um analista de políticas públicas pensar que há somente uma dimensão técnica na área de administração ou que os burocratas se preocupam apenas em exercer suas competências técnicas, sendo indiferente quanto a objetivos de políticas públicas e escolhas de políticas para resolver determinados problemas. Por isso, manteremos essa divisão – entre técnica e política – ao longo desta disciplina apenas com um intuito analítico para facilitaro estudo. Mas a gestão se refere a que? Laurence Lynn (2010, p. 33) nos oferece algumas diretrizes: Poucas leis e políticas são autorrealizáveis e, em sua formulação, todos devem se beneficiar da visão e da experiência gerencial. Sob praticamente qualquer filosofia ou regime político, a realização de um bom governo requer o uso responsável e competente da autoridade pública pelos gestores. A gestão pode ser concebida como os instrumentos e ferramentas disponíveis na burocracia pública para a administração, execução, monitoramento e avaliação de suas ações. Pode-se pensar, também, na gestão de cada dimensão da própria administração, como, por exemplo, na gestão dos recursos humanos, na gestão de recursos orçamentários e financeiro ou, ainda, na gestão de projetos e programas específicos (a gestão do Bolsa Família, do Pronasci, por exemplo). 12 UNIDADE I │ BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS Entendida nesse sentido, a gestão pública pode se relacionar diretamente com a etapa de monitoramento e avaliação de políticas públicas. Refere-se, também, aos instrumentos de administração e gerenciamento das ações necessárias para que projetos e programas atinjam seus objetivos. Observe, também, que concebida como gestão, a própria administração pública pode ser considerada uma política pública a ser implementada: pode-se pensar em reestruturar a administração pública visando uma estrutura mais gerencial, como foi o programa de Reforma do Estado no Brasil; pode-se pensar em promover novos instrumentos de gestão na administração pública ou na gestão de um determinado programa de projeto de política pública etc. Nesse caso, a administração pública, sua estrutura, forma de trabalho, instrumentos de gestão, é o objetivo de política pública a ser elaborado e implementado por atores relevantes. Exemplo de política pública de gestão no Brasil é o Programa Nacional de Gestão Pública e Desburocratização, denominado GesPública, do governo federal (descrito mais detalhadamente na próxima seção). Por meio desse programa, procura-se implementar no Brasil o “Modelo de Excelência em Gestão Pública (MEGP)”. O MEGP foi pensado para fornecer padrões ou referências de aprimoramento da gestão pública no Brasil e, nesse sentido, segue as seguintes diretrizes: » excelência gerencial (liderança, estratégias e planos, cidadãos, sociedade, informação e conhecimento, pessoas, processos e resultados); » técnicas e tecnologias para sua aplicação (como, por exemplo, a Carta de Serviços ao Cidadão, o Instrumento Padrão de Pesquisa de Satisfação, o Guia de Gestão de Processos, o Guia ‘d’ Simplificação Administrativa e o Instrumento de Avaliação da Gestão); e » práticas de gestão implantadas com sucesso. Para que tanto o Modelo de Excelência em Gestão Pública quanto o próprio Programa GesPública acompanhem a dinâmica da sociedade brasileira e estejam em conformidade com as necessidades dos cidadãos, são fundamentais ações contínuas de inovação do modelo, de sua comunicação e de garantia de sua sustentabilidade. Veja mais informações ou o texto completo no fôlder do programa, disponível em: <http://www.gespublica.gov.br/sites/default/files/documentos/caderno_03_ desburocratizacao_2007.pdf>. Panorama geral sobre a burocracia e gestão públicas O quadro geral da burocracia pública e da gestão pública apresentado acima é ponto de partida para nosso estudo sobre a relação entre a administração pública e as políticas públicas. 13 BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS │ UNIDADE I Estrutura – em resumo, esta pode ser concebida como uma estrutura que orienta e delimita a ação de atores relevantes e como um ator político que atua na arena de políticas públicas. Nesse sentido, a administração pública confere um arcabouço institucional mais amplo que estrutura o processo de tomada de decisão nas etapas de elaboração e implementação de políticas públicas. Ator relevante – a administração também se refere aos instrumentos de gestão de recursos diversos (humanos, orçamentários, informações etc.) e de programas de projetos (a gestão do Bolsa Família, do Pronasci etc.). Neste último caso, está intimamente relacionada com a etapa de monitoramento e avaliação. Isso não quer dizer que a gestão não esteja presente nas etapas de elaboração e implementação ou que a dimensão política não faça parte do monitoramento e avaliação. Apenas ressaltamos as afinidades mais fortes entre a parte política e técnica da administração com as etapas de produção de políticas. Contudo, o analista de política pública deve estar preparado para construir o “quebra-cabeça” da produção de políticas, a partir desses elementos. Não se pode deixar de mencionar que, como estrutura e como ator relevante, a burocracia, em diversas fases da produção de políticas públicas, faz a ligação entre os atores do setor público e os atores sociais – relacionando-se, dessa forma, com o conteúdo concernente aos sistemas de governança. Burocracia e gestão como política pública – vimos também que a administração pública pode ser o alvo de política pública a ser alcançado. Um exemplo nesse sentido foi a Reforma de Estado no Brasil. Outro exemplo é o GesPública. Segundo Bruno Carvalho Palvarini, diretor de Programas de Gestão da Secretaria de Gestão – do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão –, o GesPública é um programa implementado em 2005 pelo governo federal com o objetivo de “[...] contribuir para a qualidade dos serviços públicos prestados ao cidadão e para o aumento da competitividade do País”. Nesse sentido, pode ser concebido como uma política de gestão que tem como diretrizes declaradas: ser essencialmente público – orientado ao cidadão e respeitando os princípios constitucionais da impessoalidade, da legalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência –, de ser contemporâneo – alinhado ao estado-da-arte da gestão –, de estar voltado para a disposição de resultados para a sociedade – com impactos na melhoria da qualidade de vida e na geração do bem comum – e de ser federativo – com aplicação a toda a administração pública, em todos os poderes e esferas do governo (trecho extraído do fôlder do programa, disponível em: <http://www.gespublica.gov.br/folder_rngp/anexos/saiba_ mais_gespublica.pdf>). A administração pública pode ser pensada, portanto, como burocracia e como gestão. A primeira pode ser concebida de forma mais “política”, a partir do instrumental analítico das instituições e dos sistemas de governança como estrutura organizacional e normativa que orienta atores relevantes e como um próprio ator relevante. A segunda (gestão), como um componente mais técnico de administração de recursos e informações diversas. http://www.gespublica.gov.br/folder_rngp/anexos/saiba_mais_gespublica.pdf http://www.gespublica.gov.br/folder_rngp/anexos/saiba_mais_gespublica.pdf 14 UNIDADE I │ BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS Dimensões macro ou micro – o aspecto das dimensões macro e micro da administração pública merece ser explicitamente discutido, embora já esteja subentendido na discussão acima. Podemos pensar na burocracia pública em geral do Brasil, mas podemos nos referir, também, à burocracia de estados, de municípios. Mais ainda, podemos pensar na burocracia de setores específicos da administração pública, como a burocracia do Ministério de Defesa, da Secretaria de Segurança de um estado. Ou ainda na burocracia de um setor destinado a gerir um programa específico, como a burocracia do Bolsa Família. Para pensarmos ainda em um nível mais micro, podemos falar na burocracia de um ator coletivo: a burocracia de uma associação, de um partido político etc. O mesmo pode ser dito sobre a gestão. Ela pode referir-se à gestão pública no Brasil, em estados, em municípios, na gestão de um determinado ministério, ou de um setor responsável por uma política pública, ou ainda na gestão de um ator coletivo. A partir da discussão feita nesta parte introdutória, pense em como a burocraciapode ser pensada em sua análise de políticas públicas. Reflita sobre este assunto! 15 CAPÍTULO 2 Burocracia como estrutura e ator relevante Burocracia como estrutura organizacional e normativa Para pensarmos a burocracia como uma estrutura, ou seja, como um arcabouço normativo e organizacional sob o qual atores relevantes atuam na produção de políticas públicas, a formulação teórica sobre o tema, realizada pelo sociólogo Max Weber, pode ser muito útil. Segundo o autor, a burocracia moderna se estrutura e funciona da seguinte forma: 1. Em primeiro lugar, a burocracia moderna é constituída de atividades regulares e possui uma estrutura distribuída de forma fixa, ordenada segundo regulamentos, leis ou normas administrativas. A burocracia moderna caracteriza-se pela estabilidade da autoridade que, para fazer valer os seus objetivos, conta com meios de coerção físicos ou simbólicos colocados à disposição de funcionários. Os deveres da burocracia são realizados mediante medidas metódicas e regulares, previstas em um regulamento geral. Nesse sentido, Weber afirma que a burocracia moderna “I – Rege o princípio de áreas de jurisdição fixas e oficiais, ordenadas de acordo com regulamentos, ou seja, por leis ou normas administrativas” (WEBER, 1946, p. 229). 2. Possui hierarquia definida. “II – Os princípios da hierarquia dos postos e dos níveis de autoridades significam um sistema firmemente ordenado de mando e subordinação, no qual há uma supervisão dos postos inferiores pelos superiores” (WEBER, 1946, p. 230). 3. Os cargos exercidos na burocracia são baseados em documentos escritos (arquivos), e “o quadro de funcionários que ocupe ativamente um cargo público, juntamente com seus arquivos de documentos e expedientes, constitui uma repartição” (WEBER, 1946, p. 230). 4. Pressupõe um treinamento especializado. 5. O tempo de trabalho na burocracia é determinado e limitado, mas, neste tempo, a dedicação do funcionário ao trabalho é completa. “Quando o cargo está plenamente desenvolvido, a atividade oficial exige plena capacidade de trabalho do funcionário, a despeito do fato de ser rigorosamente delimitado o tempo de permanência na repartição que lhe é exigido” (WEBER, 1946, p. 231). 6. E, por fim, “o desempenho do cargo segue regras gerais, mais ou menos estáveis, mais ou menos exaustivas, e que podem ser aprendidas. O conhecimento dessas regras 16 UNIDADE I │ BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS representa um aprendizado técnico especial, a que se submetem esses funcionários. Envolve jurisprudência, ou administração pública ou privada.” (WEBER, 1946, p. 231). Essas características da burocracia moderna revelam “a redução do cargo moderno a regras” no Estado moderno. Nesse sentido, há regras gerais que regulam o exercício da autoridade. Esta (a autoridade) não pode ser aplicada caso a caso, mas deve ser elaborada de forma geral e estável. De acordo com Weber, “isso contrasta de forma extrema com a regulamentação de todas as relações através de privilégios individuais e concessão de favores, que domina de forma absoluta no patrimonialismo [...]” (WEBER, 1946, p. 232). Nesse sentido, a burocracia moderna é um elemento inerente ao Estado moderno. De fato, para que o Estado possa cumprir suas funções e atividades, a burocracia pública racional e especializada é entendida como uma de suas principais características – e mesmo uma condição necessária para o exercício da autoridade pública. Vale dizer, contudo, que todas as organizações complexas e outras formas de associação política têm e sempre tiveram burocracias. O que difere a burocracia do Estado moderno são os aspectos a seguir mencionados e que podem ser assim resumidos: » a burocracia segue regras e procedimentos fixos, com hierarquias e responsabilidades bem definidas; » o acesso ao serviço público se dá por meio de exames de conhecimento especializado; » as atividades da burocracia são baseadas em conhecimento de documentos escritos e dependem da imparcialidade de regras gerais aplicadas a casos particulares. » os servidores não agem do ponto de vista de uma capacidade pessoal, mas de um posto público específico (PIERSON, 2004, p. 16). Estado moderno, burocracia e políticas públicas Concebida dessa forma, pode-se pensar na burocracia do Estado moderno como uma estrutura que orienta e delimita a ação dos atores relevantes. Essa forma de conceber a burocracia é muito importante para a análise de políticas públicas. De fato, Weber não apenas descreve o tipo ideal da burocracia moderna (tipo ideal entendido como os elementos essenciais que caracteriza a burocracia moderna), mas apresenta suas vantagens em relação a outras formas de organização e problematiza algumas questões sobre a gestão pública. Para Weber, a organização burocrática é superior tecnicamente a qualquer outra forma de organização, como “formas colegiadas, honoríficas e avocacionais de administração”. Essa superioridade técnica foi fundamental para sua implementação no processo de formação do Estado moderno. Nesse sentido, a burocracia moderna apresenta as seguintes vantagens: “precisão, velocidade, clareza, conhecimento dos arquivos, 17 BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS │ UNIDADE I continuidade, discrição, unidade, subordinação rigorosa, redução do atrito e dos custos de material e de pessoal” (WEBER, 1946, p. 249). Ainda segundo o autor, A burocratização oferece, acima de tudo, a possibilidade ótima de colocar-se em prática o princípio de especialização das funções administrativas, de acordo com considerações exclusivamente objetivas. Tarefas individuais são atribuídas a funcionários que têm treinamento especializado e que, pela prática constante, aprendem cada vez mais. O cumprimento objetivo das tarefas significa, primordialmente, um cumprimento de tarefas segundo regras calculáveis e sem relação com pessoas (WEBER, 1946, p. 250). Burocratização: aspectos positivos e negativos Essa visão parece contrastar com impressões e concepções que temos sobre a burocracia. Segundo o uso pejorativo do termo burocracia e a forma pela qual ela é tratada, em geral, nos meios de comunicação, a organização burocrática do setor público parece ser o contrário da precisão, clareza, velocidade etc. Esse contraste entre a descrição ideal da burocracia de Weber e a forma como a burocracia pública é descrita no Brasil, por exemplo, pode ser observado no texto abaixo. Obter registro de patente no Brasil pode levar até 15 anos Reportagem do Jornal Folha de São Paulo, publicada no dia 29 de abril de 2012, de autoria de Carolina Matos Depois de desenvolver um produto a pedido de um hospital de SP – um protetor plástico para banheiras –, a empresária Claudete Rios, 39, tentou patentear a invenção. Fez o pedido em 2006, pagou todas as taxas e as anuidades até 2008, mas acabou desistindo. “Era difícil ter retorno. Eu tinha dificuldade com a internet, precisava me informar pessoalmente e, depois de abrir a empresa, não tive mais tempo”, afirma. Não são apenas os micro e pequenos empreendedores que enfrentam dificuldades para obter patentes no país. Com o aumento de 15% no número de novos pedidos de 2010 para 2011, o Brasil não consegue dar vazão ao andamento dos registros. Ganhar essa proteção do Estado, que dá direito exclusivo por um longo período sobre um produto ou processo, pode levar até 15 anos em setores mais complexos, como o químico, afirmam especialistas ouvidos pela Folha. O trâmite inclui registrar o pedido no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), aguardar o exame e a emissão da carta-patente. 18 UNIDADE I │ BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS Considerando a média, o tempo de espera é menor, segundo o Inpi. Em 2010, eram oito anos. Mesmo assim, é mais que o dobro das médias dos EUA e da Coreia do Sul, quase o dobro da europeia e 30% maior que a do Japão. Depois da reestruturação e da informatização do Inpi, iniciadas em 2009, o instituto prevê que essamédia caia para 5,4 anos para pedidos feitos a partir de 2011. Mesmo assim, é tempo demais e um dos grandes entraves ao desenvolvimento tecnológico do país, afirmam empresários e advogados. “Temos diversos processos, ainda em andamento, de pedidos de patentes de software feitos em 1997”, diz Evelyn Montellano, advogada do escritório Tauil & Chequer. “E software é um item que se torna obsoleto rapidamente. A demora faz empresários e o país perderem divisas”. João Luis Vianna, sócio do escritório Momsen Leonardos & Cia., aponta a “burocracia administrativa” como o maior problema. “Há casos de demora de até cinco anos só para o Inpi publicar o depósito do pedido de patente, trâmite sem o qual não se pode iniciar o exame”, afirma. “Também é comum esperar semanas ou meses para obter uma cópia do processo porque os arquivos não são localizados ou falta papel”. Mais caro Apesar desse cenário, os custos do registro de patentes aumentaram neste ano, depois de permanecerem estáveis desde 2009. Considerando os valores cobrados somente nos exames de invenção, a alta foi de até 400%. Basicamente, ficaram bem mais caros os processos que contêm mais de dez reivindicações de patente. “O mais comum, para empresas, é que os processos tenham cerca de 30 reivindicações”, diz Flávia Merola, advogada do escritório Siqueira Castro. “Para invenções mais complexas, como do setor farmacêutico, o número facilmente ultrapassa cem”. Outro lado O Inpi reconhece que, até o fim do ano passado, estava com um atraso de seis anos para a publicação dos depósitos [pedidos] de patente que vinham do exterior e de um ano para os brasileiros. Mas afirma que “o problema foi equacionado” a partir de mudanças nos procedimentos administrativos e da informatização do instituto. 19 BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS │ UNIDADE I Quanto às dificuldades em relação a cópias de arquivos, Júlio César Castelo Branco, diretor de patentes do Inpi, diz que a digitalização do material, que já teve início, vai facilitar as consultas e amenizar problemas como falta de papel. “Recebemos por mês, em média, 700 pedidos de cópias integrais de pedidos de patentes. O trabalho de digitalização está sendo feito, mas é longo”. “Contratamos uma empresa com capacidade para digitalizar 1,2 milhão de páginas por mês, mas nosso arquivo tem 150 milhões de páginas. Vamos ter outra [empresa] com mais capacidade. Pareceres e cartas-patente já estão na internet”. O Inpi afirma que houve reajuste médio de 20% nas tarifas para acompanhar as taxas internacionais. Também atribui o aumento à necessidade de manter a arrecadação do instituto mesmo com a entrada em vigor do sistema eletrônico de registro (mais barato). Ainda de acordo com o Inpi, a meta é aumentar o número de examinadores dos atuais 245 para cerca de 700 a fim de que o tempo para obtenção de patentes caia para quatro anos. Mas o instituto depende da abertura de concurso público pelo governo. Mais informações sobre a série Brasil Burocrático do Jornal Folha de São Paulo podem ser obtidas em: <http://www1.folha.uol.com.br/especial/2012/brasilburocratico/>. Exemplo: administração pública como estrutura O que tanto a descrição de Weber da burocracia como as reportagens acima revelam é que a burocracia é um elemento importante para analisar a produção de políticas públicas, principalmente no que se refere à sua etapa de implementação. Observa-se que, caso a burocracia operasse no sentido weberiano, a “estrutura” que orienta e delimita a ação de atores relevantes seria propícia à implementação de políticas. Mas justamente porque não é assim que a estrutura realmente existente parece dificultar ou mesmo impedir a produção da política pública pretendida. Isso quer dizer que o analista de políticas públicas pode ter a concepção de Weber como um parâmetro para descrever e avaliar a estrutura burocrática realmente existente e, com isso, analisar as possibilidades de sucesso de uma política pública. Esse tipo de abordagem foi realizado, por exemplo, por Peter Evans em seu estudo sobre política de inovação tecnológica, no livro “Autonomia e parceria: Estados e transformação industrial” – trabalho publicado pela editora da UFRJ em 2004. O principal objetivo de Evans no livro era “compreender as estruturas e o papel do Estado, as relações entre o Estado e a sociedade, e como os Estados contribuem para o desenvolvimento” (EVANS, 2004, p. 29). Evans atribui como tarefa do Estado não apenas a defesa da soberania e manutenção da ordem interna, mas também a transformação econômica, concebida como instrumento fundamental para a promoção do desenvolvimento econômico que seria, por sua vez, condição para o exercício das tarefas básicas de segurança. Essa tarefa de desenvolvimento seria levada a http://www1.folha.uol.com.br/especial/2012/brasilburocratico/ 20 UNIDADE I │ BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS cabo pela participação do Estado no processo de acumulação de capital, promoção da capacidade empresarial e facilitação da criação de novas forças produtivas. Para Evans, é fundamental que, em uma economia globalizada, o Estado construa vantagens comparativas, por meio da intervenção na economia, em parceria com atores da sociedade civil. O desenvolvimento mediante a intervenção do Estado seria possível, segundo o autor, pela combinação entre autonomia das instituições estatais e parceria entre atores governamentais e não governamentais. Segundo Evans (2004, p. 38), “somente quando há uma combinação entre a incorporação de interesses coletivos e a autonomia, um Estado pode ser chamado de desenvolvimentista. São imprescindíveis tanto autonomia quanto parceria”. Mas o que seria autonomia e parceria? Nesse momento, o autor menciona a importância da burocracia. Segundo ele, a autonomia se relaciona com uma organização burocrática de tipo weberiano e a parceria seria uma forma de relacionamento “sadia” entre Estado e sociedade. Vale mencionar que a forma sadia de relacionamento só será possível caso a burocracia tenha as características que Weber mencionou – vistas acima. A organização interna dos Estados desenvolvimentistas assemelha-se mais à burocracia weberiana. Recrutamento por mérito, altamente seletivo, e compensações ao longo de carreiras de longo prazo criam uma situação de compromisso e um sentido de coerência corporativa. A coerênica dá a este aparato um certo tipo de “autonomia”. Entretanto, eles não são isolados da sociedade [...] estão inseridos em um conjunto concreto de alianças sociais que ligam o Estado à sociedade e provêm canais institucionalizados para negociação contínua de objetivos e planos de ação (EVANS, 2004, p. 37-38). Mais ainda, o autor relaciona a estrutura burocrática do Estado com as relações Estado-sociedade em uma dada comunidade ou contexto. Assim, considerar as características da burocracia é fundamental para analisarmos os padrões pelos quais atores políticos e sociais se relacionam. No caso da política de desenvolvimento, Evans (2004, p. 70) sustenta a importância da independência da burocracia para sustentar objetivos e escolhas de políticas públicas: Qualquer política econômica institucional comparativa do Estado deve oferecer uma visão clara, tanto da estrutura interna do Estado quanto do caráter das relações Estado-sociedade. A hipótese de Weber sobre o papel da burocracia ainda é o ponto de partida para a análise da estrutura interna [...] A afirmação original de Weber de que as estruturas burocráticas estatais constituem uma fonte de vantagens é consistentemente sustentada pelos analistas contemporâneos. Neste ponto, Midgal concorda com Amsden e Wade. Ao enfatizar os deslocamentos como condição necessária para um Estado forte, ele preocupou-se em afirmar que uma burocracia independente é uma das condições suficientes. Tanto Amsden como Wade identificam os burocratas estatais como representantes de papéis cruciais na transformação industrial.Segundo a análise de Evans, portanto, a ausência das características da burocracia, tais como enumeradas por Weber, é uma das causas da ineficiência ou falta de políticas de desenvolvimento. 21 BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS │ UNIDADE I Assim, o autor identifica na análise comparativa das estruturas burocráticas uma agenda importante para verificar porque alguns países se desenvolveram, enquanto outros não: É a insuficiência de burocracia que prejudica o desenvolvimento, e não sua prevalência. Infelizmente, este consenso ainda não se reflete nos debates sobre políticas públicas e nos argumentos populares [...] Burocracia é ainda um termo pejorativo tanto para os cidadãos quanto para os formuladores de políticas. É a antítese moribunda e inefetiva da iniciativa empresarial e do governo ineficiente [...] Raramente, ou praticamente nunca, é vista como um conjunto de normas e estruturas que induzem à competência, tal como postulado por Weber. Para explorar o potencial da abordagem institucional comparativa, a hipótese Weberiana deve ser analisada à luz de diferentes países e agências governamentais (EVANS, 2004, p. 70-71). Como exemplo de sua proposição teórica, Evans analisa um tipo de estrutura de Estado que não promove o desenvolvimento industrial; no caso, o Estado do Zaire. Segundo o autor, o que caracteriza o Zaire é justamente a ausência de uma burocracia de tipo weberiano: Até mesmo uma análise superficial do Zaire revelaria que o problema central do país não é o excesso de burocracia, mas sim sua falta. Há uma notável ausência de regras de comportamento imersas numa estrutura mais ampla de carreiras públicas que criem compromissos com objetivos corporativos (EVANS, 2004, p. 79). A estrutura burocrática do Zaire pode ser contrastada com a existente em países que conseguiram ter rotas bem-sucedidas de desenvolvimento. Evans compara, então, a insuficiência burocrática do Zaire com o tipo de burocracia que se formou no Japão – tomado pelo autor como arquétipo de Estado desenvolvimentista: O sucesso do Estado desenvolvimentista japonês é claramente consistente com a hipótese weberiana. Os funcionários têm o status especial que Weber sentiu ser essencial para uma verdadeira burocracia. Seguem o caminho de uma carreira de longo prazo dentro da burocracia e geralmente operam de acordo com regras e normas estabelecidas [...] (EVANS, 2004, p. 81-82). O sentido positivo da burocracia: eficácia do exercício do poder público e políticas públicas A abordagem sobre a burocracia do tipo weberiano e sua relação com as políticas públicas insere-se em quadro analítico sobre o Estado moderno no qual a burocracia é concebida como um elemento de eficácia do poder público. 22 UNIDADE I │ BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS A relação entre as características da burocracia e a eficácia do poder público foi desenvolvida de forma interessante pelo cientista político Guillermo O’Donnell no livro “Democracia, Agência e Estado: teoria com intenção comparativa”, publicado pela editora Paz e Terra, em 2011. Nesse trabalho, O’Donnell define as burocracias como uma dimensão do Estado moderno, caracterizada por ser uma organização complexa com responsabilidades legais para proteger ou obter um bem comum. Juntamente com o sistema legal – na visão do autor, outra dimensão relevante do Estado e que consiste em regras que permeiam e orientam as relações sociais – as burocracias “geram, para os habitantes de seu território, o grande bem público da ordem geral e da previsibilidade das relações sociais”. Assim, as burocracias e o sistema legal configuram a “estrutura” normativa e organizacional que orienta o comportamento dos atores relevantes e dos cidadãos dentro do Estado, gerando previsibilidade, estabilidade e, em consequência, a ordem interna e segurança externa necessárias para todas as demais atividades políticas e sociais de uma determinada comunidade. Partindo dessa reflexão de O’Donnell e das considerações de Evans vistas acima, podemos dizer que a ausência de burocracia, portanto, pode gerar instabilidade e insegurança. Segundo a abordagem de O’Donnell, seguindo as ideias de Weber, a burocracia do Estado moderno (se bem constituídas) garante a “grande” política pública da segurança e ordem; condição indispensável à produção das demais políticas públicas. Já Peter Evans acrescenta a essa formulação de O’Donnell o fato de a burocracia ser fundamental para políticas de desenvolvimento. Diante de tudo isso, podemos concluir que a eficácia de qualquer política pública está relacionada com a existência de uma burocracia com características do tipo ideal traçado por Weber. Uma advertênica: vale ressaltar, no entanto, que a burocracia weberiana não é suficiente para garantir a eficácia das políticas públicas. Outros fatores podem e são muito importantes, mas ela é uma condição necessária. Por isso, ao analisar uma política pública, é importante ter as características apontadas por Weber como um parâmetro que serve para analisar a realidade concreta das burocracias que serão responsáveis ou sob as quais uma determinada política pública deverá ser implementada. A partir do que foi discutido até o momento, pense em como se estrutura a burocracia da política que você está estudando. Ela se assemelha às características do tipo ideal weberiano? Em que sentido se aproxima deste ideal e em que sentido se afasta? Pense sobre isto! Burocracia como ator na produção de políticas públicas Até aqui discutimos como a burocracia pode constituir-se como uma estrutura normativa organizacional importante para orientar e delimitar as ações e expectativas de atores relevantes. No entanto, a própria discussão feita nos revela que burocracia pode ser considerada um ator relevante 23 BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS │ UNIDADE I no processo de elaboração e implementação de políticas públicas. Como afirmam Peters e Pierre (2010, p. 12): Embora a burocracia pública seja geralmente discutida dentro de uma estrutura formal e legal, é importante lembrar que ela também é uma instituição política. As organizações dentro da burocracia não apenas desempenham funções administrativas cruciais [...], mas têm seus próprios interesses organizacionais e também representam os interesses dos clientes a quem servem, ou têm interesses profissionais e de políticas que as levam a apoiar alguns programas em vez de outros. Além do mais, os líderes políticos podem tentar politizar a burocracia para fazer com que sirva aos interesses dos partidos ou dos partidos políticos dominantes. Esse trecho do artigo de Peters e Pierre revela que: 1) os próprios burocratas têm interesses políticos e, sendo assim, podem agir estrategicamente para elaborar e implementar políticas públicas; e 2) que justamente por se constituir em ator relevante no processo decisório, atores políticos (e também sociais) podem procurar politizar a burocracia e fazer com que estas se tornem aliadas em seus projetos de políticas públicas. Essa visão contrasta com um modelo puramente técnico do exercício das atividades burocráticas que transparece na visão clássica sobre burocracia. Embora o próprio Max Weber tenha alertado sobre esse aspecto da burocracia, sua análise sobre o tipo ideal burocrático parece chamar mais atenção sobre o seu componente técnico. Ora, agindo como ator político, a burocracia pode ser incluída na análise de políticas públicas. Nesse sentido, é importante considerar se a burocracia constitui-se em ator de veto na elaboração e implementação da política analisada. Tudo isso deve nos fazer refletir sobre as duas dimensões que a burocracia tem sobre políticas públicas: » por um lado, ela confere a estrutura organizacional e o conjunto de regras que orientam e delimitam as ações de políticas públicas em suas diversas etapas (agenda, elaboração, implementação, monitoramento e avaliação); » mas, por outro, constitui-se em ator participante dos processosde formação da agenda, elaboração, implementação e monitoramento e avaliação. Como ator relevante, a burocracia pode ser um ator mais ou menos coeso e com maior ou menor poder de veto. Essa variação na coesão e poder relaciona-se com a variação de projetos, setores, nível de governo etc. Como ator relevante, portanto, o enfoque analítico de George Tsebelis (1997) sobre ator de veto é fundamental. Para lembrar, o ator de veto é definido por Tsebelis como atores individuais ou coletivos cuja concordância é necessária para mudança do status quo, ou seja, atores cuja concordância é necessária para a produção de políticas públicas. O ator de veto varia conforme: » o número de atores envolvidos na produção de políticas, por exemplo; 24 UNIDADE I │ BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS » a distância ideológica entre tais atores; » e o grau de coesão interna de cada ator (no caso de atores coletivos). Sendo assim, por exemplo, a produção de políticas públicas será mais difícil à medida que aumentarem: » os atores burocráticos envolvidos na produção de uma política pública; » a distância entre tais atores no que se refere aos objetivos pretendidos e cursos de ação a serem tomados; » a divisão interna quanto a objetivos e cursos de ação, maior será a dificuldade de produção de uma política pública. Reflita sobre a burocracia como ator político em sua análise sobre política pública. É possível perceber o número de atores envolvidos na produção da política, incluindo a burocracia como ator relevante? Mais ainda, os interesses da burocracia sobre objetivos e escolhas de ação diferem dos interesses dos demais atores envolvidos na produção da política? Se sim, tais atores burocráticos podem vetar a política pública? Os atores burocráticos são coesos em seus interesses? Procure observar como todas essas características da burocracia se relacionam com as fases de formação de agenda, elaboração, implementação e monitoramento e avaliação de políticas. Um exemplo: a estrutura burocrática da Presidência da República Como considerar a burocracia como ator relevante? Uma forma pode ser simplesmente observando a estrutura burocrática existente em uma área de interesse. Uma política que envolva o Executivo federal no Brasil, por exemplo, pode considerar como atores relevantes o chefe do Executivo, os ministérios envolvidos e burocracia do setor federal. Assim, por exemplo, a estrutura da Presidência da República pode ser inserida na análise de política pública. De modo geral, podemos ter os seguintes atores: a Casa Civil, que exerce a função da coordenação da ação política e administrativa; a Advocacia-Geral da União (AGU) e a Controladoria-Geral da União (CGU); a Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais; a Secretaria de Comunicação Social; a Comissão de Ética Pública; os órgãos de conselho e assessoramento da Presidência (como o Conselho da República, o Conselho da Defesa Nacional, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social etc.). Obviamente, na análise, será importante definir quais órgãos da burocracia efetivamente participam da produção de políticas públicas. 25 BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS │ UNIDADE I Outro exemplo: burocratas de nível de “rua” Não apenas “grandes” órgãos burocráticos ou órgãos do Executivo podem ser considerados na análise. Uma vertente muito importante sobre a administração e burocracia públicas refere-se aos “burocratas de nível de rua”. Este termo foi cunhado por Michael Lipsky em 1980 para designar os “servidores públicos que interagem diretamente com os cidadãos no cumprimento de suas tarefas e que têm grande discrição na execução de seu trabalho” (LIPSKY, 2000, p. 3). Tais burocratas fazem a relação dos cidadãos com o Estado e influenciam fortemente a implementação das políticas públicas, por terem o “poder” de decidir e ifluenciar diretamente a execução da política pública. Como afirmam Meyers e Vorsanger (2010, p. 250-251), os burocratas de nível de rua são os [...] trabalhadores de linha de frente [...] responsáveis por muitas das atividades centrais dos órgãos públicos, desde a determinação da elegibilidade do programa à alocação de benefícios, o julgamento de conformidade com as normas, a imposição de sanções e a isenção de penalidades a indivíduos e empresas. Essas atividades de linha de frente formam o núcleo técnico de muitas organizações públicas. [...] Dada sua posição na interface entre o Estado e o cidadão e as oportunidades de aplicar a discrição, a influência exercida pelos trabalhadores de linha de frente supera sua autoridade formal. Eles operam, nos termos de Michael Lipsky (1980), como burocratas que não apenas executam, mas moldam ativamente os resultados das políticas, interpretando regras e alocando recursos escassos. Por meio de sua rotina e das decisões que tomam, esses trabalhadores, em realidade, produzem políticas públicas tal como os cidadãos as experimentam. Uma advertência: efeitos indesejados da burocracia A eficácia pode estar, portanto, intimamente relacionada com a burocracia moderna, como argumentado acima. No entanto, não podemos perder de vista as possíveis consequências negativas da burocratização. Os (possíveis) efeitos negativos da burocracia já haviam sido antecipados pelo próprio Weber. Tais efeitos relacionam-se com: 1. o poder que os burocratas podem assumir no exercício da sua função e, com isso, decidir de forma autoritária ou sem levar em consideração suas atribuições legais de forma adequada. 2. o poder que os chefes podem querer exercer sobre seus subordinados, extrapolando ou não exercendo de forma adequada suas atribuições. 3. no caso das burocracias estatais, o poder que estas podem adquirir para decidir políticas. O’Donnell refere-se a este aspecto nos seguintes termos: o crescimento das burocracias estatais 26 UNIDADE I │ BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS [...] em quase todos os países suscitou um tema imprevisto pelos primeiros teóricos do Estado de direito e da democracia, e atualmente ignorado por vários teóricos contemporâneos. Refiro-me às inumeráveis regras que têm a forma e muitas das consequências da lei, emitidas pelas burocracias estatais. Este direito administrativo sanciona, define, redefine e às vezes dificulta direitos e obrigações. Isto significa que muitas burocracias estatais se transformam na verdade em colegisladoras com o parlamento, assim como com o Poder Judiciário. Embora se suponha que as regras e decisões das primeiras encontram-se sujeitas em última instância a controles judiciais/ constitucionais, existe evidência de que a efetivação desses controles por parte dos cidadãos é muitas vezes difícil e cara. Este problema normalmente se agrava pela atração da buorocracia pelo secreto e por projetar relações autoritárias interna e externamente (O´DONNELL, 2011, p. 134-135). Burocracia como estrutura, burocracia como ator e politização O texto abaixo do cientista político Cláudio Couto exemplifica a relação entre burocracia e politização. Couto mostra como cargos de comissão (que deveriam ser preenchidos por burocratas qualificados) são usados como moeda política no Brasil. Observa-se, nesse caso, que a própria estrutura de preenchimento de cargos, distinta da forma por concurso em que o conhecimento especializado e o mérito são critérios importantes, afasta-se de uma estrutura weberiana. Há, devido à possibilidade de preenchimento de cargos por indicação política, uma espécie de “desvio” da burocracia do tipo weberiano. Essa estrutura tem, por sua vez, consequências importantes, como a politização da própria estrutura burocrática, ou seja, no plano estrutural da burocracia, há uma politização desta em detrimento de critérios técnicos. Do ponto de vista da burocracia como ator político, tal forma de preenchimento de cargos pode criar atores com interesses específicos que, de alguma forma,irão influenciar a própria produção de políticas. Politização e burocratização Valor Econômico, publicado em 15 de julho de 2011, de autoria de Cláudio Gonçalves Couto1 Na seção de política de ontem (14/6/2011), o Valor noticiava que servidores do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) iniciaram um protesto com o sugestivo título de “Ética no DNIT, fora corruptos”. Pleiteiam que a direção do órgão seja ocupada exclusivamente por funcionários públicos concursados. A iniciativa foi apoiada pelo Sindicato dos Servidores Públicos Federais no Distrito Federal. Tendo em vista os últimos acontecimentos no Ministério dos Transportes e no próprio DNIT, o pleito dos servidores parece mais do que justificável. Ainda mais se considerando o imenso número de cargos de livre provimento à disposição do 1 Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP e colunista convidado do Valor. 27 BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS │ UNIDADE I governo e, consequentemente, dos partidos da base aliada, os quais são utilizados não apenas como moeda de troca na obtenção e manutenção de apoio político, mas também como prováveis fontes de recursos ilícitos para o financiamento de campanhas e o enriquecimento pessoal. Já se tornou lugar comum a menção à grande quantidade de cargos públicos politicamente negociáveis, muito superior ao que se verifica em países institucional e economicamente mais desenvolvidos que nós. Enquanto no Brasil (apenas no governo federal em sua administração direta) os cargos de livre nomeação ultrapassam as duas dezenas de milhares, em nações como o Reino Unido eles são contados na casa das centenas. Assim, se por um lado a classe política profissional dispõe de um generoso butim do qual se apossar em proveito próprio, por outro o funcionalismo profissional (incorporado à máquina do Estado por méritos profissionais comprovados em concursos) se vê preterido em suas justas ambições de ascensão aos postos mais elevados da burocracia governamental. Partidarização de cargos é só um aspecto do problema Ocorre, todavia, que a relação entre política e administração pública no Brasil é mais complicada do que isto. Boa parte das mazelas que nos atingem nesta seara ultrapassa a questão do mau uso do dinheiro público por uma elite política predatória e seus apaniguados, muitas vezes em associação com corruptores privados que financiam campanhas e contribuem para o enriquecimento pessoal mútuo. Há sérios problemas de gestão relacionados à existência de incentivos perversos para os próprios servidores de carreira, inclusive ao ponto de fazer com que o livre provimento ultrapasse a mera condição de instrumento para a politização predatória, constituindo-se também num recurso gerencial para aprimorar a administração pública. Isto fica evidente quando se considera o problema da previdência do setor público e seus impactos sobre os gastos com a folha do funcionalismo. Ao longo de décadas tem vigorado um sistema de aposentadoria nitidamente privilegiado em comparação ao dos trabalhadores do setor privado. Em primeiro lugar, porque remunera aposentados do funcionalismo com os salários integrais da ativa – em alguns casos incluindo até mesmo ganhos de produtividade, por absurdo que seja. Em segundo lugar, porque não se constituíram historicamente fundos com suas contribuições ainda no período de atividade, ficando a conta para o contribuinte. Portanto, não apenas o peso das aposentadorias e pensões cresce magnificamente ano a ano, mas também impede que políticas de estímulo aos trabalhadores da ativa sejam implementadas. Afinal, com a correspondência automática de ganhos entre ativos e inativos, qualquer aumento ou incentivo adicional que se dá aos que ainda trabalham gera imediatamente uma despesa previdenciária adicional. Ou seja, não se dão merecidos aumentos aos ativos para não inflar os gastos com inativos, precarizando as condições de trabalho dos servidores e tornando muitas áreas do serviço público desinteressantes aos mais aptos. 28 UNIDADE I │ BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS As nomeações discricionárias para cargos de mais alto escalão são usadas frequentemente como uma forma de driblar este obstáculo. Primeiramente porque pessoas contratadas de fora da administração pública não se integram ao corpo estável do funcionalismo e, com isto, não adquirem o direito a uma aposentadoria integral. A criação de mais cargos de confiança em diversos níveis de governo serve também a este propósito – e não só ao “loteamento” da máquina, como frequentemente supõe o senso comum moralista. O oferecimento de salários mais altos para cargos de confiança tem também o condão de atrair dos mercados profissionais que, doutra forma, não iriam trabalhar no setor público, tendo em vista o achatamento dos salários. E justamente porque é possível ocupar tais cargos comissionados com membros externos ao setor público, sem pressionar os gastos previdenciários, é que os salários aí podem ser maiores. Por fim, ainda que podendo gerar gastos previdenciários adicionais, a perspectiva da ocupação de cargos de confiança por funcionários de carreira constitui um estímulo profissional para o mérito, algo nada negligenciável numa burocracia pública caracterizada por incentivos perversos (ou desincentivos) como a progressão apenas por tempo de serviço. Em contrapartida, não apenas o mérito, mas também a sujeição às exigências e benesses da politização predatória pode se constituir num fator de ascensão profissional a funcionários públicos de carreira. Não por acaso servidores concursados estavam presentes em muitos escândalos de corrupção dos últimos anos, atuando a serviço de interesses partidários bem pouco republicanos. Portanto, pode ser até mesmo contraproducente a mera redução do espaço às nomeações discricionárias no setor público, restringindo os cargos de direção apenas aos funcionários de carreira. Não se eliminam todos os riscos e criam-se custos adicionais. Avançar no debate requer discutir também a qualidade dos incentivos para o funcionalismo e seu custo para a sociedade. As mudanças devem passar pela regulamentação da reforma da previdência do setor público (tornando-a sustentável e equitativa) e pela instituição de estímulos a uma meritocracia republicana na burocracia de Estado. Os sindicatos do funcionalismo e suas corporações, contudo, sempre se opõem a tais reformas. Independência e controle A advertência e a questão da politização discutidas acima apontam para uma abordagem importante sobre a administração pública em geral: a questão do controle da burocracia. As preocupações relacionadas ao controle já estão presentes nos autores clássicos da administração pública e burocracia, como pode ser observado no texto abaixo, de Robert Behn, intitulado “O novo paradigma da gestão pública e a busca da accountability democrática” publicado pela Revista do Serviço Público, em 1998. Já nos autores clássicos havia uma preocupação com a questão da politização da burocracia, o que poderia desviá-la da atuação técnica e fazê-la exercer seus interesses tal como exposto na advertência 29 BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS │ UNIDADE I da seção acima. Além do problema da politização, havia (e ainda há) uma preocupação quanto à capacidade do exercício eficaz e eficiente das organizações burocráticas, caso estas se desviassem para a atuação política. Observe que este tema se insere nas problemáticas discutidas desde o início deste Caderno. Afinal, uma atuação não técnica significa, em alguma medida, o distanciamento das características do tipo ideal de burocracia traçada por Weber. Trechos do artigo “O novo paradigma da gestão pública e a busca da accountability democrática” de autoria de Robert Behn (1998, p. 8-9). O texto encontra-se disponibilizado na biblioteca do curso. [...] A herança intelectual do atual paradigma da administraçãopública decorre do pensamento, escritos e proselitismo de Woodrow Wilson, Frederick Winslow Taylor e Max Weber. De fato, os três construíram a base conceitual da atual forma da maioria dos nossos governos. Wilson afirmava que a administração deveria – e poderia – ser separada da política; depois que os responsáveis pelas políticas tomassem as decisões de Estado, a tarefa de implementar tais políticas podia ser delegada àqueles bem versados na “ciência da administração”, que executariam a tarefa da implementação da forma mais eficiente possível (1887). Isso seria possível porque, segundo afirmava Taylor, “entre os vários métodos e implementos utilizados em cada elemento de cada caso, existe sempre um método e um implemento mais ágil e melhor que todos os outros” (1911, p. 25). Finalmente, Weber afirmava que a burocracia era o mais eficiente mecanismo organizacional; assim, a burocracia seria ideal para implementar os princípios científicos de Taylor. Todos eles, Wilson, Taylor e Weber, buscavam melhorar a eficiência. E além ser um valor em si mesmo, a eficiência tem outra vantagem. Ela é impessoal, e, portanto, justa. Ao separar a administração das políticas, aplicando o exame científico ao desenho do melhor processo de trabalho, e empregando organizações burocráticas para implementar esses processos, o governo garantiria não só que as políticas fossem justas, mas que sua implementação também o fosse. E, claro, a administração do governo dos Estados Unidos da América tinha de ser justa. A ênfase na eficiência tem outra vantagem: ela implica que a implementação da política pode, de fato, ser separada das decisões políticas. E se há, de fato, uma maneira eficiente de implementar qualquer política, e uma forma ideal de executar qualquer decisão política, então separar a administração da política é razoavelmente factível. Além disso, a separação entre administração e política permite que o processo governamental esteja conceitualizado de forma clara e linear: as pessoas elegem seus representantes legislativos e chefes do executivo; tais indivíduos (e seus assistentes políticos imediatos) desempenham a tarefa política de desenvolver e decidir sobre as políticas públicas; a seguir, o aparato administrativo do governo determina a forma mais eficiente de implementar cada política e assim o faz; e finalmente, caso algo dê errado, as autoridades eleitas verificam o trabalho dos administradores. 30 UNIDADE I │ BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS Conceitualizar o processo do governo dessa maneira também fornece um método claro, simples e direto de accountability democrática. Como a administração pode ser separada da política, e visto que o aparato burocrático do governo encontrará e escolherá o modo mais eficiente de implementar qualquer política, o público não precisa se preocupar com a administração. Tudo com o que os cidadãos devem preocupar-se é com a política. E se eles não gostarem das políticas do governo (ou de como a sua administração está sendo vista), eles têm meios diretos e eficazes de corrigir a situação: numa eleição, eles podem retirar as autoridades dos gabinetes. Isso é accountability política. Isso é accountability direta. O paradigma da administração pública tem sentido – ele é internamente consistente – porque a distinção entre política e administração permite a construção de um modelo simples, atraente e direto de accountability política. Além disso, com todas as suas falhas, o antigo paradigma tem uma vantagem significativa: legitimidade política. As relações de accountability política são transparentes. O paradigma tradicional da administração pública combina-se bem com nosso paradigma tradicional de accountability democrática. No Brasil, por exemplo, a partir da democratização do país, diversos órgãos e regras foram estabelecidos com o intuito de proporcionar independência e, ao mesmo tempo, controle a órgãos da administração pública. Como afirma Argelina Figueiredo (2010, p. 196): A Constituição de 1988 e a regulação que a ela se segue trazem mudanças significativas na administração pública com o fim de combater o legado do autoritarismo. A democratização do Estado, consubstanciada na Constituição de 1988, foi favorecida com o fortalecimento de diversos órgãos de controle interno e externo da administração pública. Além da exigência de concurso público para a contratação de servidores, outra importante mudança foi o fortalecimento dos organismos de controle democrático. Assim, antigas instituições foram reformadas e profissionalizadas, tais como os tribunais de contas (da União e dos Estados) e a Polícia Federal; outras foram criadas, como a CGU e milhares de conselhos comunitários; e outras, como o Ministério Público – federal e estaduais – tiveram seu papel ampliado. Assim, estruturas burocráticas foram criadas ou redesenhadas para gerar regras de controle das ações de atores relevantes. Isso nos faz retomar a discussão inicial sobre a burocracia como estrutura: no caso, tais órgãos de controle externo e interno orientam e delimitam as ações de atores relevantes. Além disso, a exigência de concursos para preenchimento da maior parte dos cargos da administração pública pretende aproximá-la das características técnicas do tipo ideal weberiano. De fato, o concurso público pretende produzir o preenchimento de cargos por meio de seleção meritocrática e universal, o que tende a profissionalizar a burocracia pública. Cabe ao analista de políticas públicas perceber se tais estruturas de controle se fazem presente na produção das políticas públicas em estudo – constituindo-se em importante estrutura organizacional e normativa sob a qual os atores relevantes devem atuar. 31 BUROCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS │ UNIDADE I Com a descentralização da produção de políticas públicas no Brasil – principalmente das políticas sociais – mecanismos de participação popular, mediante conselhos de diversos tipos, foram criados. Tais mecanismos se inserem no sistema de governança democrática em que os atores produtores de políticas atuam. 32 UNIDADE II GESTÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS CAPÍTULO 3 Reforma do estado e gestão Nos capítulos anteriores, discutimos como a burocracia é concebida para explicar as políticas públicas; ou seja, consideramos a burocracia como fator explicativo na análise da produção das políticas em suas diversas fases, principalmente na formação da agenda, elaboração e implementação. Nesse sentido, a burocracia confere a estrutura organizacional e os instrumentos normativos que orientam as ações dos atores relevantes na produção de políticas. Por isso, o analista de políticas públicas deve ter em mente as organizações sob as quais os atores relevantes agem, quais os incentivos e delimitações que elas impõem aos atores relevantes. Para isso, o investigador deve não apenas observar a estrutura organizacional, mas também enumerar o conjunto de regras que devem ser obedecidas pelos atores. Vimos que a burocracia pode ser um importante fator de estímulo ou de empecilhos às políticas de desenvolvimento econômico. De fato, no Brasil, estudos como o Doing Business (descrito a seguir) mostram que o conjunto de normas e procedimentos burocráticos para abrir e fechar empresas, fazer valer contratos entre agentes privados etc. pode constituir-se em fator que dificulta ações empreendedoras e de desenvolvimento econômico. Tal estrutura pode afetar o comportamento dos atores em um sentido de desincentivo à atividade econômica, ou seja, as organizações e regras existentes não agem no sentido do tipo ideal weberiano de eficácia e eficiência. Não por acaso, reformas no sentido de propiciar uma burocracia e uma gestão pública mais eficiente foram empreendidas, não apenas no Brasil, mas em diversos países do mundo. Nesse caso, reformas da administração pública constituem-se como políticas públicas perseguidas por atores relevantes. Nesta unidade, iremosexplorar esse assunto e perceber como mecanismos e instrumentos de gestão estão passando por mudanças nos últimos anos, visando justamente proporcionar maior dinamismo, eficácia, eficiência e transparência à administração pública. Vale ressaltar que a consecução de tais políticas não é tarefa fácil e diversos países podem realizar reformas administrativas, mas cujos efeitos ainda não se traduzem em boas práticas. É importante ter em mente, também, que mecanismos e instrumentos de gestão podem e devem ser incluídos na análise das políticas públicas. 33 GESTÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS │ UNIDADE II Um exemplo: a demanda por desburocratização O texto abaixo, publicado no Jornal Valor, mostra aspectos da nossa organização burocrática e suas regras que proporcionam a estrutura de ação para ações e políticas de desenvolvimento. Uma pesquisa feita em 183 países, denominada Doing Business, classificou diversos países quanto à facilidade para as seguintes ações: » abertura de empresas; » obtenção de alvarás; » contratação de funcionários; » registro de propriedades; » obtenção de crédito; » proteção de investidores; » pagamento de impostos; » comércio entre fronteiras; » cumprimento de contratos; » fechamento de empresas. Todas essas ações são orientadas e delimitadas pela estrutura burocrática existente, seja em país, seja especificamente em estados ou municípios. Normalmente, o Brasil é tido como um país em que a burocracia relacionada a tais ações impede ou dificulta a ação de atores da sociedade civil que pretendem investir economicamente em algum tipo de atividade. De fato, a pesquisa mostra que o Brasil ocupa uma posição muito ruim na classificação realizada. Diante desse posicionamento ruim, ações visando à melhoria dos procedimentos burocráticos são vistas como políticas a serem implementadas, ou seja, a melhoria da organização burocrática e suas regras passa a ser alvo de ações governamentais, constituindo-se, portanto, em políticas públicas a serem elaboradas e implementadas. Nesse sentido, há no país um conjunto de políticas de desburocratização, visando justamente facilitar as atividades enumeradas acima. Documentos e procedimentos em excesso travam os negócios Valor Econômico, publicado em 7 de março de 2010, de autoria de Juan Garrido A convivência com um cipoal de decretos, portarias e instruções normativas aplicados por diferentes órgãos do governo e cujos procedimentos nem sempre ocorrem de forma coordenada exige muita energia e muitos recursos dos brasileiros. Embora os especialistas afirmem que os abusos burocráticos não sejam uma característica só 34 UNIDADE II │ NUTRIÇÃO E ENVELHECIMENTO HUMANO verde-amarela – e sim uma epidemia mundial –, dados do Banco Mundial mostram que no Brasil a regulação da atividade econômica é uma das mais travadas no mundo. A pesquisa anual “Doing Business”, promovida anualmente pela instituição, faz uma análise comparativa entre 183 países. Por meio da aplicação de modelos empíricos, examina a facilidade para a abertura de empresas, obtenção de alvarás, contratação de funcionários, registro de propriedades, obtenção de crédito, proteção de investidores, pagamento de impostos, comércio entre fronteiras, cumprimento de contratos e fechamento de empresas. Sob a perspectiva geral da facilidade para fazer negócios, o Brasil está na 129ª posição entre as 183 economias analisadas – dois pontos abaixo do relatório de 2009. Na América Latina, só ficaram abaixo Equador, Bolívia, Venezuela, Haiti, Suriname e Honduras. Entre os dados que mostram a economia brasileira saindo-se bem figuram o índice de cobertura de órgãos privados de proteção ao crédito, a transparência nas relações com investidores e o índice de eficiência na proteção a esses investidores (tudo na esfera de atuação privada). O pior dos resultados está nos procedimentos para o pagamento de impostos, em que o Brasil ocupa a 150ª posição. Os empresários brasileiros, segundo a pesquisa, têm que arcar com os custos de 2.600 horas anuais de trabalho para fazer frente à burocracia tributária. A média, na América Latina e no Caribe, é de 385,2 horas. Nos países de renda elevada (OCDE), de 194,1 horas. O governo brasileiro, no entanto, vê esses dados com desconfiança. “A metodologia utilizada pelo Banco Mundial – que coleta as informações por intermédio de formulários preenchidos por intermediários – vem sendo objeto de questionamentos por parte do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC)”, diz o secretário de Comércio Exterior da pasta, Edson Lupatini Júnior. Segundo ele, o MDIC, em parceria com diversos órgãos do governo federal, tem se esforçado para a melhoria do ambiente jurídico, com simplificação e desburocratização dos processos de legalização e funcionamento das empresas, bem como do desenvolvimento de sistemas informatizados. O principal instrumento desse processo é a Rede Nacional de Simplificação de Registro e Legalização de Empresas e Negócios (Redesim). A primeira etapa da implantação da rede deu-se com a entrada no ar do Portal do Empreendedor Individual (MEI), que tem como meta a formalização de 1 milhão de cidadãos que recebem até R$ 36 mil por ano. “Trata-se de processo automático do registro do empreendedor e será um grande laboratório para testar a eficácia das medidas implantadas”, diz Lupatini. Os próximos passos serão a extensão da Redesim para os demais tipos e portes de empreendimentos, que dará a todos os empresários condições de abrir, encerrar e transformar seus negócios de forma substancialmente mais simples que a atual. 35 GESTÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS │ UNIDADE II “Outra iniciativa será a adoção do alvará provisório, que alcançará um grande número de empresas”, diz. Esse conjunto de medidas, em associação com outras iniciativas dos governos estaduais e municipais, permitirá em um futuro próximo a plena automatização do processo de legalização e funcionamento de quase todas as empresas brasileiras, avalia Lupatini. Com uma visão mais crítica, o economista Renato Fonseca, coordenador do programa “Corte a Burocracia” da Confederação Nacional da Indústria (CNI), afirma que com regras que se amontoam e sofrem alteração a toda hora, o governo se vê obrigado a concursar mais fiscais e as empresas a inchar seus departamentos contábeis e jurídicos para assimilar as legislações, em vez de investir em, por exemplo, inovação tecnológica e aumento da produção. O arsenal de regulamentos que o governo criou para se defender das más práticas das empresas – a corrupção, via superfaturamento e outros expedientes – tem-se mostrado pouco eficaz, avalia Fonseca. “Não adianta instalar um portão para fechar o sinal de tráfego, pois quem quer burlar os códigos de trânsito acaba dando a volta”. Para ele, a verdadeira solução é endurecer as punições aos faltosos. O programa da CNI visa coletar sugestões do setor privado e da sociedade em geral e selecionar aquelas que possam servir como insumos efetivos para racionalizar os controles e que seriam encaminhadas possivelmente à Casa Civil – o ponto focal do governo que “conversa” com todos os ministérios. Fonseca alerta, contudo, que o espectro das proposições não será largo a ponto de sugerir mudanças na Constituição. A intenção não é apresentar um plano de reforma tributária inteira, ou de uma reforma trabalhista completa, por exemplo. “A ideia do projeto é tentar comer pelas beiradas, investindo contra os nichos onde se possa reduzir a burocracia.” Como exemplo, cita as micro e pequenas empresas, que respondem por uma parcela pequena da arrecadação do país e por isso tornam sem sentido gastos do governo para fiscalizar uma por uma. “Os recursos deveriam ser reservados para a fiscalização do conjunto de empresas que representa o filé mignon da arrecadação.” Com isso, diz, haveria mais eficiência no processo de verificação e ao mesmo tempo os negócios
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