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Instrutores Felipe Augusto de Toledo Moreira Marcos Suassuna Base Legal e Noções de Direito Administrativo Base Legal e Noções de Direito Administrativo 2018 _____ www.kpmg.com.br 3 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Sumário Parte I – Hierarquia normativa e improbidade administrativa 04 Introdução: o ordenamento jurídico brasileiro e o combate à corrupção 05 O ordenamento jurídico e a hierarquização das normas 11 Princípios constitucionais da Administração Pública 14 Ética e moral no serviço público 23 Exercício para fixação das conclusões parciais 26 Lei Federal nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa) 30 Classificação legal dos atos de improbidade administrativa 36 Noção introdutória de responsabilidade administrativa 43 Conclusões finais dialogadas e interativas 44 Parte II – Direito Administrativo Disciplinar 46 Processo e procedimento administrativo 47 Sindicância 53 Processo administrativo disciplinar 55 Exercício para fixação das conclusões parciais 56 Penalidades disciplinares 58 Prescrição 61 Papel dos Ministérios Públicos Federal e Estadual 62 Conclusões finais dialogadas e interativas 63 Referências bibliográficas 65 4 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Parte I – Hierarquia normativa e improbidade administrativa 5 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Introdução: o ordenamento jurídico brasileiro e combate à corrupção Ficha limpa, vedação ao nepotismo, probidade administrativa, cláusulas anticorrupção, programas de integridade, compliance. Estes conceitos, integrados ao direito administrativo brasileiro, sobretudo a partir da década de 1990 por meio de diversos diplomas legais, refletem a busca por transparência na administração de recursos públicos e nas relações público-privadas, anseio fortalecido com a promulgação da Constituição Federal de 1988, no processo de (re)democratização do Estado brasileiro. Ultrapassou o debate na esfera pública para chegar ao núcleo do sistema político – o Poder Legislativo com sua função primordial de inovar o direito – a premência da criação de normas que filtram desde aqueles que poderão exercer mandato eletivo ou cargo em comissão1, até as pessoas físicas e jurídicas aptas a celebrar contratos com órgãos e entidades da Administração Pública2. Tais medidas foram necessárias para interromper o crescimento da desconfiança dos cidadãos nas instituições políticas e da deslegitimação das instituições tradicionais de representação política, dentre elas os partidos políticos e os legislativos.3 1 A Lei da Ficha Limpa ( Lei Complementar nº 135, de 2010) que regulamenta restrições à elegibilidade, foi antecedida de um movimento popular pela moralização da política, sendo o projeto de lei de iniciativa popular articulado por entidades que fazem parte do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), e mobilizou vários setores da sociedade brasileira, entre eles, a Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais (Abramppe), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), organizações não governamentais, sindicatos, associações e confederações de diversas categorias profissionais, além da Igreja católica. Foram obtidas mais de 1 milhão e 600 mil assinaturas em apoio. Para aprofundar a matéria, veja: http://www.tse.jus.br/o-tse/escola-judiciaria-eleitoral/publicacoes/revistas-da-eje/artigos/revista- eletronica-eje-n.-4-ano-5/digressoes-sobre-as-doacoes-de-campanha-oriundas-de-pessoas-juridicas. 2 A primeira norma a estabelecer expressamente vedação ao nepotismo no âmbito da Administração Pública brasileira foi a Resolução n. 7, de 18/10/2005, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que disciplina o exercício de cargos, empregos e funções por parentes, cônjuges e companheiros de magistrados e de servidores investidos em cargos de direção e assessoramento, no âmbito dos órgãos do Poder Judiciário, caracterizando como atos de nepotismos aqueles previstos em seu art. 2°. 3 Cf. FIGUEIRAS, Fernando. Sociedade civil e controle social da corrupção. In: Revista em Debate, Belo Horizonte, v. 3, n. 4, p- 14-28, dez. 2011. 6 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Nesse prisma, o combate à corrupção4 em todas as suas formas, deixa de ser uma questão exclusivamente penal, que faz incidir sobre determinado sujeito passivo – preenchidos os pressupostos de tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade – as penas cominadas nos art. 317 e 333 do Código Penal5, no âmbito de ação penal pública, conduzida pelo Ministério Público. O munus de enfrentar a corrupção é ampliado para o âmbito cível e administrativo e, deixando de ser um enfrentamento buscado exclusivamente no Poder Judiciário e em ações penais. Sanções administrativas podem ser aplicadas pela Administração Pública e envolvem desde a cominação de penas pecuniárias (multa, restituição do dano ao erário, a decretação de perdimento de bens), sanções reputacionais (como a admissão da prática de atos de corrupção em jornais de grande circulação), além da aplicação de sanções que podem determinar a limitação do relacionamento de pessoas jurídicas com o Poder Público (na participação de licitações públicas ou recebimento de subvenções e empréstimos públicos). Para o agente público, conceito que ganhou maior abrangência com a Lei de Improbidade Administrativa, são previstas penalidades disciplinares severas, que podem definir desde penas pecuniárias até a sua demissão do cargo público, respeitado, por óbvio, o devido processo disciplinar. Todo esse movimento de intensificação do controle e fiscalização da destinação de recursos públicos, da probidade da conduta dos agentes públicos e dos administrados que com eles se relacionam, em âmbito administrativo e civil, ocorreu com a promulgação da Constituição Federal de 1988, norma maior do ordenamento jurídico brasileiro. 4 O Dicionário de Política, de Bobbio, Mateucci e Pasquino (1998, p. 292), traz uma classificação de tipos de corrupção que assim define o termo: A corrupção é uma forma particular de exercer influência: influência ilícita, ilegal e ilegítima (...). É uma alternativa da coerção, posta em prática quando as duas partes são bastante poderosas para tornar a coerção muito custosa, ou são incapazes de a usar. 5 Código Penal Corrupção passiva Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi- la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.763, de 12.11.2003) § 1º - A pena é aumentada de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.§ 2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. Corrupção ativa Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.763, de 12.11.2003) Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite atode ofício, ou o pratica infringindo dever funcional. 7 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Conforme afirma Leonardo Avritzer a respeito de sistemas de accountability estabelecidos pela Constituição de 19886: Diversos atores, antes e durante o processo constituinte, propuseram a criação de fortes marcos legais para o fortalecimento da divisão de poderes, da accountability e, nesse mesmo sentido, do judicial review. Destacam-se (1) a garantia de ampla autonomia do poder judiciário (CRFB/88, arts. 95, 96, 99); (2) o estabelecimento de um complexo e extenso sistema de revisão judicial da constitucionalidade das leis e atos normativos (CRFB/88, arts. 102 e 103); e (3) o reconhecimento e fortalecimento da ampliação das funções do Ministério Público no sentido de fiscalizar políticos e burocratas, aproximando o órgão ministerial da figura das agências burocráticas de accountability horizontal (CRFB/88, art. 127). A esses mecanismos de accountability é possível somar a ampliação da participação cidadã, por meio da propositura de popular para defender a moralidade administrativa (artigo 5º, inciso 73), a ampliação dos espaços de participação das diferentes organizações e associações que compõem a sociedade civil, por meio da criação de conselhos gestores de políticas públicas (órgãos colegiados, em que as organizações da sociedade civil e representantes dos governos partilham o poder de forma que representem interesses e façam a intermediação entre Estado e sociedade nos processos de decisão, implementação e avaliação de políticas públicas7. Estão previstos na CF no art. 216-A §2º, II, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Cultura), ouvidorias (art. 103-A, §7º, art. 130-A, §5º) e intervenção federal nos estados que descumprirem os princípios republicanos, entre eles a prestação de contas na administração (artigo 34). Para dar concretude às disposições constitucionais, foram criados mecanismos normativos e estruturas burocráticas para tutelar a probidade administrativa. Essa estruturação, em âmbito infraconstitucional, iniciou-se com a Lei n. 8.443/1992, a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, que materializa as competências previstas nos art. 70 e 71 da Constituição de 1988 e, com a criação da Controladoria-Geral da União (CGU), o que ocorreu em 2001 como meio relevante de controle interno da Administração Pública Federal. 6 AVRITZER, Leonardo. MARONA, Marjorie. A Tensão entre Soberania e Instituições de Controle na Democracia. In: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 60, no 2, 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/dados/v60n2/0011-5258-dados- 60-2-0359.pdf 7 Cf. FIGUEIRAS, Fernando. Sociedade civil e controle social da corrupção. In: Revista em Debate. Belo Horizonte, v. 3, n. 4, p- 14-28, dez. 2011. 8 Base Legal e Noções de Direito Administrativo No mesmo ano foi também regulamentado o art. 37, § 4º8 da Constituição de 1988, por meio da Lei n. 8.429/1992, a Lei de Improbidade Administrativa, que tipifica os atos ímprobos de agentes públicos e, por extensão, de terceiros beneficiários, direta ou diretamente, com as práticas desonestas. Essa lei foi um marco na apuração de atos de corrupção no âmbito da Administração Pública, sobretudo pelo caráter civil das sanções nela cominadas, apuradas em processo judicial, observados os princípios do direito administrativo sancionador. Esta legislação será objeto de análise detida neste curso. Nessa breve linha do tempo merece também destaque iniciativas mais recentes, dentre as quais a Lei Complementar n. 135/2010, “Lei da Ficha Limpa”, que protege a probidade administrativa por meio de hipóteses de inelegibilidade a cargos políticos de candidatos condenados por órgãos colegiados e a Lei n. 12.527/2011, “Lei de Acesso à Informação”, que é um marco na busca da Administração Pública de consolidar a cultura da transparência. A Lei Anticorrupção – Lei n. 12.846, que entrou em vigor em 29.01.20149 –, e inovou o ordenamento jurídico brasileiro ao dispor sobre a responsabilidade administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos contra a administração pública nacional10 ou estrangeira. A iniciativa legislativa decorreu dos compromissos internacionais aos quais o Brasil se vinculou, notadamente a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (UNCAC)11, a Convenção Interamericana Contra a Corrupção (OEA)12 e a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)13. 8 Que dispõe: “Os atos de improbidade administrativa importarão suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade de bens e o ressarcimento ao erário, na forma e na gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”. 9 O Projeto de Lei n. 6.826/2010, que deu origem à Lei Anticorrupção, foi proposto pela Controladoria Geral da União em 18 de fevereiro 2010. A Lei foi publicada em 2.8.2013, com vacância de 180 dias. 10 A administração pública nacional compreende as esferas federal, estadual e municipal e contempla tanto a administração direta quanto a administração indireta, neste caso envolvendo empresas públicas, autarquias, fundações e sociedades de economia mista (vide definições contidas no caput do Artigo 37 da Constituição Federal e no Decreto-Lei 200/1967). 11 O Decreto n. 5.687, de 31 de janeiro de 2006, promulgou a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003. 12 O Decreto n. 4.410, de 7 de outubro de 2002, promulgou a Convenção Interamericana contra a Corrupção, de 29 de março de 1996, com reserva para o art. XI, parágrafo 1º, inciso “c”. 13 O Decreto n. 3.678, de 30 de novembro de 2000, promulgou a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, concluída em Paris, em 17 de dezembro de 1997. 9 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Conforme estabelece o caput do art. 1°, a Lei Anticorrupção adotou a modalidade objetiva de responsabilidade, civil e administrativa14, de modo que as pessoas jurídicas lato sensu poderão ser imputadas pelos atos ilícitos previstos na lei independentemente de elemento subjetivo (culpa ou dolo), bastando a comprovação do nexo causal entre a conduta proibida e o evento estabelecido em lei como gerador da consequência. Com efeito, a empresa poderá ser responsabilizada quando alguém praticar, em seu interesse e benefício, ato lesivo à administração pública (art. 2º), seja um de seus dirigentes, gestores, prepostos, empregados em geral ou até terceiros que estejam representando esses interesses empresariais e que sejam autores do ato lesivo (art. 3º). A aplicação de tais normas requer iniciativas coordenadas entre os vários atores que se envolvem no enfrentamento da corrupção. Em 2003 foram realizadas duas iniciativas que fortaleceram o combate à corrupção, por meio do fortalecimento institucional do Estado. A primeira iniciativa foi a criação da Controladoria-Geral da União (CGU), em 28 de maio de 2003, com a publicação da Lei nº 10.683, legislação que atribuiu à CGU competência para assistir direta e imediatamente ao Presidente da República no desempenho de suas atribuições quanto aos assuntos que, no âmbito do Poder Executivo, sejam relativos à defesa do patrimônio público e ao incremento da transparência da gestão, por meio das atividades de controle interno, auditoria pública, correição, prevenção e combate à corrupção, e ouvidoria. A segunda iniciativa foi a instituição da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro(Enccla). A Enccla, coordenada pelo Ministério da Justiça, congrega mais de 60 órgãos dos três Poderes, Ministérios Públicos (dentre os quais o Ministério Público do Estado do Paraná) e da sociedade civil. A Enccla tem por objetivo identificar e propor ajustes no sistema anticorrupção brasileiro e foi reconhecida pela ONU como boa prática, apta a fomentar políticas de enfrentamento à corrupção. 14 A constitucionalidade da Lei Anticorrupção é objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5.261 (distribuída em 1.3.2015 sob a relatoria do Min. Marco Aurélio) de autoria do Partido Social Liberal, a qual questiona a imposição de responsabilidade objetiva às pessoas jurídicas. Status atual: vistas à PGR, andamento no seguinte link: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4730342 10 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Quadro 1: Combate à Corrupção no Estado do Paraná Em 8.5.2018 foi publicado o Decreto n. 9.489/2018, da Governadora do Estado Paraná que acrescenta ao item 4 do artigo 3° do anexo ao Decreto nº 4.884 de 24.04.1978, o subitem 4.9, o qual cria no âmbito do Departamento da Polícia Civil do Estado do Paraná a Divisão de Combate à Corrupção. A Divisão de Combate à Corrupção, tem como atribuição organização, orientação, coordenação e controle das atividades afetas às Unidades que lhe são subordinadas, cabendo-lhe adotar as medidas necessárias para a prevenção, investigação, repressão e processamento dos crimes de corrupção. A Divisão de Combate à Corrupção é integrada pelos seguintes órgãos: o Núcleo de Repressão a Crimes Econômicos – NURCE, o qual será denominado Divisão de Combate à Corrupção – Núcleo Curitiba. 11 Base Legal e Noções de Direito Administrativo O ordenamento jurídico e a hierarquização das normas Os teóricos da ciência jurídica possuem a difícil tarefa de determinar qual é o fundamento de validade e de eficácia da norma jurídica. Por que devemos definir nosso comportamento segundo o direito? Qual é o fundamento de validade para essa prescrição cogente? É uma das primeiras questões colocadas ao estudante de direito a justificativa para determinar que cidadão realize a sua conduta segundo uma norma prevista na Constituição Federal ou em uma lei ordinária que determine o pagamento de tributos, o uso do cinto de segurança, o dever de parar no farol vermelho. E essa tarefa não se esgotou no tempo, mas é continuamente revisitada por positivistas, jurisnaturalistas, pós-positivistas, realistas. Como essa apostila tem por objetivo fazer apenas breves considerações à ideia de ordenamento jurídico e sua configuração hierárquica, adotaremos aqui as clássicas lições de Hans Kelsen, em sua teoria pura do direito. Para Kelsen a norma jurídica se distingue de normas morais porque é um mandamento dirigido a determinar a conduta do sujeito, que deverá conduzir-se segundo a norma, sob pena de sanção. A norma, enquanto dever-ser, pode determinar ao cidadão uma obrigação (ex: proibição de fumar em ambientes fechados), mas também, expressamente, permitir determinada conduta (ex: autorizar o uso de cão-guia em transporte coletivo) ou conferir competência (ex: autorizar um fiscal a cobrar tributos)15. A primeira premissa para entender a cogência da norma é saber que ela não é um enunciado sobre a realidade e, portanto, não tem como ser verdadeira ou falsa, mas válida ou não-válida. Portanto, determinará o comportamento do cidadão aquela norma que teve origem em outra norma jurídica igualmente válida: “O fundamento de validade de uma norma é sempre uma norma, não um fato. A procura do fundamento de validade de uma norma reporta- se, não à realidade, mas a outra norma da qual a primeira é derivável.”16 15 Norberto Bobbio refere-se a modalidades normativas ou deônticas de regras de conduta, traduzidas no "obrigatório", no "proibido" e no "permitido". 16 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, 162. 12 Base Legal e Noções de Direito Administrativo E nesse ponto surgem dois pontos fundamentais para a teoria kelseniana: (a) A norma hipotética fundamental Para resolver esse retorno sem fim para a norma que dá validade a todas as demais normas de determinado ordenamento jurídico, Kelsen propõe que o fundamento último de validade de todas as normas de um ordenamento jurídico é a “norma hipotética fundamental”. Esta norma hipotética é exterior ao ordenamento, i.e., não é uma norma escrita (jurídica positiva), que faz uma determinada prescrição. Ela tem o condão apenas de ser a norma que confere validade à norma máxima positivada. Esta norma fundamental não é criada em um procedimento jurídico por um órgão criador de Direito. Ela é válida por ser pressuposta como válida. (b) Hierarquização das normas Conforme já indicamos, só é válida a norma que tem seu fundamento em outra norma e isso faz com que o ordenamento jurídico seja escalonado, entre normas de maior e menor nível hierárquico. Sendo assim, a norma será sempre validada pela norma hierarquicamente superior: “A validade da norma inferior é fundamentada pela validade da norma superior pela circunstância de que a norma inferior foi produzida como prescreve a norma superior.” A Constituição é a norma máxima de um ordenamento positivo e é válida porque foi criada por um poder constituinte outorgado por uma Constituição anterior. Essa hierarquização pode ser didaticamente demonstrada em forma de pirâmide, cujo ponto superior está a norma de maior hierarquia no ordenamento jurídico e as demais são dela decorrentes, respeitado o escalonamento definido na Constituição. 13 Base Legal e Noções de Direito Administrativo O art. 59 da Constituição de 1988 prevê as emendas à Constituição, as leis complementares, as leis ordinárias, as leis delegadas, as medidas provisórias, os decretos legislativos e as resoluções são espécies normativas primárias (ou em sentido estrito). Dizer que estas são espécies normativas primárias significa afirmar que todos esses atos foram editados pelo Poder Legislativo em sua atribuição típica de elaborar normas que criam direito novo e inovam o ordenamento jurídico. As normas, em sentido estrito, são apenas hierarquicamente inferiores à Constituição, buscando nela o fundamento direto de validade. Os atos administrativos, editados pela Administração Pública em seu poder regulamentar devem respeito às leis, de modo que nenhum órgão administrativo nada deve fazer que seja contrário a uma norma vigente da legislação, incompatível com uma tal norma. Essa matéria será melhor detalhada no estudo do princípio da legalidade. 14 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Princípios constitucionais da Administração Pública a. O que são princípios? A normas jurídicas podem ser classificadas como regras ou princípios17. Adotando a posição doutrinária de Robert Alexy, tem-se que são regras aquelas normas aplicadas por meio de subsunção e que expressam deveres definitivos. Assim, “as regras são normas que somente podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então há de se fazer exatamente o que ela exige, nem mais nem menos. Portanto, as regras contêm determinações de âmbito fática e juridicamente possíveis”18. O conflito de regras pode ser solucionado no âmbito da validade das normas, por meio dos critérios de solução de antinomias cronológico, hierárquico e da especialidade19. Princípios, por sua vez, são mandamentos de otimização, pois “ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes”20. Assim, ao inverso das regras, os princípios podem ser cumpridosem diferentes graus, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas. Deste modo, na existência de uma situação concreta, pode ocorrer que um princípio preceda ao outro, devendo este ser aplicado, mas que, em outra circunstância, o antes desprezado preceda ao “vitorioso”. b. Princípios da Administração Pública A doutrina subdivide os princípios da Administração Pública em implícitos e explícitos. Os explícitos estão previstos no art. 37, caput, da Constituição de 1988: 17 Cf. Robert ALEXY, Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 81. 18 Ibid. 19 Norberto Bobbio cuida deste tema em sua obra “Teoria do Ordenamento Jurídico”, p. 91-109. 20 Ob. cit., p. 86. 15 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) A Constituição do Estado do Paraná possui rol mais extenso ao art. 27, caput: Art. 27. A administração pública direta, indireta e fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, eficiência, motivação, economicidade e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional 11 de 10/12/2001) A Lei de Processo Administrativo Federal (Lei n. 9.784/1998) também traz rol de princípios da Administração Pública, verbis: Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Os princípios vinculam a Administração direta e indireta, da União, Estados, Distrito Federal e Municípios e incidem em todas as relações travadas entre o Estado e o particular, quer na condição de cidadão (que solicita a emissão do CPF), de licitantes, contratantes, delegatários de funções públicas (p. ex: concessionário de um serviço público). Em todas as ocasiões em que existir uma entidade estatal em um dos polos da relação jurídica (ainda que representado por um terceiro), estes princípios deverão nortear a conduta das partes. A seguir abordaremos cada um dos princípios indicados. O princípio da moralidade será abordado na Seção 4, na introdução às disposições da Lei n. 8.429/94 – a Lei de Improbidade Administrativa. b.1. Legalidade O princípio da legalidade é uma das principais garantias de direitos individuais previstas na Constituição Federal, remete ao fato de que a Administração Pública só pode fazer aquilo que a lei permite. 16 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Para os particulares, é possível praticar tudo aquilo que a lei não proíbe, pois atua em interesse próprio (relação de não contradição ou contrariedade com a lei - art. 5, II, CF). Já a Administração só atua quando a Lei permite ou determina expressamente e, por vezes (legalidade restrita ou estrita legalidade). A Administração Pública, portanto, sempre deve atuar segundo a Lei, sendo todos os atos administrativos editados subordinados aos limites previamente impostos pela lei regulamentada. Nesse sentido, afirma Celso Antônio Bandeira de Mello ao se referir aos decretos regulamentares : “Ditos regulamentos cumprem a imprescindível função de, balizando o comportamento dos múltiplos órgãos e agentes aos quais incumbe fazer observar a lei, de um lado, oferecer segurança jurídica aos administrados sobre o que deve ser considerado proibido ou exigido pela lei (e, ipso facto, excluído do campo da livre autonomia da vontade), e, de outro lado, garantir aplicação isonômica da lei, pois, se não existisse esta normação infralegal, alguns servidores públicos, em um dado caso, entenderiam perigosa, insalubre ou insegura dada situação, ao passo que outros, em casos iguais, dispensariam soluções diferentes.” 21 b.2. Impessoalidade O princípio da impessoalidade deve ser examinado em duplo aspecto. O primeiro é que o ato administrativo não pode ser editado visando perseguir ou favorecer pessoa determinada, pois é sempre o interesse público que deve nortear a conduta do agente público (princípio da finalidade22). Assim, é proibido privilegiar ou prejudicar alguém de forma gratuita e em particular (vertente da não-discriminação e da isonomia). A se referir à impessoalidade, afirma Celso Antônio Bandeira de Mello: “Nele se traduz a ideia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideologias não podem interferir na 21 Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. 30ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, 367. 22O administrador precisa perseguir a finalidade do ato, que está prevista na Lei. 17 Base Legal e Noções de Direito Administrativo atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie.” 23 A discriminação apenas será legitima se for para perseguir o interesse público, observados parâmetros da razoabilidade (por exemplo, a concessão de cotas em universidades públicas). A doutrina moderna trabalha o princípio da impessoalidade sob a ótica do agente público, que não pode ser visto como uma pessoa, mas como Estado atuando por seu intermédio. Trata-se da “teoria do órgão” ou teoria da imputação volitiva, segundo a qual a conduta do agente é imputada à Administração Pública que ele representa. (ex: na propaganda obrigatória dos atos de governo, não poderão aparecer nomes, imagens ou símbolos que representem promoção pessoal de autoridades ou serviços públicos (art. 37, § 1º, CF) b.3. Publicidade O princípio da publicidade consiste no dever de ampla divulgação dos atos oficiais. Está relacionado com o princípio republicano, porque a Administração não tutela interesse próprio e, por isso, deve prestar contas. É uma forma de garantia de controle da atuação administrativa pelo cidadão. A publicidade deve ser entendida como: i. Requisito de validade dos atos administrativos, pois é um requisito procedimental ou formal para a sua produção. ii. Requisito de eficácia dos atos administrativos, que apenas poderão produz efeitos em relação a terceiros após devidamente publicado. A transparência está diretamente relacionada ao dever de publicidade e, nos termos da Lei de Acesso à Informação (Lei n. 12.527/2011) deve ser examinada sob duas perspectivas: 23 Idem, p. 114. 18 Base Legal e Noções de Direito Administrativo i. ativa – divulgação dos atos oficiais e dados armazenados independentemente de solicitação. É um aspecto de proatividade, relacionado com accountability; ii. passiva – depende de solicitação do cidadão, tanto quanto a informações de interesse pessoal, bem como coletivo que não foram previamente fornecidas pela Administração. Contudo, a publicidade poderá ser limitada. As situações que admitem sigilo podem ser agrupadas em dois aspectos: i. defesa do Estado e da sociedade - interesse coletivo relevante, proteção da segurança nacional(caráter geral e coletivo - art. 5°, XXXIII); ii. proteção da honra, intimidade e vida privada (caráter individual) – art. 5°, X e LX. b.4. Eficiência Este princípio foi incluído na Constituição de 1988 por meio da EC 19/9824. A eficiência determina que a Administração está obrigada a atuar do melhor modo possível, ou seja, combase na noção de qualificação, produtividade, efetividade, celeridade (CF, art. 5°, LXXVIII). Celso Antônio relaciona o princípio da eficiência com o direito fundamental à boa administração. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por sua vez, o examina sob duplo aspecto: “O princípio apresenta-se sob dois aspectos, podendo tanto ser considerado em relação à forma de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atuações e atribuições, para lograr os melhores resultados, como também em relação ao modo racional de se organizar , estruturar, disciplinar a administração pública, e também com o intuito de alcance de resultados na prestação do serviço público.”25 24Promoveu a reforma administrativa e instaurou um modelo gerencial da Administração. Por isso, a eficiência é o princípio mais novo. 25 PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2002 19 Base Legal e Noções de Direito Administrativo A eficiência, portanto, tem por finalidade manter ou ampliar a qualidade dos serviços prestados pela Administração Pública, com controle e diminuição de gastos. Portanto, a redução de qualidade ou aumento de gastos implica em inconstitucionalidades. A economicidade prevista como princípio na Constituição do Estado do Paraná, é uma das decorrências do princípio da eficiência e deve ser entendido como o dever de adequação entre custo e benefício. É medida de racionalização do uso de recursos públicos, tendo em vista que o seu dispêndio deve ser realizado da maneira mais eficiente possível. b.5. Contraditório e ampla defesa O contraditório e a ampla defesa se conjugam para garantir ao cidadão a ciência do que acontece no processo administrativo, o direito de se manifestar a respeito e produzir todas as provas em direito previstas. Nesse sentido, no âmbito da Lei Federal n. 9.784/99, exige-se que haja a intimação das partes para a produção de prova ou diligência ordenada, com antecedência mínima de 03 dias úteis, mencionando-se data, hora e local de realização (art. 26). b.6. Razoabilidade e proporcionalidade A proporcionalidade teve gênese na jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, na década de 1950, a partir de decisões nas quais esta Corte cuidava do controle de leis restritivas de direitos fundamentais. A razoabilidade, por sua vez, se originou no direito anglo-saxão, e remonta à Magna Carta de 1215, que limitou os poderes do rei. Razoabilidade e proporcionalidade são materialmente distintas. Por meio da razoabilidade infere-se se o ato estatal tem plausibilidade interna, vale dizer, se existe um nexo lógico entre o meio empregado e o fim pretendido. O princípio da razoabilidade impede, também, que o poder estatal seja exercido em contraposição ao que os cidadãos julgam plausível e aceitável. Por outro lado, a proporcionalidade exige a observação – de modo subsidiário – de seus três sub-elementos, a saber: adequação, necessidade e proporcionalidade estrito sensu, razão pela qual o ato estatal deverá a um só tempo, para que seja proporcional, ser 20 Base Legal e Noções de Direito Administrativo apto ao fim a que se destina, ser o menos gravoso possível para a consecução de tal fim e produzir vantagens superiores aos prejuízos causados26. Analisando mais proximamente a regra da proporcionalidade, destaca-se algumas anotações prévias importantes: (i) a análise das sub-regras da proporcionalidade deve ser feita necessariamente nesta ordem: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito; (ii) Isso porque, estas regras são subsidiárias entre si, vale dizer, a aplicação da regra da proporcionalidade nem sempre esgotará todas estas espécies; poderá ocorrer, por exemplo, que determinado ato estatal nem ao menos seja adequado, daí a desnecessidade de observar as demais sub-regras; (iii) a análise da proporcionalidade deverá ser empreendida no caso concreto, observando-se empiricamente o ato estatal impugnado. Isto se deve ao fato de só ser viável a observação do núcleo dos princípios, quando estes se colidam concretamente27. Consigne-se que a proporcionalidade vincula toda as formas de manifestação do poder extroverso, vale dizer, todo ato estatal. Portanto, vincula a atividade dos poderes Legislativo (v.g, quando da aferição da constitucionalidade da lei), Judiciário e Executivo (sobretudo em sua atividade de polícia) de forma indistinta. b.7. Motivação O Princípio da motivação determina que a administração deverá justificar seus atos, identificando as razões de fato e de direito que levaram àquela decisão. O motivo são as razões em si e a motivação é a exposição das razões. Maria Sylvia Zanella Di Pietro distingue o motivo e motivação nos seguintes termos: 26 Importante destacar a existência de teorias ecléticas, que incorporam o conceito de proporcionalidade ao de razoabilidade. Quanto ao tema, investigar a obra de Gilmar Ferreira Mendes, Celso Antônio Bandeira de Mello, Luís Roberto Barroso e Humberto Ávila. 27 Estas anotações foram extraídas da leitura do artigo “O Proporcional e o Razoável”, de Virgílio Afonso da SILVA, publicado na Revista dos Tribunais n.° 798, 2000, p.34/35. 21 Base Legal e Noções de Direito Administrativo “O motivo é o pressuposto de fato e de direito que serve de fundamento ao ato administrativo e que a motivação é a exposição dos motivos, ou seja, é a demonstração, por escrito, de que os pressupostos de fato realmente existiram.” e ainda exemplifica dizendo que “(...) no ato de punição do funcionário, o motivo é a infração que ele praticou, no tombamento, é o valor cultural do bem, na licença para construir, é o conjunto de requisitos comprovados pelo proprietário, na exoneração do funcionário estável, é o pedido por ele formulado.” 28 Trata-se de importante forma de controle social, que incide sobre todos os atos, inclusive os discricionários. b.8. Segurança jurídica Todos os dias há a edição e a revogação de novas leis e atos administrativos. Constantemente há modificação no entendimento da Administração Pública diante de determinado fato concreto, por meio de novas interpretações e que afetam diretamente direitos subjetivos e causam insegurança. A mudança de interpretação de determinadas normas legais, com a consequente mudança de orientação, em caráter normativo, podem afetar situações já reconhecidas e consolidadas na vigência de orientação anterior e a segurança jurídica congrega uma série de institutos do direito para evitar o caos garantir a estabilidade das relações jurídicas. Nesse sentido, dispõe o art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. § 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. § 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso. 28 Ob. Cit., p. 212. 22 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Celso Antônio Bandeira de Mello, no mesmo sentido aduz: "Os institutos da prescrição, da decadência, da preclusão (na esfera processual), do usucapião, da irretroatividade da lei, do direito adquirido, são expressões concretas que bem relevam esta profunda aspiração à estabilidade, à segurança, conatural do Direito." 29 Nesse sentido, é possívelque decorrem do princípio da segurança jurídica.: i) convalidação de atos administrativos inválidos; ii) estabilização de efeitos para resguardar direitos adquiridos de terceiros de boa-fé; iii) prazo decadencial de 05 anos, contados da data de sua ciência, para anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, salvo comprovada má-fé do beneficiário (art. 54 da Lei 9.784/99); iv) nova interpretação de norma administrativa não pode retroagir, ainda que a interpretação anterior fosse ilegal. 29 Ob. Cit, p. 113 23 Base Legal e Noções de Direito Administrativo ética e moral no serviço público O estudo da ética retoma aos estudos de Aristóteles, que viveu entre os anos de 384-322 a.C. Portanto, não há aqui qualquer pretensão de esgotar o tema, que é objeto de intenso debate filosófico desde então (há milênios, portanto). O objetivo deste tópico, portanto, é localizar a relevância da ética e da moral para a atuação dos servidores públicos. Na tradição filosófica, há autores que, diante da origem etimológica comum de palavras “ética” e “moral”30, adotam-nas como sinônimas. Entretanto, é possível fazer uma distinção a partir do uso corrente desses conceitos. Nessa perspectiva, seria possível entender-se ética como a ciência, disciplina filosófica, que reflete criticamente sobre os costumes e modos de ser (ciência da moral). Ética estuda as relações entre o indivíduo e o contexto em que está situado. Ou seja, entre o que é individualizado e o mundo a sua volta [mundo moral]. Procura enunciar e explicar as regras [sobre as quais se fundamenta a ação humana ou razão pela qual se deve fazer algo], normas, leis e princípios que regem os fenômenos éticos. São fenômenos éticos todos os acontecimentos que ocorrem nas relações entre o indivíduo e o seu contexto.31 A moral, por sua vez, pode ser compreendida como o objeto de estudo da ética, e se refere a um conjunto de normas que dizem respeito ao comportamento humano e à sua classificação como moral ou imoral, bom ou mal, correto ou incorreto em uma sociedade específica (situada em determinado espaço e tempo). Nesse prisma, a moralidade refere-se ao conjunto de normas de conduta (dever-ser, não necessariamente positivados), que definem valores e ideais de vida boa socialmente estabelecidos. Segundo o dicionário Houaiss: Moral – denota bons costumes, boa conduta, segundo os preceitos socialmente estabelecidos pela sociedade ou por determinado grupo social. Cada um dos sistemas de leis e valores estudados pela ética 30 De acordo com o dicionário de filosofia de J. Ferrater Mora “a moral deriva de ηθοζ ‘costumes’, do mesmo modo que a ‘ética’, de ηθοζ” Apud. Figueiredo, A. M. Ética: origens e distinção da moral, In: Revista Saúde, Ética & Justiça. 2008;n. 13, p. 1- 9, p. 4. 31 Idem 24 Base Legal e Noções de Direito Administrativo (disciplina autônoma da filosofia), caracterizados por organizarem a vida das múltiplas comunidades humanas, diferenciando e definindo comportamentos proscritos, desaconselhados, permitidos ou ideais.32 Portanto, a ética significa ciência da moral, ou seja, a construção intelectual, organizada pela mente humana sobre a moral. A moral é o objeto de estudo da ética e se volta à consideração prática da realidade, designa a aplicação concreta da teoria filosófica (a ética) aos problemas concretos da vida em determinada sociedade33. A moral, desse modo, está ligada aos costumes, à tradição e à realidade cultural de determinada coletividade e prescreve normas que, distintamente das jurídicas, não são cogentes e são acatadas de forma livre e por convicção de foro íntimo. E a ética e a moral aplicada ao serviço público? Os servidores públicos, compreendidos de forma ampla (para incluir também os ocupantes de cargos em comissão e cargos temporários) devem pautar suas condutas por padrões morais estreitos, subordinando seus atos da vida civil e funcional a um padrão específico, denominado de moralidade administrativa. Portanto, para além de observar as regras de conduta estabelecidas socialmente, o servidor público deve respeito às normas morais positivadas pelo ordenamento jurídico. A moralidade administrativa, que pode ser definida, conforme lições de Maria Syvia Zanella de Pietro: Em resumo, sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a ideia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa. Nesse sentido, a moralidade a que o servidor deve respeito é aquela que foi internamente imposta pela Administração Pública, que disciplina o exercício de suas funções, por meio de Lei (ex: Estatuto do Servidor Público do Estado do Paraná), Decreto regulamentar, código de conduta etc. Os atos da vida privada do servidor público que não repercutam direta ou indiretamente em sua vida funcional, não ferem a moralidade administrativa, apesar de, 32 Houaiss A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva; 2001, p. 620. 33 Cf. Figueiredo, A. M. Ética: origens e distinção da moral, In: Revista Saúde, Ética & Justiça. 2008, n. 13, p. 1-9, p. 4. 25 Base Legal e Noções de Direito Administrativo em tese, violarem a moralidade comum do seio social. Assim, possível descumprimento de regra da moral privada não significa, por si só, violação à moralidade administrativa. Desse modo, as condutas da vida externa do servidor desvinculadas da função pública não são passíveis de sanção disciplinar, podendo receber censura apenas nos códigos de ética profissionais (no serviço público federal, vale a Lei nº 6.174/70 – Estatuto dos Funcionários Civis do Paraná. Quadro 2: Manual de Orientações Funcionais do Estado do Paraná 13. ÉTICA E COMPORTAMENTO 13.2. DEVERES DO SERVIDOR PÚBLICO Os deveres do servidor público são: • Assiduidade; • Pontualidade; • Urbanidade; • Discrição; • Lealdade e respeito às instituições constitucionais e administrativas a que servir; • Observância das normas legais e regulamentares; • Obediência às ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais; • Levar ao conhecimento de autoridades superiores irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo ou função; • Zelar pela economia e conservação do material que lhe for confiado; • Providenciar para que esteja sempre em ordem no assentamento individual, sua declaração de família; • Atender prontamente às requisições para defesa da Fazenda Pública e à expedição de certidões para defesa de direito; • Guardar sigilo sobre a documentação e os assuntos de natureza reservada de que tenha conhecimento em razão do cargo ou função; • Submeter-se a inspeção médica que for determinada pela autoridade competente; • Frequentar cursos legalmente instituídos para aperfeiçoamento ou especialização; • Comparecer à repartição às horas de trabalho ordinário e às de trabalho extraordinário, quando convocado, executando os serviços que lhe competirem. Fundamentação legal: • Lei nº 6.174/70, Art. 279 – Estatuto dos Funcionários Civis do Paraná. 26 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Exercício para fixação das conclusões parciais A fim de buscar a fixação das conclusões parciais até agora alcançadas, responda os itens a seguir: 1. O GOVERNADOR DO ESTADO TEM COMPETÊNCIA PARA EDITAR DECRETOS QUE NÃO TENHAM FUNDAMENTO LEGAL? ___________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ 2. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF) EDITOU A SÚMULA VINCULANTE Nº 13 (“A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal”) INSPIRADO EM QUAL PRINCÍPIO? ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ 27 Base Legal e Noções de Direito Administrativo 3. A DIVULGAÇÃO DA REMUNERAÇÃO DOS SERVIDORES PÚBLICOS (PUBLICIDADE) NÃO VIOLA O DIREITO À INTIMIDADE? ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ 4. O DEVER DE PRODUTIVIDADE DO SERVIDOR PÚBLICO PARA FINS DE APROVAÇÃO EM ESTÁGIO PROBATÓRIO PODE SER CARACTERIZADO COMO UMA DECORRÊNCIA DE QUAL PRINCÍPIO? ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ 28 Base Legal e Noções de Direito Administrativo 5. Complete os itens a seguir: (i) O princípio ________________________________ demanda que o administrador escolha sempre a maneira mais correta de atender ao interesse público, descabendo a utilização de critérios subjetivos e pessoais. (ii) “II - O acesso aos critérios de correção da prova de redação, bem assim de vista da aludida prova e de prazo para interposição de recurso é direito assegurado ao candidato, encontrando respaldo nos princípios norteadores dos atos administrativos, em especial, o da ___________________________, que visam assegurar, por fim, o pleno exercício do direito de acesso às informações, bem como do contraditório e da ampla defesa, com observância do devido processo legal, como garantias constitucionalmente consagradas (CF, art. 5º, incisos XXXIII, LIV e LV).” (TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO. AMS 2004.34.00.021156- 9/DF. Relator: Desembargador Federal Souza Prudente, julgado em 30/6/2008, DJF1 4.ago.2008. p. 452). 29 Base Legal e Noções de Direito Administrativo 6. O Município X, por intermédio da Secretaria de Negócios Jurídicos e da Procuradoria Geral do Município, disponibilizou edital para Concurso Público de provimento de cargos vagos de procurador do município. Foram disponibilizadas 70 (setenta) vagas, sendo que: (i) 5% (cinco por cento) do total de vagas destinadas a pessoas com deficiência(s) física(s) e sensorial(is), ou seja, 4 (quatro) vagas; (ii) 20% (vinte por cento) do total de vagas destinadas a negros, negras e afrodescendentes, ou seja, 14 (quatorze) vagas. Deste montante, 50% (cinquenta por cento) destinar-se-iam ao gênero masculino, ou seja, 7 (sete) vagas, e 50% (cinquenta por cento), destinar-se-iam ao gênero feminino, ou seja, 7 (sete) vagas. Durante o transcurso do concurso público, a municipalidade, através dos membros da comissão do concurso, alterou o edital e extinguiu a denominada cota por gênero, sob o argumento de que a Lei Municipal nº Y e o Decreto que a regulamentou eram inconstitucionais (= violação ao princípio da igualdade). Diante desse caso, pergunta-se: os membros da comissão agiram corretamente? ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ 30 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Lei Federal nº 8.429/1992 (Lei de improbidade administrativa) Princípio da moralidade administrativa O princípio da moralidade administrativa ingressou no ordenamento jurídico brasileiro com a promulgação da Constituição Federal de 1988, conforme detalhado no item 1. A moralidade positivada como norma de conduta no art. 37 da Constituição restringe-se a disciplinar as condutas das pessoas envolvidas nas relações jurídicas estabelecidas no âmbito da administração pública. A moralidade administrativa não se confunde com a moralidade comum. Diogo de Figueiredo Moreira Neto afirma, nesse aspecto, que “a moral comum é orientada pela distinção entre o bem e o mal, ao passo que a moral administrativa é orientada pela diferença prática entre boa e má administração"34. Para Celso Antônio Bandeira de Mello35, por sua vez, o princípio da moralidade administrativa representa o dever de atuação da Administração Pública consoante valores éticos, a fim de não praticar qualquer ilicitude apta a invalidar o ato produzido. Os cânones da lealdade e da boa-fé estão abrangidos em sua definição de princípio de moralidade, verbis: “Segundo os cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamentoastucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos” 34 Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Curso de Direito Administrativo, I I a edição, São Paulo: Forense, 1997. p. 70. 35 Ob. Cit., 115. 31 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Para Cármen Lúcia36, por sua vez, “A moralidade administrativa é o princípio segundo o qual o Estado define o desempenho da função administrativa segundo uma ordem ética acordada com os valores sociais prevalentes e voltada à realização de seus fins. Esta moral institucional, consoante aos parâmetros sociais, submete o administrador público. Considerando que o princípio da moralidade administrativa aperfeiçoa, assim, a virtude do comportamento da Administração Pública e, ainda, que esta virtuosidade é apreciada em sua adequação aos fins postos e cujo atingimento se busca pela pessoa pública, verifica-se que ele não seria plenamente observado se os meios de que se devem valer os agentes competentes não fossem objeto de exame e avaliação em sua consonância com as necessidades para realização daqueles objetivos. O acatamento do princípio da moralidade pública dá-se pela qualidade ética do comportamento virtuoso do agente que encarna, em determinada situação, o Estado administrador, entendendo-se tal virtuosidade como a conduta conforme à natureza do cargo por ele desenvolvida, dos fins buscados e consentâneos ao Direito e dos meios utilizado para o atingimento destes fins. (...) a moralidade administrativa não se restringe à verificação da obtenção de utilidade para a garantia de um determinado interesse público tido como meta da ação do agente. Mais que isto, a moralidade administrativa que se pretende ver acatada adentra o reino da finalidade de garantia da realização dos valores expressos na ideia de bem e da honestidade, que se pretendem ver realizados segundo o Direito legítimo.” Muitos deveres de conduta impostos por lei aos agentes públicos e privados envolvidos em relações jurídico-administrativas tem como fundamento a moralidade administrativa. Entretanto, a moralidade administrativa não pode determinar comportamentos que não estejam previamente prescritos em lei. Há de, na prática, existir um equilíbrio na aplicação do princípio da moralidade administrativa e o princípio da legalidade. 36 ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 192- 193. 32 Base Legal e Noções de Direito Administrativo O princípio da probidade, decorrência da moralidade administrativa, impõe ao agente público que resguarde a máxima honestidade no exercício de sua função pública e no uso de bens e serviços da administração pública. Conforme leciona Claudio Ari Mello, “O dever de probidade determina vedações de condutas ofensivas à moralidade administrativa: os agentes públicos não podem apropriar- se de bens ou recursos do Estado, não podem enriquecer valendo-se das prerrogativas e oportunidades dos seus cargos, não podem ser negligentes em relação à preservação do patrimônio público: não podem promover o enriquecimento ilícito de terceiros às custas da atuação do poder público”37. O art. 37, § 4°, da Constituição Federal prescreve que os atos de improbidade administrativa importarão a sanção dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, independente, sem prejuízo da ação penal cabível: § 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. Essa previsão constitucional foi regulamentada pela Lei n. 8.429/92, que instituiu um microssistema jurídico prevendo tipos legais de atos ilícitos de improbidade administrativa e sanções diversas aplicáveis a cada tipo de improbidade criada pela lei. 37 Mello, Claudio Ari. Fragmentos teóricos sobre a moralidade administrativa, In: RDA, Rio de Janeiro, 235: 93-116, jan/mar 2014, p. 112. 33 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Conceito de improbidade administrativa A literatura38 e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ39 reconhecem que a improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente, razão pela qual a caracterização de improbidade pressupõe que a conduta do agente público seja dolosa para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92 (os atos de improbidade que importam enriquecimento ilícito e os atos de improbidade que atentam contra os princípios da administração pública, respectivamente), ou pelo menos culposa, naqueles previstas no artigo 10 (atos de improbidade que causam prejuízo ao erário). Sujeitos da improbidade administrativa Os atos de improbidade são praticados em detrimento dos sujeitos descritos no art. 1º (sujeitos passivos). O sujeito passivo abrange todas as pessoas jurídicas públicas políticas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios); os órgãos dos três Poderes do Estado; a administração direta e a indireta; as empresas que, mesmo não integrando a administração indireta e não tendo a qualidade de sociedade de economia mista ou empresa pública, pertencem ao Poder Público e as empresas para cuja criação tenha o Estado concorrido com mais de cinquenta por cento. 38 Veja-se, nesse sentido: Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública: corrupção: ineficiência", Fábio Medina Osório, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007; "Improbidade Administrativa", Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 296-299. Waldo Fazzio Júnior. Improbidade Administrativa. 3ª Edição. São Paulo: Atlas, 2015, p. 135-316; Benedicto Pereira Porto Neto (et all). Violação ao dever de licitação e improbidade administrativa. In: Cassio Scarpinella Bueno, Improbidade Administrativa: questões polêmicas e atuais. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 89. 39 É inadmissível a responsabilidade objetiva na aplicação da Lei 8.429/1992, exigindo-se a presença de dolo nos casos dos artigos 9º e 11 (que coíbem o enriquecimento ilícito e o atentado aos princípios administrativos, respectivamente) e ao menos de culpa nos termos do artigo 10, que censura os atos de improbidade por dano ao Erário. Nesse sentido: AgRg no REsp 1500812/SE,Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, Julgado em 21/05/2015,DJE 28/05/2015, AgRg no REsp 968447/PR,Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma,Julgado em 16/04/2015,DJE 18/05/2015; REsp 1238301/MG,Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, Julgado em 19/03/2015,DJE 04/05/2015; AgRg no AREsp 597359/MG,Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma,Julgado em 16/04/2015,DJE 22/04/2015; REsp 1478274/MT,Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, Julgado em 03/03/2015,DJE 31/03/2015; AgRg no REsp 1397590/CE,Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma,Julgado em 24/02/2015,DJE 05/03/2015; AgRg no AREsp 560613/ES,Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma,Julgado em 20/11/2014,DJE 09/12/2014; REsp 1237583/SP,Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma,Julgado em 08/04/2014,DJE 02/09/2014; REsp 734.984/SP, 1 T., Min. Luiz Documento: 4508272 - VOTO VISTA - Site certificado Página 11 de 17 Superior Tribunal de Justiça Fux, DJe de 16.06.2008; AgRg no REsp 479.812/SP, 2ª T., Min. Humberto Martins, DJ de 14.08.2007; REsp 842.428/ES, 2ª T., Min. Eliana Calmon, DJ de 21.05.2007;REsp 841.421/MA, 1ª T., Min. Luiz Fux, DJ de 04.10.2007; REsp 658.415/RS, 2ª T., Min. Eliana Calmon, DJ de 03.08.2006; REsp 626.034/RS, 2ª T., Min.João Otávio de Noronha, DJ de 05.06.2006. 34 Base Legal e Noções de Direito Administrativo O parágrafo único completa o sentido do artigo 1º estendendo o alcance da Lei de Improbidade Administrativa às pessoas jurídicas de direito iminentemente privado, porém que recebam auxílio, subvenção, benefício fiscal ou custeio por parte do Estado. Neste caso, “[...] a sanção patrimonial (ressarcimento integral do dano ao patrimônio público) limita-se à repercussão negativa do ato ímprobo sobre a contribuição dos cofres públicos que lhes foi repassada” 40. Os sujeitos ativos estão elencados no art. 2º, dispositivo que abrange todos aqueles que realizam a conduta típica descrita na LIA, ou seja, aqueles que são definidos como autores do ato de improbidade. De acordo com Emerson Garcia e Rogério Pacheco de que, no sistema da LIA, “os atos de improbidade somente podem ser praticados por agentes públicos, com ou sem o auxílio de terceiros”41. É nesse sentido a literalidade do art. 2° da LIA: Art. 2° Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior. O conceito de agente público previsto neste dispositivo é bastante amplo e está diretamente vinculado à definição dos sujeitos passivos dos atos ímprobos, de modo que não apenas abrange os agentes que exerçam atividade junto à administração pública direta ou indireta (aspecto funcional) como também aqueles que, ainda que não possuam qualquer vínculo com a administração pública, exerçam atividade junto a entidades que, de qualquer modo, recebam recursos públicos (aspecto patrimonial). É conceito mais amplo do que o de funcionário público estabelecido no art. 327 do Código Penal, sujeito ativo do crime de corrupção passiva42. 40 Pazzaglini Filho, Marino. Improbidade Administrativa. São Paulo: Atlas, 2006, p. 24. 41 Garcia, Emerson. Alves, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 8ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 343. 42 Código Penal Funcionário público Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. 35 Base Legal e Noções de Direito Administrativo É ímprobo, assim, quem atua de forma desonesta, faz vistas grossas à malversação de bens e recursos públicos (ainda que destinados a entidades eminentemente privadas), violando o dever de probidade prescrito na Constituição de 1988. A Lei prevê também em seu art. 3º uma norma de extensão, para imputar as penas do art. 12 ao sujeito que atua como partícipe (sujeito acessório ou secundário, que realiza conduta qualitativamente distinta do autor, que é o agente público). Sujeita-se também às sanções cominadas pela LIA, o terceiro que concorra ou que induza à prática do ato de improbidade administrativa, ou dele se beneficie, como se verifica da redação do artigo 3º, verbis: “[a]s disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática de ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta.” Para afastar qualquer risco de atribuição de responsabilidade objetiva pela prática de ato de improbidade administrativa, a atribuição de responsabilidade ao beneficiário direto e indireto pressupõe, que ele tenha conhecimento da origem ilícita do benefício auferido.43 Para que o extraneus conste no polo passivo da ação civil de improbidade administrativa deve ser comprovada a relação direta entre o ato ímprobo praticado pelo agente público e prática de ato de má-fé do partícipe. § 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000) § 2º - A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público. (Incluído pela Lei nº 6.799, de 1980) 43 ALVES, Rogério Pacheco; GARCIA, Emerson. Improbidade Administrativa. 6. ed., rev. e ampl. e atualizada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 268. 36 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Classificação legal dos atos de improbidade administrativa A classificação legal dos atos de improbidade administrativa está prevista nos arts. 9, 10 e 11 da LIA e podem ser sistematizadas da seguinte forma: a. ENRIQUECIMENTO ILÍCITO b. DANO AO ERÁRIO c. VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS Vantagem patrimonial indevida (rol exemplificativo). Em regra, é exigido recebimento do $. Exceção: V (basta o aceite); VII – presunção legal de enriquecimento Ilícito Perda patrimonial (rol exemplificativo). Exige- se a prova do dano concreto? Sim (STJ)44; Não (MP/SP), pois há presunção no art. 10 incisos (somente prova na descrição genérica do caput). Honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade; É uma norma residual (não pode enquadrar no art. 9º ou 10º). Ex.: na TENTATIVA dos arts. 9º e 10º ensejam aplicação do art. 11. DOLOSA DOLOSA ou CULPOSA DOLOSA GENÉRICA - Perda de bens e valores (sempre) - Ressarcimento dano45 - Perda de bens e valores - Ressarcimento dano (sempre) - Ressarcimento dano (ex.: dano moral) - Suspensão DP: 08 a 10 - Multa civil: até 3x ($) d. - Proibição contratar por 10 A - Suspensão DP: 05 a 08 - Multa civil: até 2x (dano) e. - Proibição contratar: 5 A - Suspensão DP: 03 a 05 - Multa civil: até 100x ($ servidor) - Proibição contratar: 3A 44No fracionamento despesas e dispensa de licitação indevidos, o STJ considera que há presunção de dano. 45Se houver dano. Não precisa causar dano ao patrimônio público no caso de enriquecimento ilícito. Ex.: contratação de produto pelo valor de mercado + propina por fora. 37 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Sanções previstas na LIA A Constituição Federal (art. 37, § 4º) e a LIA (art. 12) preveem as sanções por atos de improbidade administrativa. As sanções civis contra o ato de improbidade administrativa são (a) a perda de bens, (b) a perda da função pública, (c) a suspensão temporária dos direitos políticos, (d) o pagamento de multa civil, (e) o ressarcimento do dano, e (f) a proibição de contratação com o Poder Público ou de recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios. Destas, só constam do § 4º do art. 37 da Constituição de 1988 a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos e o ressarcimento do dano. A Lei 8.429/1992 acrescentou outras como o pagamento de multa civil, a proibição de contratação com o Poder Público ou do recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, e a perda de bens ou valores ilicitamente acrescidos. Cláudio Ari Mello46 que afasta qualquer inconstitucionalidade das sanções estipuladas na LAI, assinalando a inexistência de restrição à liberdade de conformação da legislação ordinária para formulação de casos específicos de improbidade administrativa, fixação de limites mínimose máximos para as sanções e a criação de novas reprimendas. (i) a suspensão dos direitos políticos - é de (a) 08 a 10 anos na hipótese de enriquecimento ilícito, (b) 05 a 08 anos no prejuízo ao erário, e (c) 03 a 05 anos no atentado aos princípios da administração pública. De acordo com o entendimento pacífico da jurisprudência somente executada após trânsito em julgado e não é efeito automático da sentença, devendo estar expressa na disposição da decisão condenatória; (ii) perda da função pública que, igualmente, somente é eficaz após trânsito em julgado. O cargo perdido será aquele ocupado pela agente público à época da condenação). O Superior Tribunal de Justiça decidiu que “a sanção de perda da função pública visa a extirpar da Administração Pública aquele que exibiu inidoneidade (ou inabilitação) moral e desvio ético para o exercício da função pública, abrangendo qualquer atividade que o agente esteja exercendo ao 46 Idem 38 Base Legal e Noções de Direito Administrativo tempo da condenação irrecorrível” (STJ, REsp 924.439-RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, 06-08-2009, v.u., DJe 19-08-2009) (iii) indisponibilidade de bens; (iv) ressarcimento ao erário – de acordo com a jurisprudência do STJ, o ressarcimento do dano, desde que ocorrida repercussão patrimonial negativa no erário, não é sanção, mas, consequência da lesão econômico-financeira, de tal sorte que é dever jurídico de restituição. (v) multa civil - tem seu valor fixado em patamares máximo e mínimo e sua base de cálculo depende da natureza da infração. Em se tratando de ato de improbidade administrativa que substancia (a) enriquecimento ilícito, ela pode alcançar até 03 vezes o valor do acréscimo patrimonial, (b) prejuízo ao erário, até 02 vezes o valor do dano, e (c) atentado aos princípios da administração pública, até 100 vezes o valor da remuneração percebida pelo agente. Será revertida em benefício da pessoa jurídica lesada; (vi) proibição de contratar com Poder Público (efeitos transcendem a qualquer outra unidade federativa e poderá atingir a pessoa jurídica da qual é sócio majoritário). Por sua vez, a proibição de contratação com o Poder Público, ou de recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, pode se estender até (a) 10 anos na situação do art. 9º, (b) 05 anos na do art. 10, e (c) 03 anos na do art. 11. O art. 8º da Lei de Improbidade prevê a regra da transmissibilidade das sanções ao enunciar que “o sucessor daquele que causar lesão ao patrimônio público ou se enriquecer ilicitamente, está sujeito às cominações desta lei até o limite do valor da herança”. Por óbvio, a transmissibilidade deve ser interpretada de modo restritivo, e está condicionada ao limite da herança e ao perdimento de bens ou valores ilicitamente adicionados e ao ressarcimento do dano, e não às demais sanções de caráter punitivo e que, por isso, são pessoais e intransmissíveis ao sucessor. 39 Base Legal e Noções de Direito Administrativo O juiz não pode combinar as penalidades estipuladas nos incisos do art. 12. Cada uma das modalidades de atos de improbidade possui um rol de possíveis sanções. 2.2. Providências cautelares A LIA prevê a indisponibilidade dos bens como uma ação cautelar, ou seja, que é definida pelo juízo antes do trânsito em julgado, ou seja, antes da definitiva imputação de culpa ao agente público ou ao terceiro. Essa cautelar tem por finalidade assegurar futura execução e a integral valor do dano e, como pressuposto exige-se o fumus, ou seja, a verossimilhança das alegações apresentadas na petição inicial, sendo o periculum presumido. Os bens não podem ser comercializados, mas não há o desapossamento. Assim, como não haverá entrega, não é necessária a individualização dos bens. Não irá alcançar todo o patrimônio, mas tão somente o necessário para assegurar a reparação integral. A jurisprudência do STJ é no sentido de que devem ser objeto de bloqueio tantos bens quantos forem suficientes a assegurar as consequências financeiras da suposta improbidade, inclusive a multa civil. Ela pode recair sobre bens adquiridos antes da improbidade ou da entrada em vigor da LIA (forma de ressarcimento e não sanção). Somente o Ministério Público é legitimado para requerer tal medida cautelar, que, por sua vez, só poderá ser concedida por um juiz (decisão judicial) (art. 7º). Outra medida cautelar prevista é o sequestro, que tem por finalidade assegurar futura execução. Distintamente para a hipótese acima, o sequestro pressupõe a comprovação do fumus boni iuris e do periculum in mora e não pode ser aplicado para imputações por ato de improbidade previsto no art. 11 da LIA. Esses cuidados do legislador decorrem do fato de que o sequestro é muito mais restritivo, dele decorrendo o desapossamento dos bens, que saem da posse do agente supostamente ímprobo. É necessária a individualização dos bens, porque serão retirados (entrega de coisa certa). A LIA também prevê o afastamento do agente público, providência que visa a permitir o desenrolar da instrução do processo sem qualquer interferência do agente 40 Base Legal e Noções de Direito Administrativo público no sentido de eliminar, corromper ou inutilizar provas. Entretanto, encerrada a fase de instrução processual, haverá a cessação do afastamento. O afastamento preventivo pressupõe a prova de conduta concreta do agente no sentido de interferir na apuração do ato improbo (exs.: coação de testemunha; ocultação de documento). Processo administrativo Pode ser instaurado para a apuração ou investigação da prática de improbidade, entretanto, é incabível, na esfera administrativa, a aplicação das sanções, sendo o objeto de processo no âmbito da Administração Pública apenas o reconhecimento da improbidade para aplicação da penalidade disciplinar de demissão (poder disciplinar). O processo administrativo se inicia com uma representação ou denúncia, escrita ou reduzida a termo, por qualquer pessoa, e encaminhada para a autoridade administrativa competente para instaurar o procedimento (art. 14). A LIA exige a qualificação do representante, sendo, portanto, vedada a denúncia anônima (art. 14, §1º), sem prejuízo, entretanto, de o Ministério Público adotar medidas proporcionais e razoáveis para investigar a veracidade da denúncia pelo seu dever constitucional de proteção do patrimônio público (CF, art. 129). Diante da denúncia a autoridade administrativa poderá: a) entender que os requisitos não estão presentes, rejeitando a representação; b) se presentes, fará a apuração, nos termos do estatuto dos servidores públicos que reger a matéria. Definida a instauração do processo administrativo, com a publicação do ato que nomeia a comissão processante (03 servidores estáveis com, no mínimo, mesmo grau de escolaridade do investigado), o inquérito administrativo seguirá com as fases de instrução, defesa, relatório e, finalmente, julgamento. O passo a passo desse processo será estudado com mais detalhes na Seção 2 desta apostila. 41 Base Legal e Noções de Direito Administrativo Ação civil de improbidade A ação civil de improbidade tem por objetivo a aplicação das sanções da Lei 8.429/92, que somente podem ser aplicadas pelo Judiciário. Será competente para a ação o juízo do local do dano (art. 2º, da Lei da ACP). São legitimados para a propositura da ação, de forma concorrente, o Ministério Público e as pessoas jurídicas lesadas. Se a ação for proposta pela entidade prejudicada, o MP atuará como fiscal da Lei, sob pena de nulidade (art. 17, §4º). Caso ajuizada a ação pelo MP, a pessoa jurídica interessada poderá (art. 17, §3º): a) contestar o pedido atuação no polo passivo
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