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1 MUTUALISMO INTRODUÇÃO O mundo seria muito diferente caso não houvessem mutualismos entre plantas e animais. Os polinizadores tornam a fertilização das plantas possível devido ao transporte de pólen de uma flor para outra, e os animais que comem frutos tornam possível o estabelecimento de plântulas através da disseminação das sementes. Inúmeras plantas da região temperada e tropical apresentam mutualismos com formigas para suas defesas contra herbívoros ou plantas competidoras. Se os insetos desaparecessem do planeta, o mundo mudaria por completo; as florestas iriam desaparecer tornando-se desertos. Os eventos de extinção seriam extensos e inimagináveis. Talvez não seja exagero pensar que as florestas são hoje "prisioneiras" dos animais mutualistas! Sem eles elas desapareceriam em algumas centenas de anos, ou seja um tempo infinitamente pequeno do ponto de vista evolutivo. Um desafio da ecologia e o entendimento das relações mutualísticas entre animais e plantas como uma ferramenta para o entendimento do funcionamento do planeta. O termo mutualismo foi utilizado pela primeira vez em 1875 pelo pesquisador Belga Pierre van Beneden, em seu livro entitulado Les Commensaux et les Parasites. Neste trabalho van Beneden afirma que: " ...algumas espécies desenvolvem interações de benefício mútuo que não podem ser classificadas como parasitismo ou comensalismo. Consideramos mais apropriado chamá-las de Mutualistas, e então o mutualismo passa a ser mais uma categoria de interações, ao lado das duas demais.". Discussões mais aprofundadas sobre o tema começaram a ocorrer poucos anos depois, mas só recentemente, a partir da década de 70, a comunidade científica passou a investigar as relações mutualísticas de forma tão intensiva quanto outros tipos de interações, como competição e predação (veja Price et al. 1991). TIPOS DE MUTUALISMO Por se tratar de um assunto relativamente recente na pesquisa em ecologia, ainda existem muitas controvérsias acerca de várias definições e hipóteses sobre o mutualismo. 2 Vários termos muitas vezes são usados como sinônimos (como simbiose, altruísmo recíproco, facilitação, entre outros), e existe a necessidade de definirmos os termos que serão abordados antes de começarmos a falar sobre eles. Mutualismo será considerado como sendo toda interação na qual as espécies envolvidas sejam mutuamente beneficiadas, não importando esta interação é obrigatória ou não. Já simbiose implica numa relação de íntima associação entre dois, ou mais, organismos que vivem juntos, fisicamente associados. Assim, o mutualismo pode ser simbiótico (no caso de microorganismos no trato digestivo de ruminantes ou cupins, por exemplo) ou não (polinização, dispersão de sementes por animais que se alimentam de frutos, etc.). Partindo destas definições podemos ter uma idéia do quanto são freqüentes e importantes as relações mutualísticas na natureza. Praticamente todas as plantas que dominam os campos e florestas possuem suas raízes associadas à fungos, a maioria das fanerógamas é polinizada por insetos e outros animais que se alimentam de néctar ou pólen, um grande número de animais depende de microorganismos em seus sistemas digestivos, muitas plantas fornecem néctar a insetos em troca de proteção, entre muitos outros exemplos que podem ser citados. Como existe uma grande variedade de subtipos de interações mutualísticas, torna-se importante que tenhamos uma visão do processo baseada em exemplos já bem estudados, para que então possamos discutir um pouco sobre as causas e as conseqüências destas interações. As interações mutualísticas apresentam muito mais subtipos do que a competição, predação ou mesmo parasitismo. Analisaremos inicialmente os mutualismos onde as vidas das duas espécies envolvidas estão tão integradas que a relação torna-se obrigatória, e então passaremos a exemplos onde existe pouca ou nenhuma integração física e são os padrões de comportamento que fazem com que existam vantagens recíprocas no relacionamento entre as espécies. MUTUALISMOS SIMBIÓTICOS A maioria dos mutualismos simbióticos envolve o fornecimento de energia de um parceiro para o outro, tanto de autótrofos para heterótrofos, quanto entre heterótrofos. Entre os benefícios provenientes deste tipo de associação estão: a quebra de compostos de difícil 3 digestão; suprimento de nutrientes; estabilidade ambiental; e bioluminescência (Boucher et al. 1982). A seguir serão citados alguns exemplos dos principais mutualismos simbióticos conhecidos. Mutualismos Envolvendo Microorganismos no Trato Digestivo O estômago de ruminantes é dividido em quatro câmaras e a comida passa primeiro no rúmem, onde pedaços de vegetais de até 10cm são reduzidos a partículas que vão de 1 a 1000 l. Somente as partículas com menos de 5 l passam para a segunda câmara e por isso o animal precisa remastigar (ruminar) a comida e novamente engoli-la. Existem densas populações de bactérias (1010-1011 ml -1) e protozoários (105-106 ml -1) no rúmem, onde o pH mantém-se constante através da regulação pela secreção de substâncias tamponantes excretadas pelas glândulas salivares. Assim são as atividades do hospedeiro (ruminante) que fornecem o suprimento de alimento e a constância ambiental aos microorganismos, que por sua vez são de extrema importância no processo de fermentação da celulose, principal fonte energética do ruminante (que não possui enzimas para digeri-las). Existem também complexas interações entre os microorganismos neste ambiente. Muitos necessitam de subprodutos do metabolismo de outros (como o ácido acético e o isobutil) e essa dependência os tornam simbiontes obrigatórios (Begon et al. 1996). Em cupins, microorganismos do trato digestivo também realizam importantes funções. Apesar de 75% das espécies de cupins possuírem suas próprias enzimas digestivas capazes de quebrar a celulose, os Macrotermitineae (um grupo mais primitivo) não as possuem, mantendo relações estritas com protozoários e bactérias. Os protozoários são responsáveis pela digestão da madeira, enquanto as bactérias desempenham outro papel, o de fixar o nitrogênio atmosférico em amônia, fornecendo aos cupins a matéria prima básica à formação de proteínas. Esta relação pode, inclusive, ter influenciado a evolução do comportamento eusocial destes insetos, pois para manter os microorganismos é necessário que os indivíduos constantemente comam suas próprias fezes e as fezes de outros indivíduos (Hogan et al. 1988). 4 Mutualismos entre Plantas e Microorganismos A incapacidade de plantas e animais em fixar o nitrogênio atmosférico faz deste elemento, que é essencial à síntese de proteínas, um recurso de difícil obtenção. Alguns microrganismos, entretanto são capazes de converter o nitrogênio de sua forma molecular N2 para amônia, através da enzima nitrogenase. A maioria destes microorganismos está associado à plantas superiores, que em troca do nitrogênio lhes fornece carboidratos e impedem que a nitrogenase entre em contato com o oxigênio, que a torna inativa. As leguminosas, por exemplo, desenvolveram uma proteína, chamada Leghemoglobina, que captura as moléculas de oxigênio nos nódulos radiculares onde estão as bactérias fixadoras do gênero Rhizobium (Dilworth et al. 1969). Outro tipo de associação muito comum são as micorrizas. A grande maioria das angiospermas, gimnospermas, pteridófitas e até algumas briófitas apresentam tecidos absortivos associados com fungos. Essa associação fornece fósforo, nitrogênio e cálcio para a planta e carboidratos para o fungo. As micorrizas podem ser ectomicorrizas, quando o micélio dos fungos estende-se do espaço intercelular até a camada de litter, ou endomicorrizas, quando a associação é tão íntima que o micélio penetra nas células da planta. A maior vantagem das micorrizas parece sera obtenção de fosfato através do solo a distâncias maiores que podem ser alcançadas pelas raízes das plantas (veja Begon et al. 1986). Existem ainda outras relações simbióticas, como os liquens, mas muitos aspectos destas interações ainda não foram esclarecidos. No caso dos liquens, cerca de 90 a 97% do peso do indivíduo é de fungos. Aproximadamente 25% das espécies de fungos estão associadas com algas e são beneficiadas pela independência de ambientes úmidos, capacidade de fixar-se em diferentes substratos, absorção de carboidratos produzidos pelas algas e, em alguns casos, pela absorção do nitrogênio fixado por elas. As vantagens para as algas ainda estão muito claras. A maioria das espécies de algas que ocorrem em liquens também podem viver sem esta associação (Begon et al. 1996). MUTUALISMOS NÃO SIMBIÓTICOS As relações mutualísticas não simbióticas podem ser divididas em três categorias básicas: transporte, proteção e predação. Esta última não será incluída neste curso por ser 5 menos freqüente e pouco estudada (para maiores detalhes ver Boucher et al. 1982). Na primeira (transporte) estão incluídas duas das mais freqüentes e importantes relações mutualísticas: a dispersão de sementes por frugívoros e a polinização. Polinização - É a transferência de pólem que resulta na fertilização das células ovo nos óvulos de plantas. A maioria das plantas superiores usam néctar ou o excesso de pólen para atrair insetos, pássaros ou morcegos que procuram alimento nas flores, transportando pólen entre as flores visitadas em outros. Dispersão de Sementes - É o transporte de sementes para longe da planta mãe. A maioria das plantas produtoras de sementes possuem frutos atrativos ou as sementes são nutritivas o suficiente para atrair pássaros, mamíferos, ou formigas que enterram, regurgitam ou defecam sementes viáveis longe da planta mãe. A tabela 1 mostra os benefícios para cada organismo envolvido nestas interações. 6 Tabela 1. Mutualismos mais importantes entre animais e plantas. INTERACAO VANTAGEM PARA AS PLANTAS VANTAGEM PARA OS ANIMAIS Polinização Fertilização, especialmente por pólen vindo de outras plantas da mesma espécie Néctar e/ou pólen como alimento para insetos, pássaros, e mamíferos; fragrâncias como feromônios em algumas espécies de abelhas Dispersão de Sementes Escape de sementes e plântulas próximas da planta mãe ao ataque de patógenos, insetos e roedores; dispersão para locais mais adequados para o crescimento. Alimento para insetos ou vertebrados que digerem polpa comestível e regurgitam sementes, ou armazenam sementes para comer depois e falham em encontra-las Proteção por Formigas Formigas matam ou desencorajam herbívoros; formigas podam trepadeiras, cipos e outras plantas competidoras da planta hospedeira. Alimento em nectários extra- florais, e corpos ricos em amido e proteínas; abrigo em cavidades ou espinhos Analisaremos a seguir com maiores detalhes cada um destes tipos de relações mutualísticas. Polinização A dispersão de pólen por animais é fundamental para a reprodução da maioria das fanerógamas porque diminui a perda de pólen, aumenta a distância de dispersão e aumenta o sucesso na fertilização de plantas cujas populações apresentem densidades baixas. As flores atraem seus polinizadores com uma grande variedade de formas, tamanhos, cores, e fragrâncias que servem como pistas para a recompensa do pólen e 7 néctar, caracterizando várias síndromes de polinização. Artrópodes, mamíferos e pássaros polinizadores estão adaptados morfologicamente e fisiologicamente para encontrar e usar pólen e néctar. A ocorrência de polinizadores específicos (monófagos), entretanto, é relativamente baixa. Isto pode ser explicado pelo fato de que flores de uma determinada espécie constituem um recurso sazonal, o que limita a especialização à espécies animais que tenham seu ciclo de vida sincronizado com o período de floração desta espécie. Por isso grande parte das aves e mamíferos polinizadores são polífagos, ou seja, utilizam várias espécies de plantas em sua dieta. As estruturas florais evoluíram de forma a receptar e dispersar pólen para outras flores da mesma espécie. As pétalas e sépalas são folhas modificadas com duas funções chaves: a) atrair animais através de seus pigmentos e, em algumas vezes, de tecidos produtores de néctar; b) proteger os botões florais ou ovários em desenvolvimento de herbívoros que os poderiam destruir. A proteção foi possivelmente a função inicial das pétalas e sépalas, sendo a atração de polinizadores um evento evolutivo mais recente. As capacidades sensoriais diferem amplamente entre os visitantes de flores e consequentemente influencia na evolução da forma das flores usadas pelos diferentes polinizadores. Insetos percebem cores diferentes dos vertebrados. Os olhos compostos de abelhas, por exemplo, percebem um espectro visual mais amplo que os olhos de humanos. Muitas flores que parecem de um sólido amarelo ou branco para nós, apresentam-se com inúmeros padrões de coloração para as abelhas, que percebem a luz ultravioleta. Cada tipo de inseto é sensitivo a uma faixa do espectro de cores, aumentando a possibilidade de evolução de sinais e pistas entre flores e insetos. Além disso, insetos podem distinguir formas e odores em intensidade diferentes. Por exemplo, abelhas podem distinguir formas vazadas, mas não os contornos, ou seja podem distinguir um bloco sólido de um oco mas não diferem um cubo sólido de um triângulo sólido . Assim, flores que são aparentemente diferentes para nós podem ser idênticas para abelhas! Dispersão de Sementes por animais Como nas flores, os frutos adaptados a atrair animais não apareceram no registro fóssil até mais tarde no Cretáceo, há 65 milhões de anos atrás. Desde o Cretáceo 8 proliferaram as relações entre frutos, insetos, morcegos, ungulados, pássaros e macacos. Quase ausente nos desertos quentes da África e Oriente Médio, a adaptação a dispersão animal alcançou sua diversidade máxima nas florestas úmidas tropicais, onde mais de 90% das árvores e virtualmente todos arbustos apresentam frutos adaptados a atrair pássaros e mamíferos. Muitas espécies de plantas tem suas sementes dispersadas por animais. Cerca de 10% das fanerógamas possuem estruturas especiais nos frutos ou sementes para que estes fiquem aderidos ao corpo de animais, mas neste caso o benefício da interação é somente da planta. No mutualismo o animal come o fruto e elimina a semente viável à germinação longe da planta mãe. Isto é muito comum em mamíferos e aves, mas também ocorre com répteis e invertebrados . Além do carreamento das sementes para longe da planta mãe, a passagem pelo trato digestivo de animais pode ainda quebrar a dormência das sementes e, algumas espécies dependem disso para sua reprodução. Este provavelmente é o caso da Calvaria major uma espécie de Sapotaceae que ocorre nas ilhas Maurícius. Apesar de haverem indícios de ter sido muito abundante no passado, já em 1973 haviam apenas 13 plantas (todas adultas e com mais de 300 anos) nas ilhas. Testes de germinação com suas sementes mostraram que, em condições naturais, a dormência tegumentar não era quebrada. A partir da investigação de que fatores poderiam ser responsáveis por esta quebra de dormência, foi possível determinar que provavelmente a planta dependia que suas sementes passassem pelo trato digestivo de uma ave que foi extinta do arquipélago a cerca de 300 anos, o Raphus cuculatus, mais conhecido como Dodo (Temple 1977). Assim como no caso da polinização, o estabelecimento de relações restritas (específicas) não é comum porque, além do fornecimento de frutos também constituir uma ocorrência sazonal, a forma dos frutos é determinada mais por sua história filogenética que por pressõesseletivas recentes. Muitos, entretanto, apresentam síndromes de dispersão que atraem determinados grupos animais. Abordaremos agora a outra categoria de mutualismos não simbióticos, aqueles relacionados à proteção, através dos exemplos clássicos envolvendo formigas e plantas tropicais. 9 Mutualismos entre formigas e plantas Mutualismos entre formigas e plantas variam desde associações obrigatórias, como é o caso da Acacia e da formiga Pseudomyrmex até relações onde as formigas utilizam a planta como local de nidificação (e a protegem), mas podem igualmente nidificar em outros locais. Os primeiros estudos descrevendo este tipo de relação foram os de Belt em 1874 (Begon et al.1996), onde ele relatou a ocorrência de estruturas em forma de espinho onde as formigas se alojavam e, o mais interessante, o fornecimento de substâncias ricas em proteínas e carboidratos em outras estruturas modificadas. As formigas, por sua vez, impediam que outras plantas (trepadeiras, por exemplo) envolvessem ou mesmo crescessem perto da planta hospedeiro, diminuindo assim a competição por vários recursos. Experimentos onde as formigas foram retiradas das plantas e impedidas de voltar mostraram que nestes casos, além do aumento da competição ocorre também um significativo aumento nas taxas de consumo foliar por herbívoros. Existem ainda relações mais complexas, como as das formigas Azteca e plantas Cecropia nos neotrópicos, e outras interações que além das formigas e das plantas hospedeiras envolvem ainda lagartas (como as do gênero Thisbe), que fornecem substâncias nutritivas às formigas em troca de proteção e de poderem se alimentar da planta que as formigas defendem. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Begon, M., Harper, J.L. & Townsend, C.R. (1996) Ecology - Individuals, Populations ans ommunities. Third edition. Blackwell Science. Oxford. Boucher, D.H., James, S. & Keeler, K.H. (1982). The ecology of mutualism. Annual Review of Ecology and Systematics 13:315-47. Dilworth, M.J. & C.A. Parker. 1969. Development of the nitrogen-fixing system in Legumes. Journal of Theoretical Biology 25:208-218 Hogan, M.E., P.C. Veivers, M. Slaytor & R.T. Czolij. 1988. The site of cellulose breakdown in higher termites (Nasutitermites walkeri and Nasititermes exoticus) Journal of Insect Physiology 34:891-899. 10 Price PW, TM Lewinsohn, GW Fernandes & WW Benson (editors) 1991 Plant-animal interactions: evolutionary ecology in tropical and temperate regions. Wiley & Sons, New York. Temple S.A. 1977. Plant-animal mutualism: coevolution with dodo leads to near extinction of plant. Science 197:885-886.
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