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IVOMAR GOMES DUARTE Características dos modelos de gestão das organizações sociais contratadas pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo para o gerenciamento de hospitais Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências da Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, para a obtenção do Título de Doutor em Ciências. Área de Concentração: Infectologia em Saúde Pública Orientador: Prof. Dr. Carlos Botazzo SÃO PAULO 2009 IVOMAR GOMES DUARTE Características dos modelos de gestão das organizações sociais contratadas pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo para o gerenciamento de hospitais Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências da Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, para a obtenção do Título de Doutor em Ciências. Área de Concentração: Infectologia em Saúde Pública Orientador: Prof. Dr. Carlos Botazzo SÃO PAULO 2009 FICHA CATALOGRÁFICA Preparada pelo Centro de Documentação – Coordenadoria de Controle de Doenças/SES-SP ©reprodução autorizada pelo autor, desde que citada a fonte Duarte, Ivomar Gomes Características dos modelos de gestão das organizações sociais contratadas pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo para o gerenciamento de hospitais / Ivomar Gomes Duarte - São Paulo, 2009. Tese (doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Ciências da Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Área de concentração: Infectologia em Saúde Pública Orientador: Carlos Botazzo 1. Modernização do setor público 2. Organizações sociais 3. Contrato de gestão 4. Administração hospitalar 5. Gestão em saúde 6. Hospitais públicos / organização & administração SES/CCD/CD-205/08 EPÍGRAFE Trecho 333 Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos nós ou desistimos ou o cortamos. Resolvemos bruscamente, com o sentimento, os problemas da inteligência, e fazemo-lo ou por cansaço de pensar ou por timidez de tirar conclusões, ou pela necessidade absurda de encontrar um apoio, ou pelo impulso gregário de regressar aos outros e à vida. Como nunca podemos conhecer todos os elementos de uma questão, nunca a podemos resolver. Para atingir a verdade faltam-nos dados que bastem, e processos intelectuais que esgotem a interpretação desses dados. Fernando Pessoa Sob o heterônimo de Bernardo Soares, no ―Livro do Desassossego‖ AGRADECIMENTOS AGRADEÇO Ao Corpo Docente, funcionários e colegas do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Coordenadoria de Controle de Doenças - SESSP. A todos os participantes desta pesquisa pelos dados e informações fornecidos e pelas opiniões emitidas. Ao Prof. Botazzo pela orientação e incentivo. Ao acaso e ao destino, aos anos vividos, a tudo e a todos. Em especial à minha família pelo apoio e pela compreensão. RESUMO RESUMO DUARTE, I G - Características dos modelos de gestão das organizações sociais contratadas pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo para o gerenciamento de hospitais‖. Este estudo tem como objeto o gerenciamento dos hospitais públicos pelas Organizações Sociais (OS), tal como foram configuradas pelo Governo do Estado de São Paulo no final dos anos 90. A implantação deste modelo está ligada ao processo de reforma do Estado iniciado na Europa e Estados Unidos desde o final dos anos 80. Nos anos 90 o Governo Brasileiro reforçou seu papel regulador, com a criação de Agências Reguladoras e Executivas, e ainda com a regulamentação das Organizações Sociais e das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, transferindo para essas entidades e outras do terceiro setor a execução de tarefas públicas. Nesse sentido, investigou-se as características do modelo de gestão das OS e as tecnologias gerenciais por elas utilizadas, tendo como referencia os princípios do SUS. A pesquisa abrangeu diretores de hospitais gerenciados por OS e outros sujeitos considerados representativos. Quanto às novas tecnologias gerenciais utilizadas não se observou nenhuma prática administrativa que possa ser considerada como inovadora, pois a maioria das práticas de gestão utilizada encontra-se presente em hospitais estatais, ainda que de forma pouco disseminada. A flexibilidade na gestão de pessoas, a agilidade nas compras e nos contratos e a autonomia desses hospitais são os principais fatores que fazem a diferença. Observou-se o empenho no cumprimento das metas e obrigações previstas nos contratos de gestão, entretanto não existem mecanismos adequados para garantir a participação da comunidade e o controle público da assistência prestada. Concluiu-se que o modelo é bastante específico para novos hospitais sem quadro de pessoal publico e válido para as peculiaridades do Estado de São Paulo. O estudo reconhece como possibilidade o gerenciamento de hospitais pelas OS desde que não se considere a única solução para a crise gerencial do SUS. Palavras-chave: Modernização do Setor Público; Organização Social; Administração Hospitalar; Gestão em Saúde; Hospitais Públicos / Organização e Administração; Contrato de Gestão. ABSTRACT ABSTRACT DUARTE, I G – Characteristics of management models from social organizations contracted by the State Secretary of health of São Paulo State for the hospitals management. This study focuses on the management of public hospitals by Social Organizations (SO), as they were specified by the São Paulo State Government by the end of the 90´s. The implementation of this model is connected to the process of the State Reform originated in Europe and United States of America since the end of the 80`s. In the 90´s Brazilian Government reinforced its regulatory role creating Regulatory Agencies and Executives, and yet regulating Social Organizations and Organizations of the Civil Society of Public Interest, transferring to those entities and others from third sector the execution of public duties. On this sense, the characteristics from the SO management model were investigated, and the management technologies used by them follow the SUS principles. The research enclosed directors from hospitals managed by SO and persons considered representative. As the new management technologies used, there were not any management practices that can be considered as innovative, because many of them are present in state hospitals, but it’s not spread yet. Flexibility on human resources management, agility on supply chain and contracts and autonomy of those hospitals are the main factors that make the difference. It was observed the effort of accomplishing the targets and duties specified on the management contracts, however there are no adjusted mechanism to guarantee the community participation and public control of the assistance given. It can be concluded that the model is very specific for new hospitals without public employees group and valid for the peculiarities of the São Paulo State. The study recognizes as a possibility the management of public hospitals by SO since it is not considered as the only solution but one solution among the possible solutions, for the management crises faced by SUS. Keywords: Modernization of the Public Sector; Social Organization; Hospital Administration; Health Management; Public Hospitals / Organizations and Administration; Management Contract.ABREVIATURAS E SIGLAS ABREVIATURAS E SIGLAS ABONG – Associação Brasileira das Organizações Não Governamentais AIH – Autorização de Internação Hospitalar ALESP – Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo APM – Associação Paulista de Medicina ANS – Agencia Nacional de Saúde Suplementar ANVISA – Agencia Nacional de Vigilância Sanitária BSC – Balanced Scorecard BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CCSS – Coordenadoria de Contratação de Serviços de Saúde CES - Conselho Estadual de Saúde CIR - Comissão Intergestora Regional CLT – Consolidação da Legislação Trabalhista CMS - Conselho Municipal de Saúde CNAS - Conselho Nacional de Assistência Social CQH - Compromisso com a Qualidade Hospitalar CREMESP - Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo CSSM - Casa de Saúde Santa Marcelina DIR - Diretoria Regional de Saúde EUA - Estados Unidos da América FFM - Fundação Faculdade de Medicina FMI - Fundo Monetário Internacional FUNABEM – Fundação Nacional para o Bem Estar do Menor FUNRURAL - Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural GIFE – Grupo de Institutos, Fundações e Empresas Sociais HEVA - Hospital Estadual de Vila Alpina HGGr – Hospital Geral do Grajaú HGGu - Hospital Geral de Guarulhos HGI – Hospital Geral de Itaquaquecetuba HGPe - Hospital Geral de Pedreira HGPi - Hospital Geral de Pirajussara HGIP – Hospital Geral de Itaim Paulista HGIS - Hospital Geral de Itapecerica da Serra IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor IDH - Índice de Desenvolvimento Humano INAMPS - Instituto Nacional de Assistência Média da Previdência Social IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social MARE - Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização de Adultos NOAS - Norma Operacional de Assistência à Saúde NOB - Norma Operacional Básica OMS - Organização Mundial da Saúde ONA – Organização Nacional de Acreditação ONG - Organização Não Governamental ONU – Organização das Nações Unidas OPAS - Organização Panamericana de Saúde OS - Organização Social OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público OSEC – Organização Santamarense de Ensino e Cultura OSS - Organização Social de Saúde PAS - Plano de Atendimento à Saúde PDRAE – Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado PMS – Programa Metropolitano de Saúde PNGS – Prêmio Nacional de Gestão em Saúde PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PROAHSA – Programa de Estudos Avançados em Administração Hospitalar e de Sistemas de Saúde do Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e da Fundação Getulio Vargas RMSP - Região Metropolitana de São Paulo SAU – Serviço de Atendimento ao Usuário SCS – Serviço Catalão de Saúde SEADE - Sistema Estadual de Análise de Dados SECONCI - Serviço Social da Indústria da Construção e do Mobiliário do Estado de São Paulo SENAR – Serviço Nacional de Aprendizagem Rural SEPACO – Serviço Social da Indústria do Papel, Papelão e Celulose SESC – Serviço Social do Comercio SESI – Serviço Social da Indústria SEST – Serviço Social do Setor de Transporte SESSP - Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo SIA – Sistema de Informação Ambulatorial SIH - Sistema de Informação Hospitalar SIMESP – Sindicato dos Médicos de São Paulo SINDHOSP - Sindicado dos Hospitais, Clínicas, Casas de Saúde, Laboratórios de Análises Clínicas, Instituições Beneficentes e Filantrópicas do Estado de São Paulo SPDM - Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina SS - Secretaria da Saúde SUS - Sistema Único de Saúde TCE – Tribunal de Contas do Estado de São Paulo TCU – Tribunal de Contas da União UBS – Unidade Básica de Saúde UNESP – Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas UNICEF - Fundo das Nações Unidas para Infância UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo UNISA - Universidade Santo Amaro WWF - World Wildlife Foundation LISTA DE QUADROS LISTA DE QUADROS QUADRO 1 Origem dos recursos das entidades do Terceiro Setor........................................................................... 37 QUADRO 2 Natureza dos recursos das entidades do Terceiro Setor............................................................................ 37 QUADRO 3 Evolução do Contrato de Gestão................................ 63 QUADRO 4 Características dos tipos de entidades do Terceiro Setor............................................................................ 65 QUADRO 5 Interlocutores selecionados para o trabalho de campo.......................................................................... 77 QUADRO 6 Grupo de Hospitais..................................................... 77 QUADRO 7 OSS qualificadas......................................................... 92 QUADRO 8 Avaliações externas.................................................... 133 QUADRO 9 Origem dos pacientes internados (HEVA).................. 147 QUADRO 10 Origem dos pacientes internados (HGI)...................... 148 ÍNDICE ÍNDICE Epigrafe Agradecimentos Resumo Abstract Lista de Abreviaturas e Siglas Lista de Quadros Índice Introdução.......................................................................... 21 1. Referencial Teórico............................................................ 24 1.1. O Estado, O Governo e o Poder Público...................... 25 1.2. O Terceiro Setor........................................................... 33 1.3. A Reforma do Estado e o Terceiro Setor...................... 39 1.4. A Reforma do Estado e o Setor Saúde......................... 48 1.5. Organizações Sociais e o Contrato de Gestão............. 59 2. Objetivos............................................................................. 71 2.1. Objetivo Geral............................................................... 72 2.2. Objetivos Secundários ................................................. 72 3. Metodologia........................................................................ 73 3.1. Pesquisa Bibliográfica................................................... 75 3.2. Sujeitos da Pesquisa.................................................... 76 3.3. Instrumento de Pesquisa.............................................. 78 3.4. Trabalho de Campo...................................................... 79 3.5. Categorias Analíticas.................................................... 82 3.6. Obstáculos na Pesquisa............................................... 83 4. Resultados e Discussão.................................................... 84 4.1. Gerenciamento por Terceiros....................................... 85 4.2. Características das OSS............................................... 95 4.2.1. Modelo de Gerenciamento......................................... 95 4.2.2. Sistema de Liderança/Processo Decisório................ 98 4.2.3. Planejamento............................................................. 100 4.2.4. Informação e Conhecimento...................................... 104 4.2.5. Gestão de Pessoas.................................................... 105 4.2.6. Gestão Financeira ..................................................... 112 4.2.7. Gestão de Materiais e Equipamentos........................ 115 4.2.8. Responsabilidade Sócio-Ambiental........................... 120 4.3. Avaliação......................................................................124 4.3.1. Avaliação pelo Tribunal de Contas............................ 125 4.3.2. Avaliação pelo Usuário.............................................. 126 4.3.3. Avaliação pela Comissão de Avaliação da Execução do Contrato de Gestão.............................. 129 4.3.4. Avaliação por Entidades Externas............................. 130 4.3.5. Avaliação pelos Diretores dos Hospitais.................... 134 4.3.6. Avaliação pelos Dirigentes SESSP............................ 137 4.4. A OSS e o SUS............................................................. 139 4.4.1. Universalidade, Gratuidade e Igualdade na Assistência................................................................. 142 4.4.2. Descentralização, Regionalização e Hierarquização........................................................... 145 4.4.3. Participação da Comunidade..................................... 152 4.5. Privatização ou Publicização?...................................... 157 5. Conclusões......................................................................... 161 6. Referências Bibliográficas................................................ 167 Anexos INTRODUÇÃO Introdução 21 INTRODUÇÃO Nos anos 80, como resultado do choque do petróleo e da conseqüente crise dos estados nacionais, surge com maior força nos países centrais a discussão sobre a quantidade e a qualidade dos serviços públicos ofertados aos cidadãos, o papel e o tamanho do Estado e suas funções típicas, a privatização ou não de setores considerados não estratégicos, as parcerias público-privadas, entre outros. Discussões essas que marcaram o debate político no final do século passado e início deste. No Brasil, nas últimas décadas, observou-se também a centralidade do tema ―Reforma do Estado‖ nos debates políticos, em parte como conseqüência da pauta mundial, mas também como reflexo da insatisfação dos usuários dos serviços públicos com as condições de acesso, de oferta e da qualidade dos serviços prestados, notadamente nas áreas de segurança pública, saúde e educação. Propostas para o enfrentamento desses problemas, como a falta de agilidade da máquina administrativa pública e a ineficiência do Estado, tem alimentado quase todas as plataformas político- partidárias e freqüentado as pautas dos principais jornais e revistas. Após a promulgação da Constituição de 1988, os vários governos que se seguiram também fizeram da Reforma do Estado sua bandeira. Muitas vezes, reformas administrativas ou apenas mudança de subordinação de empresas estatais ou fusão de ministérios, foram apresentados como reformas do Estado. Eleito, Fernando Henrique Cardoso, em seu programa de governo apresentou uma ampla e estruturada proposta de reforma administrativa denominada ―Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado (PDRAE)‖, conduzida pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (Brasil, 1995a). O plano de reforma proposto apontava no sentido de valorizar os quadros burocráticos nas funções típicas de Estado e de buscar autonomia para outros setores, com a criação de Agências Executivas e Agências Introdução 22 Reguladoras e das figuras jurídicas das Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), e ainda regulamentando essas organizações do chamado Terceiro Setor, visando estabelecer parcerias com tais entidades, para execução de determinadas funções públicas. Muitos desses conceitos e modelos de Parceria Público-Privada1 presentes nas discussões da última década, hoje estão implantados em dezenas de países e alguns sendo adotados como instrumentos de gestão governamental atualmente no Brasil. Destacam-se, neste momento, as discussões sobre a criação de Fundações Estatais na área da saúde, gerando muita polêmica e embora tal assunto não seja abordado neste estudo, tangencialmente merecerá comentários. Desde o surgimento das OS no Estado de São Paulo, as análises, os diversos enfoques e os olhares vindos de variados grupos de interesse, as interpretam de múltiplas, variadas e até opostas formas. Essas organizações têm sido apresentadas como a salvação do SUS, no entendimento de seus defensores mais entusiasmados, ou então como o ―PAS de Casaca‖2 (uma forma sutil de privatização dos serviços de saúde), conforme apontam seus adversários. Não raramente são vistas como forma de precarizar relações trabalhistas e outras vezes identificadas como parte do modelo neo-liberal, fruto do Consenso de Washington. Diante desses entendimentos tão díspares é de se esperar que, um ente social tão polêmico como a OS, necessariamente torne-se um instigante objeto de estudo em Saúde Coletiva. Além disso, a aproximação com esse tema como objeto de pesquisa motivou-se pela sua atualidade e caráter inovador, principalmente pela inserção profissional do pesquisador à época da implantação das mesmas 1 O ESTADO DE SÃO PAULO – Economia&Negócios B1, São Paulo 10, agosto de 2003, Conceito de PPP é adotado em pelo menos 50 países. 2 A verdadeira face das OS segundo palavras do Presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo.(www.mpd.org.br , último acesso em 29.08.2007) http://www.mpd.org.br/ Introdução 23 no Estado de São Paulo, ocasião em que seus sentidos e sua atenção estavam mais aguçados e mais voltados nessa direção. Assim, tomar como objeto de estudo as organizações sociais de saúde implantadas pelo Governo do Estado de São Paulo e recortar nesse objeto os limites da pesquisa e as características relevantes a ser analisadas constituiu um grande desafio. Conforme Botazzo, (1997; p.73) ―descrever objetos em saúde coletiva é problema e exercício diverso que o colocado para a pesquisa biomédica, médico-cirúrgica ou odontológica‖, pois a teoria do problema que terá de ser construída é diferente para cada um dos campos de investigação. Ainda segundo o autor, a saúde coletiva, embora gravitada pelas ciências sociais, não se esgota nelas, sobretudo pelo seu caráter interdisciplinar. Desse modo, este trabalho tem como cenário a reforma estrutural dos serviços públicos na área da saúde em geral, e em particular as Organizações Sociais de Saúde (OSS) tal como foram configuradas pelo Governo do Estado de São Paulo no final dos anos 90. A escolha deste tema como objeto de pesquisa justifica-se pela sua atualidade, seu conteúdo polêmico, bem como do consenso que vem se formando sobre a necessidade de mudanças profundas no atual modelo de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente no gerenciamento dos serviços hospitalares e daqueles classificados como alta complexidade. Analisar criticamente os vários modelos gerenciais praticados, inclusive os atuais, visando contribuir com a construção de um novo ou de vários, que propiciem maior grau de satisfação das necessidades da clientela assistida, constitui matéria relevante para o desenvolvimento gerencial e a consolidação do SUS. Nesse sentido, a interrogação a ser respondida nesta pesquisa é a seguinte: as características do modelo de gestão das OSS e as tecnologias gerenciais por elas utilizadas, que as diferenciam da administração pública direta, obedecem aos princípios do SUS? 1. REFERENCIAL TEÓRICO Referencial Teórico 25 1. REFERENCIAL TEÓRICO Neste capítulo são apresentados os principais conceitos e definições balizadores deste trabalho, tomados como marco teórico- metodológico a ser observado na análise e nas discussões dos resultados e observações da pesquisa. Na escolha ou seleção dos autores, com os quais este trabalho busca dialogar, representativos dos vários campos de conhecimento –Direito, Ciências Sociais, Administração, Saúde – procurou-se contemplar os principais aspectos e objetivos desta pesquisa. Nesse sentido, a título de justificativa, observa-se que no campo da saúde coletiva, em decorrência do espírito da interdisciplinaridade, a construção de marcos conceituais freqüentemente leva o pesquisador a utilizar-se de um quadro diversificado de referenciais teóricos (Turato, 2005). 1.1. O ESTADO, O GOVERNO E O PODER PÚBLICO Estado, conforme o dicionário Aurélio, tem pelo menos dezoito significados distintos dos quais para os fins deste estudo, destacam-se dois: 1) é o conjunto dos poderes políticos de uma nação; 2) organismo político administrativo que, como nação soberana ou divisão territorial, ocupa território determinado, é dirigido por governo próprio e se constitui em pessoa de direito público internacionalmente reconhecida (Ferreira, 1986, p.713). ―Estado‖ pode apresentar diversos significados. Pode indicar sociedade, governo, uma forma especial de governo, sujeitos do governo, nação ou território, dificultando a compreensão e os estudos relacionados com o tema. Referencial Teórico 26 Estudos e análises políticas mais detalhadas provavelmente indicariam a necessidade de diferenciar conceitualmente as seguintes categorias: 1) aparelho de Estado e poder de Estado; 2) classe dominante e classe (ou fração ou grupo) politicamente governante; 3) poder estatal e poder governamental ou o poder real e o poder nominal das classes sociais. Entretanto, para os limites deste trabalho, conceituar-se-á, Governo, Estado e Poder Público. Para este trabalho, Estado deve ser entendido como organismo político-administrativo detentor dos poderes políticos de um país nos níveis federal, estadual e municipal, o que, resumidamente, pode ser denominado como Poder Público. Segundo Bobbio et al.(1986; p. 553), ―o termo Governo está habitualmente associado à noção de Estado. Porém o Estado não é senão uma das formas de organização política que a sociedade assumiu no decorrer da história (a mais evoluída e a mais complexa) na qual se manifestou um poder de Governo‖. Conforme esses autores, Governo pode ser definido como o conjunto de pessoas que exercem o poder político e que determinam a orientação política de uma sociedade. Max Weber (1999) observou que o Estado está relacionado com a coação física, não a considerando como meio normal ou único, mas como meio específico. Para esse autor, o Estado pode ser conceituado como comunidade humana que, dentro de determinado território, reclamou para si e com êxito o monopólio da coação física legítima e reuniu para este fim os meios materiais de organização. Ele é a única fonte do direito de exercer a coação. Bobbio et al.(1986; p. 553) afirmam que: ―a existência de um Governo central que detém o monopólio da força é indubitavelmente um aspecto típico do Estado moderno, e representa portanto o ponto de chegada de uma longa e complexa evolução histórica. O uso da força ou a ameaça de recorrer a ela foi sempre o meio específico que as autoridades de Governo Referencial Teórico 27 tiveram à disposição para garantir a supremacia do seu poder.‖ Contudo, há que se distinguir ainda a figura do Estado, com suas características estruturais, da figura de Governo, este com características operacionais e de processo. Tal distinção é importante neste estudo, uma vez que a legislação referente às Agências Reguladoras e Organizações Sociais fazem parte do arcabouço jurídico do Estado, enquanto o Governo, transitório nas democracias, tem seus rumos e direções definidas segundo os compromissos assumidos com suas bases de sustentação política, determinado pela correlação de forças. Gramsci (1978) define Estado como algo mais que simplesmente o aparato governamental, pois é constituído também pelo aparato privado de hegemonia, que denomina de sociedade civil. Segundo o autor, o Estado é todo esse conjunto de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente justifica e procura perpetuar a sua dominação, e também consegue obter o consentimento e o apoio dos seus governados. Ele apóia-se na hegemonia da classe dominante que usa sua liderança política, moral e intelectual para impor sua visão de mundo como inteiramente abrangente e universal. Esta concepção de mundo está presente nas escolas, nas igrejas, nas universidades, nos tribunais, nos museus e nas bibliotecas. Louis Althusser (1985) retoma as concepções de Gramsci com base no conceito de Estado da teoria marxista. Para o autor, o Estado é antes de tudo o que os clássicos do marxismo denominam de o Aparelho de Estado, termo este que abrange não só o aparelho administrativo do Governo, mas também dois outros aparelhos que o autor chama de Aparelho Ideológico do Estado (AIE) e Repressivo do Estado (ARE). Além do governo, da administração, do exército, da polícia, dos tribunais, das prisões, denominado como aparelho repressivo do Estado, o autor conceitua também como aparelhos ideológicos do Estado: igrejas, escolas públicas e privadas, a família, o direito, o sistema político, os sindicatos, a imprensa, os meios de comunicação e os museus. Eles são múltiplos, distintos, privados e relativamente autônomos. Esses aparelhos funcionam pela coerção e pela Referencial Teórico 28 violência, estão relacionados ao domínio político e do poder público e constituem um todo organizado, articulado e centralizado. O autor é enfático ao afirmar que uma classe só deterá o poder de Estado de forma duradoura se dominar a maioria e os principais aparelhos ideológicos do Estado. Analisando os aparelhos ideológicos, Althusser (1985) afirma que a escola seja ela pública ou privada, substitui a igreja como principal aparelho ideológico na sociedade capitalista moderna. A Escola mantém contato intenso e por vários anos com as crianças na sua fase mais vulnerável, a de formação e crescimento. A ideologia está contida e disseminada nas disciplinas como literatura, história, ciências e filosofia. Dados os variados tipos de Estado, torna-se necessário o estabelecimento de certa taxonomia para melhor entendimento. Norberto Bobbio (1992) observa que as tipologias ou classificações sobre formas de Estado são variadas e mutáveis, sugerindo dois critérios para essa classificação: o histórico e o relativo a maior ou menor expansão do Estado em detrimento da sociedade. O histórico divide o Estado em feudal, estamental, absolutista e representativo. O segundo, conforme a dimensão do aparato estatal, em intervencionista e mínimo. O Estado, quanto à sua relação com a sociedade civil, conforme a tipologia de Norberto Bobbio apresentada anteriormente pode ser classificado em Estado intervencionista e Estado mínimo ou liberal. O Estado intervencionista caracteriza-se por regular a produção de bens, e muitas vezes produzi-los nas companhias estatais; distribuir riquezas mediante políticas de rendas e ainda, por fomentar, facilitar ou obstaculizar determinadas atividades. Em geral, define a direção econômica do país. Para Gramsci, o Estado intervencionista não raro está relacionado com correntes protecionistas ou de nacionalismo econômico, ou então à tentativa de proteção das classes trabalhadoras locais da concorrência internacional e ainda contra os excessos do capitalismo. A forma intervencionista, em diferentes gradações, pode ser evidenciada já no mercantilismo e mais recentemente nos países socialistas e no Estado de bem-estar social ou social-democrático (―Welfare State‖). Já Referencial Teórico 29 o Estado mínimo ou liberal tem como principal característica a tendência à abstenção da esfera econômica. Seu objetivo é assegurar os direitos civis, a defesa da moeda, a ordem interna e a defesa externa. O Estado, neste caso, é aceito como um mal necessário. Pereira (2001b)classifica Estado observando o regime político e a natureza de suas instituições, nas seguintes categorias: Estado absoluto, Estado liberal, Estado social-democrático (do bem-estar social) e Estado social-liberal (democrático). Conforme o autor, o Estado social-democrático é aquele que procura assegurar, de forma universal, além dos direitos civis, os direitos sociais tais como: educação fundamental, assistência à saúde, renda mínima e um sistema básico de previdência. Na sua classificação de regime político de Estado, Pereira acrescenta o modelo social-liberal. É social, pois continua comprometido com os direitos sociais, e liberais porque adota mecanismos de regulação dos mercados e da concorrência. Este modelo está intimamente relacionado à administração pública gerencial e prioriza a eficiência dos serviços de assistência social e das áreas de pesquisa científica. O autor, que é um dos defensores deste modelo, afirma que no século XXI a democracia não será neoliberal nem social-democrática, mas social-liberal. Afirma que os paises com governos social-democratas mais bem sucedidos – Países Escandinavos, Holanda e Inglaterra – estão deixando de ser social- democratas para tornarem-se social-liberais. A principal mudança observada está na gestão pública, centrada nas agências reguladoras, na contratualização e nas parcerias com organizações públicas não estatais para a realização de forma competitiva, de serviços ditos sociais. Pereira (2000), analisando o aparelho de Estado e os vários modos de operá-lo, aponta a existência de três modalidades de gestão: a administração patrimonialista, a administração burocrática e a administração gerencial. Tomando-se os aspectos mais relevantes, pode-se afirmar que a administração patrimonialista é característica do Estado pré-capitalista onde o ―Príncipe‖ ou o detentor dos poderes é incapaz, ou não tem interesse, em Referencial Teórico 30 distinguir o patrimônio público dos seus bens particulares. O surgimento da administração burocrática representou um avanço, e com a introdução de um serviço público profissional e de um sistema administrativo formal, racional e impessoal, foi instrumento de combate ao nepotismo e da corrupção, dois traços presentes na administração patrimonialista. Max Weber (1999), que desenvolveu um conceito positivo de burocracia, aponta que o servidor burocrático, orientado pelas normas e rotinas, costuma atuar com maior precisão e uniformidade. Esse autor destaca a superioridade da autoridade racional-legal quando comparada com o poder patrimonialista, pois a burocratização separa a atividade pública da atividade privada, sendo os bens e equipamentos públicos nitidamente separados do patrimônio particular dos dirigentes e funcionários. Conforme Pereira (2000, p.18), ―a reforma gerencial do Estado de 1995 buscou criar novas instituições legais e organizacionais que permitam que uma burocracia profissional e moderna tenha condições de gerir o Estado brasileiro‖. Conforme Tragtemberg (1974), Max Weber admite que a operacionalidade da burocracia, caracterizada pela impessoalidade, a objetividade, recrutamento impessoal, hierarquia fundada em critérios e diplomas, o cargo como profissão, a direção monocrática, o ritual, o prazo, a pontualidade, garantem formalmente o modus operandi burocrático. Porém essa burocracia tecnicamente funcional no plano administrativo tende a tornar-se irracional no campo político. Przeworski (2001) aponta que em muitos sistemas políticos, inclusive democráticos, as burocracias parecem adquirir autonomia em relação a quaisquer controles. Como os burocratas nunca sabem com certeza quais as forças políticas que o povo elegerá, tentam manter-se livres que qualquer tipo de controle político. Já os políticos que temem perder o poder, segundo o autor, sentem-se incentivados a deixar a burocracia fora dos controles políticos, e em conseqüência, políticos e burocratas estabelecem um acordo tácito que os mantêm autônomos. Referencial Teórico 31 Lapassade (1989), analisando as organizações e o problema da burocratização, aponta que: ―a fidelidade à organização – a suas estruturas, à sua vida interna e a seus ritos – termina por tornar-se ao mesmo tempo um dever absoluto, uma fonte de valores e de satisfação‖. Com o tempo a organização (o aparelho) não é mais um meio e sim um fim, e isso ocorre no partido político, no sindicato, na organização religiosa, no aparelho de Estado e também na organização industrial. No limite, conclui o autor, a burocracia parece deter mais poderes que os próprios acionistas e parece ser a detentora da propriedade privada da organização. O poder do escritório (do bureau) é o sistema de poder característico das organizações burocratizadas, daí vem o anonimato das tomadas de decisão. ―Num sistema burocrático, é difícil saber onde é tomada a decisão, quando e como ela é tomada. Como se sabe, esse é um dos traços essenciais do universo burocrático descrito por Kafka‖ (Lapassade,1989; p.177) Por sua vez, a administração gerencial foca os resultados, e nela a burocracia está organizada em carreiras para o atendimento daquelas funções de Estado indelegáveis. São valorizados o contrato de gestão e os resultados, e aqueles serviços que possam ser realizados e regulados pelo mercado são privatizados. Pereira (2001b) considera que os Estados modernos apresentam quatro setores bem distintos e articulados, quais sejam: o núcleo estratégico, onde se definem as leis e as políticas públicas; o setor de atividades típicas (exclusivas) e suas agências reguladoras e executivas3; o setor dos serviços sociais e científicos e outros serviços não exclusivos, e por último, o setor de produção de bens e serviços para o mercado. Para esse último setor, o autor entende que, salvo para as atividades monopolísticas e aquelas consideradas estratégicas, a privatização é o melhor caminho. 3 No setor saúde, no âmbito federal, existem uma Agencia Executiva, a ANVISA e uma Agencia Reguladora , a ANS. Ambas têm como características, entre outras, o Contrato de Gestão e mandato por tempo determinado de seus dirigentes. Referencial Teórico 32 No núcleo estratégico, composto pela Presidência da República e seus Ministérios, Parlamento, Tribunais e Forças Armadas, e também no setor de atividades típicas de Estado, a propriedade deverá ser estatal e o controle burocrático. Para os serviços não exclusivos (saúde, educação, cultura, etc) o autor propõe que os mesmos possam ser executados pelo setor privado não lucrativo, que ele denomina de setor público não estatal. Acrescenta Pereira (2001b,p.259), ―os serviços não exclusivos ou competitivos do Estado são aqueles que embora não envolvendo o poder do Estado, são realizados ou subsidiados por ele por serem considerados de alta relevância para os direitos humanos‖. Na área social, em particular na saúde, este será o espaço em que o Estado irá oferecer o gerenciamento de seus hospitais para as OSs, ou para a compra dos serviços produzidos nas OSCIPs mediante convênios, redirecionando a atuação estatal para a área da regulação. Conforme Carneiro Jr (2002, p.17), ―o caráter público das ações de saúde não é concebido necessariamente como da esfera estatal, reconhecendo-se a existência e a pertinência de prestadores de serviços que não visam lucro e desenvolvem atividades complementares e auxiliares ao Estado‖. No final do século XX e neste início de século tornam-se mais evidentes as complexidades das relações entre os vários agentes sociais (governo, estamentos da burocracia estatal, corporações profissionais, movimentos autônomos da sociedade civil, universidades, sindicatos, etc). A difusão de informações, a INTERNET, a chamada globalização e a velocidade nas telecomunicações geramnovas demandas e mundializam questões aparentemente locais. Acrescente-se a isso a simultaneidade dos acontecimentos, presenciados via TV por satélite, em todos os cantos do planeta. Referencial Teórico 33 Emerge como valor a responsabilidade social das empresas, aumentam em número e atividades as Organizações Não Governamentais, bem como se observa o crescimento de todo o terceiro setor. O controle social dos aparelhos de Estado e o controle público das práticas do Governo e de suas Agências tornam-se temas fundamentais e contemporâneos na perspectiva do aprofundamento da democracia. 1.2. O TERCEIRO SETOR Após a Segunda Grande Guerra começaram a adquirir visibilidade e importância organizações que, no que se refere aos aspectos taxonômicos, não se enquadravam nas características do campo do privado – mercado, lucro e competição – e tampouco nas características e formalismos do campo público estatal. Surgiam organizações privadas e sem fins lucrativos, cujo corpo funcional era constituído basicamente por voluntários, que dedicavam seu tempo disponível no atendimento aos diversos ramos de atividade, em especial, na sua origem, na defesa dos direitos das minorias e de vítimas de atrocidades da Guerra. Dada a repercussão e o caráter público dessas organizações e para distingui-las dos Estados e dos Governos, essas entidades passaram a ser conhecidas como Organizações Não Governamentais ou simplesmente ONGs, que em seu conjunto constituem o chamado Terceiro Setor. Apesar dessas modalidades de associativismo terem crescido a partir dos anos 70, trata-se de fenômeno antigo, algumas dessas organizações surgiram no século XIX, sendo a mais conhecida delas a União Internacional das Sociedades Protetoras de Animais (UIPA), fundada em 1895. Na classificação de Terceiro Setor, por ser bastante genérica, cabem várias formas e modelos de organização cujo ponto comum é a autonomia frente ao Estado. Diante da multiplicidade dessas organizações bem como de sua diversidade de foco e modo de atuação, embasamento Referencial Teórico 34 ideológico contraditório e até antagônico – ONG contra o aborto convivendo e competindo com ONG que busca ampliação dos direitos civis e contra a violência – constitui tarefa nada fácil definir, identificar e classificar seus componentes. Para definir as organizações como pertencentes ao Terceiro Setor, a Organização das Nações Unidas (ONU) a Johns Hopkins University estudaram formas e critérios para a definição e classificação dessas organizações e elaboraram no ano de 2002 o ―Manual sobre Organizações Não Lucrativas nos Sistemas de Contas Nacionais‖. Segundo definição constante desse manual, ―..terceiro setor é definido como o formado por (a) organizações que (b) são sem fins lucrativos e que por lei ou costume, não distribuem qualquer excedente, que possa ser gerado para seus donos ou controladores; (c) são institucionalmente separadas do governo, (d) são auto-geridas e (e) não compulsórias‖. (Mapa do 3º Setor, 2005; p.1). No Brasil, a denominação Terceiro Setor tem sido utilizada para identificar as atividades da sociedade civil que não se enquadram como atividades estatais - Primeiro Setor - representado pela Administração Pública ou como as atividades de mercado - Segundo Setor - representado pelas empresas e organizações com finalidade lucrativa. Segundo Pereira (2007, p.347), ―Terceiro Setor é o espaço ocupado pelas organizações da sociedade civil sem fins lucrativos ou econômicos, de interesse social e que não possuam finalidade, natureza ou legislação específica‖. Juridicamente, segundo esse mesmo autor, existe um consenso de que as figuras jurídicas básicas encontradas no terceiro setor são as associações e fundações, ficando excluídas as cooperativas, os partidos políticos e os sindicatos por terem caráter econômico ou finalidade particular. Observa também que existem dois tipos fundamentais de organizações: aquelas de benefício mútuo e as de interesse público. As organizações privadas de benefício mútuo, não perseguem lucro, mas orientam-se para a busca de benefício para os seus associados, como por exemplo, Associação Referencial Teórico 35 de Moradores, de mutuários do SFH, Grupos de Auto Ajuda, enquanto as entidades de fim público ultrapassam os limites de seu corpo de associados, atendendo a um grupo bem amplo de pessoas, ou a interesses sociais difusos. A Lei Federal nº 9.790/99 que regulamenta as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) admite a qualificação como interesse público apenas das entidades que beneficiem um público alvo maior que seu círculo de associados, excluindo aquelas de benefício mútuo e de defesa de interesses primordiais dos associados. Morales (1998, p.126) sugere a denominação de Organizações Públicas Não Estatais (OPNE), pois estas entidades caracterizam-se por ações públicas não lucrativas, entretanto não fazem parte do aparelho de Estado. Acrescenta o autor que essas organizações, cada vez mais, desempenham importante papel nas relações Estado-Sociedade, pois essas formas associativas criam e condensam uma teia de relações, gerando uma nova arena de relações sociais e políticas, denominada de espaço público não-estatal. Essas organizações, de um modo geral, são bastante ágeis e flexíveis sob aspecto administrativo, e muitas delas prestam serviços sociais com alto grau de eficiência. Seu corpo de funcionários costuma ser bastante motivado, e como organizações gozam de prestígio e legitimidade junto a segmentos sociais. Algumas ONGs atualmente exercem forte influência e algumas delas – IDEC, SOS Mata Atlântica, Greenpeace, Anistia Internacional, WWF – detêm a liderança nacional e até mundial na defesa de determinados temas de interesse coletivo. Numa época de descrédito dos partidos políticos e das representações partidárias formais, a mobilização popular tem ocorrido, muitas vezes, capitaneada por entidades do Terceiro Setor. Os três fóruns sociais mundiais realizados em Porto Alegre em 2001, 2002 e 2003 mostram a capacidade de mobilização de caráter mundial dessas organizações, as quais têm se destacado na defesa de demandas públicas nas esferas de direitos humanos, defesa do consumidor, preservação do meio ambiente, Referencial Teórico 36 diversidade sexual, defesa de portadores de necessidades especiais, defesa de espécies animais, defesa de idosos, crianças, índios, e outros tantos. Na área da saúde, desde 1498 com a criação das irmandades de misericórdia e a implantação da Santa Casa de Lisboa em Portugal, esse tipo de configuração de organização não estatal já é bastante conhecida. Naquela ocasião a Coroa Portuguesa conclamava os ―cidadãos de posses‖ a moverem-se pelos sentimentos cristãos e auxiliarem os necessitados e desvalidos. No Brasil, desde 1543 com Brás Cubas fundando a primeira delas em Santos, centenas de Santas Casas de Misericórdia foram erguidas país afora. O movimento das Santas Casas de Misericórdia em nosso Estado é bastante relevante e tem sido importante na construção do SUS, embora não seja propriamente uma ONG, dadas as várias personalidades jurídicas privadas de cada uma dessas entidades. Entretanto, no setor saúde, são as mais emblemáticas entidades do Terceiro Setor. Conforme Barbosa (2002) em estudo patrocinado pelo BNDES, as entidades do Terceiro Setor são responsáveis por um terço dos hospitais existentes no país, algo em torno de 132 mil leitos, com características muito variadas de porte e de complexidade, em sua maioria vinculados ao SUS, embora não exclusivamente. Esse estudo identificou grande diversidade dessas entidades do Terceiro Setor e ainda constatou que as áreas governamentais reguladoras do setor filantrópico são bastante abrangentes, reunindo uma vasta regulamentação com inúmeros órgãos atuantes. Envolvevárias áreas de atuação em organismos governamentais das esferas municipal, estadual e federal, principalmente no sentido do reconhecimento da utilidade pública e da filantropia, o que possibilita a isenção de taxas e impostos e propicia certa imunidade tributária. Analisando as questões estratégicas da Reforma Sanitária Brasileira e o desenvolvimento do Terceiro Setor, Oliveira e Junqueira (2003), mostram a necessidade do fortalecimento das entidades desse setor como algo importante para o desenvolvimento social do país. Apontam que o movimento sanitário avançará ao incorporar ou se aliar ao que chamam de Referencial Teórico 37 ―iniciativa privada cidadã sem, entretanto pautar-se pelo paradigma mercantilista que valoriza fundamentalmente o lucro, mas pela idéia do bem estar da população‖ (p.235). Ainda segundo os autores as organizações sociais como se apresentam em alguns outros países são importantes na construção de um sistema democrático que privilegie a participação, a cidadania e a equidade. No Brasil dois importantes estudos realizados nos últimos anos procuraram diagnosticar e dimensionar o chamado Terceiro Setor. O principal deles é o único levantamento nacional de organizações sociais e foi realizado pelo IBGE em parceria com o IPEA, GIFE e a ABONG, com o título de ―As Fundações Privadas e Associações Sem Fins Lucrativos no Brasil - 2002‖. Esse estudo identificou 275.895 organizações, que empregavam, na ocasião, 1.541.290 pessoas. A outra pesquisa, de menor abrangência realizada pelo Centro de Estudos do Terceiro Setor (CETS) da Fundação Getúlio Vargas produziu em 2005 o chamado Mapa do Terceiro Setor colhendo informações de 4.589 entidades, que analisadas, revelaram aspectos até então desconhecidos, como por exemplo, no que se refere à origem e à natureza dos recursos financeiros, conforme se apresenta nos quadros abaixo: Quadro 1 – Origem dos recursos das Entidades do Terceiro Setor Origem dos recursos Porcentual NACIONAL MISTO INTERNACIONAL 95% 4,2% 0,8% FONTE : www.mapa.org.br Quadro 2 – Natureza dos recursos das Entidades do Terceiro Setor Natureza dos recursos Porcentual PRÓPRIOS PRIVADOS PÚBLICOS 46% 33% 21% FONTE : www.mapa.org.br http://www.mapa.org.br/ Referencial Teórico 38 A reforma do Estado atualmente em curso tende a considerar o Terceiro Setor como um espaço de interesse público, entendido por alguns como um espaço público não estatal, cuja atuação deve ser complementar, mas não substituta da ação estatal. Porém não se pode esquecer que ―o Terceiro Setor na saúde também tem suas mazelas, tais como a falta de eficiência e a baixa qualidade, precisando também se qualificar‖ (Santos 2006; p.4). Serva (1997) analisando as relações de parceria entre o Estado e as ONGs apontou as complexidades desta relação, principalmente pelo polimorfismo característico destas instituições. Assim, orientam-se por diversos objetivos; possuem métodos de trabalho informais em contraste com o administrador público profissional; muitas vezes estabelecem relações pessoais mais fortes do que as institucionais; seu corpo funcional envolve assalariados, voluntários e avulsos; possuem várias fontes de recursos e não raro, embora sejam entidades não estatais, dependem totalmente de subsídios, contratos ou financiamentos do Estado. Nesse sentido, Alcântara (2006) analisando o modelo gerencial das organizações do terceiro setor, observou em muitos casos, a excessiva dependência que muitas dessas organizações não governamentais têm em relação ao governo, e afirma ser preocupante a existência de organizações não estatais que sobrevivem, exclusivamente por conta do repasse de verbas do Estado. Em estudo sobre a incorporação de novos modelos de gestão no setor público do estado de São Paulo, Sano (2003) avalia que grande parte das OS e das OSCIP tem sido utilizadas pelos vários níveis de governo (municipal, estadual e federal) como possibilidades para contornar os obstáculos e a alegada rigidez da legislação e do direito administrativo aplicados na administração pública. É impossível negar a importância das ONGs no cenário contemporâneo, inclusive reconhecer que o aumento gradativo e expressivo dessas organizações no Brasil, corresponde por um lado à sua agilidade e Referencial Teórico 39 capacidade de mobilização, e por outro, multiplicam-se pela falta de regulamentação e controles por parte do Estado. 1.3. A REFORMA DO ESTADO E O TERCEIRO SETOR Como herança da colonização portuguesa, alguns traços culturais introduzidos com a vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil em 1808, enraizaram na administração pública brasileira. Podem-se destacar, entre eles, o formalismo, o ritualismo e a centralização governamental, conforme aponta Duarte (1990). A crítica à centralização da administração pública brasileira remonta ao período imperial, pois já em 1862 o Visconde do Uruguay observava tal situação: ―A absorção da gerência de todos os interesses ainda secundários e locais pelo governo central mata a vida das localidades, nada lhes deixa fazer, perpetua nelas a indiferença e a ignorância de seus negócios, e fecha as portas da única escola em que a população pode aprender, habilitar-se praticamente para gerir os negócios públicos‖. Apud Mascarenhas (1949, p. 29). A história da República brasileira na primeira metade do século xx mostra uma sucessão de crises de governabilidade. A crise social e do Estado que se revela nas revoluções de 1924, 1930 e 1932, cria condições para a implantação do Estado Novo, que marca o fim do período denominado de República Velha (1889-1930) caracterizado como oligárquico, patrimonialista e clientelista nas suas relações público-privadas. A Constituição de 1937 e a reforma do Estado mudaram indelevelmente o perfil da administração pública e a face do país. O modelo burocrático- gerencial profissional é implantado no Brasil em 1938, pelo Decreto-lei nº 579, que criou, junto à Presidência da República, o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP). Referencial Teórico 40 Segundo Pereira (1998), a criação do DASP deve ser considerada como um marco histórico da primeira reforma do Estado brasileiro com a incorporação dos princípios centralizadores e hierárquicos da burocracia clássica. A redemocratização de 1945 e a Assembléia Nacional Constituinte de 1946 poucas alterações fizeram no sentido de desmontar o aparelho administrativo do Estado Novo em face da nova ordem resultante da redemocratização. O modelo burocrático-gerencial do serviço público estava consolidado. Ao longo do tempo, a administração pública foi se tornando, no senso comum, sinônimo de burocracia, de ineficiência e de inoperância. Tanto que nas últimas décadas, propostas de reforma do Estado têm sido constantes nas plataformas dos principais partidos políticos do país, reflexo da insatisfação dos usuários dos serviços públicos com as condições de acesso, oferta e da qualidade dos serviços prestados, notadamente nas áreas de segurança pública, saúde e educação. Durante o regime militar brasileiro, visando superar esses problemas já então detectados, foi desencadeada uma reforma administrativa cujo embasamento legal foi o Decreto-Lei nº 200 de 25 de fevereiro de 1967, o qual introduziu na administração pública brasileira, novos conceitos e instrumentos de planejamento, orçamento-programa, controle orçamentário, além da separação das atividades da administração direta daquela denominada de administração indireta. Foram regulamentadas as autarquias, as sociedades de economia mista e foram criadas várias empresas estatais (Portobras, Telebras, Siderbras, etc) e também Fundações de Direito Público (FUNABEM, MOBRAL, etc) instituídas com a expectativa de mudança na gestão pública com aumento da eficiência etendo maior agilidade, representando um salto de qualidade na Administração Pública. Ainda nesse período, foi criado o Ministério Extraordinário para a Desburocratização, que elaborou um ambicioso e detalhado Plano de Reforma Administrativa e Desburocratização, conforme Beltrão (1984), o Referencial Teórico 41 qual diante da enorme resistência que teve que enfrentar, inclusive de setores do próprio governo da época, nunca foi implementado. De acordo com Pereira (2001a) a reforma administrativa do regime militar de 1967 foi apenas um início de descentralização e desburocratização que acabou sendo revertida com o passar dos anos. No final da década de 70, em conseqüência dos dois choques do petróleo (1973 e 1978) tem início uma grande crise econômica de caráter global que encerrará um período de crescimento econômico que se estendeu por mais de 30 anos e que ficou conhecido como ―anos dourados‖. Alguns países, notadamente os de governo social-democrata, principalmente europeus, desde 1945, no período chamado pós-guerra, vinham construindo o denominado Estado de Bem Estar Social (Welfare State), cujos modelos mais avançados eram os da Suécia e Grã-Bretanha, nos quais o papel do Estado compreendia a cobertura universal gratuita aos cidadãos naturais, dos serviços sociais considerados básicos, como educação fundamental, previdência e seguro social, assistência social e saúde. Nos países da Europa Mediterrânea e mais especificamente na Península Ibérica, esse estado de bem estar social foi de implantação mais tardia ocorrendo com a chegada ao poder dos partidos Sociais Democratas, Socialistas e seus aliados, após as quedas das ditaduras franquista e portuguesa. Abrucio (1997) aponta quatro fatores sócio-econômicos como determinantes no desencadeamento da crise dos Estados montados no período denominado pós-guerra. Primeiro, a crise no crescimento econômico resultante do choque do petróleo. Em segundo lugar, a crise fiscal com gastos governamentais superando a arrecadação de tributos. Em terceiro a ingovernabilidade desse Estado diante das demandas excessivas e crescentes e os recursos escassos, e por último a globalização e o enfraquecimento dos governos nacionais para controlar fluxos financeiros e de capitais, o que resultou na perda da capacidade do Estado em controlar muitas das variáveis macroeconômicas. Referencial Teórico 42 No final dos anos 80 emergiram mudanças sociais impensáveis poucos anos antes. Aumento brutal no fluxo de informações desencadeado pela revolução da informática e das telecomunicações, principalmente pelo advento da INTERNET e algumas novidades surgiram no campo político- social como a multiplicação das Organizações Não Governamentais (ONG). No Ocidente a democracia tornou-se valor universal e a queda do Muro de Berlim em 1989, emblemática, acelerou o desmonte das economias centralmente planificadas e baseadas na propriedade estatal dos meios de produção. Por seu turno, os países baseados na economia de mercado, também estavam mergulhados em crise profunda, com desemprego, ataques especulativos, inflação e violência urbana. Imunes perante essa crise, somente os chamados tigres asiáticos, alguns países do sudeste da Ásia, que mesmo nesse ambiente turbulento cresciam em ritmo acelerado. A República Popular da China, que em 1984 sob a liderança de Deng Xiao Ping4 iniciara um ambicioso programa de reformas econômicas tidas como heterodoxas, começava um ciclo de crescimento econômico. Na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, agora Federação Russa, o desmonte dessa união nacional e reconstrução dos novos estados nacionais passou pela fragmentação do estado soviético e um processo de privatização dos meios de produção sem precedentes na história. Diante desse novo rearranjo geopolítico econômico mundial, a questão da reforma do Estado tornou-se tema presente em todos os países. Conforme Morales (1998, p.120) ―a crise do Estado Social dos anos 80 foi enfrentada com algumas medidas que rapidamente adquiriram consenso geral. Ajuste fiscal e reforma tributária, abertura comercial e privatização de alguns setores da economia foram providencias observadas em quase todos os paises. Porém na hora da definição das características do novo Estado, uma grande divisão se estabeleceu. De um lado propostas conservadoras, designadas genericamente como neo- liberais, propunham o estado mínimo, admitindo políticas sociais focalizadas aos grupos mais carentes e vulneráveis da sociedade. Do outro lado alinharam- 4 Não importa a cor do gato, o importante é que ele pegue os ratos. Referencial Teórico 43 se os defensores das propostas de reforma do Estado, sem abrir mão dos direitos sociais e bens considerados públicos, enfatizando nessa reforma, aspectos gerenciais e a ampliação das funções de regulação e financiamento‖. Formava-se na opinião pública uma corrente de pensamento que se tornou majoritária, no sentido de apontar o aparelho e a burocracia de Estado como um modelo dispendioso e ultrapassado, para os consumidores (usuários) que não estavam dispostos a pagar mais impostos e taxas para cobrir o déficit fiscal. Tal situação foi determinante para a vitória dos Conservadores na Grã-Bretanha em 1979 e dos Republicanos nos Estados Unidos em 1980. Os grupamentos políticos mais conservadores insistem em sua cruzada de críticas referentes ao papel do Estado na economia. Esse movimento teve forte repercussão nos EUA, encontrando apoio e sustentação no governo Reagan. Em meados dos anos 80 no Governo de Margareth Thatcher na Inglaterra, aprofundaram-se as discussões sobre a quantidade e qualidade dos serviços públicos ofertados aos cidadãos, o papel da livre iniciativa, o papel e o tamanho do Estado, as funções típicas de Estado, a privatização de setores considerados não estratégicos, as parcerias público-privadas, o que em síntese se convencionou chamar de ―discurso neo-liberal‖. No ideário neo-liberal mercado é sinônimo de modernidade, eficiência e eficácia, enquanto setor público é igual a antigo, ineficiente e ineficaz. Como conseqüência da implantação dessas políticas conservadoras foi ampliada as privatizações de empresas estatais e de serviços fornecidos pelo Estado. Na Inglaterra, os organismos públicos passaram por profundas modificações sendo criadas Agências Executivas com redefinição dos papéis dos servidores públicos. Os gastos sociais foram reduzidos com a reestruturação dos sistemas estatais de aposentadoria e pensão, seguros sociais e com a introdução de modelos de focalização de benefícios aos grupos mais carentes e vulneráveis.5 5 L’EXPRESS- Edition Internationale. L’Electrochoc Anglais – p.62-65; 19mai1979. Referencial Teórico 44 As políticas econômicas de Thatcher na Inglaterra e o Reaganomics6 nos EUA, emblematicamente caracterizados pelo Estado Mínimo, provocam grande desgaste político e descontentamento da população o que irá desembocar na vitória eleitoral das oposições em ambos os países. No início dos anos 90, os Democratas nos EUA e os Trabalhistas na Inglaterra assumem o poder com compromissos de reconstrução do aparelho estatal, agora reduzido e incapaz de viabilizar as políticas públicas propostas pelos novos detentores do poder e pelas quais foram eleitos. A introdução do modelo gerencial no setor público é, entre outros motivos, também decorrência dessa avaliação. Não se tratou, contudo, de remontar o velho Estado do pós-guerra, mas sim de reconstruir o aparelho de estado com base em novos paradigmas, agora configurado segundo modelos e equipado de instrumentos gerenciais utilizados pela iniciativa privada. A introdução desse novo modelo gerencial (―new public management‖) na administração pública dos Estados Unidos temem David Osborne, co-autor do livro ―Reiventing Government‖ e assessor especial do Presidente Bill Clinton, seu grande ideólogo e formulador. Na apresentação do referido livro os autores tornam explícitas suas crenças sobre o tema, com as seguintes afirmações: ―Em primeiro lugar, acreditamos profundamente em Governo. Não achamos que seja um mal necessário‖ ―Em segundo lugar, acreditamos que a sociedade civilizada não pode funcionar de modo efetivo sem um Governo efetivo, que hoje é uma raridade‖; ―Em terceiro lugar, acreditamos que o problema do Governo não está nas pessoas que trabalham nele, mas sim nos sistemas com que trabalham‖; 6 Política econômica de características ultra-liberais implantada pelo Presidente Ronald Reagan. Referencial Teórico 45 ―Em quarto lugar, acreditamos que nem o liberalismo nem o conservadorismo tradicional têm muita relevância para os problemas enfrentados hoje pelos governos‖; ―Finalmente, acreditamos profundamente na equidade – na igualdade de oportunidades para todos os cidadãos‖. (Osborne e Gaebler, 1992, p.8) Segundo o diagnóstico desses autores, a administração clássica weberiana não responde mais às necessidades da administração pública da sociedade pós-industrial baseada na informação e no conhecimento. A nova gestão público gerencial, como denominam os autores, é componente de um mundo policêntrico, mais pragmático e menos ideológico, focado na busca da maior eficiência, aumento da produtividade e de melhor qualidade nos serviços públicos. Segundo Pereira (1998) este modelo gerencial foi implantado com maior amplitude na Grã-Bretanha e exerceu forte influência nos demais países da Comunidade Européia, enquanto nos EUA sua implantação foi menos profunda e mais dispersa por alguns Condados, alguns Estados e setores da Administração Federal. Na América Latina, organismos multilaterais como a Organização Panamericana de Saúde (OPAS) e o Banco Mundial, tem tido papel de destaque no apoio e fomento das reformas do aparelho de Estado com ênfase nos setores de previdência e saúde. Em quase todos os países da região ocorreram, ou ainda ocorrem, reformas administrativas ou reformas de Estado. A maior parte dos processos no setor saúde que desde os anos 90 está se desenvolvendo na América Latina, declara que seus propósitos são melhorar um ou vários dos seguintes aspectos de seu sistema de saúde: efetividade, equidade, eficiência, qualidade, participação social e sustentabilidade (OPAS, 2004; p.52-53). No Brasil, o Congresso Constituinte de 1988 retomou os controles centralizados pela administração direta e reforçou aspectos hierárquicos, Referencial Teórico 46 centralizadores e burocráticos e a autonomia das empresas estatais ficou bastante reduzida. Para Pereira (2001a, p.249) ―os constituintes de 1988 não perceberam a crise fiscal, muito menos a crise do aparelho de Estado‖. A nova Constituição Federal, no que se refere à gestão do funcionalismo público civil, introduziu uma série de vantagens e benefícios, que se por um lado corrigiam injustiças e iniqüidades, por outro engessavam a gestão de recursos humanos no aparelho de Estado em todos os níveis e em todos os Poderes. Tal situação fica patente quando se observa o artigo 39 da Constituição Federal tal como aprovado em 1988: Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas. § 1º. A lei assegurará, aos servidores da administração direta, isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados do mesmo Poder ou entre servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ressalvadas as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho.7 Os governos que se sucederam, sob a égide da Constituição de 1988, também fizeram da reforma do Estado a sua bandeira. Assim foi com Collor de Mello e Itamar Franco. Eleito, Fernando Henrique Cardoso em seu programa de governo apresentou uma ampla e estruturada proposta de reforma administrativa dos órgãos do Poder Executivo o PDRAE, conduzido pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado – MARE. Dentre os objetivos técnico-gerenciais que nortearam a elaboração do projeto de lei e a promulgação da Lei nº 9637 de 15 de maio de 1998, que dispõe sobre a qualificação de entidades como Organizações Sociais e cria o Programa Nacional de Publicização destacam-se: Referencial Teórico 47 Transferir para o setor público não estatal serviços não exclusivos de Estado, que possam ser executados mediante um programa de publicização, por OS; Obter maior flexibilidade administrativa; Lograr maior parceria entre o Estado e a sociedade, baseada em resultados; Ampliar o foco no cidadão-usuário com um maior controle desses serviços pela sociedade, mediante os Conselhos de Administração. Entre aquelas que foram definidas como funções não típicas de Estado, e, portanto delegáveis para serem executadas por entidades públicas não estatais, as OS, destacam-se: gestão de museus, emissoras de Rádio e TVs Educativas, escolas, serviços de saúde, parques e reservas florestais. A organização social deve ser entendida como uma instituição de caráter público não integrante da estrutura formal do Estado, cuja ação é parametrizada e controlada pelos termos e pelas cláusulas do contrato de gestão e avaliada pelos seus resultados (Costin, 2002). Para o MARE, as organizações sociais constituem o modelo para se garantir autonomia técnica, administrativa e financeira na prestação dos serviços sociais do Estado. Por esse modelo, as Universidades, os hospitais, os museus, as rádios e TVs Educativas, os centros de pesquisa e as escolas técnicas poderão realizar com muito maior eficiência sua missão organizacional e social, desde que gerenciada por uma organização social, mediante um contrato de gestão. Este foi o caminho escolhido. 7 O Regime Jurídico Único, instituído pelo artigo 39 da Constituição de 1988 foi revogado pela Emenda Constitucional 19/98, Referencial Teórico 48 1.4. A REFORMA DO ESTADO E O SETOR SAÚDE Como repercussão dessa nova orientação política nos países centrais, e principalmente por estarem sentindo os efeitos da crise fiscal, da queda no ritmo do crescimento econômico e a demanda crescente por serviços públicos diante de um Estado cada vez mais sem recursos para atendê-la, os países da América Latina também foram obrigados a dar início aos seus processos de reforma do Estado. Os sistemas sociais e principalmente os de saúde da América Latina, em particular o do Brasil sofreram os impactos do avanço das políticas neo-liberais ( Cordeiro, 2001). O primeiro sistema previdenciário no Brasil foi estabelecido em 1923 com a Lei Eloy Chaves que instituiu a caixa de aposentadoria e pensão para os trabalhadores ferroviários. A partir de então as outras categorias profissionais foram estabelecendo seus institutos de aposentadoria e pensão, a maioria dos quais passou a fornecer também algum nível de assistência médica. Esses institutos de previdência das várias categorias profissionais urbanas foram unificados e centralizados em 1966, com o Decreto nº 72, que criou o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). A extensão parcial dos benefícios previdenciários ao trabalhador da zona rural é posterior e vem com a criação do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL) em 1970. Enquanto nos países centrais foram tomadas medidas racionalizadoras e de redução dos custos nos programas sociais,caracterizadas por ampla cobertura, no Brasil a montagem dos sistemas de proteção social, dignos dessa denominação, inclusive o SUS, datavam de 1988 com a nova Constituição. Conforme Santos (2006; p. 2) ―no Brasil a crise do Estado surgiu nos anos 90 e não foi a do Estado-Previdência porque ele nunca chegou a existir‖. Segundo Tanaka e Melo (2002, p.11), ―a crise dos sistemas de saúde é uma situação reconhecida e vivenciada em todo o mundo, inclusive no Brasil. A experiência Referencial Teórico 49 internacional tem tentado demonstrar que a ineficiência no desempenho dos sistemas de saúde é dada quase que exclusivamente pela irracionalidade econômica e gerencial. Esquece portanto o componente político do processo de decisão e implementação das políticas públicas‖. Observando-se esse processo de reformas na América Latina, percebe-se uma grande diversidade de modelos, propostas e graus de implementação, nos vários Sistemas de Proteção Social e nos de Saúde. E feita avaliação, existem poucas provas que respaldem que as reformas tenham contribuído para melhorar substancialmente a efetividade global, a qualidade, a equidade, a eficiência e a sustentabilidade financeira de médio e longo prazo (OPAS, 2004; p.57). Na Suécia, a reforma do sistema de saúde por meio de uma estratégia de ―competição pública‖ conferiu autonomia aos hospitais, transformando-os em empresas públicas. Isso fez com que os hospitais suecos passassem a concorrer entre si na atração de novos clientes. Criou- se uma situação de ―quase mercado‖ (Piola et al., 2000, p.19). Na França, com a Lei Hospitalar de 1991, os hospitais estatais passaram a ter maior autonomia gerencial, principalmente nas áreas de gestão de pessoal e de compras, podendo inclusive associar-se com parceiros públicos ou privados, e ainda, podendo definir sua organização interna para o trabalho e sua estrutura organizacional. Cada hospital passou a ter autonomia para definir sua organização assistencial incentivando a busca de novos modelos (... à época...) assistenciais tais como: hospital-dia, hospitalização domiciliar e cirurgia ambulatorial. Foi introduzido um novo processo de contratualização entre a Previdência Social e as entidades hospitalares públicas e privadas. O controle do Estado sobre os hospitais públicos está presente na elaboração dos planos estratégico, de atividades e orçamentário do hospital, principalmente no acompanhamento dos mesmos. Embora não tenha a denominação de contrato de gestão, o controle que o governo francês executa por meio desses planos reproduz as mesmas intenções e características dos contratos com as OSS aqui em São Paulo. A Lei de 1991 Referencial Teórico 50 acabou com a separação entre os dois sistemas hospitalares, público e privado, submetendo-os as mesmas regras da organização sanitária. Passaram a vigorar regras únicas e um mesmo regime para autorização de abertura de novos hospitais e de novos serviços, ou ainda a ampliação de leitos ou aquisição de equipamentos de porte. A referida lei instaurou um processo de avaliação sistemática da qualidade dos serviços ofertados e a implantação de modelos mais refinados de apuração de custos hospitalares por patologia (Castelar et al., 1995). Uma característica importante do sistema de saúde francês é a livre escolha do estabelecimento hospitalar por parte do usuário, resultando neste caso num modelo híbrido que contém princípios liberais combinados com financiamento socializado. A Grã-Bretanha, onde historicamente as universidades e os hospitais sempre foram estatais, estimulou a criação de alguns serviços privados e outros comunitários não estatais e os operadores do sistema de saúde podem adquirir serviços hospitalares dos hospitais públicos, dos comunitários ou dos hospitais privados, que passaram a competir pelo financiamento exclusivamente público. Na Itália, a reforma sanitária de 1978 colocou o país no padrão europeu de políticas sociais garantindo aos cidadãos o acesso universal, a gratuidade e a integralidade da assistência à saúde. O ―Servizio Sanitário Nacionale‖ passou a ser constituído pela articulação dos sub-sistemas de saúde regionais, com ênfase na gestão municipal ou regionalizada dos serviços de saúde, porém garantindo níveis uniformes de assistência e buscando a eficiência no uso dos recursos. A reforma sanitária de 1978 instituiu também o modelo único de Unidade Local de Saúde (ULS), a territorialização e o domicílio sanitário. No início dos anos 90, o sistema italiano entrou em crise de financiamento e de gestão. Em algumas localidades ficou evidente a ineficiência da gestão municipal, caracterizada pela baixa qualidade dos serviços prestados, déficit financeiro crescente e pouca capacidade de inovação e de flexibilidade para responder as mudanças tecnológicas. Referencial Teórico 51 Com a intenção de garantir a estabilidade econômico-financeira do sistema, aumentar a qualidade dos serviços prestados e ampliar o nível de satisfação dos usuários, em 1992 foram implantadas importantes modificações no sistema de saúde italiano, o que ficou conhecida como ―a reforma da reforma sanitária‖ (Tasca, 2002). Resultaram dessa reformulação, a criação de empresas públicas para a gestão de regiões de saúde, as Aziende Sanitarie Locale (ASL), e de empresas de personalidade jurídica pública com autonomia empresarial para a gestão de hospitais de relevância nacional, ou inter-regional ou ainda, de alta complexidade ou grau de especialização, chamadas de Aziende Ospedaliere (AO). Como medida geral desse novo modelo estimulou-se a competição colaborativa entre hospitais públicos e a rede conveniada, e a livre escolha pelo cidadão do acesso a determinados tipos de serviços. Como instrumentos dessa nova formatação, foram introduzidos: a contratualização das relações entre a ASL e AO e os prestadores de serviços públicos e privados; a acreditação dos prestadores de serviços como instrumento de avaliação e incentivo à melhoria da qualidade. Para a gestão da ASL foram destacadas três características inovadoras: Introdução de instrumentos gerenciais típicos da gestão privada; Transparência nos orçamentos e gastos; Autonomia administrativa e responsabilização dos dirigentes. Ao final de 1999, considerando-se as mudanças do perfil demográfico e epidemiológico do país, as desigualdades regionais e a necessidade de se preservar as conquistas da reforma sanitária, entre elas a universalidade da atenção e a centralidade do usuário, foram introduzidos os seguintes mecanismos: Envolvimento das municipalidades; Ênfase na atenção básica e nos médicos de família; Montagem de redes de referência e contra-referência; Criação de um fundo de solidariedade para cobrir os déficits financeiros das regiões menos desenvolvidas. Referencial Teórico 52 Na Espanha, na Região da Catalunha, o impacto da reforma do Estado nos serviços de saúde propiciou a criação de um modelo de gestão bem diferente do até então praticado. Em 1991, entrou em funcionamento o Servei Catalá de la Salut — o Serviço Catalão de Saúde (SCS) que resultou de uma ampla reformulação, envolvendo desde os órgãos centrais da Administração Sanitária como também todos os centros da rede sanitária pública. Essa reforma tinha como eixo a separação das funções de financiamento e provisão de serviços, e a adoção progressiva de novas fórmulas de gestão empresarial no sistema de saúde marcaram essa nova fase na organização sanitária da Catalunha. Como elemento fundamental dessa reforma, partindo da otimização dos recursos, o SCS definiu objetivos em três direções prioritárias; Promoção da saúde e a prevenção da enfermidade; Eqüidade, a qualidade e a eficiência dos serviços sanitários; Aumento da satisfação dos usuários. O SCS divide-se territorialmente em regiões
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