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Título André Villas-Boas - Também Especial Autores Luís Miguel Pereira e Jaime Pinho Foto de capa Getty images Design e paginação (versão impressa) Arco da Velha Paginação (versão digital) Gonçalo Athias ISBN 978-989-655-113-1 Todos os direitos reservados © 2011 Luís Miguel Pereira, Jaime Pinho e Prime Books www.primebooks.pt marta.abreu@primebooks.pt Os autores agradecem a todos quantos se dispuseram a colaborar neste livro. PREFÁCIO “Prefiro a transpiração inspirada à inspiração momentânea, o talento à canela, a acção do esforço à sobreactuação do sacrifício. Marcelo Bielsa André Villas-Boas é um treinador impulsivo que parte da ciência, um arquitecto da teoria do caos aplicada ao futebol, “jogo caótico e emocional”, descodificado em cada 90 minutos pela táctica e estratégia(s) reveladas em “improvisos preparados”. Nada disto são contradições. Ou, aplicadas ao mundo do futebol, são factores aparentemente opostos que na mente avançada da abordagem moderna do jogo, não fazem sentido viverem uns sem os outros. Em conflito e em colaboração. Villas-Boas cresceu a pensar futebol, as “transições” e os segredos das “organizações”, cada relatório, colectivo ou individual, era como uma visão “raio x” sobre a equipa observada. A “cabeça táctica” de cada jogador perfurada e ao serviço de uma equipa técnica feita “empresa do futebol científico”. A sua concepção própria do jogo cresceu através disso, bebeu influências, aprendeu e questionou metodologias, seguiu a teoria de Capello do “melhor treinador como o maior dos ladrões”, e, ao mesmo tempo, moldou a sua filosofia de futebol, sempre, sempre aberta a acesas discussões. É esse o estilo do treinador-ser humano, “animal futebolístico”, André Villas-Boas. Debater, discutir futebol “a sério”. Sempre presente no seu pensamento o respeito pela bola que qualquer equipa devia ter. Ambição táctica como motor para fazê-la mover-se em campo. A frase transcrita no início deste texto é uma das preferidas de André Villas-Boas. Espelha um pouco a tal complexidade de factores que falava e foi uma das primeiras que partilhámos em várias SMS (dentro da nossa admiração mútua por El Loco Bielsa) quando, por fim, teve a oportunidade de agarrar uma carreira de treinador principal, na Académica. Não se trata de uma inconfidência, trata- se da certeza que nela está muito da sua ideologia de jogo, no sentido da necessidade de cruzar elementos como inspiração e transpiração, talento e esforço, sem os tornar inimigos entre si. O jogo, uma equipa, necessita de todos eles para “viver” em campo. Falar de André Villas-Boas através de uma estrutura táctica é redutor porque estas não têm vida por si próprias. Dependem das dinâmicas que se lhe dêem. Por isso, falar da sua devoção pelo 4x3x3 apenas fala na devoção por um desenho. Falta a “personalização” desse sistema. Por isso, ainda adjunto com visão “raio x”, falava da ida para o Inter com Mourinho como um desafio aliciante de ganhar em Itália como uma diferente ideia de futebol à defendida pelo “velho testamento” transalpino. Ganhar com um 4x3x3 em pressão alta em vez do jogo de especulação típico da escola italiana. Se, depois, foi assim ou não, é outra coisa. O treinador André Villas-Boas ainda estava por explodir na sua dimensão real. Durante o seu ano no FC Porto, para além dos resultados que o eternizam, a constante necessidade e vontade de repetir que aquela era “uma equipa de posse” e colocar as transições como seu instrumento nos diferentes momentos do jogo, isto é, como meio para segurar as organizações (defensiva e, sobretudo, ofensiva) que nascem depois delas. Por isso, no fim, dedicou as vitórias a Robson, pela paixão transmitida, a Mourinho, pelas oportunidades dadas, e a Guardiola, pela ideologia defendida. É a terceira “dedicatória” que fala, em rigor, da sua ideia de jogo. Ter a bola e fazê-la circular por todo o campo em organização e expressão de qualidade técnica de uma equipa paciente na busca e construção de espaços para penetrar na defesa adversária. Mesmo com uma equipa “média-pequena” como a Académica, lutando por fugir à descida de divisão, procurou que essas ideias sobrevivessem em campo, mesmo quando a urgência do resultado apelava aos instintos mais primários. O seu FC Porto foi, claro, a “alta definição” dessa ideia já presente desde o primeiro dia como treinador. Ao mesmo tempo que afinava metodologias e poder de comunicação dentro e fora do grupo, o seu “futebol de posse em 4x3x3” (o sistema sujeito ao modelo) ganhava corpo nas botas e, sobretudo, cabeça de grandes jogadores. Havia aqueles com quem era preciso falar muito. E aqueles que bastava uma palavra ou quase nem dizer nada (o mundo de Moutinho). É impossível fugir à tentação de comparar este seu FC Porto 2011 com o de 2003, o primeiro de Mourinho, também vencedor da Liga Europa (então ainda Taça UEFA). Existem alguns pontos de contacto, de facto. Para alguns “estudiosos” aquela foi mesmo a melhor equipa, no plano da sedução estética, de Mourinho. Concordo com essa teoria. Foi o tempo do 4x3x3 em pressão alta com criatividade a meio-campo. A época seguinte, a da conquista da Champions League, já se desenhou num 4x4x2 em losango. No ano de Villas-Boas, a sua “máquina azul-e-branca” expressou-se dentro do 4x3x3 e também teve um ala/avançado vagabundo que gostava de vir para dentro em diagonais (como foi Derlei, como é, em muitos traços, Hulk). Jogadores diferentes, no valor e explosão (no campo e até no mercado), mas que permitem reproduções semelhantes de montar a equipa e suas dinâmicas ofensivas. O meio-campo não tem um Deco, mas ganhou maior rotação defesa-ataque- defesa com Moutinho. A importância dada ao pivot é semelhante, mas Villas-Boas procura que ele “jogue mais” com bola. Os laterais de Mourinho defendiam melhor. Os de Villas-Boas saem mais em desequilíbrio do que em apoio, mas, neste ponto, penso que as diferenças nascem mais de características individuais do que opções de “jogar colectivo”. A ponta-de-lança, Falcão redimensiona a posição, e, atrás, falta o carisma e grito de um defesa-central “à Porto”. Em vez disso, Villas-Boas trabalhou maior rotina de sentido posicional da dupla de centrais. Fica a dúvida de saber como seria um segundo ano de Villas-Boas no FC Porto. Não acredito que evoluísse (ou melhor, transformasse) o sistema para o tal losango, mas alguns indícios vistos em muitos jogos seus no banco portista, denotavam a preocupação de jogar, em mutos momentos, com… quatro médios, ou melhor, com quatro homens a meio-campo. Dessa forma, mais do que “dominar”, procurava (e conseguia) “controlar” jogos. Parece a mesma coisa, mas é muito diferente. No fundo, com mais homens a meio-campo, dando largura ao losango, esticando os seus vértices laterais, a equipa podia circular mais a bola de forma tranquila. Era o momento em que Villas-Boas falava da equipa a “descansar com a bola”. Uma ideia que já vinha dos “livros de Mourinho” que Villas-Boas soube entender e adaptar ao seu conceito de jogo. Mais do que jogar em sistemas diferentes, o importante é saber mudar de sistema ao longo do jogo. Quando o golo não aparece, raramente a solução está em povoar mais a área adversária, senão que, ao invés, trabalhar melhor a elaboração da jogada desde trás no meio-campo e zonas “entre- linhas” para criar a oportunidade. A construção antes da definição. No pensamento e, depois, no jogo. Claro que muitas vezes o problema está mesmo na falta de homens na área, mas, na ideologia global, é assim deve pensar uma equipa, é assim deve jogar uma equipa no futebol de top. A necessidade de perceber cada jogador existe na directa proporção de perceber como ele pode ser importante para a equipa. Nesse contexto, Guarín sentiu um upgrade no seu futebol. Mais do que melhorar as suas qualidades, o que mudara foi as coisas que lhe pediam para fazer mo jogo. Em vez de pressionar e recuperar, passou a ter outraamplitude periférica táctica no jogo, subindo em construção/condução e invadindo depois zonas de remate. Por isso, dentro do seu 4x3x3, o pivot n.º6 deixa de ter um traço à sua frente com a palavra defensivo. Passa a ser pivot, ponto final. Nisso está subjacente uma concepção de jogo em que para além de o ver como garante de equilíbrios defensivos indispensáveis à função daquela posição, também lhe entrega outras missões no jogo, como o inicio de saída de bola, começando por baixar para o meio dos centrais, que alargavam enquanto os laterais subiam quase para a linha do meio-campo, e, assim sair a jogar com outra qualidade táctico- técnica. Na “táctica” do seu 4x3x3, a base era o movimento e a desmarcação entendida como busca de espaços vazios para dar soluções/ linhas de passe ao portador da bola. Os jogadores serem capazes de se verem uns aos outros e, com isso, darem soluções uns aos outros sobre o que fazer à bola. É essa a melhor interpretação dos chamados princípios de jogo (por definição referencias comportamentais que os jogadores têm em campo sobre o que devem fazer em determinadas situações ou espaços). Correr sim, mas com critério (“transpiração inspirada” dixit). No seu decálogo da posse, Villas-Boas prefere, como “mandamento essencial” o protagonismo com a bola à postura especulativa de esperar a recuperação e sair rápido (as tais transições rápidas) para a área adversária. Em vez de quatro ou cinco toques vertiginosos e verticais, Villas-boas não se importa que a sua equipa dê 14 ou 15 apoiados e em largura, até chegar à área adversária, lançando a profundidade no momento certo. Mais tempo de posse de bola para ter menos necessidade de… recuperação. Mesmo quando para organizar a equipa sente necessidade de fazer um passe atrasado ou fazer circular a bola por trás, o publico do Dragão foi percebendo que aquele gesto ou jogo aparentemente demasiado lateralizado, era, apenas, um meio para começar a…construir. Penso que conseguir esta paciência do público, por natureza intolerante com uma equipa “grande” que passe muito tempo sem ter a iniciativa de atacar o adversário, é o maior triunfo que, antes dos resultados, um treinador consegue obter. É o mais difícil, também. André Villas-boas conseguiu-o, com o seu “4x3x3 de posse e circulação” e radares de recuperação super-activados em pressão alta quando era necessária, conquistando, ao mesmo tempo, todos os títulos. A vitória da estética é, nos tempos resultadistas que vivemos, um “triunfo de autor” prioritário para a saúde táctica do mundo futebolístico. É o futebol de Villas-Boas. Luís Freitas Lobo CAPÍTULO 1 “Ele tinha uma grande vontade de aprender, principalmente a vertente táctica, e a presença de Robson era muito nítida no seu carácter. Se, como treinador, ele conseguir combinar a organização de Mourinho com o futebol ofensivo de Robson, será um caso sério. George Burley1 André Villas-Boas ou antes Dom Luís André de Pina Cabral e Villas-Boas? É com este nome brasonado que o treinador do Chelsea se apresenta na árvore genealógica da família. O título nobiliárquico – criado pelo rei D. Carlos I, em 1890 – busca raízes no bisavô paterno, José Gerardo Coelho Vieira Pinto do Vale Peixoto de Villas-Boas (1863-1913), 1º Visconde de Guidhomil. Alfredo (1825-1906), irmão de José Gerardo, foi Conde do Paço de Vieira – localidade perto de Guimarães, a norte de Portugal –, juiz e figura influente no governo do primeiro-ministro de então, Ernesto Hintze Robeiro, trabalhando como ministro das Obras Públicas e como governador civil de Ponta Delgada, nos Açores. Já o pai de José Gerardo e de Alfredo, José Joaquim Villas-Boas (1825- 1906) foi Barão de Paço de Vieira e governador civil de Braga. O filho mais novo do 1º Visconde de Guidhomil e avô de André Villas-Boas, Gonçalo, casou-se com Margaret Neville Kendall cuja família da mãe – os Burns – era de Lancashire e Merseyside. A ligação a Portugal vem por parte da família dos pais de Margaret, os Kendalls, que estiveram no país há pelo menos quatro gerações, provavelmente ligados à indústria do vinho do Porto. Foi com esta avó, Margaret, nascida em Lordelo de Ouro (Porto), que Villas-Boas ensaiou a primeira aproximação à língua inglesa. O domínio do idioma britânico foi, assim, precoce. Quis o destino que três décadas mais tarde a vida de André voltasse à casa de partida, o berço da avó Margaret. A infância do agora treinador dos blues correu abastada. Os pais, Teresa e Luis Filipe, formaram uma família de classe média-alta, com residência fixa junto à colunável Avenida da Boavista. Luis Filipe, professor e engenheiro químico, começou os estudos em Portugal antes de se mudar para Inglaterra, onde concluiu o doutoramento na faculdade de química da Universidade de Kent, em Canterbury. Actualmente, o pai de André Villas-Boas é docente na faculdade de engenharia química da Universidade Técnica de Lisboa e trabalha para uma empresa que fornece peças de automóveis para as marcas Volkswagen, Audi, Seat e Skoda. A mãe, Teresa, tem um negócio próprio, na área do vestuário, com várias lojas na cidade do Porto. Teresa e Luís Filipe casaram em 1973 – quatro anos antes de André nascer – e possibilitaram sempre boas condições académicas aos filhos. Villas-Boas estudou no Colégio do Rosário, uma das escolas privadas mais caras da cidade e reputada de um ensino de excelência. De fundamentos profundamente religiosos, o Colégio Sagrado Coração de Maria – agora com o nome de Colégio de Nossa Senhora do Rosário – nasceu no início do século XX resultado da fusão com o antigo Colégio Inglês (mais um detalhe britânico no destino de André). Originalmente era gerido por uma freira irlandesa, Miss Hennessey, e outros membros das Religiosas do Sagrado Coração de Maria. Após a proclamação da República, em 5 de Outubro de 1910, foi promulgado um Decreto que vedava a docência às religiosas. Assistiu-se a uma debandada das freiras, mas não o suficiente para retirar os fundamentos religiosos ao Colégio. Por isso, a infância de André Villas-Boas comungou de princípios marcadamente religiosos. FUTEBOL NA PONTA DA LÍNGUA Desde cedo ficou claro que o menino André não se fecharia na fadada concha aristocrática. Olhava-se ao espelho e não via um rosto brasonado. Já tinha o cabelo ruivo, responsável pela alcunha de “cenourinha”, granjeada entre os colegas, mas tudo o resto era comum. Viveu a infância como qualquer criança. Pacato, quieto e dengoso. De notas escolares positivas, porém pouco eufóricas. Foi sempre um aluno mediano. André só perdia o equilíbrio quando o tema era futebol. Aí denotou sempre irreverência e argúcia fora do padrão. Sabia tudo: jogadores e treinadores, clubes e transferências, promessas e consagrados. Habilitava-se a qualquer discussão no pátio do Colégio do Rosário, sempre com o argumento mais valioso na ponta da língua. O mais estranho é que o tema “futebol” não tinha adeptos fervorosos na família. Tanto conhecimento vinha da leitura exaustiva de jornais desportivos, das colecções de cromos e de um precioso jogo de computador: Championship Manager. Foi o seu primeiro banco. Contratava jogadores, definia o “onze” e fazia substituições. O famoso jogo deixou marca forte nos adolescentes dos 80, mas no caso de André foi mais profundo: tocou-lhe na vocação. O menino teclava e… celebrava. Tinha o mundo na ponta dos dedos! Depois transportava os nomes dos heróis para os cadernos escolares. Rabiscos tácticos em vez de língua portuguesa ou aritmética. Talvez esta obsessão possa explicar o “mediano” utilizado para catalogar o aluno André. A paixão pelo FC Porto corria paralela ao fascínio pelo futebol. Testemunhas insuspeitas garantem que André Villas-Boas levava para a escola relatórios exaustivos – técnicos e tácticos – da equipa portista. À segunda-feira desenrolava os apontamentos e discutia, com a maior das propriedades, o jogo do fim-de-semana anterior. Fez-se sócio dos dragões a 4 deJulho de 1980, com apenas dois anos e meio de idade. Nunca deixou de o ser – é o número 11.428 – pelo contrário, o tempo só reforçou a paixão. Era presença assídua no estádio das Antas (antigo recinto do FC Porto), para assistir a jogos ou espreitar os treinos. Em Maio de 1987, quando a equipa disputou e venceu a primeira final da Taça dos Clubes Campeões Europeus, André Villas-Boas, com apenas nove anos de idade, festejou a vitória na companhia da família em casa da avó. Nesse dia, se lhe dessem essa possibilidade, André estava capaz de extrair um tufo de relva do Prater, tal era o significado daquele título europeu. Mal sabia que 24 anos mais tarde seria ele próprio a viver sonho idêntico, mas ao vivo e como treinador principal da equipa predilecta. RECADOS A BOBBY ROBSON Dona Teresa Maria e o senhor Luis Filipe seguiam, expectantes, o percurso do segundo de quatro filhos (duas meninas e dois rapazes). Adivinhava-se impossível travar tão fortes ímpetos. Tirar-lhe o futebol ou o FC Porto seria colocar-lhe um véu sobre a felicidade e reduzir a escombros aquele sorriso infantil. Por isso André teve o beneplácito familiar para seguir contratando, vendendo, construindo e reforçando equipas imaginárias. Em linha de vista estaria uma carreira no jornalismo desportivo. Talvez. As construções de castelos no ar sucediam-se, até ao dia em que a realidade veio morar… ao lado. André teria uns 16 anos. O destino atribuiu-lhe como vizinhos, no mesmo prédio, a família Robson – Bobby e a mulher Elsie. Nada mais, nada menos do que o então recém-contratado treinador do FC Porto. André encarou a coincidência como uma oportunidade de vida. Certo dia, aproveitando um encontro de circunstância, abordou o treinador britânico com uma questão pertinente. Provocatória, até. Recorrendo ao inglês leccionado pela avó Margaret, o miúdo perguntou porque razão Robson não colocava mais vezes em jogo o seu ídolo Domingos, promissor goleador portista. Em vez de reprovar a arrogância, o velho técnico reagiu com um sorriso, revelando uma abertura de mente pouco comum. Os contactos entre o miúdo e o Sir intensificaram-se. André depositava, com frequência, relatórios e notas tácticas na caixa de correio de Robson. O treinador respondia com incentivos. “Deu-me oportunidade de presenciar treinos do FC Porto. Eu era um mero adepto e aquilo era fantástico”, admitiu recentemente André Villas-Boas. O jovem também passou a visitar, com frequência, o Clube Inglês da Foz e outras tertúlias, sempre convidado por Bobby Robson. A verdade é que este convívio revelou-se decisivo na opção de vida do adolescente André. Descontando a impulsividade própria da juventude, Robson viu no rapaz altas doses de paixão e competência. Por isso deu-lhe crédito, aceitando-lhe o trabalho de casa e conferindo-lhe até algum uso, sempre de modo muito particular. A restante equipa técnica, onde se incluía o então tradutor José Mourinho, só conheceu o jovem André muito mais tarde. O assunto ficou apenas entre o sábio treinador e o jovem curioso. A decisão estava tomada. André Villas-Boas entraria no futebol pela via da prática e logo pela mão de uma das maiores figuras do futebol mundial, Bobby Robson. Durante cerca de um ano frequentou a melhor das faculdades, como num conto de fadas: os treinos, os ídolos, os relatórios, as estatísticas, as tertúlias… André absorveu tudo, como uma esponja, como se não houvesse amanhã. Tinha 17 anos quando abdicou do curso universitário e começou a especialização. Iniciou a formação como treinador em Inglaterra, por sugestão de Bobby Robson. Em lilleshall tirou o primeiro de vários cursos. Em 1997 prosseguiu os estudos na Federação Escocesa de Futebol (FEF), realizando paralelamente estágios em clubes profissionais como o Ipswich. George Burley, então gestor do Ipswich, recorda-se bem do jovem pupilo: “Robson ligou-me e perguntou se eu poderia receber um jovem candidato a treinador, deixá-lo assistir aos treinos e mostrar-lhe o funcionamento do clube durante algumas semanas.” A influência de Bobby Robson era flagrante e ficou patente durante o estágio no Ipswich. “Ele tinha uma grande vontade de aprender, principalmente a vertente táctica, e a presença de Robson era muito nítida no carácter de André. Se, como treinador, ele conseguir combinar a organização de Mourinho com o futebol ofensivo de Robson, será um caso sério”, conclui George Burley. Na Federação Escocesa de Futebol obteve as licenças de treinador C, B, A e Pro, sempre de uma forma muito abnegada. “Era muito dedicado e estudioso, devorando tudo que lhe aparecia nas mãos, nomeadamente livros de psicologia e fisiologia”, conta Jim Fleetin, director do departamento de formação da FEF. Fez parte de um grupo alargado onde também estavam Ally McCoist, Ian Durrant, Owen Coyle, Andy Milne e Vraig Brewster. “O André terminou a Pro License em 2008 e no ano seguinte pedi-lhe para voltar e fazer uma apresentação aos novos alunos” – confessa Fleetin – “continuo a usar o seu trabalho (análise táctica de um jogo entre a Escócia e a Geórgia) como exemplo para apresentar aos meus alunos.” De regresso a Portugal, mais uma vez pela mão de Bobby Robson, integrou o departamento técnico das escolas do FC Porto. André sentia-se capaz de assumir um lugar no banco, como técnico principal. Demonstrava gosto pelo desafio e ausência total de medo. Mas a estrutura portista entendeu ser prematuro entregar o cargo de técnico principal, ainda que das camadas jovens, a um miúdo com pouco mais de 20 anos. UMA AVENTURA NAS CARAÍBAS Ambicioso, atrevido, temerário. Traços de personalidade que levaram o jovem André, então com 22 anos, a responder a um anúncio de jornal: “Procura-se profissional para dirigir o departamento juvenil da Federação de Futebol das Ilhas Virgens (FFIV)”. Mais inusitado era difícil. “Ele enviou- nos o seu currículo e, vindo de um grande clube como o FC Porto e sendo amigo de Bobby Robson, foi suficiente para nos convencer”, diz Kenrick Grant, então dirigente da FFIV. André ganhou a vaga e partiu para o minúsculo país de 25 mil habitantes e pouco mais de 150 km2, enquanto muitos dos seus colegas de escola optavam pela graduação na universidade. Por lá permaneceu apenas cinco meses – de Dezembro de 1999 a Abril de 2000 – sem nunca revelar a idade aos responsáveis federativos. Fê-lo apenas no último dia: “A Federação descobriu que ele tinha 22 anos quando partiu”, confessa Grant. O calor era de ananases, as praias paradisíacas… tudo o que um jovem pode sonhar. E no início até precisou de protector solar: “Nos primeiros tempos estava sempre na praia, como se estivesse de férias! Mas quando começou a trabalho, surpreendeu-me. Fez um plano para todas as equipas, dos mais novos aos mais velhos, com manual de tácticas incluído e tudo informatizado”, conta Grant. No entanto, uma vez mais, o palco revelou-se curto para o tamanho da ambição. “Ele não estava impressionado com a qualidade dos nossos jogadores e queria ir para um grande clube”, revela Kenrick Grant. A experiência valeu-lhe a derrota mais pesada da sua carreira: 14-1 foi a cabazada inflingida pelas Bermudas. Villas-Boas voltou a sair da zona de conforto, uma marca registada ao longo da carreira. DISCRETO COM A BOLA NOS PÉS Falta contar o percurso de André Villas-Boas como futebolista. Seria estranho que um miúdo com tanta paixão pelo futebol, não tivesse pelo menos tentado o sonho comum a quase todos os adolescentes: ser jogador profissional. Villas-Boas tentou, mas sem êxito. Corriam os primeiros anos da década de 90 quando um grupo de alunos do Colégio do Rosário – entre os quais se incluía André – decidiu formar uma equipa de juniores para representar o Ramaldense, um modesto clube da cidade do Porto, onde se revelou, por exemplo, Humberto Coelho, um dos melhores defesas-centrais portugueses de sempre, consagrado ao serviço do Benfica. O agora treinador do Chelsea era médio, com boa técnica,agressivo a defender e de passe certeiro, apesar de o campo ser pelado. Joaquim Magalhães, mais conhecido por Quim Espanhol, então treinador do clube, ainda chamou André à equipa principal, que lutava para não descer no campeonato distrital do Porto. “Ele era reservado e muito educado”, conta o técnico, “mas já dava ordens aos colegas dentro do campo, notava-se que era líder.” O mais curioso é que a carreira de André Villas-Boas começou na baliza. Chegou ao Ramaldense com apenas 15 anos, proveniente do Ribeirense, clube onde actuava como guarda-redes. Mas sem grande talento. Tanto assim que foi utilizado apenas em três ou quatro jogos. Quando se mudou para o clube de Ramalde, insistiu na posição de guarda-redes, durante uma temporada, novamente sem sucesso. Quim Espanhol puxou-o para o meio-campo. Mesmo assim, nos treinos, Villas-Boas voltava à baliza sempre que podia. Ao Ramaldense seguiu-se o Marechal Gomes da Costa (MGC) na curta carreira de André. A equipa era formada por engenheiros, médicos e estudantes, todos adolescentes de origem social abonada. Foi uma época delirante no clube, cujo lema era “Tu nunca beberás sozinho” – um trocadilho com o popular lema do Liverpool “You´ll never walk alone” – que disputava o campeonato de amadores. A sede era no carro do treinador, Manuel Ribeiro, porque não havia outro espaço físico disponível. A viatura transportava toda a documentação do clube. Manuel Ribeiro recorda um jovem “alegre, com grande sentido de humor”. Dentro do campo era “raçudo” e já orientava os colegas, “usando os ensinamentos adquiridos na função de treinador adjunto nas escolas do FC Porto.” Havia apenas um detalhe que roubava o sorriso a Villas-Boas, a derrota: “Convivia mal com os resultados negativos. Ficava triste e cabisbaixo”, conta Manuel Ribeiro. Pedro Barros, então capitão do MGC, conheceu André quando ambos jogavam squash no clube inglês. Coincidiram no clube em 1998. Na memória de Pedro, “André era um jogador forte, destemido e com grande resistência.” A colaboração no departamento de futebol juvenil do FC Porto intensificava-se e a falta de tempo foi factor decisivo para André abandonar o MGC no arranque da temporada 1998-99, “porque já não conseguia ter os sábados (dia de jogo) livres”, explica Pedro Barros. CAPÍTULO 2 “O André é, para mim, um elemento fundamental. Merece todo o dinheiro que lhe pagam! José Mourinho2 Provavelmente mais bronzeado, mas seguramente com vontade de abraçar desafios mais estimulantes, André Villas-Boas regressou do Caribe para ingressar na sua casa “biológica”: o FC Porto. Retomou o posto no departamento de futebol juvenil, trabalhando directamente com Ilídio Vale, então responsável máximo da estrutura e actual seleccionador nacional de sub-20. O regresso de Villas-Boas coincidiu, no tempo, com a entrada de José Mourinho no clube para substituir o treinador Octávio Machado. O FC Porto ocupava o modesto 5º lugar na Liga, colocando assim em risco um lugar que assegurasse a participação numa das provas da UEFA. A derrota frente ao Boavista (2-0), na 19ª jornada, forçou o presidente Pinto da Costa3 a tomar a rara decisão de afastar o treinador. E, num ápice, contratou Mourinho, que ia mostrando grande qualidade no trabalho desenvolvido na União de Leira. Mourinho trouxe de Leiria os adjuntos Rui Faria e Baltemar Brito. Para treinador de guarda-redes, escolheu o ex-internacional Silvino Louro. Faltava um elemento no seu novo staff, o homem para observar equipas e jogadores adversários. Já tinha escutado rumores sobre a competência e ambição do jovem André, aquando da sua passagem pelo FC Porto como adjunto de Bobby Robson, seis anos antes. Villas-Boas era agora um adulto de 23 anos, bem diferente daquele adolescente “apenas” curioso a quem Sir Bobby Robson tinha estendido a mão. José Mourinho juntou dois-mais-dois para concluir que o jovem André Villas-Boas só podia estar mais forte e maduro do ponto de vista técnico após a bagagem académica e a vertente prática adquiridas na meia dúzia de anos anteriores. Seguindo essa linha de raciocínio, perguntou a Ilídio Vale se podia convidar André Villas-Boas para a equipa técnica que estava a formar. Que sim, disse Vale: “Nós sabíamos que ele tinha qualidades e que era ambicioso”, justifica o actual seleccionador nacional de sub-20. A colaboração com a equipa técnica de José Mourinho começou por ter contornos de part-time até ao final da temporada 2001-02. Pedia-se apenas ao novo treinador chegado de Leiria que “mascarasse” aquela época com a melhor classificação possível, já que o título era pouco menos que uma miragem. À 19ª jornada os dragões levavam sete pontos de atraso para o Sporting, que era o primeiro classificado, e essa distância, em Portugal (numa liga pouco competitiva) é atraso praticamente irrecuperável. Assim, sob o comando da nova estrutura, o FC Porto realizou 15 penosos jogos (11 vitórias, dois empates e duas derrotas), saltando do 5º para o 3º lugar e ultrapassando o Benfica, o que é sempre motivo de regozijo para os dragões. A integração a tempo inteiro de André Villas-Boas na equipa técnica de José Mourinho aconteceria no início da época seguinte, em 2002-03, quando o FC Porto realizou uma das melhores prestações da sua história, fazendo um triplete ao vencer o Campeonato Nacional, a Taça de Portugal e a Taça UEFA. O trabalho de Villas-Boas revelou-se de uma utilidade extrema, indo muito para além de tudo o que já havia sido feito no género. Não deixava absolutamente nada ao acaso. Estabeleceu novos padrões nos detalhes das suas análises e na profundidade com que as fazia, e criou aquilo que se tornou conhecido como The Opponente Observation Department. A capacidade para destacar os pontos mais importantes do adversário de forma sucinta era especialmente apreciada por Mourinho e pelo plantel. Os processos de jogo da equipa adversária eram acompanhados por DVDs pessoais para os atletas, nos quais o seu adversário directo era profundamente analisado. Conforme referiu posteriormente Ricardo Carvalho, que com Villas-Boas trabalhou no FC Porto (dois anos), e depois no Chelsea (três anos), “é super minucioso nos relatórios que faz. Consegue esmiuçar um adversário ao mínimo detalhe. Nada lhe escapa. Sabe tudo sobre jogadores, tudo sobre as equipas”. Paulo Ferreira, que fez percurso idêntico ao de Ricardo Carvalho, confirmava isso mesmo a quem o queria ouvir: “É incrível a preparação que temos antes dos jogos. Vou para um jogo a saber tudo o que o meu adversário faz. Nunca tinha visto nada assim.” ADVERSÁRIOS “ESQUARTEJADOS” Exemplo de uma página de um relatório de observação elaburado por André Villas-Boas. Vejamos, a título de exemplo, e para melhor se poder entender a tão referida qualidade do trabalho, o relatório que André Villas-Boas preparou para a primeira grande final europeia da carreira de José Mourinho, a final da Taça UEFA disputada em 2003 contra o Celtic de Glasgow, em Sevilha. O treinador dos escoceses era, recordese, Martin O’Neill. São quatro páginas A4 recheadas de informação muito condensada e bem organizada, onde nada escapa, incluindo 24 esquemas com relvados onde constam todas as movimentações e sistemas utilizados pelos escoceses ou a análise individual de cada jogador adversário. Tudo valorizado com muitas sugestões. ORGANIZAÇÃO DEFENSIVA − Equipa organizada em bloco médio/baixo, muita pressão com aumento de intensidade no meio- campo, seja através de referências visuais, seja pela aglomeração de jogadores, à qual se junta o facto de as linhas estarem juntas e de não haver espaço entre elas. São muito duros – faltas! − Defesas centrais vão apertar todos os movimentos de aproximação dos avançados ao portador da bola, concedem alguma profundidade nas costas que dá para explorar – principalmente quando se arrasta os centrais para fora do seu espaço e se deixa Balde sozinho. Também há espaço a explorar nas costas de Agathee Thompson, obrigando o central desse lado a compensar, deixando buraco para utilizar. Não fazem fora-de-jogo. No ar são muito fortes e dominam a primeira e a segunda bola. Sem excepção, todos os centrais são lentos na rotação/reacção. Contra dois pontas-de-lança, Mjalby e Valgaeren marcam para Balde sobrar. − Triângulo do meio-campo definido, gostam de pressionar em conjunto, mas revelam-se “preguiçosos” na circulação de bola do adversário que os obriga a bascular. Lennon é o primeiro a desistir neste aspecto. É muito forte, mas apenas num raio de acção muito curto. Nas situações em que Petrov e Sutton não estão encaixados por terem partido em profundidade, ficam em inferioridade numérica no meio-campo, têm muita dificuldade, a equipa fica muito “fragilizada” e “parte-se” facilmente. − Pressão alta é ditada pelos pontas-de-lança, que pressionam os nossos centrais quando estes estão em dificuldade, os médios também ajudam e por momentos condicionam muito o tempo e espaço do adversário em determinadas zonas. É muito importante esticar a equipa. No pé eles matam. − Larsson pode baixar para pressionar o trinco adversário por trás. Muita agressividade e empenho nas bolas divididas. Espaço nas costas dos laterais/alas. São eles que pressionam os nossos laterais quando estes têm a bola. TRANSIÇÃO APÓS PERDA DA POSSE DE BOLA − Mudança média/lenta de atitude, costas dos alas estão fragilizadas, tal como o meio-campo, que não está povoado. Na recuperação posicional demoram algum tempo. Dá para sair em contra- ataque. − Forte reacção à bola, não há controlo do espaço. O homem mais perto pressiona bem, mas no geral são lentos na recuperação, têm dificuldade com espaço atrás e estão partidos pois não têm as linhas juntas. − Pressão alta de surpresa ou na sequência de momentos emocionais positivos do jogo. Agressividade no duelo individual. Muitas faltas. BOLAS PARADAS CONTRA − Nos livres laterais formam barreira de dois homens (saltam), deixa um homem em zona e todos os outros marcam homem a homem. Na frente fica Larsson. − Nos livres frontais formam barreira de cinco homens (saltam), são todos muito altos e à medida que se vai bater o livre vão aproximando-se cada vez mais da bola. Nos livres indirectos há sempre um jogador a sair muito cedo da barreira. Avisar árbitro. − Nos cantos colocam um homem em cada poste, outro jogador em zona entre o primeiro poste e a pequena área. Todos os outros marcam homem-a-homem. Deixam Larsson na frente para a saída rápida para o contra-ataque. − Muita pressão nos nossos lançamentos laterais. Desatentos e vulneráveis nos cantos curtos. ORGANIZAÇÃO OFENSIVA − Equipa emocional, está a atravessar um bom momento, forçam bastante e entregam-se muito ao jogo. Persistentes, agressivos e a acreditar sempre. Organizam-se numa estrutura de 3x5x2 (com pivot defensivo), dinâmicos, sabem jogar curto ou directo, o jogo é centralizado e vive do eixo dos dois médios mais o pivot e dos dois pontas-de-lança. Jogam a vários ritmos, com mudanças de orientação do sentido de jogo, com Lennon sempre em apoio atrasado e com o pivot ofensivo a cair nos espaços abertos. − Saída longa do guarda-redes. Muito fortes no ar. Podem tentar duas coisas: 1) um ponta-de-lança vai ao encontro da bola para fazer flick para trás na deslocação do outro ponta-de-lança; 2) um ponta-de-lança vai ao encontro da bola, segura e toca para o triângulo do meio-campo (sempre perto e a “cheirar” a segunda bola), que mete em profundidade nos alas que estão o mais fundo possível. − Os médios são muito posicionais. Lennon é fixo. É uma linha de passe atrasada e garante equilíbrio. Lambert tem mais projecção ofensiva, mas ambos dão cobertura à projecção dos alas. Atenção a Lambert, que gosta de sair a conduzir a bola e vai tabelando com os pontas-de-lança. Petrov acelera o jogo. Tem drible, mas na selecção de espaços é mortífero e aparece com facilidade e sempre no timing certo. Muitas tabelas também com os pontas-de-lança. − Os alas têm comportamentos padrão. Em 2ª fase estão em máxima amplitude. Quando recebem a bola, Agathe gosta de solicitar o ponta-de-lança, que se desmarca nas costas do nosso lateral que o vai pressionar, para depois se deslocar para dentro e permitir nova linha de passe ou conduz a bola para dentro e solicita o ponta-de-lança mais distante, que faz o lay-off para o outro ponta-de-lança, que se desmarcou na frente dele ou na profundidade. Thompson gosta de estar sempre aberto e quando recebe a bola vai para o um-contra-um com o lateral. O um-contra-um é característico: condução de bola para cima do defesa e no limite finta para dentro ou para fora para cruzar de imediato. − Hartson tem capacidade aérea, cobre bem a bola e segura em zonas perigosas para fazer combinação com Larsson. Larsson tem liberdade posicional, vai a um lado e ao outro, cai nas alas, vai curto e vai em profundidade. Tecnicamente é muito bom. − Na ocupação posicional da grande área, são excelentes. Um ponta-de-lança está no primeiro poste enquanto o outro está na zona do penálti. Depois chega Sutton ao segundo poste ou pelo meio e o ala do lado contrário também chega ao segundo poste ou fora da área. − Muitos passes da cara dos centrais para os pontas-de-lança (pelo ar e rasteiro) e para Petrov, que de imediato roda ou solta ao primeiro toque no ponta-de-lança que já se desmarcou. TRANSIÇÃO APÓS GANHAR A POSSE DE BOLA − Alívios são os mais perigosos. − Mudança rápida de atitude. Profundidade é a primeira opção. − Larsson antecipa a profundidade, “estica” o adversário e está no limite do off-side ou desce na direcção da bola para sair em pressão e roda para passar ou conduzir. − Cuidado com os alas. Transição rápida de Agathe, desloca-se para dentro em troca posicional com o ponta-de-lança e sabe rematar de longe. Thompson fica aberto e cruza de primeira. − Quando os nossos laterais têm que pressionar, o ponta-de-lança dá sempre saída, movimentando-se nas costas – colocam lá a bola com facilidade, seja de perto ou de longe. BOLAS PARADAS A FAVOR − Os livres laterais são batidos por Thompson de ambos os lados. Pode rematar directo ou pode cruzar. Cruzamento com muita qualidade para a entrada de cinco jogadores. Movimentações incisivas a atacar a bola. − Nos livres frontais, muita qualidade e variedade. Thompson bate quase sempre, seja de curta ou longa distância. Não tem direcção fixa e pode bater para o lado mais próximo ou mais distante do guarda-redes. − Cantos são batidos de um lado e outro por Thompson. Se Petrov estiver em campo, é ele que bate do lado esquerdo. Petrov bate cantos bem chegados ao guarda-redes. Há um homem no guarda-redes que ataca a bola ao primeiro poste se o canto for fechado e ao segundo se o canto for aberto. Posicionamento varia de canto para canto. Muita confusão nos cantos fechados. − Segunda bola muito perigosa. − Lançamentos laterais no terço ofensivo são longos para dentro da área, onde Hartson aparece para cabecear. OBSERVAÇÕES − Todas as faltas no meio-campo deles, constroem largo e aplicam os mesmos princípios de construção a partir do guarda-redes. − Na protecção de bola com o corpo não dão hipóteses, abrem os braços e é difícil roubar a bola. Cuidado com rotação explosiva de Larsson e Maloney. − Espertos nas simulações de faltas, principalmente na entrada da grande área. − Podem inverter o triângulo do meio-campo durante o jogo ou em vantagem no marcador, passando a jogar com Lennon mais recuado, com Lambert e Petrov na frente. − Muito perigo nas bolas paradas. − Em desvantagem no marcador pode entrar Maloney. Muito rápido – cuidado com a profundidade. Também bate bolas paradas. − Cartões amarelos e vermelhos – fazem muitas faltas. APRECIAÇÃO INDIVIDUAL − 20 Douglas – bom guarda-redes, alto e a sair aos cruzamentos para socar a bola. Algumas defesas incompletas – procurar sempre segunda bola. − 35 Malby – bom jogo aéreo, muito limitado tecnicamente. Gosta de jogar em profundidadeou solicitar Agathe. Aperta e sai da posição quando o ponta-de-lança vem na direcção da bola. Agressivo, faz muitas faltas. − 4 McNamara – bom central, sabe jogar o organizar a equipa. Comunicativo. − 6 Balde – muito alto e muito forte no jogo aéreo frontal. Tem muita dificuldade contra um ponta-de- lança ágil e explosivo. Muito fraco no um contra um, pois não tem capacidade para rodar e perseguir, por isso vai tentar sempre interceptar ou fazer falta. Joga como libero e não faz fora-de-jogo. − 5 Valgaeren – gosta de sair do terço defensivo a conduzir a bola – arrisca, dá para roubar. Bom no ar. Lento na rotação. − 17 Agathe – muito bom tecnicamente, joga aberto e em profundidade. Sabe tabelar, mas também sabe conduzir por dentro. O seu posicionamento em 2ª e 3ª fase compromete a transição defensiva (há muito espaço nas suas costas). Mudanças de ritmo explosivas. − 8 Thompson – bom pé esquerdo, coloca a bola com muita facilidade seja em passes longos, nas diagonais, cruzamentos e remates. No um-para-um vai direito ao lateral para depois sair para dentro ou para fora. Cruzamentos com direcção e com perigo. Importante nas bolas paradas. − 18 Lennon – médio com mais preocupações defensivas. Muito forte, mas só na sua zona, é o responsável pelas coberturas aos médios, aos alas e aos centrais. Quando não está a equipa fica muito desequilibrada. Atracção pela pela bola e logo espaço por trás. Sabe passar e é muito agressivo. − 14 Lambert – médio com mais liberdade. Muito bom tecnicamente. Pode jogar como apoio, sempre em movimento, mas também gosta de sair da posição para tabelar com os pontas-de-lança ou para transportar a bola para o terço ofensivo. No passe é impressionante. Tem muita facilidade a curta, média e longa distância. Por vezes aparece na grande área de trás para a frente e pelo meio. − 19 Petrov – irrequieto. Na ocupação dos espaços é muito inteligente, aparece sempre muito bem de trás para a frente. Se os dois pontas-de-lança se movem para o mesmo lado, logo de imediato aparece Petrov. Bom tecnicamente, gosta de conduzir a bola após recepção orientada. Marca cantos e livres. − 9 Sutton – ponta-de-lança, mas adaptado a pivot ofensivo. Joga bem de cabeça e na construção pelo guarda-redes é essencial pois é um dos que procura fazer o flick para os dois pontas-de-lança. Tem alguma mobilidade. Tecnicamente não é forte mas sabe jogar ao primeiro toque. Lay-off para médios. Perigoso nas bolas paradas. − 10 Hartson – grande porte atlético, poderoso no contacto, vai muito bem de cabeça. É lento e tem pouca mobilidade, mas quando a bola chega ao seu pé, protege-a muito bem enquanto espera pelos apoios. É referência na 3ª fase. Remate forte e colocado, média e longa distância. − 7 Larsson – muito bom tecnicamente. Domina as combinações ofensivas. Sabe jogar ao primeiro toque, mas também sabe conduzir, cruzar e rematar. Tem muita mobilidade e mexe-se sempre com intenção táctica – nas costas dos centrais e laterais. Rápido em curtas e médias distâncias. Inteligente. − 29 Maloney – ponta-de-lança (tipo Rui Barros4) baixo mas muito perigoso. Muito rápido e com muita mobilidade. Pode entrar com desvantagem no marcador. Explosivo e com um-para-um no espaço. Tem boa impulsão – cuidado. O FC Porto venceu o jogo no prolongamento por 3-2, numa final ainda hoje muito recordada pelos adeptos do clube dada a enorme expectativa que a antecedeu, o fantástico ambiente que o rodeou e, claro, a incrível emoção da vitória final. Uma emoção que, não há um adepto que não o reconheça, foi mesmo superior à sentida um ano depois quando a mesma equipa venceu a Champions League. No domínio público da internet caiu a dada altura um relatório de 2005 sobre uma observação feita por André Villas-Boas ao Newcastle, onde se podiam ler, entre muitas outras, considerações como as que se seguem: “Equipa em bom momento. Motivada e finalmente a encontrar equilíbrio. Importante manter atenção à intensidade de jogo. | Muita rapidez e alerta nas segundas bolas – depois de ganharem a bola têm soluções e tentam meter no Owen em velocidade. | Más transições defensivas e bolas paradas. Deixam jogadores atrás para terem superioridade, mas não conseguem lidar com o contra- ataque no espaço. É ainda mais evidente do lado do Babayaro – podemos matá-los por aqui. | Substituições não implicam alterações do sistema. Mas o losango pode sempre ser opção para eles. | Jogadores do banco têm qualidade técnica e podem decidir o jogo. Kieron Dyer e Lee Bowyer são dinâmicos e assumem sempre os papéis que fazem uso da mobilidade. Ameobi é uma ameaça no ar e bolas paradas. Luque tem técnica. Owen persegue bolas perdidas e os passes atrasados para o guarda-redes (grande perigo!).” Mas mais interessante ainda, especialmente numa altura em que Villas-Boas regressa a Inglaterra para dirigir o Chelsea, e mesmo tendo em conta o tempo que entretanto passou e o facto de os jogadores já não serem os mesmos – só Giggs se mantém na equipa e a espaços –, é tomar conhecimento da forma como observava o Manchester United de Sir Alex Ferguson, porventura o adversário mais difícil com que vai ter que se bater na Premier League. Um relatório sistematizado, como sempre, tendo em conta a organização ofensiva e defensiva do adversário, as transições ofensiva (após ganhar a posse de bola) e defensiva (após perder a posse de bola), as bolas paradas a favor e contra, a análise individual aos jogadores e observações de carácter geral. Vejamos então, algumas (elucidativas) notas do que transmitiu a José Mourinho. Villas-Boas considerava o Manchester United uma equipa “ofensivamente rápida, com forte organização colectiva e extremamente objectiva, tanto na posse de bola como no jogo directo. Alto nível do talento individual sempre ao serviço da equipa. Forte espírito de entreajuda e ritmo intenso durante todo o jogo. Muita dinâmica, muitos movimentos de penetração sem bola e muita eficácia na última acção”. E chamava particular atenção para as movimentações dos pontas-de-lança: “Jogo fantástico na grande área. Van Nistelrooy segura de costas para a baliza e combina com os apoios. Diferentes combinações tipicamente inglesas. Movimento do ponta-de-lança feito em função do portador da bola: na diagonal, a abrir linha de passe para receber e rematar ou os falsos movimentos de aproximação à bola para depois partir na profundidade. Saha excelente a organizar jogo de costas para a baliza, baixa ao meio-campo – libertando o seu espaço para Giggs ou Nistelrooy –, roda e vai em profundidade.” Considerava ainda a “ocupação posicional muito forte. Giggs pode aparecer ao primeiro poste nos cruzamentos do lado contrário. Ataca a bola pela frente e antecipa-se aos centrais. Scholes a chegar de trás (em grande velocidade – forte impulsão e qualidade de finalização). Van Nistelrooy nunca se dá à marcação, coloca-se sempre por trás do central de modo a que este nunca veja a bola e ele ao mesmo tempo. Normalmente finge que vai ao primeiro poste e cai para o segundo ou vice-versa (ou está parado e ataca de surpresa a bola). Saha está na zona de penálti”. Do ponto de vista defensivo, fez notar que os defesas-centrais eram “um pouco permissivos e expectantes”, principalmente se a dupla fosse Brown-O’Shea. “Na marcação ao adversário directo deixam-se arrastar ao meio-campo – importante arrastar fora para criar buraco. Brown passivo permite que adversário rode sobre ele”. E observou ainda que “no terço defensivo é raro aplicarem o fora-de-jogo e há situações em que o central está 15/20 metros recuado em relação ao lateral – bola pode entrar entre posições”. Outra vulnerabilidade que Villas-Boas detectou tinha a ver com o posicionamento defensivo dos dois médios-centro, Scholes e Keane: “Sempre posicionalmente bem, mas se Scholes não recuperar posição após perda, Keane está só para toda a amplitude. Nos movimentos de penetração do adversário, há situações em que se deixam arrastar no homem-a- homem.”Se o adversário saísse de bola longa, toda a equipa se aglomerava no meio-campo, “num espaço de 30 metros”, havendo, por isso, “espaço em profundidade” que podia “ser aproveitado com um pontapé forte”. Quando o Manchester United perdia a bola, André Villas-Boas notava-lhe uma “mudança rápida de atitude” com “pressão alta e ‘asfixiante’ na primeira fase de transição do adversário”. A equipa apertava as linhas porque os centrais arriscavam, “encurtando até à linha do meio-campo”, abrindo “espaços na profundidade, mas pondo jogadores off-side”. Para o observador da equipa técnica de Mourinho no Chelsea, os médios-centro faziam “pressão forte junto às linhas laterais”, provocando uma “boa redução de tempo e espaço ao adversário”, mas deixavam a “zona central descoberta”. Nas transições ofensivas, considerava haver muito perigo se o Chelsea perdesse a bola no seu próprio meio-campo. Destacava ainda o “ritmo de bola, mais velocidade de deslocamento dos jogadores, muita profundidade dos atacantes, mas também dos médios. No terço ofensivo, resolução rápida com cruzamentos e chegadas de trás para a frente”. Para André Villas-Boas, Giggs e Nistelrooy eram referências porque tinham “transição individual muito forte”. O primeiro fazia movimentos “nas costas do nosso lateral para receber”, ao passo que o segundo, ou vinha “entre linhas para receber e progredir”, ou queria “profundidade imediata para esticar o adversário”, mesmo que não recebesse a bola. Outro ponto de muito perigo para que chamou a atenção tinha a ver com o facto de “todas as faltas a meio-campo” serem “marcadas de imediato. Sofrem falta, levantam-se e rapidamente põem em jogo”, saindo pelo “lado exposto do adversário”. Por outro lado, evidenciou também a “grande pressão à segunda bola do nosso guarda-redes”, pelo que seria importante protegê-lo nessas situações. Os livres laterais eram batidos por Giggs ou Scholes, “bem na direcção da baliza, para a entrada na diagonal de cinco jogadores”, ficando Keane à entrada da área “para controlo da segunda bola”. Explicou também que os cantos levavam a “bola sempre chegada à baliza”, sendo os movimentos “diagonais e explosivos”. Tudo ilustrado com atractivos esquemas a cores, retratando a zona do relvado em causa e as movimentações dos jogadores adversários, devidamente “equipados” de vermelho. Para André Villas-Boas, o Manchester United denotava “muita passividade na marcação defensiva” às bolas paradas do adversário, particularmente Brown e O’Shea. Na generalidade destas situações, a equipa optava pela marcação homem-a-homem, deixando quase sempre Nistelrooy na frente e Giggs na zona intermédia. “Têm transição muito forte após a conquista da bola – ligam por Giggs ou por um dos jogadores que sai da grande-área e transporta.” Curiosamente, Cristiano Ronaldo ainda não constituía naquela época grande preocupação para André Villas-Boas. O extremo português não é praticamente referido ao longo de todo o relatório, se não quando o competente observador entrou nas apreciações individuais. Aí, considerava que o CR7 recebia na posição e ia “para cima do lateral-esquerdo no um-para-um”, chamando a atenção para o facto de ele ser “muito rápido e explosivo”. Registou também que tinha “finta e recepção orientada” e que eliminava facilmente “a pressão ‘cega’” do adversário. De resto, as ditas apreciações individuais, sempre muito pormenorizadas, confirmavam o que tinha referido relativamente aos movimentos ofensivos e defensivos da equipa. Por exemplo, entre várias outras observações, considerava que Keane tinha um “ritmo alto durante todo o jogo”, era “muito forte posicionalmente” e disputava “com extrema agressividade os duelos pela bola”. Scholes, com um futebol dinâmico, era a “referência em todas as fases de jogo”, tinha um passe “incrível, seja curto, longo ou de penetração” e “remate de meia distância muito perigoso”. Fletcher “parece lento, mas tem passada larga, parece trapalhão, mas é coordenado e executa rápido”, além de que, sendo um jogador de passe curto, dava “sempre continuidade”, não entregava a “bola à sorte”. Grandes elogios para Ryan Giggs – “jogador fantástico por fora ou por dentro” –, sobre quem escreveu que “se se fixa na ala, vai para cima do lateral-direito” para cruzamento ou para remate, ou “pode vir à procura do espaço interior, assumindo o transporte de jogo para o terço ofensivo, tabelando com os pontas-de-lança na progressão”. Considerava-o “perigoso na transição ofensiva” pois fazia “a transposição para o ataque com facilidade”. Van Nistelrooy foi outro jogador muito apreciado, sobre quem escreveu várias linhas, e entendia ser um “concretizador incrível”, que “nunca se dá à marcação” e que dominava o off-side, posicionando-se “atrás da nossa linha defensiva” e depois, “com movimentos circulares ou diagonais”, recuperava “para uma posição válida”. Saha, não sendo alto, tinha “uma impulsão incrível” e gostava de “baixar ao meio-campo para ajudar colegas e sair da pressão”. As observações menos positivas ficaram para dois jogadores do sector recuado dos red devils. O’Shea era visto como um defesa “central ou lateral, pesado e pouco móvel” e, não obstante ter um bom timing de intervenção, não era um jogador rápido e tinha “dificuldade na rotação”, sendo “trapalhão com e sem bola”. Brown, apesar de alto e bom posicionalmente, errava “muitas vezes” e era “muito passivo, principalmente nas bolas paradas”. Considerava o guarda-redes Tim Howard “bravo, muito ágil e comunicativo”, com “defesas completas” e boa “transição ofensiva”, Gary Neville era “eficaz no tackle” e, recuperando bem o seu espaço, não deixava de jogar “duro”, de se irritar “com facilidade” e de fazer “excelentes cruzamentos”, e o seu irmão, Phil Neville um polivalente que cumpria posicionalmente e que era “bastante eficaz na marcação”, mas tinha “visão de jogo limitada”. Através destes exemplos se pode observar a minúcia e o cuidado que André Villas-Boas colocava na observação dos adversários – para os analisar em profundidade precisava de observar quatro a cinco jogos com o objectivo de perceber se as coisas aconteciam ao acaso ou se, pelo contrário, eram fruto de movimentos-padrão – e, depois, na compilação dos dados que permitiam a Mourinho preparar a equipa para tantas e tão significativas vitórias. Mas não se deve exacerbar demais o seu trabalho, por muito valioso que fosse – e era! Afinal, na época em que André Villas-Boas “abandonou” Mourinho (2009-10), o Special One fez um triplete absolutamente “impossível” ao serviço do Inter: venceu a Liga italiana, a Taça de Itália e a Champions League! 007 – MISSÃO “UNITED” Os relatórios não se limitavam a descrever com toda a minúcia a forma de jogar do adversário. Villas-Boas deslocava-se, disfarçado, aos campos de treinos dos opositores, para colher impressões sobre o estado de espírito dos jogadores, ambiente da equipa e movimentações mais frequentes. Depois, elaborava DVD’s com imagens dos jogos, destacando bolas paradas, movimentos ofensivos e defensivos, etc. Tudo isto há 10 anos. Com a perspicácia e supervisão de José Mourinho – é preciso dizê-lo –, Villas-Boas inaugurou um novo capítulo na área do scouting. Ao ponto de Mourinho dizer que André era os seus “olhos e ouvidos.” Foram quase sete anos de convivência profissional e diária entre os dois. É verdade que no início Mourinho “inventou” Villas-Boas, mas depois Villas-Boas soube “reinventar-se”, acrescentando valor em cima de valor à actividade desempenhada. O treinador bicampeão europeu detectou bem cedo a importância de um departamento de scouting numa equipa técnica de topo. Terá percebido isso logo na preparação do primeiro jogo como treinador principal, no Benfica. O adversário era o Boavista e, como sempre acontecia, o clube enviou um dos seus olheiros para efectuar o relatório. Nas notas recolhidas o observador esqueceu- se de mencionar a presença de Erwin Sanchez, “apenas” o jogadormais influente da equipa. Perante um erro tão grave, Mourinho decidiu chamar para sempre a responsabilidade dessa área à sua equipa técnica e debaixo da sua própria orientação. Até porque era um tema que o técnico português conhecia como poucos, fruto do trabalho desenvolvido em Barcelona como adjunto de Louis van Gaal. Pagou do próprio bolso a um colaborador externo, mas da sua confiança, para observar os adversários do Benfica. Depois de recebida a informação, era o próprio Mourinho quem esmiuçava e apresentava a síntese aos jogadores, num painel de folhas gigantes colocado em cima de um cavalete no balneário. Durante as passagens pelo Benfica e União de Leiria, nos primeiros dois anos de carreira, José Mourinho recorreu a colaboradores “avulsos” para preencher o departamento de scouting. A estabilização e desenvolvimento sustentado só aconteceram em 2002, no FC Porto, com a integração de André Villa-Boas. O clube já tinha um departamento de observação, que até funcionava de forma eficiente, mas Mourinho – por intermédio de Villas-Boas – introduziu-lhe uma pequena revolução: mudou radicalmente a forma de observar os adversários, sistematizar a informação e apresentar o trabalho. Os resultados viram-se no campo. Após o notável trabalho realizado no FC Porto – que culminou com a conquista de duas ligas portuguesas, uma Taça de Portugal, uma Supertaça portuguesa, uma taça UEFA e uma Champions League, em apenas duas épocas – o universo do futebol lançou muitas interrogações sobre como resultaria o trabalho de José Mourinho no Chelsea. O escrutínio estendia-se aos seus colaboradores: resultariam em Inglaterra – o país da vanguarda futebolística – os métodos utilizados com tanto sucesso em Portugal, um país com um futebol de segundo plano europeu? Na área específica do scouting a surpresa foi total! O trabalho planeado por José Mourinho e desenvolvido por André Villas-Boas andava muito à frente do que era feito na Premier League. E os portugueses fizeram questão de o demonstrar logo na preparação da primeira temporada, em 2004- 05. Chelsea e Manchester United coincidiram numa digressão de pré-época aos Estados Unidos. Por essa altura já se sabia que os caprichos do sorteio tinham ditado um encontro dos dois clubes, logo na primeira jornada do campeonato. Mourinho tinha a perfeita noção de que o sucesso em Inglaterra passava, em primeiro lugar, por desfazer o compulsivo domínio da equipa de Ferguson. Mourinho também sabia que uma vitória sobre o principal rival, logo na abertura do campeonato, representaria uma vantagem psicológica gigantesca. Não perdeu tempo. Pediu a André Villas-Boas que realizasse uma missão de verdadeiro 007. Uma missão impossível: observar à lupa todos os passos dos red devils nos Estados Unidos. Treinos, estados de espírito, lesões, humores… tudo passou pelo bloco de notas de Villas-Boas. Foi um trabalho notável, digno de entrar nos compêndios sobre observação de adversários. O resultado mais visível desta estratégia foi o próprio jogo, realizado a 14 de Agosto de 2004, em Stanford Bridge. O Chelsea venceu por 1-0 (Gudjohnsen, 15’), em 90 minutos pensados ao detalhe. Não é possível quantificar a importância deste resultado na conquista do campeonato 2004-05 por parte do Chelsea. Certo é que naquela tarde os blues espetaram a primeira bandeira num território de domínio dos red devils. Numa entrevista dada pouco tempo depois de entrar para o Chelsea como parte da equipa técnica de Mourinho, Villas-Boas admitiu que arranjava formas de assistir secretamente a treinos dos adversários do seu clube para, desta forma, obter informações ilícitas: “O meu trabalho permite ao José saber exactamente quando um jogador da equipe adversária está provavelmente no seu melhor ou no seu pior. Viajo para ver treinos dos nossos adversários, muitas vezes incógnito, e observo o seu estado físico e mental antes de tirar as minhas conclusões.” Os métodos de José Mourinho, e de modo particular a importância dada à área da observação de adversários, deixaram boquiabertos os responsáveis do Chelsea. Nem o clube nem os ingleses estavam habituados a semelhante tipo de trabalho. Brian McDermott, manager do Reading, cruzou-se várias vezes com Villas-Boas na observação de adversários por todo o país. O técnico diz ter aprendido muito com André e recorda-se de o ver compilar os relatórios no Blackberry. “Agora é um treinador sem medo. Fala muito bem inglês, é um tipo simpático e é um treinador que fala sempre dos jogadores, colocando-os à frente dele. Isso convence os atletas”, garante McDermott. NO OLHO DO FURACÃO As equipas de Mourinho – as que vão para o relvado jogar, mas também o staff técnico que o apoia – são conhecidas pelo espírito de grupo que patenteiam e pela luta intensa que todos estão dispostos a travar em prol dos objectivos comuns. Não há ali meios-termos: ou se está dentro ou se está fora do barco. Quando o Chelsea visitou o Camp Nou para os oitavos-de-final da Champions League, em Fevereiro de 2005, Mourinho já apresentava uma folha de serviços com alguns atritos protagonizados com a UEFA. Ao intervalo, o Chelsea vencia por 1-0, mas na segunda parte, após a expulsão de Didier Drogba (aos 56 minutos), o Barcelona deu a volta ao resultado e acabou vencendo por 2-1 (golos aos 67 e 73 minutos). No final, Mourinho acusou o treinador do Barcelona, Frank Rijkaard, de ter estado durante o intervalo na cabine do árbitro Anders Frisk e, por conseguinte, não lhe ter provocado surpresa a expulsão (decisiva) de Didier Drogba na segunda parte do jogo. Colaborador da extinta revista semanal Dez do jornal Record, Mourinho escreveu na sua coluna que “quando vi Rijkaard a entrar na cabine do árbitro não queria acreditar”. A acusação de Mourinho caiu muito mal em diversos sectores do mundo do futebol e fez despoletar um sem número de reacções ao nível das organizações dos árbitros (que chegaram a ponderar uma greve), da UEFA e até da própria FIFA. Mas o mais grave foi ter levado o árbitro sueco, um dos mais prestigiados a nível europeu, a colocar um ponto final na sua bem sucedida carreira ao mais alto nível. Frisk abandonou porque, disse, temeu pela segurança da sua família após ter recebido diversas ameaças de morte por alegadamente ter facilitado a vitória do Barcelona sobre o Chelsea. Mas o mais curioso desta história, e é por isso mesmo que ela é aqui relatada, é que foi André Villas-Boas – já naquela altura conhecido por ser um dos mais voláteis colaboradores de José Mourinho, porventura mais controverso até do que o próprio chefe – e não Mourinho, quem reclamou ter visto Rijkaard entrar na cabine de Anders Frisk por três vezes durante o intervalo daquele jogo. O facto faz todo o sentido, uma vez que é natural que durante o intervalo Mourinho estivesse fechado no balneário a dar instruções à sua equipa. O próprio Mourinho o confessou pouco tempo depois: “Rijkaard esteve reunido com o árbitro no seu balneário durante mais de cinco minutos. Sei isto porque os meus adjuntos estavam à porta durante a reunião.” Na segunda mão, disputada em Stamford Bridge, o Chelsea venceu por 4-2 e foi apurado. Um jogo memorável, que o Chelsea vendeu depois, sob a forma de DVD, aos milhares. Mourinho foi suspenso pela UEFA em consequência do episódio do Camp Nou e não pôde dirigir a partir do banco de suplentes os blues nos dois jogos dos quartos-de-final contra o Bayern de Munique, que foi, ainda assim, eliminado pelo Chelsea. Para além disso foi multado pela estrutura que dirige o futebol europeu, o mesmo acontecendo ao clube. COMENTADOR DE SERVIÇO No final da segunda época no Chelsea (2005-06) – mais uma com boas condecorações para a equipa técnica de Mourinho com a conquista da Premier League e da FA Comunity Shield – o mundo do futebol apontou atenções para o Campeonato do Mundo, que teve lugar na Alemanha. Por essa altura, o jornal espanhol Marca publicava uma reportagem exaustiva sobre omodo de funcionamento da equipa técnica liderada por José Mourinho. Entre os vários factores evidenciados no texto, saltava à vista o trabalho realizado pelo observador André Villas-Boas. A minúcia, o detalhe, a riqueza de informação e utilização das novas tecnologias chamaram a atenção dos responsáveis da SIC, um dos quatro canais de televisão abertos em Portugal. A SIC tinha adquirido os direitos do Mundial 2006 e procurava profissionais à altura para enriquecer o quadro de comentadores. Depois da reportagem da Marca, André Villas-Boas foi referenciado pelo canal. Era um ilustre desconhecido que vivia longe dos holofotes – quase sempre em viagem pelo mundo ou fechado em gabinetes construindo relatórios – e nem sequer era presença regular nos treinos do Chelsea. Também não tinha experiência na área dos comentários televisivos. Mas reunia potencial de sobra para realizar um trabalho competente e, sobretudo, diferenciado daquilo que se fazia até aí na televisão portuguesa. O canal avançou para a contratação de André Villas-Boas que se mostrou imediatamente receptivo e entusiasmado. Aquele jovem, permanentemente inconformado e ambicioso, encontrava uma janela de oportunidade preciosa naquele convite. Era a possibilidade de aparecer e dar visibilidade a um trabalho por definição “invisível”. Como confessava o próprio Villas-Boas em 2005, numa entrevista à Chelsea TV e cujo vídeo foi largamente divulgado na internet, “passo a maior parte do meu tempo ao computador a fazer relatórios para este senhor (José Mourinho). E para ele ficar satisfeito tenho de os fazer o melhor possível.” A palavra final para a participação de Villas-Boas na SIC pertencia a José Mourinho, na qualidade de chefe de equipa. O treinador português nunca foi muito receptivo ao protagonismo dos seus colaboradores. Por outro lado preferia que os segredos sobre o modo de funcionamento da equipa técnica ficassem entre as quatro paredes do seu gabinete. Mas a verdade é que o próprio Mourinho já tinha um histórico – pontual, é verdade – de comentador televisivo (na SportTV, o único canal português exclusivo de desporto), acumulado com a função de treinador. Além disso, o desafio então proposto a Villas-Boas realizar-se-ia durante a época de defeso, em pleno gozo de férias e fora do período laboral no Chelsea. Mourinho não tinha muitos argumentos para dizer não. Anuiu. Villas-Boas apareceu assim, pela primeira vez publicamente, a fazer comentários em estúdio antes e após os jogos da selecção portuguesa no Mundial‘06. Claro, conciso, esclarecido, perspicaz e – não menos importante – dono de uma imagem televisiva muito cativante. Surpreendeu. No entanto, a pedra de toque nos comentários do jovem foi a utilização de um tablete para explicar, com o sistema de touch-screen, os movimentos tácticos das equipas. Uma inovação completa na televisão portuguesa e uma ruptura total com o que era feito até então. Os colaboradores da SIC ficaram impressionados com o trabalho de Villas-Boas: “Ele pedia-nos para isolar imagens aparentemente banais, que não tinham qualquer pormenor interessante, mas que depois de explicadas por ele faziam todo o sentido. Via coisas que mais ninguém via.” O sucesso televisivo de André Villas-Boas terá causado algum incómodo a José Mourinho. Consequência ou não, o treinador aceitou o convite, também da SIC – até aí permanentemente recusado – para comentar em estúdio o jogo dos quartos-de-final do Mundial entre Inglaterra e Portugal (1-3 após g.p.). Após a colaboração na SIC, Villas-Boas regressou ao anonimato… até Novembro de 2007. No dia 20 de Setembro desse ano a equipa técnica de José Mourinho e o Chelsea chegaram a acordo para a rescisão de contrato, colocando ponto final numa relação de três anos. Villas-Boas ficou tecnicamente desempregado e não perdeu tempo. Dois meses mais tarde aceitou o convite para comentar jogos na SportTV, após a necessária autorização de José Mourinho. A relação de Villas-Boas com a SportTV durou até Abril de 2008, ou seja cinco meses. Durante esse período comentou exactamente 10 jogos do futebol português, inglês, italiano e Champions League. Curiosamente começou (25 de Novembro de 2007 – FC Porto vs. V. Setúbal) e acabou (27 de Abril de 2008 – V. Guimarães vs. FC Porto) com jogos do seu clube do coração e aquele em que haveria de brilhar três anos mais tarde. Não menos curioso foi o penúltimo jogo que André Villas- Boas comentou para a SportTV, a 29 de Março de 2008: Lázio vs Inter de Milão (1-1) para a Serie A do campeonato italiano. Passados 36 dias, a 2 de Junho, a equipa técnica de José Mourinho – onde Villas-Boas ainda se incluía – assinava contrato, precisamente com o Inter de Milão. A crispação com José Mourinho terá começado nesta fase. Villas-Boas era claramente o mais inconformado dos adjuntos e aquele que procurava, com insistência, encontrar outros desafios fora do âmbito da equipa técnica. Algo em que os restantes elementos – Rui Faria, Silvino ou Baltemar Brito – nem ousavam pensar, quanto mais pedir autorização para fazer. A relação entre Mourinho e Villas-Boas desgastou-se por caminhos sem retorno. Foi o princípio do fim. A ROTURA COM MOURINHO Em Abril de 2009, André Villas-Boas trabalhava na equipa técnica de José Mourinho há quase sete anos. Tinha acabado de tirar mais um nível do curso de treinadores da federação escocesa. Quem conhece a sua personalidade e o seu percurso recente percebe as razões por que tinha outras ambições para além das de observar adversários e produzir valiosos relatórios informáticos. Afinal, como interrogou um dia Hellen Keller5: “Porque nos contentamos em viver rastejando quando sentimos vontade de voar?” André Villas-Boas abordou Mourinho e apresentou as suas pretensões: queria estar mais próximo da equipa, ir para o banco e, sobretudo, desenvolver trabalho no campo. Segundo corre nos chamados mentideros, mas que não nos foi possível confirmar, Mourinho ter-lhe-á respondido: “Queres trabalhar no campo? Boa… então vai lavrar, porque aqui eu é que decido.” E ainda o terá aconselhado a que não se esquecesse da enxada… O jovem observador fazia parte do pequeno núcleo duro de colaboradores que José Mourinho levou do FC Porto para o Chelsea e, posteriormente, do Chelsea para o Inter de Milão. Os outros foram Rui Faria – considerado o verdadeiro braço direito de Mourinho, o único que o Special One verdadeiramente não dispensa, e que tem recusado convites para assumir funções de treinador em vários clubes – e Silvino Louro – o competente treinador de guarda-redes, fiel amigo e frequente companheiro de viagens dado que ambos vivem em Setúbal. Do FC Porto para o Chelsea foi também Baltemar Brito, mas este já não seguiu para Milão. Rui Faria e Silvino Louro transitaram posteriormente para Madrid e fazem parte da actual equipa técnica do Real. Diz-se que Mourinho, adepto do diálogo, mas senhor absoluto das suas decisões, não terá perdoado a “ousadia” de André Villa-Boas e que a partir daquele momento o jovem observador ficou com os dias contados como elemento do seu staff. A imediata contratação de outro português, José Morais, para efectuar o mesmo tipo de trabalho, veio confirmar plenamente esta versão. Na verdade, Mourinho nunca apreciou particularmente os desejos de protagonismo do seu colaborador. O primeiro caso terá surgido, como vimos, quando André Villas-Boas aceitou ser comentador do canal de televisão SIC para o Mundial’06 que decorreu na Alemanha. Vários outros casos se seguiram e as pretensões apresentadas em Abril de 2009 terão sido a gota de água que fez transbordar o copo. Para Luís Freitas Lobo6, André Villas-Boas “foi o homem, o único à face da Terra, que desafiou Mourinho e com quem este se zangou, furioso, quando, altivo, lhe disse que queria ir embora do Inter porque se sentia treinador e não um simples observador como Mourinho insistia que fosse.” Há, no entanto, quem próximo do actual técnico do Real Madridafirme que a “dispensa” do observador da equipa técnica teve apenas como base o facto de o treinador considerar que tinha melhores soluções para aquele tipo de trabalho de observação. Segundo esta versão, Villas-Boas tinha como principal ponto forte, não uma capacidade extra para observar equipas e jogadores, mas o bom domínio das… técnicas informáticas. Passara quase sete anos sem permissão para entrar em campo e treinar, circunscrito às viagens de observação e aos gabinetes. Nunca foi adjunto de Mourinho no plano técnico. Mas, é bom de lembrar, nesses quase sete anos teve oportunidade de acumular um conjunto de conhecimentos muito importantes, na medida em que era sua função tratar todo o tipo de informação e depois passá-la para o computador. Teve assim acesso a planos de treino, esquemas de exercícios, formas de preparar a equipa em função dos adversários, etc. Um verdadeiro curso prático tirado junto daquele que muitos consideram o melhor treinador do mundo e que prima pela inovação e criatividade nos seus métodos de trabalho. André Villas-Boas, com contrato por mais três anos com o Inter, não aceitou a “guia de marcha” que lhe foi oferecida e, esvaziado de funções, deixou-se ir ficando numa autêntica “prateleira dourada” durante todo aquele final de época 2009-10 – em que o Inter se sagrou campeão de Itália – e no início da temporada seguinte. Até que em Outubro de 2009 acertou finalmente a rescisão com o clube italiano a troco de um valor correspondente a um ano de ordenados. Contrariamente a tudo o que acontece ou que esteja relacionado com José Mourinho, este episódio passou completamente despercebido dos media portugueses, que a ele não fizeram praticamente nenhuma referência. Compreensível pelo facto de Villas-Boas ter sido sempre um personagem “invisível” na equipa técnica de Mourinho. O que foi confirmado publicamente pelo próprio quando, a propósito de uma pergunta sobre a saída de José Mourinho do Chelsea, esclareceu: “Na altura, eu era só uma peça de uma máquina de muito sucesso criada por Mourinho. Não estive envolvido nessa decisão. Vi tudo muita à distância.” Embora considerando o trabalho de observação de equipas e jogadores como um factor fundamental no futebol moderno, André Villas-Boas entende que esse trabalho pode fazer a diferença mas ninguém, segundo ele, sabe até que ponto é decisivo nos jogos. Umas vezes sim, outras não. Era normal, também por isto, que quisesse dar o salto, que quisesse colocar-se à prova. Sentia ter mais para dar e queria começar a treinar. Se pudesse ter trabalhado mais próximo de Mourinho, tanto melhor, mas assumiu com naturalidade que o chefe não sentisse essa necessidade. CAPÍTULO 3 “É preferível ser primeiro numa aldeia do que segundo em Roma. Júlio César7 Entre Abril e Outubro de 2009, enquanto esperava na tal “prateleira dourada” em Milão, André Villas-Boas viu serem-lhe fechadas, bem na frente do nariz, as portas de alguns clubes. Um dos casos foi, segundo se diz, o Sporting de Braga, com quem teve tudo praticamente acertado, mas foi ultrapassado em cima da meta por Domingos Paciência. A verdade é que o jovem observador acreditava muito no seu futuro como treinador e junto de pessoas próximas chegou a desabafar que “estes gajos não sabem que daqui a uns tempos estão a falar com o treinador do FC Porto!” – contou Luís Freitas Lobo na sua habitual coluna no semanário Expresso de 25.06.2011. Em Coimbra, no centro do país, mora um dos clubes mais simpáticos do futebol português. Após anos de fulgor, em que formou nas suas escolas alguns dos melhores jogadores portugueses, passou épocas e mais épocas no sobe-e-desce entre a primeira e a segunda ligas, tendo permanecido na divisão secundária durante várias temporadas até se fixar novamente na primeira em 2002-03. Teve as suas melhores classificações na Liga em 1966-67 (2º lugar) e em 1968-69 (4º lugar). Data de 1939 o único título oficial do seu palmarés, quando venceu a primeira edição da Taça de Portugal. Foi ainda finalista vencido desta competição em 1951, 1967 e 1969. Em Outubro de 2009, a Académica arrastava-se penosamente pelo fundo da tabela classificativa do campeonato. Com a saída de Domingos Paciência, no final da época 2008-09, rumo ao Sporting de Braga, o presidente José Eduardo Simões8 tinha contratado um treinador da escola tradicional – Rogério Gonçalves – para o substituir. Mas o futebol da equipa estava longe de corresponder aos objectivos traçados pelo clube, que passam normalmente pela manutenção na primeira Liga portuguesa: 3 pontos em 7 jornadas, fruto de 3 empates e 4 derrotas, 5 golos marcados e 11 sofridos. O ambiente não era, pois, o melhor e a contestação dos adeptos ia subindo de tom, chegando ao próprio presidente do clube, que não se livrou de ouvir insultos vários no final da derrota caseira (2- 4) com o Marítimo. Seguindo um hábito muito próprio do futebol português, que é o de trocar de treinadores, se necessário logo numa fase inicial da época, quando as coisas não correm como o projectado, José Eduardo Simões decide-se então pela tradicional “chicotada psicológica”, demitindo Rogério Gonçalves e partindo em busca de um técnico com um perfil na linha de Domingos Paciência – que tinha obtido excelentes resultados no clube –, isto é, um treinador jovem, ambicioso e com uma visão moderna do futebol. O presidente da Académica não conhecia pessoalmente André Villas-Boas. Tinham um amigo comum que transmitia a José Eduardo Simões informações várias e referências – extremamente positivas – sobre o jovem observador da equipa técnica de Mourinho. Não era, portanto, uma pessoa totalmente desconhecida para José Eduardo Simões. Para além das suas qualidades, “sabia que se tratava de alguém que tinha uma forma diferente de estar e que estava disponível porque queria arrancar com a carreira”, explica-nos o presidente da Académica. Tinha já havido uma tentativa de encontro no passado, mas a dificuldade de conciliar agendas fez abortar essa possibilidade. Desta vez, porém, José Eduardo Simões estava decidido a “agarrar” André Villas-Boas e solicitou-lhe que se encontrassem em Coimbra. André viajou de avião de Milão para o Porto e, depois, de automóvel até Coimbra, onde se encontrou com o líder da Académica na casa deste. Em menos de duas horas José Eduardo Simões pôde avaliar, não só o carácter de Villas- Boas, como a sua competência técnica, sobretudo através da forma especialmente detalhada como o ex-observador analisou a equipa da Académica. E ficou completamente convencido. “Ele trazia um projecto estruturado, assente numa estratégia muito bem delineada e em objectivos muito bem definidos.” Falou dos pontos fracos e dos pontos fortes da equipa e do que era necessário fazer para melhorar o seu desempenho e os seus resultados. Impressionou ainda o seu interlocutor pela forma assertiva e profissional como apresentou o modelo de jogo que queria implementar e a confiança que manifestou no sucesso do clube e dele próprio. E José Eduardo Simões concluiu: “Mostrou conhecimentos sobre o clube e o plantel, deu para ver que ele tinha feito trabalho de casa, um trabalho profundo, aquilo não era documento que pudesse ter sido produzido à pressa durante a viagem de avião…” A postura de Villas-Boas era em tudo idêntica à de José Mourinho, que no primeiro encontro com responsáveis do Chelsea lhes apresentou um dossier completo sobre o que pensava do clube e o que dele pretendia, deixando-os completamente convencidos e relegando o sueco Sven-Goran Ericksson – que com ele supostamente concorria para o lugar – para uma posição de imediata e definitiva desvantagem. Relativamente aos valores a auferir pelo técnico, o entendimento com a Académica foi, segundo o presidente do clube, “muito fácil”, uma vez que o interesse em chegar rapidamente a um acordo era, de facto, mútuo. Após o encontro pessoal com André Villas-Boas, José Eduardo Simões ficou de tal forma
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