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TRABALHO RACISMO ESTRUTURAL INSTITUCIONAL E POLÍTICO 13 08 2019 FINAL

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28
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
 
 Kátia Rubinstein Tavares
Racismo Estrutural, Institucional e Político no Brasil Contemporâneo
Trabalho final destinado à disciplina Estratégias de luta e práticas de existência no pensamento social do século XXI, pertencente ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, oferecida no 1º semestre de 2019 aos seus doutorandos na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.
Professoras responsáveis: Estela Scheinvar e Katia Aguiar
Rio de Janeiro
2019
“No meu país o preconceito é eficaz. Te cumprimentam na frente, te dão um tiro por trás.”
 (Mano Brown & Ice Blue, Rap Racistas Otários).
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO............................................................................................................ 1
2. DESCONSTRUINDO O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL BRASILEIRA: A FORMAÇÃO DA IDEOLOGIA DO BRANQUEAMENTO....................................................................................................... 2
3. CONCEITO DE RAÇA, COLONIALIDADE E VIOLÊNCIA EPISTÊMICA..................................................................................................................... 5
4. A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE NECROPOLÍTICA: A CONTRIBUIÇÃO DE MBEMBE....................................................................................................................9
4.1 Para além da concepção de biopoder......................................................................... 10
4.2 Exercício da soberania, política e trabalho da morte................................................. 11 
4.3 A condição colonial e violência do estado de exceção: o diálogo com Foucault e Fanon e outros importantes pensadores contemporâneos............................................................. 14
5. RACISMO ESTRUTURAL, INSTITUCIONAL E POLÍTICO: A GESTÃO NECROPOLÍTICA DO ESPAÇO URBANO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO.................................................................................................... 16
5.1 A permanência das práticas racistas na administração das cidades brasileiras.................................................................................................... 18
5.2 A assimilação dos conceitos de necropolítica e necropoder de Mbembe por parte de Oliveira em seu estudo sobre o Rio de Janeiro .............................................................. 20
5.3 A violência sofrida pelos negros e sua vulnerabilidade no espaço urbano sob a perspectiva da necropolítica........................................................................................... 22
 
6. CONCLUSÃO............................................................................................................. 24
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................. . .27
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho corresponde a um esforço de retomar a discussão sobre as construções ideológicas que têm servido para mascarar o racismo tão presente no mundo social brasileiro (inclusive em nossa produção intelectual), bem como sobre os modos de disfarçar ou encobrir a violência das relações raciais que nele se perpetua. O “mito da democracia racial” sobressai entre essas construções ideológicas.
Trata-se de questões de que se vem ocupando o pensamento social brasileiro quando aprofunda a sua vocação crítica, conforme demonstram representantes contemporâneos como Luiz Fernando de Oliveira, Mônica Regina Ferreira Lins e Denilson Araújo de Oliveira. Pensadores que muitos subsídios ofereceram para a nossa investigação. 
Julgamos por bem abordar a contribuição do antropólogo Kubengale Munanga para uma compreensão renovada de temas como a ideologia do branqueamento e suas mais fortes expressões no nosso país, além da gênese do referido “mito da democracia racial”. É um pensador africano que não pode ser subestimado nos estudos atuais acerca desses problemas. 
Um outro autor de procedência africana que decidimos focalizar, considerando a riqueza dos novos instrumentos conceituais de que se vale - a exemplo de necroplítica e necropoder – foi Achille Mbembe. Muito dessa riqueza foi incorporado em trabalhos de Denilson Araújo de Oliveira.
Procuraremos compor um painel reflexivo bastante diversificado (não limitado a autores nacionais), que põe em destaque uma vontade comum de denunciar a mitificação operada pelo pensamento hegemônico colocado a serviço das elites dominadoras em todos os quadrantes. Essa denúncia pode ser interpretada como a contraparte dialética da crônica da resistência à ação das ideologias reacionárias mais resilientes e ao próprio dogmatismo, capaz de encobrir interesse de várias espécies. Aliás, pressupomos, no transcorrer do nosso estudo, que o interesse constitui o principal móvel das ideologias (inclusive, da discriminação racial) e fonte recorrente da suspeição por parte da teoria crítica (não tradicional) da sociedade, que é possível identificarmos em pensadores tão diversos como Marx, Foucault e Agamben.
Nossa investigação também assumiu o objetivo de desvelar, sob um prisma interdisciplinar, bem enriquecido pelo diálogo com esses pensadores seminais, a construção de alguns processos ideativos que levaram à justificativa da legitimação da dominação, subjugação e eliminação do corpo de pessoas negras, especificamente procedentes do continente africano, bem como das respectivas terras para onde foram levadas à força para serem escravizados. Ao receber a alcunha de negro pelo colonizador europeu, o africano que experimentou a brutalidade dessa diáspora, começa a ser inserido em um estágio de construção de não-ser, não-humanidade e não-racionalidade. 
Classificado dessa forma, o seu corpo (a força de trabalho) foi utilizado como combustível para o desenvolvimento do capitalismo. Um corpo que poderia ser usado e descartado assim que se tornasse inútil para ser explorado. Mesmo após o sistema econômico escravagista ter sido extinto, as estratégias de eliminação do corpo negro não cessaram. Agora, como ameaça biológica, os sistemas políticos contemporâneos, atualizando técnicas coloniais, executam esse mesmo corpo em forma de necropolítica.
	
2. DESCONSTRUINDO O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL BRASILEIRA: A FORMAÇÃO DA IDEOLOGIA DO BRANQUEAMENTO
Antes de discutirmos o tema do racismo sob uma perspectiva da necropolítica em nosso trabalho, buscaremos tecer um breve comentário sobre a formação da ideologia do branqueamento no pensamento social brasileiro, e o modo como esse discurso contribuiu para a construção do “mito da democracia racial brasileira”.[footnoteRef:1] Procuraremos analisar as propostas trazidas no livro Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra do professor Kabengele Munanga[footnoteRef:2], uma importante referência no âmbito dos estudos sobre relações raciais no Brasil, em que discute as principais ideias disseminadas pelos intelectuais mencionados no capítulo intitulado: “A mestiçagem no pensamento brasileiro”.[footnoteRef:3] [1: A hipótese de democracia racial passou ser criticada e refutada com alguns estudos desenvolvidos no âmbito do Projeto UNESCO, sobre as relações raciais no Brasil e, com mais veemência, por Florestan Fernandes em estudos subsequentes. Para Fernandes, a democracia racial brasileira não passa de um mito. Cf. FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Cortez, 1989.] [2: MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
Kabengele Munanga nasceu na República Democrática do Congo (antigo Zaire), em 1942, e naturalizou-se brasileiro aos 43 anos. É Professor titular do Departamento de Antropologia da Universidadede São Paulo, onde se doutorou em 1977, realiza pesquisas nas áreas de Antropologia África na e Antropologia da População Afro-Brasileira. Escreveu, entre outras obras, Negritude: usos e sentidos (1986) e Estratégias e Políticas de combate à discriminação racial (1996). ] [3: MUNANGA, Kabengele. Ibidem, p. 50-83.] 
Nesse capítulo, Munanga examina o tema da mestiçagem, que ganhou maior visibilidade, após a abolição da escravidão com ênfase na construção de uma “identidade nacional”. O autor afirma que os intelectuais, desde a primeira República, influenciados pelo determinismo biológico, “acreditavam na inferioridade das raças não brancas, sobretudo a negra, e na degenerescência do mestiço”. [footnoteRef:4] [4: Ibidem, p. 52.] 
Ao abordarem a questão da mestiçagem enfrentada no final do século XIX, os pensadores brasileiros tomaram o pensamento dos cientistas ocidentais como referência, isto é, os europeus e americanos de sua época e da época anterior. O fim do sistema escravista, conforme assinala o autor aqui examinado, em 1888, coloca aos pensadores brasileiros uma questão até então crucial: a construção de uma nação e de uma “identidade nacional”. Toda a preocupação da elite ancorada nas teorias racistas da época diz respeito à influência negativa que poderia resultar da herança “inferior” do negro nesse processo de formação da identidade étnica brasileira. [footnoteRef:5] [5: Ibidem, p. 51.] 
O século XIX foi marcado pela propagação de teorias racistas que foram utilizadas para legitimar a escravidão, o genocídio contra os negros e as diversas formas de dominação que perpassaram toda a história da humanidade. No Brasil, desde o final do século XIX até meados do século XX, a elite política e intelectual esteve profundamente preocupada com a formação do povo brasileiro. Nesse período produziram-se discursos paradoxais sobre a miscigenação, ora designando-a como vilã e contrária ao progresso nacional, além de sinônimo de degeneração de um povo; ora aclamando-a como solução para tornar sempre a população brasileira mais clara possível, ao tentar aproximar ao máximo da raça ariana, visando atender a uma escala superior. Posteriormente, o discurso sobre a miscigenação assume nova formatação, passando a ser o principal mecanismo de um processo que resultaria numa falsa democracia racial, um motivo de orgulho nacional diante do cenário mundial repleto de conflitos interraciais. 
Com relação aos intelectuais brasileiros, Munanga destaca o pensamento dos seguintes autores: Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manuel Bonfim, Nina Rodrigues, João Batista Lacerda, Edgar Roquete Pinto, Oliveira Viana e Gilberto Freyre. Muitos deles, com raras exceções, estavam profundamente influenciados pelo determinismo biológico do fim do século XIX e início do século XX e acreditavam na inferioridade das raças não-brancas, principalmente, a negra. A propósito, vale transcrever a conclusão de Munanga: “O negro era o componente da raça inferior. Na tríade da mestiçagem, o português, apesar de demonstrar que já era mestiço, não deixa de ser a raça superior, aristocrática”[footnoteRef:6]. Nesse debate intelectual nacional, como já mencionado, buscou-se fundamentalmente compreender como se poderia transformar essa pluralidade de raças e mesclas, ainda de culturas e valores civilizatórios tão diferentes e, também, de identidades tão diversas, numa única nação – em síntese, em uma “identidade nacional”. [footnoteRef:7] [6: Ibidem, p. 56] [7: Ibidem, p. 48.] 
Dentre os intelectuais que disseminavam ideias pessimistas em relação ao futuro da nação alicerçado na mestiçagem, destaca-se Nina Rodrigues - que considerava os negros e índios como incapazes, cuja responsabilidade penal deveria se atenuada, adotando uma concepção de diferenciação na legislação penal brasileira quanto à raça branca superior.[footnoteRef:8] Em relação aos mestiços, Nina Rodrigues vai classificá-los em três categorias: “o mestiço tipo superior, inteiramente responsável; o mestiço degenerado, parcial e totalmente irresponsável; o mestiço instável, igual ao negro e ao índio, a quem se poderia atribuir apenas uma responsabilidade atenuada.” [footnoteRef:9] Para Euclides da Cunha “o mestiço, traço de união entre raças,” era quase sempre um desequilibrado, decaído, sem a energia física dos ancestrais selvagens (negros) e sem a atitude intelectual da raça “superior” (branca)[footnoteRef:10]. Ambos consideravam o mestiço um degenerado, física e culturalmente. [8: Ibidem, 56] [9: Ibidem, p. 56.] [10: Ibidem, p. 57.] 
O importante a ser destacado, nesse estudo de Munanga, é a compreensão de como se formou o discurso de uma democracia racial no Brasil que foi disseminado principalmente pelo escritor Gilberto Freyre. Embora este não tenha adotado o conceito da democracia racial em seus escritos, contudo, foi ele que provocou a discussão acadêmica sobre esse tema, com seu livro Casa-grande e Senzala.[footnoteRef:11] Além disso, o seu discurso se tornou uma referência de um ideal de relação interracial, a partir do século XX, já que inspirava a imagem de uma falsa democracia racial num contexto mundial de guerra em que o racismo foi o elemento determinante de batalhas ideológicas, militares e civis. [11: FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2000.] 
No seu clássico livro Casa-grande e senzala, Gilberto Freyre estabeleceu as bases para a consolidação da ideia de um padrão supostamente harmônico das interações raciais no país. Além disso, tentou romper a ideologia racial discriminatória prevalente, mostrando o otimismo da mestiçagem brasileira [footnoteRef:12], que, ao contrário do sustentado por Nina Rodrigues e outros, para ele era vista como uma vantagem imensa. Em outras palavras, ao transformar a mestiçagem num valor positivo e não negativo sob o aspecto da degenerência, Freire desloca a discussão do conceito biológico e de raça para o eixo cultural.[footnoteRef:13] Nesse sentido, afirma Munanga: [12: MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. p. 79.] [13: Ibidem, p. 78.] 
[...] o autor de Casa-grande e senzala permitiu completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada. Freyre consolida o mito originário da sociedade brasileira configurada num triângulo cujos vértices são as raças negra, branca e índia. Foi assim que surgiram as misturas. As três raças trouxeram também suas heranças culturais paralelamente aos cruzamentos raciais, o que deu origem a uma outra mestiçagem no campo cultural.[footnoteRef:14] [14: Ibidem, p. 79] 
Assim, desse discurso baseado na dupla mestiçagem biológica e cultural entre as três raças originárias fez surgir o “mito da democracia racial”, tendo havido uma penetração profunda na sociedade brasileira, pois, segundo Freire, a miscigenação teria gerado um povo sem preconceito. Finalmente, conclui Munanga, que o “mito da democracia racial”: 
[...] exalta a ideia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades e impedindo os membros das comunidades não-brancas de terem consciência dos sutis mecanismos de exclusão de que são vítimas na sociedade.
Ou seja, encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e afastando das comunidades subalternas a tomada de consciência de suas características culturais que teriam contribuído para a construção e expressão de uma identidade própria. Essas características são "expropriadas", "dominadas" e "convertidas" em símbolos nacionais pelas elites dirigentes. [footnoteRef:15] [15: Op. cit. p. 80] 
3. CONCEITO DE RAÇA, COLONIALIDADE E VIOLÊNCIA EPISTÊMICA 
 	O conceito de raça na América foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas para assegurar suas conquistas. Posteriormente, com a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo, adveioa elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e os não-europeus. Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desde então demonstrou ser o mais eficaz e durável instrumento de dominação social universal, pois dele passou a depender outro igualmente universal, no entanto mais antigo, o de gênero: os povos conquistados e dominados foram postos numa situação natural de inferioridade, e consequentemente também seus traços adquiridos, bem como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo, a raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade e no modo básico de classificação social universal da população mundial. 
Além do processo histórico que consolidou na ideia de raça a diferença entre conquistadores e conquistados, podemos apontar uma nova estrutura de controle de exploração do trabalho dos recursos e da produção-apropriação-distribuição de produtos no processo de constituição histórica da América, que foi articulada em torno da relação capital e do mercado mundial. Incluíram-se a escravidão, a servidão, a pequena produção mercantil, a reciprocidade e o salário. Conforme afirma Anibal Quijano, o novo padrão envolvia a articulação entre raça e capitalismo na criação e expansão crescente da rota comercial atlântica. [footnoteRef:16] [16: QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Edgardo Lander (org). Ciudad Autónoma Buenos Aires: ColecíonSurSur, CLACSO, 2005. p. 117. ] 
Nesse contexto, podemos ressaltar a homogenização, através das concepções racialistas de populações negras inteiras, o que possibilitou uma visão que se assenta sobre um processo de desumanização.[footnoteRef:17] Este processo em uma perspectiva teórica pode ser denominado de colonialidade do ser [footnoteRef:18] ao qual está ligado tanto à experiência vivida da colonização e seus impactos na linguagem, como também na necessidade de apontar os efeitos dessa colonialidade em diferentes domínios, inclusive na mente dos colonizados. [footnoteRef:19] [17: “...Afinal, se aquela criança negra “é feia”, todos os negros também o são,,.”(OLIVEIRA, Luiz Fernando e LINS, Mônica Ferreira. “Que criança feia! Por que a mãe dela está feliz? Ela nunca vai ficar branca”: reflexões teóricas sobre crianças e relações raciais. Educer et Educere Revista de Educação. Vol. 10 Número 20 jul/dez. 2015, p. 675). (p. 671-685)] [18: MIGNOLO, Walter. Os esplendores e as misérias das ciências: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versidade epistêmica. In: Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências. Org. Boaventura de Sousa. Porto: Afrontamento, 2003, p. 688.] [19: QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Edgardo Lander (org). Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina: ColecíonSurSur, CLACS. 2005, p. 117-118.] 
Antes de aprofundarmos esse aspecto faz-se necessário proceder á distinção dos dois conceitos relacionados, porém distintos, de colonialismo e colonialidade. Aníbal Quijano nos esclarece que o colonialismo denota a relação de um povo que está sob o poder político e econômico de outra nação. Tal termo tem seu entendimento limitado ao período específico da colonização histórica, desaparecendo com a independência, ou com a descolonização. Por outro lado, a colonialidade se refere ao vínculo entre o passado e o presente, no qual emerge um padrão de poder resultante da experiência moderna colonial, que se sustenta no conhecimento, na autoridade, no trabalho e nas relações sociais intersubjetivas. Logo, este conceito não se limita ao período de colonização, mas implica a continuidade das formas perversas coloniais de dominação após o fim da colonização. Nesse sentido, segundo Quijano, o colonialismo se refere a um padrão de dominação e exploração em que: 
O controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população determinada possui uma diferente identidade e as suas sedes centrais estão, além disso, em outra jurisdição territorial. Porém nem sempre, nem necessariamente, implica relações racistas de poder. O colonialismo é, obviamente, mais antigo, no entanto a colonialidade provou ser, nos últimos 500 anos, mais profunda e duradoura que o colonialismo. Porém, sem dúvida, foi forjada dentro deste, e mais ainda, sem ele não teria podido ser imposta à inter-subjetividade de modo tão enraizado e prolongado. [footnoteRef:20] [20: QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (Orgs.). Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar / Universidad Central-IESCO / Siglo del Hombre Editores, 2007, p. 93 (p. 93-126).] 
Ainda, diferenciando colonialismo e colonialidade, Nelson Maldonado-Torres desenvolve o seguinte argumento:
Colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberania de um povo reside no poder de outro povo ou nação e que constitui tal nação num império. Diferente desta ideia, a colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, porém, ao invés de estar limitado a uma relação formal de poder entre os povos ou nações, refere-se à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça. Assim, ainda que o colonialismo tenha precedido à colonialidade, esta sobrevive após o fim do colonialismo. A colonialidade se mantém viva nos manuais de aprendizagem, nos critérios para os trabalhos acadêmicos, na cultura, no senso comum, na autoimagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos, e em tantos outros aspectos de nossa experiência moderna. Enfim, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente. [footnoteRef:21] [21: MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago e GROSFOGUEL, Ramón. (Orgs.). El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar/Universidad Central-IESCO/Siglo del Hombre Editores, 2007., p. 131.] 
Assim, segundo Luiz Fernandes de Oliveira e Mônica Regina Ferreira Lins “o colonialismo é uma imposição política, militar, jurídica e administrativa”, cabendo esclarecer que o colonialismo “na forma da colonialidade, chega às raízes mais profundas e sobrevive ainda hoje, apesar da descolonização nos séculos XIX e XX”. Por fim, concluem: “O que estes autores nos mostram é que apesar do fim dos colonialismos modernos, a colonialidade sobrevive. Apesar de o colonialismo tradicional ter chegado ao seu fim as estruturas subjetivas, os imaginários e a colonização epistemológica ainda estão presentes.”[footnoteRef:22] Colonialidade não é o "passado" da modernidade, mas sua "face epistemológica". É a isso que se refere a categoria da "colonialidade do poder", expressão sugerida pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano.[footnoteRef:23] [22: OLIVEIRA; LINS, op. cit., p. 676.] [23: QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, cultura e conhecimento na América Latina, In: Pensar (in) as intercepções. Teoria e prática da crítica pós-colonial. Org. S. Castro Gomez, O. Guardiola-Rivera, C. Millan Benavides. Santafé de Bogotá: CEJA: 1999, p. 99-109.] 
O principal debate a ser desenvolvido sobre o tema diz respeito à negação de um status humano para os indígenas e africanos, e tambémcomo é refletida a colonialidade do ser na história da modernidade pós-colonial que, segundo Walsh, insere nesse contexto vários elementos relacionados com a liberdade do ser e da história do indivíduo subalternizado por uma violência epistêmica.[footnoteRef:24] Nesse sentido, Frantz Fanon questiona: “Como é uma negação sistemática do outro, uma decisão furiosa de privar o outro de qualquer atributo de humanidade, o colonialismo leva o povo dominado a perguntar-se constantemente: “Quem sou eu na realidade?” [footnoteRef:25]. Finalmente, ele conclui: [24: WALSH, Catherine. Introdución - (Re) pensamiento crítico y (de) colonialidad. In: WALSH, Catherine. (Org.). Pensamiento crítico y matriz (de)colonial. Refexiones latinoamericanas. Quito: Ediciones Abya-yala, 2005. p. 24. ] [25: FANON, Frantz. Os condenados da terra. Lisboa: Ulisseia limitada 1961. Tradução de Serafim Ferreira, p. 263.] 
O mundo colonial é um mundo maniqueu. Não basta ao colono limitar fisicamente, quer dizer, com a ajuda da sua polícia e dos seus soldados, o espaço do colonizado. Como para ilustrar o carácter totalitário da exploração colonial, o colono faz do colonizado uma espécie de quintaessência do mal. A sociedade colonizada não se define apenas como uma sociedade sem valores. Não basta ao colono afirmar que os valores o abandonaram, ou melhor, não habitaram nunca o mundo colonizado. O indígena declarou-se impermeável à ética, ausência de valores, mas também negação de valores. É, atrevemo-nos a dizê-lo, o inimigo dos valores. Neste sentido, é um mal absoluto. 
Elemento corrosivo, destruidor de tudo o que o rodeia, elemento deformador, capaz de desfigurar tudo o que se refere à estética ou à moral, depositário de forças maléficas, instrumento inconsciente e irrecuperável de forças cegas.[footnoteRef:26] [26: Ibidem, p. 36-37.] 
	Dessa forma, como inferem Luiz Fernando de Oliveira e Mônica Regina Ferreira Lins[footnoteRef:27], “a violência epistêmica se constrói em torno do conceito de raça, no qual novas categorias foram criadas como branco, negro, índio, mestiço etc. e relaciona sujeitos numa classificação social de forma vertical.” Ainda, concluem com base em outros autores, tais como Maldonado-Torres e Dussel, respetivamente que “essa ideia de seres não europeus como inferiores produziu formas de desumanização. Além disso, “a negação que o europeu faz do outro colonizado, a forma como desconhece a alteridade e o modo como relega o diferente, o converte em um não ser. Esta, portanto, foi a experiência vivida na colonialidade.”[footnoteRef:28] [27: OLIVEIRA; LINS, op. cit., p. 676] [28: Ibidem, p. 677.] 
	Finalmente, Luiz Fernando de Oliveira e Mônica Regina Ferreira Lins apoiados nos estudos de Fanon e Maldonado-Torres, chamam a atenção para o fenômeno da invisibilidade das experiências vividas pela colonialidade do ser, a ser persistentes do racismo como enfatizada logo no título provocativo do trabalho: “Que criança feia” Por que a mãe dela está feliz? Ela nunca vai ficar branca: Reflexões teóricas sobre crianças e relações raciais”. Cabe transcrever aqui uma definição de racismo, acolhida e comentada por esses pesquisadores brasileiros:
O racismo é a discriminação social que tem por base um conjunto de julgamentos pré-concebidos que avaliam as pessoas de acordo com suas características físicas, em especial a cor da pele. Baseada na preconceituosa ideia de superioridade de certas etnias, tal forma de segregação está impregnada na sociedade brasileira e acontece nas mais diversas situações. (http://www.guidedireitos.org Acessoem 04 jun.. 2015).[footnoteRef:29] [29: Ibidem, p. 672.] 
	Essa definição bastante elucidativa deixa à mostra a profunda conexão entre racismo e violência epistêmica.
4. A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE NECROPOLÍTICA: A CONTRIBUIÇÃO DE MBEMBE
Para a realização deste estudo, se revelou essencial a leitura obrigatória Joseph-Achille Mbembe, conhecido como Achille Mbembe, um teórico político, historiador,  nascido na República dos Camarões em 1957. [footnoteRef:30] Atualmente é professor de História e de Ciências Políticas do Instituto Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul, sendo considerado um dos mais prestigiados intelectuais africanos na contemporaneidade. Sua trajetória acadêmica teve início na década de 1980 e os seus trabalhos, em Filosofia e Ciências Humanas, já foram traduzidos para diversas línguas tais como “Necropolítica” e “Crítica da Razão Negra” entre outros. [30: Achille Mbembe nasceu perto de Otélé nos Camarões Franceses em 1957. Obteve seu Ph.D. em história na Universidade de Sorbonne em Paris, França, em 1989. Subsequentemente obteve um D.E.A. em ciência política no Instituto de Estudos Políticos na mesma cidade. Já teve cargos na Universidade Columbia em Nova Iorque, Instituto Brookings in Washington, D.C., Universidade da Pensilvânia, Universidade da Califórnia em Berkeley, Universidade Yale, Universidade Duke e o Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais na África em Dakar, Senegal. Foi professor assistente de História na Universidade Columbia, entre 1988 e 1991, pesquisador no Instituto Brookings entre 1991 e 1992, professor associado de História na Universidade da Pensilvânia entre 1992 e 1996, diretor executivo do Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais na África entre 1996 e 2000. Mbembe foi professor visitante na Universidade da Califórnia em Berkeley em 2001 e professor visitante na Universidade Yale em 2003.[3] Atualmente é professor-investigador de História e Política no Instituto de Pesquisa W. E. B. Dubois da Universidade Harvard. ] 
Seus estudos estão baseados no pensamento de Frantz Fanon, que foi um marco intelectual e político de grande envergadura para compreensão mais crítica das relações de poder nas sociedades contemporâneas. Registre-se que Frantz Fanon teve sua tese de doutorado, “Pele negra e máscaras brancas”, reprovada em virtude do racismo que ele sofreu. Na sua obra “Os condenados da terra”, o filósofo propôs a África como ponto de partida, criticando o “espírito europeu”, que justificou seus crimes coloniais e a escravização em nome de um projeto universal de civilização. Nesse sentido, o camaronês Achille Mbembe prossegue com essas reflexões e, ainda, sob a influência das leituras de Michel Foucault,[footnoteRef:31] complementa o seu pensamento de que a escravização negra é um retrato incontornável da experimentação biopolítica, um tipo de relato histórico da emergência do terror moderno. [footnoteRef:32] [31: A principal questão relevante que podemos examinar em Fanon, Foucault e Mbembe, numa contextualização de necropoder e necropolítica, é a tese de biopoder e a biopolítica. Os conceitos de biopoder e biopolítica não são suficientes para uma compreensão do cenário político contemporâneo, conforme já mencionado.] [32: MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Traduzido por Renata Santini. São Paulo: Revista Arte & Ensaios do Programa de Pós-Graduação da Escola de Belas Artes da UFRJ. 2018. p. 28.] 
Esses dois nomes, Frantz Fanon e Achille Mbembe são os pensadores mais influentes nos circuitos acadêmicos atuais nas abordagens sobre a constituição do racismo estrutural na sociedade contemporânea. Fanon está associado aos estudos pós-coloniais e às abordagens decoloniais, colocando o tema central do racismo para a compreensão do atual cenário político, cuja leitura é considerada um divisor de águas quando se estuda a violência epistêmica e a colonialidade do ser. Por sua vez, Mbembe é, na atualidade, um dos maiores intelectuais mais prestigiados, tendo introduzido um novo conceito para reflexão sobre o racismo: a necropolítica, o poder de ditar quem deve viver e quem deve morrer, onde há uma política que parte da exclusão para o extermínio. [footnoteRef:33] [33: Ibidem, p. 6. ] 
 
4.1 Para além da concepção de biopoder
	Mbembe argumenta, em seu trabalho “Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte”, cujoimpacto sobre representantes contemporâneos do pensamento social brasileiro é digno de nota, que as formas contemporâneas que submetem a vida ao poder da morte (a necropolítica) reconfiguram as conexões entre resistência, sacrifício e terror. Apesar de aprofundar um diálogo fundamental com a obra de Michel Foucault, Mbembe buscou comprovar que a noção foucaultiana de biopoder se revela insuficiente para elucidar essas referidas formas de submissão e, por consequência, os modos de subjetivação decorrentes. Além disso, nos seus estudos Mbembe observa que a noção foucaultiana de biopoder não consegue lançar luzes suficientes sobre os fenômenos políticos contemporâneos, ainda que não deixe de ser relevante. É nesse contexto que surge o notável esforço dos estudos de Mbembe para elaborar os conceitos de necropolítica e neropoder. [footnoteRef:34] [34: Mbembe, assim, questiona se a noção de biopoder é suficiente para a compreensão das maneiras contemporâneas em que a política, através da guerra, faz do assassinato do inimigo o “objetivo primeiro e absoluto” Ibidem, p. 5. ] 
Logo no início do ensaio “Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte”, Mbembe apresenta inicialmente uma reflexão sobre a expressão máxima de soberania, concebida como “o poder e a capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”[footnoteRef:35]. Ainda, na parte introdutória do livro, Mbembe em consonância com os pressupostos teóricos relacionados ao termo biopoder, concebido por Michel Foucault, afirma que “ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação do poder” [footnoteRef:36]. [35: Ibidem, p. 5.] [36: Ibidem, p. 5.] 
Mbembe também constrói as hipóteses que irão nortear suas análises no decorrer do referido livro: a problematização do termo biopoder que é abordado pelo filósofo Michel Foucalut: “aquele domínio da vida sobre o qual o poder estabeleceu o controle.” [footnoteRef:37] E indaga: “Mas sob quais condições práticas se exerce o poder de matar, deixar viver ou expor à morte? Que é o sujeito dessa lei? O que a implementação de tal direito no diz sobre a pessoa que é, portanto, condenada à morte e sobre a relação que opõe essa pessoa a seu assassino/a?” [footnoteRef:38] [37: Ibidem, p. 5-6.] [38: Ibidem, p. 6.] 
É nesse contexto que o cientista político questiona a noção de biopoder, se seu conteúdo apresenta-se como uma categoria suficiente para quantificar as medidas na atualidade em que o político, fazendo uso da guerra, da resistência ou do enfrentamento ao terror elege o assassinato do oponente sua principal meta. Finalmente, ele sintetiza com a seguinte reflexão: 
A guerra, afinal, é tanto um meio de alcançar a soberania como uma forma de exercer o direito de matar. Se considerarmos a política uma forma de guerra, devemos perguntar: que lugar é dado à vida, à morte e ao corpo humano (em especial o corpo ferido ou massacrado) e como eles estão inscritos na ordem do poder [footnoteRef:39] [39: Ibidem, p. 6-7.] 
4.2. Exercício da soberania, política e trabalho da morte
	Na parte intitulada “Política, o trabalho da morte e o ‘devir do sujeito’” de seu estudo “Necropolítica” o historiador esclarece que para responder as questões formuladas por ele na seção anterior será necessário examinar, além dos pressupostos teóricos do biopoder e suas relações com a soberania, o conceito de estado de exceção. 
Nesse sentido, Mbembe adverte que o estado de exceção tem sido em regra estudado quando se aborda o nazismo, totalitarismo, os campos de concentração e extermínio. Entretanto, ele esclarece que o objeto do seu estudo não é debater o extermínio dos judeus ou tomá-lo como exemplo para construção da sua hipótese. Daí ele chamar atenção para um ponto importante do debate da sua pesquisa: “os campos de morte em particular têm sido interpretados de diversas maneiras como a metáfora central para a violência soberana e destrutiva e como último sinal do poder absoluto do negativo.” [footnoteRef:40] Ainda, acrescenta o fato “de seus ocupantes serem desprovidos de estatuto político e reduzidos a seus corpos biológico”, citando Giorgio Agamben, com base nessa explicação, o cientista político destaca que o campo é “o lugar no qual se realizou a mais absoluta condicio inhumana que já se deu sobre a terra”. [footnoteRef:41] [40: Ibidem, p. 7.] [41: AGAMBEN, Giorgio. Apud MBEMBE, 2018. p. 8.] 
Mbembe inicia suas discussões tendo em mente que a modernidade se fez presente em uma pluralidade de conceitos de soberania e biopolítica, que se mostrou alheia à crítica sobre política contemporânea. Segundo ele, o pensamento que norteia a modernidade tem apoio no conceito de razão, que é um dos principais elementos do projeto de modernidade e do território da soberania.[footnoteRef:42] Dessa forma, as expressões máximas de soberania advêm da confecção de leis gerais pelo povo, o qual é composto por homens e mulheres livres e iguais.[footnoteRef:43] Finalmente, ele conclui que a política possui uma dúplice definição: “um projeto de autonomia e a realização de um acordo em uma coletividade mediante comunicação e reconhecimento. É isso, dizem-nos, que a diferencia da guerra”. [footnoteRef:44] [42: MBEMBE, p. 9.] [43: Ibidem, p. 9.] [44: Ibidem, p. 9.] 
Mbembe, assim, delimita que é com fundamento em uma diferenciação entre razão e desrazão que a crítica contemporânea elabora conceitos sobre política, comunidade e sujeito. Retoma a seguir o tema para definir “a soberania como um duplo processo de ‘autoinstituição’ e ‘autolimitação’ (fixando em si os próprios limites para si mesmo)”.[footnoteRef:45] Também apresenta o conceito de exercício da soberania que “consiste na capacidade da sociedade para autocriação pelo recurso às instituições inspirado por significações específicas sociais e imaginárias”. [footnoteRef:46] [45: Ibidem, p. 10.] [46: Ibidem, p 10.] 
 Por outro lado, Mbembe nos esclarece que sua principal apreensão de análise é com relação às formas de soberania cujo projeto central visa “a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações” [footnoteRef:47]. Além disso, o autor sugere outras categorias como análise de leitura da política, da soberania e sujeito do sujeito diante das experiências contemporâneas de destruição humana, tais como a vida e morte. Para tanto, o autor irá colacionar esses ensinamentos elaborados por G. W.F. Hegel e Georges Betaille. [footnoteRef:48] [47: Ibidem, p 10-11.] [48: Ibidem, p. 11.] 
Nessa perspectiva, Mbembe desenvolve o seu estudo com a discussão elaborada por Hegel[footnoteRef:49] sobre a relação entre morte e o devir do sujeito, que propõe uma definição bipartida de negatividade, cabendo frisar que o sujeito irá, em primeiro lugar, negar a natureza e, em segundo, promover uma transformação do elemento que será negado. Disso resulta a criação de um mundo em que o sujeito ficará exposto. A morte, segundo a teoria hegeliana, é essencialmente voluntária, por causa dos riscos conscientemente assumidos pelo sujeito. Nesse processo ocorre a derrota da natureza animal do sujeito causando assim a sua constituição. Ao enfrentar a morte o sujeito é lançado na história. É nessa por perspectiva que Hegel irá conceber a vida do espírito como aquela que pressupõe a morte, porém a aceita. Nessa linha de pensamento, entende-se a “política como a morte que vive uma vida humana”.[footnoteRef:50] [49: HEGEL, G.W.F Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002.] [50: HEGEL, 2002 apud MBEMBE, 2018, p. 12.] 
Por outro lado, segundo Mbembe, Georges Bataille também apresenta uma concepção crítica sobre como a morte estrutura a ideia de soberania e sujeito. Dessa forma, ele define “morte e soberania como paroxismo de troca e superabundância”. [footnoteRef:51] Para esse autor: “a vida é falha apenas quando a morte a toma a toma como refém. A vida em si só existe em espasmos e no confronto com a morte.”[footnoteRef:52] Ainda estabelece como limitação da morte, que esta não se reduz ao aniquilamento do ser, sendo também uma autoconsciência. E também situa a morte no reino do dispêndio do absoluto, já que “a vida é o domínio da soberania”.[footnoteRef:53] Institui, por fim, uma correlação entre morte, soberania e sexualidade. Para Bataille a soberania se apresenta sob muitas configurações, porém, em estreita compreensão, podendo entendê-la como rejeição dos limites que o receio da morte submete o sujeito. A esse respeito, importa transcrever a argumentação desenvolvida por Mbembe no seu estudo: [51: BATTAILE, George. 1998 apud MBEMBE, 2018, p. 13.] [52: BATTAILE, George, apud MBEMBE, 2018, p. 13.] [53: BATTAILE, George, apud MBEMBE, 2018, p. 14.] 
Ao tratar a soberania como violação de proibição, Bataille reabre a questão dos limites da política. Política, nesse caso, não é o avanço de um movimento dialético da razão. A política só pode ser traçada como uma transgressão em espiral, como aquela diferença que desorienta a própria ideia do limite. Mais especificamente, a política é a diferença colocada em jogo pela violação de um tabu. [footnoteRef:54] [54: MBEMBE, p. 16.] 
 4.3. A condição colonial e violência do estado de exceção: o diálogo com Foucault e Fanon e outros importantes pensadores contemporâneos
Conforme já mencionado anteriormente, o filósofo camaronês Achille Mbembe, em “Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte”, se propõe a refletir sobre a morte como uma estratégia exercida pelo poder. O autor questiona se a concepção de foucaultiana de biopoder seria suficiente para dar conta das formas contemporâneas de violência, considerando-a insuficiente; em contrapartida, formula os conceitos de necropoder e necropolítica para pensar as novas formas de submissão da vida ao poder da morte.
Com o objetivo de discutir as condições práticas para se exercer o poder de matar, Mbembe não somente desvela, mas também ressignifica a concepção de soberania, criticando as teorias normativas da democracia, que tomam a soberania como sinônimo de normas produzidas para um povo, aspirando a sua “autoinstituição” ou, de outro modo, um acordo coletivo que, dentro de um território, visa à autonomia de um povo. Para ele, o projeto central da soberania é a “instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações”[footnoteRef:55]. Percebe-se, então, que esse autor aborda a soberania como o direito de matar o outro. A fim de justificar sua argumentação, recorre ao conceito de biopoder em Foucault e o relaciona com outros dois: estado de exceção e estado de sítio[footnoteRef:56]. [55: Ibidem, p. 10-11.] [56: Ibidem, p. 16-17.] 
Sob o prisma foucaultiano, a concepção de biopoder se refere a um modelo de poder que, para gerir a vida em sociedade, tornando-a protegida, permite a morte do outro ser que não pertence àquela sociedade [footnoteRef:57]. Nesse sentido, opera uma espécie de divisão entre vida e morte em termos biológicos. Segundo Mbembe, para Foucault o nazismo materializou o funcionamento do biopoder, uma vez que permitiu o extermínio de judeus e outros grupos humanos em prol da superioridade da população alemã. Assim, o racismo é o que autoriza, segundo o filósofo francês, o direito soberano de matar na contemporaneidade. [footnoteRef:58] [57: FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Còllege de France (1975-1976). 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 287.] [58: MBEMBE, p. 17-18.] 
Mbembe concorda com Foucault ao compreender que os mecanismos de biopoder estão inscritos em todos os Estados modernos, porém vai mais além. Ele fundamenta que a possibilidade de matar o outro é vista como elemento constitutivo do poder do Estado na modernidade. Sob o argumento de estado de exceção, isto é, um estado de emergência para solucionar um problema, instala-se um estado de sítio e se suspendem direitos e garantias dos cidadãos, permitindo que mortes sejam executadas sem que produzam o efeito de crime condenável, o que resulta em um terror coletivo. [footnoteRef:59] [59: Ob, cit, p. 20-21.] 
Adotando uma perspectiva histórica, o autor afirma que a ligação entre a modernidade e o terror que o nazismo concretiza provém de várias fontes. Cita, entre elas, a escravidão, por ele considerada como uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica. Nesse modelo, na maioria das vezes, o escravo não é morto no sentido biológico, mas é mantido vivo em um “estado de injúria”, tornando-se uma vida mediada por processos de crueldade e profanidade, que obedecem a um fim econômico. Outros exemplos apresentados se referem às colônias e ao regime de apartheid, onde estado de exceção e estado de sítio se intercalam e formam zonas de guerra e desordem.[footnoteRef:60] Afirma Mbembe “as colônias são o local por excelência em que os controles e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos – a zona em que a violência do estado de exceção supostamente opera a serviço da ‘civilização’”.[footnoteRef:61] [60: Ibidem, p. 35-36.] [61: Ibidem, p. 35.] 
Frantz Fanon é um precursor desse tipo de análise, com sua tese de doutorado “Pele negra e máscaras brancas” e “Os condenados da terra”. Ele teve o mérito de propor a África como ponto de partida, criticando o “espírito europeu” que justificou seus crimes coloniais e a escravização em nome de um projeto universal de civilização. Nesse caminho, o camaronês Achille Mbembe prossegue com meditações fanonianas e leituras de Michel Foucault, argumentando que a escravização negra é um retrato incontornável da experimentação biopolítica, um tipo de relato histórico da emergência do terror moderno. 
Segundo Mbembe, Frantz Fanon expõe de forma magistral a espacialização da ocupação colonial. “Para ele, a ocupação colonial implica, acima de tudo, uma divisão do espaço em compartimentos. Envolve a definição de limites e fronteiras internas por quartéis e delegacias de polícia; está regulada pela linguagem da força pura, presença imediata e ação direta e frequente; e isso se baseia no princípio da exclusão recíproca.”[footnoteRef:62] Finalmente, destaca como o poder de morte atua, ainda citando o próprio Fanon: [62: FANON, Frantz. Apud Mbembe. p. 40.] 
A cidade do colonizado [...] é um lugar de má fama, povoado por homens de má reputação. Lá eles nascem, pouco importa onde ou como; morrem lá, não importa onde ou como. É um mundo sem espaços; os homens vivem uns sobre os outros. A cidade do colonizado é uma cidade com fome, fome de pão. De carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma vila agachada, uma cidade ajoelhada.[footnoteRef:63] [63: Ibidem, p. 41.] 
Daí a necessidade de atentarmos para a forma como vêm ocorrendo determinadas mortes em uma perspectiva de necropoder, isto é, numa formação específica de terror e medo.[footnoteRef:64] A ocupação colonial contemporânea da Palestina é vista por Mbembe como a forma mais bem-sucedida de necropoder. Isso ocorre porque, segundo o autor, a violência e também a soberania reivindicam um fundamento divino: “a qualidade do povo é forjada pela adoração de uma divindade mítica, e a identidade nacional é imaginada como identidade contra o outro, contra outras divindades” [footnoteRef:65]. Assim sendo, a dinâmica, diferentemente dos modelos antigos de colonização, não mantém relação exclusiva com a preservação do território, mas com uma identidade religiosa. Mais do que isso, ocorre uma fragmentação territorial, cujo objetivo é a segregação, ultrapassando o caráter disciplinar e alcançando o patamar de exclusão da população. [64: MBEMBE, p. 23.] [65: Ibidem, p. 42.] 
Feitas tais observações, constatamos uma convergência dos posicionamentos de Mbembe sob o prisma de outros autores na contemporaneidade. Sem fazer referência expressa, podemos reconhecer como as reflexões de Mbembe também se aproximam do pensamento de Giorgio Agamben, em Homo sacer[footnoteRef:66], que abrange o modelo biopolítico como contribuiçãooriginal do poder soberano de matar. Nesse sentido, Agamben atualiza o conceito romano arcaico de homo sacer para se referir a uma vida indigna de ser vivida, que tampouco adquire algum valor e, portanto, pode ser considerada vida matável. No mesmo caminho, Judith Butler, em Quadros de Guerra [footnoteRef:67], analisou as guerras contemporâneas e os modos como certas vidas são precarizadas, de forma que sequer podem ser qualificadas como vidas. A autora elenca, dentre as funções do poder, o trabalho de enquadrar certas biografias em molduras que tornam suas ausências sequer passíveis de luto. [footnoteRef:68] [66: AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.] [67: BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.] [68: Ibidem, p. 13-53.] 
5. RACISMO ESTRUTURAL, INSTITUCIONAL E POLÍTICO: A GESTÃO NECROPOLÍTICA DO ESPAÇO URBANO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
	Para tratar do tema, racismo estrutural, institucional e político [footnoteRef:69], inicialmente, partiremos da definição apresentada por Mbembe[footnoteRef:70] com base em Michel Foucault[footnoteRef:71]: [69: De maneira ainda mais branda e por muito tempo imperceptível, essa forma de racismo tende a ser ainda mais perigosa por ser de difícil percepção. Trata-se de um conjunto de práticas, hábitos, situações e falas embutido em nossos costumes e que promove, direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito racial.] [70: MBEMBE, A. Necropolítica. Sevilla: Fundación BIACS. 2006, p. 22-23.] [71: FOUCAULT, Michel. Genealogía del racismo. De la guerra de las razas al racismo de Estado. Trad. do francês para espanhol Alfredo Tzveibely. Madrid: La Piqueta, 1992. p. 90.] 
El racismo es, en términos foucaultianos, ante todo una tecnología que pretende permitir el ejercicio del biopoder, ‘el viejo derecho soberano de matar’. En la economía del biopoder, la función del racismo consiste en regular la distribución de la muerte y en hacer posibles las funciones mortíferas del Estado. Es, según afirma, ‘la condición de aceptabilidad de la matanza’.
O racismo, enquanto mecanismo de um sistema político de dominação, é sustentado em duas ideias que se complementam: a primeira, que existem diferentes raças humanas; e a segunda, que existem raças humanas que são inferiores às outras. Essa concepção se ampara, desde o início, em uma espécie de nacionalismo exagerado, segundo Hannah Arendt[footnoteRef:72], e ganha proporções maiores a partir da intensificação do comércio entre europeus e africanos no período das grandes navegações, com as conquistas de terras além do Atlântico. O racismo agora passa a ter como critério a cor da pele, e o africano ganha dois status: o de negro e o de raça inferior. Sendo concebido como um ser inferior, despossuído de razão e alma, na concepção dos europeus, o negro escravizado foi utilizado no processo de escravidão dos africanos, que se tornou o combustível para o desenvolvimento do capitalismo dentro do processo colonial. Tirar-lhes a vida e a dignidade era uma das estratégias para colonizá-los em terras distantes e depois na sua própria terra. Milhões de negros foram assassinados, outros tantos mutilados; eram corpos que, se não produzissem riquezas para os seus senhores, sucumbiam aos sofrimentos e torturas até a morte. Essa constitui uma das marcas do ideário racista da sociedade capitalista. Aliás, não se pode falar de capitalismo sem que para tanto sejamos imediatamente remetidos ao tema do racismo estrutural, institucional e politico. [footnoteRef:73] [72: ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013.] [73: OLIVEIRA, Denilson Araújo. O marketing urbano e a questão racial na era dos megaempreendimentos e eventos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista Brasileira Estudos Urbanos e Regionais v.16, n.1/ MAIO 2014, p.95.] 
Nesse sentido, como bem demonstrou o filósofo e cientista político Achilles Mbembe[footnoteRef:74], o negro foi inventado como um jazigo, ou melhor, um símbolo de morte e destituído de qualquer humanidade. São seres cooptados pelo capitalismo para o trabalho braçal, pois, segundo a teoria racista, aguentam mais dor. Entretanto, tal teoria ainda persiste intensamente na atualidade presente. Como bem especificou Denilson, basta verificar as práticas racistas de médicos ao prescreverem às negras menos anestesia na hora do parto do que às mulheres brancas, porque, no seu modo de ver, as negras aguentam mais dor do que as mulheres brancas. [footnoteRef:75] O racismo, como sintetizou Simone de Beauvoir[footnoteRef:76], precisa produzir a indignidade para justificar o extermínio dos negros e de seus patrimônios, mesmo não havendo crime e assassinos. [74: MBEMBE, Archille. Crítica à Razão Negra. Antígona: Lisboa, 2014.] [75: OLIVEIRA, Denilson Araújo de. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-negro-drama-e-revoltas-nas-mentalidades/ Acesso em: 23 jul. 2019.] [76: BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. São Paulo: Difel, 1967. Apud, OLIVEIRA, Denilson Araújo de. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-negro-drama-e-revoltas-nas-mentalidades/. Acesso em: 23 jul. 2019.] 
5.1. A permanência das práticas racistas na administração das cidades brasileiras
A fim de analisar as tensões raciais no contexto brasileiro, Denilson Araújo de Oliveira[footnoteRef:77] se propõe a estudar o racismo de extermínio (necropolítica) na cidade do Rio de Janeiro no seu trabalho “Gestão racista e necropolítica do espaço urbano: apontamento teórico e político sobre o genocídio da juventude negra na cidade do Rio de Janeiro”. [footnoteRef:78] Nesse estudo, o autor relaciona as causas que concorreram para o acirramento dos conflitos raciais, a intolerância religiosa com destruição de terreiros, o racismo ambiental, eventos de discriminação racial em espaços públicos e privados, linchamentos e políticas de embranquecimento da paisagem/território, entre outras. Também investiga a inscrição espacial do projeto de dominação racial e do capital no espaço urbano do Rio de Janeiro. [77: Professor Adjunto do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da UERJ. É docente dos cursos de Graduação e Pós-graduação (Stricto Sensu e Lato Sensu) de Geografia da FFP-UERJ. No Mestrado pertence à linha de Geografia e Relações de Poder. Possui graduação (Licenciatura e Bacharelado) (1999-2004), Mestrado (2004-2006) e Doutorado (2009-2011), todos em Geografia pela Universidade Federal Fluminense.  Atualmente coordena o grupo de estudo e pesquisa NEGRA (NÚCLEO DE ESTUDO E PESQUISA EM GEOGRAFIA REGIONAL DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA) que tem as seguintes linhas de pesquisas: 1- As dimensões espaciais das culturas negras em diáspora; 2- Inscrição Espacial do Racismo e do Antirracismo no Espaço Urbano; 3- Novas Metodologias sobre o Ensino de Geografia da África; 4- Pilares do Pensamento Descolonial e das Epistemologias do Sul. Busca, ainda, estabelecer um trabalho interativo com movimentos sociais, consultorias, grupos de estudos e pesquisas da universidade e fora dela, através de projetos de pesquisas, trocas de experiência, visitas, minicursos, palestras e diálogos que possibilitem o aprofundamento de ações políticas e de pesquisas.] [78: OLIVEIRA, Denilson Araújo de. Gestão racista e necropolítica do espaço urbano: apontamento teórico e político sobre o genocídio da juventude negra na cidade do Rio de Janeiro. Esse estudo é resultado parcial das investigações do autor no Núcleo de Estudo e Pesquisa em Geografia Regional da África e da Diáspora da Faculdade de Formação de Professores da UERJ (NEGRA) e foi apresentado no CONGRESSO DE PESQUISADORES NEGROS, 2015. Anais... Nova Iguaçu. Disponível em https://www.academia.edu/36614907/GEST%C3%83O_RACISTA_E_NECROPOL%C3%8DTICA_DO_ESPA%C3%87O_URBANO_APONTAMENTO_TE%C3%93RICO_E_POL%C3%8DTICO_SOBRE_O_GENOC%C3%8DDIO_DA_JUVENTUDE_NEGRA_NA_CIDADE_DO_RIO_DE_JANEIRO_1_Denilson_Ara%C3%BAjo_de_Oliveira_Professor_Adjunto_do_Departamento_de_Geografia_FFP-UERJ_Coordenador_do_NEGRAAcesso em: 23 jul. 2019.] 
De início, o professor Oliveira inspirado nos ensinamentos de Foucault argumenta que no espaço público reorganizou-se “o sistema pelourinho como instrumento de dominação racial e do espetáculo público da morte como governamentabilidade espacial que vigia, pune e elimina vidas descartáveis (FOUCAULT, 2005)” [footnoteRef:79]. São vidas nuas, diria Agamben. Daí complementa sua base de investigação, invocando a concepção de “Necropolítica” construída por Mbembe, quando alega: “A necropolítica foi forjada no projeto colonial ao produzir vidas radicalmente descartáveis (Mbembe. 2014)”. [footnoteRef:80] [79: Ibidem, p. 3.] [80: Ibidem, p. 3.] 
Oliveira enfatiza o seu posicionamento sobre o racismo na contemporaneidade, explicitando seu marco teórico básico: “O sistema pelourinho hoje afirma o vínculo orgânico entre racismo e dominação (MEMMI, 2010) em que o necropoder define que a culpa das mortes são dos próprios mortos, não existindo assassino (MBEMBE, 2006; AGAMBEN, 2004).” Dessa forma, como bem explicita Oliveira: 
Mortes de negros e pobres são assim naturalizadas. Apenas mais um na estatística. Indivíduos sem histórias, identidades e relevância social. Cria-se uma geografia de privilégios elitizados e racializados no uso e apropriação dos espaços na busca por segurança. Logo, espera-se que pobres e negros tenham dois destinos: 1- assumam ‘condutas de dependentes’ (FANON, 2008), isto é, posições subalternas; 2- a comprovação de sua indignidade. [footnoteRef:81] [81: Ibidem, p. 3-4.] 
Por outro lado, influenciado não só pelas leituras de Foucult, mas, sobretudo, por Fanon sobre o fenômeno da violência epistêmica e a invisibilidade da colonialidade do ser, Oliveira elucida também como o racismo distingue os seres que merecem ter uma vida e uma espacialidade ampliada em relação aos que devem ser tratados como descartáveis e uma espacialidade restrita. Nesse sentido, ele sintetiza:
A reprodução deste imaginário colonial torna-se crucial para um ajuste espacial (HARVEY, 2005), pois é necessário deixar os espaços de hegemonia racial puros e sadios. A rotulação de negro como signo de pobreza e de ladrão busca estabelecer um complexo de autoridade aos agressores e complexo de inferioridade e dependência das vítimas (FANON, 2008). [footnoteRef:82] [82: Ibidem, p. 4.] 
Oliveira procura esclarecer, em suas reflexões teóricas, como o racismo ao se inscrever espacialmente cria campos, isto é, territórios ‘fora/dentro’ da ordem jurídico-política, permitindo materializar o estado de exceção focalizado por Agamben, que se destaca como uma forma histórica no controle da espacialidade negra. “Logo o medo branco da onda negra transforma-se numa arma para quem gera e se utiliza como pretexto para ações arbitrárias e antidemocráticas sob o discurso da lei e da ordem.” [footnoteRef:83] Finalmente, conclui: [83: Ibidem. p. 4-5.] 
[...] O exercício necro/biopolítico do Estado estabelece um urbanismo de defesa social criando espaços luminosos emblemas da modernidade e espaços opacos expressão do mal-estar e do patológico da colonialidade a serem eliminados (GROSFOGUEL, 2014; SANTOS, 2002). [footnoteRef:84] [84: Ibidem, p. 6.] 
[...]
Mbembe (2014) aponta que o negro na modernidade é um ser que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e queremos compreender. As violações contra os direitos sociais e humanos encontram pouco respaldo na esfera municipal, estadual e federal, assim como nos três poderes (legislativo, executivo e judiciário). Este projeto necropolítico de gestão da cidade estabelece e reproduz fascismos sociais. O necropoder, instrumento base para gestão racista do espaço urbano, emerge coisificando e aniquilando a integridade moral de pobres e negros (MBEMBE, 2006). [footnoteRef:85] [85: Ibidem. p. 6.] 
5.2. A assimilação dos conceitos de necropolítica e necropoder de Mbembe por parte de Oliveira em seu estudo sobre o Rio de Janeiro 
	Os governos e a administração da cidade do Rio de Janeiro vêm revelando, reiteradamente, em sua política, critérios racistas em uma perspectiva estrutural, institucional e político. Vários exemplos podem ser citados. Os autos de resistências, as UPPs, o racismo ambiental praticado por megaempreendimentos financiados pelo Estado que apontam uma necropolítica (trabalho de gestão da morte).[footnoteRef:86] Nesse sentido, o caso de Rafael Braga Vieira é emblemático. [footnoteRef:87] Vemos a gestão bio/necropolítica do espaço, através de práticas racistas e classistas, ressurgirem quando se fez uso desse rapaz como bode expiatório. [86: Ibidem. p. 6.] [87: “Nos protestos ocorridos em junho de 2013, Rafael Braga Vieira, um jovem negro, analfabeto, pobre, em situação de rua, foi a única pessoa, em todo o território nacional, condenada por ato de violência nessas manifestações. Rafael não estavam nas manifestações, mas foi preso pela polícia do Rio de Janeiro no bairro ao lado onde estavam ocorrendo as manifestações, portando uma garrafa de plástico de desinfetante e água sanitária que ele possuía para levar para o local em que iria dormir na noite de 20 de junho de 2013. No laudo pericial, que deveria ser técnico, o perito afirma que uma garrafa de plástico com desinfetante e água sanitária que são materiais não explosivos seria utilizada para construir explosivos, o chamado coquetel molotov.” Ibidem, p. 6] 
No Rio de Janeiro, desde o início do século XX, o Estado se valia do poder medical como política de segregação que atribui autoridade política aos médicos e sanitaristas. Este correspondia ao poder de regular a vida no meio urbano com o fim de eliminar espaços insalubres. No atual contexto, o exercício do poder medical assume o planejamento estratégico na configuração do meio urbano, através da higienização de paisagens emblemáticas que têm uma dimensão geopolítica, afetando os grupos que não são considerados “normais” ou mais precisamente os “indesejáveis” para manutenção do status quo. Nesse sentido, salienta Oliveira que o verdadeiro objeto da interdição compulsória vem sendo construído como um mecanismo de poder que visa eliminar do campo visual os “não desejados”. Por isso é “que o combate às cracolândias nunca foi uma questão de saúde pública, pois a medicina nesta lógica não é vista como prática de socorro, e sim, como uma tecnologia de poder e controle populacional sobre a vida administrada desses seres postos como anormais”. [footnoteRef:88] Ademais, “tais ações revelam o receio dos capitalistas raciais de verem as paisagens emblemáticas da cidade maravilhosa manchadas, prejudicando, assim, seus investimentos”. [footnoteRef:89] [88: Ibidem, p. 7.] [89: Ibidem, p. 7.] 
Por outro lado, como ressalta Oliveira, “a atual política de in-segurança pública do governo estadual do Rio de Janeiro tem as Unidades de Polícias Pacificadoras (UPPs) como sua principal prática espacial, um instrumento necropolítico.” Segundo o autor, as UPPs “inauguraram algo inédito no planejamento urbano brasileiro” [...] “que passou a ser utilizado pela primeira vez nas ações de segurança pública urbana”. A saber, um governo necro/biopolítico adotado sobre a população originária marcada por processos de desterritorialização dos hábitos e da cultura e reterritorização em ambientes controlados. Ainda, revela que a pacificação corresponde a uma categoria administrativa de natureza político-militar, “usada na temática indígena no contexto colonial (isto é, o poder pastoral usado para o governo das almas que estavam sendo evangelizadas)”. [footnoteRef:90] [90: Ibidem, p. 8.] 
Dessa forma, as UPPs tornaram-se espaços militarizados e de exceção à legislação vigente, revelando um novo totalitarismo nas favelas. [footnoteRef:91] “As mudanças na soberania nas áreas que antes eram dominadas pelos narcotraficantes pelo domínio militar do Estado não têm significado eliminação dos problemas sociais”. [...] “Inúmeros relatos e várias manifestações populares em favelas de UPPs afirmam a presença de policiais corruptos, autoritários, torturadores que praticamassassinatos, modificam os cenários dos crimes e praticam ocultamentos de corpos”. [footnoteRef:92] [91: Ibidem, p. 9.] [92: Ibidem, p. 9.] 
Conclui o autor: que a instituição Estado funciona sobre as bases do bio/necropoder e, por conseguinte, sua função homicida “somente pode ser assegurada pelo racismo.” [footnoteRef:93] Finalmente, sintetiza que o racismo de Estado tem se revelado como uma gestão exercida no cotidiano dos espaços pobres, banalizando a morte e o mal; nesses contextos, a polícia desempenha “o direito de matar, humilhar, sequestrar, torturar e amedrontar sem que isso seja considerado crime”. [footnoteRef:94] [93: Ibidem, p. 9-10. Ainda, demonstra OLIVEIRA 2015: “As UPPs têm demonstrado que não são tão diferentes de outras políticas de in-segurança, pois tem revelado que nem vivos nem mortos os moradores das favelas são sujeitos de direitos (Idem). Casos são apontados por grupos de direitos humanos que ‘policiais corruptos’ matam inocentes e alteram as cenas dos crimes nas favelas para não serem incriminados, isto é, mesmo mortos os favelados, pobres, especialmente negros, não são sujeitos de direitos. Corpos são silenciados e destituídos de humanidades. São postos como elemento cor padrão de crimes. Pacificar não se constitui instrumento de promoção da cidadania, como o marketing urbano difunde. Em verdade, a pacificação visa produzir deficientes cívicos com o reforço do individualismo, clientelismo e da competitividade, isto é, o mundo do ‘salve-se quem puder’, do ‘vale-tudo’ (SANTOS, 2002) que agora é chamado de empreendedores sociais.” [...] “Por outro lado, as UPPs ao capitalizarem áreas que estavam descapitalizadas para o mercado imobiliário têm despertado intensa especulação em áreas de favelas e criado processos de segregação, na favela, ou seja, espaços luminosos para os turistas internacionais e os jovens brancos abastados e espaços opacos para os moradores mais pobres e negros.” (OLIVEIRA, ibidem, p. 10). ] [94: “As instituições de in-segurança, tem banalizado a morte e o mal (ARENDT, 1999)”. (OLIVEIRA 2015. p. 10).] 
5.3. A violência sofrida pelos negros e sua vulnerabilidade no espaço urbano sob a perspectiva da necropolítica
A cidade do Rio de Janeiro, nas últimas décadas, tem-se transformado no principal laboratório brasileiro das “políticas de cidade turística”, revelado no “marketing urbano e o uso político/ ideológico para se vender uma imagem de cidade cordial e racialmente democrática” [footnoteRef:95]; essa foi construída desde o início do século XX, sobretudo, com base na ideologia do embranquecimento e no mito de uma democracia racial, com vistas a atrair grandes investimentos, empreendimentos e eventos. Nesse contexto, a questão racial é vista como instrumento político/ideológico dessa produção. A gestão racista do espaço urbano é um mecanismo de controle e instituidor de uma ordem espacial. Dessa forma, as ações governamentais reinscrevem o projeto de dominação ao articularem a superioridade de classe e a questão racial; nessas ações se adota o discurso de uma harmonia e democracia das relações raciais, a fim de vender a cidade a megainvestidores nacionais e internacionais. [footnoteRef:96] [95: OLIVEIRA, Denilson Araújo. O marketing urbano e a questão racial na era dos megaempreendimentos e eventos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista Brasileira Estudos Urbanos e Regionais V.16, N.1/ MAIO. 2014, p. 85. ] [96: Ibidem, p. 85.] 
A gestão racista, na cidade do Rio de Janeiro, vem reagendando o ideário do embranquecimento de seu cenário na paisagem dessa localidade; bulevares foram construídos (restituindo novamente a paisagem do mundo civilizado nos trópicos, assim como o fez Pereira Passos há mais cem anos), transformando essa área em atrativo turístico despolitizado. O cais do Valongo, por exemplo, que era o lugar de horror onde seres humanos eram vendidos, é hoje transformado pela burguesia racista carioca, em sua parceria com o Estado, tornando a confirmar que o patrimônio dos negros continua não tendo sua dignidade respeitada. As estátuas dos Deuses Minerva, Marte, Ceres e Mercúrio, que no passado eram usadas para europeizar a paisagem, foram recolocados nos Jardins Suspensos do Valongo, destituindo as imagens de orixás e toda a simbologia afrodiaspórica da região central da cidade, conhecida como Pequena África. [footnoteRef:97] [97: Ibidem, p. 90-91.] 
No contexto das olimpíadas, em plena gestão racista, a Prefeitura implementou uma silenciosa política segregadora dos megaempreendimentos e eventos, gerando ações ‘revitalizadoras’ no Cais do Porto, no Maracanã, obras na Vila Militar no bairro de Deodoro e na Zona Oeste do Rio de Janeiro. O bem-estar produzido foi, concomitantemente, marcado pelo mal-estar gerado para a população negra, majoritária nesses bairros, com as remoções, a militarização de seus territórios, que vem promovendo o genocídio da população jovem e negra. Os telejornais e a mídia brasileira foram os principais instrumentos de propagação dessas ideologias nas suas coberturas diárias de criminalização dos pobres e negros e da glamorização da cidade como capital do turismo.[footnoteRef:98] [98: OLIVEIRA, Denilson Araújo. O marketing urbano e a questão racial na era dos megaempreendimentos e eventos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista Brasileira Estudos Urbanos e Regionais V.16, N.1/ MAIO 2014. p. 92-93.] 
Além disso, como ressalta Oliveira, as UPPs também foram responsáveis pela ação de branqueamento nos espaços públicos onde atuam, através de processos de expropriação e de espoliação regulando a vida dos moradores, e destruindo as condições de existência das culturas negras em ambientes de favelas.[footnoteRef:99] Para Oliveira, bem fundamentado nas leituras de Fanon, “o objetivo não é somente o desaparecimento total da cultura preexistente e destruição do sistema de referência, mas uma agonia continuada que é ‘aprisionada no estatuto colonial, estrangulada pela carga da opressão’ que destrói o mais profundo da existência do ser, a sua cultura e os meios e a razão de existência.” [footnoteRef:100] [99: OLIVEIRA, Denilson Araújo. Gestão racista e necropolítica do espaço urbano: apontamento teórico e político sobre o genocídio da juventude negra na cidade do Rio de Janeiro. Ibidem, p. 11. “O branqueamento do território também cria processos de espoliação, ao privar o acesso, o uso e a apropriação dos bens materiais e simbólicos do seu próprio território reforçando uma sociedade de bens oligárquicos.”] [100: “Festas para a classe média branca como símbolo de uma moralidade que os pobres não têm passam a ser realizadas nas UPPs em substituição aos tradicionais bailes funk usurpando a cultura negra funkeira. A gastronomia carioca que historicamente foi formada por mulheres mais velhas negras, migrantes e pobres é substituída por um padrão eurocentrado de homens brancos nos espaços de favelas com UPPs. Uma racionalização da cultura através de uma visão elitista, machista e racista. Esses eventos têm mudado os significados das festas locais ao: 1- mudar a composição econômica dos participantes com ingressos que impedem que os moradores possam frequentar esses espaços; 2- transformação na composição racial dos participantes das festas ao impedir os moradores, em sua maioria negros, de ter direito a lazer e entretenimento na proximidade de suas residências; 3- despotização/espetacularização da cultura negra ao servir de cenário das festas com imagens de personagens do samba; 4- embranquecimento do jazz e blues como algo cult para as favelas.” (ibidem, p. 12) ] 
Portanto, como conclui Oliveira, a política de gestão necropolítica do espaço público vem construindo suas bases para a (re)produção histórica do genocídio da juventude pobre e negra, que perpassa pelas formas coloniais do Estado pelas políticas públicas, especialmente as de in-segurança.[footnoteRef:101] Esse fato nos permite compreender que é preciso combater o silenciamento que envolve o racismo estrutural, com a desconstrução do “mito da democraciaracial” brasileira estribada na ideologia do embranquecimento racista, colonial e escravocrata que nunca foi superada. Esse processo vai também ocultar o protagonismo negro na história brasileira, usurpando os seus saberes e a importância de sua cultura na formação da identidade nacional. [101: Ibidem, p. 12-13.] 
6. CONCLUSÃO
O estudo que decidimos realizar lançou luzes sobre a falaciosa democracia racial brasileira, a violência contida na relação perversa entre discriminação racial e colonialidade, o racismo de extermínio que é possível associar à gestão de cidades urbanas de maior porte no país (pensada sob a ótica da necropolítica). Nesse sentido, tais questões configuraram um surpreendente espectro temático examinado por Denilson Andrade de Oliveira.
Após a análise de importantes trabalhos desse pesquisador, resta-nos admitir que outros desafios teóricos, metodológicos e políticos ainda seria preciso enfrentar, quando se contextualizam algumas questões aqui debatidas, tais como: os significados das remoções na população pobre e negra das favelas; a especulação imobiliária que vem promovendo um novo arranjo racial da cidade e, muito particularmente, a política de in-segurança que reforça as hegemonias de classe e de raça nas cidades, aprofundando a vulnerabilidade da população negra nos espaços urbanos.
Ao analisar os dados do Mapa da Violência no Brasil em 2015, podemos observar que na década compreendida entre 2002-2012 já havia uma significativa queda no número de homicídios de jovens brancos, ao passo que aumenta o morticínio de jovens negros. Enquanto em 2002 morriam 10.072 jovens brancos para cada 100 mil habitantes, esse número decai para 6.823 em 2012. Não obstante, o número de homicídios de jovens negros saltou de 17.499 para 23.160 no mesmo período[footnoteRef:102]. Houve um decréscimo de 32,3% na morte de jovens brancos, ao passo que os jovens negros vitimados aumentaram 32,4%, isso equivale a inferir que a cada branco morto morrem 2,7 negros. [footnoteRef:103] [102: QUEIROZ, Leonardo. O genocídio da juventude negra no Brasil. 2015. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-genocidio-da-juventude-negra-no-brasil/ Acesso em: 23 jul. 2019.] [103: Atlas da violência 2017 mapeia os homicídios no Brasil. 2017. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=30253:atlas-da-violencia-2017-mapeia-os-homicidios-no-brasil&catid=4:presidencia&directory=1. Acesso em: 23 jul. 2019.] 
Um levantamento feito ainda pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2017 mostra como a população negra está mais exposta à violência no Brasil. Os negros representam 55% da população, mais de 75% são vítimas de homicídio. Esse levantamento deixou patente que houve um aumentou assustador na última década. Entre os mortos nos homicídios registrados de 2005 a 2015, o número de brancos caiu 12%. E o de negros aumentou 18%. [footnoteRef:104] No Brasil, sete em cada dez pessoas assassinadas são negras, E, na faixa etária de 15 a 29 anos, cinco pessoas são vítimas de violência a cada duas horas. Pesquisa recente aponta para o fato de que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no país. [footnoteRef:105] É preciso denunciar que o Estado brasileiro vem praticando assassinatos contra os pretos e pobres favelados. [104: CARVALHO, Marco Antônio. 75% das vítimas de homicídio no País são negras, aponta Atlas da Violência. Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,75-das-vitimas-de-homicidio-no-pais-sao-negras-aponta-atlas-da-violencia,70002856665. Acesso em: 23 jul. 2019.] [105: GARCIA, Maria Fernanda. Genocídio? A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no país. Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/carrossel/genocidio-cada-23-minutos-um-jovem-negro-e-assassinado-no-pais/. Acesso em: 23 jul. 2019.] 
A morte sistemática e o extermínio da população negra hoje no Brasil constituem uma realidade estampada nas capas de noticiários brasileiros e internacionais. Na tarde do dia 7 de abril de 2019, às 14:30h de um domingo, dentro de um carro uma família negra foi fuzilada por militares do Exército, no bairro de Guadalupe, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Foram desferidos 80 tiros contra o automóvel por militares que executaram um trabalhador e pai de família. Não por engano e sim por racismo de Estado!
Não se sabe até quando o negro vai ser exterminado, massacrado, tratado como objeto, tendo a sua vida banalizada pelo racismo institucional e político, que sempre estará fomentando a impunidade aos policiais e militares em situações como essas, que, inclusive, fortalece os braços armados dos responsáveis pelo extermínio da população negra e pobre no Brasil. Essa legitimação pode ser confirmada com os discursos do atual governador do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, quando ele declara que a "polícia tem que mirar na cabecinha pra matar"; importa aqui frisar que este foi visitar o Estado de Israel, a fim de comprar drones e melhor equipar as forças repressivas no controle dos espaços e das periferias cariocas. Ainda, esse respaldo também pode ser conferido pelo "Pacote Anticrime” do Ministro da Justiça Sérgio Moro, que nada mais é do que um embuste para se perpetuar a legitimação de mortes brutais proveniente do racismo institucional. Esse pacote pretende garantir impunidade aos agentes do estado que executem pessoas por "medo, surpresa ou violenta emoção" numa clara tentativa de “legalização” da pena de morte.
A herança dessa experiência de hipermilitarização no Rio de Janeiro, notadamente das UPPs, reafirma a manutenção de um estado de exceção histórico, que ainda se encontra enraizado no contexto brasileiro, pois a população negra deste país vem sendo historicamente exterminada. É nesse estado de exceção que se legitimam condutas de violência estatal disseminadas contra os “inimigos” internos, os negros, perpetuando um estado de guerra permanente para validar o racismo estrutural, institucional e político brasileiro.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013.
Atlas da violência 2017 mapeia os homicídios no Brasil. 2017. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=30253:atlas-da-violencia-2017-mapeia-os-homicidios-no-brasil&catid=4:presidencia&directory=1. Acesso em: 23 jul. 2019.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. São Paulo: Difel, 1967. Apud, OLIVEIRA, Denilson Araújo de. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-negro-drama-e-revoltas-nas-mentalidades/. Acesso em: 23 jul. 2019.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
CARVALHO, Marco Antônio. 75% das vítimas de homicídio no País são negras, aponta Atlas da Violência. Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,75-das-vitimas-de-homicidio-no-pais-sao-negras-aponta-atlas-da-violencia,70002856665. Acesso em: 23 jul. 2019.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Lisboa: Ulisseia limitada1961. Tradução de Serafim Ferreira, p. 263.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Còllege de France (1975-1976). 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 287.
FOUCAULT, Michel. Genealogía del racismo. De la guerra de las razas al racismo de Estado. Trad. do francês para espanhol Alfredo Tzveibely. Madrid: La Piqueta, 1992. p. 90.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2000.
GARCIA, Maria Fernanda. Genocídio? A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no país. Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/carrossel/genocidio-cada-23-minutos-um-jovem-negro-e-assassinado-no-pais/. Acesso em: 23 jul. 2019.
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002.
MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto.

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