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ANTONIO RUGERO GUIBO A IMUTABILIDADE DA CAUSA DE PEDIR E O FATO SUPERVENIENTE NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito (Direito das Relações Sociais), sob a orientação do Professor Livre-docente Doutor Sérgio Seiji Shimura. SÃO PAULO 2005 i Banca Examinadora ii A Sílvia, minha esposa. e ao pequeno César, meu filho. Porque me inspiram a buscar o que há de melhor em mim. iii AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, a meus pais, José Guibo e Maria Amakaho Guibo, que desde cedo me ensinaram o valor do estudo e do trabalho. À minha esposa Sílvia, pelo irrestrito apoio ao longo do curso de mestrado e por compreender e aceitar os momentos em que o estudo privou-me do convívio famil iar. Ao amigo Joaquim Portes de Cerqueira César, com quem tive a honra de trabalhar na Assessoria Jurídica do Banco do Brasil em São Paulo, que me incentivou a ingressar no curso de mestrado e com quem muito aprendi e continuo aprendendo a respeito da advocacia e da vida. E, f inalmente, um agradecimento especial ao Professor Sérgio Seij i Shimura, que muito me honrou ao aceitar-me como seu orientando, pela generosa atenção e paciência com que me auxil iou na elaboração deste trabalho, dando-me, assim, o privilégio de contar com o seu incentivo fraterno, suas crít icas sempre enriquecedoras e suas indicações sempre muito precisas. iv RESUMO O presente trabalho volta-se para o estudo da tensão existente entre, de um lado, o imperativo da estabilização da demanda, segundo o qual é vedado ao autor alterar a causa petendi, e de outro, o reconhecimento de que os fatos supervenientes devem ser tomados em consideração pelo juiz, influindo, assim, no julgamento da lide. Busca-se, primeiramente, examinar a origem e evolução histórica da causa petendi, como elemento identificador da ação, para chegar ao estudo da temática da estabilização da demanda, tanto no direito comparado quanto no direito positivo brasileiro. Passa-se, então, à análise do problema tal como se apresenta no ordenamento processual em vigor, quando se traça um paralelo com um instituto bastante correlato, porém distinto, que é o princípio da eventualidade. Examinam- se, ainda, as diferentes implicações decorrentes da eficácia preclusiva da coisa julgada, conforme se trate de fato superveniente que beneficie o autor ou o réu, bem como a relação da temática da estabilização da demanda com os princípios da congruência e da causalidade. Por fim, coloca-se a questão sob a ótica da teoria dos recursos. O objetivo do presente trabalho é buscar uma sistematização dos conceitos envolvidos, de modo a harmonizar as normas tendentes à estabilização da demanda, em face da necessidade de lidar com o fato superveniente. Sem prejuízo da discussão quanto aos aspectos teóricos, pretende-se não perder de vista o interesse prático na busca de critérios aptos a tornar operável, coerente e eficiente o conjunto formado pelos institutos mencionados, com vistas a delimitar o exato alcance do postulado da imutabilidade da causa de pedir no direito processual civil brasileiro, em face da ocorrência de fatos supervenientes. v ABSTRACT The present work is related to the study of the tension between, on one side, the necessity of the steadiness of the dispute by which the claimant is not allowed to modify the cause of action, and on the other side, the recognition that the new facts have to be taken into consideration by the judge, thus interfering on the judgement of the lawsuit. The main goal is to examine the origin and historic evolution of the cause of action as the identifying element of the lawsuit, to arrive at the study of the steadiness of the dispute theme in the comparative law, as well as in the Brazilian statutory law. Further, the problem is analyzed as the way it is presented in the current civil proceeding’s system, where a parallel is made with a very similar but not identical institute, the contingency principle. Also the different implications of the preclusive characteristic of the res judicata are analysed, if it is related to a new fact which benefits the claimant and the defendant, as well as the relation of the steadiness theme of the lawsuit with the congruency and causality principles. Finally, the question is posed from the appeal theory point of view. The purpose of the present work is to seek a systematization of the concepts involved which allows the harmonization of the rules which will take to the steadiness of the lawsuit, due to the necessity of dealing with the new fact. Without prejudice to the discussion in respect to the theoretical aspects, it is intended not to lose track of the practical interest of seeking criteria capable of making operable, coherent and efficient the group formed by the above mentioned institutes, with the view to delimitate the exact reach of the immutability of the cause of action in the Brazilian civil proceeding’s system, due to the appearance of new facts. vi SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................................ 1 1. GENERALIDADES................................................................................................................. 6 1.1 A individuação da demanda......................................................................................... 6 1.1.1 Teoria da identidade da relação jurídica .......................................................... 7 1.1.2 Teoria da tríplice identidade................................................................................ 8 1.2 A causa de pedir como um dos elementos individualizadores da demanda........... 10 1.3 O conteúdo da causa de pedir ..................................................................................... 12 1.3.1 Teoria da individualização.................................................................................. 13 1.3.2 Teoria da substanciação..................................................................................... 18 1.3.3 O ponto de afastamento entre ambas as teorias.............................................. 21 2. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA – A ESTABILIZAÇÃO DA DEMANDA E O FATO SUPERVENIENTE.............................................................................................................. 23 2.1 A estabilização da demanda........................................................................................ 23 2.1.1 Alguns aspectos conceituais .......................................................................... 23 2.1.2 Fundamentos da estabilização da demanda ................................................... 26 2.2 Sistemas rígidos e flexíveis ........................................................................................ 28 2.3 A imutabilidade da ação e o fato superveniente........................................................ 31 3. CAUSA DE PEDIR – EVOLUÇÃO HISTÓRICA................................................................... 33 3.1 Direito romano.............................................................................................................. 33 3.2 Direito romano visigótico............................................................................................. 37 3.3 Idade média e direito comum......................................................................................38 3.4 Difusão do pensamento jurídico romano-canônico nos Estados Monárquicos da Península Ibérica – Espanha e Portugal.............................................................. 41 4. A ESTABILIZAÇÃO DA DEMANDA SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO COMPARADO............... 44 4.1 Nos países socialistas................................................................................................. 44 4.2 Direito inglês................................................................................................................. 45 4.3 Direito alemão............................................................................................................... 46 4.4 Direito italiano .............................................................................................................. 49 4.5 Direito espanhol............................................................................................................ 53 4.6 Direito português ......................................................................................................... 55 vii 5. A ESTABILIZAÇÂO DA DEMANDA E O CONTEÚDO DA CAUSA DE PEDIR NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO.................................................................................................. 60 5.1 Evolução legislativa.................................................................................................... 60 5.1.1 Ordenações Filipinas........................................................................................ 60 5.1.2 Regulamento 737............................................................................................... 61 5.1.3 Os códigos de processo civil estaduais......................................................... 61 5.1.4 O Código de Processo Civil de 1939............................................................... 63 5.1.5 O Código de Processo Civil de 1973............................................................... 64 5.2 Substanciação e individualização – posicionamento da doutrina brasileira quanto ao conteúdo da causa de pedir ................................................................... 65 5.2.1 A doutrina majoritária – adoção da teoria da substanciação....................... 65 5.2.2 A posição de José Ignácio Botelho de Mesquita........................................... 70 5.2.3 A posição de Ovídio Baptista da Silva............................................................. 71 5.2.4 A natureza do direito material envolvido, como critério para definir a necessidade de substanciação dos fatos....................................................... 72 5.3 O artigo 264 do Código de Processo Civil e a imutabilidade da causa de pedir .. 74 6. O CONHECIMENTO DO FATO SUPERVENIENTE NA SENTENÇA – ART. 462 DO CPC 77 6.1 Antecedentes............................................................................................................... 77 6.2 Fundamentos para a consideração dos fatos supervenientes na sentença.......... 79 6.3 Fato superveniente e direito superveniente............................................................... 81 7. HARMONIZAÇÃO DOS ARTIGOS 264 E 462 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL........... 85 7.1 Colocação do problema................................................................................................ 85 7.2 Verdade real e verdade formal...................................................................................... 86 7.3 A natureza instrumental do processo e a tensão entre os princípios dispositivo, da estabilização da demanda e da economia processual.......................................... 87 8. ALTERAÇÃO DO FUNDAMENTO JURÍDICO DA DEMANDA............................................ 92 8.1 Causa de pedir próxima e causa de pedir remota..................................................... 92 8.2 Definição de fundamento jurídico do pedido............................................................. 94 8.3 O fundamento legal da demanda................................................................................ 95 8.4 A mutabilidade do fundamento jurídico da demanda – iura novit curia e naha mihi factum dabo tibi ius............................................................................................ 97 8.5 A máxima iura novit curia e o princípio do contraditório ....................................... 101 8.6 A apreciação de fundamento jurídico novo e o princípio da demanda................... 103 viii 9. ALEGAÇÃO DE FATOS SECUNDÁRIOS............................................................................ 107 9.1 Distinção entre fatos principais e fatos secundários................................................ 107 9.2 Os fatos principais e a imutabilidade da causa petendi........................................... 110 9.3 Os fatos secundários e o problema do conteúdo da causa de pedir...................... 111 9.4 Os fatos secundários e os poderes instrutórios do juiz........................................... 113 10. O FATO SUPERVENIENTE – CONHECIMENTO DE FATOS CONSTITUTIVOS, MODIFICATIVOS OU EXTINTIVOS DO DIREITO DO AUTOR – CPC, ART. 462............ 115 10.1 Distinção entre fato novo e fato superveniente........................................................ 117 10.2 O fato superveniente e o problema da identificação da ação................................. 120 10.3 A relação jurídica como parâmetro para delimitar a possibilidade de conhecimento do fato superveniente....................................................................... 125 10.4 Classificação dos fatos supervenientes e considerações acerca de cada modalidade.................................................................................................................. 127 10.4.1 O fato superveniente constitutivo................................................................... 128 10.4.2 O fato superveniente modificativo.................................................................. 133 10.4.3 O fato superveniente extintivo......................................................................... 134 10.5 O conhecimento do fato superveniente de ofício..................................................... 135 10.5.1 Conhecimento do fato superveniente de ofício e o princípio da imparcialidade ............................................................................................... 135 10.5.2 Conhecimento do fato superveniente de ofício e o princípio do contraditório................................................................................................... 137 11. SITUAÇÕES PECULIARES – CAUSA DE PEDIR NAS AÇÕES POSSESSÓRIAS E NA TUTELA ESPECÍFICA DAS OBRIGAÇÕES DE DAR, FAZER E NÃO FAZER................ 139 11.1 A fungibilidade das ações possessórias e a alteração dos elementos objetivos da demanda ................................................................................................................ 139 11.2 Alteração da causa de pedir na tutela específica das obrigações de dar, fazer e não fazer...................................................................................................................... 141 12. O FATO SUPERVENIENTE E O PRINCÍPIO DA CONGRUÊNCIA.................................. 144 12.1 O princípio da congruência....................................................................................... 144 12.2 A alteração da causa de pedir e o princípio dacongruência................................ 145 12.3 O fato superveniente e a mitigação do princípio da congruência........................ 146 12.4 Síntese das conclusões sobre o tema..................................................................... 148 13. O PRINCÍPIO DA EVENTUALIDADE E O FATO SUPERVENIENTE................................ 149 13.1 Correspondência entre o princípio da estabilização da demanda e o princípio da eventualidade......................................................................................................... 150 13.2 Alcance da expressão “direito superveniente”..................................................... 153 13.3 A possibilidade de alegações incompatíveis entre si e o princípio da lealdade processual................................................................................................................ 155 ix 13.4 O princípio da eventualidade e o princípio do contraditório ................................ 157 13.5 O princípio da eventualidade e o princípio da economia processual................... 159 14. DISTINÇÃO ENTRE O PRINCÍPIO DA IMUTABILIDADE DA CAUSA DE PEDIR E O PRINCÍPIO DA EVENTUALIDADE. RAZÕES QUE JUSTIFICAM TRATAR DE MODO DIFERENTE A POSSIBILIDADE DE ALEGAÇÃO DE FATO SUPERVENIENTE PELO AUTOR E PELO RÉU......................................................................................................... 161 14.1 O problema da identificação da ação....................................................................... 161 14.2 Diferenças entre as posições do autor e do réu em face da eficácia preclusiva da coisa julgada.......................................................................................................... 162 14.2.1 Considerações gerais a respeito da eficácia preclusiva da coisa jugalda 163 14.2.2 A insuficiência da teoria da tríplice identidade em face dos problemas decorrentes da eficácia preclusiva da coisa julgada ................................. 167 14.2.3 O maior rigor do artigo 474 do Código de Processo Civil em relação ao demandado..................................................................................................... 170 14.3 O conhecimento novo de fato velho. Possibilidade de alegação pelo réu e impossibilidade pelo autor, na mesma ação......................................................... 171 14.4 Matérias cognoscíveis de ofício e que podem ser alegadas pelo réu a qualquer tempo – art. 303, incisos II e III. Possibilidade de alegação pelo autor, somente se relativas a fato ocorrido após a estabilização da demanda 175 15. FATO SUPERVENIENTE E CAUSALIDADE. TENTATIVA DE SISTEMATIZAÇÃO DOS ARTIGOS 22, 462 E 303, INCISOS I, II E III, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. 179 15.1 O artigo 22 do Código de Processo Civil e o princípio da causalidade............ 179 15.2 Distinção entre as hipóteses previstas nos artigos 22 e 462 do Código de Processo Civil ......................................................................................................... 183 15.3 Condenação em custas e perda do direito aos honorários de sucumbência e as hipóteses previstas no artigo 303, incisos I, II e III do Código de Processo Civil........................................................................................................................... 185 15.3.1 O artigo 22 do Código de Processo Civil e o direito superveniente (art. 303, inciso I, do Código de Processo Civil)...................................... 187 15.3.2 Incidência do artigo 22 do Código de Processo Civil nas hipóteses de alegação tardia de matérias que o juiz possa conhecer de ofício (art. 303, inciso II), ou que possam, por autorização expressa da lei, ser alegadas a qualquer tempo (art. 303, inciso III) ...................................... 191 15.3.3 Distinção entre a inércia culposa prevista no artigo 22 e a litigância de má-fé prevista nos artigos 17 e 18 do Código de Processo Civil..... 195 16. DO CONHECIMENTO DO FATO SUPERVENIENTE EM GRAU DE APELAÇÃO........... 197 17. DO CONHECIMENTO DO FATO SUPERVENIENTE EM SEDE DE RECURSO EXCEPCIONAL.................................................................................................................. 203 x 18. PROPOSTAS DE ABRANDAMENTO DA RIGIDEZ IMPOSTA PELO REGIME DA ESTABILIZAÇÃO DA DEMANDA E PELO PRINCÍPIO DA EVENTUALIDADE NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO....................................................................................... 207 18.1 A necessidade de flexibilização............................................................................... 207 18.2 Sugestões formuladas pela doutrina....................................................................... 209 18.2.1 Inserção, no Código de Processo Civil, de dispositivo semelhante ao artigo 384 do Código de Processo Penal ................................................... 209 18.2.2 Valorização da audiência preliminar prevista no artigo 331 do Código de Processo Civil, como momento para fixação dos termos da controvérsia e estabilização da demanda .................................................. 210 18.2.3 Alteração consensual da causa petendi e do pedido.................................. 212 18.2.4 Releitura da visão tradicional de estabilização da demanda, à luz do reconhecimento da supremacia do princípio do acesso à justiça............ 213 CONCLUSÕES.......................................................................................................................... 219 BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................... 233 xi 1 INTRODUÇÃO O processo começa com a iniciativa do autor e se completa com a citação do réu. Na petição inicial, o autor deve, desde logo, especificar o pedido, bem como os fatos e os fundamentos jurídicos que o embasam. Feita a citação, o autor somente poderá modificar o pedido ou a causa de pedir com o consentimento do réu e, após o saneamento do processo, é vedada a alteração de tais elementos. Isso significa que, no processo civil brasileiro, vige o princípio da imutabilidade da ação, uma vez que, após a fase de saneamento (art. 264 do CPC), tornam-se inalteráveis seus elementos subjetivos e objetivos, com o que se verifica o fenômeno conhecido como estabilização da demanda. Dentre os elementos objetivos, encontra-se a causa petendi, que em nosso ordenamento compreende tanto os fatos quanto os fundamentos jurídicos do pedido. Daí decorre que, após a estabilização da demanda, é vedado, em princípio, introduzir fatos jurídicos que não foram deduzidos no momento apropriado. O princípio da imutabilidade da ação e a conseqüente estabilização da demanda guardam relação com o princípio dispositivo, pois, a partir dos elementos constantes da petição inicial, delimita-se o exato campo sobre o qual atuará a jurisdição. Diz respeito também ao princípio do contraditório, uma vez que é quanto aos fatos alegados e ao pedido formulado na inicial que o réu elaborará sua defesa. Relaciona-se, ainda, com a busca da celeridade da 2 prestação jurisdicional, já que a permissão de sucessivas idas e vindas no procedimento, em virtude da introdução de fatos novos, tornaria mais demorado o desfecho do processo. Nada obstante o princípio da imutabilidade da ação atender a uma necessidade até mesmo de natureza lógica do processo, concebido como uma sucessão ordenada de atos que deve orientar-se para uma resposta do órgão estatal em face da pretensão deduzidapelo autor, não se pode deixar de reconhecer que a realidade social concreta, da qual se origina a lide e sobre a qual deve incidir a tutela jurisdicional, não será imutável jamais. Nesse sentido, uma vez que o processo se desenvolve ao longo do tempo, é muito provável que haja transformações na realidade que interfiram tanto no complexo fático que constitui a causa de pedir, quanto na efetividade da futura prestação jurisdicional. Em função disso, o legislador vê-se obrigado a lidar com o problema do tempo no processo, o qual desafia a doutrina com importantes questionamentos que podem ser desdobrados em duas ordens. A primeira diz respeito às mudanças no contexto fático, que ameaçam a efetividade da prestação jurisdicional. Nesse caso, lança-se mão das chamadas tutelas de urgência, cujo alcance amplia-se a cada dia, para fazer frente aos problemas crônicos de morosidade da justiça. Já a segunda ordem de questões diz respeito às alterações no mundo dos fatos que interferem no próprio julgamento da ação, quando adquire 3 relevância o estudo do assim chamado fato superveniente e suas implicações no que se refere à estabilização da demanda. Verifica-se, ainda, que a primeira ordem de questões tem sido objeto de grande interesse por parte da doutrina atual, preocupada sobremaneira com a temática da efetividade da tutela jurisdicional. Por outro lado, diferentemente, a temática atinente ao fato superveniente e à estabilização da demanda não tem sido tão freqüentada pela doutrina mais recente. Entretanto, tais assuntos também parecem merecer estudo, uma vez que se cuida de institutos antigos e basilares do Processo Civil, que devem receber atenção sempre renovada. Cabe observar ainda que, ao lado da questão da estabilização da demanda e correspondentemente à vedação imposta ao autor de alterar a causa de pedir, dado o princípio da imutabilidade da ação, justificou-se a formação, em relação ao réu, do princípio da eventualidade, pelo qual todas as defesas, salvo as exceções e os incidentes, deverão ser alegadas na contestação, sob pena de preclusão. Embora se trate de categorias muito próximas, a estabilização da demanda e o princípio da eventualidade são institutos distintos, posto que, a rigor, a defesa apresentada pelo réu não altera a demanda. Todavia, muito embora o foco do presente trabalho seja o estudo da estabilização da demanda propriamente dita, não se pode deixar de comparar as soluções adotadas nesse campo, com as que se propõem em relação ao princípio da eventualidade, dada a íntima correlação entre ambos. 4 Estabelecidas as mencionadas premissas, será possível abordar o problema do fato superveniente, considerando, de início, que nosso ordenamento estabelece que o juiz, no momento de proferir a sentença, deve considerar os fatos supervenientes, constitutivos, modificativos ou extintivos do direito (art. 462 do CPC). Surge então um aparente paradoxo, pois, se por um lado o autor é impedido de alegar fatos novos após o saneamento do processo e o réu deve exaurir seus argumentos de defesa na contestação, por outro, o juiz deve conhecer dos fatos supervenientes, inclusive de ofício, no momento de proferir a sentença. Além disso, nossa lei processual consagra a eficácia preclusiva da coisa julgada, fazendo com que sejam reputados, deduzidos e repelidos todos os argumentos que as partes poderiam opor tanto ao acolhimento (afetando o autor) como à rejeição (referindo-se ao réu) do pedido, quer tenham ou não sido alegados (art. 474 do CPC). Em outras palavras, se por um lado é vedado às partes alegar fatos novos após o saneamento do processo, por outro, tais fatos são reputados como deduzidos e repelidos e não poderão ser opostos ao que vier a ser decidido na sentença após seu trânsito em julgado. O objetivo do presente trabalho é buscar uma sistematização dos conceitos envolvidos, que possibilite harmonizar as normas tendentes à estabilização da demanda, em face da necessidade de lidar com o fato superveniente. Parte-se do pressuposto de que a compreensão ampla do problema torna necessário o exame das raízes históricas do instituto da estabilização da 5 demanda e, em especial, da imutabilidade da causa de pedir, o que conduz ao estudo das teorias desenvolvidas ao longo de décadas, a respeito da individuação das ações (relação jurídica x tríplice identidade) e ao conteúdo da causa de pedir (substanciação x individuação). Para uma abordagem mais crítica, pareceu de todo conveniente estudar também a forma como outros sistemas jurídicos contemporâneos tratam da questão da estabilização da demanda, o que levou a uma abordagem de direito comparado. A evolução histórica do instituto da estabilização da demanda, acrescida do estudo de direito comparado, deve possibilitar a contextualização do problema, tal como se apresenta hoje no direito positivo brasileiro. Propõe-se, então, o estudo da evolução legislativa e do posicionamento da doutrina no Brasil, a partir do que será possível analisar, de modo mais minucioso, os diferentes aspectos do tema na legislação processual civil brasileira atualmente em vigor. Sem prejuízo da discussão quanto aos aspectos teóricos, pretende- se não perder de vista o interesse prático na busca de critérios aptos a tornar operável, coerente e eficiente o conjunto formado pelos institutos mencionados, com vistas a delimitar o exato alcance do postulado da imutabilidade da causa de pedir no direito processual civil brasileiro, em face da ocorrência de fatos supervenientes. 6 1. GENERALIDADES 1.1 A individuação da demanda: 1.1.1 Teoria da identidade da relação jurídica; 1.1.2 Teoria da tríplice identidade – 1.2 A causa de pedir como um dos elementos individualizadores da demanda – 1.3 O conteúdo da causa de pedir: 1.3.1 Teoria da individualização; 1.3.2 Teoria da substanciação; 1.3.3 O ponto de afastamento entre ambas as teorias 1.1 A individuação da demanda A individuação da rés in iudicium deducta sempre foi um dos temas centrais da ciência processual. Embora os primeiros estudos a esse respeito estivessem voltados para o problema da coisa julgada – a exceptio rei iudicate – a identificação da ação se mostra importante também para a verificação da ocorrência da litispendência e da conexão de ações. A esse respeito duas teorias provieram das fontes romanas conservadas no Digesto e tornaram-se clássicas: a da identidade da relação jurídica, defendida por Savigny e a da tríplice identidade que remonta diretamente às fontes romanas . Traça-se, a seguir, um breve perfil dessas teorias. 7 1.1.1 Teoria da identidade da relação jurídica Savigny, o grande expoente da Escola Histórica, defendia a renovação da ciência do direito mediante o aproveitamento da experiência jurídica dos romanos, com a devida adaptação à realidade do momento histórico por ele vivido. Nesse contexto, reportando-se ao pensamento do jurisconsulto Juliano, Savigny visualizou na eadem questio o núcleo determinante da individuação das ações. Em primoroso estudo a respeito da exceptio rei iudicate, o mencionado autor afirmou que uma ação futura poderia ser obstada se as duas demandas tivessem em comum as mesmas pessoas e a mesma questão. A partir dessa premissa, Savigny formulou dois critérios. Pelo primeiro, se duas ações referem-se a questões jurídicas diferentes, a exceção de coisa julgada não seria oponível, mesmo que ocorresse a aparente identidade (partes, pedido e causa de pedir). Isso significa que uma ação possessória, por exemplo, não teria o condão de prejudicar futura ação reivindicatória e vice-versa. Pelo segundo critério, se duas ações dissessem respeito à mesma questão jurídica, a exceptio seria admitida, mesmo que houvesse aparente discrepância entre elas. Assim ocorreria quando, por exemplo, a segunda lide tivessenomenclatura diferente da primeira; ou quando as partes se encontrassem em posição invertida; ou quando o direito que em uma ação fosse principal, em 8 outra fosse condicionada; ou, ainda, quando o objeto exterior do litígio não fosse o mesmo nas duas ações. Sob essa concepção, Savigny distinguia as ações pessoais das reais, afirmando que, quanto às primeiras, nenhum problema subsistia, uma vez que cada relação jurídica vinha individuada por uma determinada causa. Todavia, quanto à segunda, independentemente do título de aquisição, admitia-se a exceção de coisa julgada, dada a identidade objetiva de ambas as relações jurídicas. 1.1.2 Teoria da tríplice identidade Apesar do esforço de Savigny no sentido de superar a construção clássica da tríplice identidade, a teoria da relação jurídica restou praticamente circunscrita à Alemanha. A teoria da tríplice identidade – pessoas, causa de pedir e pedido – por seu turno, prevalece na obra dos grandes processualistas do passado e dos tempos atuais. O dogma da tríplice identidade – tria eadem – deita raízes no direito romano e veio expressamente consagrado nas legislações francesa e italiana, tendo recebido, por via de conseqüência, o aval da grande maioria dos estudiosos. Nos ordenamentos processuais de tradição romano-germânica, é evidente o predomínio da teoria da tríplice identidade. Com efeito, aceita-se que 9 cada ação tem uma individualidade que se infere dos elementos que a compõem. Tais elementos permitem então identificar as ações, distinguindo-as umas das outras. Segue-se que duas ações são idênticas quando, em ambas, os seus elementos são os mesmos. Assim, duas ações são idênticas quando entre elas há: a) identidade de partes (eadem personae); b) identidade de objeto (eadem res); c) identidade de causa de pedir (eadem causa petendi). Conforme anota Arruda Alvim, “na doutrina dos países latinos, tradicionalmente, fala-se em teoria das três identidades, para que possam ser identificadas as ações. O Direito brasileiro imediatamente anterior, embora sem texto expresso, e o atual (agora explicitamente) também seguiram essa orientação, pois se lê no art. 301, § 2º, in verbis: ‘Uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido’”.1 Todavia, como se verá mais adiante, muito embora a teoria da tríplice identidade seja comumente aceita para resolver a maior parte dos problemas relativos à identificação das ações, há determinados casos nos quais ela se mostra insuficiente, levando a doutrina a buscar soluções na teoria da relação jurídica. 1 Manual de direito processual civil, v. 1, p. 484. 10 1.2 A causa de pedir como um dos elementos individualizadores da demanda Aceitando que as ações se identificam por intermédio das partes, do pedido e da causa de pedir, colocamo-nos diante da dificuldade de conceituar de forma precisa a causa de pedir com vistas à exata individualização da demanda. José Ignácio Botelho de Mesquita observa que: “Na verdade, não surgem problemas sôbre o que se deva entender por personae e por petitum. A causa petendi, contudo, pela dificuldade que oferece à determinação do seu conteúdo, tornou-se um dos pontos mais delicados do direito processual, e isto por se achar no âmago do tema comumente designado por identificação das ações, do qual dependem decisivamente vários institutos processuais”.2 Na mesma linha, José Rogério Cruz e Tucci adverte que “hoje é tarefa praticamente impossível emitir um conceito unívoco e abrangente de causa de pedir”, observando, contudo, que a evolução da ciência processual, em época mais recente, orienta-se para o entendimento segundo o qual a locução indica “o fato ou o conjunto de fatos que serve para fundamentar a pretensão (processual) do demandante”.3 Usualmente, classificam-se os elementos da ação em subjetivos – partes – e objetivos – pedido e causa de pedir. Na verdade, os elementos objetivos da ação formam um todo indissociável, que constitui o objeto do processo. Nesse sentido, José Ignácio Botelho de Mesquita observa que: “causa 2 A causa petendi nas ações reivindicatórias, Revista de Direito Processual Civil 6/185. 11 petendi e petitum, intimamente ligados, qual verso e reverso da mesma medalha, ou alicerces e paredes do mesmo edifício, são por excelência os elementos identificadores do objeto do processo, pois o petitum é condição de existência da causa petendi e esta, por sua vez, não se limita a qualificá-lo ou restringi-lo, mas o individua plenamente”.4 Ainda quanto à aptidão da causa de pedir, no sentido de individuar o pedido, Nelson Nery Júnior lembra que, para que se possa analisar a presença da condição da ação fundada na possibilidade jurídica do pedido, o termo “pedido” deve ser tomado não em seu sentido estrito, mas conjugado com a causa de pedir. E exemplifica mostrando que, embora o pedido de cobrança seja admissível pela legislação brasileira, não será possível se tiver como causa petendi a dívida de jogo.5 Especialmente quando empregada para aferir a presença da possibilidade jurídica do pedido, fica evidente que a causa petendi é, dentre os elementos da ação, o que constitui o ponto de contato mais direto entre o processo e o direito material. A esse respeito, Fazzalari afirma que a causa petendi, considerada como um dos elementos da ação, corresponde, essencialmente, ao elo entre a norma de direito material supostamente violada e o juízo, a partir do momento em que a situação substancial retratada na petição inicial é submetida à cognição judicial.6 3 A causa petendi no processo civil, p. 24. 4 A causa petendi nas ações reivindicatórias, Revista de Direito Processual Civil 6/184. No mesmo sentido, José Rogério Cruz e Tucci sustenta que a causa petendi possui dupla finalidade. A primeira é individualizar a demanda e a segunda é identificar o pedido, inclusive quanto à possibilidade deste (A causa petendi no processo civil, p. 158). 5 Condições da ação. Revista de Processo 64/37. 6 Note in tema di diritto e processo, p. 122. 12 Tendo em vista essa função de transportar para o interior do processo as particularidades do direito material supostamente violado, Fazzalari ressalta que a indicação da causa de pedir é imprescindível para o desenrolar do processo de conhecimento, na medida em que “tal alegação representa, na verdade, o parâmetro para determinação da jurisdição, da competência, da legitimação para agir...”.7 1.3 O conteúdo da causa de pedir Dentre os diversos problemas envolvidos na busca de uma definição mais precisa do que seria a causa de pedir, um dos aspectos mais controvertidos refere-se à definição do seu conteúdo. Para determinar o conteúdo da causa de pedir, foram desenvolvidas duas teorias, a saber, a da individualização e a da substanciação. A polêmica entre ambas as teorias teve origem no direito alemão, dados os problemas que decorreram da extrema rigidez com que se aplicou a regra da Eventualmaxime, segundo a qual as partes eram obrigadas a formular, desde o início do processo, todas as alegações que pudessem interessar ao deslinde da causa, sob pena de não mais poder fazê-lo em momento posterior. Como resultado dessa exigência, o processo ficava abarrotado de uma infinidade de provas e questões que as partes aduziam simultaneamente, visando a evitar o risco da preclusão de suas proposições. Conseqüentemente, na sentença, o juiz devia analisar muitas 7 Note in tema di diritto e processo, p. 47 e 115. 13 provas que não eram pertinentes, mas que não podiamser rechaçadas de plano, já que a obrigatoriedade da proposição contemporânea não permitia distinguir as provas úteis e pertinentes das não relevantes para a solução do caso concreto. Diante de tais problemas, a Eventualmaxime passou a ser questionada e, para evitar a formação de um processo artificial, dominado por argumentos e questões inúteis, tornava-se evidente a necessidade de estabelecer-se o conteúdo mínimo da causa de pedir. Tal tema foi objeto de estudo, especialmente de autores alemães e italianos, instaurando-se a acentuada polêmica sobre os elementos que constituiriam o aludido conteúdo mínimo da causa petendi, originando as teorias da substanciação (Substantiierungs theorie) e individualização ou individuação (Individualisierung theorie) (...)”. A seguir, com o objetivo de melhor compreender as razões de tal polêmica e suas implicações, traça-se um breve perfil de cada uma dessas teorias. 1.3.1 Teoria da individualização Nada obstante as origens germânicas do debate em torno do conteúdo mínimo da causa de pedir, a teoria da individualização goza de especial prestígio na Itália,8 encontrando em Chiovenda um dos seus mais ardorosos defensores. 8 Cândido Rangel Dinamarco observa que “oposto ao da substanciação (vigente no Brasil) é o sistema da individuação, vigente em outros países. No sistema italiano reputa-se causa de pedir, para o fim de delimitar o âmbito da demanda e da sentença, a referência feita pelo autor 14 Para os seguidores da teoria da individualização, é necessário distinguir as ações fundadas em direitos absolutos das demais ações fundadas em direito obrigacional. Nesse contexto, Chiovenda entende que, nas hipóteses envolvendo os assim chamados direitos absolutos, a causa de pedir deve conter, antes de mais nada, a “afirmação da relação jurídica de que deriva o direito afirmado pelo autor em confronto com o réu”. Todavia, reconhece que “essa afirmação basta nos direitos absolutos, mas não é suficiente nos direitos de obrigação”.9 Em outras palavras, para Chiovenda, nas ações de natureza real basta afirmar a relação jurídica para que se preencha o conteúdo da causa de pedir, isso porque a causa na reivindicação não decorre propriamente do modo de aquisição, mas do fato atual da existência do propriedade.10 Por outro lado, segundo Chiovenda, nas ações fundadas no direito das obrigações, não basta enunciar a relação jurídica para que se identifique a ação, uma vez que pode haver relações jurídicas obrigacionais de conteúdo idêntico, derivadas de diferentes obrigações. Por isso mesmo é que se faz à categoria jurídica com fundamento na qual pretende a tutela jurisdicional pedida. O histórico de fatos, que ele traz ao demandar, não passa de meras circunstâncias de fato e pode ser alterado porque assim permite o procedimento flexível lá existente” (Instituições de direito processual civil, v. 2, p. 128, nota 20). 9 Instituições de direito processual civil, v. 1, p. 360. 10 A esse respeito, Chiovenda apresenta a seguinte conclusão: “Por conseguinte, a causa na reivindicação não é um ou outro modo de aquisição, mas o fato atual da propriedade; a questão jurídica versa sempre sobre a existência do direito de propriedade, ainda quando a questão lógica se restrinja ao ponto, por exemplo, de se houve ou não compra e venda. Não há mudança de ação quando se passa de um título de aquisição a outro. Na citação, podemos limitar-nos a afirmar a propriedade; negada a propriedade no primeiro processo, não desaparece a exceção de coisa julgada só pelo fato de que no novo processo se alegue outro título (a menos que, entende-se, seja um título posterior ao julgado). O mesmo se pode dizer dos outros direitos absolutos: reconhecemos no fato atual da existência de um homem a causa dos direitos de liberdade ou de personalidade, sem pensar em sua origem senão como modo de provar-lhe a existência (Instituições de direito processual civil, v. 1, p. 437). 15 necessário indicar o fato constitutivo do qual decorre a relação jurídica, a fim de diferenciar de outras possíveis relações jurídicas de idêntico conteúdo.11 Nessa mesma linha, Betti defende que “existem relações jurídicas identificáveis pelos próprios elementos estruturais e pela típica qualificação jurídica que lhes é própria, sem necessidade de recorrer-se ao fato de onde se originaram”. Refere-se o mencionado autor às relações de direito real, de direito de família e de estado da pessoa.12 Igualmente, Liebmann esclarece que, nas ações fundadas em direito absoluto, basta indicar o direito que se afirma existente, ou, em outras palavras, a relação jurídica, uma vez que esta é sempre a mesma, qualquer que seja o fato constitutivo em particular. Explica o renomado professor de Milão que a propriedade de um bem, por exemplo, é sempre o mesmo direito, tenha ela sido adquirida por herança, compra e venda ou usucapião e, por isso, não há alteração da causa de pedir pelo simples fato de haver referência a esse ou aquele modo de aquisição.13 Tais ações fundadas em direitos absolutos constituem as assim chamadas demandas autodeterminadas, uma vez que são identificadas pelo próprio direito e não pelo título de aquisição, porquanto contempla potencialmente todos os possíveis títulos. Assim, conforme anota Cerino Canova, tais direitos, pelo seu conteúdo, podem subsistir uma única vez entre as mesmas partes e “a individuação do direito, e da demanda, através do conteúdo e dos sujeitos, 11 Instituições de direito processual civil, v. 1. p. 360. 12 Diritto processuale civile italiano, p. 178. 16 justifica-se precisamente pela unicidade e irrepetibilidade da mesma situação substancial”.14 Nesse contexto, a alegação de fato constitutivo tem importância somente no que diz respeito ao juízo di fondatezza, podendo ser alterada sem que isso implique alteração da demanda.15 A esse respeito, no Brasil, José Rogério Cruz e Tucci observa que, “segundo a denominada teoria da individualização, a alegação dos fatos, nas ações que encerram um direito absoluto, delineia-se apenas como condição de êxito da demanda, e não como elemento identificador”.16 Por outro lado, nas demais ações que não são identificáveis, a não ser pelo fato que lhes deu vida, compreendidas aqui as relações obrigacionais, bem como as relações de direito potestativo ou de sucessão hereditária, é necessária a indicação do fato constitutivo. Isso porque pode haver diversas relações jurídicas de conteúdo idêntico, mas decorrentes de diferentes fatos. Trata-se das chamadas demandas heterodeterminadas, que não são individualizáveis apenas em função dos seus elementos estruturais – sujeitos e conteúdo –, mas dependem da indicação do seu fato gerador.17 Assim, da ótica da teoria da individualização, apenas no caso de demandas heterodeterminadas faz-se necessária a indicação dos fatos constitutivos, uma vez que tantas serão as relações dessa espécie quantos forem os fatos constitutivos. 13 Struttura del processo e modificazione della domanda, p. 161. 14 La domanda giudiziale ed il suo contenuto, p. 172. 15 Cerino Canova, La domanda giudiziale ed il suo contenuto, p. 185. 16 A causa petendi no processo civil, p. 116. 17 Cerino Canova, op. cit., p.178-9. 17 Posto isso, é possível constatar que a teoria da individualização apresenta implicações mais significativas exatamente quanto às hipóteses de ações decorrentes de direitos absolutos.18 Conseqüentemente, para os seguidores da teoriada individualização, no que tange às demandas autodeterminadas ou, em outras palavras, nas ações que se referem a direitos absolutos, a mudança do fato ou dos fatos constitutivos ocorrida no curso do processo não implica alteração da demanda. Nessa mesma linha de raciocínio, conclui-se que a sentença que decidir sobre a existência ou inexistência de determinada relação jurídica projetará sua eficácia em relação a todos os fatos possíveis de serem invocados, quer tenham ou não sido alegados no curso da ação. Conforme assinala José Ignácio Botelho de Mesquita, a coisa julgada que se forma em torno da relação jurídica que fora objeto da ação fundada em direito absoluto torna “improponível nova demanda sobre a mesma relação de direito, ainda que fundada em fatos não alegados na primeira”.19 É de se reconhecer, todavia, que no Brasil pouco se estudou a respeito de tal teoria, uma vez que a quase totalidade da doutrina admite que teria sido adotada entre nós a teoria da substanciação.20 18 Nesse sentido, no Brasil, Calmon de Passos observa que essa teoria tem sua importância situada sobretudo no campo dos direitos absolutos, ou seja, no campo dos direitos reais e de família, e nas hipóteses de direitos relativos, ou seja, no caso das relações obrigacionais, das quais podem nascer diferentes obrigações de idêntica origem, mesmo os adeptos da teoria da individualização apontam a necessidade de se indicar o fato constitutivo para a sua distinção (Comentários ao Código de Processo Civil, p. 191). 19 A causa petendi nas ações reivindicatórias, Revista de direito processual civil 6, p.186. 20 A propósito, Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery consideram que a teoria da individualização estaria superada, uma vez que, na própria Alemanha, o ZPO adotou a teoria 18 1.3.2 Teoria da substanciação Ao contrário do que defende a teoria da individualização, para os seguidores da teoria da substanciação, no que diz respeito à causa de pedir não se deveria fazer qualquer distinção entre direitos reais e direitos obrigacionais, sendo necessária a indicação do fato constitutivo do direito em ambas as situações. Na doutrina italiana, Zanzucchi, aduzindo aos direitos absolutos e aos direitos obrigacionais, observa que “com relação a ambos a razão da pretensão não é especificada pela simples enunciação do direito. Tem-se a especificação apenas quando é indicado o fato do qual emergiu o direito, o fato não em abstrato, mas em concreto”.21 O mesmo autor ilustra seu raciocínio por intermédio do seguinte exemplo: se “A” age contra “B” para obter a entrega de determinada coisa, com fundamento em um direito de crédito (direito obrigacional) decorrente de depósito, e “B” alega já ter restituído o bem, e se diante disso “A” reconhecer a procedência do argumento do demandado, mas afirmar que deu a coisa em depósito uma segunda vez, resulta que o mesmo bem é demandado pela mesma espécie de relação jurídica (depósito). No entanto, não se nega, mesmo para os adeptos da teoria da individualização, que se está diante de modificação da demanda, uma vez que se altera o fato (causa petendi), já que o pedido, agora, passa a estar fundado no segundo contrato de depósito. Posto isso, Zanzucchi da substanciação (Código de Processo Civil e legislação processual civil extravagante, nota 2 ao art. 282, III, do CPC, p. 487). 19 transpõe o mesmo raciocínio para o caso envolvendo direito de propriedade: tendo “A” requerido a entrega do imóvel “X”, alegando direito de propriedade sobre o referido bem, o réu “B” se opõe, dizendo que comprou de “A” o imóvel, que, por sua vez, alega que adquiriu novamente o imóvel de “B”. Nesse caso, segundo Zanzucchi, há igualmente a alteração do fato constitutivo do direito e, substancialmente, do próprio direito. Em outras palavras, seria possível distinguir o direito de propriedade decorrente do primeiro contrato e do segundo negócio. Assim, Zanzucchi conclui que tanto nas ações fundadas em direitos reais quanto obrigacionais, para individuar a causa petendi, “não basta apenas indicar o direito e a sua natureza (de propriedade, de crédito etc...), mas é necessário revelar o fato pelo qual o direito afeta uma determinada pessoa, e não o fato em abstrato (depósito, compra e venda etc.) mas em concreto (tal depósito, tal compra e venda etc.)”.22 Portanto, para a teoria da substanciação, mesmo no que diz respeito às ações fundadas em direito absoluto, a causa de pedir deve compreender o fato gerador do direito. Haverá então tantas demandas quantos forem os diferentes fatos constitutivos invocados. Segundo Luso Soares, daí provém a expressão “substanciação” – “o que substancia ou fundamenta a ação igualmente a individualiza”. 23 Tal concepção repercute diretamente sobre o tema da extensão dos efeitos da coisa julgada. Arturo Rispoli defende que a modificação 21 Nuove domande, nuove eccezioni e nouve porove in appello, p.335-6. 22 Ibid. p.336-7. 23 Processo civil de declaração, Coimbra, Almedina, 1985, p. 587. 20 do título aquisitivo de um direito real enseja modificação da causa de pedir e conseqüentemente da ação, de modo que a compra e venda, a doação, o usucapião, seriam todas causas de pedir diversas, recaindo os efeitos da coisa julgada somente sobre a causa específica identificada na ação.24 No mesmo sentido, Mário Bellavits, a despeito de não colocar em dúvida a natureza erga omnes do direito de propriedade, advoga que a sentença declaratória de existência de direito real proferida em favor do autor ou do réu possui o condão de excluir a contemporânea existência de um outro direito de propriedade, mas isso sempre com referência ao fato jurídico constante dos autos, não podendo estender a sua eficácia a fato jurídico não deduzido no processo.25 No Brasil, Moacyr Amaral Santos observa que “a teoria da substanciação impõe que na fundamentação do pedido se compreendam a causa próxima e a causa remota (fundamentum actionis remotum), a qual consiste no fato gerador do direito pretendido. Não basta dizer ‘que é credor’, mas é preciso dizer também porque é credor; por exemplo: ‘a título de mútuo’” não basta dizer “que é senhor”, mas também porque o é: “conforme escritura de compra e venda devidamente transcrita”.26. Como bem sintetizado por Alexandre Alves Lazzarini, enquanto para a teoria da individualização o fundamento jurídico é essencial para identificar a ação, especialmente nas ações que versam sobre direitos absolutos, tais como os direitos reais ou o direito de família, para a teoria da substanciação os fatos é que são essenciais e não podem ser alterados, mesmo em se tratando 24 Ancora sul concetto di causa petendi, Archivo di ricerche giuridiche, 8(1954):116. 21 de direitos absolutos.27 Exatamente nesse ponto reside o particular interesse quanto à discussão a respeito do fato superveniente, como se verá mais adiante. 1.3.3 O ponto de afastamento entre ambas as teorias Comparando-se as implicações práticas de ambas as teorias, observa-se que a distinção entre elas não é tão radical. Isso porque, mesmo quando se adota a teoria da individualização, admite-se a necessidade de especificar os fatos que se tornam imutáveis, quando se trata de direitos relativos, o que abrange a maior parte das demandas. Por outro lado, ainda que seja acolhida a teoria da substanciação, a importância atribuída aos fatos constitutivos é atenuada consideravelmente nas ações que envolvem direitos absolutos.28José Ignácio Botelho de Mesquita, citando Ernesto Heinitz, observa que o ponto exato em que se afastam as duas concepções sobre a causa de pedir é o fato de que “a teoria da substanciação se distancia mais do direito material que a da individualização, e não tanto uma diversa valoração dos elementos de fato e de direito, pois a própria teoria da individualização sustenta 25 L’identificazione delle azioni, p. 144-7. 26 Primeiras linhas de direito processual civil, v. 2, p. 140. 27 A causa petendi nas ações de separação judicial e de dissolução de união estável, p.20. Nesta mesma obra, o autor distingue direito absoluto e direito relativo, in verbis: “O direito absoluto é aquele com eficácia universal e que deve ser respeitado por todos, podendo o seu titular opô- lo contra qualquer pessoa (é erga omnes), estando incluídos nesta categoria os direitos reais, de família e da personalidade. Já o direito relativo tem sua eficácia limitada a determinadas pessoas, com uma pessoa ficando obrigada a outra, como o direito de crédito e o contrato de compra e venda” (p.23). Observa contudo, que a questão não é pacífica, assinalando que no verbete “direito absoluto”, escrito pela Comissão de Redação da Enciclopédia Saraiva de Direito (São Paulo: Saraiva, 1977, v.25, p. 121), o direito de família puro é classificado como direito relativo, por tratar-se de obrigação extrapatrimonial (idem, nota 23). 28 A esse respeito, ver Guilherme Freire de Barros Teixeira (O princípio da eventualidade no processo civil, p. 190). 22 irrelevante o puro ponto de vista jurídico e atribui importância, na maioria dos casos, ao fato constitutivo”. E prossegue ressaltando que “o erro fundamental da teoria da substanciação reside, para Heinitz, no exagerado afastamento (distaco) do direito subjetivo, esquecida a função do processo civil de realizar o direito material; afastamento este a que teriam chegado os defensores da substanciação do pedido por haverem encontrado dificuldade em definir o conteúdo da causa petendi nas ações declaratórias negativas”.29 29 A causa petendi nas ações reivindicatórias, Revista de Direito Processual Civil 6/187. 23 2. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA – A ESTABILIZAÇÃO DA DEMANDA E O FATO SUPERVENIENTE 2.1 A estabilização da demanda: 2.1.1 Alguns aspectos conceituais; 2.1.2 Fundamentos da estabilização da demanda – 2.2 Sistemas rígidos e flexíveis – 2.3 A imutabilidade da ação e os fatos supervenientes 2.1 A estabilização da demanda 2.1.1 Alguns aspectos conceituais É comum o uso da expressão estabilização da demanda para designar tanto as vedações impostas ao autor, no sentido de impedir que se alterem os elementos da ação, quanto as que se aplicam ao réu, no sentido de evitar a dedução de novos argumentos de defesa após a contestação.30 30 Júnior Alexandre Moreira Pinto, por exemplo, estende o conceito para abranger tanto as alegações do autor quanto as do réu, quando define a estabilização da demanda como sendo “o momento em que apresentadas todas as alegações pelas partes, estas não podem ser modificadas, preparando o processo para uma fase seguinte, a da realização das provas, em que cada litigante se incumbirá de demonstrar a veracidade de suas alegações, seja o autor provando o fato constitutivo de seu direito, seja o réu provando o fato modificativo, impeditivo ou extintivo do direito do autor” (Sistemas rígidos e flexíveis: estabilização da demanda. in Causa de pedir e pedido no processo civil - questões polêmicas, p. 55). 24 Contudo, parece-nos mais exato restringir o alcance da expressão às vedações impostas ao autor, que não pode modificar os elementos da ação inicialmente constantes do libelo, superada determinada fase processual. A expressão demanda é muito próxima da noção de pedido, posto que demandar é pedir judicialmente.31 Assim, aproxima-se da idéia de ação, tanto que é comum o uso de ambas as expressões indistintamente, como sinônimas.32 Quando se fala em estabilização da demanda, a rigor, está-se fazendo referência somente à imutabilidade da ação, do que se depreende a inalterabilidade dos seus elementos – partes, pedido e causa de pedir. Conseqüentemente, não se abrange a inalterabilidade dos argumentos de defesa, em momento posterior ao do oferecimento da contestação. Muito embora seja intenso o debate consistente em saber se a contestação integra ou não o objeto do processo,33 não é essa a questão posta nesse momento, pois, independentemente da corrente que se adote, é inequívoco que a defesa não interfere nos elementos identificadores da demanda.34 31 Conforme De Plácido e Silva. Vocabulário Jurídico, vol. II, p. 492. 32 Na verdade, se for possível estabelecer distinção entre ação e demanda, esta será muito sutil. Nesse sentido, De Plácido e Silva assinala que “a acepção de demanda é mais ampla que a de ação, pois indica a ação em curso ou já formulada em juízo e em processo, enquanto a ação revela o direito de agir ou o direito de ir pedir em juízo, o que fundamenta ou autoriza a demanda, indicativa do exercício da ação” (idem). 33 A respeito da controvérsia quanto a distinção entre objeto do processo e objeto litigioso, ver Arruda Alvim, Manual de Direito Processual Civil, vol. I, p. 483-484. 34 A esse respeito, Cândido Rangel Dinamarco observa que: “Na contestação, o réu nega os fatos alegados pelo autor, ou nega-lhes a eficácia jurídica afirmada por este, ou alega fatos novos que excluem o direito afirmado na petição inicial, ou ainda suscita razões relacionadas com o processo (carência de ação, incompetência absoluta) - gerando com isso questões a serem apreciadas quando o juiz expuser a motivação da sentença. Mas fica absolutamente inalterado o material a ser objeto do pronunciamento jurisdicional (pretensão, objeto do processo)” (Instituições de direito processual civil, vol. II, p. 190). No mesmo sentido, muito embora entendendo que a contestação integra o objeto do processo mas não o objeto litigioso, Arruda Alvim afirma que: “O réu, contestando o mérito, ou seja, o pedido formulado pelo autor, 25 Se a finalidade fosse abranger em um mesmo conceito tanto a imutabilidade do libelo, quanto a proibição de deduzir novos argumentos de defesa após a contestação, seria então o caso de falar-se em estabilização do processo. Contudo, como o processo é essencialmente dinâmico, tendo em vista que significa exatamente o desenvolvimento em fases sucessivas, a expressão pareceria incongruente.35 Ademais, até por razões teóricas que serão mais bem examinadas adiante, parece preferível tratar separadamente as diferentes situações. Desse modo, quando se fala em estabilização da demanda, faz-se referência à vedação imposta ao autor, que não poderá alterar os elementos da ação, superado determinado momento processual. A vedação imposta ao réu, no sentido de impedir a introdução de novos argumentos de defesa, decorre do princípio da eventualidade, que não se confunde nem com a imutabilidade do pedido e tampouco com a estabilização da demanda.36 não enriquece ou aumenta juridicamente a lide, ou segundo terminologia também difundida entre nós, o objeto litigioso” (Manual de Direto Processual Civil, vol. II, p. 311). 35 Nesse sentido, com amparo na opinião de José Rogério Cruz e Tucci, externada em aula proferida no curso de pós-graduação da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, Guilherme Freire de Barros Teixeira observa que: “comoo processo é essencialmente dinâmico, tendo em vista o seu desenvolvimento em fases sucessivas, parece incongruente utilizar a expressão estabilização do processo, pois, na realidade, o que se estabiliza são seus elementos objetivos e subjetivos, vedando-se a partir de determinado momento do iter procedimental, a alteração dos fatos e pedidos trazidos à apreciação judicial, bem como a modificação das partes” (O princípio da eventualidade no processo civil, p. 47, nota 41). 36 Anote-se que, para parte da doutrina, tanto a imutabilidade do libelo, quanto a proibição da alegação de novos argumentos de defesa após a contestação, decorreriam do princípio da eventualidade, que incidiria tanto sobre o réu, quanto sobre o autor. Defendendo com 26 Não se trata, como se procurará demonstrar, de mero formalismo, mas de distinção que permite melhor compreender as diferenças de tratamento dispensado ao fato superveniente, conforme se trate de alegação que beneficie o autor, ou o réu. Admitindo-se então que se trata de situações distintas, passa- se à análise da estabilização da demanda, entendida como fenômeno decorrente da imutabilidade da ação. 2.1.2 Fundamentos da estabilização de demanda Como já antecipado, a estabilização da demanda afeta o autor e decorre do princípio da imutabilidade da ação, do qual decorre a inalterabilidade do libelo. Adotando-se a teoria da tríplice identidade, segundo a qual a ação é identificada pelo pedido, partes e causa de pedir, é certo que o princípio da inalterabilidade do libelo pretende fazer com que, em determinado momento do processo, esses elementos tornem-se imutáveis, evitando assim o risco de ocorrerem modificações que importariam em ferimento à segurança jurídica. As partes constituem o elemento subjetivo da demanda e o pedido e a causa de pedir os elementos objetivos. Esse princípio vem a limitar que as partes, o pedido e a causa de pedir sejam alterados (aditados ou modificados). convicção esse entendimento, ver Guilherme Freire de Barros Teixeira, O princípio da eventualidade no processo civil. . 27 A estabilização da demanda é uma decorrência também do princípio do contraditório, uma vez que deve o demandado ter o conhecimento do que está sendo processado e qual a prova a ser desenvolvida.37 Vicente Grecco Filho observa que o fundamento da estabilização da demanda no processo civil é o interesse público da boa administração da justiça, uma vez que esta deve responder de maneira certa e definitiva à pretensão deduzida pelo autor.38 A solução adotada no âmbito do processo civil é diferente da que se adota no processo penal, pois, neste, a legislação processual prevê a adequação do pedido à verdade real (CPP, arts. 383 e 384). Como explica Vicente Grecco Filho, a existência, no processo penal, de mecanismos de adequação do objeto do processo ao fato justifica-se porque lá a atividade jurisdicional se esgota sobre todo o fato da natureza e não somente sobre o que constou do pedido inicial.39 37 Sistemas rígidos e flexíveis: estabilização da demanda, in Causa de pedir e pedido no processo civil (questões polêmicas). José Rogério Cruz e Tucci e José Roberto dos Santos Bedaque (org.). São Paulo: RT, 2002, p. 56. 38 “O fundamento da estabilização do processo quanto ao pedido, causa de pedir, partes e ao próprio juízo assim que completa a relação processual pela citação é o interesse público da boa administração da justiça, que deve responder de maneira certa e definida à provocação consistente no pedido do autor. Um sistema legislativo que permitisse livremente a alteração dos elementos da ação geraria instabilidade na prestação jurisdicional e, conseqüentemente, nas relações jurídicas em geral. O juiz decide sobre o que foi pedido, como foi pedido. Se o autor tiver outro pedido a fazer que o faça em processo distinto” (in Direito processual civil brasileiro, v. 2, p. 59). 39 Direito processual civil brasileiro, v. 2, p. 59. 28 2.2 Sistemas rígidos e flexíveis Conforme observa Cândido Rangel Dinamarco, cada ordenamento jurídico opta por rigor maior ou menor, na exigência da ordem em que os atos do procedimento devem ser realizados.40 A maneira como determinado ordenamento trata da questão da estabilização da demanda define se o procedimento adotado é rígido ou flexível. Considera-se que um modelo processual é rígido quando há um momento em que a demanda se estabiliza, ou seja, um momento a partir do qual os temas objeto do processo, que deverão ser resolvidos na decisão, não mais poderão ser alterados. Por outro lado, um sistema será considerado flexível quando, ao longo de todo o curso da demanda, as partes ficam livres para apresentar novas alegações. É possível concluir, ainda, que a teoria da individuação41 induz à adoção de um sistema flexível, uma vez que os fatos constitutivos, na medida em que não integram causa de pedir, a qualquer momento podem ser alterados. Por outro lado, a teoria da substanciação42 pressupõe a adoção de um procedimento rígido, pois não faria qualquer sentido exigir-se que o autor 40 Instituições de direito processual civil, v. 2, p. 454. 41 A respeito da teoria da individuação, vide item 1.3.1 retro. 42 A respeito da teoria da substanciação, vide item 1.3.2 retro. 29 especificasse os fatos constitutivos do direito alegado, se, no curso da ação, eles pudessem ser livremente alterados.43 Júnior Alexandre Moreira Pinto exalta as virtudes do modelo processual flexível, ressaltando que ele privilegia a busca da verdade real como fim do processo.44 Aduz-se que a possibilidade de as partes modificarem a demanda a qualquer momento teria a desvantagem de trazer maior demora ao processo. Todavia, Júnior Alexandre Moreira Pinto sustenta que se trata de uma meia verdade, isto porque, se por um lado “é claro que um feito que possa ser mudado durante o seu curso tende a consumir mais tempo”, por outro, “esta sentença estaria solucionando situações que dependeriam de outro processo, que, em se aceitando uma certa elasticidade, já teriam sido decididas no mesmo processo”.45 Segundo Dinamarco, o procedimento flexível caracteriza-se pela possibilidade de retrocessos, pois “surgindo fato novo na causa e havendo conveniência de esclarecê-los, novas audiências se fazem apesar de já realizadas as que o sistema ordinariamente manda realizar. O juiz colhe 43 Nesse sentido, Júnior Alexandre Moreira Pinto ressalta que “a imposição de um critério de preclusões constitui pressuposto da teoria da substanciação, exigindo a exposição de todos os fatos constitutivos, de forma simultânea, na petição inicial” (Sistemas rígidos e flexíveis: estabilização da demanda, in Causa de pedir e pedido no processo civil (questões polêmicas). José Rogério Cruz e Tucci e José Roberto dos Santos Bedaque (org.). São Paulo: RT, 2002, p. 64). 44 Segundo o referido autor, “a partir do momento em que a solução da demanda não está adstrita aos limites impostos pela petição inicial e pela contestação, pode o juiz, quando da prolação da sentença, utilizar, como pacificação da situação litigiosa, fatos, argumentos e circunstâncias surgidos no decorrer da demanda. É óbvio que um processo que possa se utilizar de todas estas variantes corresponde muito mais ao interesse da justiça do que aquele que deve ‘fechar os olhos’ diante de fatos que poderiam contribuir para o deslinde do caso, mas que, pelo fato de terem sido introduzidos em momento inoportuno, a técnica não permite que sejam considerados” (Sistemas rígidos e flexíveis: estabilização da demanda, in Causa de pedir epedido no processo civil (questões polêmicas). José Rogério Cruz e Tucci e José Roberto dos Santos Bedaque (org.). São Paulo: RT, 2002, p. 79). 30 manifestações das partes quantas vezes for necessário, praticamente à saciedade, sempre que sentir que elas ainda têm o que dizer em relação à discussão da causa”.46 Dinamarco observa, ainda, que no procedimento flexível o juiz tem grandes poderes de direção, maiores que os do juiz inserido no sistema de procedimento rígido.47 É de se considerar, por outro lado, que o sistema rígido é mais compatível com o princípio do contraditório. Com efeito, a regra da preclusão, impedindo a alteração da demanda no curso do processo tem como elemento norteador exatamente a efetivação do contraditório.48 Nesse sentido, Comoglio observa que o procedimento rígido tem a virtude de evitar surpresas aos litigantes, na medida em que se garante que as questões que serão decididas e que contribuirão para a formação do convencimento do julgador já foram submetidas ao crivo das partes.49 O processo civil brasileiro adere tradicionalmente ao sistema de procedimento rígido, caracterizado pela nítida distribuição dos atos processuais em fases e pelo emprego acentuado do instituto da preclusão, destinado a impedir retrocessos. Já na Europa, vemos exemplos expressivos de procedimento flexível. 45 Sistemas rígidos e flexíveis: estabilização da demanda, in Causa de pedir e pedido no processo civil (questões polêmicas). José Rogério Cruz e Tucci e José Roberto dos Santos Bedaque (org.). São Paulo: RT, 2002, p.80 46 Instituições de direito processual civil, v. 2, p. 454. 47 Ibid., mesma página. 48 Júnior Alexandre Moreira Pinto, Sistemas rígidos e flexíveis: estabilização da demanda, in Causa de pedir e pedido no processo civil (questões polêmicas). José Rogério Cruz e Tucci e José Roberto dos Santos Bedaque (org.). São Paulo: RT, 2002, p.82. 49 Diritto processuale civile tedesco, p. 9 31 2.3 A imutabilidade da ação e o fato superveniente Os sistemas rígidos que adotam a teoria da substanciação, enfrentam o problema que consiste em lidar com a ocorrência de fatos supervenientes. Como foi visto, a teoria da substanciação pressupõe a necessidade de especificar-se, já na petição inicial, os fatos constitutivos da relação jurídica posta em juízo. Tais fatos integram a causa de pedir e tornam-se imutáveis após a estabilização da demanda. Como a causa de pedir identifica a ação, a alegação de fatos novos implica em mudança da ação, o que é vedado nos sistemas processuais rígidos. Todavia, após o momento fixado para a estabilização da demanda podem ocorrer fatos que, embora não tenham sido deduzidos pelo autor no momento apropriado, interfiram diretamente na relação jurídica posta em juízo, o que recomenda sejam considerados na definição do resultado da demanda. Pode acontecer também de tais fatos, embora tenham ocorrido anteriormente, tornarem-se conhecidos somente após a estabilização da demanda. A esse respeito, como bem observa Ricardo de Barros Leonel, “embora o enquadramento esquemático e linear do desenvolvimento da demanda em juízo pareça simples, a realidade das coisas, a complexidade das situações 32 da vida deduzidas em juízo, e a dinâmica processual da atuação das partes, não se mostram sempre tão claras” 50 Diante de tal problema, surge a necessidade de identificar critérios que permitam disciplinar a assimilação dos fatos ocorridos posteriormente, ou de que se tenha tomado ciência somente após a estabilização da demanda, de modo que não seja desconsiderado o princípio da imutabilidade da ação, mas que por outro lado, também não se transforme o processo num exercício totalmente abstrato e afastado da realidade fática, da qual emerge a lide e sobre a qual deve atuar, concretamente, a jurisdição. Este é o principal escopo do presente trabalho. 50 Objeto litigioso e direito superveniente no processo civil, p. 95 33 3. CAUSA DE PEDIR – EVOLUÇÃO HISTÓRICA 3.1 Direito romano – 3.2 Direito romano visigótico – 3.3 Idade média e direito comum – 3.4 Difusão do pensamento jurídico romano-canônico nos Estados Monárquicos da Península Ibérica – Espanha e Portugal. 3.1 Direito romano José Rogério Cruz e Tucci adverte para o sério risco de transplantar-se precipitadamente para o direito atual a concepção romana de causa petendi, uma vez que os romanos não conheciam a distinção entre o direito substancial e a actio, distinção essa detectada somente pela dogmática moderna.51 Costuma-se dividir o processo civil romano em três grandes períodos: o da legis actiones, o per formulas e o da extraordinária cognitio. No período da legis actiones,52 que vai desde os tempos da fundação de Roma até o final da República, a ordem jurídica romana consistia em um sistema de ações. Todavia, como explica Pugliesi, a actio, naquela época, 51 A causa petendi no processo civil, p. 17. 52 José Rogério Cruz e Tucci observa que a denominação advém do fato de que ações nesse período eram organizadas pela lei ou conformavam-se às palavras da lei (Lições de história e do processo civil romano, p. 197 ss). 34 indicava a titularidade do direito subjetivo material.53 Sobre a origem da actio romana, Garrone observa que o instituto surgiu em substituição à autotutela, mantendo a natureza de reação privada, só que representada segundo um rígido modelo legal, perante o magistrado.54 Redenti salienta que “o agere, originariamente, correspondia ao uso da própria força para recuperar ou para obter alguma coisa de outrem. Quando o processo surge como exigência de ordem e paz social, o agere passa a constituir um retorsão justificada (...) Nas leis que se seguiram a tal momento, vinham definidas as causae que possibilitavam a alguém o agere contra outros”.55 Portanto, no âmbito do processo romano arcaico, causa seria o fundamento que legitimava o agere da parte ou, em outras palavras, seria a “justificação da ação”.56 As legis actionis eram taxativamente especificadas na lei e tinham caráter muito rígidos; uma simples variação literal levava à rejeição da demanda. O processo era extremamente formal e devia obedecer a ritual solene e predeterminado. Havia, ainda, a combinação do elemento laico (jus) com o elemento religioso (fas).57 O período formular foi introduzido pela Lex Aebutia (149-126 a.C.) e estendeu-se até a época de Diocleciano (294-d.C.), instituindo um processo menos formalista e solene que o das ações da lei. Como é sabido, nessa nova ordem jurídica o pretor passa a desempenhar papel bastante relevante e o iudex (magistrado) passou a gozar de liberdade mais ampla. Enquanto o processo judicial anterior era eminentemente oral, no período formular passa a ser 53 Actio e diritto subjetivo, p. 346. 54 Contributo allá teórica della domanda giudiziale, p. 16. 55 Breve storia semântica di causa in giudizio p. 5. 56 Cf. Anna Maria Giomaro, La tipicitá delle legis actiones e la nonimato causae, p .51. 35 predominantemente escrito. A fórmula consistia no documento redigido pelo magistrado, com o auxílio das partes, no qual se fixava o objeto da demanda que seria julgado pelo iudex popular. Segundo Gaio, a fórmula possuía quatro partes principais, a saber: intentio, demonstratio, adiudicatio e condemnatio. Nesse ponto, interessa-nos identificar que, na primeira parte, ou seja, na intentio, enunciava-se a relação jurídica substancial deduzida em juízo, ou seja, o fato em que o autor fundava sua demanda, o que significa, em outras palavras, a causa petendi. No período
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