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O que é isto - decido conforme minha consciência - Lenio Luiz Streck

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Créditos
Coleção O QUE É ISTO?
Diretor/Organizador
Lenio Luiz Streck
Conselho Editorial
Lenio Luiz Streck
Jose Luis Bolzan de Morais
Leonel Severo Rocha
Ingo Wolfgang Sarlet
Jania Saldanha
© Lenio Luiz Streck, 2013
Projeto gráfico e diagramação
Livraria do Advogado Editora
Projeto da capa
Clarissa Tassinari
Gravura da capa
“A Torre de Babel” por Pieter Bruegel, em 1563
Direitos desta edição reservados por 
Livraria do Advogado Editora Ltda. 
Rua Riachuelo, 1338
90010-273 Porto Alegre RS
Fone/fax: 0800-51-7522
editora@livrariadoadvogado.com.br
www.doadvogado.com.br
_____________________________________________
S914o Streck, Lenio Luiz
O que é isto – decido conforme minha consciência? – 4. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.
(Coleção O Que é Isto? – 1)
ISBN 978-85-7348-838-8
1. Teoria do direito. 2. Filosofia do direito. I. Título.
CDU – 340.12
Sobre o autor
LENIO LUIZ STRECK é Procurador de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Doutor e Pós-Doutor em Direito,
Professor titular da UNISINOS, colaborador/visitante da UNESA-RJ, ROMA-TRE (Scuola Dottorale Tulio Scarelli),
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC (Acordo Internacional Capes-Grices); Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa; membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst; Presidente de
Honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica – IHJ (RS-MG); membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB;
coordenador do DASEIN – Núcleo de Estudos Hermenêuticos; autor, entre outros livros, de Hermenêutica Jurídica e(m)
Crise (10ª ed.), Ciência Política e Teoria do Estado (7ª ed.), Interceptações Telefônicas (2ª ed.), todos pela Livraria do
Advogado Editora; Verdade e Consenso (4ª ed.), pela Editora Saraiva; Verdad y Consenso - Hermenéutica, Constituición y
Teorías Discursivas; Hermenéutica Jurídica - Estudios de Teoría Del Derecho , ambos pela ARA – Editores, de Lima, Peru;
Editor do site www.leniostreck.com.br.
http://www.leniostreck.com.br
Dedicatória
Sempre a Ernildo Stein, pela escuta constante;
Aos membros do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos (em especial, Clarissa Tassinari, quem mais trabalhou;
Rafael Köche; Fausto Santos de Morais, André Karam Trindade e Rafael Tomaz de Oliveira).
E sempre, também, Rosane e Maria Luiza.
Apresentando a Coleção O QUE É ISTO?
Dizia o antropólogo Darci Ribeiro que Deus é tão treteiro, faz as coisas tão recônditas e sofisticadas, que ainda precisamos
de certo tipo de gente – os cientistas – para desvelar as obviedades do óbvio. É da “natureza” do óbvio estar no anonimato.
Está aí para ser des-velado. Desobnubilado. Dizer que algo está aí. Apontar para ele. E perguntar o que isto é ou “o que é
isto”. Essa é a tarefa de qualquer pesquisa.
Pois uma das coisas que parecem óbvias é que o direito é um fenômeno complexo. Afinal, para o bem e para o mal, há
sempre algo regrando a nossa vida. Poder, política, violência, guerra e paz: o espectro do direito ronda a humanidade. Mas
seria o direito apenas um instrumento à disposição do poder? É possível “simplificar” o direito a ponto de transformá-lo em
um conjunto de standards aplicativos?
Embora parcela considerável da comunidade jurídica acredite que o direito é uma racionalidade meramente (ou
“puramente”) instrumental – no que não discrepa sobremodo de determinadas visões advindas da sociologia ou até mesmo da
filosofia – venho trabalhando de há muito na contramão dessa tese. Os regimes totalitários e as atrocidades cometidas sob o
pálio do direito deveriam ter-nos ensinado que o direito deve ser mais do que instrumento, técnica ou procedimento. É como
dizer: depois dos fracassos do positivismo em expungir a moral do campo jurídico, algo tinha que ser feito. Dito de outro
modo: o direito não pode(ria) ficar imune aos influxos das profundas transformações ocorridas no campo dos paradigmas
filosóficos.
Pois é a partir dessa constatação e/ou reconhecimento de que, mais do que uma filosofia do direito, teríamos que elaborar
uma filosofia no direito, busco construir as condições de possibilidade para que possamos dar respostas às diversas perguntas
acerca da complexidade do direito.
Por que o pensar dos juristas seria diferente do pensar do filósofo? Por que o jurista teria um diferente “acesso” à
“realidade”? Vejam-se, por exemplo, algumas questões absolutamente intrigantes: se, no campo da filosofia, já não se acredita
em essências, qual é a razão de os juristas continuarem a acreditar na “busca da verdade real”? Ou: se a filosofia da
consciência foi contestada e superada pelas diversas correntes linguísticas, por que razão no campo jurídico se continua a
apostar na “consciência de si do pensamento pensante”?
É nesse sentido que, entre outras questões, a presente coleção procura desvendar os meandros paradigmáticos que
obnubilam o pensamento dos juristas. Busca-se fazer com o direito, guardadas as perspectivas histórico-filosóficas, o que
Heidegger buscou no campo filosófico com a pergunta: O que é isto – a filosofia? (Was ist Das – die Philosophie)?
Mutatis, mutandis, o conjunto reflexivo que inicia com o volume O que é isto – decido conforme minha consciência?,
busca responder às mais diversas indagações acerca do (complexo) fenômeno jurídico. O objetivo final é contribuir para a
reposta a uma pergunta que talvez seja impossível de responder: O que é isto – o Direito?
Esse é o desafio que enfrentamos com o primeiro volume desta coleção.
Lenio Luiz Streck
1. Objeto, sujeito e o giro ontológico-linguístico
No pensamento ocidental, há uma angústia particular que assombra o homem. Podemos atravessar o “abismo gnosiológico”
que separa o homem das coisas? Como se dá nome às coisas? Por que algo é? Desde o início, houve um compromisso da
filosofia com a verdade; a filosofia sempre procurou esse olhar que desvendasse o que as coisas são. Talvez a obra que
melhor simbolize essa procura angustiante seja Crátilo, escrito por Platão no ano de 388 a.C. Esse diálogo pode ser
considerado a primeira obra de filosofia da linguagem da história da humanidade.
Nele, além de Sócrates, há mais dois personagens: Hermógenes, que representa os sofistas, e Crátilo, que representa
Heráclito (pré-socrático que, juntamente com Parmênides, inaugura a discussão acerca do “ser” e do “pensar”, e do logos
superando o mythos). Crátilo pode ser considerado o primeiro que problematizou a filosofia da linguagem. Platão, pela boca
de Sócrates, contrapõe dialeticamente duas teses: o naturalismo, pela qual cada coisa tem nome por natureza (o logos está na
physis), tese defendida no diálogo por Crátilo,1 e o convencionalismo, posição sofística defendida por Hermógenes, pela qual
a ligação do nome com as coisas é absolutamente arbitrária e convencional, é dizer, não há qualquer ligação das palavras com
as coisas.
Veja-se: Crátilo representa o enfrentamento de Platão com a sofística. Os sofistas – que podem ser considerados os
primeiros positivistas – defendiam o convencionalismo, isto é, que entre palavras e coisas não há nenhuma ligação/relação.
Claro que, com isso, a verdade deixava de ser prioritária. O discurso passava a depender de argumentos persuasivos (retórica
e argumentação). Os sofistas provocaram, assim, no contexto da Grécia antiga, um rompimento paradigmático.
Utilizo Platão – sua obra Crátilo (e seu contexto político) – para demonstrar a busca pelo conhecimento e pela verdade.
Afinal, ali, quatro séculos antes da Era Cristã, já se discutia a “justeza dos nomes”. Isto é, quais as condições de possibilidade
para que os objetos tenham determinados nomes e não outros? Como funciona a relação do sujeito com o objeto? Qual é o
papel da linguagem? Verdade ou método? Essas perguntas atravessam os séculos, experimentando diferentes respostas,
representadas por diferentes “princípios epocais”, que igualmente fizeram a longa travessia de duas metafísicas, chegando,
nesta quadra do tempo, ao universo de posturas e teorias filosóficas que representam as posições hoje consideradas comopós-
metafísicas.
Cada época organizou sua concepção de fundamento.2 Fazendo um pequeno escorço histórico destes vinte séculos, a busca
de um fun​da​men​tum absolutum inconcussum veritatis está já na ideia platônica, na substância aristotélica, no esse
sub​si​tens do medievo (última síntese da metafísica clássica), no cogi ​to inaugurador da filosofia da consciência, no eu penso
kan​tia​no, no abso​lu​to hege​lia​no, na von​ta​de do poder nietzscheana e “no imperativo do dispositivo da era da técnica”, em que
o ser desa​pa​re​ce no pen​sa​men​to que cal​cu​la (Heidegger).3
No campo do direito, tais questões permanece(ra)m difusas – e essa é uma questão ainda não superada pelos juristas – em
um misto de objetivismo e subjetivismo. Se a primeira “etapa” do linguistic turn foi recepcionada pelas concepções
analíticas do direito, o mesmo não se pode dizer acerca daquilo que se pode denominar de “giro-ontológico-linguístico”.
Dito de outro modo – e para facilitar a compreensão da problemática da história da filosofia –, é possível dizer que, para a
metafísica clássica, os sentidos estavam nas coisas (as coisas têm sentido porque há nelas uma essência). A metafísica foi
entendida e projetada como ciência por Aristóteles e é a ciência primeira no sentido que fornece a todas as outras o
fundamento comum, isto é, objeto ao qual todas se referem e os princípios dos quais todas dependem. Para aquilo que aqui
interessa, a metafísica é entendida como ontologia, doutrina que estuda os caracteres fundamentais do ser: aquilo sem o qual
algo não é; se refere às determinações necessárias do ser. Estas determinações estão presentes em todas as formas e maneiras
de ser particular. É um saber que precede todos os outros e, por isso, é a ciência primeira, pois seu objeto está implicado nos
objetos de todas as ciências e o seu princípio condiciona a validade de todos os outros princípios.
Em Duns Scotus já é possível perceber uma superação dessa adeaquatio intellectus et rei, assim como, mais tarde, em
Guilherme de Ockham, para quem os universais existem apenas como nome. Não existe o universal nas coisas. Portanto, não
existem essências. É o que se denomina de nominalismo, uma vez que, ao trabalhar com nomes, palavras, o faz sem que elas se
refiram ou tenham relação com os objetos.
Na verdade – e isso é extremamente relevante –, era impossível de se dizer isso antes de Kant e, de certo modo, da
“invenção” do cogito de Descartes. De fato, até Kant, o ser era um predicado real. Pensava-se que havia uma relação real
entre ser e essência. Portanto, o sentido era dependente dos objetos, que tinham uma essência e, por isso, era possível revelá-
lo.
A superação do objetivismo (realismo filosófico) dá-se na modernidade (ou com a modernidade). Naquela ruptura
histórico-filosófica, ocorre uma busca da explicação sobre os fundamentos do homem. Trata-se do iluminismo (Aufklärung).
O fundamento não é mais o essencialismo com uma certa presença da illuminatio divina. O homem não é mais sujeito às
estruturas. Anuncia-se o nascimento da subjetividade. A palavra “sujeito” muda de posição. Ele passa a “assujeitar” as coisas.
É o que se pode denominar de esquema sujeito-objeto, em que o mundo passa a ser explicado (e fundamentado) pela razão,
circunstância que – embora tal questão não seja objeto destas reflexões – proporcionou o surgimento do Estado Moderno
(aliás, não é por acaso que a obra de ruptura que fundamenta o Estado Moderno tenha sido escrita por Thomas Hobbes, um
nominalista, o que faz dele o primeiro positivista da modernidade).
Já a ruptura com a filosofia da consciência – esse é o “nome” do paradigma da subjetividade – dá-se no século XX, a partir
do que passou a ser denominado de giro linguístico. Esse giro “liberta” a filosofia do fundamentum que, da essência, passara,
na modernidade, para a consciência. Mas, registre-se, o giro ou guinada não se sustenta tão somente no fato de que, agora, os
problemas filosóficos serão linguísticos, em face da propalada “invasão” da filosofia pela linguagem. Mais do que isso,
tratava-se do ingresso do mundo prático na filosofia. Da epistemologia4 – entendida tanto como teoria geral ou teoria do
conhecimento – avançava-se em direção a esse novo paradigma. Nele, existe a descoberta de que, para além do elemento
lógico-analítico, pressupõe-se sempre uma dimensão de caráter prático-pragmático. Em Heidegger, isso pode ser visto a
partir da estrutura prévia do modo de ser no mundo ligado ao compreender; em Wittgenstein, (Investigações Filosóficas), é
uma estrutura social comum – os jogos de linguagem que proporcionam a compreensão. E é por isso que se pode dizer que
Heidegger e Wittgenstein foram os corifeus dessa ruptura paradigmática, sem desprezar as contribuições de Austin, Apel,
Habermas e Gadamer, para citar apenas estes.
Destarte, correndo sempre o risco de simplificar essa complexa questão, pode-se afirmar que, no linguistic turn, a invasão
que a linguagem promove no campo da filosofia transfere o próprio conhecimento para o âmbito da linguagem, onde o mundo
se descortina; é na linguagem que se dá a ação; é na linguagem que se dá o sentido (e não na consciência de si do pensamento
pensante). O sujeito surge na linguagem e pela linguagem, a partir do que se pode dizer que o que morre é a subjetividade
“assujeitadora”, e não o sujeito da relação de objetos (refira-se que, por vezes, há uma leitura equivocada do giro
linguístico, quando se confunde a subjetividade com o sujeito ou, se assim se quiser, confunde-se o sujeito da filosofia da
consciência [s-o] com o sujeito presente em todo ser humano e em qualquer relação de objetos).
Com o giro – que aqui denomino de ontológico-linguístico para diferenciá-lo das pretensões analíticas, principalmente do
neopositivismo lógico –, o sujeito não é fundamento do conhecimento. Trata-se, na verdade – e busco socorro em Stein –, de
uma compreensão de caráter ontológico, no sentido de que nós somos, enquanto seres humanos, entes que já sempre se
compreendem a si mesmos e, assim, o compreender é um existencial da própria condição humana, portanto, faz também parte
da dimensão ontológica: é a questão do círculo hermenêutico-ontológico.
Aqui é necessária uma explicitação: Heidegger elabora a analítica existencial como ontologia fundamental. Essa palavra
“ontologia” usada ali é identificada com a fenomenologia. Por quê? Porque a fenomenologia é utilizada para descrever
também o fenômeno da compreensão do ser. Então, a fenomenologia não se liga somente à compreensão, mas à questão do ser.
E, na medida em que a compreensão do ser de que trata a fenomenologia diz respeito a uma questão ontológica que é prévia –
antecipadora, porque a compreensão do ser é algo com que já sabemos e operamos quando conhecemos os entes –, a
ontologia de que aqui se fala se refere a esse contexto.
É a partir daí que a fenomenologia (hermenêutica) faz uma distinção entre ser (Sein) e ente (Seiende). Ela trata do ser
enquanto compreensão do ser e do ente enquanto compreensão do ser de um ou outro (ou cada) modo de ser. Classicamente, a
ontologia tratava do ser e do ente. Aqui, a ontologia trata do ser ligado ao operar fundamental do ser-aí (Dasein), que é o
compreender do ser. Esse operar é condição de possibilidade de qualquer tratamento dos entes. Tratamento esse que pode ser
chamado na tradição de “ontológico”, mas sempre entificado. Essa ontologia do ente é que Heidegger irá chamar de met-
ontologia. Essa teoria tratará das diversas ontologias regionais (naturalmente, dos entes).
Desse modo, a ontologia ligada à compreensão do ser será uma ontologia fundamental, condição de possibilidade de
qualquer ontologia no sentido clássico que sempre está ligado à entificação e objetificação. Assim, podemos dizer que a
ontologia – originada na tradição hermenêutica – está ligada a um modo de ser e a um modo de operar do ser humano.
Lembremos que o próprio Gadamer reconhece que Heidegger somente ingressa na problemática da hermenêutica e as
críticas históricas com o objetivode desenvolver, a partir delas, desde o ponto de vista ontológico, a pré-estrutura da
compreensão. De algum modo, temos, então, uma ontologia ligada à questão da hermenêutica e, dessa maneira,
indissociavelmente entrelaçada com a pré-compreensão, elemento prévio de qualquer manifestação do ser humano mesmo
na linguagem.
Assim, pode-se falar de uma transformação do conceito de ontologia, para então ligar esse novo conceito ao problema da
linguagem do ponto de vista hermenêutico. A explicitação dessa dimensão ontológico-linguística irá tratar da linguagem não
simplesmente como elemento lógico-argumentativo, mas como um modo de explicitação que já é sempre pressuposto aí
onde lidamos com enunciados lógicos.
Está aí a chave do problema: mesmo que o elemento lógico-explicitativo se apresente do modo como se apresenta nas
teorias analíticas, isto é, de modo único, determinante e autônomo, portanto, dispensando o mundo vivido, ele já sempre está
operando com uma estrutura de sentido que se antecipa ao discurso e representa a sua própria condição de possibilidade.
Por essa razão, é preciso reconhecer que o elemento lógico-analítico já pressupõe sempre o elemento ontológico-linguístico.
É isso que quero dizer quando me refiro ao giro ontológico-linguístico.
Numa palavra: a viragem ontológico-linguística é o raiar da nova possibilidade de constituição de sentido. Trata-se da
superação do elemento apofântico, com a introdução desse elemento prático que são as estruturas prévias que condicionam e
precedem o conhecimento. Assim, a novidade é que o sentido não estará mais na consciência (de si do pensamento pensante),
mas, sim, na linguagem, como algo que produzimos e que é condição de nossa possibilidade de estarmos no mundo. Não nos
relacionamos diretamente com os objetos, mas com a linguagem, que é a condição de possibilidade desse relacionamento; é
pela linguagem que os objetos vêm a mão.
Nesse novo paradigma, a linguagem passa a ser entendida não mais como terceira coisa que se coloca entre o (ou um)
sujeito e o (ou um) objeto e, sim, como condição de possibilidade. A linguagem é o que está dado e, portanto, não pode ser
produto de um sujeito solipsista (Selbstsüchtiger), que constrói o seu próprio objeto de conhecimento.
Nesse sentido, a viragem ontológico-linguística se coloca como o que precede qualquer relação positiva. Não há mais um
“sujeito solitário”; agora há uma comunidade que antecipa qualquer constituição de sujeito.
Trata-se, fundamentalmente, de uma “virada hermenêutica”, que, no plano do conhecimento jurídico, venho denominando –
desde Hermenêutica Jurídica e(m) Crise5 – de Nova Crítica do Direito (ou Crítica Hermenêutica do Direito), isto é, um novo
estilo de abordagem na filosofia pela qual se vê como tarefa primeira o reconhecimento de que a universalidade da
compreensão é condição de possibilidade da racionalização (ou da positivação).
Daí que, com Ernildo Stein, podemos afirmar que, superando-se os paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da
consciência, o acesso a algo não será mais de forma direta e objetivante; o acesso a algo é pela mediação do significado e
do sentido. Não existe acesso às coisas sem a mediação do significado. Então, se não existe acesso às coisas sem a
mediação do significado, não podemos compreender as coisas sem que tenhamos um modo de compreender que acompanha
qualquer tipo de proposição; e este modo de compreender é exatamente este “como” que sustenta a estrutura fundamental do
enunciado assertórico algo enquanto algo, algo como algo (etwas als etwas). Esta expressão revela que não temos acesso
aos objetos assim como eles são, mas sempre de um ponto de vista, a partir de uma clivagem, a cadeira enquanto cadeira, a
árvore enquanto árvore. Isto é mediação do significado.6
Esses são os elementos mínimos necessários para entendermos a questão “de como é possível compreender”. Os
paradigmas conformam o nosso modo de compreender o mundo. E nada está a indicar que o direito tenha “ficado de fora” ou
que possa estar “blindado” aos influxos dessas verdadeiras revoluções copernicanas que atravessaram a filosofia ao longo de
mais de dois mil anos da história ocidental.
Assim, em tempos de viragem linguística – ou, para ser mais específico, em tempos de viragem ontológico-linguística –,
não pode(ria)m passar despercebidas teorizações ou enunciados performativos que reduzem a complexíssima questão do “ato
de julgar” à consciência do intérprete, como se o ato (de julgar) devesse apenas “explicações” a um, por assim dizer,
“tribunal da razão” ou decorresse de um “ato de vontade” do julgador.
Desde logo, cabe consignar que não se ignora o papel exercido pelo chamado “tribunal da razão” no contexto da crítica
kantiana do conhecimento. Com efeito, o sentido de crítica que aparece em Kant – justificar e fundamentar os conceitos com os
quais operamos quando conhecemos – representa um salto paradigmático em toda história da reflexão filosófica. Para isso,
Kant dizia que era preciso colocar nossos juízos diante do “Tribunal da Razão”.
O problema que aparece em Kant, e que acaba por tornar sua crítica não suficientemente radical, é exatamente a hipertrofia
em relação ao sujeito, à consciência. Ou seja, com Heidegger, é possível dizer que Kant aceitou acriticamente a ontologia da
res cogitans de Descartes no momento em que o eu transcendental representa o ponto de unidade de todos os juízos, o
repositório final de todos os conceitos.
Isso quer dizer: a crítica kantiana cola o transcendental no sujeito e, nesse momento, ele passa a ser o lugar último e
fundamento da verdade. Na filosofia hermenêutica, no modo como Heidegger efetua a analítica do Dasein em Ser e Tempo , o
elemento transcendental é deslocado do sujeito para um contexto de significâncias e significados que será chamado de mundo.
Não o mundo da cosmologia ou mundo natural (este foi excluído do espaço da filosofia através do “encurtamento
hermenêutico” [Stein] realizado pelo filósofo), mas o mundo enquanto instância e espaço onde o significado é encontrado e
produzido no contexto de um a priori compartilhado. Trata-se, portanto, de algo que podemos mencionar, com Stein, como um
transcendental histórico.7 O que é importante ressaltar aqui é que o problema da verdade – e, portanto, da manifestação da
verdade no próprio ato judicante – não pode se reduzir a um exercício da vontade do intérprete (julgar conforme sua
consciência), como se a realidade fosse reduzida à sua representação subjetiva.8
Notas
1 Concordo com Garcia-Roza quando diz que Platão atribui ao personagem Crátilo um ponto de vista sobre a adequação das palavras às coisas que não expressa
adequada e suficientemente o pensamento de Heráclito. Com efeito, se os pré-socráticos – mormente Heráclito – descobriram o ser; e Platão e Aristóteles o
esconderam, portanto, a posição de Crátilo não pode corresponder, stricto sensu, à de Heráclito. Cf. Palavra e verdade na filosofia antiga e na psicanálise . Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 67.
2 Trata-se do ser em vista da fundamentação do ente. Por isso, cada época possui o seu fundamento. Cf. Heidegger, Martin. Tempo e Ser. Conferências e Escritos
Filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 2005, p. 256-7.
3 Ver, para tanto, Stein, Ernildo. Pensar é pen​sar a dife​ren​ça. Ijuí: Unijuí, 2004.
4 Aqui é necessário explicitar, ainda que brevemente – sendo que já venho deixando isso claro principalmente na 4ª edição do Verdade e Consenso –, que não é
“proibido” fazer epistemologia na hermenêutica. Trata-se de níveis diferentes (nível hermenêutico e o nível apofântico). Para além da epistemologia geral e da tradição das
teorias da consciência (onde não se trata[va] mais de um conhecimento metafísico, mas de uma metafísica do conhecimento, como bem lembra Stein), a partir do giro
hermenêutico, passa-se a falar do universo do mundo prévio, que é também conhecimento, só que falta(va) explicitá-lo. Esse “vetor de racionalidade de segundo nível” –
explicitativo – é perfeitamentecompatível com a hermenêutica, desde que não se situe como elemento “construtor” do próprio conhecimento (mundo compartilhado
na pré-compreensão).
5 Hermenêutica jurídica e(m) crise. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
6 Cf. A caminho de uma fundamentação pós-metafísica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 86.
7 Cf. Sobre a Verdade. Ijuí: Unijuí, 2006.
8 Para um maior aprofundamento, ver meu Verdade e Consenso , posfácio da quarta edição (Verdade e Consenso . Constituição Hermenêutica e Teorias Discursivas 4.
ed. São Paulo: Saraiva, 2011).
2. As práticas judiciárias em terrae brasilis ou “de como fluem os
sentidos que desnudam um paradigma”
Como já se viu, deslocar o problema da atribuição de sentido para a consciência é apostar, em plena era do predomínio da
linguagem, no individualismo do sujeito que “constrói” o seu próprio objeto de conhecimento. Pensar assim é acreditar que o
conhecimento deve estar fundado em estados de experiência interiores e pessoais, não se conseguindo estabelecer uma relação
direta entre esses estados e o conhecimento objetivo de algo para além deles (Blackburn).
Isso, aliás, tornou-se lugar comum no âmbito do imaginário dos juristas. Com efeito, essa problemática aparece explícita ou
implicitamente. Por vezes, em artigos, livros, entrevistas ou julgamentos, os juízes (singularmente ou por intermédio de
acórdãos nos Tribunais) deixam “claro” que estão julgando “de acordo com a sua consciência” ou “seu entendimento pessoal
sobre o sentido da lei”. Em outras circunstâncias, essa questão aparece devidamente teorizada sob o manto do poder
discricionário dos juízes.
Não se pode olvidar a “tendência” contemporânea (brasileira) de apostar no protagonismo judicial como uma das formas
de concretizar direitos. Esse “incentivo” doutrinário decorre de uma equivocada recepção daquilo que ocorreu na Alemanha
pós-segunda guerra a partir do que se convencionou a chamar de Jurisprudência dos Valores.
No caso alemão, temos que a jurisprudência dos valores serviu para equalizar a tensão produzida depois da outorga da
Grundgesetz pelos aliados, em 1949. Com efeito, nos anos que sucederam a consagração da lei fundamental, houve um
esforço considerável por parte do Bundesverfassungsgericht para legitimar uma Carta que não tinha sido constituída pela
ampla participação do povo alemão. Daí a afirmação de um jus distinto da lex, ou seja, a invocação de argumentos que
permitissem ao Tribunal recorrer a critérios decisórios que se encontravam fora da estrutura rígida da legalidade. A
referência a valores aparece, assim, como mecanismo de “abertura” de uma legalidade extremamente fechada que
possibilitara, em alguma medida, o totalitarismo nazista.
Nesse sentido, não podemos esquecer que a tese da jurisprudência dos valores é, até hoje, de certo modo, preponderante
naquele tribunal, circunstância que tem provocado historicamente fortes críticas no plano da teoria constitucional ao modus
interventivo do tribunal alemão. Releva anotar, entretanto, que a referida tensão efetivamente teve, a partir do segundo pós-
guerra, um papel fundamental na formatação da teoria constitucional contemporânea, por exemplo, em Portugal, Espanha e
Brasil.
Uma coisa que não tem sido dita é que o equívoco das teorias constitucionais e interpretativas que estabelecem uma
repristinação das teses da Jurisprudência dos Valores – mormente em terrae brasilis – está na busca de incorporar o modus
tensionante do tribunal alemão em realidades (tão) distintas, que não possuíam (e não possuem) os mesmos contornos
históricos acima retratados. No caso específico do Brasil, onde, historicamente até mesmo a legalidade burguesa tem sido
difícil de “emplacar”, a grande luta tem sido a de estabelecer as condições para o fortalecimento de um espaço democrático
de edificação da legalidade, plasmado no texto constitucional.
Alguns detalhes deixam à mostra essa problemática. Com efeito, o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos
Coletivos, ultimado em 2007, retrata muito bem essa indevida recepção do “ativismo do Bundesverfassungsgericht”, o que se
pode ver pelos explícitos dispositivos que objetivam a flexibilização da técnica processual, seguido do consequente aumento
dos poderes do juiz, que poderá, inclusive, produzir (sic) provas de ofício.
No elenco dos princípios informadores desse novo Código, encontramos a instrumentalidade das formas, a flexibilização
da técnica processual, a proporcionalidade e a razoabilidade. Porém, o princípio (sic) que mais chama a atenção é o do
“ativismo judicial”, circunstância que desnuda não somente a indevida compreensão da noção de “princípio”, como também o
problema do – agora sim – princípio democrático. Ou seja, o Código já nasce com um déficit de democracia ao deslocar o
problema da concretização dos direitos dos demais Poderes e da Sociedade em direção ao Judiciário. Trata-se,
evidentemente, de um grande paradoxo: como é possível que um Código, cuja pretensão maior é o incremento de mecanismos
de acesso à justiça, aposte no ativismo judicial como um dos seus corolários? É nesses momentos que os processualistas
brasileiros – adeptos do instrumentalismo processual – acabam, implicitamente, dando plena razão a Habermas, quando este
denuncia a colonização do mundo da vida pelo direito.
Aliás, aqui parece ser o momento ideal para esclarecer uma questão que tem sido tratada de forma superficial em terrae
brasilis. Trata-se do modo tabula rasa como tem sido empregado o termo ativismo judicial.9 Note-se: nos Estados Unidos, a
discussão sobre o governo dos juízes e sobre o ativismo judicial acumula mais de duzentos anos de história. Quanto a isso,
basta recordar que o mesmo Marshall que instituiu o precedente que consagrou a judicial review foi também quem iniciou, no
case McCulock v.s. Maryland, a tradição do judicial self restraint. Sintomático, também, que a segunda decisão em sede de
controle de constitucionalidade nos EUA só se deu cinquenta e dois anos depois da primeira.
Não esqueçamos, por outro lado, que ativismo judicial nos Estados Unidos foi feito às avessas num primeiro momento (de
modo que não se pode considerar que o ativismo seja sempre algo positivo). O típico caso de um ativismo às avessas foi a
postura da Suprema Corte estadunidense com relação ao new deal, que, aferrada aos postulados de um liberalismo econômico
do tipo laissez faire, barrava, por inconstitucionalidade, as medidas intervencionistas estabelecidas pelo governo Roosevelt.
As atitudes intervencionistas a favor dos direitos humanos fundamentais ocorrem em um contexto que dependia muito mais da
ação individual de uma maioria estabelecida, do que pelo resultado de um imaginário propriamente ativista. O caso da Corte
Warren, por exemplo, foi resultante da concepção pessoal de certo número de juízes e não o resultado de um sentimento
constitucional acerca desta problemática. E essas circunstâncias não podem ser ignoradas.
Esse ativismo, com ou sem aspas, demonstra também que a sua ratio possui uma origem solipsista, o que se torna
problemático, porque a democracia e os avanços passam a depender das posições individuais da suprema corte. De todo
modo – e isso precisa ficar bem claro –, apenas diante da consagração de uma efetiva jurisdição constitucional é que se pode
falar no problema dos ativismos judiciais.
Veja-se o exemplo alemão, que somente depois da instalação do Tribunal Constitucional passou a discutir os problemas da
expansão do poder judicial e as questões envolvendo a jurisprudência dos valores. No Brasil, a tradição de uma jurisdição
constitucional é recente. Antes de 1988, não existia efetivo controle de constitucionalidade. Isso é fundamental para o
enfrentamento da questão.
Ainda outro lembrete necessário: pode-se dizer que, tanto na operacionalidade stricto sensu como na doutrina, são
perceptíveis, no mínimo, dois tipos de manifestação do paradigma da subjetividade (filosofia da consciência), que envolve
exatamente as questões relativas ao ativismo, decisionismo e a admissão dopoder discricionário. O primeiro trata do
problema de forma mais explícita, “assumindo” que o ato de julgar é um ato de vontade (para não esquecer o oitavo capítulo
da Teoria Pura do Direito de Kelsen); ainda nesse primeiro grupo devem ser incluídas as decisões que, no seu resultado,
implicitamente trata(ra)m da interpretação ao modo solipsista. São decisões que se baseiam em um conjunto de métodos por
vezes incompatíveis ou incoerentes entre si ou, ainda, baseadas em leituras equivocadas de autores como Ronald Dworkin ou
até mesmo Gadamer, confundindo a “superação” dos métodos com relativismos e/ou irracionalismos.
No segundo grupo, encontramos as decisões que buscam justificações no plano de uma racionalidade argumentativa, em
especial, os juristas adeptos das teorias da argumentação jurídica, mormente a matriz alexyana. Também nestas estará presente
o problema paradigmático, uma vez que as teorias da argumentação são dependentes da discricionariedade.10
Alguns exemplos podem auxiliar na compreensão do problema. Em discurso de posse de novos juízes estaduais em
determinada Unidade Federada, a saudação não deixa dúvida acerca do papel do juiz e do processo em terrae brasilis, não
sendo difícil perceber, de igual modo, a confusão entre o positivismo exegético e o positivismo normativo: “o ‘processo’ não
é senão o instrumento que o Estado entrega ao juiz para, ao aplicar a lei ao caso concreto, solucionar o litígio com justiça.
Justiça que emana exclusivamente de nossa consciência, sem nenhum apego obsessivo à letra fria da lei”.11
No plano do que podemos chamar de “aplicação jurídico-judiciária”, calha registrar parte de voto proferido em julgamento
no Superior Tribunal de Justiça:
“Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a
autoridade da minha jurisdição. (...) Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa
autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs.
Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ
decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior
Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições.
Não somos aprendizes de ninguém”.12
Já como preliminar é necessário lembrar – antes mesmo de iniciar estas reflexões no sentido mais crítico – que o direito
não é (e não pode ser) aquilo que o intérprete quer que ele seja. Portanto, o direito não é aquilo que o Tribunal, no seu
conjunto ou na individualidade de seus componentes, dizem que é.13 A doutrina deve doutrinar, sim. Esse é o seu papel.
Aliás, não fosse assim, o que faríamos com as mais de mil faculdades de direito, os milhares de professores e os milhares
livros produzidos anualmente? E mais: não fosse assim, o que faríamos com o parlamento, que aprova as leis? E, afinal, o que
fazer com a Constituição, “lei das leis”?
A posição assumida pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento sob comento apenas explicita aquilo que está na raiz
do problema, que é, necessariamente, paradigmático. Veja-se, mais uma vez, o modo como a linguagem desnuda os elementos
estruturantes, denunciando o “lugar da fala” do interlocutor. Assim, por exemplo, respondendo a uma crítica por ter
suspendido decisão de um juiz de primeiro grau de forma liminar, o desembargador “reconhece” que possa ter se equivocado,
mas, sobretudo, por se tratar de um erro in judicando e não erro in procedendo, [porque] “decido de acordo com a minha
consciência de julgador e o meu entendimento pessoal, como previsto no artigo 131 do Código de Processo Civil”.14 
Estar compromissado apenas com a sua consciência passa a ser o elemento que sustenta o imaginário de parcela
considerável dos magistrados brasileiros, o que se pode perceber em pronunciamento do então Presidente do Superior
Tribunal de Justiça, Min. Costa Leite, respondendo a uma indagação sobre o racionamento de energia elétrica que atingia o
país, no sentido de que, no momento de proferir a decisão (caso concreto), “o juiz não se subordina a ninguém, senão à Lei e
à sua consciência”,15 assim como em importante decisão do mesmo Tribunal em sede de Habeas Corpus: “Em face do
princípio do livre convencimento motivado ou da persuasão racional, o Magistrado, no exercício de sua função judicante,
não está adstrito a qualquer critério de apreciação das provas carreadas aos autos, podendo valorá-las como sua
consciência indicar, uma vez que é soberano dos elementos probatórios apresentados”.16
Do mesmo Superior Tribunal de Justiça, tem-se que “se é certo que o juiz fica adstrito às provas constantes dos autos, não é
menos certo que não fica subordinado a nenhum critério apriorístico no apurar, através delas, a verdade material. O juiz
criminal é, assim, restituído à sua própria consciência”.17
Há, pois, um núcleo comum, uma espécie de holding, que torna o tema recorrente: o juiz não se subordina a “nada”, a não
ser ao “tribunal de sua razão”. Com efeito, “o deferimento de compromisso à testemunha contraditada e que não poderia
prestá-lo, a teor da letra do art. 208, última parte, do Código de Processo Penal, não vicia a ação penal, mas exterioriza-se
como mera irregularidade, pois, não encerrada a instrução e dentro do princípio do livre convencimento motivado, o juiz, não
adstrito a critérios de valoração apriorístico, atribuirá ao depoimento o peso que sua consciência indicar, mediante
fundamentação...”.18 Ou seja, em ultima ratio, em plena vigência da Constituição de 1988, o próprio resultado do processo
dependerá do que a consciência do juiz indicar, pois a gestão da prova não se dá por critérios intersubjetivos, devidamente
filtrados pelo devido processo legal, e, sim, pelo critério inquisitivo do julgador.
Consciência, subjetividade, sistema inquisitório e poder discricionário passam a ser variações de um mesmo tema.
Observe-se a importância dessa questão nos casos de delimitação da pena no seguinte julgamento, em que o Tribunal justifica
o solipsismo judicial, ao sustentar que compete ao juiz, “examinadas as circunstâncias judiciais, estabelecer, conforme
necessário e suficiente, ‘a quantidade da pena aplicável, dentro dos limites previstos’. A avaliação é subjetiva e o juiz lança
o quanto entenda necessário sua consciência”.19
Em linha absolutamente similar, o argumento da discricionariedade assume lugar cimeiro em julgamentos do TJDF,
assentando que a delimitação da faixa etária nos casos de proibição de frequência de menores a casas de jogos eletrônicos
subordina-se a uma inevitável discricionariedade judicial20 e do TJSP, que, em um caso de prazo de desocupação de imóvel
em caso de despejo, alça a discricionariedade ao patamar de princípio.21
A pergunta que se põe é: onde ficam a tradição, a coerência e a integridade do direito? Cada decisão parte (ou estabelece)
um “grau zero de sentido”?
Se, no processo penal, o modo pelo qual se manifesta o paradigma representacional é o sistema inquisitório, no processo
civil, é o protagonismo/ativismo do juiz que encobre a filosofia da consciência. Observe-se, nesse sentido:
I) acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná: “A norma legal propicia ao juiz (...) meios para completar sua
convicção e, assim, decidir com tranquilidade de consciência, realizando o ideal do verdadeiro juiz”;22
II) acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais: “Ao Juiz, como destinatário da prova, e só a ele, cabe,
diante de sua consciência, para proferir decisão, determinar a realização de nova perícia, ainda que, formalmente e à
primeira vista, seja o laudo anterior conclusivo e aparentemente idôneo”;23
III) acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina: “o juiz é o intérprete da consciência social, pois contrapõe
a livre valoração moral à norma”.24
Variações de um mesmo tema: não somente a interpretação da lei dependeda consciência do decisor, mas, também, a
produção da prova. Nesse sentido, registre-se decisão do Superior Tribunal Militar, pela qual “provar é produzir um estado
de certeza na consciência do Juiz, para sua convicção sobre a existência – ou não – de um fato”.25
Há decisões paradigmáticas, que conseguem, em poucas palavras, fundir teses e teorias do paradigma representacional,
como se pode ver na decisão do Superior Tribunal do Trabalho:
“(...) a sentença é um ato de vontade do juiz como órgão do Estado. Decorre de um prévio ato de inteligência com o
objetivo de solucionar todos os pedidos, analisando as causas de pedir, se mais de uma houver. Existindo vários
fundamentos (raciocínio lógico para chegar-se a uma conclusão), o juiz não está obrigado a refutar todos eles. A sentença
não é um diálogo entre o magistrado e as partes. Adotado um fundamento lógico que solucione o binômio ‘causa de
pedir/pedido’, inexiste omissão”.26
Nada surpreendente, mormente se levarmos em conta que recentes trabalhos acadêmicos – embora com pretensões de
construir racionalidades e até mesmo tecer críticas a decisionismos e/ou voluntarismos – acabam por sufragar teses como a
constante no acórdão em tela e nos demais aqui referidos . 27 É o caso, por exemplo, de Eduardo Cambi,28 que, a partir de
uma mixagem de matrizes e autores, sustenta que o juiz, nos casos difíceis, possui tanta margem de discricionariedade
quanto o legislador, como se, a um, o legislador tivesse discricionariedade nesta quadra da história e, a dois, não fosse a
discricionariedade, exatamente, a porta de entrada dos decisionismos e voluntarismos.
Mais ainda, embora sua obra tenha pretensões pós-positivistas (ou antipositivistas), o que, registre-se, é extremamente
louvável, Cambi insiste em teses que são contrárias (ou estão em contradição) ao que propõe, como, por exemplo, quando
sustenta que a sentença é ato de vontade do juiz – repristinando, consciente ou inconscientemente, o pai do positivismo
normativista (Kelsen) – e que “sentença vem de sentir” (sic). Ao fim e ao cabo, reforça o protagonismo judicial que pretende
combater, ao fazer coro com Eduardo Couture, no sentido de que “a dignidade do direito depende da dignidade do juiz”, isto
é, de que “o direito valerá o que valham os juízes”.29
De ressaltar, ademais, a opção explícita de Cambi pelo solipsismo: “A decisão judicial reflete características pessoais do
juiz (a sua personalidade, o seu temperamento, as suas experiências passadas, as suas frustrações, as suas expectativas etc.) ou
dos jurados (...)”.30 Por fim, sustenta a necessidade de que o juiz faça ponderações, o que, também neste caso, coloca-o em
campo distante da hermenêutica filosófica, da teoria integrativa dworkiniana e do antirrelativismo habermasiano.
Exatamente nessa linha é que não se pode (e não se deve) subestimar as mixagens teóricas e a confusão acerca de posições
assumidas por determinados jusfilósofos, que acabam sendo citados fora de contexto, como se reforçassem o paradigma
subjetivista. Por todos, veja-se:
“Segundo a moderna doutrina de Dworkin, ‘Teoria da Aceitação Racional’, no julgamento do caso concreto, o julgador
há de trabalhar, construtivamente, os princípio e regras construtivas do direito vigente, para reforçar a segurança jurídica
e a certeza do direito, proporcionando e aviventando na sociedade o sentimento de justiça. O julgador deve ter o espírito
imbuído da certeza de que o ordenamento jurídico é mais complexo do que o simples conjunto hierarquizado de regras,
defendido pelos positivistas. O sentimento de justiça, que deve revestir o espírito do juiz, é o único capaz de assegurar a
solidez da ordem do Estado Democrático de Direito”.31
Neste último caso, é despiciendo advertir para o fato de que Dworkin não aposta em interpretações que exsurjam do
“espírito do juiz” e tampouco acredita no juiz como “único capaz de assegurar a solidez da ordem do Estado Democrático de
Direito”.
Construiu-se, assim, um imaginário (gnosiológico) no seio da comunidade jurídica brasileira, com forte sustentação na
doutrina, no interior do qual o “decidir” de forma solipsista encontra “fundamentação” – embora tal circunstância não seja
assumida explicitamente – no paradigma da filosofia da consciência. Essa questão assume relevância e deve preocupar a
comunidade jurídica, uma vez que, levada ao seu extremo, a lei – aprovada democraticamente – perde(rá) (mais e mais)
espaço diante daquilo que “o juiz pensa acerca da lei”.
Em determinados julgamentos, torna-se impossível ao “sujeito da modernidade” esconder o solipsismo que o sustenta,
dando-se, assim, razão a Werneck Vianna, quando afirma que a situação do juiz brasileiro é ambígua:
“ele é criatura de uma carreira burocrático-estatal, porém se concebe como um ser singular, auto-orientado, como se
a sua investidura na função fizesse dele um personagem social dotado de carisma. Daí que, embora recrutado fora da
política, isto é, pelo instituto do concurso público, ele não se enquadre inteiramente no ethos burocrático preconizado
por Max Weber”.32
A leitura da seguinte decisão demonstra o acerto da pesquisa comandada por Vianna:
“A judicatura não sobrevive como instituição permanente da sociedade apenas com o saber, com a técnica, com a
excelência do conhecimento teórico. Todos esses ingredientes não são suficientes para um Juiz . De nada adianta
conhecer a doutrina, as leis, a jurisprudência, se, dotado de qualidades intelectuais excepcionais, não tiver honestidade,
vida ilibada, reputação imaculada, não somente perante os destinatários do seu ofício, mas, igualmente, perante os seus
pares. Antes de ser poesia, a alma limpa de um Juiz, a austeridade que impõe a toga que veste, a reclusão da sua
consciência para decidir longe das pressões de toda sorte... (...)”.33
Na mesma linha, vale lembrar decisão que escancara um misto de “filosofia da consciência” e “jusnaturalismo”, em uma
ação judicial de busca e apreensão de menor: “Haverá ele [o Juiz] de acomodar-se numa regra não escrita (non scriptum),
mas inata na morada da consciência dos que julgam (sed nata), que remonta às origens da humanidade, com fincas no direito
natural: jus est arts boni et aequi (o direito é arte do bem e do justo)”.34 Resta a pergunta: haveria uma “consciência inata”
naqueles que julgam?
Permito-me insistir: trata-se de uma questão paradigmática. Veja-se, nesse sentido, acórdão da mais alta Corte do País – e
o aspecto simbólico que dela decorre – em que, por uma de suas Turmas, por maioria de votos, o Tribunal indeferiu habeas
corpus35 em que se alegava falta de demonstração da urgência na produção antecipada de prova testemunhal de acusação,
decretada nos termos do art. 366 do Código de Processo Penal, ante a revelia do paciente/réu. O Supremo Tribunal deixou
assentado que a determinação de produção antecipada de prova está ao alvedrio do juiz, que pode ordenar a sua
realização se considerar existentes condições urgentes para que isso ocorra.
Observe-se, nesse julgado, a imbricação entre o sistema inquisitório e a filosofia da consciência (questão paradigmática,
pois): a determinação de produção antecipada de prova fica a critério (discricionariedade, livre apreciação , para dizer o
menos) do juiz. O Min. Lewandowski votou vencido, concedendo a ordem, porque vislumbrou ofensa ao dever de fundamentar
as decisões judiciais e às garantias do contraditório e da ampla defesa, uma vez que a decisão que determinou a produção de
prova esteve “fundamentada” tão somente no fato de o paciente não ter sido localizado (nas palavras do Ministro, “a decisão
fora determinada de modo automático”).
Apenas o voto de Lewandowski mostrou-se acertado, vez que fundado no sistema acusatório. Os votos vencedores apenas
fortalecem o protagonismo judicial, apostando na “boa escolha” – discricionária – do magistrado. Com efeito, parece
razoável afirmar – a partir de uma abordagem hermenêutica – que, quando a lei estabelece que o juiz pode determinar a
produção antecipada das provas consideradas urgentes,36 sua decisão deverá estar fundamentada/justificada com todos os
detalhes, além de passar pelo crivo do contraditório e da ampla defesa, como, aliás, bem frisou o voto vencido. Além disso, a
urgência de que fala a lei processual deve ser considerada levando em conta toda a história institucional das decisões
anteriores que tratam dessa temática, respeitando a coerência e a integridade. Ou seja, “provas consideradas urgentes” não é
um enunciado assertórico. A “proposição jurídica” só terá sentido em cada caso concreto. A aplicação automática do
dispositivo (tábula rasa) abre espaço para a decisão que o juiz julgar mais conveniente. E isso é reforçar o
“subjetivismo/discricionarismo” dos juízes.37
Notas
9 Registre-se que essa incompreensão em torno do ativismo judicial não se restringe ao problema brasileiro. Também Peter Häberle, prestigiado constitucionalista alemão,
em entrevista publicada no Conjur (Repúblicas jovens necessitam de ativismo judicial, in: www.conjur.com.br, 13.02.2009) entende “ser saudável” para as “novas
repúblicas” o ativismo judicial praticado pelos tribunais que, através de sua ação no tecido social, obriga os demais poderes a agirem também. Creio, porém, que devemos
ter cautela diante da afirmação de Häberle. De pronto, consigno que, quando o judiciário age – desde que devidamente provocado – no sentido de fazer cumprir a
Constituição, não há que se falar em ativismo. O problema do ativismo surge exatamente no momento em que a Corte extrapola os limites impostos pela
Constituição e passa a fazer política judiciária, seja para o “bem”, seja para o “mal”. Ademais, a discussão de Häberle sempre precisará ser contextualizada pelo
simples fato de que seu contexto vivencial concreto é outro – jurisprudência dos valores e todas suas consequências já aqui delineadas –, que é bem diferente daquele que
se apresenta em terrae brasilis. Portanto, não me parece conveniente que os juristas brasileiros “recebam” a entrevista como uma ode ou louvação ao ativismo.
10 Remeto o leitor à terceira edição do meu Verdade e Consenso, op. cit., onde essa problemática está explicitada amiúde.
11 Discurso do Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luis Felipe Salomão, em 10/01/03, na posse de novos Juízes no Rio de Janeiro. Disponível em:
http://www.amaerj.org.br.
12 Voto do Ministro Humberto Gomes de Barros no AgReg em REsp nº 279.889/AL, julg. em 03/04/2001, DJ 11/06/2001, STJ.
13 Lembro, aqui, a assertiva de Herbert Hart, em seu Concept of Law, acerca das regras do jogo de críquete, para usar um autor positivista contra o próprio decisionismo
positivista que claramente exsurge do acórdão em questão.
14 Entrevista disponível em: <http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=68172>. Acesso em: set. 2009. (grifei)
15 Entrevista disponível em: <http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=68172>. Acesso em: set. 2009. (grifei)
16 HC 94.826/SP, julgado em 17/04/2008, DJe 05/05/2008. (grifei)
17 HC 16.706/RJ, julgado em 19/06/2001, DJ 24/09/2001, p. 352. (grifei)
18 HC 11.896/RJ, julgado em 27/06/2000, DJ 21/08/2000, p. 173. (grifei)
19 TJPR: ACrim 135.719-5/ PR, DJ 05/08/1999. (grifei)
20 TJDF: Apelação n. 20823020038070001.
21 TJSP: Agravo de Instrumento n. 1.157.591-0/0.
22 TJSP: AI 7256094200/SP, DJ 31/07/2008. (grifei)
23 TJMG: AC 1671932/MG, DJ 10/02/2000. (grifei)
24 TJSC: AC 37530/SC, DJ 03/08/2000. (grifei)
25 STM: Apelo 49563/RS. (grifei)
26 TST – 1ª Turma – EDRR 6443/89 – Ac. 2418/90– DJU 15.02.91
27 Efetivamente, há que se reconhecer que essa é uma questão que vem sendo reforçada em teses de doutorado e dissertações de mestrado nos diferentes cursos de pós-
graduação. Por todas, refira-se a tese de doutorado de Maria de Fátima S.G.M. de Oliveira, que reforça o imaginário de apoio ao solipsismo judicial ao defender, por
exemplo, que “a liberdade de investigação crítica corresponde à interpretação dada pelo magistrado à norma”. A autora entende que, “hoje, o juiz não se submete à letra
fria da lei. Deve, ao contrário, interpretá-la e suas decisões devem ser harmonizadas ao sistema jurídico, mesmo que, aparentemente, afrontem a lei. O juiz exerce
atividade criadora do direito e com margem de liberdade.” (grifei) Mais ainda, sustenta que a discricionariedade nada mais é, senão, a impressão pessoal do juiz e a
possibilidade de escolher a melhor interpretação desses conceitos indeterminados (dano irreparável, relevante fundamento, etc.) ao caso concreto para atingir a
ordem jurídica justa”. (grifei) Cf. Discricionariedade judicial nas medidas processuais provisórias. São Paulo, PUC, 2007, p. 201 e segs.
28 Cf. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 272.
29 Cf. Cambi, Eduardo. Jurisdição no processo civil. Compreensão crítica. Curitiba: Juruá, 2002, p. 83-4.
30 Cf. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo, op. cit., p. 124 e 125.
http://www.conjur.com.br
http://www.amaerj.org.br
http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=68172
http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=68172
31 TJMG – Apelação n. 1.0596.03.013587-2/001.
32 Cf. Corpo e alma da magistratura brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p. 295.
33 Processo nº 1995.001.00763 – Apelação – Julgamento: 11/04/1995 – 1ª Câmara Cível TJRJ. (grifei)
34 Processo nº 1993.001.04007 – Apelação – Julgamento: 07/12/1993 – 1ª Câmara Cível TJRJ.
35 STF – Habeas Corpus nº 93.157, de 23.09.2008.
36 Anote-se, aliás, que o Anteprojeto praticamente reproduz o atual art. 366 (provas consideradas urgentes). Portanto, de nada adiantará um novo CPP se o juízo
sobre a “urgência” fica ao “alvedrio do juiz”. Veja-se, aqui, a relação entre o “novo” texto e o “velho” texto, e de como o novo poderá se tornar velho a partir de uma
interpretação que coloque o solipsismo judicial no topo da condição de sentido.
37 Lembremos, por relevante, que a fundamentação/justificação/motivação das decisões é um direito fundamental do cidadão (aliás, assim considerado pelo TEDH;
Sentenças: a) de 9.12.1994 – TEDH 1994, 4, Ruiz Torija e Hiro Balani-ES, parágrafos 27 e 29; b) de 19.02.1998 – TEDH 1998,3, Higgins e outros – Fr, parágrafo 42; e c)
de 21.01.99 – TEDH 1999,1, Garcia Ruiz-ES. No mesmo sentido, ressalte-se a posição do Tribunal Constitucional da Espanha (sentença 20/2003, de 10 de fevereiro).
3. Nas nesgas da linguagem, as manifestações doutrinárias que des-
cobrem o DNA do solipsismo judicial
Para além da operacionalidade stricto sensu, a doutrina indica o caminho para a interpretação, colocando a consciência ou
a convicção pessoal como norteadores do juiz, perfectibilizando essa “metodologia” de vários modos. E isso “aparecerá” de
várias maneiras, como na direta aposta na:
a) interpretação como ato de vontade do juiz ou no adágio “sentença como sentire”;
b) interpretação como fruto da subjetividade judicial;
c) interpretação como produto da consciência do julgador;
d) crença de que o juiz deve fazer a “ponderação de valores” a partir de seus “valores”;
e) razoabilidade e/ou proporcionalidade como ato voluntarista do julgador;
f) crença de que “os casos difíceis se resolvem discricionariamente”;
g) cisão estrutural entre regras e princípios, em que estes proporciona(ria)m uma “abertura se sentido” que deverá ser
preenchida e/ou produzida pelo intérprete.
Há ainda outras hipóteses – e cito tão somente algumas que representam, simbolicamente, uma forte parcela do imaginário
jurídico – de manifestação de filiação ao paradigma da subjetividade (esquema sujeito-objeto). Uma observação: o que se tem
visto no plano das práticas jurídicas nem de longe chega a poder ser caracterizada como “filosofia da consciência”; trata-se
de uma vulgata disso. Em meus textos, tenho falado que o solipsismo judicial, o protagonismo e a prática de
discricionariedades se enquadram paradigmaticamente no “paradigma epistemológico dafilosofia da consciência”. Advirto,
porém, que é evidente que o modus decidendi não guarda estrita relação com o “sujeito da modernidade” ou até mesmo com o
“solipsismo kantiano”. Esses são muito mais complexos. Aponto essas “aproximações” para, exatamente, poder fazer uma
anamnese dos discursos, até porque não há discurso que esteja “em paradigma nenhum”, por mais sincrético que seja.
Vejamos: para Maria Helena Diniz,38 “conhecer é trazer para o sujeito algo que se põe como objeto”, consistindo, assim, “em
levar para a consciência do sujeito cognoscente algo que está fora dele (...) tornando-o presente à inteligência”. Essa filiação
ao paradigma subjetivista já estava presente em processualistas como Moacyr Amaral dos Santos, que dizia que “a sentença é
ato de vontade”.39 Já Tourinho Filho vai dizer que o juiz, através da sentença, “declara o que sente”,40 deixando explicitada a
sua adesão à tese da adeaquatio rei et intellectus. Observe-se, nesse contexto, que “filosofia da consciência” e
“discricionariedade judicial” são faces da mesma moeda, sendo muito comum essa junção ser feita a partir da tese – explícita
ou implícita – de que a interpretação (ou a sentença) “é um ato de vontade”, reconstruindo-se, assim, o
discricionarismo/decisionismo sustentado por Kelsen na sua Teoria Pura do Direito.
Refira-se, que, não raras vezes, deparamo-nos com uma mixagem (ou sincretismo) de paradigmas inconciliáveis, como é o
caso da “junção” do paradigma metafísico-clássico (adeaquatio intellectus et rei) e a filosofia da consciência (adeaquatio
rei et intellectus), embora, ao fim e ao cabo, sempre prevaleça a “livre convicção” ou “a vinculação à consciência do
julgador” (sempre com a ressalva de que o que vemos no campo jurídico é uma vulgata, tanto da ontologia clássica como da
filosofia da consciência).
Mixagem desse jaez é feita por Marco Antonio de Barros,41 quando, ao mesmo tempo em que afirma ser a verdade “a
adequação ou conformidade entre o intelecto e a realidade”, sustenta que esta é fruto da inteligência humana, porque
“moldada pelo juízo racional e não pela prova ou evidência que pode ser verídica ou falsa”. Entretanto, no plano da avaliação
das provas, diz que a “convicção do juiz é livre, submete-se a sua própria consciência; porém, a sua decisão deve ser
fundamentada nas provas colhidas no curso do processo”. Veja-se que a ressalva no sentido de que a decisão, embora “de
livre convicção”, deve ser fundamentada nas provas colhidas no curso do processo, seria relevante, não fosse exatamente a
contradição entre “a livre convicção” (solipsismo judicial) e a “fundamentação nas provas processuais”.
Há, assim, no horizonte dogmático, uma mixagem produzida no âmbito do senso comum teórico. Confunde-se o paradigma
ontológico-clássico com o da filosofia da consciência e vice-versa, resultando disso são conceitos absolutamente sincréticos,
autocontraditórios. Afinal, como a “verdade transparece”? Ela estaria “contida” na “coisa”? Existiria, então, uma “essência” a
ser descoberta pelo juiz? Diga-se de passagem, após Kant, que na Crítica da Razão Pura afirmava a impossibilidade de
apreensão da realidade como “noumeno”, restando-nos apenas o “phaenomenon”, é suprema ousadia tentar reivindicar a
realidade em essência. Sendo mais simples e mais didático: essa mixagem (ou sincretismo) de paradigmas inconciliáveis
acaba sendo regra (communis opinium doctorum) na doutrina. E nas práticas dos tribunais. E as raízes são antigas.
O fator talvez mais inusitado que se projeta a partir de todo esse quadro é que, em nenhum aspecto, os argumentos da
dogmática jurídica se aproximam das discussões contemporâneas sobre o conceito de verdade. Continuamos a discutir as
questões a partir do modo como eram levadas a cabo no final do século XIX e início do século XX. Esse relativismo
démodée, bem como essa profissão de fé em um caráter unitário da verdade, não atinge o ponto de estofo da questão que, no
contexto atual, se situa no campo da linguagem. Como afirma Lorenz Puntel: “verdade significa a revelação da coisa mesma
que se articula na dimensão de uma pretensão de validade justificável discursivamente”.42
Interessante notar como essa problemática atravessa os diversos campos ideológicos, isto é, a tese do “protagonismo” e do
“poder discricionário” do juiz é professada por vezes por campos teóricos distantes entre si. É o caso de Ernane Fidélis dos
Santos43 e Rui Portanova. Assim, o primeiro vai dizer que, “para assegurar a imparcialidade do Juiz, é ele dotado de
completa independência, a ponto de não ficar sujeito, no julgamento, a nenhuma autoridade superior. No exercício da
juris​di​ção, o juiz é sobe​ra​no. Não há nada que a ele se sobre​po​nha. Nem a própria lei...”.
Já o segundo,44 notoriamente ligado às teorias críticas do direito – registre-se, destacado jurista e um dos expoentes do
direito alternativo nos duros tempos do ancién régime (ao lado de outros não menos importantes, como, por todos, Amilton
Bueno de Carvalho, Márcio Puggina, James Tubenchlak e Antonio Carlos Wolkmer) –, não discrepa da posição de Fidélis dos
Santos, quando diz, por exemplo, que “enfim, todo homem, e assim também o juiz, é levado a dar significado e alcance
universal e até transcendente àquela ordem de valores imprimida em sua consciência individual. Depois, vê tais valores nas
regras jurídicas. Contudo, estas não são postas só por si. É a motivação ideológica da sentença”. Embora Portanova
reconheça que “o sentenciar alternativo não é autorização para motivações arbitrárias” e que o “o juiz deve manter-se dentro
de um sistema jurídico, mas com liberdade para assumir posição diante da lei, na busca de traduzir o sentimento de justiça da
comunidade”, mais adiante concorda com o próprio Fidélis dos Santos, citando-o, na linha de que “não há nada que se
sobre​po​nha ao juiz, nem a própria lei”. Em outra obra não menos relevante, Portanova45 assevera que “é difícil acreditar em
algo que possa restringir a liberdade do juiz de decidir como quiser. É preciso reconhecer realisticamente: nem a lei, nem
os princípios podem, prévia e plenamente, controlar o julgador”. E complementa: “Depois de tantos anos, os juízes
aprendem como moldar seu sentimento aos fatos trazidos nos autos e ao ordenamento jurídico em vigor. Primeiro se tem a
solu​ção, ​depois se busca a lei para fun​da​men​tá-la”.46
Não há dúvida, pois, de que essa questão da interpretação ou da sentença como “ato de vontade” atravessa os diversos
campos ideológicos do direito. Veja-se o modo como Paulo Queiroz, um dos penalistas mais críticos do país, não consegue se
livrar d(ess)a herança kelseniana do decisionismo. Com efeito, em artigo recente, Queiroz sustenta que “sempre que
condenamos ou absolvemos, fazêmo-lo porque queremos fazê-lo, de sorte que, nesse sentido, a condenação ou a absolvição
não são atos de verdade, mas atos de vontade”. Segundo o penalista baiano, “parece evidente que, ordinariamente, por mais
que tenhamos motivos, legais ou não, para condenar, condenamos porque queremos condenar e porque julgamos importante
fazê-lo; inversamente: por mais que tenhamos motivos, legais ou não, para absolver, absolvemos porque queremos
absolver e julgamos importante fazê-lo”.47 Veja-se: embora substancialmente a contribuição crítica de Queiroz seja inegável,
neste ponto corre o risco de provocar retrocessos democráticos nas manifestações processuais de Promotores e Juízes.
De se consignar que o autor publicou uma resposta às críticas que lhe teci na primeira edição desta obra.48 Na sua réplica,
argumenta que o livro “O que é Isto – decido conforme minha consciência?” combate uma espécie de juiz Robinson Crusoé –
o que, diga-se de pronto, é uma compreensão reducionista do que seja o solipsismo epistemológico, este sim alvo (constante)
do meu combate teórico – e pergunta, retoricamente, se esse juiz solipsista existe realmente (sic). Com isso, Queiroz quer nos
conduzir, em meio a sua sofisticada tessitura, à ideia própria do cinismo nietzscheniano contida na conhecida expressãode
que fatos não há, só há interpretações (o que, de certa forma, virou um jargão em setores críticos do direito brasileiro, que
parecem ter aderido ao relativismo filosófico).49 Desse modo, na visão de Queiroz, o juiz solipsista seria apenas uma –
possível – interpretação da realidade, mas não a realidade mesma. Ou seja, o solipsismo não existiria. Todavia, Queiroz
acaba sendo atraído para a mesma armadilha do autor que cita para afirmar esse “interpretacionismo hermenêutico”, no caso
Günter Abel (aliás, para quem é formado no ambiente hermenêutico, é um truísmo a afirmação das diferenças oceânicas que
separam a posição hermenêutica de Gadamer e seu conceito de interpretação do interpretacionismo de Abel).50 Não que
Nietzsche não seja um autor importante para a tradição hermenêutica. A noção de Ursprung está, de alguma forma, presente no
conceito heideggeriano de Abbau. Entretanto, essa absolutização do conceito de interpretação acaba por levar a um caminho
perigosamente relativista, que não está presente nem em Heidegger e, muito menos – mas muito menos mesmo – em Hans-
Georg Gadamer.
Com efeito, para esses autores (Heidegger e Gadamer), há um elemento possibilitador da própria interpretação que é a
compreensão. O interpretacionismo, em todas as suas formas, desconsidera o caráter antecipador da compreensão e o
elemento de formação dos projetos de mundo, que não são determinados por uma querência individual, mas estão ligados a um
a priori histórico compartilhado. Portanto, não se trata de dizer que o solipsismo não “exista” como se esse conceito –
filosófico que é – tivesse alguma possibilidade de remissão a um objeto empiricamente verificável. O solipsismo é um engodo
teórico; ele existe difusamente num imaginário que se constituiu a partir da modernidade. Aliás, foi a modernidade que
“inventou” o solipsismo. Ela é condição de possibilidade da modernidade! E essa invenção ainda produz efeitos (e drásticos).
Dizer que o solipsismo epistemológico não existe é fazer troça de Wittgenstein II (que falava da impossibilidade da
linguagem privada, combatendo o isomorfismo da tradição e o solipsismo linguístico da modernidade) ou então de Heidegger,
que demonstrou que o Dasein se manifesta existencialmente como ser-com-os-outros, que está sempre engajado em um
projeto de mundo compartilhado.
Há também outra afirmação que causa perplexidade. Diz Queiroz: “que a interpretação do direito constitui um ato de
vontade, nem mesmo Kelsen hesitou em reconhecê-lo, apesar da pretensão de pureza e de estrita obediência do juiz à lei. ”.
Ora, se Kelsen reconheceu, é porque ele sabia que não existe “estrita obediência à lei” no plano do que ele chegou a chamar
“política judiciária”. Por isso, é preciso ficar (bem) alerta para um ponto essencial para a compreensão de Kelsen. Ele era um
neopositivista, circunstância ignorada pela maioria de seus intérpretes – pelo menos em terrae brasilis. A “pureza”
kelseniana, insisto, não se dava no plano do “direito”, mas sim no nível meta-linguístico, da “ciência do direito” (de uma vez
por todas, enten- da-se – e, nesse ponto, ecoam comigo as vozes de Warat e Leonel Rocha: para Kelsen, a ciência do direito
é uma meta-linguagem sobre a linguagem objeto).
Numa palavra final: acreditar que a decisão judicial ou a promoção de arquivamento (ou um pedido de absolvição feitos
pelo MP) são produtos de um ato de vontade (de poder) nos conduz inexoravelmente a um fatalismo. Ou seja, tudo
depende(ria) da vontade pessoal (se o juiz quer fazer, faz; se não quer, não faz...!). Logo, a própria democracia não
depende(ria) de nada para além do que alguém quer...! Fujamos disso! Aliás, a hermenêutica surgiu exatamente para superar o
assujeitamento que o sujeito faz do objeto (aliás, isso é o que é a filosofia da consciência...!).
Além do paradigma epistemológico da filosofia da consciência, é possível também perceber, nos diversos autores
referidos, a substituição de um vetor de racionalidade estruturante (pré-compreensão) por uma racionalidade meramente
instrumental, lógico-argumentativa. Com efeito, é preciso reconhecer, junto com Stein, que só fazemos filosofia no estrito
sentido da palavra – inclusive filosofia no direito – se essa filosofia é uma filosofia de standard de racionalidade. Isso quer
dizer que, para que o filosofar tenha resultados profícuos, é necessário que o filósofo (ou jusfilósofo) saiba se movimentar no
interior de um paradigma filosófico ou de algo que, com Lorenz Puntel, podemos chamar de quadro referencial teórico . É a
partir desse quadro referencial teórico que o trabalho filosófico irá articular suas construções no que tange a uma teoria da
verdade, uma teoria da realidade, uma linguagem e uma ideia de método.51
Na matriz teórica aqui defendida, fica claro que há paradigmas distintos sendo trabalhados. Nesse contexto, exsurge uma
questão que não pode ser ignorada, ou seja, a de que a dogmática jurídica52 permanece aferrada a um paradigma estruturado,
de segundo nível, que se assemelha, muito grosseiramente, aquilo que foi produzido pela filosofia analítica e suas adjacências.
Não é, pois, um vetor de racionalidade estruturante, de primeiro nível, como é o caso da filosofia hermenêutica ou da
hermenêutica filosófica.
Explicando melhor: para as teorias analíticas, o problema da linguagem começa e termina na tarefa de crítica dos
conceitos. Ou seja, o problema da linguagem se resolve a partir de uma “clarificação” ou de uma melhor colocação do
conceito. Antes do conceito não há nada (e por isso é que a dogmática jurídica trabalha com “conceitos sem coisas”). Daí
que é muito difícil, no interior de uma filosofia analítica, filosofar com a história da filosofia. Para a hermenêutica, todavia, a
história da filosofia é condição de possibilidade do filosofar e a representação sintático-semântica dos conceitos é apenas a
superfície de algo muito mais profundo.
Vale dizer: aquilo que é dito (mostrado) na linguagem lógico-conceitual que aparece no discurso apofântico, é apenas a
superfície de algo que já foi compreendido num nível de profundidade que é hermenêutico. Daí que, para a hermenêutica, é
comum a afirmação de que o dito sempre carrega consigo o não dito, sendo que a tarefa do hermeneuta é dar conta, não
daquilo que já foi mostrado pelo discurso (logos) apofântico, mas sim daquilo que permanece retido – como possibilidade –
no discurso (logos) hermenêutico.
Portanto, para a hermenêutica, não faz sentido procurarmos determinar, de maneira abstrata, o sentido das palavras e dos
conceitos, como fazem as posturas analíticas de cariz semântico, mas é preciso se colocar na condição concreta daquele que
compreende – o ser humano – para que o compreendido possa ser devidamente explicitado. E esse é o ponto fulcral!
Não se faz necessária uma análise mais aprofundada para perceber que parcela importante da doutrina – e falo aqui dos
formadores de opinião no plano das práticas judiciárias – sufraga teses pelas quais a interpretação (aplicação) do direito fica
niti​da​men​te depen​den​te de um sujei​to cog​nos​cen​te, o jul​ga​dor.
Nesse sentido, é preciso ressaltar que essa questão vem de longe, na verdade, do século XIX. Desde então, há um problema
filosófico-paradigmático que continua presente nos diversos ramos do direito passados dois séculos, mormente na
problemática relacionada à jurisdição e o papel destinado ao juiz. Desde Oskar von Büllow – questão que também pode ser
vista em Anton Menger e Franz Klein –, a relação publicística está lastreada na figura do juiz, “porta-voz avançado do
sentimento jurídico do povo”, com poderes para além da lei, tese que viabilizou, na sequência, a Escola do Direito Livre.
Essa aposta solipsista está lastreada no paradigma racionalista-subjetivista que atravessa dois séculos, podendo facilmente
ser percebida, na sequência, em Chiovenda, para quem a vontade concreta da lei é aquilo que o juiz afirma ser a vontade
concreta da lei; em Carnellutti, de cuja obra se depreende que a jurisdição é “prover”, “fazer o que seja necessário”;também
em Couture, para o qual, a partir de sua visão intuitiva e subjetivista, chega a dizer que “o problema da escolha do juiz é, em
definitivo, o problema da justiça”; em Liebman, para quem o juiz, no exercício da jurisdição, é livre de vínculos enquanto
intérprete qualificado da lei.
No Brasil, essa “delegação” da atribuição dos sentidos em favor do juiz atravessou o século XX (v.g., de Carlos
Maximiliano a Paulo Dourado de Gusmão), sendo que tais questões estão presentes na concepção instrumentalista do
processo, cujos defensores admitem a existência de escopos metajurídicos, estando permitido ao juiz realizar determinações
jurídicas, mesmo que não contidas no direito legislado, com o que o aperfeiçoamento do sistema jurídico dependerá da “boa
escolha dos juízes” (sic) e, consequentemente, de seu – como assinalam alguns doutrinadores – “sadio protagonismo”.
É nessa linha que, v.g., José Roberto dos Santos Bedaque, importante e prestigiado processualista, procura resolver o
problema da efetividade do processo a partir de uma espécie de “delegação” em favor do julgador, com poderes para reduzir
as formalidades que impedem a realização do direito material em conflito. E isso é feito a partir de um novo princípio
processual – decorrente do “princípio da instrumentalidade53 das formas” – denominado prin​cí ​pio da adequação ou
adaptação do procedimento à correta aplicação da técnica processual. Por este “princípio” se reconhece “ao julgador a
capacidade para, com sensibilidade e bom senso, adequar o mecanismo às especificidades da situação, que não é sempre a
mesma”.54 Mais ainda, deve “ser reconhecido ao juiz o poder de adotar soluções não previstas pelo legislador, adaptando
o processo às necessidades verificadas na situação concreta”.55 Em sua – refira-se – sofisticada tese, embora demonstre
preocupação em afastá-la da discricionariedade, Bedaque termina por sufragar as teses hartianas e kelsenianas, quando
admi​te que as fór​mu​las legis​la​ti​vas aber​tas favo​re​cem essa atua​ção judi​cial.56
No mesmo sentido, Cândido Rangel Dinamarco – que inaugurou com sua tese de Cátedra a corrente chamada
Instrumentalidade do Processo, que influenciou e continua influenciando gerações de juristas – afirma, sem ressalvas, que o
juiz é o canal privilegiado de captação dos valores sociais, devendo estes aparecerem assimilados na sentença . Nas
palavras do autor: “o juiz é o legítimo canal através de que o universo axiológico da sociedade impõe as suas pressões
destinadas a definir e precisar o sentido dos textos, a suprir-lhes eventuais lacunas e a determinar a evolução do conteúdo
substancial das normas constitucionais”.57
Na sequência, Dinamarco faz uma verdadeira profissão de fé no solipsismo do juiz, in verbis: “entra aqui, outra vez, o que
tem sido dito sobre a participação do juiz na revelação do direito do caso concreto. Ser sujeito à lei não significa ser preso ao
rigor das palavras que os textos contêm, mas ao espírito do direito do seu tempo”. E complementa: “se o texto aparenta
apontar para uma solução que não satisfaça ao seu sentimento de justiça, isso significa que provavelmente as palavras do
texto ou foram mal empregadas pelo legislador, ou o próprio texto, segundo a mens legislatoris, discrepa dos valores aceitos
pela nação no tempo presente”.
A opção pelo paradigma subjetivista-solipsista fica mais claro quando assevera que, “na medida em que o próprio
ordenamento jurídico ofereça [ao juiz] meios para uma interpretação sistemática satisfatória perante o seu senso de justiça, ao
afastar-se das aparências verbais do texto e atender aos valores subjacentes à lei, ele estará fazendo cumprir o direito”.58
Estranhamente, essa aposta também é feita por autores ligados à sociologia jurídica, por vezes temperada por pressupostos
marxistas, como é o caso de Boaventura de Sousa Santos. Corroborando o que já pregava de há muito, mormente para as
escolas da magistratura de terrae brasilis, o importante sociólogo, em recente entrevista ao jornal português Global Notícias,
pregou um maior poder discricionário em favor dos juízes no âmbito do processo penal, ao comentar a lentidão da justiça e o
uso de “medidas dilatórias” pela defesa: o juiz deveria ter mais autonomia para dizer: “não aceito esta diligência porque
não me parece que seja útil para que se faça justiça”. Mais ainda, acentuou que os juízes devem poder ter “um papel mais
activo e discricionário no sentido de recusarem algumas diligências ou arrolamentos de mais testemunhas”.59
A toda evidência, não é possível concordar com a tese de Sousa Santos. Qual é o fundamento de, em plena democracia e de
produção democrática do direito, delegar para o juiz esse poder discricionário? E o que é isto, “fazer justiça”? Mais: o
cumprimento estrito das regras processuais – que, nas constituições contemporâneas estão inscritas como direitos
fundamentais – implica “privilégios” processuais ou “injustiças”? E o juiz teria que ter o poder de fazer essas “correções”?
Mas, se o devido processo legal é uma garantia constitucional, de que modo o juiz poderia se contrapor a essa aplicação?
Veja-se o eterno retorno ao problema do solipsismo, o que, paradoxalmente, aproxima as teses de Sousa Santos com aquelas
defendidas por Menger, Klein, Couture, Bedaque, Dinamarco e tantos outros.
Embora sob pressupostos teóricos diferentes, Maria Tereza Sadek – cientista política com largo prestígio junto ao Poder
Judiciário e Ministério Público brasileiros – segue caminho semelhante ao trilhado por Sousa Santos. De mérito, é necessário
dizer que Sadek de há muito vem apontando as deficiências na prestação jurisdicional. Seus números deixam claro, inclusive,
que, atualmente, a maioria dos juízes reconhece o “estado de crise”. Denuncia que, no sistema judiciário, “ou se é bem
relacionado ou mal relacionado. O ideal de justiça se contrapõe a privilégios”.60 Identifica como um dos fatores da
impunidade a legislação processual, com demasiado número de recursos, manipuláveis pela técnica jurídica. No campo do
processo civil, critica a subvalorização dos juizados especiais: “A face de prestação de serviços de Judiciário deveria estar
no Juizado, já que a Justiça comum está próxima da falência”.61 Lamenta, também, que as decisões que “provoquem
consequências no coletivo” fiquem a cargo de um juiz individual. No plano das reformas mais recentes, reconhece que “A EC
45 abriu espaço para a efetivação de alterações de natureza institucional no Judiciário. Qualificam-se nessa dimensão a
súmula vinculante, o sistema de repercussão geral, a Lei dos Recursos Repetitivos e o critério de transcendência. Esses
expedientes começaram a ser utilizados e já provocaram alterações significativas no perfil das Cortes, no volume de
processos e na qualidade das sentenças”.62
Embora a riqueza dos dados e a importância das denúncias que podem ser retiradas das pesquisas de Sadek, as soluções
apontadas permanecem ou seguem uma linha de raciocínio já dominante no próprio judiciário: a de que o problema da crise
está na morosidade, no “emaranhado” legislativo e que, portanto, há que se “fazer gestão”. Em 2009, ao detalhar as
conclusões das pesquisas feitas sobre o Judiciário, Sadek chega a afirmar que “o desempenho do Judiciário depende
exclusivamente da gestão, da administração interna (...)”.63 Observe-se o grau de comprometimento das conclusões da
pesquisadora, vez que passam ao largo de uma análise sob a perspectiva da substancialidade: para ela, a crise do Judiciário
torna-se um problema de administração/gerenciamento/organização da justiça.
Em outras palavras, segundo Sadek, o problema da crise da justiça estaria no fato de que os juízes (lato sensu) não
estariam preparados para a gestão administrativa-econômica do judiciário. E que, se os juízes forem melhor preparados –
inclusive ou mormente em relação a saber gestionar –, o Judiciário pode(ria) superar a crise.
Nota-se, ademais, como os dignósticos (e as soluções) apresentados por Sadek não enfrentam o problema dos julgamentos
democráticos

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