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Créditos Coleção O QUE É ISTO? Diretor/Organizador Lenio Luiz Streck Conselho Editorial Lenio Luiz Streck Jose Luis Bolzan de Morais Leonel Severo Rocha Ingo Wolfgang Sarlet Jania Saldanha © Lenio Luiz Streck, 2013 Projeto gráfico e diagramação Livraria do Advogado Editora Projeto da capa Clarissa Tassinari Gravura da capa “A Torre de Babel” por Pieter Bruegel, em 1563 Direitos desta edição reservados por Livraria do Advogado Editora Ltda. Rua Riachuelo, 1338 90010-273 Porto Alegre RS Fone/fax: 0800-51-7522 editora@livrariadoadvogado.com.br www.doadvogado.com.br _____________________________________________ S914o Streck, Lenio Luiz O que é isto – decido conforme minha consciência? – 4. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013. (Coleção O Que é Isto? – 1) ISBN 978-85-7348-838-8 1. Teoria do direito. 2. Filosofia do direito. I. Título. CDU – 340.12 Sobre o autor LENIO LUIZ STRECK é Procurador de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Doutor e Pós-Doutor em Direito, Professor titular da UNISINOS, colaborador/visitante da UNESA-RJ, ROMA-TRE (Scuola Dottorale Tulio Scarelli), Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC (Acordo Internacional Capes-Grices); Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst; Presidente de Honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica – IHJ (RS-MG); membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB; coordenador do DASEIN – Núcleo de Estudos Hermenêuticos; autor, entre outros livros, de Hermenêutica Jurídica e(m) Crise (10ª ed.), Ciência Política e Teoria do Estado (7ª ed.), Interceptações Telefônicas (2ª ed.), todos pela Livraria do Advogado Editora; Verdade e Consenso (4ª ed.), pela Editora Saraiva; Verdad y Consenso - Hermenéutica, Constituición y Teorías Discursivas; Hermenéutica Jurídica - Estudios de Teoría Del Derecho , ambos pela ARA – Editores, de Lima, Peru; Editor do site www.leniostreck.com.br. http://www.leniostreck.com.br Dedicatória Sempre a Ernildo Stein, pela escuta constante; Aos membros do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos (em especial, Clarissa Tassinari, quem mais trabalhou; Rafael Köche; Fausto Santos de Morais, André Karam Trindade e Rafael Tomaz de Oliveira). E sempre, também, Rosane e Maria Luiza. Apresentando a Coleção O QUE É ISTO? Dizia o antropólogo Darci Ribeiro que Deus é tão treteiro, faz as coisas tão recônditas e sofisticadas, que ainda precisamos de certo tipo de gente – os cientistas – para desvelar as obviedades do óbvio. É da “natureza” do óbvio estar no anonimato. Está aí para ser des-velado. Desobnubilado. Dizer que algo está aí. Apontar para ele. E perguntar o que isto é ou “o que é isto”. Essa é a tarefa de qualquer pesquisa. Pois uma das coisas que parecem óbvias é que o direito é um fenômeno complexo. Afinal, para o bem e para o mal, há sempre algo regrando a nossa vida. Poder, política, violência, guerra e paz: o espectro do direito ronda a humanidade. Mas seria o direito apenas um instrumento à disposição do poder? É possível “simplificar” o direito a ponto de transformá-lo em um conjunto de standards aplicativos? Embora parcela considerável da comunidade jurídica acredite que o direito é uma racionalidade meramente (ou “puramente”) instrumental – no que não discrepa sobremodo de determinadas visões advindas da sociologia ou até mesmo da filosofia – venho trabalhando de há muito na contramão dessa tese. Os regimes totalitários e as atrocidades cometidas sob o pálio do direito deveriam ter-nos ensinado que o direito deve ser mais do que instrumento, técnica ou procedimento. É como dizer: depois dos fracassos do positivismo em expungir a moral do campo jurídico, algo tinha que ser feito. Dito de outro modo: o direito não pode(ria) ficar imune aos influxos das profundas transformações ocorridas no campo dos paradigmas filosóficos. Pois é a partir dessa constatação e/ou reconhecimento de que, mais do que uma filosofia do direito, teríamos que elaborar uma filosofia no direito, busco construir as condições de possibilidade para que possamos dar respostas às diversas perguntas acerca da complexidade do direito. Por que o pensar dos juristas seria diferente do pensar do filósofo? Por que o jurista teria um diferente “acesso” à “realidade”? Vejam-se, por exemplo, algumas questões absolutamente intrigantes: se, no campo da filosofia, já não se acredita em essências, qual é a razão de os juristas continuarem a acreditar na “busca da verdade real”? Ou: se a filosofia da consciência foi contestada e superada pelas diversas correntes linguísticas, por que razão no campo jurídico se continua a apostar na “consciência de si do pensamento pensante”? É nesse sentido que, entre outras questões, a presente coleção procura desvendar os meandros paradigmáticos que obnubilam o pensamento dos juristas. Busca-se fazer com o direito, guardadas as perspectivas histórico-filosóficas, o que Heidegger buscou no campo filosófico com a pergunta: O que é isto – a filosofia? (Was ist Das – die Philosophie)? Mutatis, mutandis, o conjunto reflexivo que inicia com o volume O que é isto – decido conforme minha consciência?, busca responder às mais diversas indagações acerca do (complexo) fenômeno jurídico. O objetivo final é contribuir para a reposta a uma pergunta que talvez seja impossível de responder: O que é isto – o Direito? Esse é o desafio que enfrentamos com o primeiro volume desta coleção. Lenio Luiz Streck 1. Objeto, sujeito e o giro ontológico-linguístico No pensamento ocidental, há uma angústia particular que assombra o homem. Podemos atravessar o “abismo gnosiológico” que separa o homem das coisas? Como se dá nome às coisas? Por que algo é? Desde o início, houve um compromisso da filosofia com a verdade; a filosofia sempre procurou esse olhar que desvendasse o que as coisas são. Talvez a obra que melhor simbolize essa procura angustiante seja Crátilo, escrito por Platão no ano de 388 a.C. Esse diálogo pode ser considerado a primeira obra de filosofia da linguagem da história da humanidade. Nele, além de Sócrates, há mais dois personagens: Hermógenes, que representa os sofistas, e Crátilo, que representa Heráclito (pré-socrático que, juntamente com Parmênides, inaugura a discussão acerca do “ser” e do “pensar”, e do logos superando o mythos). Crátilo pode ser considerado o primeiro que problematizou a filosofia da linguagem. Platão, pela boca de Sócrates, contrapõe dialeticamente duas teses: o naturalismo, pela qual cada coisa tem nome por natureza (o logos está na physis), tese defendida no diálogo por Crátilo,1 e o convencionalismo, posição sofística defendida por Hermógenes, pela qual a ligação do nome com as coisas é absolutamente arbitrária e convencional, é dizer, não há qualquer ligação das palavras com as coisas. Veja-se: Crátilo representa o enfrentamento de Platão com a sofística. Os sofistas – que podem ser considerados os primeiros positivistas – defendiam o convencionalismo, isto é, que entre palavras e coisas não há nenhuma ligação/relação. Claro que, com isso, a verdade deixava de ser prioritária. O discurso passava a depender de argumentos persuasivos (retórica e argumentação). Os sofistas provocaram, assim, no contexto da Grécia antiga, um rompimento paradigmático. Utilizo Platão – sua obra Crátilo (e seu contexto político) – para demonstrar a busca pelo conhecimento e pela verdade. Afinal, ali, quatro séculos antes da Era Cristã, já se discutia a “justeza dos nomes”. Isto é, quais as condições de possibilidade para que os objetos tenham determinados nomes e não outros? Como funciona a relação do sujeito com o objeto? Qual é o papel da linguagem? Verdade ou método? Essas perguntas atravessam os séculos, experimentando diferentes respostas, representadas por diferentes “princípios epocais”, que igualmente fizeram a longa travessia de duas metafísicas, chegando, nesta quadra do tempo, ao universo de posturas e teorias filosóficas que representam as posições hoje consideradas comopós- metafísicas. Cada época organizou sua concepção de fundamento.2 Fazendo um pequeno escorço histórico destes vinte séculos, a busca de um fundamentum absolutum inconcussum veritatis está já na ideia platônica, na substância aristotélica, no esse subsitens do medievo (última síntese da metafísica clássica), no cogi to inaugurador da filosofia da consciência, no eu penso kantiano, no absoluto hegeliano, na vontade do poder nietzscheana e “no imperativo do dispositivo da era da técnica”, em que o ser desaparece no pensamento que calcula (Heidegger).3 No campo do direito, tais questões permanece(ra)m difusas – e essa é uma questão ainda não superada pelos juristas – em um misto de objetivismo e subjetivismo. Se a primeira “etapa” do linguistic turn foi recepcionada pelas concepções analíticas do direito, o mesmo não se pode dizer acerca daquilo que se pode denominar de “giro-ontológico-linguístico”. Dito de outro modo – e para facilitar a compreensão da problemática da história da filosofia –, é possível dizer que, para a metafísica clássica, os sentidos estavam nas coisas (as coisas têm sentido porque há nelas uma essência). A metafísica foi entendida e projetada como ciência por Aristóteles e é a ciência primeira no sentido que fornece a todas as outras o fundamento comum, isto é, objeto ao qual todas se referem e os princípios dos quais todas dependem. Para aquilo que aqui interessa, a metafísica é entendida como ontologia, doutrina que estuda os caracteres fundamentais do ser: aquilo sem o qual algo não é; se refere às determinações necessárias do ser. Estas determinações estão presentes em todas as formas e maneiras de ser particular. É um saber que precede todos os outros e, por isso, é a ciência primeira, pois seu objeto está implicado nos objetos de todas as ciências e o seu princípio condiciona a validade de todos os outros princípios. Em Duns Scotus já é possível perceber uma superação dessa adeaquatio intellectus et rei, assim como, mais tarde, em Guilherme de Ockham, para quem os universais existem apenas como nome. Não existe o universal nas coisas. Portanto, não existem essências. É o que se denomina de nominalismo, uma vez que, ao trabalhar com nomes, palavras, o faz sem que elas se refiram ou tenham relação com os objetos. Na verdade – e isso é extremamente relevante –, era impossível de se dizer isso antes de Kant e, de certo modo, da “invenção” do cogito de Descartes. De fato, até Kant, o ser era um predicado real. Pensava-se que havia uma relação real entre ser e essência. Portanto, o sentido era dependente dos objetos, que tinham uma essência e, por isso, era possível revelá- lo. A superação do objetivismo (realismo filosófico) dá-se na modernidade (ou com a modernidade). Naquela ruptura histórico-filosófica, ocorre uma busca da explicação sobre os fundamentos do homem. Trata-se do iluminismo (Aufklärung). O fundamento não é mais o essencialismo com uma certa presença da illuminatio divina. O homem não é mais sujeito às estruturas. Anuncia-se o nascimento da subjetividade. A palavra “sujeito” muda de posição. Ele passa a “assujeitar” as coisas. É o que se pode denominar de esquema sujeito-objeto, em que o mundo passa a ser explicado (e fundamentado) pela razão, circunstância que – embora tal questão não seja objeto destas reflexões – proporcionou o surgimento do Estado Moderno (aliás, não é por acaso que a obra de ruptura que fundamenta o Estado Moderno tenha sido escrita por Thomas Hobbes, um nominalista, o que faz dele o primeiro positivista da modernidade). Já a ruptura com a filosofia da consciência – esse é o “nome” do paradigma da subjetividade – dá-se no século XX, a partir do que passou a ser denominado de giro linguístico. Esse giro “liberta” a filosofia do fundamentum que, da essência, passara, na modernidade, para a consciência. Mas, registre-se, o giro ou guinada não se sustenta tão somente no fato de que, agora, os problemas filosóficos serão linguísticos, em face da propalada “invasão” da filosofia pela linguagem. Mais do que isso, tratava-se do ingresso do mundo prático na filosofia. Da epistemologia4 – entendida tanto como teoria geral ou teoria do conhecimento – avançava-se em direção a esse novo paradigma. Nele, existe a descoberta de que, para além do elemento lógico-analítico, pressupõe-se sempre uma dimensão de caráter prático-pragmático. Em Heidegger, isso pode ser visto a partir da estrutura prévia do modo de ser no mundo ligado ao compreender; em Wittgenstein, (Investigações Filosóficas), é uma estrutura social comum – os jogos de linguagem que proporcionam a compreensão. E é por isso que se pode dizer que Heidegger e Wittgenstein foram os corifeus dessa ruptura paradigmática, sem desprezar as contribuições de Austin, Apel, Habermas e Gadamer, para citar apenas estes. Destarte, correndo sempre o risco de simplificar essa complexa questão, pode-se afirmar que, no linguistic turn, a invasão que a linguagem promove no campo da filosofia transfere o próprio conhecimento para o âmbito da linguagem, onde o mundo se descortina; é na linguagem que se dá a ação; é na linguagem que se dá o sentido (e não na consciência de si do pensamento pensante). O sujeito surge na linguagem e pela linguagem, a partir do que se pode dizer que o que morre é a subjetividade “assujeitadora”, e não o sujeito da relação de objetos (refira-se que, por vezes, há uma leitura equivocada do giro linguístico, quando se confunde a subjetividade com o sujeito ou, se assim se quiser, confunde-se o sujeito da filosofia da consciência [s-o] com o sujeito presente em todo ser humano e em qualquer relação de objetos). Com o giro – que aqui denomino de ontológico-linguístico para diferenciá-lo das pretensões analíticas, principalmente do neopositivismo lógico –, o sujeito não é fundamento do conhecimento. Trata-se, na verdade – e busco socorro em Stein –, de uma compreensão de caráter ontológico, no sentido de que nós somos, enquanto seres humanos, entes que já sempre se compreendem a si mesmos e, assim, o compreender é um existencial da própria condição humana, portanto, faz também parte da dimensão ontológica: é a questão do círculo hermenêutico-ontológico. Aqui é necessária uma explicitação: Heidegger elabora a analítica existencial como ontologia fundamental. Essa palavra “ontologia” usada ali é identificada com a fenomenologia. Por quê? Porque a fenomenologia é utilizada para descrever também o fenômeno da compreensão do ser. Então, a fenomenologia não se liga somente à compreensão, mas à questão do ser. E, na medida em que a compreensão do ser de que trata a fenomenologia diz respeito a uma questão ontológica que é prévia – antecipadora, porque a compreensão do ser é algo com que já sabemos e operamos quando conhecemos os entes –, a ontologia de que aqui se fala se refere a esse contexto. É a partir daí que a fenomenologia (hermenêutica) faz uma distinção entre ser (Sein) e ente (Seiende). Ela trata do ser enquanto compreensão do ser e do ente enquanto compreensão do ser de um ou outro (ou cada) modo de ser. Classicamente, a ontologia tratava do ser e do ente. Aqui, a ontologia trata do ser ligado ao operar fundamental do ser-aí (Dasein), que é o compreender do ser. Esse operar é condição de possibilidade de qualquer tratamento dos entes. Tratamento esse que pode ser chamado na tradição de “ontológico”, mas sempre entificado. Essa ontologia do ente é que Heidegger irá chamar de met- ontologia. Essa teoria tratará das diversas ontologias regionais (naturalmente, dos entes). Desse modo, a ontologia ligada à compreensão do ser será uma ontologia fundamental, condição de possibilidade de qualquer ontologia no sentido clássico que sempre está ligado à entificação e objetificação. Assim, podemos dizer que a ontologia – originada na tradição hermenêutica – está ligada a um modo de ser e a um modo de operar do ser humano. Lembremos que o próprio Gadamer reconhece que Heidegger somente ingressa na problemática da hermenêutica e as críticas históricas com o objetivode desenvolver, a partir delas, desde o ponto de vista ontológico, a pré-estrutura da compreensão. De algum modo, temos, então, uma ontologia ligada à questão da hermenêutica e, dessa maneira, indissociavelmente entrelaçada com a pré-compreensão, elemento prévio de qualquer manifestação do ser humano mesmo na linguagem. Assim, pode-se falar de uma transformação do conceito de ontologia, para então ligar esse novo conceito ao problema da linguagem do ponto de vista hermenêutico. A explicitação dessa dimensão ontológico-linguística irá tratar da linguagem não simplesmente como elemento lógico-argumentativo, mas como um modo de explicitação que já é sempre pressuposto aí onde lidamos com enunciados lógicos. Está aí a chave do problema: mesmo que o elemento lógico-explicitativo se apresente do modo como se apresenta nas teorias analíticas, isto é, de modo único, determinante e autônomo, portanto, dispensando o mundo vivido, ele já sempre está operando com uma estrutura de sentido que se antecipa ao discurso e representa a sua própria condição de possibilidade. Por essa razão, é preciso reconhecer que o elemento lógico-analítico já pressupõe sempre o elemento ontológico-linguístico. É isso que quero dizer quando me refiro ao giro ontológico-linguístico. Numa palavra: a viragem ontológico-linguística é o raiar da nova possibilidade de constituição de sentido. Trata-se da superação do elemento apofântico, com a introdução desse elemento prático que são as estruturas prévias que condicionam e precedem o conhecimento. Assim, a novidade é que o sentido não estará mais na consciência (de si do pensamento pensante), mas, sim, na linguagem, como algo que produzimos e que é condição de nossa possibilidade de estarmos no mundo. Não nos relacionamos diretamente com os objetos, mas com a linguagem, que é a condição de possibilidade desse relacionamento; é pela linguagem que os objetos vêm a mão. Nesse novo paradigma, a linguagem passa a ser entendida não mais como terceira coisa que se coloca entre o (ou um) sujeito e o (ou um) objeto e, sim, como condição de possibilidade. A linguagem é o que está dado e, portanto, não pode ser produto de um sujeito solipsista (Selbstsüchtiger), que constrói o seu próprio objeto de conhecimento. Nesse sentido, a viragem ontológico-linguística se coloca como o que precede qualquer relação positiva. Não há mais um “sujeito solitário”; agora há uma comunidade que antecipa qualquer constituição de sujeito. Trata-se, fundamentalmente, de uma “virada hermenêutica”, que, no plano do conhecimento jurídico, venho denominando – desde Hermenêutica Jurídica e(m) Crise5 – de Nova Crítica do Direito (ou Crítica Hermenêutica do Direito), isto é, um novo estilo de abordagem na filosofia pela qual se vê como tarefa primeira o reconhecimento de que a universalidade da compreensão é condição de possibilidade da racionalização (ou da positivação). Daí que, com Ernildo Stein, podemos afirmar que, superando-se os paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência, o acesso a algo não será mais de forma direta e objetivante; o acesso a algo é pela mediação do significado e do sentido. Não existe acesso às coisas sem a mediação do significado. Então, se não existe acesso às coisas sem a mediação do significado, não podemos compreender as coisas sem que tenhamos um modo de compreender que acompanha qualquer tipo de proposição; e este modo de compreender é exatamente este “como” que sustenta a estrutura fundamental do enunciado assertórico algo enquanto algo, algo como algo (etwas als etwas). Esta expressão revela que não temos acesso aos objetos assim como eles são, mas sempre de um ponto de vista, a partir de uma clivagem, a cadeira enquanto cadeira, a árvore enquanto árvore. Isto é mediação do significado.6 Esses são os elementos mínimos necessários para entendermos a questão “de como é possível compreender”. Os paradigmas conformam o nosso modo de compreender o mundo. E nada está a indicar que o direito tenha “ficado de fora” ou que possa estar “blindado” aos influxos dessas verdadeiras revoluções copernicanas que atravessaram a filosofia ao longo de mais de dois mil anos da história ocidental. Assim, em tempos de viragem linguística – ou, para ser mais específico, em tempos de viragem ontológico-linguística –, não pode(ria)m passar despercebidas teorizações ou enunciados performativos que reduzem a complexíssima questão do “ato de julgar” à consciência do intérprete, como se o ato (de julgar) devesse apenas “explicações” a um, por assim dizer, “tribunal da razão” ou decorresse de um “ato de vontade” do julgador. Desde logo, cabe consignar que não se ignora o papel exercido pelo chamado “tribunal da razão” no contexto da crítica kantiana do conhecimento. Com efeito, o sentido de crítica que aparece em Kant – justificar e fundamentar os conceitos com os quais operamos quando conhecemos – representa um salto paradigmático em toda história da reflexão filosófica. Para isso, Kant dizia que era preciso colocar nossos juízos diante do “Tribunal da Razão”. O problema que aparece em Kant, e que acaba por tornar sua crítica não suficientemente radical, é exatamente a hipertrofia em relação ao sujeito, à consciência. Ou seja, com Heidegger, é possível dizer que Kant aceitou acriticamente a ontologia da res cogitans de Descartes no momento em que o eu transcendental representa o ponto de unidade de todos os juízos, o repositório final de todos os conceitos. Isso quer dizer: a crítica kantiana cola o transcendental no sujeito e, nesse momento, ele passa a ser o lugar último e fundamento da verdade. Na filosofia hermenêutica, no modo como Heidegger efetua a analítica do Dasein em Ser e Tempo , o elemento transcendental é deslocado do sujeito para um contexto de significâncias e significados que será chamado de mundo. Não o mundo da cosmologia ou mundo natural (este foi excluído do espaço da filosofia através do “encurtamento hermenêutico” [Stein] realizado pelo filósofo), mas o mundo enquanto instância e espaço onde o significado é encontrado e produzido no contexto de um a priori compartilhado. Trata-se, portanto, de algo que podemos mencionar, com Stein, como um transcendental histórico.7 O que é importante ressaltar aqui é que o problema da verdade – e, portanto, da manifestação da verdade no próprio ato judicante – não pode se reduzir a um exercício da vontade do intérprete (julgar conforme sua consciência), como se a realidade fosse reduzida à sua representação subjetiva.8 Notas 1 Concordo com Garcia-Roza quando diz que Platão atribui ao personagem Crátilo um ponto de vista sobre a adequação das palavras às coisas que não expressa adequada e suficientemente o pensamento de Heráclito. Com efeito, se os pré-socráticos – mormente Heráclito – descobriram o ser; e Platão e Aristóteles o esconderam, portanto, a posição de Crátilo não pode corresponder, stricto sensu, à de Heráclito. Cf. Palavra e verdade na filosofia antiga e na psicanálise . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 67. 2 Trata-se do ser em vista da fundamentação do ente. Por isso, cada época possui o seu fundamento. Cf. Heidegger, Martin. Tempo e Ser. Conferências e Escritos Filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 2005, p. 256-7. 3 Ver, para tanto, Stein, Ernildo. Pensar é pensar a diferença. Ijuí: Unijuí, 2004. 4 Aqui é necessário explicitar, ainda que brevemente – sendo que já venho deixando isso claro principalmente na 4ª edição do Verdade e Consenso –, que não é “proibido” fazer epistemologia na hermenêutica. Trata-se de níveis diferentes (nível hermenêutico e o nível apofântico). Para além da epistemologia geral e da tradição das teorias da consciência (onde não se trata[va] mais de um conhecimento metafísico, mas de uma metafísica do conhecimento, como bem lembra Stein), a partir do giro hermenêutico, passa-se a falar do universo do mundo prévio, que é também conhecimento, só que falta(va) explicitá-lo. Esse “vetor de racionalidade de segundo nível” – explicitativo – é perfeitamentecompatível com a hermenêutica, desde que não se situe como elemento “construtor” do próprio conhecimento (mundo compartilhado na pré-compreensão). 5 Hermenêutica jurídica e(m) crise. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 6 Cf. A caminho de uma fundamentação pós-metafísica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 86. 7 Cf. Sobre a Verdade. Ijuí: Unijuí, 2006. 8 Para um maior aprofundamento, ver meu Verdade e Consenso , posfácio da quarta edição (Verdade e Consenso . Constituição Hermenêutica e Teorias Discursivas 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011). 2. As práticas judiciárias em terrae brasilis ou “de como fluem os sentidos que desnudam um paradigma” Como já se viu, deslocar o problema da atribuição de sentido para a consciência é apostar, em plena era do predomínio da linguagem, no individualismo do sujeito que “constrói” o seu próprio objeto de conhecimento. Pensar assim é acreditar que o conhecimento deve estar fundado em estados de experiência interiores e pessoais, não se conseguindo estabelecer uma relação direta entre esses estados e o conhecimento objetivo de algo para além deles (Blackburn). Isso, aliás, tornou-se lugar comum no âmbito do imaginário dos juristas. Com efeito, essa problemática aparece explícita ou implicitamente. Por vezes, em artigos, livros, entrevistas ou julgamentos, os juízes (singularmente ou por intermédio de acórdãos nos Tribunais) deixam “claro” que estão julgando “de acordo com a sua consciência” ou “seu entendimento pessoal sobre o sentido da lei”. Em outras circunstâncias, essa questão aparece devidamente teorizada sob o manto do poder discricionário dos juízes. Não se pode olvidar a “tendência” contemporânea (brasileira) de apostar no protagonismo judicial como uma das formas de concretizar direitos. Esse “incentivo” doutrinário decorre de uma equivocada recepção daquilo que ocorreu na Alemanha pós-segunda guerra a partir do que se convencionou a chamar de Jurisprudência dos Valores. No caso alemão, temos que a jurisprudência dos valores serviu para equalizar a tensão produzida depois da outorga da Grundgesetz pelos aliados, em 1949. Com efeito, nos anos que sucederam a consagração da lei fundamental, houve um esforço considerável por parte do Bundesverfassungsgericht para legitimar uma Carta que não tinha sido constituída pela ampla participação do povo alemão. Daí a afirmação de um jus distinto da lex, ou seja, a invocação de argumentos que permitissem ao Tribunal recorrer a critérios decisórios que se encontravam fora da estrutura rígida da legalidade. A referência a valores aparece, assim, como mecanismo de “abertura” de uma legalidade extremamente fechada que possibilitara, em alguma medida, o totalitarismo nazista. Nesse sentido, não podemos esquecer que a tese da jurisprudência dos valores é, até hoje, de certo modo, preponderante naquele tribunal, circunstância que tem provocado historicamente fortes críticas no plano da teoria constitucional ao modus interventivo do tribunal alemão. Releva anotar, entretanto, que a referida tensão efetivamente teve, a partir do segundo pós- guerra, um papel fundamental na formatação da teoria constitucional contemporânea, por exemplo, em Portugal, Espanha e Brasil. Uma coisa que não tem sido dita é que o equívoco das teorias constitucionais e interpretativas que estabelecem uma repristinação das teses da Jurisprudência dos Valores – mormente em terrae brasilis – está na busca de incorporar o modus tensionante do tribunal alemão em realidades (tão) distintas, que não possuíam (e não possuem) os mesmos contornos históricos acima retratados. No caso específico do Brasil, onde, historicamente até mesmo a legalidade burguesa tem sido difícil de “emplacar”, a grande luta tem sido a de estabelecer as condições para o fortalecimento de um espaço democrático de edificação da legalidade, plasmado no texto constitucional. Alguns detalhes deixam à mostra essa problemática. Com efeito, o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, ultimado em 2007, retrata muito bem essa indevida recepção do “ativismo do Bundesverfassungsgericht”, o que se pode ver pelos explícitos dispositivos que objetivam a flexibilização da técnica processual, seguido do consequente aumento dos poderes do juiz, que poderá, inclusive, produzir (sic) provas de ofício. No elenco dos princípios informadores desse novo Código, encontramos a instrumentalidade das formas, a flexibilização da técnica processual, a proporcionalidade e a razoabilidade. Porém, o princípio (sic) que mais chama a atenção é o do “ativismo judicial”, circunstância que desnuda não somente a indevida compreensão da noção de “princípio”, como também o problema do – agora sim – princípio democrático. Ou seja, o Código já nasce com um déficit de democracia ao deslocar o problema da concretização dos direitos dos demais Poderes e da Sociedade em direção ao Judiciário. Trata-se, evidentemente, de um grande paradoxo: como é possível que um Código, cuja pretensão maior é o incremento de mecanismos de acesso à justiça, aposte no ativismo judicial como um dos seus corolários? É nesses momentos que os processualistas brasileiros – adeptos do instrumentalismo processual – acabam, implicitamente, dando plena razão a Habermas, quando este denuncia a colonização do mundo da vida pelo direito. Aliás, aqui parece ser o momento ideal para esclarecer uma questão que tem sido tratada de forma superficial em terrae brasilis. Trata-se do modo tabula rasa como tem sido empregado o termo ativismo judicial.9 Note-se: nos Estados Unidos, a discussão sobre o governo dos juízes e sobre o ativismo judicial acumula mais de duzentos anos de história. Quanto a isso, basta recordar que o mesmo Marshall que instituiu o precedente que consagrou a judicial review foi também quem iniciou, no case McCulock v.s. Maryland, a tradição do judicial self restraint. Sintomático, também, que a segunda decisão em sede de controle de constitucionalidade nos EUA só se deu cinquenta e dois anos depois da primeira. Não esqueçamos, por outro lado, que ativismo judicial nos Estados Unidos foi feito às avessas num primeiro momento (de modo que não se pode considerar que o ativismo seja sempre algo positivo). O típico caso de um ativismo às avessas foi a postura da Suprema Corte estadunidense com relação ao new deal, que, aferrada aos postulados de um liberalismo econômico do tipo laissez faire, barrava, por inconstitucionalidade, as medidas intervencionistas estabelecidas pelo governo Roosevelt. As atitudes intervencionistas a favor dos direitos humanos fundamentais ocorrem em um contexto que dependia muito mais da ação individual de uma maioria estabelecida, do que pelo resultado de um imaginário propriamente ativista. O caso da Corte Warren, por exemplo, foi resultante da concepção pessoal de certo número de juízes e não o resultado de um sentimento constitucional acerca desta problemática. E essas circunstâncias não podem ser ignoradas. Esse ativismo, com ou sem aspas, demonstra também que a sua ratio possui uma origem solipsista, o que se torna problemático, porque a democracia e os avanços passam a depender das posições individuais da suprema corte. De todo modo – e isso precisa ficar bem claro –, apenas diante da consagração de uma efetiva jurisdição constitucional é que se pode falar no problema dos ativismos judiciais. Veja-se o exemplo alemão, que somente depois da instalação do Tribunal Constitucional passou a discutir os problemas da expansão do poder judicial e as questões envolvendo a jurisprudência dos valores. No Brasil, a tradição de uma jurisdição constitucional é recente. Antes de 1988, não existia efetivo controle de constitucionalidade. Isso é fundamental para o enfrentamento da questão. Ainda outro lembrete necessário: pode-se dizer que, tanto na operacionalidade stricto sensu como na doutrina, são perceptíveis, no mínimo, dois tipos de manifestação do paradigma da subjetividade (filosofia da consciência), que envolve exatamente as questões relativas ao ativismo, decisionismo e a admissão dopoder discricionário. O primeiro trata do problema de forma mais explícita, “assumindo” que o ato de julgar é um ato de vontade (para não esquecer o oitavo capítulo da Teoria Pura do Direito de Kelsen); ainda nesse primeiro grupo devem ser incluídas as decisões que, no seu resultado, implicitamente trata(ra)m da interpretação ao modo solipsista. São decisões que se baseiam em um conjunto de métodos por vezes incompatíveis ou incoerentes entre si ou, ainda, baseadas em leituras equivocadas de autores como Ronald Dworkin ou até mesmo Gadamer, confundindo a “superação” dos métodos com relativismos e/ou irracionalismos. No segundo grupo, encontramos as decisões que buscam justificações no plano de uma racionalidade argumentativa, em especial, os juristas adeptos das teorias da argumentação jurídica, mormente a matriz alexyana. Também nestas estará presente o problema paradigmático, uma vez que as teorias da argumentação são dependentes da discricionariedade.10 Alguns exemplos podem auxiliar na compreensão do problema. Em discurso de posse de novos juízes estaduais em determinada Unidade Federada, a saudação não deixa dúvida acerca do papel do juiz e do processo em terrae brasilis, não sendo difícil perceber, de igual modo, a confusão entre o positivismo exegético e o positivismo normativo: “o ‘processo’ não é senão o instrumento que o Estado entrega ao juiz para, ao aplicar a lei ao caso concreto, solucionar o litígio com justiça. Justiça que emana exclusivamente de nossa consciência, sem nenhum apego obsessivo à letra fria da lei”.11 No plano do que podemos chamar de “aplicação jurídico-judiciária”, calha registrar parte de voto proferido em julgamento no Superior Tribunal de Justiça: “Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. (...) Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém”.12 Já como preliminar é necessário lembrar – antes mesmo de iniciar estas reflexões no sentido mais crítico – que o direito não é (e não pode ser) aquilo que o intérprete quer que ele seja. Portanto, o direito não é aquilo que o Tribunal, no seu conjunto ou na individualidade de seus componentes, dizem que é.13 A doutrina deve doutrinar, sim. Esse é o seu papel. Aliás, não fosse assim, o que faríamos com as mais de mil faculdades de direito, os milhares de professores e os milhares livros produzidos anualmente? E mais: não fosse assim, o que faríamos com o parlamento, que aprova as leis? E, afinal, o que fazer com a Constituição, “lei das leis”? A posição assumida pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento sob comento apenas explicita aquilo que está na raiz do problema, que é, necessariamente, paradigmático. Veja-se, mais uma vez, o modo como a linguagem desnuda os elementos estruturantes, denunciando o “lugar da fala” do interlocutor. Assim, por exemplo, respondendo a uma crítica por ter suspendido decisão de um juiz de primeiro grau de forma liminar, o desembargador “reconhece” que possa ter se equivocado, mas, sobretudo, por se tratar de um erro in judicando e não erro in procedendo, [porque] “decido de acordo com a minha consciência de julgador e o meu entendimento pessoal, como previsto no artigo 131 do Código de Processo Civil”.14 Estar compromissado apenas com a sua consciência passa a ser o elemento que sustenta o imaginário de parcela considerável dos magistrados brasileiros, o que se pode perceber em pronunciamento do então Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Min. Costa Leite, respondendo a uma indagação sobre o racionamento de energia elétrica que atingia o país, no sentido de que, no momento de proferir a decisão (caso concreto), “o juiz não se subordina a ninguém, senão à Lei e à sua consciência”,15 assim como em importante decisão do mesmo Tribunal em sede de Habeas Corpus: “Em face do princípio do livre convencimento motivado ou da persuasão racional, o Magistrado, no exercício de sua função judicante, não está adstrito a qualquer critério de apreciação das provas carreadas aos autos, podendo valorá-las como sua consciência indicar, uma vez que é soberano dos elementos probatórios apresentados”.16 Do mesmo Superior Tribunal de Justiça, tem-se que “se é certo que o juiz fica adstrito às provas constantes dos autos, não é menos certo que não fica subordinado a nenhum critério apriorístico no apurar, através delas, a verdade material. O juiz criminal é, assim, restituído à sua própria consciência”.17 Há, pois, um núcleo comum, uma espécie de holding, que torna o tema recorrente: o juiz não se subordina a “nada”, a não ser ao “tribunal de sua razão”. Com efeito, “o deferimento de compromisso à testemunha contraditada e que não poderia prestá-lo, a teor da letra do art. 208, última parte, do Código de Processo Penal, não vicia a ação penal, mas exterioriza-se como mera irregularidade, pois, não encerrada a instrução e dentro do princípio do livre convencimento motivado, o juiz, não adstrito a critérios de valoração apriorístico, atribuirá ao depoimento o peso que sua consciência indicar, mediante fundamentação...”.18 Ou seja, em ultima ratio, em plena vigência da Constituição de 1988, o próprio resultado do processo dependerá do que a consciência do juiz indicar, pois a gestão da prova não se dá por critérios intersubjetivos, devidamente filtrados pelo devido processo legal, e, sim, pelo critério inquisitivo do julgador. Consciência, subjetividade, sistema inquisitório e poder discricionário passam a ser variações de um mesmo tema. Observe-se a importância dessa questão nos casos de delimitação da pena no seguinte julgamento, em que o Tribunal justifica o solipsismo judicial, ao sustentar que compete ao juiz, “examinadas as circunstâncias judiciais, estabelecer, conforme necessário e suficiente, ‘a quantidade da pena aplicável, dentro dos limites previstos’. A avaliação é subjetiva e o juiz lança o quanto entenda necessário sua consciência”.19 Em linha absolutamente similar, o argumento da discricionariedade assume lugar cimeiro em julgamentos do TJDF, assentando que a delimitação da faixa etária nos casos de proibição de frequência de menores a casas de jogos eletrônicos subordina-se a uma inevitável discricionariedade judicial20 e do TJSP, que, em um caso de prazo de desocupação de imóvel em caso de despejo, alça a discricionariedade ao patamar de princípio.21 A pergunta que se põe é: onde ficam a tradição, a coerência e a integridade do direito? Cada decisão parte (ou estabelece) um “grau zero de sentido”? Se, no processo penal, o modo pelo qual se manifesta o paradigma representacional é o sistema inquisitório, no processo civil, é o protagonismo/ativismo do juiz que encobre a filosofia da consciência. Observe-se, nesse sentido: I) acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná: “A norma legal propicia ao juiz (...) meios para completar sua convicção e, assim, decidir com tranquilidade de consciência, realizando o ideal do verdadeiro juiz”;22 II) acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais: “Ao Juiz, como destinatário da prova, e só a ele, cabe, diante de sua consciência, para proferir decisão, determinar a realização de nova perícia, ainda que, formalmente e à primeira vista, seja o laudo anterior conclusivo e aparentemente idôneo”;23 III) acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina: “o juiz é o intérprete da consciência social, pois contrapõe a livre valoração moral à norma”.24 Variações de um mesmo tema: não somente a interpretação da lei dependeda consciência do decisor, mas, também, a produção da prova. Nesse sentido, registre-se decisão do Superior Tribunal Militar, pela qual “provar é produzir um estado de certeza na consciência do Juiz, para sua convicção sobre a existência – ou não – de um fato”.25 Há decisões paradigmáticas, que conseguem, em poucas palavras, fundir teses e teorias do paradigma representacional, como se pode ver na decisão do Superior Tribunal do Trabalho: “(...) a sentença é um ato de vontade do juiz como órgão do Estado. Decorre de um prévio ato de inteligência com o objetivo de solucionar todos os pedidos, analisando as causas de pedir, se mais de uma houver. Existindo vários fundamentos (raciocínio lógico para chegar-se a uma conclusão), o juiz não está obrigado a refutar todos eles. A sentença não é um diálogo entre o magistrado e as partes. Adotado um fundamento lógico que solucione o binômio ‘causa de pedir/pedido’, inexiste omissão”.26 Nada surpreendente, mormente se levarmos em conta que recentes trabalhos acadêmicos – embora com pretensões de construir racionalidades e até mesmo tecer críticas a decisionismos e/ou voluntarismos – acabam por sufragar teses como a constante no acórdão em tela e nos demais aqui referidos . 27 É o caso, por exemplo, de Eduardo Cambi,28 que, a partir de uma mixagem de matrizes e autores, sustenta que o juiz, nos casos difíceis, possui tanta margem de discricionariedade quanto o legislador, como se, a um, o legislador tivesse discricionariedade nesta quadra da história e, a dois, não fosse a discricionariedade, exatamente, a porta de entrada dos decisionismos e voluntarismos. Mais ainda, embora sua obra tenha pretensões pós-positivistas (ou antipositivistas), o que, registre-se, é extremamente louvável, Cambi insiste em teses que são contrárias (ou estão em contradição) ao que propõe, como, por exemplo, quando sustenta que a sentença é ato de vontade do juiz – repristinando, consciente ou inconscientemente, o pai do positivismo normativista (Kelsen) – e que “sentença vem de sentir” (sic). Ao fim e ao cabo, reforça o protagonismo judicial que pretende combater, ao fazer coro com Eduardo Couture, no sentido de que “a dignidade do direito depende da dignidade do juiz”, isto é, de que “o direito valerá o que valham os juízes”.29 De ressaltar, ademais, a opção explícita de Cambi pelo solipsismo: “A decisão judicial reflete características pessoais do juiz (a sua personalidade, o seu temperamento, as suas experiências passadas, as suas frustrações, as suas expectativas etc.) ou dos jurados (...)”.30 Por fim, sustenta a necessidade de que o juiz faça ponderações, o que, também neste caso, coloca-o em campo distante da hermenêutica filosófica, da teoria integrativa dworkiniana e do antirrelativismo habermasiano. Exatamente nessa linha é que não se pode (e não se deve) subestimar as mixagens teóricas e a confusão acerca de posições assumidas por determinados jusfilósofos, que acabam sendo citados fora de contexto, como se reforçassem o paradigma subjetivista. Por todos, veja-se: “Segundo a moderna doutrina de Dworkin, ‘Teoria da Aceitação Racional’, no julgamento do caso concreto, o julgador há de trabalhar, construtivamente, os princípio e regras construtivas do direito vigente, para reforçar a segurança jurídica e a certeza do direito, proporcionando e aviventando na sociedade o sentimento de justiça. O julgador deve ter o espírito imbuído da certeza de que o ordenamento jurídico é mais complexo do que o simples conjunto hierarquizado de regras, defendido pelos positivistas. O sentimento de justiça, que deve revestir o espírito do juiz, é o único capaz de assegurar a solidez da ordem do Estado Democrático de Direito”.31 Neste último caso, é despiciendo advertir para o fato de que Dworkin não aposta em interpretações que exsurjam do “espírito do juiz” e tampouco acredita no juiz como “único capaz de assegurar a solidez da ordem do Estado Democrático de Direito”. Construiu-se, assim, um imaginário (gnosiológico) no seio da comunidade jurídica brasileira, com forte sustentação na doutrina, no interior do qual o “decidir” de forma solipsista encontra “fundamentação” – embora tal circunstância não seja assumida explicitamente – no paradigma da filosofia da consciência. Essa questão assume relevância e deve preocupar a comunidade jurídica, uma vez que, levada ao seu extremo, a lei – aprovada democraticamente – perde(rá) (mais e mais) espaço diante daquilo que “o juiz pensa acerca da lei”. Em determinados julgamentos, torna-se impossível ao “sujeito da modernidade” esconder o solipsismo que o sustenta, dando-se, assim, razão a Werneck Vianna, quando afirma que a situação do juiz brasileiro é ambígua: “ele é criatura de uma carreira burocrático-estatal, porém se concebe como um ser singular, auto-orientado, como se a sua investidura na função fizesse dele um personagem social dotado de carisma. Daí que, embora recrutado fora da política, isto é, pelo instituto do concurso público, ele não se enquadre inteiramente no ethos burocrático preconizado por Max Weber”.32 A leitura da seguinte decisão demonstra o acerto da pesquisa comandada por Vianna: “A judicatura não sobrevive como instituição permanente da sociedade apenas com o saber, com a técnica, com a excelência do conhecimento teórico. Todos esses ingredientes não são suficientes para um Juiz . De nada adianta conhecer a doutrina, as leis, a jurisprudência, se, dotado de qualidades intelectuais excepcionais, não tiver honestidade, vida ilibada, reputação imaculada, não somente perante os destinatários do seu ofício, mas, igualmente, perante os seus pares. Antes de ser poesia, a alma limpa de um Juiz, a austeridade que impõe a toga que veste, a reclusão da sua consciência para decidir longe das pressões de toda sorte... (...)”.33 Na mesma linha, vale lembrar decisão que escancara um misto de “filosofia da consciência” e “jusnaturalismo”, em uma ação judicial de busca e apreensão de menor: “Haverá ele [o Juiz] de acomodar-se numa regra não escrita (non scriptum), mas inata na morada da consciência dos que julgam (sed nata), que remonta às origens da humanidade, com fincas no direito natural: jus est arts boni et aequi (o direito é arte do bem e do justo)”.34 Resta a pergunta: haveria uma “consciência inata” naqueles que julgam? Permito-me insistir: trata-se de uma questão paradigmática. Veja-se, nesse sentido, acórdão da mais alta Corte do País – e o aspecto simbólico que dela decorre – em que, por uma de suas Turmas, por maioria de votos, o Tribunal indeferiu habeas corpus35 em que se alegava falta de demonstração da urgência na produção antecipada de prova testemunhal de acusação, decretada nos termos do art. 366 do Código de Processo Penal, ante a revelia do paciente/réu. O Supremo Tribunal deixou assentado que a determinação de produção antecipada de prova está ao alvedrio do juiz, que pode ordenar a sua realização se considerar existentes condições urgentes para que isso ocorra. Observe-se, nesse julgado, a imbricação entre o sistema inquisitório e a filosofia da consciência (questão paradigmática, pois): a determinação de produção antecipada de prova fica a critério (discricionariedade, livre apreciação , para dizer o menos) do juiz. O Min. Lewandowski votou vencido, concedendo a ordem, porque vislumbrou ofensa ao dever de fundamentar as decisões judiciais e às garantias do contraditório e da ampla defesa, uma vez que a decisão que determinou a produção de prova esteve “fundamentada” tão somente no fato de o paciente não ter sido localizado (nas palavras do Ministro, “a decisão fora determinada de modo automático”). Apenas o voto de Lewandowski mostrou-se acertado, vez que fundado no sistema acusatório. Os votos vencedores apenas fortalecem o protagonismo judicial, apostando na “boa escolha” – discricionária – do magistrado. Com efeito, parece razoável afirmar – a partir de uma abordagem hermenêutica – que, quando a lei estabelece que o juiz pode determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes,36 sua decisão deverá estar fundamentada/justificada com todos os detalhes, além de passar pelo crivo do contraditório e da ampla defesa, como, aliás, bem frisou o voto vencido. Além disso, a urgência de que fala a lei processual deve ser considerada levando em conta toda a história institucional das decisões anteriores que tratam dessa temática, respeitando a coerência e a integridade. Ou seja, “provas consideradas urgentes” não é um enunciado assertórico. A “proposição jurídica” só terá sentido em cada caso concreto. A aplicação automática do dispositivo (tábula rasa) abre espaço para a decisão que o juiz julgar mais conveniente. E isso é reforçar o “subjetivismo/discricionarismo” dos juízes.37 Notas 9 Registre-se que essa incompreensão em torno do ativismo judicial não se restringe ao problema brasileiro. Também Peter Häberle, prestigiado constitucionalista alemão, em entrevista publicada no Conjur (Repúblicas jovens necessitam de ativismo judicial, in: www.conjur.com.br, 13.02.2009) entende “ser saudável” para as “novas repúblicas” o ativismo judicial praticado pelos tribunais que, através de sua ação no tecido social, obriga os demais poderes a agirem também. Creio, porém, que devemos ter cautela diante da afirmação de Häberle. De pronto, consigno que, quando o judiciário age – desde que devidamente provocado – no sentido de fazer cumprir a Constituição, não há que se falar em ativismo. O problema do ativismo surge exatamente no momento em que a Corte extrapola os limites impostos pela Constituição e passa a fazer política judiciária, seja para o “bem”, seja para o “mal”. Ademais, a discussão de Häberle sempre precisará ser contextualizada pelo simples fato de que seu contexto vivencial concreto é outro – jurisprudência dos valores e todas suas consequências já aqui delineadas –, que é bem diferente daquele que se apresenta em terrae brasilis. Portanto, não me parece conveniente que os juristas brasileiros “recebam” a entrevista como uma ode ou louvação ao ativismo. 10 Remeto o leitor à terceira edição do meu Verdade e Consenso, op. cit., onde essa problemática está explicitada amiúde. 11 Discurso do Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luis Felipe Salomão, em 10/01/03, na posse de novos Juízes no Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.amaerj.org.br. 12 Voto do Ministro Humberto Gomes de Barros no AgReg em REsp nº 279.889/AL, julg. em 03/04/2001, DJ 11/06/2001, STJ. 13 Lembro, aqui, a assertiva de Herbert Hart, em seu Concept of Law, acerca das regras do jogo de críquete, para usar um autor positivista contra o próprio decisionismo positivista que claramente exsurge do acórdão em questão. 14 Entrevista disponível em: <http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=68172>. Acesso em: set. 2009. (grifei) 15 Entrevista disponível em: <http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=68172>. Acesso em: set. 2009. (grifei) 16 HC 94.826/SP, julgado em 17/04/2008, DJe 05/05/2008. (grifei) 17 HC 16.706/RJ, julgado em 19/06/2001, DJ 24/09/2001, p. 352. (grifei) 18 HC 11.896/RJ, julgado em 27/06/2000, DJ 21/08/2000, p. 173. (grifei) 19 TJPR: ACrim 135.719-5/ PR, DJ 05/08/1999. (grifei) 20 TJDF: Apelação n. 20823020038070001. 21 TJSP: Agravo de Instrumento n. 1.157.591-0/0. 22 TJSP: AI 7256094200/SP, DJ 31/07/2008. (grifei) 23 TJMG: AC 1671932/MG, DJ 10/02/2000. (grifei) 24 TJSC: AC 37530/SC, DJ 03/08/2000. (grifei) 25 STM: Apelo 49563/RS. (grifei) 26 TST – 1ª Turma – EDRR 6443/89 – Ac. 2418/90– DJU 15.02.91 27 Efetivamente, há que se reconhecer que essa é uma questão que vem sendo reforçada em teses de doutorado e dissertações de mestrado nos diferentes cursos de pós- graduação. Por todas, refira-se a tese de doutorado de Maria de Fátima S.G.M. de Oliveira, que reforça o imaginário de apoio ao solipsismo judicial ao defender, por exemplo, que “a liberdade de investigação crítica corresponde à interpretação dada pelo magistrado à norma”. A autora entende que, “hoje, o juiz não se submete à letra fria da lei. Deve, ao contrário, interpretá-la e suas decisões devem ser harmonizadas ao sistema jurídico, mesmo que, aparentemente, afrontem a lei. O juiz exerce atividade criadora do direito e com margem de liberdade.” (grifei) Mais ainda, sustenta que a discricionariedade nada mais é, senão, a impressão pessoal do juiz e a possibilidade de escolher a melhor interpretação desses conceitos indeterminados (dano irreparável, relevante fundamento, etc.) ao caso concreto para atingir a ordem jurídica justa”. (grifei) Cf. Discricionariedade judicial nas medidas processuais provisórias. São Paulo, PUC, 2007, p. 201 e segs. 28 Cf. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 272. 29 Cf. Cambi, Eduardo. Jurisdição no processo civil. Compreensão crítica. Curitiba: Juruá, 2002, p. 83-4. 30 Cf. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo, op. cit., p. 124 e 125. http://www.conjur.com.br http://www.amaerj.org.br http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=68172 http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=68172 31 TJMG – Apelação n. 1.0596.03.013587-2/001. 32 Cf. Corpo e alma da magistratura brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p. 295. 33 Processo nº 1995.001.00763 – Apelação – Julgamento: 11/04/1995 – 1ª Câmara Cível TJRJ. (grifei) 34 Processo nº 1993.001.04007 – Apelação – Julgamento: 07/12/1993 – 1ª Câmara Cível TJRJ. 35 STF – Habeas Corpus nº 93.157, de 23.09.2008. 36 Anote-se, aliás, que o Anteprojeto praticamente reproduz o atual art. 366 (provas consideradas urgentes). Portanto, de nada adiantará um novo CPP se o juízo sobre a “urgência” fica ao “alvedrio do juiz”. Veja-se, aqui, a relação entre o “novo” texto e o “velho” texto, e de como o novo poderá se tornar velho a partir de uma interpretação que coloque o solipsismo judicial no topo da condição de sentido. 37 Lembremos, por relevante, que a fundamentação/justificação/motivação das decisões é um direito fundamental do cidadão (aliás, assim considerado pelo TEDH; Sentenças: a) de 9.12.1994 – TEDH 1994, 4, Ruiz Torija e Hiro Balani-ES, parágrafos 27 e 29; b) de 19.02.1998 – TEDH 1998,3, Higgins e outros – Fr, parágrafo 42; e c) de 21.01.99 – TEDH 1999,1, Garcia Ruiz-ES. No mesmo sentido, ressalte-se a posição do Tribunal Constitucional da Espanha (sentença 20/2003, de 10 de fevereiro). 3. Nas nesgas da linguagem, as manifestações doutrinárias que des- cobrem o DNA do solipsismo judicial Para além da operacionalidade stricto sensu, a doutrina indica o caminho para a interpretação, colocando a consciência ou a convicção pessoal como norteadores do juiz, perfectibilizando essa “metodologia” de vários modos. E isso “aparecerá” de várias maneiras, como na direta aposta na: a) interpretação como ato de vontade do juiz ou no adágio “sentença como sentire”; b) interpretação como fruto da subjetividade judicial; c) interpretação como produto da consciência do julgador; d) crença de que o juiz deve fazer a “ponderação de valores” a partir de seus “valores”; e) razoabilidade e/ou proporcionalidade como ato voluntarista do julgador; f) crença de que “os casos difíceis se resolvem discricionariamente”; g) cisão estrutural entre regras e princípios, em que estes proporciona(ria)m uma “abertura se sentido” que deverá ser preenchida e/ou produzida pelo intérprete. Há ainda outras hipóteses – e cito tão somente algumas que representam, simbolicamente, uma forte parcela do imaginário jurídico – de manifestação de filiação ao paradigma da subjetividade (esquema sujeito-objeto). Uma observação: o que se tem visto no plano das práticas jurídicas nem de longe chega a poder ser caracterizada como “filosofia da consciência”; trata-se de uma vulgata disso. Em meus textos, tenho falado que o solipsismo judicial, o protagonismo e a prática de discricionariedades se enquadram paradigmaticamente no “paradigma epistemológico dafilosofia da consciência”. Advirto, porém, que é evidente que o modus decidendi não guarda estrita relação com o “sujeito da modernidade” ou até mesmo com o “solipsismo kantiano”. Esses são muito mais complexos. Aponto essas “aproximações” para, exatamente, poder fazer uma anamnese dos discursos, até porque não há discurso que esteja “em paradigma nenhum”, por mais sincrético que seja. Vejamos: para Maria Helena Diniz,38 “conhecer é trazer para o sujeito algo que se põe como objeto”, consistindo, assim, “em levar para a consciência do sujeito cognoscente algo que está fora dele (...) tornando-o presente à inteligência”. Essa filiação ao paradigma subjetivista já estava presente em processualistas como Moacyr Amaral dos Santos, que dizia que “a sentença é ato de vontade”.39 Já Tourinho Filho vai dizer que o juiz, através da sentença, “declara o que sente”,40 deixando explicitada a sua adesão à tese da adeaquatio rei et intellectus. Observe-se, nesse contexto, que “filosofia da consciência” e “discricionariedade judicial” são faces da mesma moeda, sendo muito comum essa junção ser feita a partir da tese – explícita ou implícita – de que a interpretação (ou a sentença) “é um ato de vontade”, reconstruindo-se, assim, o discricionarismo/decisionismo sustentado por Kelsen na sua Teoria Pura do Direito. Refira-se, que, não raras vezes, deparamo-nos com uma mixagem (ou sincretismo) de paradigmas inconciliáveis, como é o caso da “junção” do paradigma metafísico-clássico (adeaquatio intellectus et rei) e a filosofia da consciência (adeaquatio rei et intellectus), embora, ao fim e ao cabo, sempre prevaleça a “livre convicção” ou “a vinculação à consciência do julgador” (sempre com a ressalva de que o que vemos no campo jurídico é uma vulgata, tanto da ontologia clássica como da filosofia da consciência). Mixagem desse jaez é feita por Marco Antonio de Barros,41 quando, ao mesmo tempo em que afirma ser a verdade “a adequação ou conformidade entre o intelecto e a realidade”, sustenta que esta é fruto da inteligência humana, porque “moldada pelo juízo racional e não pela prova ou evidência que pode ser verídica ou falsa”. Entretanto, no plano da avaliação das provas, diz que a “convicção do juiz é livre, submete-se a sua própria consciência; porém, a sua decisão deve ser fundamentada nas provas colhidas no curso do processo”. Veja-se que a ressalva no sentido de que a decisão, embora “de livre convicção”, deve ser fundamentada nas provas colhidas no curso do processo, seria relevante, não fosse exatamente a contradição entre “a livre convicção” (solipsismo judicial) e a “fundamentação nas provas processuais”. Há, assim, no horizonte dogmático, uma mixagem produzida no âmbito do senso comum teórico. Confunde-se o paradigma ontológico-clássico com o da filosofia da consciência e vice-versa, resultando disso são conceitos absolutamente sincréticos, autocontraditórios. Afinal, como a “verdade transparece”? Ela estaria “contida” na “coisa”? Existiria, então, uma “essência” a ser descoberta pelo juiz? Diga-se de passagem, após Kant, que na Crítica da Razão Pura afirmava a impossibilidade de apreensão da realidade como “noumeno”, restando-nos apenas o “phaenomenon”, é suprema ousadia tentar reivindicar a realidade em essência. Sendo mais simples e mais didático: essa mixagem (ou sincretismo) de paradigmas inconciliáveis acaba sendo regra (communis opinium doctorum) na doutrina. E nas práticas dos tribunais. E as raízes são antigas. O fator talvez mais inusitado que se projeta a partir de todo esse quadro é que, em nenhum aspecto, os argumentos da dogmática jurídica se aproximam das discussões contemporâneas sobre o conceito de verdade. Continuamos a discutir as questões a partir do modo como eram levadas a cabo no final do século XIX e início do século XX. Esse relativismo démodée, bem como essa profissão de fé em um caráter unitário da verdade, não atinge o ponto de estofo da questão que, no contexto atual, se situa no campo da linguagem. Como afirma Lorenz Puntel: “verdade significa a revelação da coisa mesma que se articula na dimensão de uma pretensão de validade justificável discursivamente”.42 Interessante notar como essa problemática atravessa os diversos campos ideológicos, isto é, a tese do “protagonismo” e do “poder discricionário” do juiz é professada por vezes por campos teóricos distantes entre si. É o caso de Ernane Fidélis dos Santos43 e Rui Portanova. Assim, o primeiro vai dizer que, “para assegurar a imparcialidade do Juiz, é ele dotado de completa independência, a ponto de não ficar sujeito, no julgamento, a nenhuma autoridade superior. No exercício da jurisdição, o juiz é soberano. Não há nada que a ele se sobreponha. Nem a própria lei...”. Já o segundo,44 notoriamente ligado às teorias críticas do direito – registre-se, destacado jurista e um dos expoentes do direito alternativo nos duros tempos do ancién régime (ao lado de outros não menos importantes, como, por todos, Amilton Bueno de Carvalho, Márcio Puggina, James Tubenchlak e Antonio Carlos Wolkmer) –, não discrepa da posição de Fidélis dos Santos, quando diz, por exemplo, que “enfim, todo homem, e assim também o juiz, é levado a dar significado e alcance universal e até transcendente àquela ordem de valores imprimida em sua consciência individual. Depois, vê tais valores nas regras jurídicas. Contudo, estas não são postas só por si. É a motivação ideológica da sentença”. Embora Portanova reconheça que “o sentenciar alternativo não é autorização para motivações arbitrárias” e que o “o juiz deve manter-se dentro de um sistema jurídico, mas com liberdade para assumir posição diante da lei, na busca de traduzir o sentimento de justiça da comunidade”, mais adiante concorda com o próprio Fidélis dos Santos, citando-o, na linha de que “não há nada que se sobreponha ao juiz, nem a própria lei”. Em outra obra não menos relevante, Portanova45 assevera que “é difícil acreditar em algo que possa restringir a liberdade do juiz de decidir como quiser. É preciso reconhecer realisticamente: nem a lei, nem os princípios podem, prévia e plenamente, controlar o julgador”. E complementa: “Depois de tantos anos, os juízes aprendem como moldar seu sentimento aos fatos trazidos nos autos e ao ordenamento jurídico em vigor. Primeiro se tem a solução, depois se busca a lei para fundamentá-la”.46 Não há dúvida, pois, de que essa questão da interpretação ou da sentença como “ato de vontade” atravessa os diversos campos ideológicos do direito. Veja-se o modo como Paulo Queiroz, um dos penalistas mais críticos do país, não consegue se livrar d(ess)a herança kelseniana do decisionismo. Com efeito, em artigo recente, Queiroz sustenta que “sempre que condenamos ou absolvemos, fazêmo-lo porque queremos fazê-lo, de sorte que, nesse sentido, a condenação ou a absolvição não são atos de verdade, mas atos de vontade”. Segundo o penalista baiano, “parece evidente que, ordinariamente, por mais que tenhamos motivos, legais ou não, para condenar, condenamos porque queremos condenar e porque julgamos importante fazê-lo; inversamente: por mais que tenhamos motivos, legais ou não, para absolver, absolvemos porque queremos absolver e julgamos importante fazê-lo”.47 Veja-se: embora substancialmente a contribuição crítica de Queiroz seja inegável, neste ponto corre o risco de provocar retrocessos democráticos nas manifestações processuais de Promotores e Juízes. De se consignar que o autor publicou uma resposta às críticas que lhe teci na primeira edição desta obra.48 Na sua réplica, argumenta que o livro “O que é Isto – decido conforme minha consciência?” combate uma espécie de juiz Robinson Crusoé – o que, diga-se de pronto, é uma compreensão reducionista do que seja o solipsismo epistemológico, este sim alvo (constante) do meu combate teórico – e pergunta, retoricamente, se esse juiz solipsista existe realmente (sic). Com isso, Queiroz quer nos conduzir, em meio a sua sofisticada tessitura, à ideia própria do cinismo nietzscheniano contida na conhecida expressãode que fatos não há, só há interpretações (o que, de certa forma, virou um jargão em setores críticos do direito brasileiro, que parecem ter aderido ao relativismo filosófico).49 Desse modo, na visão de Queiroz, o juiz solipsista seria apenas uma – possível – interpretação da realidade, mas não a realidade mesma. Ou seja, o solipsismo não existiria. Todavia, Queiroz acaba sendo atraído para a mesma armadilha do autor que cita para afirmar esse “interpretacionismo hermenêutico”, no caso Günter Abel (aliás, para quem é formado no ambiente hermenêutico, é um truísmo a afirmação das diferenças oceânicas que separam a posição hermenêutica de Gadamer e seu conceito de interpretação do interpretacionismo de Abel).50 Não que Nietzsche não seja um autor importante para a tradição hermenêutica. A noção de Ursprung está, de alguma forma, presente no conceito heideggeriano de Abbau. Entretanto, essa absolutização do conceito de interpretação acaba por levar a um caminho perigosamente relativista, que não está presente nem em Heidegger e, muito menos – mas muito menos mesmo – em Hans- Georg Gadamer. Com efeito, para esses autores (Heidegger e Gadamer), há um elemento possibilitador da própria interpretação que é a compreensão. O interpretacionismo, em todas as suas formas, desconsidera o caráter antecipador da compreensão e o elemento de formação dos projetos de mundo, que não são determinados por uma querência individual, mas estão ligados a um a priori histórico compartilhado. Portanto, não se trata de dizer que o solipsismo não “exista” como se esse conceito – filosófico que é – tivesse alguma possibilidade de remissão a um objeto empiricamente verificável. O solipsismo é um engodo teórico; ele existe difusamente num imaginário que se constituiu a partir da modernidade. Aliás, foi a modernidade que “inventou” o solipsismo. Ela é condição de possibilidade da modernidade! E essa invenção ainda produz efeitos (e drásticos). Dizer que o solipsismo epistemológico não existe é fazer troça de Wittgenstein II (que falava da impossibilidade da linguagem privada, combatendo o isomorfismo da tradição e o solipsismo linguístico da modernidade) ou então de Heidegger, que demonstrou que o Dasein se manifesta existencialmente como ser-com-os-outros, que está sempre engajado em um projeto de mundo compartilhado. Há também outra afirmação que causa perplexidade. Diz Queiroz: “que a interpretação do direito constitui um ato de vontade, nem mesmo Kelsen hesitou em reconhecê-lo, apesar da pretensão de pureza e de estrita obediência do juiz à lei. ”. Ora, se Kelsen reconheceu, é porque ele sabia que não existe “estrita obediência à lei” no plano do que ele chegou a chamar “política judiciária”. Por isso, é preciso ficar (bem) alerta para um ponto essencial para a compreensão de Kelsen. Ele era um neopositivista, circunstância ignorada pela maioria de seus intérpretes – pelo menos em terrae brasilis. A “pureza” kelseniana, insisto, não se dava no plano do “direito”, mas sim no nível meta-linguístico, da “ciência do direito” (de uma vez por todas, enten- da-se – e, nesse ponto, ecoam comigo as vozes de Warat e Leonel Rocha: para Kelsen, a ciência do direito é uma meta-linguagem sobre a linguagem objeto). Numa palavra final: acreditar que a decisão judicial ou a promoção de arquivamento (ou um pedido de absolvição feitos pelo MP) são produtos de um ato de vontade (de poder) nos conduz inexoravelmente a um fatalismo. Ou seja, tudo depende(ria) da vontade pessoal (se o juiz quer fazer, faz; se não quer, não faz...!). Logo, a própria democracia não depende(ria) de nada para além do que alguém quer...! Fujamos disso! Aliás, a hermenêutica surgiu exatamente para superar o assujeitamento que o sujeito faz do objeto (aliás, isso é o que é a filosofia da consciência...!). Além do paradigma epistemológico da filosofia da consciência, é possível também perceber, nos diversos autores referidos, a substituição de um vetor de racionalidade estruturante (pré-compreensão) por uma racionalidade meramente instrumental, lógico-argumentativa. Com efeito, é preciso reconhecer, junto com Stein, que só fazemos filosofia no estrito sentido da palavra – inclusive filosofia no direito – se essa filosofia é uma filosofia de standard de racionalidade. Isso quer dizer que, para que o filosofar tenha resultados profícuos, é necessário que o filósofo (ou jusfilósofo) saiba se movimentar no interior de um paradigma filosófico ou de algo que, com Lorenz Puntel, podemos chamar de quadro referencial teórico . É a partir desse quadro referencial teórico que o trabalho filosófico irá articular suas construções no que tange a uma teoria da verdade, uma teoria da realidade, uma linguagem e uma ideia de método.51 Na matriz teórica aqui defendida, fica claro que há paradigmas distintos sendo trabalhados. Nesse contexto, exsurge uma questão que não pode ser ignorada, ou seja, a de que a dogmática jurídica52 permanece aferrada a um paradigma estruturado, de segundo nível, que se assemelha, muito grosseiramente, aquilo que foi produzido pela filosofia analítica e suas adjacências. Não é, pois, um vetor de racionalidade estruturante, de primeiro nível, como é o caso da filosofia hermenêutica ou da hermenêutica filosófica. Explicando melhor: para as teorias analíticas, o problema da linguagem começa e termina na tarefa de crítica dos conceitos. Ou seja, o problema da linguagem se resolve a partir de uma “clarificação” ou de uma melhor colocação do conceito. Antes do conceito não há nada (e por isso é que a dogmática jurídica trabalha com “conceitos sem coisas”). Daí que é muito difícil, no interior de uma filosofia analítica, filosofar com a história da filosofia. Para a hermenêutica, todavia, a história da filosofia é condição de possibilidade do filosofar e a representação sintático-semântica dos conceitos é apenas a superfície de algo muito mais profundo. Vale dizer: aquilo que é dito (mostrado) na linguagem lógico-conceitual que aparece no discurso apofântico, é apenas a superfície de algo que já foi compreendido num nível de profundidade que é hermenêutico. Daí que, para a hermenêutica, é comum a afirmação de que o dito sempre carrega consigo o não dito, sendo que a tarefa do hermeneuta é dar conta, não daquilo que já foi mostrado pelo discurso (logos) apofântico, mas sim daquilo que permanece retido – como possibilidade – no discurso (logos) hermenêutico. Portanto, para a hermenêutica, não faz sentido procurarmos determinar, de maneira abstrata, o sentido das palavras e dos conceitos, como fazem as posturas analíticas de cariz semântico, mas é preciso se colocar na condição concreta daquele que compreende – o ser humano – para que o compreendido possa ser devidamente explicitado. E esse é o ponto fulcral! Não se faz necessária uma análise mais aprofundada para perceber que parcela importante da doutrina – e falo aqui dos formadores de opinião no plano das práticas judiciárias – sufraga teses pelas quais a interpretação (aplicação) do direito fica nitidamente dependente de um sujeito cognoscente, o julgador. Nesse sentido, é preciso ressaltar que essa questão vem de longe, na verdade, do século XIX. Desde então, há um problema filosófico-paradigmático que continua presente nos diversos ramos do direito passados dois séculos, mormente na problemática relacionada à jurisdição e o papel destinado ao juiz. Desde Oskar von Büllow – questão que também pode ser vista em Anton Menger e Franz Klein –, a relação publicística está lastreada na figura do juiz, “porta-voz avançado do sentimento jurídico do povo”, com poderes para além da lei, tese que viabilizou, na sequência, a Escola do Direito Livre. Essa aposta solipsista está lastreada no paradigma racionalista-subjetivista que atravessa dois séculos, podendo facilmente ser percebida, na sequência, em Chiovenda, para quem a vontade concreta da lei é aquilo que o juiz afirma ser a vontade concreta da lei; em Carnellutti, de cuja obra se depreende que a jurisdição é “prover”, “fazer o que seja necessário”;também em Couture, para o qual, a partir de sua visão intuitiva e subjetivista, chega a dizer que “o problema da escolha do juiz é, em definitivo, o problema da justiça”; em Liebman, para quem o juiz, no exercício da jurisdição, é livre de vínculos enquanto intérprete qualificado da lei. No Brasil, essa “delegação” da atribuição dos sentidos em favor do juiz atravessou o século XX (v.g., de Carlos Maximiliano a Paulo Dourado de Gusmão), sendo que tais questões estão presentes na concepção instrumentalista do processo, cujos defensores admitem a existência de escopos metajurídicos, estando permitido ao juiz realizar determinações jurídicas, mesmo que não contidas no direito legislado, com o que o aperfeiçoamento do sistema jurídico dependerá da “boa escolha dos juízes” (sic) e, consequentemente, de seu – como assinalam alguns doutrinadores – “sadio protagonismo”. É nessa linha que, v.g., José Roberto dos Santos Bedaque, importante e prestigiado processualista, procura resolver o problema da efetividade do processo a partir de uma espécie de “delegação” em favor do julgador, com poderes para reduzir as formalidades que impedem a realização do direito material em conflito. E isso é feito a partir de um novo princípio processual – decorrente do “princípio da instrumentalidade53 das formas” – denominado princí pio da adequação ou adaptação do procedimento à correta aplicação da técnica processual. Por este “princípio” se reconhece “ao julgador a capacidade para, com sensibilidade e bom senso, adequar o mecanismo às especificidades da situação, que não é sempre a mesma”.54 Mais ainda, deve “ser reconhecido ao juiz o poder de adotar soluções não previstas pelo legislador, adaptando o processo às necessidades verificadas na situação concreta”.55 Em sua – refira-se – sofisticada tese, embora demonstre preocupação em afastá-la da discricionariedade, Bedaque termina por sufragar as teses hartianas e kelsenianas, quando admite que as fórmulas legislativas abertas favorecem essa atuação judicial.56 No mesmo sentido, Cândido Rangel Dinamarco – que inaugurou com sua tese de Cátedra a corrente chamada Instrumentalidade do Processo, que influenciou e continua influenciando gerações de juristas – afirma, sem ressalvas, que o juiz é o canal privilegiado de captação dos valores sociais, devendo estes aparecerem assimilados na sentença . Nas palavras do autor: “o juiz é o legítimo canal através de que o universo axiológico da sociedade impõe as suas pressões destinadas a definir e precisar o sentido dos textos, a suprir-lhes eventuais lacunas e a determinar a evolução do conteúdo substancial das normas constitucionais”.57 Na sequência, Dinamarco faz uma verdadeira profissão de fé no solipsismo do juiz, in verbis: “entra aqui, outra vez, o que tem sido dito sobre a participação do juiz na revelação do direito do caso concreto. Ser sujeito à lei não significa ser preso ao rigor das palavras que os textos contêm, mas ao espírito do direito do seu tempo”. E complementa: “se o texto aparenta apontar para uma solução que não satisfaça ao seu sentimento de justiça, isso significa que provavelmente as palavras do texto ou foram mal empregadas pelo legislador, ou o próprio texto, segundo a mens legislatoris, discrepa dos valores aceitos pela nação no tempo presente”. A opção pelo paradigma subjetivista-solipsista fica mais claro quando assevera que, “na medida em que o próprio ordenamento jurídico ofereça [ao juiz] meios para uma interpretação sistemática satisfatória perante o seu senso de justiça, ao afastar-se das aparências verbais do texto e atender aos valores subjacentes à lei, ele estará fazendo cumprir o direito”.58 Estranhamente, essa aposta também é feita por autores ligados à sociologia jurídica, por vezes temperada por pressupostos marxistas, como é o caso de Boaventura de Sousa Santos. Corroborando o que já pregava de há muito, mormente para as escolas da magistratura de terrae brasilis, o importante sociólogo, em recente entrevista ao jornal português Global Notícias, pregou um maior poder discricionário em favor dos juízes no âmbito do processo penal, ao comentar a lentidão da justiça e o uso de “medidas dilatórias” pela defesa: o juiz deveria ter mais autonomia para dizer: “não aceito esta diligência porque não me parece que seja útil para que se faça justiça”. Mais ainda, acentuou que os juízes devem poder ter “um papel mais activo e discricionário no sentido de recusarem algumas diligências ou arrolamentos de mais testemunhas”.59 A toda evidência, não é possível concordar com a tese de Sousa Santos. Qual é o fundamento de, em plena democracia e de produção democrática do direito, delegar para o juiz esse poder discricionário? E o que é isto, “fazer justiça”? Mais: o cumprimento estrito das regras processuais – que, nas constituições contemporâneas estão inscritas como direitos fundamentais – implica “privilégios” processuais ou “injustiças”? E o juiz teria que ter o poder de fazer essas “correções”? Mas, se o devido processo legal é uma garantia constitucional, de que modo o juiz poderia se contrapor a essa aplicação? Veja-se o eterno retorno ao problema do solipsismo, o que, paradoxalmente, aproxima as teses de Sousa Santos com aquelas defendidas por Menger, Klein, Couture, Bedaque, Dinamarco e tantos outros. Embora sob pressupostos teóricos diferentes, Maria Tereza Sadek – cientista política com largo prestígio junto ao Poder Judiciário e Ministério Público brasileiros – segue caminho semelhante ao trilhado por Sousa Santos. De mérito, é necessário dizer que Sadek de há muito vem apontando as deficiências na prestação jurisdicional. Seus números deixam claro, inclusive, que, atualmente, a maioria dos juízes reconhece o “estado de crise”. Denuncia que, no sistema judiciário, “ou se é bem relacionado ou mal relacionado. O ideal de justiça se contrapõe a privilégios”.60 Identifica como um dos fatores da impunidade a legislação processual, com demasiado número de recursos, manipuláveis pela técnica jurídica. No campo do processo civil, critica a subvalorização dos juizados especiais: “A face de prestação de serviços de Judiciário deveria estar no Juizado, já que a Justiça comum está próxima da falência”.61 Lamenta, também, que as decisões que “provoquem consequências no coletivo” fiquem a cargo de um juiz individual. No plano das reformas mais recentes, reconhece que “A EC 45 abriu espaço para a efetivação de alterações de natureza institucional no Judiciário. Qualificam-se nessa dimensão a súmula vinculante, o sistema de repercussão geral, a Lei dos Recursos Repetitivos e o critério de transcendência. Esses expedientes começaram a ser utilizados e já provocaram alterações significativas no perfil das Cortes, no volume de processos e na qualidade das sentenças”.62 Embora a riqueza dos dados e a importância das denúncias que podem ser retiradas das pesquisas de Sadek, as soluções apontadas permanecem ou seguem uma linha de raciocínio já dominante no próprio judiciário: a de que o problema da crise está na morosidade, no “emaranhado” legislativo e que, portanto, há que se “fazer gestão”. Em 2009, ao detalhar as conclusões das pesquisas feitas sobre o Judiciário, Sadek chega a afirmar que “o desempenho do Judiciário depende exclusivamente da gestão, da administração interna (...)”.63 Observe-se o grau de comprometimento das conclusões da pesquisadora, vez que passam ao largo de uma análise sob a perspectiva da substancialidade: para ela, a crise do Judiciário torna-se um problema de administração/gerenciamento/organização da justiça. Em outras palavras, segundo Sadek, o problema da crise da justiça estaria no fato de que os juízes (lato sensu) não estariam preparados para a gestão administrativa-econômica do judiciário. E que, se os juízes forem melhor preparados – inclusive ou mormente em relação a saber gestionar –, o Judiciário pode(ria) superar a crise. Nota-se, ademais, como os dignósticos (e as soluções) apresentados por Sadek não enfrentam o problema dos julgamentos democráticos
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