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JORNAL DE CRÍTICA DO MESMO AUTOR : HISTóRIA LITERARIA DE EÇA DE QUEIROZ - ' Livraria José Olympio Editora, 1939. ALGUNS ASPECTOS DA DECADgNCIA DO IM· PÉRlO - Empresa Diário da Manhã S. A., Re· cife, 1939. JORNAL DE CRITICA, 1 .a Serie - Livraria José Olympio Editora, 1941. ALVARO LINS JORNAL DE , CRITIC.A 2.0 Série CAPA DE SANTA ROSA 1943 LIVRARIA JOSE OL YMP!O EDITORA RUA DO OUVIDOR, l I O - RIO DE JANEIRO Deste livro foram tirados, fora de comércio, dez exemplares em papel vergê, assinados _pelo autor. OS CAPiTULOS DESTE LIVRO FORAM PUBLICA· DOS COMO FOLHETINS SEMANAIS DE CRiTICA LITERÁRIA DO CORREIO DA MANHÃ, AO QUAL O AUTOR E O EDITOR AGRADECEM O DIREITO DE PUBLICAÇÃO EM VOLUME. Dedico esta segunda serie do Jornal de á_itic,• a Dario de Almeida Magalhães José Olympio Osorio Borba e Barreto Leite Fillw - pelos gestos de confiança com que animaram, ha três ou quatro anos, e sob aspectos diferentes, o estado •de espírito de nm critico provinciano e ainda incerto no seu destino literário. INIHCE CAPs. I - Balanço de 1941 Il � Poesia e forma III - Justificação de um poeta IV - Problemas e figuras de poesia moderna V- Versos VI � Vidas sêcas VII - Memória e imaginação VIII - Processo- da burguesia IX - Entre os ex'tremos 11 2� 43 54 64 74 84 95 105 X - Romances de concurso 115 XI - Literatura e religião 125 XII - Dois naturaiistas: Aluizio Azevedo e Julio :jlibeiro 135" XIII -' Contos 156 XIV - Uma experiência de teatro XV - Shakespeare e o Brasil XVI - Letras femininas XVII - Ensaios XVIII - Regionalismo e universalismo XIX - Um ensaísta da filosofia XX - Posição de Farias Brito XXI - �tualidade do romantismo XXII - Sinais da nova geração XXIII - Literatura industrial XXIV - Lógicos e ilógicos XXV - Impres8ionismo e erudição XXVI - Um novo com�anheiro XXVII - Centenário de Anthero de Quental L'\:VIU - A propósito de Rosamond Lehmann XXIX - Sugestões para a leitura de Charles Morgan XXX - 50 anos de literatura 167 176 136 195 203' 224 234 245 2Ó2 272 280 235 295 304 314 323 333 CAPíTULO I BALANÇO DE 1941 E scREVO esta crônica precisamente no último dia do · ano. Nenhuma impressão .forte me traz a cons tatação desse fim convencional e arbitrário. Não duvido que vou me acostumando, cada vez mais, a desdenhar toda convenção e todo artifício. Mas vejo, afinal, -que ninguem poderá ficar inteiramente indiferente à tirania do calendário e dos costumes sociais. Torna-se neces sário, então, que seja percebido o desaparecimento de um ano e o aparecimento de outro. Mais um ano, por tanto, que se aêha contado e recolhido para a nossa his· tória literária. O que significa um ano dé existência para a história literária que se levanta num movi�ento para lelo à história geral de todo um povo ? Um quase nada. Esta é a lição um pouco triste que o mistério do tempo sempre nos transmite. O que vale muito para os contemporáneos se reduz de proporção para a posteridade ; vai se reduzindo e desaparecendo cada vez mais através dos tempos. Repare-se na extensão que certos acontecimentos ocupam num volume de história e no interesse dos seus leitores. Um episódio que encheu cem páginas, hoje ocupa cinquenta, � ocupa rá vinte dentro de alguns anos, tendendo, com o desdo brar do futuro, para uma simples referência ou para um possível eaquecimento. Os acontecimentos literários, igual· mente. De todos os livros que aparecem e fazem su cesso, quantos ,se encontrarão mais tarde na história da literatura? Um número muito pequeno, como se sabe. E o que mais me transmite a "melancolia da crítica" é a comparação do julgamento dos críticos sobre os seus con temporâneos com o julgamento que sobre eles o tempo 14 A l v a r o Li n s sobre um livro significa indiferença ou desprezo. Às vezes este silêncio significa uma homenagem, quando quer dizer que o crítico não se acha no completo domínio do assunto que o determinou. Pois o primeiro dever do crf• tico é o de somente julgar nos planos em que se possa ·movimentar com uma segurança ou um conhecimento pelo menos à altura da sua conciência profissional. De um modo geral, porem, a conclusão que se impõe não é das mais favoraveis ao ano literário de 1941. Sem dúvida que ele apresentou alguns livros excelentes, mas nenhum desses livros que marcam uma época e fixam uma etapa na vida literária. Bem sei que pode se tratar de um simples ac.aso, e dentro em pouco é poesivel que surjam obras notaveis que se achavam em realização ·du rante o período de tempo que agora termina. l)oze me ses não significam nada numa vida literária, quando antes e depois se podem recolher acontecimentos consideraveis e realizações felizes. De qualquer forma, no entanto, 1941 apresentou uma atividade menos intensa e menos fecunda do que a de 1940, que por sua vez já fora inferior à de 1939, o que talvez se explique em face dos aconteci mentos da guerra que concentram as atenções e os interes ses. Aquele ano de 1939 terá, aliás, um lugar especial na. vinte anos, não sei de outro que apresentasse quantidade tão elevada de livros de valor e número tão considéravel de estréias importantes. No ano p assado ainda assisti moa a estréias como a do sr. Oswaldo Alves, no roman .ce, a do sr. Edgard Cavalheiro, na biografia, a dos srs. Alphonsus Guimaraens Filho e Manuel Cavalcanti, na poesia. Em 1941, não houve nenhuma estréia- que fosse uma surpresa, como qualquer uma destas de 1940, ou ainda menos como algumas estréias espetaculares de 1939. Autores que apareceram em livro pela primeira vez, como o sr. Euryalo Cannabrava, já eram nomes· conhecidos do J o r n a l d e Crítica 15 público através dos seus artigoa de jornal. E deve-se no tar que bem poucos volumes de estudos foram publica 'dos durante o ano. Apareceu somente um pequeno nú mero de ensaios e estudos críticos. Quaae todos, porem, sem que fossem inéditos, quase todos se formando de co leções de material já divulgado em jornais e revistas. Entre todos, destaco o Região e tradição, por constituir uma síntese da vida de escritor do sr. Gilberto Freyre, com os seus' trabalhos das épocas mais diversas, desde a adolescência até os dias de hoje. Na vasta bibliografia do sr. Gilberto Freyre, este volume ocupa um espaço muito grande· e especialíssimo. Numa coleção de en saios, organizada por uma editora de Minaa Gerais, o sr. Tristão de Athayde publicou um pequeno volume sobre Machado de Assis, formado de três rodapés de 1939 (Trê$ ensaios sobre Machado de Assis), e o sr. Oscar Mendes reuniu vários dos seus artigos sobre autores estrangeiros (Papini, Pirandelo ,e· outros). O volume do ,sr. Tristão de Athayde, alem d� seu valor intrínseco, apresenta o interesse de ·revelar o seu ·pensamento sobre Machado de Assis, o que nun·ca fizera em vinte anos de crítica, como ele mesmo explica e justifica nestas páginas de síntese. Ainda livros publicados antes na imprensa, em carater fragmentário, são o do Br. Sergio Milliet (Sal da here· sia) , sem nada perder, no entanto, da sua agudeza e da sua força de ensaísta ; o do sr. Mario de Andrade (Mú· sim do Brasil) , debatendo certos aapectos de um assunto em que se to.rnou um verdadeiro especialista ; o do sr. An tonio de Queiroz Filho (Caminhos humanos), no qual .se reflete muito bem o estado de espírito das· novas ge rações, levadas 'muito cedo para as cogitações e os pro blemas da vida espiritual. Nesse número tambem se de verá incluir o livro admiravel do sr. Lindolfo Collor sobre a Europa de 1939, a única obra escrita por um brasileiro, neste gênero, hoje tão explorado, da interpretação dos 16 Alvaro Lins acontecimentos europeus e das .causas da nova Grande Guerra. E nestas coleções de artigos e estudos em volu me, um lugar de destaque deve;_.á ser reservado para o sr. Osorio Borba, com o seu livro A comédia literária. Con sidero das mais oportunas, das maisnecessárias e das mais uteis esta espécie .de crítica a que se dedicou o sr. Osorio Borb a : a de protestar contra as injustiças e as confusões da vida literária, contra as glórias inexplica veis e acacianas, contra todos os ridículos e misérias da queles que pretendem fazer da literatura um salão de festas ou um negócio rendoso. Ensaios de grande proporção somente dois aparece ram em livro com carater inédito, sem que antes houves sem surgido na imprensa : o do sr. Sylvio Rabello a res peito de Farias Brito (Farias Brito ou itma aventura do espírito) e o do padre Leonel Franca S. J. sobre proble mas espirituais e políticos do mundo moderno (A crise do mundo moderno) . Ainda uma vez chamo a atenção para estes dois ensaios, muito diferentes nas suas orienta ções e nas suas finalidades, mas ambos respeitaveis pelo esforço que representam no sentido da •interpretação de problemas ou debate de idéias, quaisquer que sejam as nossas divergências e as nossas discordâncias, algumas delas por mim mesmo assinaladas. E por falar em esfor ço dentro da vida cultúral, não quero esquecer o do sr. Levy Carneiro na presidência da Academia Brasileira, não no sentido da criaçãõ de obras literárias, o que não é do alcance. das associações de qualqUer espécie, mas no sen tido que lhe cabe de animar e estimular o ambiente e o mundo das letras : o esforço que restaurou a Revista Brasi leira e a série de conferências (uma ou outra, no entanto, a cargo de conferencistas destituídos de suficiente autori dade) sobre os movimentos contemporâneos de diversas literaturas estrangeiras. Outra forma de esforço e de tra balho que merece ser ressaltada foi a do sr. Auizio Napo- Jorna l de Crítica 17 leão, cujas pesquisas - nos preciosos, mas quase virgens arquivos do ltamaratí - deram em re.sulta�o a publica ção de dois trabalhos históricos, nos quais se destaca a documentação de primeira ordem : um sobre Rio Branco (O segundo Rio Branco) e o outro sobre Santos Dumont (Santos Dumont e a conquista do ar). Ainda dessa nova geração de servidores do ltamaratí - geração que estou conhecendo de perto, sobretudo no seu propósito de con tinuar uma tradição da Casa que manda não desdenhar, mas a�tes valorizar, os problemas de literatura e de estu• dos desinteressados - é o sr. Sergio Corrêa da Costa, que revelou o seu gosto e' a sua vocação para as investi· gações históricas através do livro As quatro coroas de D. Pedro I. Numericamente, a contribuição maior continuou a ser a ·dos livros de versos. Mais de vinte volumes passa ram por estas crônicas no decorrer do ano. Quase todos de autoria de rl'mes desconhecidos, de jovens poet�s que apareciam pela primeira vez.- Continua a se repetir o fenômeno muitas vezes assinalado nas épocas mais di versas: o de rapazes que atiram na rua os seus livros de versos e nunca mais voltam a repetir a empresa : ou desa parecem da literatura ou se dedicam a outros gêneros li terários. Em geral, estes livros nada revelam de uma personalidade �e poeta, exibindo apenas o virtuosismo de exercícios literários ou uma exaltação de sentimentos ado lescentes. Es�amos cansados desses livros de versos e des ses autores sem personalidade. E daí a frieza e o cepti cismo com que costumo recebê-los. Das coleções de poe mas deste ano, não houve ti.m só que �e fosse possivel elogiar de uma maneira completa. Sem dúvida, o livro mais .apreciavel fali. o da sra. Iienriqueta Lisboa (Prisio neira da noite) , trazendo alguns poemas de uma forte h�spiração e de alguma riqueza temática, sem que se possa dizer, no entanto, que estamos diante de uma grande 18 A I v a r· o L i n s obra. Dos estreantes, pude destacar a sra. Ana Osorio e o sr. Carlos Eduardo, pela simplicidade e pela sincerida de das suas mensagens, ambas ainda timidas e vacilantes, no entanto. Um autor de cujos versos não gostei foi o sr. Aluisio Medeiros, mas sem que esteja impedido de jul gá-lo uma verdadeira vocação literária e um joV'em escri tor que poderá reaparecer com um êxito mais definido. Lembro, porem, que não quero .condena,r esta abundante produção poética de segunda ordem, nem reagir contra o ambiente que a provoca e a determina. Ela faz parte da vida literária, sabendo-se da necessidade da existência de muitos poetas menores para que apareçam alguns poetas maiores. Esta é uma· necessidade, porem, da vida literá ria, mas não da arte literária. A única consideração para um julgamento estético deve ser a da obra em si mesma. E obra de arte poética, ou é uma grande obra, ou não é nada. Este é o meu critério de julgamento para os poetas ; e acho que valorizo a poesia não a identifiçan do com qualquer vagido sentimental ou com qualquer im puiso instintivo. Acredito, aliás, que a poesia se encon tra hoje numa situação de expectativa, quero dizer : no momento de uma renovação, de um novo caminho. Este caminho será o de um encontro com o povo, o de um encontro das forças poéticas com os apelos dramáticos da vida exterior. Pois hoje mais do que nunca o povo precisa de poetas que o comovam e de poetas que expri mam. os seus sentimentos. E aí está igualmente um ca minho para o romance. �as o romance, de uma niariei ra geral, apresentou-se em 1941 com as mesmas caracte rísticas dos livros de versos : falta de originalidade, me diocridade na realização artística, primarismo ou false;t mento de processos. Somente uma ou outra exceção se poderia fazer neste sentido. Uma delas para o romance do sr. Gilberto Amado (Inocentes .e culpados), que tem d�f�;itos �normes mas não exatamente ��t�i! «:!� primaris- J o r n a l de Crítica 19 mo e mediocridade. Aliás, a estréia do sr. Gilberto Ama do no romance constituiu um verdadeiro acontecimento. Ao seu livro chamei um "romance de duas fases", que rendo significar o que havia nele de desigualdade, de du plicidade, de altos e baixos. Uma obra inacabada e em tumulto, mas indicativa de um temperamento trágico para o qual o romance pode representar a mais adequa da forma de expressão. Dos estreantes, dois merecem ser lembrados: o sr. Dalcidio Jurandir (Chove nos campos de Cachoeira) e o sr. Josué Montello (Janelas fechadas) . O sr. Dalcidio Jurandir revelando uma autêntica força de romancista, emhora ·ainda informe e bárbara ; o sr. Josué Montelo revelando menos um romancista do que um escri tor, que talvez se possa afirmar mais definitivamente em ensaios e estudos críticos. E será quase uma- iropia dizer que o único romance até agora realmente grande e no tavel de 1941 se\acha numa reedição: na nova edição de Angústia, do sr . . Graciliano Ramos. Teve, porem, o ro mance brasileiro uma obra comemorativa de vulto, no número que lhe dedicou a Revista do Brasil. De um modo relativo, em face de certas propor ções, o conto se destacou mais do que o romance, levando em conta .os que foram publicados em jornais e revistas. Bastaria lembrar,. neste sentido, o nome da sra. Cacy Cordovil. E acho que esta autora quase desconhecida e o seu livro (Ronda de fogo) não deverão cair no esqueci mento, embora seja verdade que apresenta antes paginas !iterarias do ·que propriamente contos. Mas a sua ca pacidade descritiva e o seu estilo são realmente admira· veis. E realizou assim uma espécie de fragmentos de uma epopéia. Quem sabe se a sra. Cacy Cordovil não será capaz de realizar o "romance do interior", uma outra forma complementar do "romance nordestino"? De qual quer forma, é uma escritora que me deixa numa posição 20 A l v a r o L i n s de expectativa, embora já situando Ronda de Fogo como um dos livros mais significativos deste ano. Não esqueço,_ porem, que a atividade literária não é �õoniente a que se revela em volumes. Talvez que a pro dução literária de qualidade mais segura de 1941 esteja perdida nos jornais e revistas. Lembro os poemas, os con tos, os ensaios que talvez mais tarde apa:rec.erão em livro. Os suplementos dos jornais, por exemplo, constituem pa trimônios de literatura,apesar do seu carater heterogêneo e desigual, o que se explica em face do gosto e das exi gências do grande público. Lembro, a propósito, a con tribuição para a história litedria que o sr. Mucio Leão está realizando no ,;uplemento sob a sua direção. Lembro os ensaios de uma categoria tão elevada e tão rara que Otto Maria Carpeaux vem publicando no suplemento do Correio da Manhã. Aliás, o· suplemento de jornal vai se constituindo um gênero intermediário que participa, ao mesmo tempo, do jornalismo e da arte literária. IDti mamente, os srs. Osorio :eorba e Genolino Amado ha viam .Se tornado as duas figuras prinçipais. desse gênero literário, alcançando um êxito e um renome que não são comuns nas nossas letras. Agora, um novo escritor acaba de se revelar através do suplemento de jornal : o sr. José Cesar Borba. E este é um nome que espero irá ser fixado nas nossas letras de maneira excepcional. Parece-me uma das figuras 1mais representativas e mais características da sua geração, como uma força de criação e uma voca ção literária que logo percebí quàndo ele era ainda um menino. E o sr. José Cesar Borba se apresentará sobre tudo como um autêntico poeta, o que se verá quando for publicado o seu livro de poemas que tenho comigo agora mesmo. Outra atividade que não se deve esquecer é a da vida literária das províncias, das cidades distantes em que es" critores e leitores se entregam à literatura com uma co- Jorna l de Crítica .21 movente seriedade. Muitos dos livros publicados ultima mente são de autores provincianos, e ninguem poderá falar mais hoje no isolámento ou na inercia das províncias. Conheço hem esta atividade e este ambiente. Conheço os seus escritores que trabalham desinteressadamente, sem nenhuma ambição de dinheiro ou de sucesso imediato. Conheço os seus leitores que procuram nos livros um apoio para o sentimento da vida e o conhecimento do mundo. Eu os conheço., todos, porque confesso que sou um crítico da Província, e é na minha província do Recife que estou pensando ao escrever esta última crõnica do ano. -3 de Janeiro de 1942. \ CAPíTULO li POESIA E FORMA I N Ão sei bem se falar do suprarealismo ainda constitue hoje uma novidade ou já representa uma atitude envelhecida. Nenhuma das dua!' hipóteses me importa muito, pois tenho a coragem de ser indiferente ao que é moderno e ao que é antigo, pl"ocurando somente a -verdade - o que me parece a verdade, pelo menos - sem ligação com as suas circunstâncias de espaço e de tempo. .Mas pelo que tenho lido não me é difícil verificar que o suprar realismo continua o seu caminho fora do movimento fran cês que o tornou universalmente conhecido. Ele não era, sem dúvida, uma pequena propriedade de certas figuras de uma determinada escola, mas um estado de espírito em correspondência com a vida mesma da nossa época. O que se chamou o movimento suprarealista teve no des tino deste estado de espírito dupla influência : uma que o favoreceu e outra que o p�judicóu. Favoreceu-o com al gumas obras explicativas, com um vasto debate crítico e interpretativo, com a sua iniciativa de o colocar para sempre dentro da literatura ; prejudicou·o com a sua esquemati zação dentro de um sistema, com o seu exagero de pre tender tudo reduzir a uma expressão suprarrealista, com o erro de excluir a razão - um erro igual ao de excluir a superrazão - da atividade psíquica. O que se sabe, porem, é que o suprarrealismo venceu por si mesmo as li mitações e os excessos da escola suprarrealista. E que per manecerá sempre por isso como uma aquisição, como uma J o r n a l d e C rít i c a 23 contribuição da nossa época para os estudos científicos e literários ao me<!mo tempo. Apesar de toda a sua bi�liografia, acredito que o prin cipal docu"mento teórico do suprarrealismo continua a ser o famoso manifesto de André Breton. 'E' nele que se sente com mais evidência e mais dialética o que representa a ex periência do suprarrealismo. E na verdade deve ser apro veitado mais como uma experiência (o que lhe dá o seu verdadeiro carater de incessante pesquisa, de permanente renovação) do que como um sistema (o que lhe daria, com -O decorrer do tempo, um carater de petrificação, uma qua lidade de obra concluída e encerrada). No seu Manifeste du surréalisme, André Breton interpretou a experiência e lançou o sistema, O que nos resta é desprezàr o sistema e aproveitar a experiência. Mas esta experiência - o que ela significa, o que dela resulta, onde nos poderá levar? Significa o suprarrealismo o aproveitamento para a lite· r atura de todo um potencial mais escondido de vida: o do subconciente, o do irracional, o do instintivo. De um mundo interior mais profundo e mais puro. Dir-se-á que em todos os tempos esta vida misteriosa esteve presente na criação artística. E' certo que sim, mas somente com o suprarrealiemo é que obteve a importância de um reconhe cimento mais geral e a confissão de seu poder mais atuante. Obteve um definido lugar ao sol. Onde erraram os suprar realistas foi no seu propósito de fazer da vida artística um exclusivo produto do automatiemo psíquico, como se fosse possível reduzir a arte a ·uma operação espontaânea, sem os recursos da razão e da lógica (v. definição de André Bre ton em Manifeste du surréalisme, pág. 42). Mas bem se sabe que uma �oisa não exclue a outra: que a vida subconciente não exclue a vida conciente, que o ilogieismo completa o logicismo sem o anular, que a intuição é uma faculdade que pode exi8tir ao lado. da inteligência. As grandes obras se fizeram dessa harmonia, e porque não a reconheceu, o suprarrealismo Qrtodoxo não criou nenhuma 24 A lv a r o L i n s grande obra, nenhuma obra completa e perfeita. Haviam criado estas obras, porem, aqueles que já se utilizavam do suprarrealismo sem o definirt um Baudelaire ou um Rim baud, alguns poeta3 românticos, quase todas as grandes fi guras das literaturas ingleaa e russa. Mas de qualquer forma o que resultou do suprarrealismo foi uma disposição revolucionária que não deve ser esquecida e, que deve ser continuada : uma revolução contra o espírito de imitação e de rotina, contra o falso realismo que excluía o trans cendental, contra a arte petrificada nos formulários, contra a conciência lógica que não tinha a coragem de se voltar para dentro de si mesma. O suprarrealismo tornou ·se, assim, um movimento em profun.didade, e· lembremos que a sua direção é a mesma em que se encontram os dois filósofos que nos nossos dias mais lucidamente explicaram os fenômenos estéticos : um Bergson e um Croce. Deste modo é que se constituiu muito nítida uma linha de ligação entre os filósofos da intuição e os poetas do suprarrealismo. Uma tão completa conjugação de forças - a da poesia, a da fi losofia, a da ciência - levou a vida cultural a essa conclu são : a impossibilidade de precindir da experiência suprar realítica. E vejo a poesia dos nossos dias como a realização de um desdobramento do processo suprarrealista. E' uma poesia que procura resolver o princípio de contradição do suprarrealismo : o da idéia com a forma. Uma poesia que procura a sua forma de expressão : eis uma legenda para a poesia moderna. E aasim muito se explica do seu dina mismo, do seu desespero convulsivo e do seu estado de tensão e desvario. * Em nenhum poeta moderno mais do que no sr. Mario de Andrade se poderá sentir esta contradição que é própria da poesia moderna : a de um pensamento que procura a sua forma. Ninguem entenderá a sua obra sem levar em J o r n a l de C r ít i c a 25 conta· esta circunstância. E dá-nos agora o sr. Mario de Andrade uma oportunidade para a compreensão e o jul gamento da sua obra poética em conjunto, publicando um volume (Poesias, São Paulo, 1941) que contem, ao lado dos seus poemas mais recentes, os seus_ livros j"á puhlica dos, desde Paulicéia Desvairada até Remate de Males. Poe mas em que as datas acusam um longo desdobramento que vai de1920 a 1940, e tambem que o sr. Mario de Andrade chega aos cinquenta anos conservando o fogo e o inconfor· mismo da mocidade. Vinte anos, como se vê, de atividade poética, num dos períodos mais importantes e mais sig nificativos das nossas letras : o que se conta do último mo viment9 moderno até 001 nossos dias. E não se trata de uma simples coincidência de datàs, pois o sr. Mario tle Andrade aparece como uma das figuras mais caracterís ticas e mais representativas do seu tempo. Representativa sobretudo do chamado movimento modernista, no qual· atuou como um chefe de fila, como um pregador, como um teórico e como um realizador. Poucas obras como a sua refletem o espírito de um movimento coletívo : com as suas inquietações, com as suas verdades, com os seus erros, com os seus problemas, com as suas esperanças, com os seus desencantos. Na sua obra se poderão encontrar a imagem de um homem e a imaginação de um movimento literário ; e simboliza o sr. Mario de Andrade o que nesse movimento existe de mais positivo e de mais negativo, ao me.smo tempo. Já .é histórico, aliás, o movimento mo dernista, quando até há pouco era ainda uma novidade. Envelhecer depressa vai se tornando uma contingência do nosso vertiginoso mundo nioderno. E uma tarefa da minha geração é exatamente esta de fazer o processo das inoV'ações que ae anteriores lançaram, uma vez que ainda não chegou o momento da nossa revolução. Por enquanto, estamos somente numa posição de defesa. E defesa da vida mesma. A minha geração ultrapassou, porem, o cha mado movimento modernista, e de tal modo que muitas 26 Al v a r o Li n s das suas novidades já nos parecem hoje sem qualquer sentido. O que não significa, porem, que neguemos a sua importância nas nossas letras, nem que estejamos impê didos de compreender e admirar as suas figuras realmente vivas. Uma destas figuras é o sr. Mario de Andrade, em quem encontramos ao mesmo tempo uma personalidade conciente do seu destino e um autor conciente da sua obra. Devo, porem, acrescentar: mais umà personalidade do que Um autor, pelo menos no dominio da poesia. E somente do poeta é que tenho hoje de me ocupar, o que constitue uma liJ.Utilação para quem se exercitou em tantos gêneros literários, devendo acrescentar que não é a- personalidade do poeta, mas a do ensaista e do pesquisador, a que pre firo no sr. Mario de Andrade. Mas, de uma- certa ma neira, se a poesia do sr. Mario de Andrade não é sufi ciente para transmitir uma idéia de todo o seu valor e de toda a sua importância na nossa vida: literária, ela nos transmite, no seu conjunto, uma imagem da sua personali dade, um reflexo da sua história literária, um esboço do seu pensamento, da sua técnica e da sua figura de artista. E o que esta obra poética logo nos revela é o dualismo a que já me referi: o de uma essência poética em procura da sua forma de expressão. E é uma pena que esta pro cura t�nha se orientado mais para o mundo transitório e acidental, o que privou esta poesia de uma maior pro fundidad�t, O que se deve notar em primeiro lugar no sr. Mario de Andrade é a sua originalidade. Ele criou o seu próprio espaço, a sua própria maneira, de um modo inconfundivel Ao lado dessa originalidade intrínseca, existe porem uma outra menos apreciavel: a que ele procura criar com a sua técnica. E assim se explica que um poeta de tanta per sonalidade seja tambem um poeta de muitos artifícios. As suas realizações mais felizes são aquelas que obtem entregando-se naturalmente à sua obra ; as suas pagmas mais frageis ou mais falsas são aquelas em que se com- J o r n a l d e C r ít i c a 27 plica em busca de uma expressão original. Duas ordens de preocupações, duas espécies de motivos revelam-se como dominantes no sr� Mario de Andrade : o sentimento da sua terra e o seu sentimento mais íntimo de homem. Nos seus livros de poemas alternam-se os dois, com a predo minância ora de um, ora de outro : nos primeiros, a do sentimento da terra ; nos últimos, a do sentimento íntimo. Em Remate de Males percebemos uma mais intensa con fluência das duas correntes. Mas este sentimento em face da sua terra não é unânime e igual em todos os seus as pectos. E' um sentimento de amor em face da vida natu ral, mas um sentimento de revolta em face da vida social. Não se poderia desejar para um artista uma posição ·mais simpática e mais legítima. E o sentimento de revolta nascia-lhe espontaneamente de três foníes : a do seu tem peramento, a da sua mocidade e a do movimento literário· do momento. E ele o externou com uma coragem, com uma pureza de artista e uma desenvoltura - realmente exemplares. Sacrificou muito a sua obra poética, na mes ma proporção em que afirmava uma atitude diante da vida. Este sentimento de 1·evolta dirigiu-se contra as de sigualdades sociais, contra toda a organização burguesa. O longo poema "As enfibraturas do Ipiranga" - do qual, aliás, não gosto muito como poema em si mesmo - repre senta um documento da batalha que sustentou em favor dos "novos" contra os "velhos". Outros poemas típicos dessa sua atitude mais intransigentemente inconformista são a "Ode ao burguês'\ "O rebanho" e tantos outros, em quase todos sendo de lamentar, porem, que não tenha con seguido uma realização mais sutil e mais de acordo com a arte poética. Uma peça como "Ode ao burguês" mais parece um manifesto e um panfleto do que Úm poema. Tambem é certo que o sr. Mario de Andrade nem sempre impõe ao seu espírito satírico os limites sem os quais perde muitos dos seus efeitos. A sátira lhe tem dado muitos achados felizes, mas taml>em lhe tem muito es• 28 A l v a r o Lins tragado a emoção poética. Às vezes nem se trata de sá tira : trata-se de simples pilhéria. Não sei como um autor tão inteligente - e que se encóntra tão poderosamente no domínio da sua arte - condescende com um falso espírito, com um falso humour, com uma falsa veia sa tírica. Esta intervenção abusiva é que me incompatibiliza bastante com muit_os dos seus poe:p1as, mesmo com uma parte dos seus poenias mais famosos, como "Noturno de Belo Horizonte", "Carnaval carioca", e quase todos os intencionais - os intencionais esteticamente e social mente. Como extrair poesia, por exemplo, daquela boa pilhéria dos dois versos finais de "Tabatinguera"? Outro recurso que me parece usado de mais na obra do sr. Ma rio de Andrade, e com uma insistência que se alastra por quase todos os poemas - é o do pitoresco -a· todo custo : o pitoresco no pensamento e o pitoresco na expressão. Nesta altura, estamos já em face de outro aspecto do seu sentimento da terra : o do seu amor pela vida natural, pela vida espontânea que é a da natureza e a do povo. Dessa categoria é o poema "Carnaval carioca" - no qual se sente, aliás, todo o seu sensualismó, inclusive o que nasce do simples jogo das palavras - como tantos ou tros destas Poesias, sobretudo os dos primeiros livros. Percebe-se mesmo que o· poeta teve a intenção de reali zar uma arte brasileira, uma arte nacional, refletida ao mesmo tempo nos seus asauntos e no seu vocabulário. Mas surge aquí a velha questão já resolvida da impotên cia dos assuntos e dos vocabulários, em si mesmos, para a criaÇão de uma literatura nacional. O brasileirismo de muitos poemas do sr. Mario de Andrade apresenta o mes mo resultado do brasileirismo do movimento modernis ta : uma exterioridade que hoje soa falso, que está enve lhecida, que se tornou inaceitavel pela sua intencionali dade, pela sua ausência de força íntima, pelo muito que revela de cerebralismo em vez de sentimento. É o caso de poemas como "O poeta come amendoim", nos quais J o r n a l d e C r ít i c a 29 há versos em que tudo está perdido, inclusive o bom ·gosto das palavras e das suas construções estilísticas. Podemós dizer que em geral os seus poemas intencional mente. brasileiros não atingiram os seus fins e os seus efeitos. Somente deles ficou a sugestão, a atitude, o iti nerário indicativo.E o que os matou foi exatamente a intencionalidade, a ausência de naturalidade. Dos seus poemas intencionalmente brasileiros, somente um se deB taca e se impõe sem restrições : é o "Acalanto do serin gueiro", no qual se unem uma inspiração autenticamen te brasileira, um espontâneo sentimento de revolta hu mana e uma arte social colocada acima de qualquer pro paganda. Mas sendo realmente um braBilciro, o sr. Ma rio de Andra·de consegue realizar alguns poemas corres pondentemente brasileiros. O que acontece é que os seus poemas mais brasileiros -são aqueles em que não houve intenção deliherada de um destino nacionalista. P-0emas da espécie de "Rondó pra você" e "Maria" - ao lado das reconstituições de lendas como a do "Toada do pai do mato" e a de Rola-Moça no "Noturno de Belo Horizonte" - são daqueles em que mais se sente· o poeta em comunicação com a sua terra : pela lin· guagem, pelo sentimento, pela realização. E muitos des tes poemas desinteressados, que me parecem mais brasi leiros do que aqueles que procuram sê-lo intencional mente, pertencem à fonte que chamei o seu. sentimento íntimo de homem. No sr. Mario de Andrade é o poeta lírico o que me parece mais fortemente realizado ; e lí ricos são os seus poemas que mais me agradaram neste volume de Poesias. Deste gênero é o poema "Improviso do rapaz morto", revelando a sua capacidade de se elevar a um plano acima de todo o transitório, de todo o pito resco, de todo o satírico. Não esquecerei nunca este poe ma, sobretudo o seguinte verso : "Minhas lágrimas caem sobre ti e. és como um sol quebrado". Insisto ainda em lembrar o soneto "Quarenta anos", com um final que 30 A l v a r o Lins sugere a recordação do desencanto poético de Alvares de Azevedo : "O' sono, vem! ... que eu quero amar a morte Com o mesmo engano com que amei a vida." Alguns poemas líricos do sr. Mario de Andrade os que revelam o seu sentimento mais íntimo de homem - me transmitem afinal a certeza de que ele insistiu de mais em certos temas e em certas atitudes, em certos ca minhos que não lhe eram os mais propícios. Tenho a impressão de que a sua posição mais propícia seria a do poeta solitário que canta o amor impossível, o amor ir realizado, o amor em si mesmo. E difícil será fazer a critica destas Poesias, pois eu gostaria de fazer a criti ca de cada poema, isoladamente. Encontro aquí alguns poemas que muito me sugerem, sendo que haveria mui tos outros a destacar com um vasto elogio. Poemas, ou tambem certos versos isolados. ' Volto a dizer, porem, que o drama principal do sr. Mario de Andrade não se acha na sua temática, mas na sua forma de expressão. Sendo uma personalidade com plexa, o poeta procura a sua unidade através da forma. Uma situação que se complica ainda mais porque o pro blema pessoal do poeta se conjuga com o problema geral da poesia moderna. O sr. Mario de Andrade é um poeta que muito se aproxima do suprarrealismo. Alem, disso, procurou criar um estilo pessoal e uma linguàgem parti cularíssima, t�mto em poesia como em prosa. Admiro o que há de original nesta linguagem e neste estilo, mas sem esquecer o que em ambos exiBte de falsa originali dade. O seu estilo apresenta_ realmente certas caracterís· ticas admiraveis : um forte sensualismo de vocábulos e de construções, uma agilidade e uma graça pouco co�uns na nossa língua, uma influência musical que lhe impri· me um máximo de subjetividade. Mas, ao lado uestas qualidades, em ligação com elas, estão as suas fraquezas: J o r nal d e C r ít i c a 31 um brasileirismo arbitrário e de gosto duvidoso, um ex cesso de !pitoresco, um .certo arrevesamento, um 1certo tom rebuscado, ou melhor : uma preocupação de moder nismo que muitas vezes parece mais um preciosismo de roupas novas. Esta é a impressão que decorre da sua leitura, inclusive da leitura de seus poema.s. Atinge mui tas vezes o puro delírio verbal, pensando que está a criar um mundo de imagens e de sugestões, quando nestas oca.:. siões estamos apenas diante de uma féerie. De uma féerie criada pelas palavras desenvoltas, pelos seus sons estridente, pelas ret-icêucias insistentes e gritautes. Inclino-me mais, ao contrário, para os seus poemas de uma maior tranquilidade, e nos quais se mostra mais domil:lador das suas palavras : os da espécie de "Louva ção da emboaba tordilha", por exemplo. Ou da espécie de "Cabo Machado", um dos seus raros poemas em que forma e poesia se ajustam com uma maior naturalidade, e que por isso pode ser sentido numa impressão mais complexa, de olhos- e de ouvidos. E esta procura da própria forma não é instintiva no sr. Mario de Andrade, pois estamos diante de um artista que conhece o seu ofi cio, que se acha no domínio da sua técnica. Direi mes mo que se assiste até demais à sua técnica. A técnica que está procurando a sua forma e o seu espírito. Ele nunca está satisfeito com a forma e o estilo já atingidos. E o que procura através de ambos é encontrar-se a si mesmo, é dar uma expressão ao seu eu não eucontrado. No mais explicativo, no mais "biográfico" dos seus poe· mas, o sr. Mario de Andrade escreveu estes versos : "Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta Mas um dia afinàl me encontrarei comigo • • . " Parece-me que nestes dois versos se encontra um� imagem da figura do sr. Mario de Andrade. Neles se encontra, pelo menos, .a sua história : a de um homem multiplicado que procura se encontrar a, si mesmo. E 32 Al v a r o .L in s assim se · explicam as suas numerosas experiências em to das as direções, dando por isso a impressão de um ser anárquico e contraditório. Dentro da poesia, as expe riências de forma. Dentro da prosa, as experiências de gêneros. Nestas suas Poesias encontramos todas as for mas e todos os ritmos, o que nos transmite eeta idéia de desvario e de completa anarquia espiritual, ao lado de uma impressão de rigorismo lógico e de domínio da in teligência. Mas tudo misturado, tudo marcado por uma fatal desigualdade que nos faz ora aplaudir com entu siasmo, ora repelir sem qualquer hesitação. Na sua pro Ba, encontramos o ficcionista, o ensàista, o musicista, o folclorista, um mundo de preocupações e atividades, tor-; nando-o respeitavel pelo seu trabalho de cultura e esti- mado pelos mais jovens, aos quais ele muito sugere . e muito ensina. Mas tudo igualmente misturado, tudo igualmente marcado por uma fatal desigualdade. No en tanto, o que não se deve eaquecer, sobretudo, aci,ma mes mo do possível destino nunca sabido da sua obra no fu turo, é esta imagem que a sua literatura nos transmite: a imagem grave e atormentada de um homem que EC procura a si mesmo. A sua figura é uma das mais no taveis da nossa literatura. Ele trouxe para o nosso tem po uma contribuição, em inteligência e em cultura, que tornar:J. sempre lembrados o seu nome e a sua obra. O sr. M4rio de Andrade é um artista autêntico, ,com a consciência e a dignidade da sua arte. li De um poeta moderno cujo nome não estou auto- rizado a revelar - recebí uma carta em que se mostrava mais ou menos alarmado com a minha preocupação de ligar a poesia a um problema de forma, e não escondia o seu receio de que eu estivesse numa posição quase que reacionária. Vencendo um pouco o constrangimento que J o rn al d e C rít i c a 33 sempre me traz a idéia de uma explicação forçada, não tenho dúvida nenhuma em desdobrar a minha afirmação neste sentido, embora repetindo mais uma vez que não escrevo para servir qualquer grupo literário de vanguar da ou de retaguarda, qué não estarei disposto nunca a fazer uma crítica de soutien, que não me deixarei domi nar por qualquer circunstância fora da literatura. Mas direi desde logo que se fosse obrigado a escolher entre a poesia antiga e a_ moderna - era exatamente a poesia mod,erna que eu escolheria. Bem sei que a poesia é uma só, mas a sua expressão moderna encontra em mim uma maior correspondência ; e o que poderia chamar as mi nhas poéticas "afinidadeseletivas" são todas com -os poe tlliS 'modernos. Explico, ·.porem, que Jestou restringindo o problema à vida literária do Brasil, onde acho que a poesia se encontra nestes últhnos anos num momento de plenitude. E não só a poesia, mas toda a literatura bra sileira está realizando um movimento de evolução. Esta mos hoje ultrapassando o passado em várias direções, sem que tenhamos a necessidade de desdenhar as gran des figuras deste mesmo passado. Afasto assim a inquie tação do poeta que me escreveu. Sou um escritor que estima o passado mas sem qualquer saudosismo reacioná rio, que se sente muito bem na sua época e com os seus contemporâneos, que compreende e valoriza a literatura do seu tempo mais do que qualquer outra. Fora de to do o propósito seria julgar que a minha exigência de uma forma para a poesia moderna representa qualquer ten dência de uma volta ao soneto ou ao v-erso metrificado. Estou certo, ao contrário, de que através do verso livre a poesia moderna pode encontrar a sua forma de expres são. E não se trata somente de uma substituição esté tica, mas sobretudo de uma nova conquista, de uma ex traordinária liberdade. O soneto, o verso metrificado, todas as medidas e formulários poéti�os - constituem ·P�struJl1entos �ue limitam ou escravizam a poesia, a nãC? 34 A lvaro Li_ns ser nos casos em que o poeta tenha uma verdadeira- voca· ção para essas formas. Poder-se-á lembrar que muitos poetas construíram as suas grandes obras dentro destas fórmulas, mas lembrarei ao. mesmo tempo a possibili dade de uma grandezá ainda maior para essas obras se houvessem sido colocadas num processo de realização fora de quaisquer limites. · Deve-se entender, portanto, que a poesia moderna violentou tantas fronteiras e penetrou em regwes tão misteriosas e tão profundas que não mais pode suportar qualquer limitação vocabular. Através do verso livre é que m�lhor poderá se exprimir e révelar. Mas será que o verso livre exclue .ã forma ou toma mais facil a sua aquisição? Penso o contrário: que o verso livre torna mais complexo o problema da forma, que torna a forma mais necessária e mais em conexão com a poesia. As fórmulas antigas de construção poética exigiam muito menos de individualidade e expressão pessoal. A poe sia já se revelava para _uma determinada forma que a iria conter. A dificuldade toda se· encontrava na técni ca, que é de ordem mais geral, não se confundindo com o esforço de uma expressão individual. O verso livre, ao contrário, tudo exige do poeta. Ele terá que criar ao mesmo tempo a poesia e a sua forma. E nem sequer poderá recorrer a uma técnica de ordem geral. Cada poeta há-de ter a sua própria técnica, com a qual, por sua vez, deverá criar a sua própria forma. A poética moderna abriu estranhas perspectivas e desmedidas pos sibilidades para a poesia em si mesma, mas deixou o pro blema da forma entregue a cada poeta em particular. E eis porque coloco o problema da forma no centro da poesia moderna. É um problema dramático que apre senta uma Bingular importância. Uns o resolvem pro curando esquecer a form · a, com a idéia de que um po' tencial poético de grande intensidade pode dispensar tu do o mais ; outros, procurando a construção de uma for- J o r n al d e C r í t i c a 35 ma que não seja uma consequência da sua poesia, mas de uma elaboração intelectual. Um caso especial é o do sr. Mario de Andrade, que procura na forma não só uma expresaão para a sua poesia, mas uma expressão para a sua própria personalidade. Uma pesquisa que engrandece a sua obra, somente a diminuindo quando o poeta se encontra num falso caminho. E raros os poe tas modernos que têm conseguido encontrar a sua pró pria forma. Não quero dizer, aliás, que o desencontro com a forma, esta luta inacabada pela conquista da for ma, signifique sempre uma fraqueza do poeta ou da poesia. Ao contrário, esta luta pode constituir um ele mento de grandeza e de dramaticidade. Mas se a ausência dê uma forma não impossibilita a grandeza da poesia, im possibilita s�m dúvida a perfeição de uma obra poética. E neste ponto .chegamos diante de uma distinção que não deve ser esquecida : a distinção entre poesia e obra poéti ca, entre uma inspiração de poesia · e um poema realizado, entre a essência da poesia, que é toda subjetiva e imaterial, e a sua realização concreta, que tambem participa da ma terialidade das palavras. A poesia não é privilégio de nin guem : ela se acha em toda parte e no interior de todos os homens. O que é privilégio do poeta é a obra poética rea lizada, esteticamente construída. E não se deve esque cer que a obra poética representa uma obra de arte, ·exi gindo nesse carater um instrumento de expressão, uma forma literária, portanto. Não havendo forma t!_ão exis te, pois, uma obra poética, não existe um poema. Pode existir apenas a poesia, mas sem a capacidade de se ex primir, sem a capacidade de se comunicar. E comuni car-se representa uma missão da poesia, representa uma missão do poeta. Ou, como escreveu Henri Bremond : "On pourrait dire d'un mot : le propre de l'experience poé tique est d'être comunicable." Um excessivo hermetis mo .pode asaim constituir . um obstáculo fatal, não digo 36 A l v a r o L i n s para a poesia em si mesma, mas para a obra poética, que deve necessariamente se comunicar. Um poeta que não se comunica é um prisioneiro da sua própria · poesia. Existe, porem, outro aspecto da questão : o de que nem sempre ,cabe ao poeta a responsabilidade da não transmissão da sua· ·experiência poética. A responsabili dade pode se encontrar no leitor, no seu prosaismo, nos seus preconceitos, nas suas exigência,s de uma clareza den tro da lógica comum. A poesia moderna, porem, se acha colocada muito alem �essa lógica comum. Poesia que se transmite nem sempre quer dizer, por isso, uma poesia que é. clara no seu sentido e no seu desenvolvimento. Sabemos que algumas obras têm o destino de conservar um estado de mistério, de se · concentrar dentro de uma especiC não comum de obscuridade. No entanto, para estas obras mais difíceis a forma se torna ainda mais ne cessana. Por exemplo : o que seria de Mallarmé· sem a sua forma? Pois somente uma forma poética contem a capacidade de justificar ou explicar uma poesia obscura. Podemos não entender o poema, pois nem toda poesia se mostra reconhecível sob os critérios da inteligência, mas teremos que o sentir por intermédio de outros caminhos de comunicação, o que somente se verifica através do poder sensível das palavras, através do ritmo interior, da música e dás sugestõe� que se acham contidas na forma. Parece-me que nunca um problema se encontrou co locado em termos de maior certeza e de mais positiva evidência. Um problema não só do nosso tempo, mas de todos os tempos. Lembro, a pro·pósito, o debate que ainda hoje se prolonga em torno da poesia de Edgard Poe nas letras de língua inglesa : um debate em torno da sua forma. Foi a · tradução francesa de B audelaire, como se sabe, que tornou Poe um nome universal. Depois, as letras de língua inglesa se dividiram a este propósito. Uns aceitam e confirmam essa consagração, enquanto outros continuam a negar a sua legitimidade, J o r n a l d e C r ít i c a 37 E para os que não a aceitam, o argumento é a forma de Edgar Poe. Num doa seus ensaios, por exemplo, Huxley afirma que Poe poderá ser um grande poeta em tradução francesa, mas nunca o será na língua inglesa, explicando-se : "A substância poética de Poe é aristocrá tica, enquanto que a sua forma é vulgar." Este caso de Poe - que estou apenas expondo, sem qualquer propó sito de oferecer uma opinião - se - coloca como um exem plo do perigo a que a forma submete um autor. Além disso, gostaria de lembrar que somente na forma poderá ser encontrada a sensação do verdadeiro tra�alho inte lectual, o sentimento da dignidade do oficio literário. Pretender que o poeta seja um simples medium para a inspiração - oque parece de acordó com o pensa mento teórico de certos poetas q'ue querem fazer da poe sia um. exótico "espiritismo", uma seita para iniciados sonâmbulos - seria diminuir a sua posição, seria torná· -lo um simples e pobre autômato. Acho, ao contrário, que o trabalho e o esforço são criadores, que devem estar na base de toda obra literária, como uma afirmação da personalidade no sentido desta proposição de Bergson : "L'effort est penible, mais il est aussi précieux, plus pré cieux encore que l'reuvre ou il aboutit, parce que, grâce à lui, on a tiré de soi _ plus qu'il n'y avait, ou . s'est haussé au-dessus de soi-même." * Não tenho, pois, outro propósito aenão o de cola borar com os poetas modernos qilando lhes estou suge rindo a importância da forma para a segurança e a resis tência de uina obra poética. E outro poeta moderno, diante de quem logo somos tentados a situar o problema da forma, é o sr. Murilo Mep.des, de uma maneira po rem que hão se confunde com a do sr. Mario de .Andra de, embora fosse possível eseabelecer entre ambos cer t<ls linhas de a11roximação1 sobretudo as que vieram do 38 A lvar o L i n s suprarrealismo para a poesia moderna. Publicou o sr. Murilo Mendes, em 1938 o seu livro principal, ao mesmo tempo que uma das obras mais con.sideraveis da nossa poesia contemporânea : A poesia em pânico, um volume em que recolheu os seus poemas de 1936 e 1937. O livro que agora publica (O visionário, Rio, 1941 ) está for mado de poemas anteriores aos de A Poesia em Pânico ; poemas de 1930 a 1933, servindo antes de tudo como do cumentos da sua trajetória e como depoimentos da sua inquietação e da sua mobilidade. E nessa categoria de documentos está o principal mérito de O visionário. Na categoria de obra poética parece-me abaixo de outros livros -do sr. Murilo Mendes. Abaixo tanto de Poemas ( 1930) como de A poesia em pânico ou Tempo e eterni dade. Percebo em O visionário um intenso potencial poético, mas que ainda se acha aprisionado, que ainda não encontrou a sua forma de expressão. Mas como o sr. Murilo Mendes se coloca em face do problema da for ma ? Ele me transmite a idéia de alguem que não se preocupa muito com este problema. Contudo em A poe sia em pânico atingiu uma forma adequada e precisa de expressão para quase todos os poemas ; atingiu algumas vezes a unidade orgânica de poesia e de forma, e de um modo tão seguro que poderia lembrar aquela aspiração de Valéry : "La pensée doit être cachée dans le vers com me la vertu nutritive dans un fruit." Um resultado, porém, em que não deve ter havido senão um milagre da pró pria poesia, pois a verdade é que uma forma tanto pode ser obtida laboriosamente oomo espontaneamente. Te nho a impressão de que a forma de A poesia em pânico nasceu Ja com a sua própria poesia. Nasceu com aque la sombria densidade, com aquele canto desesperado de amor, com aquele lirismo metafísico. Foi realmente este livro o momento mais alto da vida poética do sr. Murilo Mendes, J o r n a l d e C r í t i c a 39 Não se preocupando com o problema da forma, o sr. Murilo Mendes está vivendo quase sempre no domínio exclusivo da poesia em si mesma. É verdade que em todos os seus livros existem alguns poemas realizados integralmente, poemas em que se ajustam a forma e a p oe.sia ; o que é mais constante, porem, é o sentimento exclusivo da poesia, sem a sua correspondente expressão formal. Representa o sr. Murilo Mendes um dos nossos mais poderosos "portadores" de poesia, sem que tenha um igual poder de transmissão. O seu clima mais natu ral seria o da poesia pura, o de uma poesia que fosse indiferente às palavras. Talvez que essa sua tendência venha das suas profundas afinidades com a música. E a música se caracteriza, como acentuou Hegel, pela sua capacidade de exprimir "a vida do espírito em seu mo vimento essencial". Uma característica muito semelhan te vamos encontrar no sr. Murilo Mendes : a sua ânsia de penetrar na essência mesma das coisas, colocando a sua poesia no plano do que é essencial, do que é impon deravel, do que é metafísico. O mundo físico não existe poeticamente para o sr. Murilo Mende�. Mesmo quan do fala dos seus objetos a voz do poeta se dirige para a possível existência desses mesmos objetos num mundo metafísico. Não vê coisa alguma com os olhos do mun do natural, pois toda a sua visão está voltada p ara a so brenatÚralidade. Afirma-se sobretudo como um poeta católico nesse plano de transfiguração de todos os obje tos terrestres. Daí o que existe de deformador na sua visão poética. Ele t:udo vê sob formas antinaturais, ex cêntricas, absurdas. Quando descreve uma mulher, uma paisagem, um acontecimento - todos estes seres e obje tos se tornam quase irreconheciveis. O poeta lhes atri buiu uma nova configuração, a configuração do seu estra nho poder imaginativo. Ele seria de qualquer modo um poeta suprarrealista, mesmo que não houvesse existido o movimento do suprarrealismo. O sr. Murilo Mendes 40 A l v a r o L i n s tornou-se por isso o menos inteligível, o mais hermético dos nossos poetas modernos. Dificilmente a sua poesia se transmite, e a responsabilidade desse desencontro cabe em muitos casos ao leitor, mas em muitos outros ao próprio poeta. Na verdade, o sr. Murilo Mendes se sente na terra como, _ um "noVÍSBimo Prometeu". Sente-se acorrentado violentado, debatendo-se num tumulto de aspirações im possíveis. Procura se evadir do mundo natural por in termédio de dois caminhos : o seu frio espírito crítico e a sua ardente alucinação poética. Dois caminhos apa rentemente contraditórios que se juntam neste poeta, em bora com a finalidade de torná-lo ainda mais dividido e complexo. O espírito crítico leva-o à realização de poe mas satíricos, epigramáticos, caricaturais, sendo que uns atingem o efeito mais feliz, enquanto outros nos parecem simples jogos de excentricidade. E deve-se assinalar o que há de inteligência, de agudeza, de poder de com preensão na parte propriamente crítica da obra do sr. Murilo Mendes. E' um caso realmente curioso o desse poeta que parece um alucinado da poesia, mas que tem ao mesmo tempo uma força de inteligência e de .conhe cimento literário. Dá-nos a impressão, porem, de que tudo esquece naquelas ocasiões em que se acha pos suído de alucinação poética. Estamos agora diante do outro aspecto - o aspecto principal, na minha opinião, - da sua figura poética : aquele que se poderia chamar o .seu lirismo metafísico. A 1sua poesia perue, então, todo o seu possível equilíbrio : o equiHbrio de espaço e de tempo. O espaço se desdobra para alem de todos os horizontes visíveis ; o tempo está recuado para o passa do ou projetado para o futuro, fora · de qualquer con trôle de calendário. Nestas regiões desconhecidas e nes tes tempos misteriosos, assistimos à luta dramática do poeta : a luta entre o Bem e o Mal, entre o Espírito e o Corpo, entre Deus e o Diabo. E nesta luta é �e se en,- J o r n a l d e C r.í t i c a 41 contra toda a essência da poesia do sr. Murilo Mendes. Pode-se imaginar, por isso, a que altura chega o seu de lírio de imaginação. Delírio de imaginação que se torna responsavel peJa força e pela fraqueza da sua poesia, ao me.smo tempo. Direi assim, sem nenhuma hesitação, que o sr. Murilo Mendes é um poeta que não se pode a�eitar integralménte. Logo se vê que ele não sabe manter um contrôle eficiente sobre a sua obra, de modo que a g�:an de poesia e a nenhuma poesia se alternam nos seus li l'ros com a maior naturalidade. Logo se verifica como ele se repete a si mesmo, nas suas imagens, nos seus sen timentos, nas suas idéias, chegando a provocar constan temente uma sensação de monotonia. Logo se percebe o seu gosto exagerado pela excentricidade, pelo "épater le bourgeois", pelo efeito desconcertante das imagens es quisitas. E penso que toda essa parte mais inaceitavel do sr. Murilo Mendes prove1n: da sua insistência em tudo extrair das suas faculdadessuprarrealistas. Mas o suprar realismo não suporta apelos excessivos, nem violências contra a sua espontaneidade. A faculdade suprarrealista tem qualquer coisa de uma criança : quando se pede na vista de gente que realize os prodigios que costuma fazer tão naturalmente, ela se atrapalha toda e mata os pais de vergonha pelo fiasco. Alem disso, esse automatismo suprarrealista vai repercutir na sua forma, tornando-a demasiadamente fria, simplificada e esquemática. Uma forma em muitas ocasiões quase que telegráfica, quando a poesia exige sempre uma forma igualmente poética. Não digo uma forma pomposa, mas uma forma simples mente poética, o que pode significar sobriedade; preci são e domínio rigoroso das palavras. Tudo o que estou escrevendo agora sobre o sr. Mu rilo Mendes me foi sendo sugerido exclusivamente pela leitura de O visionário, mas .como era natural com a associação de impressões que me transmitiram muitos outros poemas de livros diferentes. Quero I'epetir, po- 42 A l v a r o L i n s rem, que O visionário nada de novo acrescenta ao sen tido de sua obra, devendo ser fixado mais como uma re presentação documentária do seu espírito, o que procurei fazer nesta crônica. Trata-se, aliás, de um livro que re· vela mais ostensivamente os seus �efeitos do que as suas qualidades ; um livro em que se sente mais a presença de uma figura de poeta e de uma espécie de poesia do que propriamente a realização de uma obra poética. O que não quer dizer que não haja, nas suas páginas, um ou oútro poema admiravel, sobretudo que não haja nas suas páginas uma !Série de imagens que muito sugerem como visão poética e como representação lírica da vida. 21 e 28 de Março de 1942. CAPíTULO lli JUSTIFICAÇÃO .DE UM POETA D E vez em quando acontece que a um livro não seja atribuído o seu devido lugar por ocasião do seu aparecimento. Ainda existe outra siituação mais peno -sa : que um escritor ou artista suporte durante a vida toda os rigores de uma sorte contrária ; que suporte o silêncio ou a reprovação de uma forma injusta. Quase nunca coincidem, em , literatura, o julgamento contempo râneo e o julgamento do futuro. É o que está !\empre indicando aquela experiência que se levanta do conheci mento da história literária. . Muitos são os livros e os autores que se glorificam hoje com o desgraçado destino de um completo esquecimento para as próximas gerações. Outros, porem, carregam um destino exatamente oposto : o de um reconhecimento do futuro como uma espécie de vingança contra os contemporâneos que não os souberam entender. Nem sempre esse desencontro se verifica com a · exatidão de uma fatalidade. Contudo, ele se verifica com mais frequência do que esperamos. A esse propósi.., to é que venho falar de um poeta da minha cidade e da minha geração, o sr. Odorico Tavares, que não encontrou ainda a repercussão e a categoria literária que me pare cem à altura da sua obra. Acredito, antes de tudo, que se trata de uma injustiça não voluntária. O sr. Odorico Tavares não foi devidamente julgado porque ainda não se acha suficientemente conhecido. Mas como se .expli ca que não seja conhecido quando já se deu inteiramen te a conhecer? Estamos diante de um desencontro . lite rário ; estamos diante de um desajustamento que se pode constatar sem que se possa igualmente explicar. 44 A l v a r o L i n s Há alguns anos, o sr. Odorico Tavares, ainda estu dante, publicava uma coletânea de versos com o título de 26 Poemas. Destes versos podemos hoje dizer que nada mais eram do que uma tentativa, do que um ensaio, fe cundo na categoria de promessa, mas desprezível ,em si mesmo, como obra literária. Representavam realmente uma simples coletânea de estudante, os primeiros im pulsos e os primeiros entusiasmos de um poeta que pro curava o seu próprio caminho. Anunciav'am apenas o poeta que seria depois, o poeta que é hoje o sr. Odorico Tavares. Apesar dessa circunstância, a coletânea dos 26 Poemas, embora editada no Recife, obteve no Rio e 'em outros centros literários de importância um sucesso fora do comum. Saudava-se essa estréia como uma re velação, e de toda parte surgiam artigos e pal�vras de apoio. Lembro-me que o artigo mais entusiástico foi o do sr. Mario de Andrade, que falou do jovem poeta e do seu livro como de entidades que traziam uma contribui ção nova para a literatura brasileira. Infelizmente, po rem, todo esee sucesso era indevido ; e mais forte do que ele era a fraqueza dos 26 Poemas. Esse sucesso quem o iria merecer era A sombra do mundo, o novo livro que o sr. Odorico Tavares publicou há dois anos, exatamente em setembro de 1939. Mas o que aconteceu foi o ne nhum sucesso de A sombra do mundo. Um silêncio in justo caiu e ainda hoje está pesando sôhre esse livro. Do êxito de 26 Poemas quase ninguem se recorda mais : eis uma consequência natural. Do valor de A sombra do mundo ninguem se lembra de falar : eis uma consequên cia inesperada. Devo dizer, aliás, que não resultou eete silêncio de nenhuma circunstância acidental : o livro foi lançado no Rio de J aneiro, por uma editora do mais só lido conceito ; a apresentação gráfica do volume é de pri meira ordem ; não havia contra o poeta qualquer propó sito deliberado de oposição. O livro chegou mesmo a obter um simpático noticiário de imprensa e algumas crô- J o r n a l d e C r í t i c a 45 nicas de elogio vago e inexpressivo. Mas fazendo excepção para o artigo do sr. Valdemar Cavalcanti, não sei de nin guem que lhe houvesse dedicado um estudo crítico ou uma atenção demwada. Nem mesmo o sr. Mario de An drade, tão entusiástico para os 26 Poemas, se . lembrou de dar uma palavra sequer para o novo livro, que vinha encontrá-lo, aliás, como crítico profissional de um suple mento literário. Somente no Recife é que os poemas de A sombra do mundo puderam ser lidos e julgados devida mente. Lidos e juJgados por um Gilberto Freyre, por um Olívio Montenegro, por um Luís Delgado, por um Annibal Fernandes. Mas esses julgamentos não atraves saram os limitea da vida provinciana, não se continua ram em outras cidades e em outros ambientes. No Rio, somente alguM escritores e poetas conhecem o sr. Odorico Tavares ; e são ainda mais raros os que atribuem aos seus poemas a categoria que eles merecem e exigem. Eis porque me disponho agora a falar de um livro que conta dois anos de aparecimento, mas que ainda se conserva numa aituação de quase i�editismo. Acabei concluindo que não devia tomar como obstáculos as relações pessoais e sentimentais que me colocam tão perto do poeta de A sombra do mundo. Tenho vários amigos de cujos livros não gosto, e diante dos quais venho suatentando opiniões contrárias com _uma invariavel franqueza. Destas mesmas colunas tenho lançado contra amigos ou companheiros de idéias algumas das palavras mais duras e amargas que a crítica pode utilizar, ao mesmo tempo em que me tenho empenhado na tarefa de fazer justiça àB obras e pessoas dos inimigos e adversários. Mas como não oferecer a um amigo a mesma justiça que se oferece até aos inimigos ? Ao me referir, portanto, ao sr. Odorico Tavares, não será o amigo ou companheiro de geração quem estará falando. Será crítico que joga sempre nas suas afirmações toda a responsabilidade do seu ofício e do seu nome. Esta é, aliás, uma explicação que não se restringe ao sr. Odorico 46 A l v a r o L i n s Tavares ; é uma explicação de ordem geral que ape,nas encontrou no desenvolvimento desta crônica uma oportu nidade mais adequada para se exprimir • •. Em "Caminho", dos 26 Poemas, o sr. Odorico Tavares escreveu· estes versos que continham uma davertência ao próprio poeta que os lançava : ' 'Vê bem, poeta, que ·este não é o ritmo do teu verso Vê bem, poeta, que esta não é a tua poesia ." Realmente, não era. A verdadeira poesia do sr. Odo ri«?? Tavares é aquela que vamos encontrar em A sombra do mundo. No entanto, não. contem este livro toda a sua poesia.Uma contingência dos poetas de hoje é a ex pressão em pequenos poemas, em assuntos limitados, em inspirações que se esgotam todas em alguns versos. As sistimos, assim, a uma espécie de fragmentação das perso· nalidades poéticas. Elas só se vão revelando pouco a pou co, de poema para poema, de livro para livro. Como todos os poetas 1modernos, tambem o sr. Odorico Ta vares se encontra limitado por essa .contingência. Ain da se deverá levar em conta a mocidade do poeta e o seu temperamento, que não é daqueles que se confes sam e se projetam de uma só vez. Ele pertence à raça dos que necessitam de muitos anos e de muitos livros para uma completa realização da personalidade. Assim hem se pode afirmar que não é toda a poesia do sr. Odorico Tavares que será encontrada no livro A sombra do mun-. do. Tanto a essência poética como a forma de expressão ainda se encontram num caminho de desdobramento; de continuidade e de evolução. Tudo indica que não esta mos diante de um poeta perfeito ou completo. Mas ao mesmo tempo tudo indica que estamos diante de um au- J o r n a l d e C r ít i c a 47 têntico poeta. A revelação dessa autenticidade será a lei tura e a compreensão de A sombra do mundo. E qual a significação desse livro dentro da nova literatura brasi leira ? Acho que poderemos defini-lo em dois aspectos : 1 °) é um livro moderno pela forma e pela expressão ·estilística com que renova velhos temas ; 2° ) é um livro antigo pela essência poética e · pelo gosto com que se co loca dentro do passado. Parece que o sr. Odorico Ta vares se instala, assim, dentro da mais forte e mais sau davel tendência da poesia brasileira dos nossos dias. O seu movimento é o mesmo que estão· realizando alguns dos nossos principais poetas : a unidade entre uma essência poética antiga - o que quer dizer : eterna - e uma for ma rigorosamente mod�rna. Nin�em seria mais hoje ca paz de fazer profissão ,de "moderno". Atingimos uma arte moderna pela superação do "modernismo". O ho mem moderno procura ' hoje reatar ·e continuar uma tra ... dição poética que se encontra toda no lirismo brasileiro - uma herança do lirismo português que se tornou inde pendente e autônoma. Esta poética que já se poderá chamar brasileira é a que se iniciou .com os líricos da Escola Mineira, a que se afirmou com os românticos do século XIX, a que conseguiu vencer a "impassibilidade" parnasiana, sobretudo com Raymundo Correia, a que se corporificou em simbolistas como Alphonsus de Guimarães e Cruz e Sousa, a que se encontra hoje em. plenitude atra vés de alguns dos nossos poetas modernos. Existe uma luz interior, uma inspiração local e uma realidade verbal que vêm marcando a poesia brasileira através das ·escolas sucessivas e temporárias. Uma espécie de linha que se quebra e se reata constantemente. E acredito que nunca apareceu mais fortemente sustentada do que nos nossos dias. Vê-se que a poesia de hoje está tentando esta sín tese entre a forma moderna e a substância antiga, entre sentimentos universais e expressões de carater nacional, entre a 1'saudade" do passado· e a "vontade" do futuro. 48 A l v a r o L i n s É uma t�ndência que já assinalei ao falar do sr. Carlos Drummond de Andrade. É uma tendência que tamhem se poderá assinalar na· poesia do .sr. Odorico Tavares, que pertence exatamente à família poética onde se encontram instalados, como patriarcas, os srs. Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Esta família se distingue pela sua ânsia de realizar aquilo que, em filooofia da arte, Wischer e Lotze chamaram a "einfühlung", isto é : o propósito de fazer d a beleza estética uma imagem da própria vida, uma realidade onde identificamos a pró pria vida. Uma espécie de fusão, quase sempre ideal, entre o "sentimento da natureza" e o "sentimento esté tico". O sr. Odorico Tavares coloca-se sob o signo dessa fusão em todos os poemas de A sombra do mundo. Al ternam-se os poemas que apresentam uma caract�rização mais local e os que oferecem uma participação m�'larga nos sentimentos universais. É um livro o seu muito da sua terra e do seu tempo. Do seu tempo, antes · de tudo pelo que rcpre.senta de ressonância dos acontecimentos desencadeados pela - guerra. A voz do poeta se ergue num momento de guerra quando ela é uma voz que clama pela p az. Pode-se dizer que ela chegou no instante 'mesmo em que se consumava um rumoroso fracasso dos intelec tuais: De 1918 até hoje, as atividades dos homens de le tras mais separados, dos que vinham de todos os cantos dos horizontes políticos, tinham todas o mesmo denomi· nador : a paz. Esta palavra não exprimiu, no caso dos intelectuais, apenas um sentimento : representou tambem uma espécie de ética, um ideal de luta, um destino de combate. Mas o que resultou foi .uma enorme sensação de inutilidade. O mundo o que ele prefere é a voz da guerra à voz da paz. No entanto, essa luta pela paz ain da é sustentada por homens que acreditam na poesia e nos poetas. Eles podem repetir com Georges Bernanos : "Si ce monde pouvait être sauvé, il le serait par ses poe- J o r n a 1 d e C r í t i c· a 49 tes". Alguns dos poemas mais significativos de A sombra do mundo éoncentram-se 'nos motivos dramáticos da guer ra da paz. Uma espécie de diálogo entre o lirismo do poeta e as forças destruidoras das máquinas. E vale a pena acentua:t: o tratamento novo e o sentido pessoal com que o sr. Odorico Tavares se movimenta dentro de temas tão difíceis e tão possíveis do tom-banalidade. Não se encontram nos seus poemas lugares-comuns, versos va zios, sentimentos fal�;os. Ele teve o heroismo de muito sacrificar a quantidade da sua obra, de destruir muitos dos poemas que eu poderia agora indicar como indignos de um livro ; as suas exigências consigo mesmo determi naram A sombra do mundo como um volume que não tem mais ,de setenta páginas. Entre os seus poemas, des taco "Mo"tietone Ne:ws" : a visão de uma Espanha que um dia :aal_· 1 :1:\scerá ; "Paz" : .a imagem simbólica �e uma, criança �colher "a poesia toda do mundo para solta-la no espaço contra os gases asfixiantes" ; "Guerra" : uma espé cie de síntese daquelee sentimentos de ansiedade, de an gúsita, de inquietação que se desdobram até as interroga· ções com que fecha A sombra do múndo : " Quando os céus serão limpos, a terra então lavrada ? Quando o amor volverá eterno, quando os caminhos povoados? " Porque ninguem responderá a perguntas dessa espécie, o poeta deixa tantas vezee este mundo fugindo dele ; fu gindo e esquecendo-o. Para salvá-lo, apresenta-se um ou tro mundo muito mais sugestivo : o da sua imaginação. "A poesia é quase um alívio ; faço versos para viver". Leio estas palavras e me lembro de Flauhert, o exemplo de vida mais típico para todos. os artistas, exatamente na sua solidão do Croisset : "La vi e est une chose tellement odieu,se que le seul moyeil de la supporter, c'est de l'évi· ter". Evitar a vida e .criar outra vida - não será este o um co caminho possível para um artfsta ? Através da poesia do sr. Odorico Tavares sente-se que ele ama a sua 50 A l v a r o L i n s .arte como qualquer coisa de mais essencial que a própda vida - amor que se exprime, por exemplo, nestes versos da "V e lha canção" : " Mortos meus pais, morta a infância - E da vida que foi que eu fiz ? O corpo gasto a o s vinte anos . • • Mas se a poesia está vivendo, Ainda posso ser feliz. " É uma confissão de que a sua felicidade está na poe sia, ou mais exatamente : na eua capacidade de viver poeticamente. Quando a vida não lhe permite este esta do que é uma espécie de bem-aventu-rança, o poeta utiliza um recurso salvador : a_ fug'a no tempo, o retorno ao pas sado, a renovação da infância, a sua visão de menino em Timbauba - a cidade que inspirou o "Bonde de burro da minha terra". E pode então divagar livremente, dis tante de todos os espectros e fantasmas : "Bonde de bur ro, onde me levas ?" O bonde de burro, o poético bondede burro leva-o à infância na pequena cidade que o sr. Odorico Tavares torna inesquecível nestes versos : " Bonde de burro, não passes, não, Naquela casa daquela rua, Onde um homem sempre escrevendo Deixava tudo para me abraçar Quando eu reinava pela idade, Rei do hodoque, sujo e descalço. Quando eu era este menino Que vai comigo, sempre ao meu lado ." Este poema "Bonde de burro da minha terra" per maneée ainda hoje a principal realização poética do sr. Odorico Tavares. É um poema que a tudo tem resis tido, inclusive ao repouso das antologias. Não sendo pro priamente um poema descritivo, transmite no entanto uma sensação quase física da paisagem exterior. A mesma sensação que iremos encontrar no poema "Viagem no trem noturno", Em ambos, a poesia da terra se im-põe J o r n a l d e C r í t i c a 51 como uma sugestão, na linha do conceito poético de Brad ley. A paisagem exterior não aparece objetivamente ; a sua re�lidade física transporta-se para dentro do poeta ; a paisagem e o poeta tornam-se uma só unidade. Mas não só as paisagens locais se destacam dos versos do sr. O do rico Tavares. Outras paisagens estão aqui sugeridas : as que ficam distantes, as que o poeta nunca viu, as que constituem objeto de sonhos e devaneios. Todas elas en� contram uma espécie de síntese no poema de evasão que é a "Canção da emigrante". Quero lembrar ainda a po sição do sr. Odorico Tavares em face do tema _ poético in� fância, que representa o próprio fundamento da sua poe� sia. O seu itinerário poético é aquele pensamento _ de Rainer Maria Rilke : o que situa na lembrança da infân cia, em solidão, o supremo recurso da inspiração _poética. Mas a infância não penetra na poesia _do sr. Odorico Tava re� como um fato do passado, como um conjunto de remi� niscências, como uma coisa morta que se faz -reviver pe� los artifícios da arte. A infância está presente no poeta como se ele a estivesse vivendo agora mesmo. O seu êxito neste domínio poético tão complexo surge justa mente de haver podido reter os sentimentos e impressões da infância num estado de absoluta pureza. A expres� são é do homem, mas o sentimento é o da infância, a úni ca idade que é poética de uma maneira absoluta. Aliás, os que conhecem o sr. Odorico Tavares logo o identüi cam como uma criança de 11;rande estatura. Ele se apre senta p�ssoalmente tão poético qUanto a sua poesia. Eu o revejo, agora, com a sua fisionomia ingênua, com a sua inocência de menino ; com os olhos míopes de criança assustada ; com as suas palavras de surpresa diante das velhas �nas ou das velhas idéias, que percorríamos juntos ; com o seu corpo ma!!rÍ�simo de quem esteve muito perto da morte, de qUem enfrentou a tuberculose com um h u� mour desesperado, como o sr. Manuel Bandeira. A minha lembrança pessoal se confunde com a outra le�brança que 52 A I v _a r o L i n s ele nos deixa por intermédio do poema "Volta à casa paterna" : " Por isso, limpem o espelho, Porque, apesar de todos os disfarces, A imagem da criança que se foi há muito tempo e hoje voltou Se refletirá nítida e forte com a pureza e o . encanto dos seus pri· [meiros sorrisos. " Não tenho dúvida nenhuma de que A sombra do mundo, pelos seus sentimentos poéticos, pela forma de expressão, pela realidade artística que contem, represen ta um documento literário de primeira ordem. Estamos diante de um poeta mais visual do que auditivo, mais sugestivo do que descritivo, mais artístico do que elo quente. As suas palavras são sóbrias : são palavras den sas e essenciais. A sua experiência da vida tem um cara· ter mais pessoal do que livresco ; o seu conhecimento do mundo não é o da ciência, mas o da intuição poética e artíatica. Revela-se, por isso, humano e fraternal, sem que seja sentimentalista ou piedoso. É u'm lírico que se tor nou dramático pela sua necessidade de se exprimir em diá logos ; e não poderia encontrar outra forma de expressão para harmonizar o seu lirismo de poeta com sensações diversas - estas mais intelectuais - de amargura e de pes simismo. Há cem anos passados, o sr. Odorico Tavares se· ria uma figura representativa do romantismo. Hoje, é um poeta moderno que se poderá classificar como neo· -romântico. E porque todos os homens têm os seus poe tas prediletos, com- indiferença quanto ao seu valor e classificação nas literaturas, confesso que um ' dos poetas da minha preferência é o sr. Odorico Tavares. A mim me comove este artista que fez da poesia um instrumento da sua personalidade e do seu carater. Que fez da poe· sia uma afirmação de sentimentos humanos e de nobreza intelectual. 13 de setembro de 1941. CAPíTULO IV PROBLEMAS E FIGURAS DA POESIA MODERNA T ODOS os movimentos poéticos se representam historicamente em certas figuras e em certos temas que mais fielmente se ligaram ao seu desenvolvimento. Tal vez que haja muito prejuízo nessa redução, mas se trata, de qualquer modo, de um processo histórico invariavel ; a história sempre apresenta, pelo seu próprio carater, uma certa tendência para a simplificação e para a síntese. Podemos definir um movimento literário através das suas causas e consequências de ordem mais geral e mais profunda. Esta é uma obra de pensamento e de inter pretação que se coloca diante de nós como um desafio. Contudo, há uma definição mais direta, mais simples e menos passível de erros e controvérsias : a que se rea liza através de figuras representativas e de temas expres·· sivos. Quando dizemos "amor e sentido da morte", esta fórmula significa : romantismo. Quando dizemos "forma e esforço de despersonalização", a fórmula significa : par· nasianismo. Quando dizemos "reação de espiritualidade e representação simbólica", a nova fórmula quer dizer : simbolismo. Todos esses movimentos apresentam outras faces consideraveis, mas duas ou três palavras especiais se rão suficientes para uma revelação quase completa das suas fisionomias. Tambem podemos sugerir a realidade desses movimentos pela citação de alguns nomes culmi nantes e característicos. Eles se tornaram símbolos das suas correntes literárias. Romantismo : Gonçalves Dias, Alvares de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, Fagundes Varella e Castro Alves. Parnasianismo : Ray mundo Correia, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira. 54 A l v a r o L i n s Simbolismo : Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Sousa. Atrás desses nomes, numa segunda linha, encontram-se oe di amados poetas menores ; os que tiveram o êxito numa determinada época, mas que não traziam os elementos de resistência para uma continuidade : de tempos em tem pos, em cada revisão histórica, mais aparecem dimiÚuidos e mais próximos se acham do desaparecimento. Do modernismo brasileiro talvez não se possa dizer nunca que tenha sido uma escola ou mesmo um movi mento tão regular e tão uniforme quanto o foram o roman tiamo ou o parnasianismo. O seu próprio carater deu -lhe uma constituição diferente. Ele se formou como uma revolução mais generalizada e mais radical do que qual quer outra. Enquanto o simbolismo reagiu contra o par nasianismo, na mesma linha em que o parnasianismo rea gira contra o romantismo - dava o modernismo uma orientação mais completa ao seu espírito de luta : volta- · va·se contra todas as escolas e sistemas do passado. De ve-se explicar que não era um a revolta contra a "poesia" do passado, mas contra as limitações que oprimiam essa mesma poesia ou contra os E'imples formulários dos imi tadores da retaguarda. Tanto aSI3im que os nossos poetas modernos são hoje os que mais sentem e melhor compre endem as figuras principais do romantismo, do parnasia nismo e do simbolismo. Devo ainda explicar que ao falar desse movimento moderno da poesia não me limito às atividades de poetas ou de grupo8 de poetas num deter· minado momento ou para determinado· fim. Essas ativi dades têm a sua importância, mas elas já significam ex pressões do movimento geral a que estou me referindo :um movimento de renovação que há vinte anos se levan tou no Brasil, assumindo aspectos di�ersos e provocando resultados diferentes. Divet·sos e diferentes, mas conver gentes. O que nesse movimento havia de atividade dire ta e, digamos, prática, já desapareceu. E desapareceu como era do seu destino, por efeito da vitóri� que obte· J o r n a l d e Cr í t i ca 55 ve : a da realização desse movimento em obras. Podemos dizer que há vários anos o modernismo morreu. Mas estamos diante de uma morte heróica e fecunda. Ela signi ficou a substituição de urii movimento de combate por um movimento de realização literária. O Brasil conta hoje com uma poesia rigorosamente moderna, que não teria sido possível sem os agitacionis tas destes últimos vinte anos. A nossa poeaia moderna ocupa toda a vida .poética do presente. Os que estão fora do seu espírito só podem ser estimados ou admirados co mo homens do paasado. Nunca uma situação literária se apresentou mais clara ou mais definida do que a da poe sia moderna. Desse modo é que já podemos fixar os seus temas e as suas figuras principais, com · uma exatidão que não se diferencia muito daquela que mamos em re lação ao romantismo ou ao parnasianismo. Talvez não seja bastante exato falar de temas a propósito da poesia moderna, pois o que a caracteriza é precisamente uma vasta e desordenada utilização de todos os temas. A poe sia moderna se afirmou através de dois movimentos apa rentemente contrários : I 0) uma destruição de tudo que havia de formalístico e de convencional nas antigas es colas literárias ; 2°) um aproveitamento - como um im pulso para a continuidade - de tudo que nelas havia de mais propriamente vivo, artístico e poético. A poesia mo derna desdobra assim muitas das fontes de vida que já se achavam nos movimentoa poéticos do passado, no roman tismo e no simbolismo, principalmente. Não se tenha dú vida, aliás, a propósito desta afirmação : o· verdadeiro sim bolismo se encontra mais integralmente realizado nos poe· tas modernos do que nos poetas que conatituiram a escola correspondente a esse título. O fundamento expressional :t.!!ais_profundo da _poesia moderii.� � o_ símbolo, Do roman tismo, por sua vez, a poesia moderna herdou o poder d{di llútação, colocando-o, no entanto, numa esfera muito mais farga e iimiio :m;Íia ampla. Uma caniêterisíica da poesia 56 A l v a r o L i n s moderna é a ausência de limites, é a ausência de fronteiras. Enganam-se oB que vêem no repúdio da métrica e da rima a principal revolução da poética dos nossos dias.. Essa revolução formal representa uma simples superestrutura. Ou mais exatamente : um simples acidente. E' no próprio espírito que a poesia moderna coloca aa suas fundas raizes de renovação. O poeta moderno está empreendendo uma grande aventura, uma espécie de exploração no tempo e no espaço. Em que sentido, com que fim, com que des tino, ele avança ? Ninguem o sabe ainda. O que. sentimos é que estamos em vésperas de uma grande descoberta poética. Os poetas modernos continuam a caminh ar e case caminho levará a um destino. Suponhamos, porem, que a nada mais conduza alem do que já se acha conhecido. Mesmo assim, a poesia moderna subsistirá pelo que já realizou em obras, continuando-se no tempo pela heran-;a q.ue transmitirá às geraçÕcB futuras. O que mais n o s far. cina na poesia moderna é justamente o que ela contem de imperfeito e de inacabado. Não se detem satisfeita na con templação de si mesma. Está sempre numa disposição de procura, de pesquisa, de experiência. O seu estado de es pírito é a inquietação ; o seu método é o da tentativa per manente de renovação. Não se deve esquecer, porem, o perigo dessa poesia : a possibilidade de se desviar para o que é simplesmente so- noro, para o vago, para o vazio jogo vocahulàr. Não eão somente os adolescentes, os principiantes, os imitadores, que se perdem nesses desvios e nessas curvas. Alguns poetas que muito importantes BC julgam aí se encontram per didos para sempre. Os poetas que se salvaram são justa mente hoje os que podemos citar como figuras represen tativas da poesia moderna. Por todos os motivos, o primeiro nome de que nos lembramos é o do sr. Manuel Bandeira. Não existe na sua obra apenas um valor poé tico mas tamhem um valor histórico. E não me cansarei nunca de chamar a atenção para esse valor histórico que J o r n a l d e C r í t i c a 57 considero fundamental na nossa literatura. Mais tarde, quando se fizer a história da poesia dos nos.sos dias, não se deverá esquecer que no seu eentro se encontra a fi gura do sr. Manuel Bandeira. Alem disso, não sei de outro poeta que influência mais profunda tenha exercido nesses últimos vinte anos. Uma influência de duplo cara ter : a que vem da sua obra de poeta e a que vem do exemplo da sua vida de homem. Ao lado do sr. Manuel Bandeira, vamos encontrar nos poetas mais novos a influência cons tante de outros poetas modernos mais antigos como os srs. Mario de Andrade, Augusto Frederico Schmidt e Carlos Drummond de Andrade. De todos os poetas modernos, o sr. Frederico �chmidt é o que se encontra mais próximo do grande público, o que se apresenta com um poder mais forte de entendimento e de comunicação. O que tem mais vocação para intérprete e para profeta. D� todos, porem, o mais "moderno" · - no que esta palavra contem de mais representativo e de mais simbólico - é o sr. Carlos Drum mond de Andrade, um poeta que define o nosso ·tempo e a nossa época. A sua poesia é aquela que todo homem da sua geração gostaria de realizar se fosse poeta. O sr. Carlos Drummond de Andrade se movimenta, assim, num plano de permanente inquietação e de permanente experiência. Que se observe, por exemplo, o sentido novo dos poemas de Sentimento do mundo. Ele revela um poeta em ascen são. Estou informado, aliás, de que o sr. Carlos Drum mond de Andrade está se preparando para colocar a sua poesia em outro plano de renovação. Um novo plano que não terá repercussão, apenas, em função da sua obra, mas que poderá ser o indicio d.é um novo caminho na poesia brasileira. E este projeto vai se encontrar com as novas e corajosas experiências do sr. Augusto Frederico Sehmidt, não tanto as de um aproveitamento das formas clássicas, mas as de uma nova forma dentro da sua própria ma neira. Não quero esquecer outras figuras que encontro influenciando intensamente os mais novos poetas brasilei- sa A l v a r o L i n s ros : as dos srs. Murilo Mendes, Jorge de Lima e Vinicius de Moraes. Ou da sra. Adalgisa Nery. Os srs. Murilo Mendes e Jorge de Lima, depois de experiências diversas e desen contradas, se fixaram numa poesia de carater religtoso. Ambos encontram discípulos e imitadores por toda parte, Tambem a juventude do sr. Vinicius de Moraes não impede que ele seja hoje uma figura de primeira categoria na poesia brasileira, nem que os seus poemas encontrem eco na inspiração de outros poetas menores. Outras figuras consideraveis da poesia moderna - duas ou três mais - ainda poderiam ser citadas. Mas não estou fazendo uma história, nem sequer uma nomen clatura. A invocação que fiz de alguns poetas modernos tem um outro fim. Somente pretendo fixar a atenção no seguinte aspecto da nossa poesia moderna : quase todos os livros de versos que estão sendo publicados ultimamente constituem uma espécie de repetição de alguns poetas mo dernos já consagrados. Isto não representa uma nota de pessimismo, mas uma constatação objetiva : os poetas mais novos se acham inteiramente dominados pelos poetas mo dernos já conhagrados. Ultimamente raros os poetas novos e raros os livros de poemas que apresentaram uma personalidade e uma realidade poética como os srs. Odorico Tavares e Alphonsus de Guimaraens Filho, com A sombra do mundo e Lume de estrelas. O que se v'em tornando habitual - pelo menos, nos livros de versos que tenho recebido -=-- é a repetição, é a cópia, é a ausência de personalidade. Não estamosapenas diante de poetas me nores, entidades que existem e são mesmo necessárias em todos os "movimentos literários ; estamos diante de poetas que repetem outros poetas e nada oferecem da sua própria personalidade. Dos poetas modernos, os srs. Manuel Ban deira, Augusto Frederico Schmidt, Carlos Drummond de Andrade, Mario de Andrade, Vinicius de Moraes, Murilo Mendes e Jorge de Lima são os que mais contribuem para J o r n a l d e C r í t i c a 59 o aproveitamento dos poetas mais novos. Contribuem com a sua maneirà pessoal, com a sua inspiração, com os seus temas, com os seus ritmos, com os seus símbolos, com o seu vocabulário. Os livros de versos que estou lendo agora se acham todos marcados pela influência absorvente de alguns desses poetas modernos, que já fixaram a fisionomia da sua obra e já têm força para se projetar sobre os que vão chegando. Logo no primeiro poema do livro mais recente da sra. Henriqueta Lisboa (Prisioneira da noite, São Paulo, 1941 ) , quando ela exclama : " Quero os caminhos da madrugada e estou presa, Quero fugir aos braços da noite e estou perdida." logo sentimos quanto a poetisa está sugestionada pela obra do sr. Augusto Frederico Schmidt. Não somente os seus temas prediletos - a noite, ó mar, a morte - -são todos schmidtianos; mas tamhem a maneira de os desen volver e o ritmo da realização poética. Os seus melhores poemas são os sentimentais, sucedendo o contrârio com todos aqueles em que pretende exprimir uma idéia, um conceito, uma reflexão intelectualista. A sra. Henriqueta Lisboa revela, no entanto, uma capacidade poética que nos permite esperar dela uma obra afirmativa e pessoal ; ainda acrescento que este seu livro se encontra num nível hem mais alto do que o comum nos últimos livros de versos aparecidos entre nós. Alguns poemas desse Prisioneira da noite - como, por exemplo, o "Pastor", com os seus ritmos largos e sonoros · - deixam uma agradavel e sim pática impressão. Mas há certos versos verdadeiramente detestaveis comô este "Por desesperação de salvação" ou como estes que são quase inacreditaveis : " E ao peso das estalactites negras o coração derreou. " 60 A l v a r o L i n s Da mesma espécie é o poema "Noturno", enquanto "Doce momento" e "Desterro" representam um simples jogo de palavras. Para que não se tenha uma esperança exceasiva quanto a esta poetisa, devo acrescentar que Pri sioneira da noite não é um livro de estréia. No sr. Aluisio Medeiros, do Ceará, encontramos uma mistura de várias influências superpostas e nem sequer fundidas profundamente no poeta. Os primeiros poemas do seu livro (')'rágico" amanhecer, Fortaleza, 1941 ) cons tituem uma imitação da sra. Adalgisa Nery e do sr. Muril«l. Mendes, sobretudo no vocabulário. Leia-se o poemà "In vocação" e não se saberá . dizer se ele é realmente do sr. Aluisio Medeiros. Outra parte do livro se acha toda do minada pelo espírito do sr. Carlos Drummond de An· drade, principalmente pela sua angústia diante de certos problemas do· nosso tempo. A abundância de imagens desordenadas e de símbolos transcendentes não chega a dar a este Trágico amanhecer uma elevada categoria poé tica. Do sr. Helio Simões (Mar e outros poemas, Baía, 1941 ) não se poderá dizer que está influenciado por qualquer poeta moderno, porque nada e:r,co.ntro no seu livro senão palavras sem qualquer sentido. Apresenta-se como uma figura típica de anti-poeta, parecendo-me que nem sequer pode ser considerado como um homem dentro da literatura.. Eis alguns versos que não foram escolhi- dos de propósito, mas que representam o tom geral do liv-ro : " Este oiro do sol que se espalha na areia é o oiro da vida. Ao sol, ao sol, amigos, ao sol. Não deixemos se p!lrCa este oiro do sol, Que é o oiro da vida. Ao sol, amigos, ao sol. Todô o oiro da terra amoedado Não vale para a vida uma centelha J o r n a l d e C r í t i c a 61 Um raio só Desse oiro do sol. Vamos ao sol, amigos, acumular tesouros. " Eis um poema completo do sr. Helio Simões, que as· seguro não é o pior do seu livro. O que este autor pre tendeu foi se aproveitar da aparente facilidade de 'forma da poesia moderna para fazer figura de poeta. Mas, como se vê, a sua pretensão resultou num absoluto insucesso. Tambem se aproveitando do que há de mais falso ,e de mais convencional no modernismo, entrou o sr. Vicente do Rego Monteiro no caminho de uma tentativa poética (Poemas de bolso, Recife, 1941 ) . Dizem-me que o sr. Rego Monteiro é um pintor de categoria, embora eu não conheça pessoalmente os seus quadros. Mas a sua arte na pintura não se transportou para a pocaia. O seu mo dernismo poético está velho de vinte anos, pelo menos, parecendo, no entanto, de uma velhice centenária. Estou acostumado a sentir e compreender as realizações mais perturbadoras da poesia moderna . Mas tambem estou certo que esse não é o caso dos versos do sr. Rego Mon teiro. Tomo os seus poemas como uma brincadeira. Tanto pior, se ele os leva realmente a sério. Os srs. Eduardo Martins ( Integração, Paraíba do Norte, 1941 ) e Benilde Dantas ( Canto do canavial, Rio, 1941 ) nada apresentam de consideravel ou de original. O sr. Benilde Dantas volta-se para certos temas ligados à terra, mas nunca EC eleva daquele velho convenciona lismo que fez' o fracasso de unia certa ala do movimento modernista. O sr. Eduardo Martins, por sua vez, oscila entre o sr. Jorge de Lima e os srs. Augusto Frederico Schmidt e Vinicius de Moraes. Dos poetas menores, aos quais estou me referindo, o sr. Carlos Eduardo (Presença, Baia, 1941 ) se distingue por vanos motivos. Há nos seua versos um sentido de humildade, que não decorre só da influência de uma 62 A l v a r o L i n s atitude schmidtiana, mas de um traço do seu próprio espuito. Este poeta eomeça procurando ser fiel a si mes mo, enquanto outros querem violentamente se impor pelo aproveitamento da experiência dos poetas consagra dos. Por isso a sua voz ainda não se eleva muito alto nem se exprime em gritos que não são os seus. Entre tantos imitadores, o sr. Carlos Eduardo se distingue por que preferiu a simplicidade que vem de si mesmo à ri queza dos outros que poderia ter absorvido. 15 de nov embro de 194:1. CAPíTULO V V E R S O S N ÊSTE primeiro .semestre de 1941, que está terminan� do tão pobre para as letras brasileiras, somente os poetas se apresentam para reduzir este vazio, ao menos num sentido quantitativo. Eles estão sempre prontos para esta tarefa. Em todos os tempos são os poetas os mais constantes e os mais fiéis nesta obra de confecção bibliográfica. Os livros de- v'ersos eontinuam a encher as nossas mesas. Apresentam os aspectos mais diferen· tes, desde as edições de luxo até as edições miseraveis das tipografias de terceira ordem. As suas origens tam hem variam muito ; chegam autores de todas as catego rias e de todas as idades, de todas as cidades e de todas as províncias. Por intermédio de um deles venho a to mar conhecimento de que mesmo no Território do Acre existe uma Academia de Letras, com as suas quarenta respeitaveis cadeiras . . . Estes nomes de poetas se reno· vam constantemente. Raramente um nome aparece mais de uma vez ; em geral, ficam num primeiro livro. É que a maioria entra na literatura como num jogo de azar ; o insucesso traz o esquecimento ou o vício : ou o jogo se re nova mecanicamente ou é abandonado para sempre, Li teratura de . poetas, literatura de falsos poetas. E en· quanto se multiplicam os livros de versos aumenta entre o público e a poesia toda uma longa série de mal-enten· didos e de incompreensões. Muitos dêstes livros não pas sam sequer pelas livrarias, e os seus autores permanece rão para sempre ignorados. 64 A l v a r o L i n s Dos numerosos volumes de versos que incluo nesta crônica., somente um merece classificação de ordem espe cial : o do sr. Lucio Cardo.oo (Poesias, Rio, 1941 ) . Mas que ninguem se espante, porque estaclassificação eto pecial não corresponde a um louvor tambem especial, como seria facil e justo se eu estivesse diante de um dos seus últimos romances. Li estas poesias mais de uma vez, procurando o que nelas poderia haver �e essencial tanto nos seus termos ostensivos como nas suas projeções subjetivas. Encontrei uma obra literária que está defi nida com certos característicos sempre muito vivos no sr. Lucio Cardoso : uma ardente seriedade de temas e de pro ceasos, uma força consideravel de imagens e de símbolos, uma vida interior marcada pelo destino estético. O que não pude encontrar Joi um verdadeiro poeta, no sentido que explicarei mais adiante. Ao fechar o seu livro tudo que ele continha e transmitia não deixa mais nenhuma impress1ão. Tudo desapareceu ;momentaneamente, a fi sionomia dos seus ver.sos vai se esbatendo até que se trans forma numa sombra . indefinida. Ficamos espantados de que um autor que nada tem de superficial transmita com a sua poesia uma emoção artística que é estritamente de superfície. Ela não atinge as regiões profundas do nosso ser ; os seus efeitos se partem e recuam lo . go aepois do primeiro encontro. No entanto, para o leitor desprevenido, o livro de poesias do sr. Lucio Cardoso poderá constituir uma obra que realizou aparentemente todas as exigências do seu gê nero. As suas deficiências não são propriamente poéticas, num certo sentido, ou rigorosamente estéticas, em outro sentido. Há tantas imagens, tantos símbolos, tantos sen timentos - e todos de uma qualidade tão superior e re velados numa maneira tão poderosa - que Poesias não deixará de ser considerado como um documento de relà tiva importância na história literária do sr. Lucio Cardoso. J o r n a l d e C r í t i c a 65 Há certas confissões nestes versos que muito servua<;� para um conhecimento mais exato do romancieta. Assim, por exemplo, quando diz, em Poemas do colégio interno, que " .. . . sofria dessa dor sem nome de sentir a vida muito mais cêdo do que os outros sentem" ou então quando afirma que "é a face desolada desta infância que estat·á presente, como o remorso no perisainento dos agonisantes " . Em outra ocasião fala do ")llundo exterior sufocado ao jugo desta música interior". E' a música interior dos seus romances. Será igualmente a dOB seus versos ? Estou certo que não : a dos seus versos é mais uma música de palavras do que uma música interior. E' verdade que em certos poemas ela se afirma .completamente como em "A um amigo morto" - no qual as imagens de evocação atin gem uma grande beleza - e "Os simuladores", mas verifi camos logo que, nos dois casos, estamos diante de duas ad miraveia páginas em prosa, em que os poemas concorrem apenas com uma estrutura exterior: Aliás, através de uma curiosa contradição, a página que mais se aproxima de uma poesia - como inspiração e como realização formal - é aquela que me parece menos caracterizadora da per sonalidade do sr. Lucio Cardoso : "Rosa vermelha", na qual o poeta transfigura com um sentimento novo uma compa ração demasiado velha. Apesar de tudo, no meio de sensações diferentes e até contraditórias, o livro de verso.s do sr. Lucio Cardoso deixa-nos a impressão . de que lhe falta algum elemento de categoria essencial. Estive tentado, por isso, a negar num sentido absoluto a qualidade de poeta para o sr. Lucio Cardoso e de poesia para o seu livro. Uma medi tação mais demorada, no entanto, logo afastará esta hipó tCl3e sumária. E' que, tendo-se revelado um autêntico 66 A l v a r o L i n s criador nos seus romances, o sr. Lucio Cardoso deve ser acreditado consequentemente como um poeta. Não se pode imaginar um artista criador - um romancista, so· bretudo - com a ausência da poesia. Toda criação é uma obra poética. Poeta, num sentido original, representa um sinônimo de criador. Torna-se evidente, portanto, que o sr. Lucio Cardoso é um poeta e que há uma poesia na sua obra. O que lhe falta, porem, é ainda essencial : é o ins trumento de comunicação poética, é a capacidade de trans mitir a poesia com uma personalidade pura de poeta. A sua pQesia é uma poesia de romancista e de escritor, e não uma poesia de poeta; E por isso é- que a sua per sonalidade se desdobra toda num romance, enquanto per manece hesitante, inacabada e irrealizada num livro de versos. Por isso é que estas Poesias constituem um vo· lume inferior a qualquer dos seus romances. Mais ainda : estas Poesias valem muito pouco na sua forma atual, quan do talV'ez pudessem valer muito se os sentimentos e as idéias que as animam fossem reduzidos e dissolvidos dentro da estrutura de um romance. * Aos outros poetas, de cujos livros falarei tão rapida mente como merecem, eu gostaria de sugerir, antes de tudo, a leitura das Lettres ,a un jeune poete, de Rainer Maria Rilke, tanto nos trechos contra os crítico!} como nos outros que definem a realização de uma obra poética. Rilke aconselha o poeta a levantar dentro de si mesmo as seguintes perguntas : estarei realmente obrigado a es creV'er? eu morreria se me visse impedido de escrever? Estás duas perguntas tambem seriam muito oportunas para os poetas brasileiros antes de escreverem tantoe livros de versos inuteis e destituídos de qualquer significação. A existência de livros ·dessa espécie já ,se vai tornando mesmo J o r n a l d e C r í t i c a 67 um hábito detestavel e ridículo. Um livro de versos não é nem um instrumento prático_ de ganhar a vida, nem um processo de construir fortuna. Porque, então, insistem nessa- falsa literatura de versos sem poesia aqueles que R.em sentem vocação artística nem se sentem verdadeira mente chamados a escrever? As facilidades do gênero - e mais a certeza dos elogios nos noticiários d_os jornais, as gentilezas e amabilidades dos "confrades", a adjetiva ção melíflua dos prefácios idiotas - transmitem ao vate ingênuo ou grotesco a ilusão de que se acha dentro da li teratura. Esquecem que uma facilidade aparente só se explica por uma dificuldade real ; e que sendo íacC'lis e abundantes os versos nada existe de mais difícil e de ma.j.s raro' do que a ·presença da poesia dentro de um ho mem. Temos hoje no Brasil alguns poetas de grande ca tegoria, mas para este número tão reduzido temos tambem centénas de versejadores que tentam fazer da poesia um artifício ou uma..mistificação. Uns se revelam logo no seu primarismo ou na sua infantilidade. Outroa, porem, apre sentam talento, habilidade, sentimentalismo, eloquência, toda uma série de atributos que não substituem a poesia mas que oferecem uma aparência poética. Desta espécie são exatamente todos os livros de versos que recebi nestes últimos meses. Eles ilustram e do cumentam um aspecto curioso da sub-literatura brasileira : a abundância de V'ersos sem poesia. Pertencem �os qua dros mais diver,sos : antiquados e modernistrui ; orienta listas e regionalistas ; sentimentais e eloquentes ; . fabrica dores de sonetos, de versos livres, de trovas, de hai-kai. Apesar disso todos se assemelham ; todo� procuram a ori ginalidade e acabam na banalidade ; todos são "velhos", ou envelhecidos, o que é muito pior. Envelhecido, por exemplo, é o sr. Salomão Jorge (Arabe.scos, Rio, 1941 ) , cuja obra é uma espécie de mistura de orientalismo e parnasianismo. Na verdade, é um contemporâneo de 68 A l v a r o L i n s Olavo Bilac, de maneira particular no soneto intitulado "Deserto". Pertence à categoria dos que têm habilidade e talento literário, mas ainda assim não será nada mais do que um poeta secundário. Há nos seus ver.sos uma certa vivacidade de ritmos e de sons mas que nasce de artifícios vocahulares ou de sentimentos superficiais. A superficia lidade é -mesmo uma das .suas características, o que o tor nará um sucesso espetacular em qualquer recitativo de .salão. Apresenta alguns versos felizes como aquele "Incon� solavel por te haver perdido mas orgulhoso por me haver achado", ao mesmo tempo que outrosde insuportavel pre ciocismo como estes dois tercetos finais de um soneto dedi cado a Raul de Leoni : " Conversador sutil, artista jônico, Amante da escultórica pureza, Conviva do festim decamcrônico, És semeador da plástica harmonia, Amável esgrimista da beleza, último joalheiro da ironia . . . " De qualquer forma, porem, o sr. Salomão Jorge é um artífice dos versos. Ele conhece oa processos poéticos, a sua técnica, os seus recursos. Mas de qu� valem tantos conhecimentos formaia sem a substância poética para ani má-los de vida e de realidade? O sr. Oliveira Ribeiro Neto (Canções das sete cores, Rio, 1941 ) representa um caso diferente : o seu livro nem tem substância poética, nem a técnica formal. Fico surpreendido que se possa publicar um livro tão insignificante, em que �ada existe que poasa ser transmitido, que possa comover ou que possa sequer interessar. O sr. Ribeiro Neto nem é um poeta nem é sequer um literato. Não encontro no seu livro um deta lhe, uma frase, uma palavra que me leve a �Iterar esta penosa constatação. A nota dominante doa seus versos é a infantilidade1 sem <J.Ue neles apareça q;ual<J.Uer cQisa da J o r n a l d e C r í t i c a 69 poesia da infância. S ' ão versos infantís dentro de um ins trumento prosaico de adulto. Espanto-me ainda ao veri ficar que o sr. Ribeiro Neto é um autor de vários volumes e um membro da Academia Paulista de Letras. Pois se me apresentassem sem assinatura estas Canções das sete cores eu diria sem hesitação : o autor é um menino de dez anos de idade. E aquí está um pequeno exemplo nestes versos definidores que formam uma "·canção" : " Nuvem roxa, nuvem densa, Num dia de claridade Não tem tristeza nenhuma. Toda dor, por mais intensa, Em face da Eternidade, É como um sonho de espuma. " O sr. Ribeiro Neto e a Poesia são duas entidades abso lutamente desencontradas. Igualmente desencontrado com a poesia é o sr. Oldegar Vieira (Folhas de chá, São Paulo, 1941 ) , que escolheu. o hai-kai como a sua forma de ex pressão. Apresenta-se assim com uns ares de japonês, mas é de fato um baiano, um autêntico literato baiano. Escreve um longo prefácio para justificar o hai-kai, o que não é difícil ; o que julgo impossível é a justificação da falsa poesia do sr. Oldegar Vieira. Aliás os hai-kai que tenho lido de autores brasileiros são geralmente umas pobres e simplórias extravagâncias de snobs botocudos. Não creio que tenhamos neceE.sidade de qualquer influên cia japonesa ou que haja entre o Brasil e o J apão qualquer identidade que, justifique esta influência. Ao contrário. Mas os hai-kai do sr, Oldegar Vieira nem são japoneses nem brasileiros. Verdadeiramente, não são nada. T�dos se apresentam muito inténcionaie, muito procurados, muito sofisticados. Abusa alem disso de toda aquela originali dade de superfície que o movimento modernista esgotou e desmoralizou. O sr, Vieira ,parece não se aperceber da 70 A l v a r o L i n s transformação e fabrica hai-kai a propósito de todos os assuntos, inclusive diante da "Paisagem numa lata de man teiga" ( sic) . Os resultados cmTespondem bem aos prin cípios e aos meios : " A boca da noite avançou na lua cheia : um quarto minguante. " O sr. Vasco de Castro Lima (Inquietude; Belo Hori zonte, 1941 ) abre o seu livro com uma epígrafe bastante tola do sr. Alvaro Moreyra e fazendo trovas mOBtra-se um discípulo fiel do nosso antepassado sr. Adelmar Tavares. Os seus versos estão cheios de imagens pomposas e de simbolismo vazio. Ainda recorre às palavras em maiús cula como um recurso literário de efeito. Apresenta uma ou outra página mais simples como aquela intitulada "Noivinha", na qual lamentamos que certos sentimentos tão delicados e tão íntimos sejam assim expostos numa lite ratura de terceira ordem Em geral, porem, o tom de seus versos é uniformemente o desta incrível invocação a Belo Horizonte, com epígrafe de Julio Dantas : " Belo Horizonte das manhãs sonoras, Miradouro do céu, berço de auroras, Namorada de todos os mineiros ! Terra em que a lua e o sol não têm declínio, Tuas noites têm brilho de alumínio, Teus dias têm o sangue dos brasileiros. " Quanto ao sr. Leonidas Castello da Costa (Sonhos d'argila, Rio, 1941 ) só temos a dizer que os seus versos se colocam na altura de quaisquer exercícios colegiais. Po derá se tornar talvez mais tarde um versejador ou um poeta razoavel, mas neste livro os seus versos têm a con sistência da mais fragil argila . . . Igualmente frageis e inconsistentes são os versos do sr. Passos de Mello (No lurnos, Rio, 1941 ) . Apenas são mais audaciosos do que J o r n a l d e C r í t i c a 71 os do sr. Castello da Costa. E talvez por isso mesmo de uma qualidade ainda mais inferior. De 'outro gênero são os versos dos srs. Paulo Bentes (Porongo, Rio, 1940) e Martins Napoleão (Poemas da terra selvagem, Rio, 1940) . Ambos são regionalistas, mas de um regionalismo convencional e verboso que nenhuma significação apresenta mais hoje. Um sentimento embe vecido e extático pela terra determina todos os versos da primeira à última página. Este sentimento poderá ser, acredito que seja, muito nobre e muito cheio de saude, mas não poderemos dizer o mesmo da arte, que os ex prime, nestes dois vates, com um instrumento de comu nicação poétic1;1 absolutamente nulo. Ainda menos mo desto é o sr. Marti:ps de Oliveira (A Retirada da Laguna, Mina.s Gerais, 1941 ) , que acaba de publicar nada menos do que uma epopéia Robre um episódio da guerra do Para guai, em cânticos largos e numerosíssimos . Admiro o fôlego e a coragem deste autor que não se intimida sequer d'iante de uma epopéia. Mas de pé ficam somente a sua intenção e o seu sacrifício. A sua epopéia é a mais pro· saica das descrições da Retirada da Laguna. E prosa por prosa, continuo a preferir a do velho Taunay. O sr. Martins de Oliveira tambem se candidatou duas vezes, em cartas rimadas e metrificadas, a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Eu desejo que a Academia acabe recebendo o sr. Martins de Oliveira no seu seio, fazendo assim justiça a si mesma e ao poeta, que lá encontrará ex· relentes companheiros. Os versos femininos não são de uma categoria muito mais elevada, embora se encontrem neles certas tendência1 e certas antecipações que os livros masculinos, acima ci tados, se encontram longe de atingir. E' verdade que os versos da sra. Elora Possola Chaoul (Mal divino, Rio, 1941 ) se acham simplesmente abaixo da crítica, como tambem. QS da sra. Maria Camargo (f!:xtase, Rio, 1941 ) . 72 A l v a r o L i n s Ambas confundem eloquência sentimental com poesia. A sra. Maria Duarte (Cântico dos sentidos, Rio, 1941 ) revela porem um certo equilíbrio e uma certa sensibilidade que nos levam a guardar o seu nome como o de alguem que se mostra capaz de tentar mais tarde uma obra literária que não seja apenas uma expre�são de sentimentalismo ou de exaltação amorosa. Por enquanto, está ainda neste .éaso a sra. Maria Duarte, que se contenta em revelar senti· mentos femininos comuns numa forma tamhem demasiado comum. Faço uma exceção, . pela sua personalidade dife rente, para a sra. Ana Osorio ( Voz do silêncio, Minas Gerais, 1940) . , Os seus versos significam talvez pouco li· terariamente, mas estão animados de uma verdadeira, em bora fragil, inspiração poética. E' apenas um fio de voz muito delicada e muito tímida, revelando uma vida de solidão e desencanto. A mim me comoveu esta voz hu milde e quase apagada que está �e erguendo numa pequena cidade do interior de Min-as Gerais. 28 de junho de 1941. .. CAPíTULO VI VIDAS SECAS O SR. GRACILIANO RAMOS, autor de quatro romances muito discutidos, um dos quais - o principal, ao que penso, vindo logo .. após São Bernardo - aparece agora em segunda edição (Angústia, Rio, 1941 ) , representa um caso de estudo crítico muito difícil para os seus contem porâneos. Logo, os seus romances nos tentam a confundir, em análisesconvergentes, a sua figura de escritor e a sua figura de homem. Existem homens que explicam as suas obras, como -há obras que explicam os seus autores. No caso do sr. Graciliano Ramos, é a obra que explica o ho mem. Quero dizer : o homem interior, o homem psicoló gico. Estamos diante de um caso semelhante ao de Ma chado de Assis, no passado ; igual ao do sr. Otavio de Faria, no presente. A maneira de Machado de Assis, o sr. Graciliano Ramos, nas aparências, nas exterioridades, nada revela que o possa distinguir de um homem comum. Tudo o que ele tem de especial, de anormal, de misterioso, fica reservado para a sua literatura e não para a sua vida. A obra de Machado de Assis esclareceu o "mistério" Ma chado de Assis. Os romancea do sr. Graciliano Ramos es clarecerão mais tarde o "mistério" Graciliano Ramos. Mas onde se encontra, pois, a dificuldade para essa análise esclarecedora ? Encontra-se na circunstância de ser o sr. Graciliano Ramos um autor contemporâneo, uma figura que encontramos nas ruas todos os dias. Essa proximi dade determina a existência de obstáculos invencíveis. Outros obstáculos decorrem do respeito com que o crítico está sempre obrigado a tratar a figura pessoal de um autor 74 A l v a r o L i n s vivo, pois somente a morte confere o direito de um julga mento definitivo, de uma interpretação minuciosa e pro funda. Acho que seria uma violência projetar sobre um autor ainda vivo todos os elementos de análise que a sua obra oferece. Não tanto pelo autor em si mesmo, com uma conciência literária capaz de aceitar todos os exer cícios da crítica, mas pelos -rigores da vida ordinária. Imagine-se um ministro da Viação que suspeitasse da psicologia de Machado de Assis todo o conhecimento que a sua obra hoje revela com uma categoria de certeza . . . Deixemos, pois, para os dias de amanhã o que pode surgir de mais sugestivo num estudo crítico sobre o sr. Graciliano Ramos : a. interpretação da sua figura psicológica atrav-és dos seus romances. O que nos fica permitido hoje, neste sentido, é uma análise de superfície. Um estudo que .s.e detem mais sobre o romance do que sobre o romancista. A respeito do sr. Graciliano Ramos ainda não me foi dado ler outra página mais explicativa do que o capítulo que lhe dedicou o sr. Osorio Borba em A comédia lite rana. Trata-se de um golpe de vista muito agudo que se desdobra em diversos aspectos, todos cohsideraveis. Nessa página encontro sugeridas as duas linhas conver gentes da personalidade do sr. Graciliano Ramos : um homem do seu meio flsico e social, ao mesmo tempo que um romancista voltado para a introspecção, a análise, os motivos psicológicos. Mas o meio físico - o que seria, no romance, a paisagem exterior - não aparece muito obje· tivamente no rofi!.ance do sr. Graciliano Ramos. Ele ex prime o ambiente com uma perfeita fidelidade, mas so mente em função de seus pers�nagens. O ambiente é um acidente ; o personagem é que é a vida romanesca. A paisagem exterior torna-se uma projeção do homem. O romance São Bernardo desenvolve-se todo dentro de uma fazenda ; Paulo Honório coloca a sua ambição no domínio da terra. Contudo, a fazenda e a terra não são as rea· J o r n a l d e C r í t i c a 75 lidades fundamentais de São Bernardo. A realidade fun damental do romance é a figura de Paulo Honório, com o seu egoísmo, com a sua maldade, com o seu ciume, com a sua deshumanidade. Em Angústia, - a abstração do ex terior ainda será mais completa. Encontramos certas visões do Rio, de Maceió, de cidades dQ interior. Todas elas, porem, constituem menos uma literatura p aisagística do que a localização explicativa do perso11agem Luiz da Silva. Daí a superposição de planos que encontramos na obra do sr. Graciliano Ramos ; o plano regional que se revela nos seus personagens marcados pelo meio físico e social,_ na linguagem dos diálogos, todos muito fiéis à }íngua falada, nos ambientes onde se desenvolvem as fi guras e os enredos dos seus livros ; o plano universal que se revela nos dramas dos seus romances, nos sentimentos complexos dos seus personagens, na linguagem muito rigo rosa e pura - pode-se dizer : clássica - do romancista. Dois planos, portanto, que chegam a espantar o leitor : o prosaismo - mais ainda : uma espécie de vulgaridade - da vida ordinária dos personagens e a alucinação da sua vida psicológica ; a linguagem comum dos diálogos e a linguagem literária do autor propriamente ; figuras de apa rência simples e rústica - o ,caso de Paulo Honório, por exemplo - agitadas por sentimentos complexos e sensações fora do comum. Mas em qualquer desses aspectos per manece uma preocupação dominante : a de revelar o cara ter humano. Não só o romancista está dominado por esse desejo de conhecer o's seus semelhantes, mas esta aspira ção é tambem dos seus personagens. Vivem todos voltados para dentro, com olhos que se inutilizaram quase p'ara os quadros exteriores da vida. Faz uma confissão neste _ sentido o personagem principal de Angústia : "Nunca presto atenção às coisas, não sei para que diabo quero olhos. Trancado num quarto, sapecando as pestanas em cima de um livro, como sou vaidoso, como sou besta ! Cami'nhei 76 A l v a r o L i n s tanto e o que fiz foi mastigar papel impresso. Idiota. Podia estar ali a distrair-me com a fita, Depois, finda a projeção, instruir-me vendo as caras. Sou uma besta. Quando a realidade me entra pelos olhos, o meu pequeno mundo desaba". Esta preocupação de fixar e exibir o carater humano poderia significar que o sr. Graciliano Ramos estima os seus semelhantes e está interessado pela sua sorte. Mas, não. Verifica-se .o contrário : o seu julgamento dos ho mens é o ·mais pessimista e frio que se possa imaginar : o seu sentimento em face deles é de ódio ou de desprezo. Numa certa ocasião, o personagem de Angústia diz que tem pena de Marina, que tem pena de D. Adélia, que merecem compaixão todas as criaturas que são instrumentos. Con tudo, embora todas as criaturas sejam instrumentos do destino ou dos seus instintos, nos romances do sr. Graci liano Ramos, não encontramos em parte nenhuma aquele sentimento de piedade que Luiz da Silva sugere. Com uma fria impassibilidade, o romancista contempla a misé ria humana de seus personagens. Não lhes concede a mí nima piedade. Ao contrário : o romancista chega a estar animado de um certo prazer sádico nessa contemplação da miséria humana. Podemos falar, sem exagero, de uma crueldade do criador diante da sua criação. Trata-se de um caso semelhante ao de Machado de Assis. Aliás, são muitas as linhas de aproximação que se poderiam esta beleéer entre Machado de Assis e o sr. Graciliano Ramos. J á houve mesmo quem falasse de influência, e o sr. Gra ciliano Ramos se defendeu com um argumento fulminante : que nunca havia lido antes Machado de Assis . . . O pro blema dessa influência será mais tarde esclarecido pela história literária ; o que interessa agora é um problema de aproximação e semelhança, que não nasce só da influên cia direta de um autor sobre outro, mas de · uma certa identidade de sentimentos em face da vida e da litera- J o r n a l d e C r í t i c a / 77 tura. O que aproxima o sr. Graciliano Ramos de Máchado de Assis é a mesma concepção da vida, o mesmo julga mento dos homens, ao lado de uma semelhante estrutura temperamental. Mas o sr. Graciliano Ramos parece-me muito mais feroz e cruel na sua criaç�o romanesca. O sentimento de Machado de Assis era o de indiferença e cepticismo, o seu humour era destruidor, mas serç:no ; o do sr. Graciliano Ramos é o ódio ou o desprezo, seo.do o seu humour - muito raro, aliás - de um. cara ter sombrio c áspero. Em conjunto, a sua obra constitue uma li'átira violenta e um panfleto furioso contra a humanidade. O que a torna, nesse sentido, menos ostensiva e mais arejada, é a circunstânda de ser o sr. Graciliano Ramos um ver dadeiro artista, um escritor da mai� alta càtegoria. Dos seus romances,acho São Bernardo o que mais explica a idéia que o sr. Graciliano Ramos sustenta a res· peito dos 'homens. Será impossível não estender um pouco ao romancista esta conclusão de Paulo Honório : "Bichos. As criaturas que me serviram durante anos eram bichos. Havia bichos domésticos, como Padilha, bichos do mato, como Casiihiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois mansos. Os currais que se escoram uns nos outros, lá em baixo, tinham lâmpadas elétricas. E os ,hezerrinhos mais taludos soletravam _ a ca1·tilha e apren diam de cór os mandamentos da lei de Deus". E não é que Paulo Honório esteja muito acima dos outros seres que julga tão friamente. A princípio, uma desmedida ambição deu-lhe essa impressão de superioridade. Depois, a sua impressão desaba no momento mesmo em que al cança os seus fins. Desaba sob o peso do egoi�mo e do ciume que devoram Paulo Honório. Ele próprio se julga então nestas palavras : "Ô que estou ,é velho. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a mal tratar-me e a maltratar os outros". Em Angústia, Luiz da Silva representa uma figura de fracassado ; não existe 78 A l v a r o L i n s uma ambição frenética para determiná-lo, como a de Paulo Honório. O seu egoísmo não é o do conquistador, mas o do vencido. Num certo sentido, representa o outro lado de Paulo Honrório. Luiz da Silva não tem a ambição, não tem a vontade, não tem nenhum sentimento forte. Paulo Honório é a vida instintiva que se afirma ; Luiz da Silva, a vid3 instintiva que se dissolve. Eles são opostos, mas se encontram na sequência final dessas vidas instintivas e materialistas ; encontram-se na con,clu.são de que a vida não tem sentido nem finalidade. Estamos diante da fi losofia do nada - a da absoluta negação ou a da abso luta destruição - que o sr. Graciliano Ramos cultiva para os seus personagens. A ascemão de Paulo Honório ou a decadência de . Luiz da Silva representam caminhos dife rentes para o mesmo niilismo. Os demais personagens não se afastam desse fim melancólico. Todos se acham �entro da vida, como que perdidos e abandonados, st'!m nada saber da sua origem nem do seu destino. Os seus atos se originam e se justificam por si mesmos, fora de qualquer preocupação moral e transcendente. E' um mundo romanesco, o do sr. Graciliano Ramos( que nunca se afasta da dimensão naturalística. Representa o sr. Graciliano Ramos o estranho fenômeno 'de um roman cista introspectivo, interiorista, analítico, sem que leve em conta no homem outra condição que não seja .a mate rialística. Um romancista da alma humana, tendo uma concepção materialista dos homens e da vida. E o mate rialismo dos personagens é que os leva logicamente ao relativismo moral. Eles nem praticam a bondade, nem acreditam sequer na sua existência. Por det1·ás de todos os gestos surge o interesse egoísta, uma segunda e secreta intenção. Em Angústia, conta Luiz da Silva a propósito da morte do avô : "Iam levando o cadaver de Camilo Pe reira da Silva. Corri para a sala, chorando. Na verdade, chorava por causa da xícara de café de Rosenda, mas J o r n a l d e C r í t i c a 79 conseguí enganar-me e evitei remorsos". E mais adiante o seu relativismo moral chega a um momento supremo nesta reflexão : "Um crime, p:ma ação boa, dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o que é bom e o que é ruim, tão embotados vivemos". Tambem Paulo Honório, em São Bernardo, conclue sem qualquer hesitação : "A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bonil e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo ; fiz coisas ruins que me deram lucro". Esse relativismo moral implica outro relativismo de ordem mais geral, o qual se constituiu uma espécie de ambiência para o sr,. Graciliano Ramos, como romancista. Totta a sua obra guarda um certo carater de vertigem, de oscilação, de ambivalência. E' o relativismo do tempo, o qual, como se sabe, representa uma 'contingêncià muito importante no de.senvolviemnto romanesco. Tendo uma concepção materialista da vida, o sr. Graciliano Ramos ' não poderia se utilizar do recurso do tempo' metafísico. Por outro . lado, para um romancista psicológico, o tempo con vencional e naturalista seria um obstáculo. O sr. Graci liano Ramos deliberou, então, utilizar um recurso interme diário : a abstração do tempo. Em Angústia encontramos esta ob,cervação reveladora : "Mas no tempo não havia horas". Em São Bernardo aparece um relógio, mas que "tinha parado". O tempo torna-se assim um elemento indeterminado. e arbitrário. Nunca se sabe exatamente quando a narrativa corresponde, em tempo e ação, aos fatos e atos que a produzem. Assim, a história de Luiz da Silva pode estar contida em de3 meses ou em dez anos, indiferentemente, desde que "no tempo não havia hora8". A ausência do tempo vai determinar, por 1 sua vez, a au· sência de "ação" direta no romance. A ação de An�ústia é uma ação reflexiva ; An[!Ústia é uma "história", é uma narração do passado , é uma vida da memória. De um certo modo, isto mesmo acontéce com todos os romances ; 80 A l v a r o L i n s todOB os romances são episódios já passados e por isso é que podem ser .contados, mas o romancista lhes dá uma ilusão de vida presente, através de um jogo malaharistico com o tempo. O sr. Graciliano Ramos desdenha esta ilusão. Angústia é certamente um romance, mas, de uma maneira formal, dir-se-ia um livro de memórias, um diá rio, um inventário, um testamento. O me.smo que su cede com São Bernardo, em que Paulo Honório confessa que nada mais pretende do que fixar a experiência da sua vida. Contudo, São Bernardo ainda contem uma ordem narrativa, uma regular disposição romanesca. Angústia, porem, está realizada sob o signo da mais os tensiva desordem. E confesso que essa desordem me agra da porque tem uma correspondência no espírito mesmo do romance. O espírito do romance e a sua forma se ajustam harmonicamenlte na desordem. Essa desordem vem de Luiz da Silva, que determina Angústia, como Paulo Honório determina São Bernardo. Os outros per· eonagens são projeções do personagem principal. Julião Tavares e Marina só existem para que Luiz da Silva se atormente e cometa o seu crime. Tudo vem ao encontro do personagem principal - inclmive o instrumento do .crime - para que · ele realize o seu destino. Representa esta circunstância uma outra forma de egoísmo, desde que o egoísmo é o sentimento dominante nos personagens mais característicos do sr. Graciliano Ramos. Na forma do ro mance Angústia, o egoísmo do personagem principal se afirma por intermédio da concentração do romance na sua própria pessoa. Luiz da Silva é todo o romance An gústia. Contando a sua história, Luiz da Silva absorve-a toda em si mesmo. O romance toma, por isso, a forma e as dimensões do seu espírito. Torna-se um diário que o p ersonagem escreve posteriormente. A sua memória se desdobra em ziguezague e a narração romanesca acompanha fielmente esse ziguezague da memória de Luiz da Silva. O J o r n a l d e C r í t i c a 81 seu método é o da confissão psicanalítica : uma palavra que explica outra, um pensamento que esclarece outro. E taníhem o da asso'ciação das idéias : uma idéia que atrai outra idéia, uma lembrança que sugere outra lembrança. Luiz da Silva não vive senão da sua memória e da sua imaginação. Mas a sua própria imaginação, no romance, constitue um resultado da memória. Luiz da Silva conta o que imaginou anteriormente ; a sua imaginação já se tornou um fato do passado, um patrimônio da memória. Verifica-se, por isso, que a realidade do romance do sr. Graciliano Ramos é uma realidade estática e não di· nâmica. Dinâmica, por exemplo, é a realidade romanesca de Dotoievsky. A do sr. Graciliano Ramos, porem, nun ca será desta categoria, porque ele é um racionalista, um analista, um frio experimentador. A sua raça é a de Stendhal, e nunca a de um Dostoievsky. Por isso é que do seu romance se depreendemais a "história" de uma angústia do que a "angústia" em si mesma. Uma angús tia racionalizada e histórica, e não uma angústia natural e presente. O estado de delírio, de exaltação, de demo niamo, o estado dionisíaco capaz de exprimir a angústia - este não será nunca o do sr. Graciliano Ramos. O seu estado pode-se definir como o do historiador da angústia. Um estado de razão, de lucidez, de sobriedade. O crité rio que preside a sua obra é um critério de inteligência; a sua realidade é cerebral e abstrata. Não sei, por isso, que misteriosa intuição para se definir levou o sr. Gra ciliano Ramos a colocar o título de V idas secas em um de seus romances. Sem dúvida todos os seus personage.n8 são realmente "vidas secas". Os seus personagens e este estilo em que se exprime o romancista. Parece-me admi ravel este estilo de concisão, de unidade entre as palavras e os seus sentidos, de rígido ascetismo tanto na narração como nos seus diálogos, todos rápidos, exatos, precisos. Diálogos e narração que fazem do sr. Graciliano Ramos 82 A l v a r o L i n s um mestre do seu ofício de romancista. Um mestre da arte de escrever, acrescento, sem nenhum medo de estar errando. E essa categoria, ele a conquistou com as "vidas secas" que povoam o seu mundo romanesco. O seu mundo romanesco é um mundo sem amor. A sua concepção da vida eatá toda limitada de um lado pelos instintos huma nos e do outro por um destino cego e fatalista. Mas não esqueço o que essa visão do mundo significa de sofrimento e de tormentos íntimos na figura do seu criador. Por isso, a circunstância_ de se aceitar ou não toda a concepção da vida, que ressalta dos romances do sr. Graciliano Ramos, não deve impedir ninguem de admirar o artista que a sustenta ; o artista que transforma este mundo árido e sombrio numa verdadeira categoria de arte. Alem disso, quem sabe, esses romances podem constituir mais do que uma obra de arte, isto é : a libertação de u,m homem que se · evade de um mundo que detesta, embora carregando o destino de somente criar mundos semelhantes. E aquí está uma lição : a de que nem sempre a imaginação dispõe de recursos para dominar a vida. 18 de · outubro de 1941. CAPíTULO VII MEMÓRIA E IMAGINAÇÃO A TENDÊNCIA universal de valorização social - e, por consequência, artktica - do povo V'em se encontrar entre nós com a évolução mesma da literatura brasileira. O que determina a existência de uma literatura é, em princípio, a sensação de alguem que tem a conciência da sua própria terra. Quero dizer : a literatura de um povo somente começa quando os seus homens se "sentem" na sua terra e na sua gente. Pela seDBação da terra, pois, é que a conciência literária se define e se afirma. Esta mos agora -no Brasil vivendo esse período que é o do homem que já se sente no domínio da nature:>:a. A lite· ratura encontrará, então, nessa natureza, nesse povo, e no encontro .dos dois, algun.s dos seus mais substanciai!' e mais· sólidos elementos de construção. Ao romance, cer tamente - sobretudo pela sua capacidade de incorporar as forças poéticas de aprofundamento e exaltação da vida - caberá hoje o papel principal nessa tarefa de inter pretação e conhecimento do povo por intermédio da lite ratura. E deve-se lembrar que a palavra "povo" está em pregada aqui num sentido de realidade, e não com� figura abstrata de oratória e retórica, não como um vago sim bolismo sem consistência. Povo querendo dizer a vida humana que se ligou com uma determinada terra ; uma fusão de pessoas e de coisas, numa mesnia existência. E essa existência coletiva já estamos sentindo na obra de vários romancistas modernos. Estamos sentindo sobre tudo no sr. José Lins Rego, cuja obra tem exatamente 84 A l v a r o L i n s esta finalidade de uma ligação mais profunda e menos convencional com a terra. Os seus personagens, os seus enredos, o seu ambiente social, a sua memória, a sua ima ginação - toda a sua vida é a de um homem que sente a sua terra e tem o destino de exprimí-la literariamente. Vejo que neste objetivo ultrapassa o regionalismo. Pois o seu regionaliRmo nada tem de uma limitação ou de um círculo fechado. Através do plano regional conseg�e abrir caminho para o plano nacional e para o plano uni versal. Por isso é que muito erraram os que o julgavam prisioneiro de um assunto e de uma região. Ele não é somente o romancista do Ciclo da cana de açucar, embora esteja nestes volumes a sua obra principal, o que se ex plica pela circunstância de ser uma figura de engenho e do engenho ter trazido o que há ainda hoje de mais ca racterístico na sua personalidade de homem e de escritor. Mas do engenho havia já se evadido para outras reali zações literárias · em Pureza, Pedra Bonita, e Riacho Doce. Agora realiza uma outra evasão com o seu novo romance (Agua-mãe, Rio, 1941 ) , apresentando a novidade de um ambiente que não é mais o do Norte. Trabalhou agora com um ambiente do Sul, o de Cabo Frio, que o romancieta conheceu através de algumas estadias obrigatórias de fun cionário público. E não será sem interesse assinalar o re sultado especial que alcança essa união : a de uni escritor essencialmente nortista - uma personalidade marcada em todos os sentidos pelo espírito do Norte - com o ambiente social e a natureza física do Sul. O sr. José Lins do Rego, aliás, não recuou diante de nenhuma dessas duas possíveis dificuldades : colocou em planos ostensivos tanto o am biente social como a natureza física. Obteve nesse novo ambiente um completo êxito literário, o que se admira ainda mais porque se trata do nono romance de um es critor que vive niais da inspiração do que da técnica e do trabalho, mais do que é esponta�eamente pessoal do que da arte literária. Nove romances em dez anos signi- J o r n a l d e C r í tic a 85 ficam um perigo do qual se salvar chega a constituir um milagre. E salvar-se nesse caso quer dizer a capacidade de permanecer ao menos no mesmo plano, de não se de gradar pela repetição ou pela vulgaridade. Pode-se dizer que o sr. José Lins do Rego se repete mais do que seria natural, que ·entre os seus romances permanece uma certa construção e uma certa inspiração que os tornam seme lhantes, mas nunca a ponto de ser lícito ou justo falar em esgotamento. Do sr. José Lins do Rego podemos dízer que ele compõe romances como um acrobata que se equi : í Lra numa corda : semp:t:e da mesma maneira, mas sempre com o mesmo êxito. Somente encontramos uma pequena queda no romance de 1939 : Riacho Doce. Mas como pres sentindo o perigo, através desse dom de adivinhação, que é muito própri? dos instintivos e dos apaixoandos da vida, o sr. José Lins do Rego se levanta com um máximo de agilidade e de força nesse Agua-mãe, romance que su porta comparação com qualquer um dos seus livros mais antigos e de maior sucesso. Esta comparação, aliás, nem vou fazê-Ia, nem seria possivel agora, pelo que exigiria de leitura demorada e especial através de toda a sua obra em conjunto. Embora nascido no interior da Paraíba, o sr. Jose Lins do Rego pode ser considerado como um escritor do Recife, onde se formou em todos os sentidos, não só na Faculdade de Direito, mas sobretudo literariamente, na companhia dos srs. Gilberto Freyre e Olívio Montenegro, com os quais se iniciou na leitura de romancistas fran ceses e ingleses. E como se sabe, o que caracteriza a vida cultural do Recife é o seu espírito crítico. A crítica do Brasil nasceu no Recife, e o Recife permanece fiel a essa tradição. Este fato explica, talvez, que até os trinta anos o sr. José Lins do Rego não houvesse dado nenhum sinal de romancista, enquanto ia fazendo sucesso com os seus ensaios de c.ritica. Era talvez o espírito crítico do Recife 86 A l v a r o L i n s que retardava a eclosão da sua verdadeira personalidade : a do romancista. Ao se dedicar ao romance, dir-se-ia, porem, que o sr. José Lins do Rego desdenhou todo o espírito crítico, no que ele si-gnifica dedomínio da razão, da composição artística, da ordem dentro da criação. Real· mente, nos seus -romances a intervenção do espírito crí tico parece-me mínima ou talvez inexistente. O seu es· tado de criação é o instintivo, o de quem avança no escuro, o da absoluta e desordena.da liberdade. A sua criação romanesca encontra-se sob o signo exclusivo de dois elementos, ambos muito ligados aos nervos, sabendo -se que -toda a sua obra apresenta essa origem nervosa : a memona e a imaginação. E tanto a memória como a imaginação constituem elementos desgovernados, consti· tuem forças que se bastam a si mesmas. O erro estaria em julgá-las antagônicas ou impossíveis de juxtaposição, o que já tem acontecido em relação me�mo ao sr. José Lins do Rego. O que se -��be, ao contrário, é que me mória e imaginação representam duas faculdades que se relacionam muito de perto, no seu sentido mais rigoroso, que é o filosófico. Num sentido mais geral - no sentido literário, neste caso - ainda se apresentam mais unidas e mais identificadas. Poderemos dizer que se apresentam sempre juntas e inseparaveis. A imaginação é da memó· ria mesma que nasce e se desenvolve. Não sei de nin guem que possa ter imaginação sem ter memória, lem brando a propósito que o ser mais dotado de capacidade imaginativa - o profeta - tambem se acha possuído de um dom espantoso de retenção do passado. Pois quanto maior for o poder de conservar o passado maior será o poder divinatório de uma projeção sobre o futuro. Em literatura, pelo menos, nenhuma obra existe sem que tenha se constituido de memória e de imaginação. Mesmo a que parece ter somente imaginação, como a literatura fan tástica dos contos de Poe ; mesmo a que parece ter so- J o r na l d e C rít i ca 87 mente memória, como a obra dos naturalistas. No caso do sr. José Lins do Rego encontramos sem esforço uma memória muito aguda e uma imaginação muito poética que operam juntas e se desenvolvem em harmonia. No entanto, ele dá a impressão, no primeiro momento, de que se acha inteiramente dominado pela memória: Uma sim ples impressão, porem, que se levanta por efeito de duas circunstâncias : a da sua técnica de romancista, sempre reduzindo todo o romance a uma narração de aconteci mentos como que realmente vividos e já tornados histó· ricos ; a de partir sempre de um fato real que somente depois passa a ser alterado e ultrapassado. Esta situação se encontra em Agua-mãe, como em qualquer outro dos seus livros. O romance aparece como a história de vidas e acontecimentos existentes, mas na verdade esta consta tação vem mais da ma,neira do romancista do que da realidade do romance. Mas, na verdade, Agua-mãe é ro mance e não história. Por outro lado, quase tudo que nele existe foi a princípio história, isto é : a sua origem se acha na existênci� real. Mas o romancista ultrapassou ou mutilou esta existência real, c de maneira tão im prevista · que não se confundem mais nem se aju.stam a existência real e a existência do romance. A memória e a imaginação estão ligadas em Agua-mãe, e duvido que alguem veja onde se encontram as suas fronteiras. Não ha dúvida que as fronteiras se tornaram realmente invi- síveis. 1 De.ssa presença de memória e de imaginação decorre para Agua-mãe o privilégio de se apresentar ao mesmo tempo como um docu�ento social e como obra de lite ratura. Todo verdadeiro romance, aliás, participa desse -privilégio, pois a obra literária representa simultaneamente uma expressão do seu meio ( documentação social ) e uma expressão artística ( documentação da personalidade do artista) . Toda a obra do sr. José Lins do Rego cons- 88 A l v a r o L i ns titue, por isso, uma importante documentação aocial para utilização posterior dos sociólogos e dos historiadores. Uma característica do romance moderno é que ele nem pretende se colocar nas nuvens, nem pretende se apoiar numa sociedade convencional de artifício. Assim, nenhum hiatoriador do futuro poderá prescindir, para o estudo da nossa época, da obra do sr. José Lins do Rego, como tam bem de alguns outros romancistas aparecidos nestes úl timos quinze anos. Nos romances modernos é que se en contrará a história social do nosso tempo. Será impos· sivel, por exemplo, levantar a história do engenho - do engenho e da sua decadência, por efeito da voracidade, da cobiça e do assalto das usinas - sem o conhecimento do Ciclo da cana de açucar. E agora o romance Agua-mae vem se constituir como uma outra documentação de novos aspectos da vida social brasileira. Deve-se acrescentar, aliás, que de todos os romances do sr. José Lins do Rego este Agua-mãe é o que apresenta um plano social mais amplo c mais extenso. O que abrange maior número de aspectos e situações sociais. Agua-mãe apresenta uma his tória de três famílias, sendo ao mesmo tempo uma repre· .sentação da existência de três camadas sociais diferentes : a família rica, a família média e a família pobre. De uma certa maneira, encontramos personagens representa· tivos de toda a nossa sociedade. E o romancista caracte riza muito bem a sociedade brasileira na qual as classes existem realmente, mas sem que haja muita definição nas suas diferenciações, tornando-se possível e até muito co mum a ascensão de membros das classes mais baixas para as mais altas. Desde o momento em que a fa�ília rica se instala na "Casa Azul" - a sua fortuna e o seu brilho mundano começam a fascinar as figuras mais ambiciosas das outras duas famílias. Agua-mãe poderia se definir como a história de criaturas que de.sejam fugir das suas condições naturais, que procuram se desligar dos seus cír· J o r n a l d e C r í t i c a 89 cul9s sociais. E' o escritor Paulo Mafra, que quer salvar o seu país através de uma doutrina política. E' Lúcia, que deseja uma vida mundana mais intensa e mais bri· lhante. E' ]oca, que encontra num sucesso momentâneo uma ascensão artificial. Mas no fim todos fracassam e todas as ilusões se desmoronam. Parece-me que o Destino é que é o gJ:ande personagem deste romance. Todos os seus seres estão marcados pela fatalidade ; todos estão mar cados por um desajustamento entre os seus sonhos e a rea lidade. Paira sobre todo o livro uma atmosfera de irre paravel desgraça. Até mesmo . os que encontraram uma finalidade para a vida - como é o caso de Marta e Luiz - acabam paralisados pela morte. Com exceção de algu mas figuras mais apáticas e envolvidas por um lento e silencioso sofrimento, todo o romance se desenvolve sob esta sensação : a de personagens que lutam .contra a rea lidade que conhecem, ou contra o destino que apenas pres sentem. Para dar e:x;emplos, destaco dois personagens, cujos tipos em romance se apresentam com um carate:r de novidade, um de novidade relativa e o outro de abso· luta : o intelectual e o jogador de futebol. Acho que não é nada facil colocar um escritor como personagem de romance, e são raríssimos os que o fizeram em toda a literatura universal. O sr. José Lins do Rego atirou-se a essa empresa com a sua natural desenvoltura, embo ra no personagem Paulo Mafra. se destaque mais ;um drama da inteligência do que propriamente uma figura de escritor. Esse drama - cujo desdobramento em ro· mance me agrada de maneira especial pelo muito que se ajusta às minhas idéias - é o do fracasso do escritor sempre que o seu pensamento vai ser levado para a rea· lidade. O das idéias que sempre se alteram e se corrom pem no momento da realização. Este é o drama de Paulo Mafra : o de ver as suas idéias violentadas e .corrom pidas dentro da política militante, o de ver o seu livro rebaixado a um instrumento de propaganda política. Bem 90 A l v a r o L i n s diferente é o caso de Joca, o jogador de futebol, entidade hoJe tão popular que entra agora para a li teratura por in termédio do sr. j o sé Lins do Rego. O estado de eilpÍ rito de uma sociedade que de.l.ira diante dos jogos ae iütebol determinou o seu êxi to ; nm êxito de habilidadesdas quais o próprio Joca não tinha conciência. O seu suces .. o, como o de todos os inconCientes, náo tem au ração, porem. Tudo se extingue na sua vida, aos primeiros sinais aa uoença e da 1ncapac1Uade lÍi>Ica. .t'u1anuo etc um extremo para o outro, diremos que tanto o intelectual como o jogador de futebol se acham muito hem carac terizados em Agua-mãe, onde talvez tenha sido excessivo o gosto do romancista em descrev-er doia jogos com uma precisão e um conhecimento de cronista esportivo . . . Outro personagem dramático, em que o drama da vida, no entanto, avulta mais do que o personagem, como no caso de Paulo Mafra - é Luizinha, a menina aleijada, _simbolizando o desejo impossível de amar e o ódio impo tente contra o mundo. Direi, porem, que o episódio de _ ,uizinha com as suas cartas de amor - através do qual parece o romancista haver pretendido uma altura dP. grande emoção - deu-me uma impressão de cena ex cessiva e pouco convincente. E vejo, afinal, que se torna impossível qualquer referência especial aos outros personagens, em face do seu número e dos seus destinos particularizadoa. Todos, porem, apresentam uma deter minada capacidade de interessar o leitor, embora os per sonagem de Agua-mãe sejam sobretudo as três famílias. Mais as famílias do que os seus membros individualmente. Mas o que chamo a documentação social do sr. José Lins do Rego não se ajusta exatamente â realidade. A imaginação do romancista tudo transfigura e tudo trans forma. E esta imaginação é que faz do sr. j o sé Lins do Rego um romancista, e que faz de Agua-mãe uma obra de -literatura. Ele anima os seres humanos, como as coisas da natureza, de uma poderosa substância poética, de uma J o r n a l d e C r í t i c a 91 v1sao lirica que representa a nota mais dominante do seu temperamento. Vemos que é o lirismo que se encontra na origem dos seus impulsos de criação. Eu definiria o temperamento do sr. José Lins do Rego com estes quatro elementos de caracterização : lirico, sensual, dionisíaco, romântico. Estas forças íntimas determinam a sua ânsia de comunicação com a natureza física e humana. Pois não são somente os homens que interessam eete roman cista, mas tambem a terra, as águas, as casas, as árvores, os animais, todos os elementos da· natureza. Agua-mãe se desdobra por toda parte e se anima de preocupações de todas as espécies. Lembro especialmente as páginas que descrevem a "Casa Azul", e as paisagens que a envolvem, sobretudo a da lagoa. A "Casa Azul'; centraliza o romance, é do seu mistério é que partem os caminhos de todos os destinos pessoa:is do romance. E o mistério da "Casa Azul" não se apresenta apenas como uma sugestão · ou como uma atmoGfera. O romancista desenvolve-o em vários aspectos, e com uma paixão que se transmite ao leitor com a maior naturalidade. Utiliza a ocasião para o aproveitamento de lendas, de superstições, de mal-assombrados, de fa1,1tasmas. De todo um longo e escondido potencial d� vida popular. As literaturas latinas, aliás, são bastante pobres em ma téria de literatura fantástica, um gênero em que anglo -saxões e russos conseguem realizar verdadeiras obras-pri mas. A propósito, Edmond J aloux perguntava certa vez o que determinava a literatura fantástica na Ingla terra : se eram os fantasmas que criavam as casas mal-as· sombradas, ou se eram as casas mal-assombradas que cria vam os fantasmas. O sr. José Lins do Rego, em Agua-mãe, realizou uma coisa e outra : criou fantasmas e criou uma casa mal-assombrada, atingindo situações de forte inten sidade. E creio que teria obtido um efeito ainda maior se não lhes desse um carater de história inverossímil, se houvesse dado a impressão de que tambem o romancista acreditava na casa mal-assombrada e nos seus fantasmas. A l v a r o L i n s Mas ainda nestas páginas se encontra um sinal da sua simpatia pelo povo - pelo povo que "já não mandava nas terras, mandava nas águas". O romancista encontra no povo uma correspondência para a sua exuberância de vida, para a sua â�sia de viver e de se continuar na sua obra. Vejo-me tentado a isolar certos trechos de Agua-mãe, ou par..a dar exemplos, ou p ara document(lr afirmações. Mas íne detenho neste propósito, porque qualquer isola mento de fras�s, ou mesmo de capítulos, constitue uma mutilação para um romance do sr. José Lins do Rego. Trata-se de um autor que só pode ser lido por inteiro. E acho que essa circunstância provem da sua técnica, que ele supre com a sua maneira péssoal de ser romancista. E•wrevendo em 1937 sobre Pureza, acentuei que o sr. -José Lins do Rego era sobretudo um narrador, um contador de histórias. Um narrador no sentido mais natural e mais primitivo da expressão - o de narrador oral da idade média, por exemplo. E vi com agrado que essa opinião veio a coincidir com outras que se exprimiram depois, com a de críticos tão agudos e tão compreensivos como oa srs. Olívio Montenegro e Pedro Dantas. No sr. José Lins do Rego, o estilo - um estilo de raro sabor e de indiscutível originalidade, com a capacidade de influir na renovação de toda uma língua - tem carater mais oral do que lite rário. A sua técnic·a é a do narrador que empreende a aventura de uma história sem qualquer consideração pela composição ou pela ordem do romance. Torna-se ·descon certante a sua volubilidade de pensamento, constante mente, e mais de uma vez, saltando, numa mesma página, de , um tema para outro, desdobrando-se arbitrariamente entre os extremos, numa mesma ocasião, com a maior in· diferença pela atenção do leitor ou pelo seu desejo de lógica. Quando ao seu estilo, creio ainda que significa uma tentativa de adaptação ao assunto. Uma maneira de exprimir a vida do povo na sua própria língua. Acho, J o r n a l d e C r í t i c a 93 por isso, que faria bem ao romancista aumentar o número dos diálogos, o que daria aos personagens uma mais direta sensação de vida. 'l'ambem sugiro a necessidade de umas certas variações no de.senvolvimento da narrativa. O sr. Jooê Lins do Rego apresenta-se sempre muito uniforme na sua técnica, lançando personagens e cenas sempre de uma mesma maneira. Por outro lado, a chamada técnica de repetição, em que se tornou um virtuose, quase sempre tem um efeito feliz, mas às vezes se torna cansativa e inutil, o que está exigindo o contrôle e a vigilância do romancista. Mas estas virtudes da razão e da vigilância, que geram a composição e a técnica, não são as virtudes do sr. José Lins do Rego. .No entanto, acredito que os dons de pa· ciência, de concentração, de composição técnica - repre sentam virtudes que só poderiam valorizar e engrandecer ainda mais a sua obra. Somente elas têm o dom de levar à perfeição, devendo-se acrescentar que a composição li terária em nada altera ou ' corrompe a força de criação. E esta força de criação, no seu carater original, é o que não falta ao sr. José Lins do Rego. A sua obra é uma confissão de personalidade. Não sei de outra em que se projetem com tanta espontaneidade e com tanto ardor de vida um temperamento e uma natureza de homem. 17 de janeiro de 1942. CAPíTULO VIII PROCESSO DA BURG-UESIA DIANTE dos romances do sr. Otavio. de Faria fico sempre imaginando se as suas idéias - as suas idéias de ordem geral, e não as suas idéias mais imediata.s de ordem política - nascem dos seus sentimentos, ou se os seus. sentimentos é que são provocados pelas suas idéias. In· decisão que me vem da impossibilidade de definir certos limiteE<, da certeza de que eles se juntaram numa região humana de difícil , penetração. Idéia�; e sentimentos se ligam como um só corpo nos volumes da Tragédia bur· guesa, uma obra, diga-se logo, que não encontra seme lhança com nenhuma outra na literatura hrasilP-ira. Não está a inda realizada, e por isso torna impossível um jul gamento definitivo ou uma interpretação completa. Tra ta-se de um grande "roman-fleuve" projetado em quase vinte livros, sendo que alguns deles com maisde um vo lume. E como aconteceu com a obra de Mareei Proust, ao terminar o sr. Otavio de Faria a sua tarefa, teremos que consideràr a Tragédia burguesa .como um só livro em muitos volumes. Estou certo, aliás, de que a finalidade do au tor se acha exatamente nesta direção. Pode-se con cluir assim em face dos três livros já publicados. Logo se obFerva que o sr. Otavio de Faria está trabalhando sob o efei to de- uma já determinada visão romanesca do mundo, que está construindo a sua obra dentro de um plano que tem já definidas e colocadas as suas linhas gerais. Este plano, está claro, há-de ser, de vez em quando, alterado ·ou modificado - e sob uma dupla ordem de circunstân- J o r n a l d e C r í t i c a 95 .:.as : a que ;;urge da própna eiaboração da obra e a que surge ua expenenc1a àb 1·omanc1sta sempre se ampllanuo ou se moutucanuo na proporçao em que vai avançando uentro aa VIUa - mas com certeza se mantenuo tlel a certos sentimentos e a certas iue1as que aeternunarani a sua concepçao romanesca do mundo. lJma obra, como se vê, que traz o desfmo de consumir a vida inteira de um escritor. Hoje sei que a Tragédia burguesa foi imaginada ;.nnua na auu1escênc1a ao seu autor, que a sua iué1a ante cedeu, ao _que estou informado, os seus ensaios potitícoa. com os quais me encontro, aliás, em absoluta divergência • .E acho que deve ser aestacada essa circun.,tância para que se possa observar melhor o processo de construção dessa �>érie de romances. Parece-me que a Tragédia burguesa só poderá ser realizada integralmente se o seu autor con· tinuar disposto a fazer dela a sua própria vida, a viver mais nos seus romances do que dentro do mundo. Já se disse a propó!!ito da Comédie humaine que Balzac não a teria escrito se a houvesse vivido. De Mareei Proust sabe-se que já estava morto para o mundo ao começar A la recherche du temps perdu. Alguma coisa de seme lhante há de se passar com o sr. Otavio de Faria afim de que o seu "roman-fleuve" seja realmente um corpo íntegro e completo, e não apenas um conjunto de romances frag mentários. Ele idealizou e está realizando a sua obra ainda na mocidade ; a sua vida e a Tragédia burguesa vão se levantando quase juntas, apenas com a diferença indis pensavel de alguns anos. São duus entidades quase con· temporâneas, e sente-se que estes romances já publicados não teriam sido possíveis se o sr. Otavio de Faria não houvesse se resolvido - ou não se sentisse obrigado - a fazer a renúncia da su' vida natural em favor da vida literária da Tragédia burguesa. E daí esta ligação íntima de sentimentos e ideais através de todas as suas páginas. Muito se enganará, pois, quem julgar que a Tragédia bur guesa visa apenas um efeito artístico ou literário ; ela visa, 96 A l v a r o L i n s ao contrário, aquele plano dé representação humana da literatura em que a arte p assa a ser uma realidade tão independente como. a vida mesma. Chama-se O lodo das ruas, publicado este ano, o ter ceiro romance da Tragédia burguesa (O lodo das ruas, 2 vol�. Rio, 1942) . Apesar da sua independência como ro mance, apesar de poder ser lido ieoladamente, este nov·o livro melhor será compreendido em ligação com os dois que o antecedel,"am (Mun4os mortos e Os caminhos da vida) e com os outros que já se acham anunciados. Es tamos diante do espetáculo de um desdobramento da vida burguesa; contendo no seu seio os destinos individuais ele var10s .personagens. Destinos, porem, ainda não inteira mente definidos ; destinos que se podem modificar de ro mance para romance, em face do que existe de imprevisão c de liberdade nos atos humanos. Quase todos os perso nagens do sr. Otavio de Faria acham-se ainda na adoles cência, acham-se ainda nos princípios de um caminho que não sabemos hem aonde os levará. Podemos, porem, apre ender a significação geral de O lodo das ruas e de certos personagens da Tragédia burguesa na situação em que se encontram nos três romances já publicados. Vê-se que a Tragédia burguesa está se realizando em dois planos : um plano moral e um plano social, sem que o seu autor seja propriamente um moralista ou um romancista de cos tumes.' Há entre os dois planos a mesma relação de de pendência que se deve estabelecer entre a vida moral e a vida social. Exatamente o que corrompeu e arruinou a burguesia foi a sua tentativa hipócrita de ajustar os princípios morais aos seus interesses sociais. A tragédia da burguesia acha-se hoje localizada nesse desajustamento que somente leva à morte ou à degradação. O sr. Otavio de Faria surpreendeu_ assim o mundo moderno no seu mo vimento essencial : a Tragédia burguesa representa a his tória de algumas .figuras que se dirigem para a morte ou para a degradação, ao lado de outras que se colocaram J o r n a l d e C r í t i c a 97 violentamente fora da burguesia procurando lutar para a salvação do que possa subsistir desse espantoso naufrágio. No centro dessa hi�tória da burguesia coloca o romancista ü problema do Bem e do Mal. Essa diviaão, no entanto, não aparece_ assim muito rígida no desenvolvimento dos personagens e do enredo, o que os tornaria bastante con· vencionais, esquemáticos e deshumanos. Não se pode con ceber um personagem que se encarne inteiramente no Bem c outro que se encarne inteiramente no Mal. Este dua lismo imovel resultaria num enjoado primarismo mora lizante. O sr. Otavio de F11-ria distingue com muita lucidez o que é do plano dos princípios morais e o que é do plano das ações humanas. Por isso, uma complexidade da sua obra romanesca se encontra nesse reconhecimento de muitoa graus de existência entre o Bem e o Mal. As fronteiras que dividem uma zona da outra estão demar cadas na sua concepção pessoal do mundo, mas estão flu� tuantes, moveis e quase irreconheciveis em certas ações e em certos personagens do romance. Há no entanto os que el3tão de um lado e do outro, os que estão se aproxi mando do Bem e os que estão se dirigindo para o Mal. A Tragédia burguesa já se acha hem caracterizada nesse seu propósito de apresentar dois mundos diferentes : o mundo de Branco e o mundo de Pedro Borges. Aliás, eu preferiria dizer : um mundo de duas faces, pois continuo a sentir uma misteriosa ligação entre a realidade de Branco e a realidade de Pedro Borges. Estes dois mundos se definem desde Mundos mortos, sobretudo naquela simhó· · lica cena 'final da porta do ce�itério no dia da morte de Carlos Eduardo. Depois d-a luta entre Branco e Pedro Borges os rapazes se dividem. Um grupo segue para um lado e o outro para o lado oposto. Ver-se-á ainda mais claramente esta divisão em Os caminhos da vida, no qual se colocam em posição de combate as duas forças opostas e contrárias. Entre as duas, porem, levantam-se várias outras que nãQ são propriamente concilia�ões ou acom9- 98 A l v a r o L i n s dações, mas forças novas em acordo com a complexi dade e a variedade da vida .humana, todas girando, no �ntanto, umas e outras em torno de B ranco e Pedro B orges. O romance O lodo das ruas conta a história de um mundo que não é o de Branco ; um m undo que mais se aproxima de Pedro Borgea do que de Branco, embora se sinta por toda p arte a sombra de um e de outro. E' a h istória de uma família - a família Paiva - sendo ao me�mo tempo a história de um personagem : Armando, Fundem-se na � eAma história o plano moral e o plano social, desde que os Paiva simbolizam, sob certos aspectos, uma família, uma dasre e uma face da própria humanidade. Armando repre<;enta um caso de desajustamento com a sua família e com a própria vi da, e somente no sni <'idio, nortanto, poderi a enrontrar .uma 8olução. A educacão burgue.oa da sua família e o amhiente SQci al da sua classe Fufocaram o que h avi a de melh or na sua natur�?:a huma na. Enqu anto a forma<;ão d e Arm :1 n flo aproximava-o �o mundo de, Perlro Boro-eq_ a ona m 'li � ínt1ma n a tu re .c>a de homem colocava-o .m ais perto de Bra n ro. Vem os, contu do, qu e Brancoe A rm11nflo nnnen r'h e .o:aram a i"e entender, amhos il!ualmente re�ponoavei� nor e�"a ausên cia de uma tiio poo�ivel anrox1ma<'iio. Colo,.ado� um de fronte do outro. I'Cpi! ravam � e denoi � ca rl a ve� maiA e�tra nh o�. F.ot:>P"'"· neotn nlh,ra. iH nnt�> do nu e me n arece <er a i .léi a fun d am ent::�l flo sr. Otavio de Fari a romo ro m anci .,ta : a imno�oihili fl n rl e rle enten rlimento entre . os 'homen o Pffi fa<'e d a auoP,nc1a do !!Pntimento .-le 11m or, Porque o verdadeiro amor é um a rariclarle, o enten f!;_ mento entre oo hPmens se torna Í !!u alm ente ''"' " r<tri fl :t de. A Tragédia burguesa está cheia de caminhos que nem flempre �e repdem ; que às vezeo oe rn� " " ffi - m a s ;;em que @e encontrem nunca . Eota i flpi " f,,� .l �-m -r .. • � 1 rloo n•mances do sr. Otavio de Fari a fora lanea da fleode Mun d�s mprtos, qu ando escreveu : 1'A comunicaçção entre oe J o r n a l d e C r í t i c a 99 homens é que falta a todos os momentos, o silêncio train do, as palavras traindo, o mundo inteiro traindo sempre que duas criaturas precisam realmente se entender." Este desentendimento entre os homens c11nstitue igualmente o tema de O lodo das ruas. A família Pai· va está marcada por uma força subterrânea que separa todas as suas figuras. Todos substituem o sentimento do amor pela exacerbação do sexo, uma <mbstituiQão que se espalha por Jtodo o romance e ex;plica o désarroi da família Paiva. A distância .que se estabelece entre o coronel Paiva e D. Laura passa para os filhos como um legado. Cada um vive o seu próprio destino parti cular, sem qualquer comunicação com os outros, meamo naque las ocasiões em que todos se reunem obrigatoriamente. Um destes destinos isolados, um destino correndo para a morte sem que . ningueni o perceba é o de Armando, intetrol!ando aos vinte anoi!l : "!feria enlouquecido ou era um fantal'lma, um morto em trânsito pela vida dos ou tros ? " Tudo na natureza humana de Armando indi�a a possibilidade de um entendimento com Branco, de uma salvação para o mundo de Branco. Contudo, este en tendimento fracassa sempre. Toda a h i c.tli,_; , r! f' <\ ,., • • , do tem a propriedade de i nr1i rar com o um rr�oto flf' ' N dadeiro amor entre os homens poderia unir as duas '{a. ccs do mundo, as duas faces que são vistas como irremt' diavelmente opostas. Escreveu George Moore que "o dom de eontat: a mesma história sob uma dupla forma revela o verdadeiro arti�ta". E.ota qualidade de artista !'C encontra no sr. Otavio de Faria como romancista. A Tragédia burguesa está constituída de uma mesma histó· ri a que parece desdobrada em duas porque se acha obser vada e narrada sob dois ângulo!'! diferentes. Podemos ver aesim as duas facea de um mesmo mundo, ao mesmo tem po que os gestos, as palavras e os atos que se acham de um lado e do outro. E em momento nenhum o sr. Ota- 100 A l v a r o L i n s vio de Faria se comporta como um simples espectador. Não olha nunca o mundo como um espetáculo do qual se sentisse um observador distante. Esta é a razão com certeza por que se coloca sempre na região da tragédia. Não exiete na sua obra nenhum vestígio de humour, ne nhum vestígio daquele humour que é próprio dos seres que sabem ver de longe. Nenhum dos seus personagens se torna propriamente ridículo, por mais que a sua con_di ção esteja exigindo este resultado. Aqueles que mais se rebaixam permanecem apenas desgraçados e miseraveis. Veja-se o personagem Raul, por exemplo, sendo suficien te compará-lo com o personagem Charlus, de Mareei Proust. É que o temperamento do sr. Otavio de Faria se revela essencialmente trágico, o 1 que· decorre da sua certeza de que sobre os gestos mais simples ou sohre os atos mais inferiores está pairando a misteriosa sombra de Deus. Por isso, o romancista ·não se coloca numa atitude farisaica em face do que ele próprio chama "a imensa tristeza que é a natureza humana". Ele tudo procura compreender, identificando-se com a miséria da natureza humana como alguem que sabe estarmos todos compro· metidos numa responsabilidade que é contemporânea do nascimento do homem. Não se aproxima dos homens nem com displicência nem com humour, mas com um duplo e às vezes desencontrado sentimento de solidarie dade e de revolta. O seu pessimismo, a sua visão noturna da vida, tem origens mais profundas que as da inteligên cia. Aproxima-se dos homens como Pascal, de quem re tirou esta proposição que serve de .epígrafe à Tragédia burguesa : "Je blâme également, et ceux qui prennent parti de louer l'homme, et ceux qui le prennent de se divertir ; et je ne puis approuver que ceux qui cherchcnt en gémissant." Lembro mais uma vez o nome de Mareei Proust, mas para marcar uma diferenciação. Tambem Proust tornou-se um reveladcir da miséria da natureza hu- J Q r n a l d e C r í t i c a 101 mana. Na sua obra, porem, não existe qualquer preocu pação de ordem moral, toda ela .se concentrando mais sobre a memona do que sobre a conciência. A con ciêncía, ao contrário, constitue um elemento dramático sempre presente na obra do sr. Otavio de Faria. Atra vés dela é que se explica o seu conhecimento da natureza humana. Na verdade, o que se admira em primeiro lu gar durante a leitura da Tragédia burguesa é a capaci dade com que o romancista sabe- ver o que há de mais profundo na vida interior dos seres humanos. Um co nhecimimto que não se aprende em parte nenhuma, que não �:�e conquista nem mesmo com a observação minuciosa de uma vida inteira. Ele conetitue um privilégio da in tuiç�o artísticà, a iluminaçãço de um carater de roman cista. O sr. Otavio de Fari� movimenta todos os seus personagens com uma segurança e um domínio que logo o caracterizam como um 1·omancista de poderes e recur sos excepcionais. Passando da angelitude até a animali dade, o autor vai revelando a conciência que se debate em atos e pensamentos. Parece-me impossível, por i sso, realizar qualquer operação no terreno das exemplifica ções. Nem sequer se poderá resumir para o leitor o que seja o drama da famHia Paiva ou da situação romanesca que a representa. É que O lodo das ruas está construido de! maneira que .impossibilita qualquer síntese ou qualquer propósito de transmitir detalhes. Das suas mil páginas não existe uma única cena, um único persona gem, uma única palavra - que não seja de necessidade obrigatória para a compreensão e o sentimento da obra em conjunto. Estamos agora diante de um aspecto muito discutido de!'ta obra : o da sua técnica e o do seu estilo. Bem sei que o sr. Otavio de Faria apresenta certos defeitos de técnica e de estilo, mas não .creio que eles sejam o s que ee indicam mais geralmente, ou que possam ser julgados 102 A I v 'a r o L i n s sob critérios comuns. Não acredito, por exemplo, que seja um prejuízo a extensão dos seus romances, nem' que obteriam mais resultados se fos.sem mais concentrados. Ao contrário : o seu resultado mais eficiente, como técm· ca, decorre da sua extensão, da lentidão da na-rrativa, da conjunção de minúcias e detalhes. Estou certo de que para atingir todos os seus efeitos O lodo das ruas tinha realmente necessidade das suas mil páginas. Eram ne cessários todos os seus episódios miudos, todos os seus diálogos, todas as suas repetições de detalhes e de pala vras - para que tivéssemos a revelação em conjunto do carater de Armando e do ambiente social da família Paiva. "Eles revelam o que há de, essencialmente dramá tico nas realidades banais de todos os dias" - escreveu H. L. Mencken a propósito de Balzac e Thomas Hardy. Podemos dizer que uma finalidade semelhante é a que visa alcançar a Tragédia burguesa, sobretudo num livro como O lodo das ruas. Ao estilo do sr. Otavio de Faria raberá outra observação. Diz-se por toda parte, como lugar-comum, que o sr. Otavio de Faria escreve mal, que tem uma forma deteetavcl. Ainda neste ponto sinto a necessidade de fazer uma distinção. Pode-se admitir quea sua forma de expressão não se reveste de uma conven cionada beleza artística, nem se apresenta agradavel para um primeiro encontro. Na verdade, é sempre com difi culdade que se faz a leitura das primeiras páginae dos seus livrQs. Não creio, porem, que esta verdade signifi que uma deficiência, sendo antes uma virtude da sua personalidade que não �e oferece senão aos que estão em condiçõeB de a compreender. Uma dificuldade e uma virtude proustianas, como se sabe. Depois as difj culdades todas desa-parecem na proporção em que se avança na leitura. Não se deve esquecer, alem -disso, que o románce tem o seu prónrio estilo, ou mais ainda : que todo romance e� particular tem o seu estilo em acordo J o r n a l d e C r í t i c a 103 com a realidade que está exprimindo. Um personal!em terá que. falar nos seus diálogos e se exprimir nos seus p·ensamentos em acordo com as suas próprias condições e o seu próprio carater. Parece-me, assim, que há uma harmonia entre o estilo do sr. Otavio de Faria e a reali dade humana e literária da Tragédia burguesa. E não devemos condenar, como mau ou inexistente, aquilo que apenas tem um carater diferente, aquilo que apenas está fora do nosso gosto de hábito e de rotina. Da técni ca sem contrôle e do estilo sem gramática do sr. Otavio de Faria julgo exatamente assim : que não .são condenaVf�is, mas diferentes.- O que se pode provar com a verifica ção de que nem a '!Ua técnica nem o seu estilo imped1:I11 a revelação da realidade humana e literária que �e en contra na Tragédia burguesa, o que aconteceria inevita velmente no çaso contrário. Lembro alem disso aquelas páginas em que o romancistà suspende a narração para se dehru�ar mais diretamente, mais pessoalmente sobre o r1estino de' seus personagen�. Por exemplo : a sua viRao antecipada do destino de Silvinha, as reflexõe.� sohre a in compreen�ão de Branco e Armando, as meditações com ITlle encerra o romance. Páginas todas que revelam um e�tiJo não só de romanci�ta, mas de verdadeiro escrit�r. Confes@o, aliás, que após a leitura de O lodo das · ruas senti alguma coisa mai.s do que o movimento de admi ração que sempre provoca um livro de qualidades acim u do comum ; confesso que me sentí comovido diante de!'te quadro que se poderia chamar "a miséria da natureza humana" e que se acha levantado numa construção ro mane?ca que desafia o tempo. 11 de abril de 1942. CAPiTULO IX , ENTRE OS EXTREMOS A principal renovação que a literatura operou ultimamente encontra-se na possibilidade de utilizar nas suas realizações as novas conquistas científicas da psicolo gia e da sociologia. De uma maneira p articular, ao ro· mance haveria de caber uma situação de primeira ordem nesta onda de descobertas espirituais. De descobertas, talvez só seja verdadeiro num sentido muito limitado ; de utilizações técnicas, talvez seja mais exato. É certo que investigando bem chegaremos à conclusão de que, ne8se movimento, a literatura antecedeu à ciência tanto psicoló gica como sociológic a. Na sua procura do que há de mais fundo e de mais real na alma humana, os cientistas modernos não estavam senão seguindo um longo caminho que Dostoieswsky percorrera 'sozinho, com os exclusivos 1:ecursos da sua genial intuição artística. Aliás, desde os tempos mais antigos, estamos assistindo êste processo de um mesmo desenvolvimento : ·na origem de toda descober ta científica encontra-se uma intuição de artista. Assim, ao atribuir à intuição um papel fundamental para o su: jeito e o objeto do conhecimento, Berg01on não estava se não definindo uma realidade secular e historicamente ve rificada. Contudo, tornam-�e necessárias, em cada des coberta de artista, num domínio que não seja puramente artístico, a verificação posterior e a vulgarização -da ciên cia. A verificação e o desdobramento que irão lhe per mitir uma maior autenticidade e uma �l:liQr -qnivers�i- J o r n a l d e C r í t i c a 105 dade. Neste sentido é que o progresso da c1encia tanto psicológica como sociológica veio trazer uma grande con tribuição para a literatura moderna, sobretudo para o romance. Uma contribuição que se define principalmen te pelo seu cara ter de' profundidade : o aproveitamento de elementos ilógicos, a utilização artística da vida subcon eiente, a possibilidade de uma atmosfera mai? metafísica do que naturalística. Sobre os personagens, sobre og se res nos quais o artista imprime uma sensação de huma-· nidade, incidiram principalmente estas novas possibili dades e estas novas realizações ; dos personagens se estcn-· deram, num movimento natural, até a ação e o ambiente, as duãs condições rop1anescas que estão determinadas - pe las figuras de representação .humana. l É verdade que o romance chamado naturalista . - e emprego essa designa ção num sentido muito mais geral do que o de uma sim ples escola literária, historicamente considerada - con ?-eguiu realizar não só muitas obras consideraveis mas al gumas obras-primas. No entanto, trazia, em si me.omo, a contingência de um rápido esgotamento. O seu recurso principal consistia em operar uma cisão no espaço, o que significa que teria de se desenvolver num movimento de extensão. Era descrição de uma vida humana - com seus acessórios de ação, amhiente e comparsas - nor-· malmente desdobrada dentro do conceito artistotélico de perfeição - tomado neste caso num formulário exterior incompleto --'- que ensina a ver em todas as coisas um principiO, um meio e um fim. Algumas obras-primas foram suficientes para esgotar as possibilidades desse mo vimento de espaço em,.-extensão. Recolhendo a herança naturalista, o romance moderno decidiu-se a operar uma cisão no tempo, o que significa que está se desenvolvendo num movimento de profundidade� Aí estão realmente as suas oposições mais características : espaço e tempo, ex tensão e profundidade. Poderíamos acrescentar algumas 106 A l v a r o L i n s ' outras : lógica e ilógismo, inteligência e intuição, natu- ralismo e magia poética. Verificando a impossibilidade de tornar romanesca a vida toda, o romance restringiu a sua extensão para ampliar a sua profundidade. Por isso é que J ames J oyce se deteve sobre um único t:lia de vida dos seus personagens em Ulysses. Pôde conhlcê-los mui to mais profundamente do que se os tivesse de acompa nhar através de toda uma existência. Não se julgue, po rem, que um romance moderno constitue sempre e neces sariamente uma oposição ao romance naturalista. Não : mais propriamente constitue um complemento, uma con tinuaçào, uma nova fase. Um romance pode ser natura lista e moderno, o que é ainda uma situação para a qual o Ulysses se apresenta como um magnífico exemplo. No sistema natural de evolução e transiormação dos gêneros literários, o romance moderno veio completar e continuar o que o romance naturalista continha de incompleto e de limitado. O romance naturalista representará sempre nu entanto uma espécie de base ou de alicerce para qual quer construção romanesca. Mas quando o edifício já se vai elevando tão alto será incompreensível que se fique apenas nos alicerces. De qualquer forma, porem, nenhum romance poderá subsistir sem que contenha um carater realista, tanto na sua estrutura íntima como na sua visão exterior. E ainda aquí devo explicar que não empre.go a palavra realismo num sentido restrito e histórico de escola, mas no seu amplo e verdadeiro sentido filosófico. Nesta acepção é que a obra de Mareei Proust se apre,>enta muito mais realista do que a de Zola ou a de Flauhert. Nesta acep· ção, aliás, é que toda obra de arte perfeitamente realizada - quero dizer : com espírito .e com técnica formal - constitue uma obra realista. E uma característica feliz do romance moderno é esta sua disposição de se colocar dentro de um realismo mais completo e ma�s verdadeiro. J o r n a l d e C r í t i c a 107 ne um realismo que não seja só uma cópia da vida exte rior, um reconhecimento danatureza física, uma interpre· tação dos aspectos materiais dos seres ou simplesmente animais dos homens ; que seja tudo isto e mais o realismo da alma humana, da vida interior, das situações metafísi cas. Apresentando-se, assim, muito mais dificil e mais amplo do que .o seu antecessor, o romance moderno car rega por isso mesmo maiores possibilidades de ser des virtuado ; o romancist_a de segunda orde� fará dele um simples jogo mental, uma mistificação intelectualista, uma fanta.sia inconsistente e equívoca . Para qualquer tendên cia literária, aliás, sempre existirá este perigo de incom preensão, de desvirtuamento, de deturpação por parte da queles que não são criadores mas simples imitadores, daqueles que podemos chamar os autores de segunda classe. Estes autares são os mais . numerosos e os que mo vimentam a vida literária quotidiana. No romance natu ralistá, os livros de segunda classe se reconhecem pela falta de imaginação, pela fidelidade medíocre com que procuram copiar a vida exterior, pela unifo·rmidade de um mesmo estilo descritivo e monótono. No romance moderno, definem-se pela falsa originalidade, por um falso simbolismo poético, pelo estilo cabalístico e defor• mador. E ao falar destes livros de segunda classe não me acho animado contra eles de nenhum sentimento de desdem ou de repulsa, 'o pensar como são raros os de uma categoria absolutamente superior, aqueles que a his tória recolherá mais tarde como patrimônio de uma I� teratura. Diante de livros dessa segunda classe é que to dos os críticos se .encontram quase toda� a� semana�o. Des sa· mesma espécie são os romances diante dos quais me encontro agora ; dois deles de autores novos e que se acham no limiar da vida literária : os srs. J osué Montcllo (]an�las fe�hadas, -Rio 1941 ) e Nelio Reis (O rio corre para o mar, Rio, 1941 ) ; & outro de um autor já consagra- 108 A l v a r o L i n s do pelo sucesso - inclusive neste livro agora em segun· da edição - e com um nom� dos mais conhecidos e da maior evidência em nossas letras : o sr. Jorge de Lima (O Anjo, Rio, 1941 ) . De início, _o que há de mais curioso a assinalar entre o sr. Josué Montello e o sr. Nelio Reis é a semelhança dos seus dois romances, publicados simultaneamente. E' que ambos se acham dentro de fórmulas e modelos demasia damente conhecidos : os do romance naturalista. Ambos escolheram como ambiente as suas regiões do Norte ; am bos se encontram líniitados e adstritos a um naturalismo exterior e convencional ; ambos se voltam para os mesmos recursos e os mesmos desenvolvimentos romanescos, E não fica nestes aspectos a aproximação possível entre os dois jovens romancistas. Encontro em ambos os livros o mesmo enredo : a história de uma moça que o amor sem casamento coloca fora das convenções sociais e que se vê por isso expulsa do mundo e da própria vida ; encontro, n um e noutro, o mesmo desenvolvimento para este enre do : as mesmas situações de um pequeno meio social, os mesmos sofrimentos da personagem principal, os mesmos preBsentimentos e reflexões diante da gravidez que denuncia o novo estado, os mesmos raciocínios e revoltas diante do abandono e do isolamento; encontro ainda uma semelhante paisagem física e humana, personagens se�p.e lh'antes, conversas semelhantes, uma só atmosfera roma nesca. E não resta dúvida que · todos essas semelhanças se explicam através de um defeito fundamental e co· mum aos dois livros : a visão dos autores encontra-se to�a voltada para o exterior dos personagens e da sociedade. O que lhes falta não é só uma maior densidade, uma maior .concentração de vida e de arte ; é tamhem llJ1la projeção maia definida da personalidade do �omancista. Ambos se preocuparam de mais em observar e fixar o que estava ao alcance direto da visão puramente objetiva e J o r n a l d e C r í t i c a 109 d0:crcveram a8'lÍm uma realidade que, embora fiel, não ultrapassa a superfície. E esta arte simplesmente de ob servação, -de fidelidade ao visível, de descritividade oh je t:iva - representa sem dúvida uma arte que tem: o seu valor, mas que será sempre primária. Fixando uma interpretação individual, direi que o er. Nelio Reis me parece mai.s romancista, na mesma pro· porção em que o sr. J osué Montello me parece mais escri tor. É um simples indício, porem, pois o sr. Nelio Reis fBcreve páginas tão desfavoraveis à sua categoria de ro mancista que serão suficíéntes para desesperar qualquer leitor mesmo indulgente. Todo o seu romance gira em torno do amor de Oceanira (personagem principal) , o que se _transmite literariamente por intermédio de uma senBação bastante vaga e superficial. Todos os sentimen tos e paixões dos personagens aparecem mais descritos p elo rom:mcista do que vividos por eles mesmos, o que cons titue uma característica de O rio corre para o mar como tamhem de ]anelas fechadas. Ainda contra a ca tegoria de roman cista do sr. Nelio Reis se levantam o artificiali.smo dos seus diálogos, a sua preocupação de uma linguagem "modernista" por feito de uma gíria em pregada sem nenhum gosto e sem nenhum senso da lín gua, a fraqueza ou a puerilidade de certos episódios que nada explicam e em nada contribuem para a intensidade do romance. Tambem o seu estilo, embora agradavel e simples em algumas ocasiões, apresenta-se constantemente muito frouxo e desagregado, sem falar das numerosas ex pressões de mau-gosto que vamos encontrando em todo o decorrer da leitura. Imagine-se, na impoBBibilidade de citar outros exemplos, que o sr. Nelio Reis ainda utiliza aquela imagem matusaleniana de uma "natureza choran· do" em correspondência com os sentimentos humanos, como se vê nesta frase : "A natureza parecia que adivi· nhara que Buzuquinha embarcara' na véspera e Oceanira llO A l v a r o L i n s estava triste. ChQYera a noite toda." Contudo não quero esquecer que há uma ou outra página para revelar no sr. Nelio Reis um certo talento de romancista - ou uma inspi ração de momento, sendo muito dificil distinguir exata mente, neste caso, uma coisa da outra - e indico como exemplo a página final do suicídio de Oceanira, que me parece a mais consideravel de todo o romance. O sr. j osué Montello, por sua vez, apresenta-se mais homogêneo, mais equilibrado, m�is igual através de todas as suas pá ginas. Será difícil, como no caso do sr. Nelio Reis, indi car trechos que se sobressaiam pelo mau-gosto ou pela absoluta desconexão entre o assunto e a sua expressão li terária. Nada disso encontramos na obra do sr. J osué Montello. Mas tambem não encontraremos indícios de ori· [dualidade ou de força criado.ra que nos levem a çonside rar o seu romance como uma estréia de grande importim· cia. V erificamoi! que são dos mais reduzidos os seus re cursos de imaginação ; ele se mostra mais um espírito cri tico do que um espírito romanesco ; e as qualidades li te· rárias que pude sentir em ]anelas fechadas são menos par til'ularmente de romancista do que de um escritor de or dem geral. E ei!sas qualidades são daquelaa que não se esquecem, sobretudo as do seu estilo, que me deixou as melhores impressões. Mas enquanto uma contingência de idade (a juventu de não é a época mais propícia para os romancistas ) ex plica romances como O rio corre para o mar e ]anelas l fechadas, o que poderá explicar um romance como O Anjo na autoria do sr. Jorge de Lima '? Eu tinha, aliás, a impressão de que êle se sentia hoje muito acanhado e arrependido de haver um dia escrito este livro tão inutil e tão vazio de qualquer atributo literário ou artístico. Mas não : aí está uma segunda edição mostrando que o sr. Jorge de Lima se orgulha deste seu livro e acha o mesmo digno de se continuar através das gerações. Ah, ·os equívocos e as cegueiras dos autores paternais ! Há cer- J o r n a l d e C r í t i c a 111 tas ilusões e certas mistificações, porem, que não devem permanecer de pé, afim de que nao se julgue que toda a nossa vida literária se desenvolvena base de amizades pessoais ou de considerações estranhas à literatura. Por· que não dizer então a respeito de O Anjo o que ele real mente vale e o desprestígio que significa para um autor subscrever um livro dessa categoria l J á hz, em mais de uma ocasião, a justiça devida ·ao talento e às qualidad� intelectuais do sr. J orge de Lima. No entanto, por maior que- seja a nossa consideração pela sua figura literária, a verdade é que será impossível a aceitação ue uma grande parte da sua obra, da qual, aliás, este O Anjo constitue um volume representativo. Diante dele, ainda _hoje fico às vezes nesta dúvida : o sr. Jorge de Lima tentou uma pilhéria de mau espírito ou escreveu seriamente este vo lume? A hipóte!!_e da pilhéria, no entanto, logo será afas tada quando se pensa que não ieria graça nenhuma para nm autor tão festejado sob outros aspectoa. O que se conclue, ao contrário, é que embora o livro não tenha a menor seriedade, o sr. Jorge de Lima, ao escrevê-lo, se achava animado de um sentimento que acredito até mes· mo austero e grave E aí está um episódio pirandelliano : um autor que se aplica com seriedade e uma obra que resulta mais ou menos engraçada, a despeito dos seus pro pósitos. Na verdade, O Anjo nada tem de um livro cô mico ; no entanto, provoca o riso pelo avesso, o riso invo luntário de certas situações que divertem exatamente pela �ua absoluta falta de graça. Vê-se que o sr. J orge de Lima pretendeu a realização de um romance de carater suprarrealista e metafísico. Um romance inteiramente de.;;ligado de qualquer modelo naturalista. Mas tentando fugir de um convencionalismo acabou caindo no convencionalismo oposto. O seu ro mance transmite por isso uma impressão contrária àque la que esteve na intenção do seu autor. Sendo um livro de furor modernista apresenta uma fisionomia de livro que 1 1 2 A l v a r o r_ i n s nasceu morto ; extremando-se no gosto da novidãde só con segue exibir uma falsa originalidade ; tentando exprimir o que há de mais natural no homem perde-se nos devaneios do mais vago artificialismo. O romance não tem propria mente nem enredo nem sentido O que se percebe é que o autor quis apresentar o estado de vida subconciente e as vi · , eões suprarrealistas de dois personagens, simbolizando tal vez dois gênios incompreendidos de artistas, ao lado ·de uma longínqua iil.tenção de cristianismo. Alternam-se as páginas de episódios habituais e de sonhos alucinados. As pri meiras, em geral, se afogam na banalidade ; as outras são incompreensivéis e fora não só de qualquer percepção intelectual mas de toda sensação artística. E aquí se en contra o ponto central da questão. fà arte pode se apre sentar hermética, obscura, ilógica, quando julgada sob um critério estritamente intelectual. Mas estando, embora, alem da lógica comum ou científica, toda obra de arte apresenta uma lógica de si mesma, uma unidade e uma integridade particulares, uma visão e uma compreensão pu· ramente estéticas. Estes atributos não se encontram, porem, e:rp. O Anjo ; ele nem se enquadra na lógica comum do romance naturalista, nem na lógica simplesmente artís tica do romance moderno. A ' única maneira de o com· prender será julgá-lo como um jogo literário de diletante, com'o uma fantasia inconsequente, como um divertimento de escritor inteligente e inquieto. A sua categoria é a daqueles livros que são lidos num dia e esquécidos no dia seguinte. Estou certo no entanto de que O Anjo repre7 senta um dos estados de espírito que mais definem as ati vidades intelectuais do sr. Jorge de Lima : a sua curiosi dade, a sua mobilidade, a sua volubilidade. O sr. J orge de Lima parece ansio.so para realizar todas as expenencias e esgotar todas as possibilidades. Passeia inquieto através de todos os gêneros, de todas as teorias, de todas as pro babilidades. Admiro realmente a sua multiplicidade, mas J o r n a l d e C r ít i c a 113 nem sempre essa admiração significa u m sentimento favo ravel ao sr. Jorge de Lima. Estamos, como se vê, entre os extremos d<) ·J.uas fór mulas de ro�ance. Os srs. Nelio Reis e Josué Montello permanecem limitadoa pelos estreitos horizontes do ro. mance naturalista. O sr. J orge de Lima esgota-se numa falsa originalidade de falhado efeito suprarrealista. De um lado e do outro, creio que perm anece inatingido aquele verdadeiro "realismo" - o "realismo mágico", d_a expr�s Bão de E dmond J aloux - que deve ser toda a "ãimóstera a:e--Üm romance mo(Íerno. 26 de julho de 1941. CAPíTULO X ROMANCES DE CONCURSO DEPOIS de um concurso mais ou menos rumoroso, o jornal literário Dom Casmurro e o editor V ecchi ofereceram, no ano paBsado, dois prêmios de romances. Um deles, o primeiro, recaiu sobre a pessoa de um autor do Pará que era, até �ntão, inteiramente desconhecido. Antes mesmo do conhecimen,to dos romances, o resultado do concurso se apresentava muito simpá�ico por essa cir cunstância de haver dado o primeiro prêmio a um autor desfavorecido, a um autor �;:em influências literáriás e sem qualquer outro "recurso que não fos�c o Rcu próprio livro. Conclue-se, portanto, que nCBse primeiro prêmio pode ter h avido um erro intelectual, mas nunca um erro moral. Quero dizer : houve um julgamento desinteressado e com a intenção de exprimir um critério de justiça literária. Acredito que o mesmo espírito tenha determinado o juri n a escolha do segundo prêmio, que recaiu em autor que não era igualmente desconhecido (no concumo, aliás, todos deviam ser desconhecidos . . . ) , que tem uma posição lite· rária como secretário de unia revista onde o seu nome aparece habitualmente. Agora, um ano depois do resul tado do concurso, a publicação dos dois romances (Chove nos campos de Cachoeira, do sr. Dalcidio Jurandir, e Ci randa, do sr. Clovis Ramalhete) vem nos dar a oportu nidade de colocar o nosso julgamento ao lado do julga mento oficial do juri que decidiu o resultado final. Aliás, não me cabe confirmar ou contestar o julgamento do juri, no que logo estaria impedido pela circunstância de me J o r n a l d e C r í t i c a 115 serem desconhecidos os demais romances que disputaram os prêmios ao lado dos vitorioEos. Tambem ignoro qual dos dois critérios (ambos lícitos) o juri seguiu : se o de premiar os melhores romances, ou se o· de premiar os menos ruins dos que .se apresentaram . . . Contudo, levo muito em conta a circunstância .do concurso que veio dar aos dois romancistas uma publicidade em grande estilo e uma evidência que se calcula pelo noticiário e anúncios dos jornais, pelos comentários dos meios literários e até pelas vitrinas enfeitadas das livrarias. E essa circunstân cia do concurso é que me leva a dar aos doi;< romances uma atenção mais demorada do que estariam a merecer em condiçõe� normais de aparecimento. O que se pode logo sentir tanto em Chove nos campos da Cachoeira como em Ciranda é o carater de literatura efêmera, transitória, acidental, que os domina de m a neira ostensiva. V em os logo que nem chegarão a ter a duração de uma moda porque não apresentam a originali dade que faz da moda um elemento transitório no tempo que passa, mas permanente no tempo que se imobiliza. E nenhuma moda verdadeira será inteiramente efêmera. Lembro-me de que nesse ponto mesmo é que se concentrou a principal teoria estética da obra de crítico de Baudé laire. O poeta se impressionou com uma constante da his tória literária que veio a ser uma espécie de exercício para a sua argúcia de. crítico. A qualquer de nós, aliás, logo impressionará que no meio de várias obras que parecem vitoriosas e estabilizadas, numa determinada época, umas se prolonguem pelo futuro � se continuem para sempre, enquanto outras não suportam sequer al guns anos de existência. Partindo desta impressão, Bau delaire concluiu que há em todas as obras uma série de elementos puramente do seu te�po. Elementos exteriores, acidentais, efêmeros. Trata-se de uma contribuição ine-1 16 A l v a r o L fn s vitavel à moda. As grandes obras, porem, trazem outros elementos que tranEcendem o tempo. Elementos espiri· tuais, estéticos, permanentes. Trata-se da segurança de toda grande obra artística. Imposaivel imaginar, assegura Baudelaire, um só quadro, ou um só livro, que tenha se afirmado sem o concurso e sem a conjunção desses ele mentos aparentemente contrários. Só t�oricamente pode remos imaginar uma obra de arte composta apenas de elementos eternos e extratemporais. Pode constituir um sonho de artista, mas nunca uma realidade, pois a pre sença do artista dentro do mundo já implica a existência de atributos acidentais e exteriores, aos quais nunca po derá fugir inteiramente. Qualquer obra-prima da litera· tura contem um elemento de "moda" que envelheceu, m as que está valorizado pela força do outro elemento de permanência que a completa. De maneira nenhuma, a obra de Shakespeare será vista e sentida pelo inglês de hoje como o fôra pelo inglês da sua época. O romance, então, mais do que qualquer outro gênero, está dcstinaJo, pela sua categoria de expressão social, a conter o maior número possível de elementos efêmeros. E' o gênero que mais dificilmente se salva da tirania da moda ; e tambem o que mais dificilmente se salva do esquecimento e da morte. Em qualquer romance de Balzac, por exemplo, vários páginas já morreram ou apresentam hoje um inte resse simplesmente histórico . Contudo, _o elemento "moda" torna-se imprescindível para que se verifique a presença dos outros elementos qu� o sustentam fora- do tempo. Por que, ao contrário dos elementos eternos, os elementos efêmeros podem se movimentar sozinhos para a formação de uma obra que não será de arte, mas que poderá simular êste carater durante um período relativamente longo . A vida literária está cheia de livros desta cs pécie ; livros que até alcançam sucesso e dão prestígio social aos seus autores. A história literária é qu·e os ignorará para J o r n a l d e C r í t i c a 117 sempre. Mais uma vez .J>oderemos repetir que são muitos os chamados e poucos os escolhidos. Entre a vida literá ria e a história literária, a proporção numérica, num cál culo otimista, é de um para cem. Cada vez se torna mais dificil aquela harmonia entre elementos eternos e de mentos efêmeros que garante a perpetuidade da obra de arte, pela vitória dos primeiros contra os segundos. Cada vez se torna mais facil a exclusividade do elemento efê mero que faz do livro um objeto que se usa num dia e se ésquece para sempre no dia séguinte. Estas reflexões me acompanharam durante toda a leitura dos romances Chpve nos campos de Cachoeira e Ciranda. Não pude dominar a impressão de que me achava diante de dois livros que não são propriamente da :p1oda, pol."que todos os grandes livros o são igualmente�· naquele sentido da interpretação de Baudelaire. Que são, porem, de um momento que passa, de uma moda isolada do elemento de duração que a completa. No sr. :Palcidio Jurandir, a moda é a de um estilo de romance ; no sr. Clovis Ramalhete, a do 1·omance em si mesmo. No sr. Dalcidio Jurandir, não será dificil sentir um romancista que ainda não se realizou ; no sr. Clovis Ramalhete, ao contrário, logo sentiremos uma absoluta dissociação entre o autor e o gênero literáiio- em que está trabalhando. O que falta ao livro do sr. Dalcidio Jurandir é a realização literária, é o dominio do material romanesco, é a con ciência mesma da 6Ua obra. Não sendo um romance de valor, sobretudo de valor litei·ário, Chove nos campos de Cachoeira revela os indícios de um romancista. Bem di ferente é a situação do sr. Clovis Ramalhete. Ele conhece, pelo menos superficialmente, as formas de romance, os >cus arranjamentos, os seus truques. Usou tudo isso com uma certa habilidade manual e dessa combinação surgiu o "romance" Ciranda. Mas não são suficientes, embora necessários, o conhecimentn racionalista e a habilidade ll8 A l v a r o L ins manual para a criação de urq. romance. E por isso é que Ciranda, da primeira à última página, constitue uma con fiSõão de incapacidade para o romance, na mesma propor· ção em que Chove nos campos de Cachoeira exibe um romancista na mais absoluta inconciência literária, na maia absoluta ignorância da sua arte. Parece-me que foi uma crueldade desnecessária juntar ao volume a entrevista que o sr. Dalcidio Jurandir enviou para o jornal Dom Casmurro logo depois do resultado do concurso. Não sei de documento mais antiliterário e mais insensato do que esse em que um autor vem contar as suoo intimidades pessoais numa linguagem terra-a-terra. Estaria tentado a falar em ridículo se não estivesse certo de que ingenuidade vem a ser a palavra mais exata para explicar uma confissão daquela natureza. Essa entrevista, agora ligada ao volume, poderá justificar o gesto de um leitor irritado atirando o romance para um depósito de inutilidades. Ma.s a verdade é que a entrevista não repre senta o romance do sr. Dalcidio Juran dir, emhora explique os sem'! defeitos mais consideraveis. Explica realmente um autor mais ou- menos ingênuo, quase infantil em vários aspectos, provinciano em todos os eentidos ( no bom e no mau sentido) , muito sincero, muito espontâneo, muito natural. A idéia que me dá · O sr. Dalcidio Jurandir é a de um escritor ainda primário, todo instintivo, um orador às avessas do romance. Contudo, o seu livro revela uma espécie de força espiritual que deve ser devidamente con siderada. Uma força ainda bárbara e caótica mas que poderá um dia apresentar resultados surpreendentes. Al guma coisa de essencial que atravessa subterraneamente ·o seu livro está a me indicar que certas condições de am biente ou de idade ou de exercício literário serão capazes de fazer do sr. Dalcidio J uraridir um romancista de alta categoria. Mas tambem é possivel que o romance nada mais seja do que o impulso isolado de um entusiasmo li- J o r n a l d e C r í t i c a ll9 terário de mocidade. Qualquer profecia seria arbitrária. O que sei é que certas páginas de Chove nos campos de ·cachoeira me surpreenderam agradavelmente, embora o conjunto me haja causado uma certa sensação de desen· canto. Isto porque o romance vai transmitindo sempre uma espécie de expectativa. Até o último instante de lei tura vamos esperando alguma coisa que afinal não se en contra. De uma maneira geral, o romance começa bem ; co meça de um modo que deixa o leitor na esperan·ça de uma ohra de podero�o desenvolvimento, As primeiras páginall são firmes, afirmativas, densas, ianto nas palavra� como no seu sentido interior. Logo adiante ,porem, assistimos a uma queda impetuosa como de um décimo andar ao Bolo. Até o fim, estas quedas vão se repetir com uma pontuali dade irritante. Parece até que o sr. Dalcirlio Jurandir se acha empenhado no propósito de ostentar repetidamente os aspectos mais frageis da sua personalidade, que em outras ocasiões se apresenta muito inteligente e muito exuberante. O mau-go8to da expressão é um destes as pectos mais constantes, poÍ.q o l"r. Dslcidio Jurandir insiste num recurso que nunca domina inteiramente : a utili zação da linguagem popular. Este é um dos maia difíceis e delicados recursos da arte literária, emBora à primeira vista se mostre tão facil e sedutor. Raros os nossos ro· mancistas modernos que conse�uem vencer essa sedução e essa facilidade ; que conseguem essa ciência sutil e muito pesaoal de faz_er com que a linguagem popular se ajuste à linguagem literária. O que muitos pretendem é a trans posição para a literatára de toda e qualquer gíria, sem nenhum exame, sem nenhuma seleção, sem nenhum dis cernimento. Confundem a linguag�m popular que tem um carater de vitaliqade com outra que nada significa dentro de um livro. •Nesta confusão é que se debate cons tantemente o sr. Dalcidio J ur�ndir. _ Ele não conseguiu 120 A l v a r o L i ns apreender a verdadeira mobilidade de uma língua, as ino� vações naturais.e necessárias que uma 1inguagem livresca pode suportar por efeito da linguagem falada habitual� n �cnte. Aliás, todo o romance Chove nos campos de Ca choeira revela uma espécie de anarquia espiritual que pode conduzir a uma grande criação literária, mas que tamhem pode a nada conduzir, extinguindo-se nos próprios extertores. Esta anarquia resulta, por sua vez, de uma espécie de tirania do meio sobre a personalidade do autor. Uma tirania que se exerce em todas as direções : na lin guagem, no assunto, na: realização romanesca. O ambiente exterior é um círculo fechado dentro do qual o roman· cista se movimenta sem a capacidade ou sem a intenção de ultrapassá-lo. Trata�se de uma limitação que é a do personagem principal, mas que acab a por - incidir sobre o próprio romancista. Por isso, uma nota dominante deste romance é a monotonia. Repetem-se c;cmpre - e não se trata de uma técnica conciente de repetição, da qual seria possível extrair os melhores resultados - os mesmos motivos, as mesmas cenas, a;; mesmas situações. O que provoca, no entanto, um efeito mais consideravel não é essa descritividade, esse inventário de costumes de uma pequena cidade, situação na qual o sr. Dalcidio Ju randir inBiste com um empenho absorvente. Talvez que os seus recursos mais, positivos estejam no monólogo, na introspec�ão, na análise psicológica. A essa hipótese me levaram algumas páginas isoladas sobre o personagem prin� cipal. E o que o sr. Dalcidio Jurandir mais necessita, para se realizar nessa direção, é o entendimt;nto da oportuni dade e do valor do "silêncio" numa obra de arte. Ele parece dominado pela ambição de tudo contar, de tudo narrar, de tudo reduzir às letras. Esta ambição pode ser fecunda para um cientista, mas não propriamente para um artista. Em literatura, então, será preciso sempre lembrar que nem tudo que se vê e se sente merece ser J o r n a l d e C r í t i c a 121 transmitido. Existe uma arte do "silêncio" mais fina e mais penetrante do que qualquer outra. Por seu inter médio é que se atinge a capacidade de sugerir mais do que definir - o que é - o segredo mesmo da obra de arte. Pois o destino de tranaformar as realidades do mundo em conceitos, é o da ciência ; o da arte, é o de transformar essas mesmas realidades em percepções. Absolutamente diferente do Chove nos campos de Cachoeira é o romance Ciranda, do sr. Clovis Ramalhete. Romance ? Acho que só a etiqueta da casa editora será capaz de sustentar esta referência. Bem sei que houve uma tão ampla revolução no conceito desse gênero lite rário que será sempre prudente hesitar antes de se negar a uma obra o título de romance. Mas no caso do sr. Clovis Ramalhete, estou certo de �e nenhuma dúvida se levantará : o livro Ciranda não é romance e o seu autor não é romancista. E nam mesmo apresenta qual quer po€sibilidade a indi�ar que o possa ser algum dia. Em Cirandct não ené'é:mtraremos qualquer elemen to que indique a presença de um romance : nem epi sódios, nem personagens, nem estrutura, como no romance tradicional ; nem tambem aquela sensação de vida, aquele tumulto interior, aquelas forças subterrâneas e desorde nadas que podem constituir um romance contra as aparên cias de fórmulas e de conceitos já antigos e estabelecidos. O que se pode afirmar do sr. Clovis Ramalhete é que é um cronista ; e um croniata de segunda categoria. Todo o seu livro é um conjunto de pequenas crônicas sobre as pensões do Catete. Veja-se este tema : a vida da pequena burguesia das pensões. Como está velho, esbatido, sur rado ! Ele tem quase que a mesma idade da literatura brasileira. Voltar a um assunto dessa espécie só se ex plica pela capacidade de renová-lo inteiramente, de dar-, -lhe uma nova fisionomia e uma nova realidade, de apre sentá-lo com novas e excitantes condições de vida. O sr. 122 A l_ v a r o L i n s Clovis Ramalhete, porem, só faz repetir o que antes cen tenas de cronistas cariocas já observaram e fixaram nas mais diversas ocasiões. Atravessam o seu livro aB mesmas figuraa de estudantes e de mocinhas, os mesmos namoros, as mesmas pequenas complicações, os mesmos insignifi cantes sentimentos. Nem sequer existe uma certa conti nuidade de narração e uma certa ligação entre os perso nagens que foseem capazes de criar para o livro um cara ter de integridade. Ao contrário : todas as P.áginas são crônicas espars�s e ligadas artificialmente. A impres ôsão de um capítulo (fiz a experiência ) será a mesma em leitura isolada ou no conjunto do volume. E esta é uma prova que nenhum verdadeiro romance suportará. Al guns capítulos, aliás, parece que não têm outra finali dade senão a de ajudar a composição gráfica do volume. Exemplo : o que se intitula "Presença de Deus!'. Nada significa. Outro exemplo está no "lntermezzo ao luar", um arranjo de palavras pretendendo um efeito poético. Mas um efeito poético que não se afirma porque fica inteiramente abafado pelo jogo sentimentalista e simples mente vocabular de uma falsa literatura. O sr. Clovis Ramalhete entregou-se de corpo e alma ao mais vago sentimentalismo. E estou certo de que o sen timentalismo constitue obstáculo contra a literatura. O sentimento é uma força da obra de arte, mas o senti mentalismo, não. O Bentimentalismo é a deturpação do seJ)timento ; é a sua corrupção, a sua doença, a sua cari catura. O sentimentalismo é a morte de uma obra de arte ; é o veneno que faz nascer morta uma: sonhada obra de arte. Todas as páginas de Ciranda revelam esse sen t imentalismo fatal. E talvez que o sr. Clovis Ramalhete não o tenha procurado dominar j;>Orque o confundiu com a capacidade de �Sentir poeticamente. Mas esta significa toda uma outra coisa. O sentimento poético não desce nunca para o pieguismo, para a banalidade, para as frases J o r n a l d e C r í t i c a 123 melosas. Algumas frases que assinalei em Ciranda mos tram exatamente o que chamo o 8entimentalismo do sr. CloVii;; Ramalhete. Hepare-se nessa pequena descrição : "Um sol louro ( ! ) , de manhã de junho, entra pela janela, u rifha nas folhas das árvores, que têm um verde tenro apontando no alto da copa." Afim de fazer uma perso nagem dizer "Sou eu", o sr. Clovis Ramalhete prepara a frase com essa advertência : "Di tinha convoca. para a la ringe uma meiguice de oferta." MaiB adiante esta ima gem de um gato : "Arqueia o dorso e boceja sob o grande sol". Ainda esta frase sobre uma outra personagem : "havia um nimbo imaterial em seus cabelos iluminados da cor de mel." Outros elementos indicativos : "Mesmo a sua cabeça adorada de ventoinha, tudo que vem . dela é como um fluido morno e bom, a remexer folhas mortas insuspeitadas no peito de Peixoto" ( . . . ) "As figuras que caminham ao lado de Sílvio deslizam trêmulas - como letras deformando-se sob um pingo d'água.'' Estou certo de que nada existe de comum entre o sr. Clovis Ramalhete e uma figura de romancista. A sua estréia neste gênero foi um equívoco. Uma simples se dução da moda (o romance é o gênero da moda) que ele não quis ou não soube vencer. A sua habilidade e o seu gosto pela literatura encontrarão, talvez, mais tarde, uma melhor aplicação e um caminho mais de acordo com as suas tendências. Talvez que venha a se revelar proxima mente como um ensaísta, sobretudo se - conseguir vencer o s·entimentalismo que o coloca _ nas portas da sub-litera tura. Lembro-me mesmo que um seu estudo sobre Eça de Queiroz me deixou uma impressão muito favoravel das suas po.ssibilidades de escritor. Prefiro, pois, o ensaísta de Eça de Queiroz ao pretendido e malogrado roman cista de Ciranda. Do en.saio sobre Eça de Queiroz ainda hoje me le'mbro. Do "romance" Ciranda estou certo de qÚe não me lembrarei mais nunca, ao fechar, como o faço agora, a sua última página. 27 de setembro de 1941. CAPíTULO XI LITERATURA E RELIGIÃO T ODOS os grandes livros religiosos . �ão tambem grandes livros de literatura. Para nós, homens do Ocidente, é a Bíblia quelogo se apresenta com esse duplo carater de · livro religioso e literário. As duas correntes mais fortes da moderna literatura universal - -a russa e a in glesa - carregam no seu desenvolvimento a presença de assuntos e inspirações bíblicae. No exílio da Sibéria., a Bíblia tornou-se a leitura exclusiva de Dostoiewsky ; a leitura exclusiva e a leitura que determinou o sentido e o conteudó da sua obra. Nenhum poeta .ou roman cista russo - lembremos Tolstoi, como um novo exem plo - deixou de sentir a literatura por intermédio da religião. Nos países propriamente ocidentais, porem, a Bíblia não tem exercido uma influência tão extensa e ti.'io profunda como essa que se identifica c o m a vida mesma do povo russo. Das grandes literaturas ecidentais1 so mente a inglesa apresenta esta fusão de eRpírito religioso e espírito literário, essa influência da Bíblia com uma realidade fundamental da vida artística. E talvez --por isso é que a poesia inglesa se tornou a mais poderosa do mundo ; que os seus romancistas chegaram a ultrapassar os franceses num gênero em que estes pareciam os mestres supremos e inexcedíveis. Mas não se deve confundir essa literatura que tem a presença e a influência da Bíblia com uma literatura especificamente religiosa. Uma lite· ratura religiosa exige vocação especial, integração abso· luta dentro da religião, perfeita fidelidade a certos prin- J o r n a 1 d e t: r i t i c a 125 cípios e a certos fins que transcendem a prÓpria . �rte�, Uma literatura dessa espécie não pode ser exigida -d�� ninguem ; nem sequer pode ser ·sugerida. Mas a litera� tura mais ampla e mais geral que a Bíblia sugestiona e prov9ca - esta não é particularmente religiosa. E' Uma literatura, apenas, com os seus princípios e os seus fins na própria arte literária. Assim, não será preciso que um escritor seja pessoalmente religioso para que possa encontrar na Bíblia um� fonte de criação artística. A Bíblia não constitue somente uma leitura edificante, pie dosa e moralista. Ela constitue uma síntese de vida, um resumo de todas -as coisas e de todos os homens. Nada existe no mundo que não se possa encontrar nas suas pá ginas, sob uma sugestão direta ou indireta. Pois a Bíblia tudo - contem e tudo exprime : o Bem c o Mal, a V erdad·e e o Erro, Deus e o Diabo. Eis porque todos os artistas podem sentir a Bíblia e fazer desse misterioso volume o seu livro predileto. Ela revela argumentos e assuntos para todo.s os homens, mesmo para os partidários do Diabo. André Gide não abandona a Bíblia, a Bíblia não sai das suas mãos, o que não impede que esteja sempre mais perto do Diabo do que de Deus. A Bíblia não limita, .como se vê, a liberdade do artista. Ao contrário : ex cita esta liberdade em todas as direções, as divinas como as diabólicas. Num plano propriamente literário, o que ela representa é um .potencial de vida artística, de sugestão criadora, de impulso para a imaginação. Pode mos dizer que todos os gêneros de poesia se ençontram na Bíplia, o que talvez não impressione muito por se tratar de um livro essencialmente poético. Impressiona muito mais a constatação de que tambem contem todas as formas de romance. Nas suas páginas e nos seus episódios serão encontrados o romance regionalista, o naturalista, o psi cológico, o introspectivo, o ideológico. Ela não é só um 126 A l v a r o L i n s grande poema, mas um conjunto variadíssimo de gran des romances. _ Em todos os paises que não possuem uma tradição bíblica, o gosto e o costume da leitura da Bíblia, a lite ratura religiosa revela-se fragil, e a literatura de ordem geral apresenta certa.s deficiências e limitações. Este é o caso da �iteratura francesa, na qual o logicismo e o racio nalismo substituem o espírito poético de aventura e sonho, tão característico dos povos influenciados pelo es pírito bíblico. Os momentos culminantes de literatura religiosa na França - ou maia exatamente : de obras li terárias sugeridas pela religiã'o - são excepcionais e se encontram em figuras isoladas, como um Pascal, um Bloy, um Bernanos. Mais uma vez, ainda neste caso, é da lite ratura francesa que se poderá aproximar a literatura hra· eileira. Raroa são os nossos escritores que conhecem a Bíblia, a1guns deles mantendo o preconceito de que essa leitura implicará compromisso com a religião. Os pró prios católicos, em geral, só a conhec_em superficialmen . te ; a Bíblia nada lhes sugere de particular, no sentido de constituir uma força para a sua vida literária. O re lmltado é que aão muito frageis, quase inexistentes, entre nós, as relações capazes de ligar a literatura e a religião. Ou encontramos o preconceito de uma incompreensão, ou encontrall)os uma ligação em bases falsas, gerando uma literatice de beatos e de devotos. O mau-gosto artístico, o · sentimentalismo piegas, o primarismo intelectual, cons tiutem os sinais mais caracte:rísticos da literatura religiosa no Brasil. E' certo que desde tempos mais antigos - o caso de Cayrú, por exemplo - apareceram, entre nós, alguns pensadores, críticos e jornalistas que salvaram o prestígio das letras religiosas. Alguns escritores têm se constituido mesmo as figuras mais inteligentes e maia re presentativas da doutrina católica no Brasil. O vazio de uma união entre a literatura e a religião, como estou co- J o rna l d e C r í t i c a 127 mentando, vai se situar no caso dos gêneros de ficção, no caso da poesia e do romance. Tanto em um como _em outro, nenhuma obra consideravel havia se construido, até há pouco, dentro do espírito religioso. Somente al gumas páginas isoladas que não serv�m como argumento em contrário ; que somente servem como indicação da existência de um novo caminho. Mas será preciso lembrar que a literatura de ins piração religiosa não deve ser intencionalmente procurada, porque, então, seriam todos negativos os seus resultados. Particularizando o problema para o plano de. cristianis mo, o que se deve fazer, logo de início; é a sua colocação nestes termos : a impossibilidade de esquecer - ou de mistificar - o que é uma arte ctistã. Este tema ocupa todo um capítulo especial no volume Art e scolastique, do fisósofo J acques Maritain. O que significa, pois, uma arte cristã? O que se exige de um artista nessa espécie de arte ? Duas condições em harmonia, explica Maritain : que seja um artista e que !l.eja um cristão. Um artista cristão realizará naturalmente, sem qualquer esforço, uma arte cristã. E lembra Maritain a simplicidade e a com· plexidade, ao mesmo tempo, dessa misteriosa harmonia de condições. O que se torna mais frequente, no entanto, é o desencontro : o artista que não é cristão e o cristão que não é artista. E qualquer esforço para uma ligação artificial conduz sempre a um resultado negativo. O obs táculo mais habitual é o do cristão que não é artista e que tenta realizar 11 ma obra de arte. O objeto que cons trói, no impulso desse equívoco, nem será cristão nem será artístico. Um católico, principalmente, nunca deverá tentar uma empresa dessa ordem, a empresa de uma arte . cristã, sem que se sinta verdadeiramente um artista. Nada deve tentar dentro da arte com finalidades de apostolado ou de propaganda. Pois a arte não serve nem para uma coisa nem para a outra ; e o que se_ verifica, alem disso, 128 A 1 v a r ·o L i n .s é que Ira constituir um argumento de contra-propaganda e de contra-apostolado. A história das letras católicas no Brasil está cheia deSI'le equívoco doloroso. Nos nossos dias, no entanto, já se notará uma compreensão mais ver dadeira e , uma sensibilidade mais alerta nesse plano em que se podem unir o espírito literário e o espírito reli gioso. Eis porque acho da maior importância uma certa tendência da literatura moderna que se concentra na ina piração religiosa, buscando diretamente a Bíblia e os grandes temas poéticos da Igreja. Assim é que alguns poe tas modernos - como os srs. Augusto Frederico Schmi.dt, Murilo Mendese Jorge de Lima - estão realizando eEaa harmonia do espírito religioso com o espírito literário que vai criar a obra de arte cristã. A poesia I'estaurada em Christo - na fórmula que se tornou famosa dos srs. Jorge de Lima e Murilo Mendes - não representa só um acontecimento religioso, mas tambem literário. Alcançou uma repercussão que não será possível desprezar, meBmo fora de qualquer cogitação religiosa ou à margem de um julgamento sobre o seu valor intrínseco ; e determinou ura sentido novo, um sentido grave e solene na maneira de olhar e .sentir certos temas poéticos. Em todas as regiões brasileiras surgem hoje alguns novos poetas que se colo cam dentro dessa inspiração bíblica e cristã. Para muitos será uma moda como qualquer outra ; uma fórmula de imitação que a nada conduzirá. Para outros, porem, será um instrumento de realização artíêtica, um caminho para expansão da personalidade. Estou certo que este é o caw do sr. Wilson Woodrow Rodrigues, cujos versos (A sombra de Deus, Rio, 1941 ) impressionam muito o leitor, menos pelo que revelam como poesia e mais pelo que indicam a respeito da personalidade do poeta. Todo o livro - nos seus temas, nas suas invocações, no seu .sen timento - revela-se como a expressão de um encontro dramático : o encontro do adolescente com a religião e J o r n a l d e C r í t i c a 129 com Deus. O livro torna-se, assim, o depoimento de um estado de eapírito que é hoje muito representativo das novas gerações. Nota-se porem, que não atingem a mesma altura o sentimento religioso e o sentimento artístico. A sombra de Deus representa mais uma oração, uma atitude humana, do que uma obra de arte. Verifica-se que o autor - por ser, talvez, ainda muito jovem - não con seguiu transmitir o seu eentimento religioso dentro de uma forma estética, que lhe fosse correspondente em força, vi bração e beleza. Por isso, guardo A sombra de Deus, mas ;;obretudo para esperar o desenvolvimento da personali dade do sr. Wilson Rodrigues, cujo nome retenho lambem na expectativa desse futuro encontro. Esse jovem poeta apresenta uma certa capacidade filosófica e uma certa . in teligência em profundidade que me levam a esperar dele uma obra qualquer de significação e importância, embora esteja inclinado a conjeturar que não há-de ser no plano da poesia. · ' Quando teremos no romance o influxo de uma grande corrente religiosa como está sucedendo com a poesia mo derna ? Por enquanto o que estamos vendo é uma vaga utilização de frases, de títulos alegóricos, sem uma realização correspondente. Este é um indício, no en tanto, que merece ser devidamente assinalado. Vários rümances modernos, de fontes e valores desiguais - estou me lembrando, ao acaso, de alguns livros dos srs. Otavio de Faria, Marques Rebelo e Erico Verissimo - apresentam no seu frontespício frases bíblicas que se relacionam com os seus autores ou com os seus personagens. E màis de cidido ainda nesse caminho mostra-se o sr. Tasso da Sil veira, ao estrear agora como romancista (Só tu voltaste?, Porto Alegre, 1941 ) . O sr. Tasso da Silveira, como se sabe, é um autor que já publicou vários livros de versos e de ensaios, exercendo, há muito anos, uma atividade literária entusiástica c va� 130 A l v a r o L i n s riada. Uma atividade que ee tem desenvolvido, bem ou mal, sob o signo do cristianismo. Ele tem afirmado vária!' vezes a catolicidade do seu espírito e a sua fideli· dade, em arte, aos princípios e aos temas inspiradores da Igreja. Mas não se deve confundir um sentimento reli gioso, que pode ser de ordem pessoal ou de ordem esté tica, com uma expressão artística, que, por sua vez, pode ser religiosa ou agnóstica, indiferentemente. O sr. Tasso da Silveira se apresenta como um exemplo típico para essa diferenciação. Ele se acha animado de um senti mento religioso mas que se desmorona todo p'orque não encontra uma correepondente expressão artística. Como professor de catecismo, por exemplo, o sr. Tasso da Silveira poderia conseguir resultados para a Igreja e para a sal vação das almas ; como escritor, porem, a sua obra nem ee apresenta artística nem cristã, sendo ainda possível que ele encontre dificuldades no Reino dos Céus, ao prestar contas do seu eqtúvoco entre literatura e religião, do exemplo em que se constituiu como um escritor sem vocação, usando e abusando do privilégio de falar do alto dos temas da Igreja . . . Alem do seu título, com muito esforço ligado a um episódio especialmente preparado para esse fim, o ro mance Só tú voltaste? nada apresenta de bíblico nem de religioso. E não nego ·o carater religioso do livro porque os personagens ·estejam colocados num sistema de vida ma terialista ou agnóstica. Aó contrário : uma situação dessa ordem, nas mãos de um romancista da categoria de Mau riac, por exemplo, iria determinar um conflito moral e psicológico que seria a característica católica do romance. Nas mãos do sr. Tasso da Silveira, porém, a situação não transcende nunca o carater episódico. Toda ela se de senvolve num plano pueril e primário de narração. lma· gino no entanto o que deve ter sido a intenção do sr. Tas1:1o da Silveira : a fixação de algumas desgraçadàs vidas J o r n a l d e C r í t i c a 131 humanas que se cruzam diante de um homem católico que vai salvá-las, ou que, pelo menos, vai tentar essa empresa. Esse homem é o personagem ·José Maria, diret�r de um instituto de artes gráficas ; as vidas humanas são os outro.s personagens, os operários desse instituto. Mas nem Joeé Maria existe, nem existem os operários. Quero dizer : oe personagens do sr. Tasso da Silveira nada mais são do que simples nomes, sem qualquer realidade literária. Acom panha-sé o romance, página por página, dentro da mesma monotonia : nenhuma vida humana, nenhuma situaçlo forte, nenhuma cena original. José Maria fica numa ati· tude de espectador, parecendo esperar que os outros per sonagens provoquem a sua ação ; os personagens, por sua vez, parecem aguardar a ação de José Maria. O que acon tece, no romance, çresenta um carater tão artificial e tão faho que se torna inacreditavel. Num sentido rigo rosamente literário e romanesco, não acontece nada. E' que o romance, na verdade, não existe nem existiu nunca, fora da intenção do autor e da sua vontade de escrevê-lo. Querem ver as duas situações que logo destroem, que logo devoram o sr. Tasso da Silveira como romancista ? Não sabe fazer viver os personagens ; não sabe conduzir 01 acontecimentoP romanescos. Lança os personagens numa determinada po�ição ; e eles permanecem imoveis atravéa .-le duzentas páginas, com uma simples aparência de mo vimento. Os a contecimentos, por sua vez, apresentam-se tão destituídos de força íntima que acabam por trana mitir uma impressão de inexistência. A expressão literária, como sempre, acha-se à altura do contendo que está revelando. Pois o estilo não é s6 o homem, mas, sobretudo, o assunto que vai exprimir. Que expressão literária, que expressão estilística se pode ria esperar de um romance como Só tu voltaste? A expressão que se lhe ajusta como uma luva. Em geral, �sta expressão é � mais çonve�ci()nalística �e s� possa Ími!J• 132 A l v a r o L i n s gínar ; um estilo de todo o mundo que só atrai a atenção"' depois de muito tempo, pela força do cansaço e da mo- · notonia. Prefiro, contudo, esae conV'encionalismo aos en.-, saios de originalidade que. o alvoroçam de vez em quando . . Nestas ocasiões, o sr. Tasso da Silveira ora se inclina parat a vulgaridade, quando pretende ser simples e natural, ora· se inclina para o preciosismo, quando pretende ser eru dito ou brilhante. Em ambos os casos, inclina-Be para o mau·gosto literário. Imagine-se que o· sr. Tasso da Silveira ainda fala de uma "ígnea ,cascata coruscando na sombra" ( página 16) e de um "filão secreto de simpatia incoer cível" (p . 27) . Vou ainda transcrever, sem qualquer .co mentário, dois trechos que· definem para sempreum autor e o seu estilo. Lidos no texto do romance a surpresa do leitor ainda seria mais forte, porque se acham em páginas e situações que não os explicam nem os justificam. José Maria está examinando o trabalho de um operário, quando o romancista lhe atribue essa impressão : "Era uma rea lização. Ao mesmo tempo, a mais lúcida pureza e a mais extrema riqueza de linhas. Os florões, as · folhas, as hastes estilizadas entrelaçavam-se em coleios ageis, em curvas inesperada,., num barroco tropicalíssimo, porem delicadq, e leV'e como uma renda. Era algo que continha, em su gestões fugitivas, o gótic-o puro e o manuelino, mas para ultrapassá-los, para mergulhar outra vez no oceano das· formas inumeraveis, num primeiro movimento de retorno do espírito às fontes da natureza." ( p. 43 ) . E :mais adian te, -sob o pretexto da música de Beethoven, é o mesmo desembestado verbalismo que se afirma : "E vieram os coros. As vozes humanas - claras, líquidas, frescas - ou prQfundas, antigas, nasceram como um milagre. Nas ceram subitamente, do fermento sonoro das vozes dos ins trumentos, como de u�limbo genesíaco. Mas o espírito já os adivinhava nesse liinho. Já os sentia pulsar nesse limbo, em dor de hTealização, em �nsiedade ele existir, E J o r n a l d e C r í t i c a 133 quando elas, enfim, libertas, alaram-se triunfalmente no cântico à alegria, a iluminação subitânea fez ressaltar, pelo contraste, na lembrança, o longo apelo interior dos instrumentos : o longo apelo doloroso em que essas vozes já se continham e de que haviam nascido por um prodí gio de transubstanciação." ( p. 60-61 ) . Mas devo acrescentar, para ser justo, que o romance Só tu voltaste? se acha perfeitamente de acordo com toda a obra anterior do sr. Tasso da Silveira. Nem os sews versos nem os seus ensaios são superiores a estas páginas que pretenderam uma categoria de romance. Toda a sua obra se desenvolve dentro de um mesmo espírito que eu cliamaria vago e nebuloso. Muitas palavras, muitas in tenções simpáticas, uma permanente boa-vontade. Mas infelizmente a literatura não se faz com · boa-vontade e intenções simpáticas. E daí a desproporção, no sr. Tasso da Silveira, entre a sua vida literária e a sua obra lite rana. Qualquer ·confusão nesse sentido será um equívoco lamentavel. Mas é o que tem sucedido no caso do sr. Tasso da Silveira. A sua vida literária está cheia de en tusiasmos, de iniciativas, de realizações ; a sua obra lite rária, porem, não tem bastante importância e bastante significação dentro da literatura. A sua vida literária pode ser estimada e admirada pelos seus amigos e corre ligionários ; a sua obra, no entanto, é um quase nada que logo se apaga na nossa lembrança. 6 de dezembro de 1941. CAPITULO XII DOIS NATURALISTAS : ALUIZIO AZEVEDO E JULIO RIBEIRO C REJO que foi Amiel quem explicou com mais precisão o mecanismo dos movimentos literários que a nossa necessidade de síntese e de compreensão subordina ao ti· tulo de escolas. O ponto de vista de Amiel é o da for mação das escolas através de movimentos que se repetem e se continuam, com ampli açõe11 e novos aspectos. Quais quer que sejam as suas nuanças e a.s suas dcnominaçõc�;�, e!'tes movimentos são apenas dois : idealismo e naturalismo . O que quer dizer : uma literatura i dealista, ou uma li teratura naturalista. Desde as primeiras manifet'taçõcs artísticas que estas duas tendências se realizam, se alter nam, se interrompem, se reatam e se continuam. E' certo que não com uma simplicidade esquemática, mas com aquela complexidade que é a caracteríetica de todos os fe nômenos humanos. E tambem é certo que não !le pro cessam arbitrariamente, mas, de um modo geral, em har· monia com ideais políticos, sociais, culturais� ao lado dos quais seguem, paralelamente, os ideais literários e artís ticos. Quando a literatura parece em choque �om o estado de vida de uma determinada época, é que esta época já e.e acha em falência : a literatura está anunciando um novo momento, do qual se apresenta sempre como uma espécie de imagem. Jean J acques Rousseau é bem uma imagem antecipada da democracia no século XIX, como Nietz�che é uma imagem antecipada dos fascismos do século XX. J o r n a l d e C r í t i c a 135 O romantismo e o naturalk.mo do século pas�a.do do cumentam, com mais evidência do que quaisquer outros movimentos, esta linha de considerações que estamos des dobrando. O romantismo se formou em harmonia com uma revolução política e social que da França se estendeu pela Europa e por todo o mundo ocidental. O que a R evolução Francesa significou contra a tirania política do E.stado, o romantismo significou contra a tirania literária do classicismo. · Em ambos os casos é sob o signo da liber dade que os fatos e as obras se levantam. Como é o signo d a liberdade que a literatura hoje reivindica, anun ciando o advento de um estado de libertação contra a tirania e o absolutismo doa sistemas fascistas. O que houve de idealístico, nos fins do século XVIII e no prinCÍpio do século XIX, foi um traço comum - tanto da vida política como da vida literária. E basta lembrar a enorme in fluência de Napoleão - um romântico em luta contra o realismo inglês - sobre a literatura que se seguiu ime diatamente ao seu exílio. E' uma influência que não está ainda suficientemente estudada e definida mas que pode Ber observada, sobretudo, nos dois maiores roman cista_€ dessa época. Porque não é só a obra de Stendhal que está cheia do nome e da revolução de Bonaparte. A de Balzac, tambem. Cheia, embora, menos do nome do que do espírito de Napoleão, cuja ambição universill foi a mesma que animou o criador da Comédie humaine. Mas a revolução vitoriosa atingiu depois uma situação de estabilidade e· de paz. Sobre as destruições dos an tigos regimes construiu-se um regime novo, já pronto para esperar as futuras forças revolucionárias que iriam se atirar conrta ele. A desordem romântica viu-se substi tuída por um sistema de ordem. E o romantismo lite rário perdeu, substancialmente, o seu sentido e a sua re percussão. O naturalismo veio, então, substituí-lo como uma expressão da nova sociedade. Com efeito, o natura- 136 A l v a r o L i n s lismo estético e literário é a expressão correspondente ao sistema de vida que a Revolução Francesa transfórmara de um sonho em uma realidade aproximada. O sonho fo:r,a o romantismo, e a realidade vinha a ser o natura liE<mo. Uma impressão geral que o naturalismo transmite é precisamente esta de segurança, de estahilidade, de sufi ciência, de euforia, de satisfação. Os mesmos sentimentos que foram oa dominantes na segunda metade do .século XIX. O mundo, na verdade, parecia tão tranquilo, que as inquietações religiosas, filosóficas ou lüerárias p assaram a constituir uma impertinênCia. Tudo se poderia resumir neste lema que as inteligências se impunham como li mites intransponíveis : nada alem do -que é visível e do que é sensível. E nenhum lugar exis tia mais p ara a me tafísica, a religião e o romantismo. O po.sitivismo torna -se a ú�Iica palavra definidora � explicativa. Positivismo filosófico, positivismo político, positivismo estético. Menos do que um criador, Augusto CÕmte foi so)netudo um in térprete de certas fórmulas já vitoriosas e dominantes. A sua filosofia é a sistematização destas fórmulas. Era na tural, pois, que a ciência positiva adquirisse um prestígio absorvente e totalizante. A literatura não escapou aos seus tentáculos. Tornou-se uma outra fórmula do positivismo do século. Tanto Flaubert como Zola - quaisquer que sejam as diferenças ideológicas e artísticas que os separam - se achavam empolgados pelo ideal de fazer do ro· mance uma obra tão exata e tão poeitiva quanto a ciência. Claude Bernard pairava sobre os livros de literatura como um mestre e um modelo. E' preciso notar, porem, que item sempre se correspondem e se ajustam ,--- nos natu ralistas - o ideal que sustentavam e as obrasque reali zaram� Nos melhores deles o temperamento artístico ui- J o r n a l d e C r í t i c a 137 trapassaV'a os limites contidos nas fórmulas puramente cerebrais. Salvavam-se com essa aparente traição. )(_ No Brasil os fenômenos literários apresentam-se com maior simplicidade. E não será preciso acrescentar que temos seguido fielmente os processos e os modelos europeus. Coincidiu que atingíssemos - através de algu mas figuras isoladas, as mesmas figuras isoladas que ainda hoje são as que determinam os acontecimentos da nossa história, em todos os setores - uma certa maturidade li terária, precisamente quando o _romantismo se encontrava numa fase de plenitude. Todos os nossos historiadores são unânimes em afirmar que a nossa emancipação literária começou pelo romantismo. Colocando certas dúvidas - que esta ocasião não é a mais própria para desenvolver - sobre a palavra "emancipação", não coloco, no entanto, nenhuma dúvida sobre a coincidência feliz que representa, para a nossa literatura, este começo por intermédio dos ideais românticos. E' que nenhum outro movimento de idéias se identifica mais exatamente com a nossa reali dade. Sobretudo a nossa poesia - que nunca se poderá desprender desse lirismo · que é, tanto para Portugal como para o Brasil, mais uma raiz do que propriamente uma aquisição literária - encontra no romantismo os seus maiores recursos de realização. E, como se sabe, o ro mantismo foi no Brasil um movimento mais de poesia do que de qualquer outro gênero. Um movimento quase que exclusivamente poético, poderíamos acrescentar. No en tanto, as necessidades e os desenvolvimentos da nossa lite ratura no sentido da prosa vieram coincidir com a vitória do naturalismo na Europa. E o naturalismo baixou tambem sobre as nossas letras na segunda metade do século XIX. Sucedeu, porem, que muitos dos nossos naturalistas se 138 A l v a r o L i n s conservaram, ou por -temperamento ou por formação, bas tante ligados ao romantismo. Talvez que seja possível dizer que o nos.so naturalismo é um romantismo pelo avesso. Romântico da filosofia, .um Tobias Barreto. Ro mântico da crítica, um Sylvio Romero. Romântico da po lítica, um Ruy Barbosa. E outro que em momento ne nhum perdeu as suaa características românticas foi Aluizio Azevedo, sem que deixasse, ao mesmo tempo, de ser o representante mais típico e mais importante do natura lismo brasileiro. I - ALUIZIO AZEVEDO Aluizio Azevedo nasceu no Maranhão em 14 . de abril de 1857 (José Verissimo · data o seu nascimento de 1858 ) , em São Luiz, no seio de uma gorda família de comer ciante português. Durante toda a vida sustentou diante da sua província um sentimento bastante complexo : uma grande ternura e uma grande raiva. Não era propria mente ódio. Era raiva, e parece que nascida de um des peito que o roeu para sempre : o de não ter obtido no Maranhão o sucesso e os aplausos que desejava mais do que de qualquer outra parte. MU:ito do seu sentimento em face do Maranhão, Aluizio o· exprimiu através de Rai mundo, o personagem de O mulato. Raimundo encon trou, em São Luíz, múitos motivos amaveis de viver, in· clusive o amor. A sociedade de São Luiz, porem, repeliu-o. E esta repulsa transformou o seu sentimento de amor num sentimento de raiva. O mulato ( que sob outros aspectos nada tem de autobiográfico ) é a história do sentimento de Aluizio Azevedo em face da sua província. Num pre fácio para a t�rceira edição deste livro, o romancista apresenta a sua amargura sem nenhuma cerimônia. Depois de falar, com muita ênfase, do sucesso do livro, da ra pidez com que se vendiam os seus exemplares, da crítica J o r n a l d e C r í t i c a 139 entusiáotica de um Capistrano de Abreu ou de um Tobias· Barreto, não se esquece de juntar, a tantos nomes famosos, a opinião de um pobre joinalista maranhense que o ata cara, aconselhando-o a deixar a literatura pela lavoura. "A lavoura, meu estúpido ! à lavo�ra ! Precisamos de braços e não de prosas em romances ! Isto sim é real. A agricultura felicita os mdivíduos e enriquece os povos ! A foice ! E à enxada ! Res non verbal" - eis um pe queno exemplar dos inofensivos ataques com que um vago jornalista se atirava contra Aluizio. Mas Aluizio sofria de"medidamente nestes ataques, porque vinham do Ma ranhão, para onde se volvia a su;:t maior ambição de glória. A 'verdade, porem, é que o romancista não operou nenhuma transigência, nem intelectual nem moral, para se conciliar com a sua província. Sempre se· ,colocou diante dela, dos seus costumes, dos seus preconceitÓs, numa atitude de combate. Uma atitude que tudo estimulava : o seu temperamento, a sua formação romântica da moci· dade, a sua educação li terária no naturali smo. Uma ati tude ·que o meio social ainda mais exacerbava com a indi ferença ou com a reação. Como em todos os naturalistas, o espírito crítico ocu· pa na obra de Aluizio Azevedo um papel fundamental. Começou desde a mocidade seu destino de inconformista. O seu primeiro gesto nesta direção é o de rebelar-se con tra a carreira comercial que o pai estava lhe preparando. i'az, por isso, a sua primeira viagem ao Rio, onde se de mora um ano ( 1876-1877 ) como ilustrador de revistas. A maneira de Raimundo, em O mulato, volta depois ao Maranhão para recolher a herança de seu pai. Informa o sr. Nogueira da Silva que nesse tempo Aluizio era uin dandy. "Tinha, então, vinte anos : era delgado, elegante, lindo. Vestia-�e bem. Nas ruas, na eociedade, nos bai les, seu convívio era disputado com interesse pelas suas 140 A l v a r o L i n s formosas patrícias." O retrato exterior, neste ponto, cô'' mo em tantos outros, se assemelha muito com o de o;eú personagem Raimundo. Mas o dandismo não haveria de ser a nota dominante de Aluizio Azevedo. As suas ativi dades se ampliam no domínio da literatura e das idéias. Em 1879 publica o seu primeiro romance - Uma lágri de mulher - na pior maneira romântica, .como notou José V erissimo, e inteiramente destituído de valor e de importância. Exercita, ao me.smo tempo, o seu espíri to crítico em debates políticos e religiosos, através de A Pacotilha e O Pensador. Lutas ferozes contra o clero e o governo, cuja repercuesão e escândalo se podem imaginar, pensando no que seriam numa cidade provinciaJia de 1880. Esta data tambem representa na vida de Aluizio o seu primeiro grande episódio : O mulato - cuja pri meira edição é de 1881 - o mesmo ano em que animado por um sucesso rara1nente repetido nas nossas letras veio se fixar no Rio de J aneiro. E começa, então, para Alui zio Azevedo uma intensa atividade literária, que se inter rompeu para sempre, em 1894, com a sua entrada para os serviços diplomáticos. Escreveu todos os seus livros- na mocidade, dos vint� aos trinta e sete anos. Até esta ida de foi exclusivamente um homem de letras, sem qual quer emprêgo ou ocupação diferente, circunstância que sempre fazia questão de alegar com nm sentimento de orgulho. Parece-me realmente que representa, no nosso meio, o primeiro caso de um escritor vivendo do seu ofício. O sr. Rodrigo Octavio, que o conheceu, conta nas suas Memórias como Aluizio trabalhava nas sU:as salas de um velho edifício perto do Campo de Santana, com a mesa cheia de bonecos que desenhava para ter uma sen sação física e direta dos seus personagens. Estava pos suído do gosto e do respeito da sua arte, dentro da qual levantara o plano de uma obra romanesca que visava toda: a vida nacional, nos seus aspectos mais diversos. O que J o r n a l d e C r í t i c a 141 haviam realizado Balzac e Zola ia-se tornando um sonho de todos os naturalistas. No caso de Aluizio - um pou co por deficiência do romancista e um pouco por defi ·ci ência ao meio social - o sonho ficou muito acima de tudo o que ele pôde fazer. Tambem as atividades de Aluizio Azevedo - atividades exclusivamente literárias, e portanto excessivas e apressad�s - impediam que rea lizasse uma obra deacordo com o seu plano. Não se tratava nem de leviandade, nem de improbidade. Alui zio tinha a conciência da verdadeira literatura e sofria desesperadamente por senti-la fora das suas mãos e das suas possibilidades. Os seus a:1i:tigos referem a angústia com que se via obrigado a escrever, desmedidamente, li v-ros sobre livros, sem que estivesse fiel à vocação ou aos deveres essenciais do seu ofício. Quase todos os seus ro mances foram e:critos para os folhetins de imprensa, obe decendo a uma necessidade toda ligada à sua profissão jornalíatica. Muitos deles, por isso, sãô hoje indignos de leitura. Mesmo os melhores revelam os prejuízos de uma composição tumultuária e de prazo fixo. E talvez que da insatisfação e da revolta com as quais escreveu os seus livros é que tenl�a nascido em Aluizio Azevedo o rompimento .com a literatura e o seu de�dem pelo antigo ofício, depois da sua nomeação para os consulados no estrangeiro. O sr. Rodrigo Octavio, que o visitou na Itá lia, diz que o romancista ainda se achava animado de cer tos planos d:e trabalho literário para a sua volta ao Brasil. O que se sabe, porem, é que, de passagem pelo Rio, quando ia assumir o consulado brasileiro em Bue nos Aires, Aluizio Azevedo pediu aos seus amigos que não lhe falassem sequer de literatura, atividade que ha via riscado para sempre da sua vida. E durante vinte anos de diplomacia - com exeção do ainda inédito ]a pão, livro de notas de viagens - nada resta para mostrar que não era sincera esta sua disposição. 142 A í v a r o L i n s Contudo, bastarão três dos seus livros - O mulato, Casa de pensão e O cortiço - para as#egurar uma pre sença inalteravel de Aluizio Azevedo na literatura brasi· }eira. Escrito no Maranhão, O mulato representa uma espécie de crônica da vida provinciana, nos seus aspectos morais e sociais mais característicos. Diante das paisa• gene, das festas populares, dos lugares pitorescos, Afuizio Azevedo se coloca numa atitude de aceitação e de amor. Mas diante dos homens, em geral, a sua atitude é de crí tica e de combate. De qualquer forma, este seu romance de mocidade - como todos os outros posteriores - con serva um valor documental ·de primeira ordem. Estou certo de que nenhum outro romancista, como .Aluizio Aze vedo� se presta tanto .como documento pa.ra os sociólogos e os historiadores que venham a estudar e definir a so ciedade provinciana e metropolitana do Segundo Império. Na sua época, ninguem descreveu melhor do que Alui zio os serões familiares, as suas conversas, as suas preo cupações. Ninguém o ultrapassou na capacidade descri tiva de certos grupos sociais, de certas paisagens, de cer tas festas pQpulares. A sua página de O mulato sobre uma noite de São João provinciana é uma pequena obrá- • prima. E' �do uma documentário da vida provinciana que varia das preocupações religiosas e políticas até as situações e objetos mais insignificantes. Ficamos sabendo os detallies mais pitorescos e característicos a respeito dos casamentos, das doenças, dos remédios, dos hábitos, dos tiques, dos preconceitos da vida pl"ovinciana. O olho de Aluizio Azevedo parece conter a ambição de tudo ver, de tudo fixar. O que faz, no entanto, o centro deste ro mance é um problema humano e social : o da adaptação do mulato na sociedade brasileira. Aluizio Azev·edo ele vou o episódio romântico de um namoro entre um mulato e uma menina branca para o plano genérico das cogi tações sociais. Realmente, o caso de Raimundo repetia- J o r n a l d e C r í t i c a 143 -se por toda p arte, no Brasil. O caso do mulato que Ja não é da raça negra e que ainda não pode ser da raça branca ; que permanece indefinido numa sociedade hesi· tante entre preconceitos raciais e o fato concreto da com pleta mis�egenação. A sua inteligência, a sua educação, a sua elegância encontram obstáculos muito firmes nos grupos sociais que se sustentam de uma falsa tradição de pureza étnica. Era uma oportunidade tambem para que Aluizio se voltasse para o problema da escravidão, que nesse tempo começava a ser objeto de uma propaganda em grande estilo. Os abolicionistas · encontravam nos literatos os eeus melhores aliados. As peças literárias de Castro Al ves continham um poder de comoção à altura dos discur sis de Joaquiin Nabuco. Um poder de comoção nada des prezível traziam tamhem os livros de Aluizio Azevedo. Em todos eles - não esquecendo, principalmente, a fi gura e a história de Bertoleza em O cortiço - encontra· mos um sentimento de protesto e de revolta contra o sis· tema escravocrata. O que deveria representar um ele mento de muito êxito e de muito sucesso, numa socieda de que reagia, em face da literatura, quase que exclusiva mente pela sensibilidade. Em O mulato, a melancólica existência da mãe de Raimundo constitue um instrumento de propaganda contra a escravidão. O excessivo senti mentalismo destas páginas representa hoje uma fraqueza do romance, mae deve ter representado uma força podro sa por ocasião do seu aparecimento. Aliás, logo nas pri· meiras páginas de O mulato, a velha Maria Barbosa é um pretexto para que se tenha a impressão do tratamen· to dos escravos nas mãos de uma viuva e nervosa e estú pida. Num mesmo trecho o romancista define um cara ter pessoal e um comportamento social : - "Era uma fúria ! Uma víbora ! Dava nos escravos por hábito e por gosto ; só falava a gritar e, quando se punha a ralhar, in· 144 A l v a r o L i n s comodava toda a vizinhança. lnsuportavel ! Maria Bar bosa tinha ·o verdadeiro tipo das velhas maranhenses criadas na fazenda. Tratava muito dos avós/quase todos portugueses ; muito orgulhosa ; muito cheia de escrúpulos de sangue. Quando falava nos pretos dizia os sujos e, quando se referia a um mulato, dizia o cabra." O estudo do mulato propriamente apresenta-se, neste romance, com muito mais firmeza e com muito mais objetividade. Antes de tudo, Aluizio soube compreender que a posição do mulato, naquele momento, era uma cri: se e nada tinha de definitiva. Uma sociedade em forma ção não poderia 'por muito tempo impedir a ascensão e a integração de um tipo étnico tão animado de vitalidade e de potencial renovador. E o romance de Aluizio já prevê por que meio o mulato penetrará na sociedade dos brancos ; já prevê que será por intermédio da mulher branca. O mulato passou a representar, para a mulher branca, a mesma ·sedução que a mulher negra represen tara p ara o português. Uma transposição muito lógica, que vinha no próprio sangue. Este trecho de O mulato é, por isso, um trecho histórico por antecipação : "Não lhe chegava às mãoB um só convite para baile ou para simples sarau ; cortavam muita vez a conversação quando ele se aproximava ; tinham escrúpulo em falar na sua pre sença de assunto.s aliás inocentes e comuns ; enfim - iso lavam-no, e o infeliz, convencido de que era gratuita merÍte antipatizado .por toda a província, sepultou-se no seu quarto e só saía para fazer exercícios, ir a uma re união pública, ou então quando algum dos seus negócio>� o chamava à rua. Todavia, uma circunstância o intriga va, e era que, se os chefes de família lhe fechavam a casa, as moças não lhe fechavam o coração ; em sociedade o repeliam todas, mas em particular o chamavam para a alcova. Raimundo via-se provocado 1por várias damas, solteiras, casadas e viuvas, cuja leviandade chegava ao J o r n a l d e C r í t i c a 145 ponto de mandarem-lhe flores e recados, que ele fingia não receber, porque, no seu carater educado, achava a <:oisa ridícula e tola." Raimundo e Ana Rosa, figuras representativas nunt plano de simbolismo social, são, no entanto, bastante in características no plano propriamente literário dos per sonagens de romance. O mulato, aliás, não é o livro em que Aluizio Azevedo mais se afirma como criador de figuras e de tipos, apesar dos excelentes perfis - simples perfis, porem - de figuras da sociedade marauhense. Aqui se encontram apenas os esboçose os traços que se fixarão com maior firmeza nos personagens de Casa de pensão. Alem disso, o sentimento de revolta e o espí rito excessivamente cr.íticô, com os quais se sustentou da primeira à ultima página, não formavam um complexo interior muito propício para aquela objetividade que to do personagem exige no seu carater de . verossimilhança e realidade. Estou penaando, por exemplo, no que há de absurdo e fantástico - ·pela exagerada preocupação do caricatura! - em certos personagens como o conêgo Dio go. Ou então - por motivos opostos de desmedido ro mantismo - no que há de vago e flutuante em persona gens da espécie de Raimundo e Ana Rosa, ,cujas relà ções e devaneios se processam em algm;nas páginas im possíveis de pieguismo e de falsa literatura, como todas aquelaa que descrevem os episódios finais da troca de cartas e do rapto. Casa de pensão, ao contrário, é o mais romance de todos os romances de Aluizio Azevedo. E este resultado parece alcanllfldo pelo equilíbrio que realizou entre o que é pessoal e o que é social. Os seus personagens adqui rem todos, nestas páginas, uma individualidade mais fir me e mais definida. E' certo que não teve o talento do seu mestre Eça de Queiroz para a criação de tipos que passam a ter uma existência independente, uma vida que 146 A l v a r o L i n s ultrapassa os limites da literatura, Não criou nenhum Acácio, nenhum Pacheco, nenhuma Juliana. Mas perso nagens da categoria de João Coqueiro, Amâ,ncio, Ma da me Brizard, Hortênsia - não são muito comuns no ro mànce brasileiro. E todos estes personagens se �do bram no plano social, que foi sempre, ao que p arece, a preocupação fundamental de Aluizio Azevedo. Com a diferença de que a sociedade que está revelando nestes últimos romances não é mais a provinciana ; é a do Rio de J aneiro, muito ínais extensa e complexa. E em dois aspectos, pelo menos, o romancista conseguiu fixá-la : o da casa de pensão e o do cortiço. Dois problemas de ha bitação que se apresentam, aliás, do maior interesse para os sociólogos e os historiadores. Tambem o problema da educação dos jovens brasileiros, transportados da pro� víncia para a metrópole, acha-se colocado da maneira maia sugestiva em Casa de pensão, através da vida falha· da de Amândio, Todo este romance, aliás, é uma longa série de suges tões sobre os pr�?blemas educacionais da juventude. Alui� zio .Azevedo, para atingir suas conclusões, emprega o "método experimental" que Zola indicava como sendo um direitq e um dever do romance naturalista. Apenas, esta experimentação não poderia apresentar o mesmo cara· ter de uma experiência científica. Com efeito, todo o equívoco do romance experimental foi o de confundir literatura com ciência. O de confundir uma experiên cia de romance - realizada na imaginação - com uma experiência científica - realizada através de provas po� sitivas. Uma mesa .de escritor não é certamente um la boratório de cobaias. Pouco importam, porem, as teo rias literáriaa. Mesmo num romance ex:perimental, é possível que a uma conclusão menos científica corres panda uma conclusão verdadeiramente artística. Em O hçmtem� numa tentativa destas, AluiziQ {:r;.tça,esªrã intei- J o r n a l d e C r í t i c a 147 ramente. Nem realizou um livro de ciência, nem reali zou um livro de literatura. Casa de pensão, porem, tem uma significação completamente diferente. O romancis ta não se encontra mais diante de um tema de ciência po� sitiva ; a experiência do seu personagem é psicológica e não fisiológica, como em O homem. Poderá desenvol ver a sua imaginação sem trair a experiência, e a sua experiência sem trair a imaginação. Amâncio, sendo, em hora, de um certo modo, uma cobaia de experimentação, não deixa de ser um personagem. E todas as outras figu ras do romance suportam hem uma idêntica afirmação. A casa de · pen�>ão, -com seus hóspedes característicos, com seus costumes próprios, com seus escândalos habituais, representa toda uma experiência social. A pensão, no romance de Aluizio, tem o mesmo papel que o ;internato em O Atheneu: é uma vi4;la à parte, um mundo' fechado, como um navio de longas viagens. Perde-se o contacto com a terra, com o exterior. Neste mundo fechado desenvolve-se a experiência de Amàncio ; a experiência de duas educações que se cho cam e se :repelem, com as mais perturbadoras consequên cias. Aluizio sugere, assim, um problema que me parece da maior importância na formação moral e cultural dos brasileiros : a ausência de harmonia entre a educação fa miliar e a educação pública, E notando.-se, na própria educação familiar, uma outra desharmonia : a excessiva suavidade das mães em contraste com a excessiva austeri dade dos pais. A situação alterou-se hoje nos centros mais adiantados ; no interior, porem, a educação de Amân cio continua a se repetir. E se repetem igualmente aque la instabilidade e aquela insegurança de carater que uma educação pública ainda hesitante e anárquica só fará agra var. A este propósito, deve-se notar que todos os livros de Aluizio Azevedo são rigorosamente brasileiros : nos seus 148 A l v a r o L i n s assuntos, nas suas idéias, no seu e.stilo. E O cortiço apre senta este carater num grau mais acentuado do que qual quer outro. Dá a idéia de alguem - como é o caso de Aluizio Azevedo - despedindo-se do seu pais, por in termédio do último dos seus livros consideraveis. E re vela tambem O cortiço que a arte de· Aluizio Azevedo se achava num caminho ascendente, que se destinava a uma concretização muito mais perfeita, se ele não houvesse interrompido sua carreira literária. Neste romance, Alui zio fez recuar os perso�agens, pessoalmente, para um plano quase que secundário ; o que se encontra no pri· meiro plano é uma dualidade de existências coletivas e simbólicas : o sobrado patriarcal e a habitação dos cortiços. Não são os personagens que determinam a ação ; é a ação, resultante do ambiente, que vai criando e movimentando os personagens. E esta inovação é que lhe deu oportuni dade para se revelar numa habilidade extremamente di fícil : a de movimentar grupos . e massas de homens. Mas movimentá-los num todo, numa unidade orgânica, fazen do de um agrupamento social um verdadeiro personagem. Na verdade, o principal personagem neste romance nem é João R o mão, nem Bertolesa, nem Miranda, nem Rita. O principal personageiL é o cortiço, que aparece, docu mentariamente, em toda a sua história : nos seús prin cípios, na sua plenitude e na sua decadência. Volta Aluizio Azevedo ao problema da escravidão por intermédió de Bertolesa. Todo o enredo do roman ce nesse sentido vai constituir um novo protesto contra a escravidão. Torna muito ostensiva. e muito cruel a misé ria de Bertolesa para fazê-la mais convincente e mais sen timental. Teria o romancista pensado em representar João Romã o e Bertoleza como personagens simbólicos? De qualquer forma, devemos notar que se desenvolve en tre ambos aquela mesma situação que a propaganda abo licionista apontava, por toda parte, como uma justifica- J o r n a l d e C r í t i c a 149 ção dos seus fins. O português que constrói a fortuna e o sucesso sobre o trabalho do negro impossibilitado de qualquer ascensão - eis uma realidade que é romanesca e histórica, ao mesmo tempo. Dois destinos diferentes erguidos sobre dois estados psicológicos tambem dife· rentes : a ambição do homem branco e a passividade do homem negro. Mas não só neste ponto O cortiço constitue um livro representativo do Segundo Império brasileiro. Ao lado da cia&se popular dos cortiços Aluizio Azevedo representa a classe burguesa dos sobrados. A simpatia com que descreve a gente dos cortiços e a antipatia com que ex· põe a gente dos sobrados - revelam o romancista de es pírito popular an'imado de prevenções contra a burgueaia. Sobre o comerciante Miranda e a sua família faz pesar, por exemplo, as situações mais detestaveis e tristes : o egoísmo, o impudor, ainfelicidade. E' uma família de doentes maiores dentro do conforto da burguesia, em con traste com a saude moral dos pobres-diabos do cortiço dentro das condições miseraveis de uma absoluta pobreza. Ao lado dos dois ambientes, sentem-se o espírito e o corpo de uma cidade inteira. Não de uma cidade para da. mas de uma cidade que cresce, que se modifica, que se transforma. A parte que me parece mais resistente neste romance é realmente esta sua capacidade de trans mitir a sensação do crescimento interior e exterior de uma cidade. Aluizio nunca pôde manter uma atitude psicológica em face do homem isolado, mas soube, com uma eficiência surpreendente, penetrar no interior do� agrupamentos humanos. Em O mulato, é a vida da pro víncia ; em Casa de pensão, é a habitação coletiva ; O cortiço, é muito mais : é· a cidade do Rio de J aneiro numa das fases mais particulares e mais caractel'Ísticas da sua .J!ormaçã'o histórica. Com O oortiço, Aluizio Aze vedo constituiu-se um romancista da cidade que poderá 150 A l v a r o L i n s ser colocado ao lado de Manuel Antonio de Almeida e Lima Barreto. Não digo ao lado de Machado de Assis porque esta comparação seria demasiado violenta para Aluizio Azevedo. * Escrevi que Aluizio Azevedo é um romancista de� sigual. E muito mais desigual, aliás, do que se possa imaginar sem a leitura da sua obra. E' um autor que merecia uma edição de "obras escolhidas" e nunca de "obras completas". Através das "obras completas" Alui· zio aparece terrivelmente contraditório, pela diferença ab� surda entre uns livros e outros que parecem extremos de uma cadeia literária, pela diversidade de gosto e de mau� ·gosto que se juntam e se repelem, pela coexistência de situações artísticas fundamentalmente opostas. A única contradição de Aluizio Azevedo é realmente esta : a de ser assim contraditório sendo um escritor da raça dos sim< plee. Não falo só de obras como A condessa V esper ou Girândola de amores, que são dignas do mais absoluto esquecimento. Incluo nesta mesma categoria outras obras mais consideradas, como . O coruja, O homem e Livro de uma sogra. São três tentativas de evasão que resultam inteiramente falhadas. O coruja é uma tentativa de ro mance psicológico, muito cheio de .símbolos, de metáforas. de diálogos banais e cansativos. Uma psicologia superfi cial e mundana ao gosto dos apreciadores de A · Dama das Camélias, com o qual se parece em muitae das suas pá ginas. O homem é uma tentativa de romance científico, uma monografia parecendo de estudante de medicina no entusiasmo primário dos seus primeiros contactos com a carreira profissional ; e vale a pena repetir que nem re presenta uma obra de ciência nem uma obra de arte. Um volume híbrido e inútil. O Livro de uma sogra ê uma tentativa de romance moralista ; e, como todas as J o r n a l d e C r í t i c a 151 outras tentativas anteriores, significa um fracasso formal e inapelavel. A desigualdade de Aluizio Azevedo, porem, não se revela somente desta maneira, de uns livros para outros. Revela-se em qualquer deles isoladamente. Mesmo nos seus melhores romances - O mulato, Casa de pensão, O cortiço - encontramos muitos trechos insuportaveis, so betrudo pela linguagem e pelo estilo. Uns são trechos em que Aluizio abusa dos elementos patéticos e senti mentais. Outros são trechos em que se debate dentro da vulgaridade mais mesquinha. Mas todos estea trechos, nos três romances citados, surgem com um carater aci dental que não atinge o conjunto global, , enquanto que, nos demais romances, os trecho's se repetem e se acumu� lam, tanto no espírito como na expressão, de um modo tão geral que se constituem o tom dominante e absorvente da obra toda. E será preciso ainda não esquecer certos defeitos fundamentais de Aluizio Azevedo, um realista que nunca deixou de ser romântico : a excessiva e exclusi· va exteriorização dos seus personagens, os aspectos pan fletários e tumultuosos de t'antas das suas páginas, as suas constantes' variações dos planos mais vulgarmente reais aos planos mais absurdamente fantásticos. Aluizio su portaria muito bem esta proposição do velho Guyau : "Mais, si l'on trouve maint exemple de réalisme ridicule dans le romantisme, on trouve maint exemple de roman· Úsme manqué chez nos réalistes contemporains." O que se conclue, porem, é que, apesar do seu cara ter de romancista "primário", Aluizio Azevedo ocupa um lugar importante na literatura brasileira. Ocupa-o ex dusivamente por intermédio dos três romances - O mulato, Casa de pensão, O cortiço - que a critica, o tempo e os leitores selecionaram como a parte duradoura da sua obra. E mais do que uma significação literária, estes livros carregam uma signuificação histórica. Aluizio 152 A l v a r o L i n s Azevedo vem de uma época que poderá ser considerada a infância do nosso romance. Quando se fizer, por isso, uma história rigorosa do verdadeiro romance brasileiro, ao lado de Manuel Antonio de Almeida e Machado de Assis -· num plano simplesmente histórico, repito - ele figurará como um dos seus iniciadores. Como uma fi. gnra das primeiras horas. li - JULIO RIBEIRO Ao lado de Aluizio_ Azevedo costuma-se colocar Ju· lio Ribeiro como um outro autor representativo do -natu· ralismo brasileiro. Não sei de equivoco maior do que este. Julio Ribeiro não chegou sequer a ser um mau romancista. Na verdade, não foi um romancista de espé cie nenhuma. Acredito, por isso, que não merece ser con siderado ou estudado em qualquer publicação que tenha um carater estritamente literário. E se me ocupo, agora, deste falso romancista, é pela obrigação de uma referên cia dentro de um assunto que me foi proposto ( l ) . Espe ro, aliás, que não me repetirei, a propósito deste autor, em nenhuma outra ocasião. Insisto na afirmação de que o caso . de Julio Ribeiro é o de um simples equivoco que o · sucesso público veio tornar um pouco complicado. Dizem que foi um exce lente gramático. Dizem que foi um excelente homem d� hem. Os seus estudos filológicos são geralmente conside rados muito inteligentes e muito esclarecidos para a sua época. As suas atitudes de homem são ainda hoje admi radas na independência e na honestidade das suas mani festações. Não creio, porem, que tanto o gramático como ( 1 ) Este estudo foi escrito para um número especial da Revista do Brasil dedicado ao romance brasileiro. J o r n a l d e C r í t i c a 153 o homem tenh am se eleV'ado muito acima daquela zona de mediocridade intelectual que foi sempre a atmosfera de Julio Ribeiro. Não ultrapassavam a mediocridade nem mesmo a sua impulsividade, a sua combatividade, o seu temperamento apaixonado e delirante. Todas as ve zes que deixava de ser medíocre, Julio Ribeiro se tor nava, apenas, ridículo. E' o cru;o do seu famoso romance A carne. E o sucesso de Julio Ribeiro nasceu todo deste "romance" ; raros sã. o o s que conhecem os estudos do gra mático e as atitudes do homem. No entanto, A carne representa precisamente um conjunto de penosas variações entre a banalidade mais comum e o ridículo mais delirante. Quero explicar que ne.m de leve estou me referindo aos aspectos morais do livro, que não interessam, senão incidentemente, à críti ca literária. A ética, sabe-se, é uma disciplina ' bem dife rente da estética. Tanto nos seus meios como nos seus fnis. E uma obra so será imoral se não for uma obra de arte. A carne, contudo, representa um caso à parte de qualquer classificação, pois nem sugere interpreta ções estéticas nem interpretações éticas. Tudo neste livro é tão absolutamente bête que não há nele o menor lugar para a imoralidade. Não há lugar para sentimento ne nhum, pois toda a sua leitura provoca uma invencivel repulsa de ordem inteletual. Somente para os adolescen tes e os imhecís A carne poderá ser um "excitante';. Li terariamente, é um livro que só nos deixa indiferença ou aborrecimento. Ou mais exatamente : para a literatura, estelivro não existe. Eu gostaria de citar alguns trechos do "romance" para transmitir uma impressão mais objetiva do que estou afirmando. Mas seria necessar10, então, citar o livro todo, que é de uma comovente uniformidade, na sua insignificância ou no seu ridículo. Em todos os aspectos : no enredo, nos personagens, no estilo. Alem disso, este 154 A l v a r o L i n s estudo a fazer significaria uma homenagem que a obrá de Julio Ribeiro não merece. Na verdade, seria absurda ou contraditória a realização do estudo de um romance que não chega a ser romance. De um romance que não atingiu o plano da literatura. E parece-me que esfe foi realmente o único erro de José Verissimo em face de J u lio Ribeiro. E' certo que José Verissimo soube ver a fragilidade do livro, mas tratou-o como obr3 mal reali zada e não, o que serfa exato, como obra inexistente na literatura. Por isso, o que importa, agora, é a proposição de um desenvolvimento lógiço para a crítica de José Ve riSSimo. Falando, poi.s, de Julio Ribeiro, como rOlil3n cista, não tenho outro fim senão o de propor que -nin-. guém o faça mais nunca. A presença de Julio Ribeiro na história do romance brasileiro é um equívoco. Julio Ribeiro é um autor fora da literatura. Março de 1941, CAPiTULO XIII C O N T O S A NDO no'stálgico - e estou certo que os leitores tam· bem andam - na expectativa de um livro de con� tos que me agrade de uma maneira completa. Lembro -me que podemos estabelecer uma certa continuidade e um certo espírito de evolução a propósito da nossa poesia como do nosso romance ; a propósito do conto, porem, essa continuidade e essa evolução já não apresentam o mesmo desenvolvimento em linhas certas e firmes ; o seu desenvolvimento se opera num sistema irregular de on� das. Temos épocas mais favoraveis ao conto ; temos au t;;res que se realizam com felicidade nesse discutido gê� nero literário. Nestes últimos dez anos - não esquec�n do os srs. Monteiro Lobato e Annibal Machado, que são mais antigos - surgiram vários contistas brasileiros que deram ao gênero uma animação e um sucesso dos mais significativos para as nossas letras. Nenhum desses con� tistas, no entanto, apareceu em livro desde o momento em que esta secção de critica se iniciou. No ano passado, seis livros de contos me foram enviados, sem que nenhum deles representasse um acontecimento literário ou artísti co. Neste ano somente quatro volumes chegaram ao meu conhecimento ; e embora sejam alguns deles de uma cate goria bem superior à do ano anterior, não encontro ainda motivo nem ocasião para um comentário entusiástico e sem reserva. Somente um deles se apresenta excepcional, mas ver-se-á porque no fim desta cromca. E não incluo nesse número o conto "A sereia verde", d�!_ sra. Dinah 156 A l v a r o L i n s Silveira de Queiroz, que verdadeiramente .me agradou muito, porque se trata de uma reedição em volume, da tando de 1938 a sua primeira publicação. Os contistas não gostam, em geral, que seja o conto classificado como um gênero menor. Não desejo discutir agora o . s dois lados dessa classificação, sobretudo por jul-] . ' gar que o prestígio e a grandeza de uma obra somente1 dependem do escritor que a realiza. Mas tudo indica que aos próprios contistas cabe a responsabilidade de não ha· ver para o conto um lugar mais extenso nos estudos crí ticos e nas histórias literárias. Nnenhum contista se con centra exclusivamente nesse gênero de literatura. Nem mesmo estão fora desse caso as suas duas figuras mais famosas : Edgar Poe, que foi um poeta, e Guy de Mau passant, que foi um romancista. De uma man�ira ge ral, todos os contistas são tambem poetas ou são tambem romancistas. E por isso é que nos melhores historiado res de uma história literária tão variada e tão abundante como a francesa o conto nem sequer tem a honra de um capítulo independente ; é no capítulo do romance natu ralista que sempre aparece o estudo da ohra de Guy de Maupassant. Nos Estados-Unidos, no entanto, onde �e apresenta mais valorizada a tradição de Poe, é onde o conto ocupa um lugar mais consideravel, enchendo um enorme espaço literário. F; não será difícil perceber o esforço que alguns autores modernos, em várias literatu ras, inclusive na brasileira, realizaram ultimamente com o propósito de fazer do conto um gênero independente de modo absoluto. Uma independência contra o romance, sobretudo. Estou, no entanto, no número dos que não acreditam que o cami - nho da independência do conto seja uma reação contra o romance. No que acredito é numa ligação íntima entre o romance e o conto, numa partici pação de ambos em elementos comuns e não susceptíveis de dissociação. Todos os gêneros literários, aliás, se ligam e J o r n a l d e C r í t i c a 157 se comunicam muito mais do que se possa julgar através de uma contemplação exterior e formal. Quanto ao con· to e ao romance, a ligação apresenta-se muito mais pro funda : uma ligação de família, uma ligação pelo sangue. O que não quer dizer que pocsam ser negadas as caracte rísticas particulares e essenciais do conto ; e peta inten sidade e aperfeiçoamento delas é que se tornará indepen dente, sem p1·ejuizo dos seus outros atributos que tam hem pertencem ao romance. Tanto assim que na sua marcha de diferenciação a todo custo o conto chegou a um resultado verdadeiramente contraditório. Pretendeu-. do desligar-se das característicllê do romance, acabou se desligando das suas próprias caractet1sticas, das caracte·· rísticas do que é conto. Tenho certeza de que não se trata só de uma evplução, como a do romance e a da poe úa, mas tambem de uma mutilação. O conto mo·dCI·no é uma reação contra alguma coisa de essencial e caracterís· tica que não pode deixar de exi-stir no conto. E em que sentido se distanciou tanto o conto moderno da antiga forma de conto ? Parece-me que mais no assunto do que propriamente · na técnica. O seu centro era antigamente o enredo. No romantismo, este enredo encontrou nos ele· mentos fantásticos alguns dos Geus melhores temas, sendo que os contos . ingleses, de preferência, estavam cheios de fantasmas e de mistérios. Esta forma resistiu ao próprio naturalismo, dentro do qual Maupassant es<'reveu vários contos dessa espécie fantástica. Não haveria de resistir, porem, aos contistas modernos, que se voltaram espe cialmente para o quotidiano, para o concreto, para o natural, para o visível. Tudo o que é fantástico, mis terioso, sobrenatural - constitue hoje um material desdenhado pelos contistas. Não digo que o conto esteja ligado obrigatoriamente a esses elementos, mas o desligar-se deles implica, pela sua própria natureza, uma dificuldade que lhe pesará mais do que ao ro· 158 A l v a r o L i n s mance. Os recursos de subEtituição serão mais raros e . mais penosos. É que todo conto para ser integralmente realizado exige a aprésentação de um "caso". O que quer dizer : de uma história, de um enredo. Reconheço que há outras maneiras, além da oh jetiva, de afirmar a exis tência deste elemento de elaboração e de realização. O aprofundamento psicológico, por exemplo, permite que o enredo seja mais sugerido do que descrito� e esta é uma técnica muito empregada, com êxito, pelos contistas mo- dernos. Mas logo se observará, em muitos contos mo dernos, a inexistência absoluta de um enredo, de uma hie tória, de um "cllBo". E diante deles é que nos vem a impressão de obra mutilada. Que o contista des denhe o "caso" fantástico é um direito muito seu, mas tambem um dever muito seu .será a criação de outros "casos", 'em outras bases, o que se torna ma'is difícil, sem que o leitor tenha nada que ver com essa dificuldll'de. Dir-se-á no entanto que o conto fantástico é o que apre senta mais dificuldade por exigir uma maior força de ima· ginação. Mas, não : a imaginação é um dom de artista, enquanto a arte objetiva constitqe uma ·conquista de aperfeiçoamento e de técnica. Os livros de contospublicados durante este ano apre sentam todos - uns mais, outros menos - esta mutila ção que vem de uma excessiva valorizaçã� do que é ex clusivamente natural, quotidiano, concreto, oh jetivo. Es tes livroe são Histórias do Irmão Sol, do sr. Telmo Verga ra, Donana Sofredora, do sr. Mario Neme, Os grilos não cantam mais, do sr. Fernando Tavares Sabino, Ronda de fogo, da sra. Cacy Cordovil ; autores do Rio Grande do Sul, de São Paulo, de Minas - da sra. Cacy Cordovil não tenho indicação nenhuma, nem sabendo mesmo se estou· diante de um nome ou de um pseudônimo - sendo dois deles estreantes, segundo suponho : os srs. Mario Neme e Fernando Tavares Sabino. Ao contrário, o sr. Telmo J o r n a l d e C r í t i c a 159 Vergara é um autor de vários volum�s, sendo muito con ceituado no gênero literário a que se dedicou de maneira especial. E ninguem dirá que esse conceito seja de todo injusto, embora se torne impossível considerá-lo co mo um contista. perfeito ou completo. Ainda agora nes tas Histórias do Irmão Sol o Autor revela tanto as suas poBsibilidades como as suas · deficiências. O que logo se o1Jserva é a sua capacidade técnica, o seu conhecimento da arte do conto. O sr. Telmo Vergara não se atirou à lite ratura como quem deseja realizar uma brincadeira para si mesmo e para os outros, mas procurou, ao contrário, o sentimento e o conhecimento da sua arte. Que o conheci mento seja Ínaior do que o sentimento - esta é uma cir cunstância que prejudica a sua obra, sem que seja sua a respolli!abilidade desse desequilíbrio. Agrada-me assim, em primeiro lugar, a seriedade com que se .situa dentro da s11.a arte, o esforço com que ·procura oferecer o melhor de si mesmo, a constância do seu trabalho e da sua téc nica. Daí a boi! construção dos seus contoll, pois con segue expor e movimentar com segurança todos os elementos ao seu alcance. Não se dirá de nenhum deles que seja uma improvisação ou um arremedo. Ao lado dessa técnica, porem, logo se verá que ele não dispõe de uma substância humana que lhe seja inteiramente cor respondente. O sr. Telmo Vergara é um autor mais formal do que suhtltancial ; os seus contos são mais construidos do que realizados. Constituem mais uma obra de "compo sição" do que de "estilo" ( estilo no amplo sentido de realização artística e literária ) . Acredito que é na ima ginação mesma. que se encontrará a sua maior limitação. A sua imaginação colabora muito pouco nos seus contos. As situações, Oll personagens, os acidentes - são todos de carater objetivo e concreto. A sua especialidade está na descrição de quadros da vida de subúrbio, de cenas pro vincianas, de costumes da pequena burguesia. Destaco 160 A l v a r o L i n s nesse sentido todo o capítulo H do conto "O envelope sob a porta", uma excelente cena apresentando o encontro de uma moça carioca com duas velhas provincianas. O enredo, por sua vez, não ocupa um lugar importante na obra do sr. Telmo Vergara, somente aparecendo como um acidente de segunda ordem. E estas duas contingências é que tornam os seus contos bastante secos, frios e esque máticos. Falta-lhes força íntima, dramaticidade, senti mento poético, imaginação. Somente o último conto deste volume parece orientar-se nessa direção, mas de maneira ainda não inteiramente decidida. O sr. Telmo Vergara tem a técnica do conto sem dúvida. Resta que esta téc· nica seja animada mais intensamente pela imaginação, sem o que a: sua obra ficará nessa situação de meio ca· minho, nessa média posição que não .pode representar um ideal para qualquer verdadeiro escritor. Em Donana Sofredora, o sr. Mario Neme conta pe quenos episódios, algum deles revelando uma certa ori ginalidade e uma positiva capacidade para a sátira e a fixação social. Um problema inicial, no entanto, me im pede de comentar estes contos como um livro de litera tura. Esse problema é o da linguagem e do estilo. O sr. Mario Neme - levando a todo� os exageros a reno vação linguística tentada pelo sr. Mario de Andrade, com um fim literário, no entanto, que a salva de uma idêntica desclassificação, quaisquer . que sejam as nossas discor dâncias - pretende realizar os seu.s contos com uma lin guagem que seja rigorosamente a falada. Ora, eu· so\1 daqueles que acreditam que a literatura é uma arle e não uma conversa ; que é uma realização escrita e não oral. Que ninguem vá pensar, porem, que estou falando aquí em nome da gramática ou de uma língua petrifi cada ; nem mesmo em nome da moral. O que procuro é falar em nome da literatura. Estou certo que um, escritor tem o direito de violar as regras gramaticais da sua língua J o r n a l d e C r í t i c a 161 para a criação de um c.stilo pessoal. Este é um direito legítimo, com o qual as literaturas se enriquecem e as gra máticas tambem. Mas será preciso, num ·caso dessa espé cie, ter o instinto da língua, a intuição da literatura, o senso da vida artística. , Acho que o sr. Mario Neme, ao contrário, utilizou as palavraa e as construções da língua oral de uma maneira demasiado arbitrária, colocando-se em luta com a literatura. Eis um trecho, escolhido ao aca.so : "Merenciano muito menos. O pobre dele me olhou aterrado, mas eu estava olhando pro céu, tão claro, branco de azul, tão lindo ! Então ele tambem olhou pro céu, qual o quê ! que o céu não falava nada pra ele, nem dava um sinal !" Tudo isso pode ter a sua graça, o seu gosto, o seu encanto, mas . . . não é literatura. E eis porque c.stou impedido de falar mais diretamente sobre os contos do sr. Mario Neme. Aliás, a propósito mesmo da sua lin guagem, gostaria de lembrar que nem sempre representa esta realidade viva, natural, espontânea, que parece ter sido , a sua ambição. Estou certo que expressões como "aquilo já nem não era vida", "pra" e "pondo ela" não são hoje a.s mais naturais e as mais empregadas na lin guaf?:em oral. Alem disso, essa buaca intencional da natu ralidade acaba por se constituir uma outra forma de arti fício. E querendo ser uma reação contra a retórica, tam bem acaba por se tornar igualmente retórica. Pois o que é a retórica - neste sentido menos literário - senão a palavra que se antecipa à idéia, a fórmula que se ante cipa à realidade? Bem sei, no entanto, que e.ssa lingua gem empregada pelo sr. Mario Neme nasce de uma deli beração concient11 e não de uma inconciência de igno rante. E por isso bem se poderá esperar que seja uma atitude de momento ou o exagero de um direito de reno vação, que então procurará depois a sua fórmula de equi· líbrio. 162 A l v a r o L i n s O que se pode chamar ·uma autêntica vocação de contista é .a do sr. Fernando Tavares Sahino, logo se reve lando com Os grilos não cantam mais. E' verdade que os seus contos ainda se ressentem da falta daquela intensi dade e concentração interior que são especialmente pró prias do gênero ; é verdade tamhem que o seu estilo ainda se ressente de uma certa indecisão e de uma certa palidez. Mas tanto os contos, na sua construção, como o estilo que os exprime - ambos os elementos já indicam a presença de um escritor que deve ser levado a sério. Ainda está, no entanto, muito limitado quanto à imaginação e quanto à técnica. Os temas prediletos do sr. Tavares Sabino são aqueles que se concentram em cenas domésticas, em am bientes familiares, em pequenos conflitos sentimentais. Dessa espécie são os melhores contos do seu livro : os que se intitulam "Festim em família" e "As rosas iam mur char". E não incluo nesse nú.tp.ero "O telefone" porque se acha prejudicado pela insistência �onótona com que apela sempre para o me�mo recunso como efeito. Outros éontos, porem, são muitos convencionais ou nem chegam a ser contos, como "Fita em série" e "Alucinação". Todos elea, de qualquer forma, apresentam a constante de uma capacidade narrativa e de uma maneira agradavel de ex pressão. Deixei para o último lugar o livro Ronda de fogo porque desejo afirmar que se trata de um livro diferentede todos os outros três. Livro de uma escritora que é uma verdadeira revelação, de uma autora que se apresenta com um domínio da língua verdadeiramente notavel. A sra. Cacy Cordovil merece certamente um lugar especial nesta crônica de hoje. E explico que estas referências se diri gem mais para a escritora do que para a contista, não sendo difícil situar o· motivo dessa diferenciação. Muitos são os elementos que faltam para que os contos de Ronda de fogo possam ser apresentados como obras perfeitas no J o r n a l d e C r í t i c a 163 seu·· gênero. Os enredos em geral não apresentam ongr nalidade ou sequer um desenvolvimento original, vários deles /caindo mesmo no convencionalismo ; os personagens não têm todo o relevo e toda a projeção das grandes fi· guras literárias ; a técnica da construção nem sempre se apoia em bases firmes e sólidas. Mas a capacidade de descrever a natureza, como os costumes, e o poder do es tilo, logo se colocam no primeiro plano, de forma que chegamos a esquecer que estamos diante de um livro de contos, sendo certo no entanto que todos eles têm o seu valor dentro da sua própria categoria. Talvez que o gê nero mais propício ao talento da sra. Cordovil seja uma epopéia em prosa na forma de Os sertões, o que seria �Sensacional para uma mulher. A sra. Cacy Cordovil mostra que conhece de muito perto os costumes do interior e as paixões ·que movimen tam os seus homens. Ela retoma, por isso, a tradição regionalista que parecia se haver interrompido em Affonso Arinos. Esta repre.senta outra significação deste livro que não deverá ser esquecida. , As suas páginas sobre os "Tro peiros" e um conto como ''O ferrador" constituem uma re presentação intensa c admiravel de certos aspectos da vida do interior. Mas todo eScSe material - que a autora transmite não como uma descrição de colegial, mas como uma obra realmente sentida e transfigurada pela sua per· sonalidade - nada seria sem o estilo adequado para o exprimir. E o que há de mais importante no livro da sra. Cacy Cordovil é esta harmonia entre o seu estilo e os seus temas. Tanto assim que não quero deixar de copiar um pequeno trecho, afim de que o leitor possa ter uma idéia direta do que estou afirmando : "Outrora eram os/ monarcas. Tinham no garbo a con· vicção da �ua força. A cabeça arguta do índio, sob o cha pelão de barbicha, se erguia, dominadora. Do ombro, exuberando cores� a pala listada. A boca das botas curtas 164 A l v a r o L i n s colhia a bombacha ; dentre o fofo emergia o cabo cinze lado da faca de prata. Uravam seda. Os arreios tilin tavam, chapeadoa de metal cimilante. ' Nômades; inquie tos, romanescos. Lá se iam, cortando o pampa ao sahor do acaso, começando em cada pouso um enredo que ficava inacabado . . . Lá se iam, envoltos num prestígio de lenda . . . Ei-los, que chegam. Andaram, retalhando o pampa. Atravessaram cida· des e fugiram de novo para o silêncio do campo. Dor miram, de poncho estendido ao chão, sob o faiscar lon gínquo das e.strelas. Alí estão, remanescentes de uma velha raça. Perderam o fausto. Não são mais monarcas : simplesmente, tropeiros.;' Como se vê, estamos diante de alguem que se acha no domínio completo da língua em que se exprime. Devo dizer, aliás, que o estilo da sra. Cacy Corclovil não se acha dentro da espécie eatilística que eu mais estimo pes soalmente. Ele não tem a graça, a finura, a plasticidade e tantas outras qualidades "femininas" que estimo acima de tudo em qualquer estilo. E o que chamo, por exemplo, um estilo "feminino�' é o de Machado de Assis ; o que chamo um estilo "masculino" é o de Euclydes da Cunha. E é o estilo de Machado o que prefiro ao. de Euclydes. Uma preferência, contudo, que não me impede lle ad mirar e louvar o que se acha do lado oposto. Embora sendo uma mulher, é na família do estilo "masculino" que se acha colocada a sra. Cacy Cordovil, a lembrar o próprio Euclyde.s, como na página que citei, alem de muitas outras que o leitor poderá idep.tifi.car. Todo o seu livro, aliás, em todos os sentidos, representa mais uma obra de homem do que de mulher, mais de escritor do que de escritora. E bastaria lembrar o seu insucesso dentro de temas sentimentais e mais ádequados a um temperamento feminino como os dos contos intitulados "Mulher", "A mulher que· virou homem" e "O sétimo". O seu êxito J o r n a l d e C r í t i c a 165 maior se encontra na representação de cenas ásperas e virís, na sua expressão através de um estilo às vezes mo nótono pela regularidade das construções, mas sempre afir mativo pela sua precisão vocahular e pelo seu poder de narração. AfirmatiV'o pela sua riqueza e pela sua força. 13 de dezembro de 1941. CAPíTULO XIV \· A / I UMA EXPERIÊNCIA DO T.EATRO A cONDIÇÃo de um gênero literário será sempre a de todos os objetos vivos, isto é : a possibilidade de se transformar e se enriquecer nas direções mais diV'ersas, sem perder a sua unidade interior. Mantendo-se fiel ao que é essencial na sua existência. De Balzac até Virgínia W oolf, o romance atravessou um longo processo de ope rações formais e conceituais mas permaneceu sempre como uma síntese de vida no plano da imaginação, o que tem sido a sua característica fundamental. Creio que uma mesma constatação poderemos exigir .em face da arte tea tral. O que explica realmente a existência e a n�cessi dade de uma arte é sua irredutibilidade ; quero dizer : a impossibilidade de ser substituída por qualquer outra. O fim de todas as artes é um só, ma!l a este fim podem chegar através de meios diferentes e inconfundíveis. Exatamente a pluralidade de meios é que explica a pluralidade de artes. E' certo, portanto, que deve haver no teatro algum elemento insubstituivel, uma razão permanente de exis tência, um requisito a torná-lo particular no meio das outras artes. Este elemento próprio e exclusivo do teatro está definido com o nome de "tensão dionisíaca" por todos os que se ocuparam das suaso�igens _e_ dâ ' '8uâ reali dade, desde Aristóteles até os críticos mais modernos como Pierre-Aimée Touchard e Edmond Sée. Tensão dionisiaca pode-se definir como a emoção especial que o teatro trans mite ao seu espectador, inteiramente diferente, em espé cie, daquela que um leitor sentirá diante de um poema J o r n a l d e C r í t i c a 167 ou de um romance. Para atingí-la a arte dramática mo vimenta três elenientos : os personagens, a ação, a mise en"sâme. Estes trêa elementos articulados é que formam a atmosfera teatral capaz de provocar no espectador a tensão dionisíaca. Neste sentido, é preciso, como se vê, contar com o espectador, como um elemento atuante e participante. Em qualquer verdadeiro teatro, o especta dor representa uma parte integrante do espetáculo. · De vemoa, por isso, desconfiar das peças que se dizem apenas para leitura, sob a alegação de que constituem um teatro de suprema aristocracia literária. Trata-se evidentemente de uma desvirtuação ou de um equívoco : estas peças não são de teatro. Pode-se lembrar que Byron, Merimée e Musset escreveram· peças que não se destinavam a repre �entaçã&, mas tambem é certo que,. nestas condições, po deriam estar fazendo obras-primas de literatura pu:t;a, mas 'nenhuma obra de teatro. Porque o que é essencial do espetáculo teatral é a 11bsoluta identificação entre os per sonagens e o espectador. E este é um resultado que se obtem naturalmente quando o sentimento dominante é o da exaltação, o da "purgação", o da "ivresse". Dificil mente será alcançado, de maneira completa, numa peça que pretenda realizar uma reprodução fiel da vida quoti diana. O que empolga o espectador é uma atmosfera que ultrapassa a vida comum, a realidade de atos que pode ríamos ter praticado mas que estamos impedidos de praticar, a visão de personagens que representam uma revelação da nossa vida secreta e não socialmente con cretizada. Nem mesmo no teatro histórico a cópia se jus tifica como um recurso dramático.A figura histórica será utilizada mais como um mito do que prcftJriamente como um ser individual, o que está muito de acordo com os fundamentos espirituais e transcendentes do heroismo. E esta categoria de mito da figura histórica é que dá ao artista a possibilidade de renová-la indefinidamente. Quan- 168 A l v a r o L i n s do Giraudoux renovou uma lenda tcbana em A mphytrion 38, já sugeria, com o título, que trinta e sete vezes o mesmo tema havia sido fecundado em outras direções. Com Pigmalião, Bernard Shaw tornou ainda maia evidente como um tema histórico e eterno se pode alterar num sentido de modernidade sem nada perder de si mesmo. No próprio teatro clássico encontramos o personagem se 'transformando . do particular para o geral. Quando Corneille , fez o Cid, o que resultou .. na cena foi muito mais o homem heróico do que propriamente o herói nacional da Espanha. Não quero exigir, no entanto, que toda peça ou toda representação seja dominada por uma atmosfera trágica. Esta exigência implicaria uma visão unilateral, excluindo a comédia, que contem recursos para uma teatralização tão completa quanto a da tragédia. Nas grandes épocas da arte dramática - o teatro grego, o teatro clássico fran· cês, o teatro elisabetiano, o teatro espanhol - a tragédia e a comédia se completaram como duas faces de uma mes· ma fisionomia. Em ambas encontramos um mesmo ele- mento dominante : a vida imaginada que se coloca por cima da vida habitual, a intensidade e · a 1Jnidade interior da obra que provocam a "ivresse", a capacidade de identi ficação do espectador com o espetáculo, determinando o fenômeno da "tensão dionisíaca". E' verdade, porem, que o resultado se exprime diferentemente num caso e noutro : a tragédia, pelo sofrimento ; a comédia, pelo riso. O que é muito facil de compreender quando se observa que a tragédia desenvolve situações que estão acima das nossas possibiliqades de homens comuns, enquanto a comédia desenvolve situações que julgamos, real ou aparentemen· te. abaixo de nós. Quando choramos, é que o motivo das nossas lágrimas se encontra numa ordem superior à nossa própria pessoa. O riso, ao contrário, surge da constatação de que nos sentimos superiores a alguem ou a alguma coi�a. J o r n a l d e C r í t i c a 169 Sofremos com os nossos heróis ·porque os achamos trans· cendentes em face dos nossos próprios atos ; rimos de u m homem ridículo porque estamos certos de que se encontra abaixo do nosso .senso comum. E' uma colocação exclusi vamente do espectador, não importando saber, como na vida real, se esta aparência de ridículo ou de heroismo sustenta uma verdade ou um erro. Confirmando o que comecei dizendo sobre a evolução dos gêneros literários, observamos hoje a tragédia e a co· média se transformando e adquirindo formas modernas de estilo não só literário mas teatral. As exigências par ticulares da nossa época explicam, de certa maneira, o carater destas novas transformações. Pois se há nã lite ratura uma parte pessoal_ e eterna que se mantem inva riavel como o homem, hã tambem umà parte social e efê mera que se modifica com a sociedade. O que explica que ainda hoje possamos assistir �ou ler as peças de Shakes peare ou Corneille é o que nelas existe de puramente lm· mano, mas não tenhamos dúvidas de que - pelo desapa recimento do que contêm de social - alcançam sôhre nós um efeito muito menor do que sobre os seus contempo· râneos. O mesmo se poderá dizer de um autor dos nossos dias : em um leitor do próximo século Mareei Proust não obtel'á a mesma impressão que hoje a sua leitura determina. Eis até que ponto a tragédia c a comédia do passado se modificaram no sentido das modificações so· c1a1s. Racine ou Moliere estão, de qualquer modo, li gados a uma época em que a Classe socialmente dominante era a aristocracia. O domínio posterior da burguesia sobre a aristocracia implicou a criação de um teatro que pudesse representar as condições e as consequência · s desta dominação. O teatro dos nossos dias é uma expressão de sociedades burguesas, como o teatro antigo fora uma expressão.. de sociedades aristocráticas. 170 A l v a r o L j n s A realidade teatral dos últimos cem a.nos - o pre domínio da comédia sôbre a tragédia - documenta que a burguesia é muito mais ridícula do que heróica. E autores que continuam, atualmente, a tradição da tragé dia cláSilica - um Paul Claudel ou um Jean Giraudoux - vão procurar os seus temas e os seus per.sonagens fora da burguesia. Ao contrário, Henri Bernstein - figura expressiva da comédia moderna ou do drama burguês, como quiserem - encontra os seus na própria clas.se so· cialmente dominante. Bernstein, porem, preio que já se encontra hoje ultrapassado. O seu teatro é uma expres são do domínio burguês ; hoje, com a falência evidente da burguesia, um novo teatro surgiu como forma represen tativa dessa decadência. Estou certo que uma significa ção importante do teatro de um Lenormand, de um Pi randello, de um Bernard Shaw, encontra-.se na revelação da decomposição e do ocaso do homem -burguês, antes mesmo de se to.rnarem um fato constatado. Exemplifico, particularmente, com Pirandello, que me parece a figura mais repre.sentativa deste teatro moderno. Porque não foi só a técnica teatral que Pirandello revolucionou ; o seu maior poder revolucionário está na união que realizou entre o que é trágico e o que é cômico. E' certo que esta união já poderia ser observada em muitos autores antigos e modernos. Em várias peças do teatro clássico - e Shakespeare usava constantemente e.ste recur;o - surgem situações cômicas nas tragédias, e situações trá gicas nas comédias. Mas tanto umas como outras não chegavam a quebrar a linha dominante da peça. Tambem o que chamamos drama - penso especialmente na obra de Bernstein - realiza constantemente essa mistura de elementos �ômico.s e trágicos. Mas resultando um novo gênero - este mesmo drama - porque a burguesia, na sua época de domínio, não se prestava exatamente nem para a tragédia pura nem para a comédia pura. A húr· J o r n a l d e C r í t i c a 171 guesia da decadência, porem, esta é trágica e é cômica, ao mesmo tempo. Ei.s porque a tragédia e a comédia são hoje novamente possíveis. A estranha qriginalidade de Pirandello é que uniu as duas de uma maneira . até então desconhecida. · Se fosse burguês Pirandello teria escrito a tragédia da sua classe. Não sendo burguês, Pirandello escreveu a sua comédia. Não pôde nem quis impedir que a burguesia se apresentasse num estado de tragédia. Pirandello, como autor, assume Úma posição de comédia ; o homem burguês, como personagem, apresenta-se trá gico. E' o "drama" ultrapassado na fó'rmula "tragédia -comédia". A posição do autor sendo a da comédia, a posição dos personagens sendo a da tragédia. O espetá culo resulta, simultaneamente, t:t:ágico e comico. Esta é a situação principal de SeiS personagens em busca de um autor. E a própria realidade da: peça - seis figuras em procura desesperada de um intérprete que não encontram - não será um símbolo profundo de toda a obra de Pi randello, da terrível descontinuidade entre um autor cô mico e personagens trágicos ? E' certo que sim, e Piran dello tinha conciência deste desencontro que é o centro da sua arte. De qualquer forma, Pirandello ficará como um intérprete, no teatro ,do homem burguês dos nossos dias : do homem burguês da decadência e da desompo sição. A estréia do sr. Marques Rebello como autor teatral (Rua Alegre, 12, Curitiba, 1940 ) vem colocar diante de nós este problema da representação da sociedade burguesa através da arte dramática. Não propriamente a alta bur guesia, como nos dramas de Henri Bernstein, e sim esta pequena burguesia de sentimentos mornos e existência medíocre. Sabe-se, ·aliás, que o sr. Marques Rebelo tor nou-se, no sseus contos, uma espécie de intérprete desta 172 A l v a r o -L i n s sociedade de suburbios, de pensões e deruas humildes e esquecidas. Nesta orientação, é um continuador da obra de Manuel Antonio de Almeida e Lima Barreto. Em A Estrêla sobe, no entanto, abrira um novo caminho : o da análise de caracteres. Leniza - personagem de A estrela sobe - está muito alem desta indistinção social e moral que parece ser a nota dominante da pequena bta·· guezia. Foi atirada no romance com uma complexidade e uma intensidade capazes de documentar no sr. Marques Rebelo um artista apto para a expressão dos misterios da alma humana. Creio que este caminho novo que Ge abrira com A estrêla sobe era muito mais propício à sua expe riência teatral - como caracterização de personagens ' e como atmosfera dramática - do que este que seguiu em Rua Alegre, 12. No entanto, devemos asainalar que o sr. Marques Re belo conseguiu' realizar uma obra realmente de teatro, o que julgo importante por se tratar da estréia, neste gê nero, de um escritor vindo da poesia , do conto e do ro mance. Estou certo de que a sua peça poderá ser inte gralmente representada, com exceção de algum1 detalhes de mise-en-scene e de diálogos, facilmente modificaveis. Noto, de maneira especial, a naturalidade e a vivacidade dos diálogos, a harmonia dos c�:tracteres dos personagens em face dos fins para os quais estão dispostos, movimen tação de cenas e de fig11;ras em conformidade com todo o enredo. Tendo em vista o assunto e a finalidade dentro dos quais se desenvolve, podemos dizer Rua Alegre, 12 sustenta do principio ao fim uma unidade tanto interior como exterior. Mas num se�tido geral e absoluto da arte dramática, o que se conclue é que Rua Alegre, 12 representa mais uma experiência do que uma realização. Tudo o que a peça contem, encontra-se ,disposto de maneira correta e lógica ; mas para alem dos seus elementos existem outros J o r n a l d e C r í t i c a 173 absolutamente necessários. E tudo o que falta em Rua Alegre, 12 decorre mais do tema da peça do que propria mente do sr. Marques Rebelo. Esta sociedade de pequena burguesia apresenta dificuldadee enormes para sua fixa· ção em obra teatral. Muitos dos recursos, por exemplo, tle variedade e de movimento, que o autor podia dispor nos seus contos, acham-lle fechados pelas limitações da cena teatral. O conto pode se estender em continuidade ; o teatro terá que se comprimir em intensidade. E inten sidade quer dizer ação, paixões, lutas dramáticas de carac teres. O drama burguês - o drama da alta burguesia - afirma-se precisamente na densidade de certas paixões, como o ainor e o dinheiro. Em Rua Alegre, 12, ao con trário, nenhum personagem aparece impulsionado no sentido de uma paixão forte e definida. Dir·se-á que as paixões dessa espécie não · são muito comuns nos homens da pequena burguesia. Concordo que sim, e eis porque afirmei- a quase iinpossihilidad� (não digo impos,sihili· dade absoluta porque esta contingência não existe em li teratura) de teatralizar os seus temas e sentimentos. Esta impossibilidade é que tornou Rua Ale15re 12, uma peça destituída de ação, o que, como se sabe, não é a mesma cosa que enredo. De ação, que tambem significa, em certas obras, poesia e mistério. E o que acabamos notando é uma desproporção entre a forma da peça e o seu con tendo. Todos os rigores de uma técnica não só correta mas avançada, para uma história e um desenvolvimento demasiado simples. " Esta técnica revela que o ·sr. Marquee Rebelo conhece muito hem a sua nova arte e sobretudo o teatro moderno. O conhecimento de Pirandello e de Lenormand é o que se torna mais ostensivo. À maneira de Pirandello, pre tendeu unir um cômico de autor e um trágico de pen�o nagem, mas o que resultou foi uma fórmula inversa : o autor em busca de seus pemonagens . . . De Lenormand, 174 A l v a r o L i n s com certeza, foi a sugestão de revelar o personagem num duplo estado de conciência e de subconciência. Utilizan do-a, Rua Alegre, 12 trouxe par!! o teatro brasileiro a contribuição de uma técnica que permite um desdobra mento de planos na arte dramática. No caso que estamos comentando, a peça se desenvolve em dois planos para lelos : um, no cenário ; o outro, em cortina descida. No ·primeiro, representam-se os personagens, na sua vida ha bitual, em estado conciente ; no segundo, representam-se os seus pensamentos mais íntimos, uma espécie de vida 3ubconciente, em contradição com a da vida comum. Mas estes doia planos aparecem dispostos num carater normal de dualidade que simplifica um efeito que de veria ser necessariamente mais complexo. Obteriam, na verdade, uin efeito muito mais impressionante se o sr. Marques Rebelo - seguindo o teatro de Lenormand nas suas últimas consequências - houvesse colocado o con dente e o subconciente num estado intensivo de combate dramático. Além do que, em Rua Alegre, 1 2 os pensamen tos íntimos do subconciente apresentam-se bastante super ficiais e destituídos daqueles mistérios remotos que exp1i cam a personalidade humana. 15 de março de i941. CAPiTULO XV SHAKESPEARE E O BRASIL O UE ninguem se assuste com o título desta crônica. Ele não promete um estudo crítico sobre Sh�kes peare, o que seria, para um crítico brasileiro, uma im prudência ou . uma gaffe. Não cometerei nem a imp�-: dência nem a gaffe de escrever sobre um, gênio da litera tura sem que nada tenha de novo para reV'�lar . como contribuição pessoal. Esta invocação do nome de Shakes peare visa a apresentação de alguns elementos de litera tura comparada, com a tentativa de verificar a possibili dade de uma aplicação ao Brasil. Os estudos de literatura comparada não são muito antigos na Europa ; entre nós, podemos dizer que ainda não existem, Desconfio mesmo que irão encontrar aqui um ambiente de prevenção e hos tilidade, o que se explica pela nossa p'osição em face de literaturas mais velhas e mais fortes. Pois um problema que logo se levanta na literatura comparada é o das in fluências, ou mais exatamente : o das comunicações e apro ximações entre autore�, entre livros, entre literaturas. Na Inglaterra ou na França, por exemplo, um estudo dessa espécie apresenta duas faces : a influência estrangeira que cada um deles recebeu e a influência que por su a vez transmitiU. No Brasil, um estudo idêntico terá, por en quanto, uma só face : a das influências que recebemos. O que é certo é que nenhuma obra da nossa literaturll conseguiu ainda projetar-se em outro país com o carater de fecundação de novas obras. Essa. diferença é que ex plicará a desconfiança com que será recebida, segundo su- 176 A l v a r o L i n s ponho, qualquer tentativa de implantação, entre nóa, doa estudos sistemáticos e ordenados de literatura comparada. Mas essa desconfiança logo desaparece quando consegui mos fixar o problema como um fenômeno natural, como um acontecimento, e não como um crime. A fixação deve partir deste princípio : ninguem apareceu na vida literári� com uma força original e exclusiva. Nenhuma literatura, nenhum autor. A vida literária é como a própria vida : ela começa e se levanta por intermédio da imitação. Toda infância é imitativa, afim de que sobre a imitação venha a se erguer uma peraonalidade autônoma de homem. A imitação inicial não anula uma futura originalidade. Ao_ contrário : os que partiram da imitação são os que con seguem atingir a originalidade com mais conciência. Não tenhamos medo, portanto, de qualquer revelação que nos possa trazer a literatura comparada, no capítulo das in fluências. E' que as influências literárias sempre consti tuem um elemento de renovação c de vida. Pasaado o período de imitação, elas vão indicar os caminhos cria dores e originais que uma literatura e um povo podem percorrer dentro do seu destino e do seu espírito. Venho hoje sugerir o estabelecimento de uma cor rente de influências para o nosso teatro. Conhecemos mais ou menos, nos seus aspectos gerais e informativos, as correntes de influências que fecundaram a nossa poesia,o nosso romance, os nossos estudos sociais. Neste sen tido, como em todos os outros, o teat�·o brasileiro perma nece como um gênero solitário. Ele não apresenta a mais ligeira harmonia com a evolução de qualquer outro dos nossos gêneros literários. Transmite a impressão de uma vida que se fechou num círculo de ferro e que dentro dele se debate inutilmente. Algumas tentativas isoladas nada conseguem contra uma situação de ordem geral. Ainda há alguns dias, tive oportunidade de ler uma entrevista do sr. R. Magalhães Junior, na q�al este autor afirma a J o r n a l d e C r í t i c a 177 sua desilusão a respeito do teatro braBileiro e o seu pro pósito de nada mais tentar neste sentido. Contudo, sur gem, de toda parte, sugestões e alvitres com o fim de colocar o nosso teatro num outro plano que não seja este em que se acha : um plano negativo e vazio. Eetando o sr. Gustavo Capanema - que tem dado ao seu Ministério a feliz extensão de um carater administrativo para um carater cultural - tão interessado no destino da nossa li teratura teatral, dirijo-me diretamente ao ministro da Edu cação, com o propósito de sugerir tambem uma fórmula de salvação. Talvez que seja julgada, no primeiro mo mento, como uma atitude extravagante ou esnobieta. As seguro, porem, que · se reveste da maior seriedade, acom panhada de uma quase certeza do seu êxito. O que pro ponho é a execução desta iniciativa : que o Ministério da Educação faça traduzir e representar a obra completa de Shakespeare. Uma proppsta desta natureza deve ser ex plicada : eis o fim desta crônica. O que se pode eeperar de uma tradução, de uma 1·epresentação de Shakespeare no Brasil ? Antes de uma respoata, prefiro apresentar alguns elementos de literatura comparada em torno da obra de Shakespeare. Através deles a conclusão se tor nará mais facil e mais evidente. Trata-se de uma do cumentação que impressiona no seu conjunto, embora seja quase monótona pela repetição. Podemos dividir os estudos !'hakespearianos em três ordens diferentes ; 1.0) o éstudo da obra em si mesma ; 2.0) a história da obra ; 3 .0 a história da influêncià que a obra tem exercido. Sobre a obra em si mesma nenhuma discussão se torna mais possível. A seu respeito um crítico falou em "floresta encantada". Deve-ee dizer antes um mundo com pleto ; e só uma enumeração de títulos seria suficiente para impressionar profundamente : os dramas históricos, de King John a The Life and Death of King Richard lll, 178 A l v a r o L i n s resumo impressionante de uma história nacional, como nenhum outro povo conseguiu realizar ; as cinco mais po deroaas tragédias da literatura universal (Hamlet, Prince of Denmark, The Tragedy of Macbeth, The King Lear, Othello, the moor o f V enice, The tragedy o f Romeo and ]uliet ) ; as três grande;;; reconstruções da Antiguidade (Co· riolanus, ]ulius Caesar, Anthony and Cleopatra) ; as co· médias fantásticas (As you like it, A midsummernight's, dream) ; as comédias amargas (The merchant o f V enice, Measure for measure) ; as "peças de sonho" ( The Winter' s Tale, Cymbelitre, The Tempest ) . A enumeração poderia ser desdobrada para todas as trinte. e sete peças - sem falar dos sonetos e das obras propriamente líricas - com os seus personage� inconfundíveis, com os seus sentimen tos simbólicos, com as suas ações dramáticas, com o seu lirimo, com a sua filosofia, com a sua vida particular que não envelhece nunca apesar dos trêa séculos que a acom panham. Destas trinta e sete peças, cada uma bastaria para tornar um poeta imortal. Talvez que possamos con siderar exagerados os julgamentos ingleses, inspirados numa possivel vaidade nacionalista. Vejamos, então, um julgamento francês que exprime, neste caso, um julga mento universal : "La littérature de langue anglaise, une des littératures les plus riches en beanté originale est la plus grande que le monde ait jamais vue." ( . . . ) "Si riche que cette littérature soit en écrivains admirables, elle n'a plus produit aucune autre pour toucher, même de loin, à la . place, d'ou la lumiere de Shake.speate rayonne sur tout le monde." · (Emile Legouis e Louis Cazamian, em Histoire de la littérature Anglaise) . Segue-se, então, uma bibliografia riquíssima, na qual <'Stão colaborando os representantes de todas as literaturas. É a vida póstuma de Shakespeare, toda uma história li terária da sua obra, constituindo-.se como uma realidade que se tornou independente do próprio Shakespeare. J o r n a l d e C r í t i c a 179 Uma história, porem, que apresenta os seus acidentes ca racterísticos. Depois de 1660, o gosto classicista vindo da França domina por toda parte ; e Shakespeare se torna um motivo de desprezo e de injúria. Foi preciso, no século XVIII, que três figuras diferentes realizassem uma espé cie de descoberta de Shakespeare : o poeta Alexandre Pope, o crítico Samuel J ohnson e o ator David Garrick. Algu mas resistências ainda se opõem nesse caminho, mas o prer romantismo opera contra essas forças contrárias, colocando Shakespeare na posição singular, onde ainda hoje se con serva ap·esar de todas as transform a ções do gosto literário. Fixou-se desde então a influência extraordinária dessa obra. Mas, nesta altura, torna-se necessário distinguir a influência literária e a. influência teatral. Uma distinção entre a vida teatral e a vida literária. A influência lite rária de Shakespeare foi durante muito tempo rigorosa mente_ destrutiva, como sucedeu com os artifícios da tra gédia clássica. Na Inglaterra o ressurgimento shakespeari ano, no séculó XVIII, não renovou a produção dramática ; no século XIX, a única obra dramática de grande pro porção - à Beatrice Cenci, de Shelley - é de inspiração shakespeariana, mas permanece solitária ; por sua vez, o grande teatro inglês do século XX não pôde · escolher os caminhos de Sh akespeare. Na França, essa influência, nos princípios ào século XIX, destruiu os restos da tra gédia clássica ; e será preciso notar que as únicas pro duções dramáticas deste século francês que se desenvol vem numa atmosfera de verdadeira poesia - as comédias fantásticas de Musset - são de uma visível fonte shakes peariana. Depois, porem, o teatro francês não mais co nheceu essa influência ; nem sequer sobreviveu a tragédia ehakespeariana de Vigny e Victor Hugo. Na Itália, o mesnio resultado negativo, com o fracasso das peças de Alfieri (Saul) e de Manzoni ( Carmagnola e Adelchi) . O crítico Lessing, na Alemanha, serve-se de Shakespeare 180 A l v a r o L i n s como um instrumento de combate contra a tragédia fran cesa, mas as suas próprias peças não se harmonizam intei· ramente com esta atitude. Goethe e Schiller logo aban donaram o grande modelo, enquanto o teatro dos român ticos fracassava inteiramente, porque, depois de imitar Shakespeare, ficou se debatendo na impossibilidade de ul trapassar essa imitação. Na segunda metade do século XIX, a influência propriamente literária de Shakespeare vai se 1·eduzindo cada vez mais. No entanto, o que vale para a literatura dramática não tem uma igual significação para o teatro em si mesmo, para a vida teatral como uma realidade independente. Somente três vezes, como se sabe, a Europa conheceu um teatro verdadeiramente nacional e espontâneo : o teatro inglês elizabetiano, o teatro espanhol, o teatro clássico francês. Desde então, todo o teatro europeu vem sendo uma consequência de trabalhos e de planos collBtante mente ameaçados e até destruidos. E dentro dessa his tória do teatro uma tese pode ser _estabelecida : é sempre a influência de Shakespeare que tem oferecido uma vida nova para o teatro. Mais ainda : em pequenos paises ou em literaturas menores a influência de Shakespeare apre senta como resultado a criação de um teatro nacional e autônomo. Eis o ' aspecto fundamental desse problema shakespeareano que estou sugerindo e que vou desdobrar através de alguns exemplos significativos. Nocentro --de uma certa renascença do teatro inglês, no século XVIII, encontra-se Shakespeare. Os preconceitos das classes pu ritanas haviam desacreditado o teatro, cabendo ao ator David Garrick uma vitória contra estes mesmos precon ceitos, através da representação de peças de Shakespeare (Shakespeare festival, 1769 ) . Seguem-se algumas alter nativas : sempre o teatro inglês se vê ameaçado e sempre se salva por intermédio de Shakespeare. Em 1820, são os atores Kean e Kemble que o fazem voltar ao cartaz ; J o r n a l d e C r í t i c a .181 em 1860, Macready, Booth e Phelps ; e m 1900, lrving e Ellen Terry ; em 1920, o "Old Vice Theatre", que repre senta exclusivamente Shakespeare, constituindo-se, depois de três séculos, o primeiro teatro estavel da Inglaterra. Mas, dir-se·á, o caso inglês não prova suficientemente uma tese universal, porque afinal ShakeBpeare é um inglês. Acrescente-se, antes de qualquer outro, o caso norte-ame ricano : o teatro da Broadway, em Nova-Iorque, que era antigamente tão inferior e tão escandaloso, foi purificado e elevado por uma renascença shakespeariana, em 1920, o que tornou possível o aparecimento de um Eugene O'Neill. Fixemos, pois, a nossa tese neBte sentido : a re· presentação de Shakespeare em qualquer país pode abrir o caminho para uma produção de carater nacional. Este é o caso, sobretudo, dos países de pequena literatura ou de literatura em formação. Na Dinamarca, por exemplo, o teatrp de Holberg, no século XVIII, não apresentava .sequer um sucessor ; em 1830, o diretor do teatro real, J ohan Ludwg Heiberg, introduz Shakespeare, que se torna um ídolo desse povo ; e depois surge uma produção dra mática que é completamente independente de Shakespeare. Na Noruega, cuja literatura nacional não existia antes de 1800, o "Teatro Dinamarquês", em Oslo, começa a repre· sentar Shakespeare, em 1850 ; e logo aparecem Ibsen e Bjõrnson. Na Suécia, Shakespeare preparou o ambiente para AuguBto Strindberg. Na Holanda - que se achava sem literatura dramática desde Vondel, no século XVII - surgiu uma abundante produção teatràl, logo depois de um renaBcimento shakespeariano, em 1900. Na Rússia, onde foi introduzido por Pouchkine, as representações de Shakespeare - sempre presentes nos teatros mais mo dernos, de Stanislwski até Meyerhold - excitaram várias expenencias nacionais. Na Polônia, o milagre de um novo teatro "classicista" ( Stanislaw Wyspansky) tornou-se pos sível através de uma tradição shakespeariana. Entre os 182 A l v a r o L i n s checos . ·e os húrrgaros, dois diretores,Kvapil e Hevesi, fizeram de Shake.speare o autor . mais representado dosr seus teatros nacionais ; e em ambo� os países surgiu depois uma produção dramática independente. Muito oportuno, por outro lado, é o caso de litera turas latinas. Não houve nunca na Itália um teatro de grande importância ; apenas, bons atores com;eguem salvar, de vez em quando, a sua reputação. Pois bem : atores como Ristori, Rossi, Zacconi, Duse, Irma Gramma tica, têm sido intérp�etes de papéis shakespearianos, res guardando assim o teatro italiano da banalidade das peças de tese.s e da "comédia de sociedade". Na França, a tra· dição nacional constitue um obstáculo, sobretudo com o perigo de sua petrificação na oficial Comédie Française. No entanto, Shakespea,;re· subjuga às vezes a própria Co médie Française, que conheceu, depois de 1 920, todo um repertório shakesperiano. Lembremos a Eepanha, mais antishakespeariana ainda pela própria natureza de suas condições artísticas. O teatro romântico espanhol (Hart zenbusch, Rivas, Martínez de la Rosa) e o teatro moderno de Benaventes se ergueram dentro do espírito e da con, ciência artística de Shakespeare. Por sua vez, o caso da Alemanha apresenta um interesse especial, porque esse poV'o teórico veio contribuir com uma teoria para a his tória literária de Shakespeare. Desde os princípios da sua literatura moderna, o teatro nacional constitue a aspi ração maj.s ardente dos alemães. A imitação dos franceses não apresentou resultado nenhum. Lessing afasta estes modelos, mas fracassà na criação de uni novo teatro. Uma palavra de Goethe vai servir como um indício. Em seu romance Os- anos de aprendizagem de Wilhem Meister, Goethe descreveu a iniciação de um ator de teatro ; e todo o romance se desenvolve em torno de uma representação de Hamlet. O modelo era o ator Schroder, que, na ci· dade de Hamburgo, em 17i6, lançou a primeira repre- J o r n a l d e C r í t i c a 183 sentação de Shakespeare com um sucesso fora do comum. Shakespeare torna-se, desde então, não só o autor mais representado na Alemanha, mas tambem o responsavel pela teoria teatral alemã, segundo a qual o teatro é um "templo das musas", um púlpito leigo, uma realidade espiritual da maior seriedade. E quando Max Reinhardt i'unda o "teatro alemão"; em Berlim, o seu neo-roínan tismo vai dever a sua vitória a uma série de mises-en scimes shakesperianas. Assim, a Alemanha deveu a Shakespeare a existência de um teatro estavel, de um teatro que podia se defender das exigências comerciais, para se manter, dentro de considerações exclusivamente artísticas. Naturalmente, em toda parte, o teatro permanecerá ameaçado pelo falso gosto de um público que nada mais deseja alem de uma diversão facil, pela condescendência dos diretores e pela vaidade dos atores. Shakespeare se levanta, então, como o grande antídoto contra a falsi ficação ou a decadência da vida teatral. Onde ele surge a vida do teatro aparece ou ressuscita com a sua categoria verdadeira de "instituição estética e social". Eis porque se pode sugerir para o Brasil unia tradução e uma repre sentação da obra completa de Shakespeare. Logo se dirá, talvez, que a tradução é difícil e a representação quase impossivel no nosso meio artístico. Pressinto, por exem plo, esta pergunta irônica : quais os atores que irão inter pretar os personagens de Shakespeare ? Responderei que não se trata propriamente de uma representação perfeita de Shakespeare ( lembrando, no entanto, para os primeiros mom�p.tos, os estudantes e os amadores ) , mas de colocar, de qualquer maneira, esta obra genial dentro da nossa literatura, para que tenha um efeito de criação sobre a nossa vida de teatro. . Shakespeare operará, então, como um excitante, como um criador da vida teatral, o que ficou in�icado pel� çitação de exemplos de todas as espécies. 184 A l v a r o L i n s Alem disso, os elementos do teatro se cruzam e se comu· nicam : se Shakespeare - mesmo imperfeitamente repre sentado - provocar o nascimento de uma verdadeira vida teatral, sucederá, como consequência, que essa vida tea· trai há-de provocar o aparecimento de atores que serão capazes de uma representação mais perfeita de Shakes peare. O resultado fi�al, como em outros países, poderá ser o advento de um teatro brasileiro. Está claro que ninguem poderá garantir que tudo se desenvolva até essa consequência esperada ; é uma experiência, no entanto, que nada imp�de que seja tentada. E está ao alcance do Ministério da Educação determinar uma providência como eeta, na qual se jogará para sempre o destino do teatro brasileiro. 29 de novembro de 1941. CAPíTULO XVI LETRAS FEMININAS A IDÉIA de uma literatura feminina logo nos sugere uma idéia de fragilidade. Ou mais exa tamente : uma idéia de delicadeza, de suavidade, de transparência. E' uma idéia simplista, já se vê ; simplista e unilateral. Outra idéia de um sentido oposto é a de imaginar a es critora como uma espécie de monstro sem sexo, como um ser que !!C indeterminou no plano biológico como no plano intelectual. Uma idéia muito ajudada pela lem brança da figura famosa de George Sand. Mas não es queçamos que sexo em literatura deixa de apresentar um carater rigorosamente biológico. Nem sempre se ajustam e se correspondem a categoria de um sexo e os sentimentos que lhe sejam normalmente ·atribuídos. Muitas ohras masculinas- caracterizadas pelo vigor, pela segurança, pelo realismo - são obras de mulheres. Muitas obras femininas - caracterizadas pela fragilidade, pela fanta sia, pelo eufemismo - são obras de homens. Na litera tura moderna, a mais feminina de todas as obras não está assinada por um nome de mulher, mM de homem. E' a obra de Mareei Proust. Outras, porem, umas de homens, outras de mulheres, àpresentam uma espécie de equilíbrio e de harmonia entre sentimentos femininos e sentimentos masculinos. Diante delas é que Virgínia W oolf - ela mesma representando urna figura característica e sirnbó· lica - pôde concluir que em toda grande figura de ar tista existe . um temperamento dividido de homem e mu lher, existe um ser andrógino. Mas será preciso repetir 186 A l v a r o L i n s que não se trata de uma condição de ordem biológica, mas de ordem intelectual. Acredito que seja importante lembrar essa comple xidade artística, no momento em que se vão tornando notaveis alguns nomes femininos, entr,.nós, adquirindo uma posição nas nossas letras que se poderá dizer normal, em contraposição ao que havia de excepcional, antigamente, na presença de uma mulher na vida literária brasileira. Alguns dos sucessos literários mais ostensivos e rumorosos destes últimos anos se dirigiram para nomes femininos, tiveram o fim de exaltar livros femininos de todos os gêneros : os de poesia, os de romance, os de ensaio. Um destes êxitos, um dos maiores, foi o da ' sra. Dinah Silveira de Queiroz, em 1939, com o seu romance Floradas na serra. Ele co· locou Uma nova escritora no cartaz, dando-lhe - ao me�J)lO tempo as vantagens e as responsabilidades de um tão po sitivo sucesso. O livro que a sra. Dinah Silveira de Quei· roz acaba . de publicar (A sereia verde, Rio 1941 ) é an terior, no entanto, ao romance que a tornou tão conhecida e que já obteve, �egundo se anuncia, quatro edições. Os contos que formam o presente volume são as primeiras composições publicadas pela autora em revistas e jornais. O mais importante deles, o mais longo, o que dá o nome ao volume, é o conto "A sereia verde" que apareceu em 1938 na Revista do Brasil. Foi com ele que a sra. Dinah Silveira de Queiroz atraiu a atenção dos meios literários para o .seu nome : era nma estréia afirmativa, impunha a presença de um temperamento, revelava uma escritora, que se mostrava mais cheia de possibilidades do que de realização. Lembro-me no entanto que li "A sereia V'erde" com uma impressão muito mais favoravel do que est .. que me deixa agora a sua nova leitura em volume. Talvez porque há três anos eu estivesse diante de uma estreante e de uma desconhecida, _ e a impressão se misturasse com a surpresa da revelação. Talvez porque não tivesse como · J o r n a l d e C r í t i c a 187 agora a obrigação de falar a seu respeito. Talvez ainda por esse desencontro fatal que se opera sempre entre as impressões de duas leituras de uma mesma obra que não é uma obra-prima. Não sei, afinal. O que sei é que "A sereia verde" deste volume não alcançou sobre mim a mesma repercussão que "A sereia v·erde" da Revista do Brasil. Contudo, o conto é o mesmo e nada se modificou ; nem mesmo me parecem alteradas aa qualidades melhores que pude encontrar e ainda encontro nesse conto, ou no vela, da sra. Dinah Silveira de Queiroz. Somente no conjunto mesmo da obra poderei localizar o que se p artiu e diminuiu na minha impressão. Todos os contos de A sereia verde pretendem situar figuras de mulheres, 'fixar iemperamentos femininos. E nesta direção· catá realmente o principal talento da sra. Dinah Silveira de Queiroz. Em Floradas na serra o per� sonagem mais significativo é uma mulher : Lucília ; e a página mais vigorosa é a que descreve a morte de Belinha. As mulheres, sobretudo as mulheres adolescentes,- parecem concentrar toda a ambição literária da sra . Dinah Silveira de Queiroz. Nos contos de A sereia verde tambem são femininas as figuras que determinam os enredos e os de senvolvimentos da ficção : Júlia, Marilda, Marta, Babinha. A escritora poderá, assim, mais facilmente, ser fiel a si mesma, sem se colocar diretamente, peasoalmente, na sua obra. Essa capacidade - às vezes feliz, às vezes infeliz - de se abstrair da própria obra constitue uma caracterís tica da sra. Dinah Silveira de Queiroz. A sua emoção criadora nunca a conduz a uma dessas confissões totais de personalidade que ·comovem e arrebatam o leitor. A sua literatura é sempre agradavel. Receio mesmo que a sua consistência não suporte uma maior duração. Ela narra as suas histórias a distância, como que tem receio de se contaminar. Logo se sente que a sua figura pes soal está pairando numa situação de paz, de tranquilidade 188 A l v a r o L i n s espiritual, de contentamento de si mesma e da própria vida. E' certo que nem sempre - ou quase nunca, para ser mais exato - os seus personagens apresentam uma situação idêntica. Os seus personagens não são muito ri gorosamente os seus espelhos. Eles têm os seus problemas e as suas inquietações, os seuB ímpetos de evasão, os seus conflitos com a vida. Nunca, porem, essas realidades se levantam muito vivas e poderosas porque a sua autora está a distância, está impossibilitada de se confundir com elas, mesmo subjetivamente, e exprimí-las através de si mesma. De ordem psicológica é o desenvolvimento do conto "A sereia verde". Todo ele se processa numa atmosfera de sugestão, de meio-tom, de pensamentos e ações que se suspendem no momento da definição. Ele é a apresenta ção de um sentimento que se levanta, que toma forma, mas que se esvai no momento de se transformar em ato. O amor de Júlia a Leonardo fica assim numa esfera de exclusiva tentação. E o que há de mais interessante no conto é justamente a sucessão de sensações que Júlia vai experimentando até a sua resolução final de não se en· tregar a Leonardo, como já havia deliberado e combinado com ele. No meio do conto, uma página que se pode destacar é aquela que descreve a impressão de Júlia, ainda adolescente, ao contémplar, pela primeira vez, o espetá culo do amor, através de Marilda e do seu namorado. Por outro lado, porem, o conto apresenta alguns defeitos que igualmente se destacam. Um deles - já que não posso transmitir minuciosamente todas as minhas anota ções - é a falta de continuidade, não digo propriamente da narração no sentido exterior, mas do espírito mesmo que sustenta interiormente o conto. Certas situações nar rativas ou psicológicas sé intercalam ou se suspendem de uma forma que mostra muito bem como a autora não está ainda no conhecimento e no domínio de toda a arte J o r n a l d e C r í t i c a 189 literária. A página final, por exemplo, tem uní' carater afirmativo extremamente arbitrário. Portanto, de ordem contrária ao espÍrito da literatura. A sra. Dinah Silveira de Queiroz deveria ter criado em Júlia um estado de es pírito necessariamente mais convincente para explicar a sua resolução que vai encerrar todo o conto, pela sur- , presa com que se coloca contra o seu desenvolvimento. �A solução foi um achado feliz, mas a sua apresentação literária não logrou o mesmo efeito. Ela foi lançada de uma maneira demasiado abrupta. Mas em literatura, em 1 ficção, não basta dizer ou querer ; o easencial é o desen volvimento num plano de verossimilhança artística. E onde falta toda verossimilhança artística de uma maneira ainda mais osrensiva é no conto intitulado "Pecado" A questão se levanta nesta _pergunta que o leitor se sente levàdo à fazer : como pôde a autora "conhecer" a história do conio ? Como está disposto, eese "conhecimento" ' seria impossível, mesmo no plano da fantasia ou da imaginação. A contista poderia "saber" da morte de Gina ; nas condi ções em que apresenta os personagens e as situações, não poderia, no entanto, "saber" quem a matou e como foi morta. Eetou falando de uma verossimilhança - o que é uma norma de toda a minha crítica em face da literatura de ficção - exigida pela arte, em si meama, e não pela arte em correspondência com a vida ordinária. Com a sra. Dinah Silv'eira de Queiroz, nesse conto, se operou o desencanto que teríamos diante de um mágico que des cobrisse o segredo de suas transformações. Sabemos que é uma "ilueão" a realidade criada pelos mágicos, mas não nos lembramos dessa circunstância quando o seu tra balho tem integridade e perfeição. Temos a idéia de todo um mundo que desaba, porem, quando descobrimos o ar tifício da mágica. Pois bem : o romancsita, o escritor de ficção é um magiCo, é um ilmionista. A perfeição · do seu trabalho está na capacidade de fazer com que se 190 A l v a r o L i n s aceite a sua representação sem nada perguntar. Quando se pergunta, estamos diante de um erro de técnica. Todos os outros contos da sra. Dinah Silveira de Queiroz apre sentam outros defeitos equivalentes, ao lado das suas po sitivas qualidades de composição e de imaginação. Em "Bandeirita", & o convencionalismo das situações políti cas, com as quais, logo se vê, a autora não está habituada a tratar ; em "Raimundo, Babinha e Eunice", é a ausên- · cia de um mais forte desenvolvimento, pelo que permanece um simples quadro, embora bastante sugestivo ; em "A fileira das sombras", é o excessivo sentimentalismo. Deste volume, o conto que mais se afirma e mais interessa é realmente "A sereia verde". Os outros são como que en saio.s e esboç9s. Ainda quero me referir ao estilo da sra. Dinah Sil veira de Queiroz pára ressaltar o que há de agradavel na sua prosa, embora se erguendo sobre uma estrutura muito fragil, que às vezes se torna mesmo fraqueza. Do tom muito leve do seu estilo decorre, talvez, o abuso com que insiste em certos recursos de pontuação. O abuso das reticências e dos pontos de exclamação. Essas pontuações podem constituir recursos muito favoraveis, mas podem significar tambem, quando utilizadas de mais, uma certa fraqueza de palavras, ou de idéias, ou de pensamento, ou de imaginação. Tambem gostaria de chamar a atenção da sra. Dinah Silveira de Queiroz para a ausência de verbos ou de complementos em alguns períodos do seu livro. Em pedodos que não continuam os anteriores, que não participam dos verbos dos perío-dos que os antecedem. Neste, por exemplo : "Essa gente toda, e nós três, a ju ventude - que por um capricho da sorte andávamos nos dezesseis anos - eu ia fazê-los, Marilda já os tinha e Lia ia para os dezessete." De tudo se conclue que o ialento literário da era. Dinah Silveira de Queiroz, que existe realmente, está ne- J o r n a l d e C r í t i c a 191 cessitando de uma maior concentração artística, de um maior contingente de esforço pessoal e de técnica, de uma vida, portanto, mais intensa e mais interiorizada. Em hora correndo o risco de me tornar conselheiral, sugiro à sra. Dinah Silveira de Queiroz a necessidade de des denhar o sucesso momentâneo, todos os elogios faceis, que só podem perturbar a sua carreira e a sua vocação de V'erdadeira escritora. Somente assim, ouvindo os que têm a coragem de o lhe dizer a verdade, fazendo-lhe justi ça, conseguirá vencer uma certa fragilidade que se en contra na sua obra. Uma fragilidade que não vem só da sua condição feminina, mas que é de uma condição mais geral e mais ampla. E o que indica que, . na vida artís tica, a sra. Dinah Silveira de Queiroz terá a coragem de seguir o caminho mais difícil e mais fecundo '--- o da porta estreita - é a constatação da superioridade do seu segundo livro - Floradas na serra - sobre o primeiro que agora publica, sob o título de A sereia verde, emborà não seja ainda o seu admiravel romance a obra-prima que mui tos identificaram com evidente exagero. * Depois de um livro de contos, aquí estão dois ro mances femininos : o Diário de Ana Lúcia, da ara. Maria Eugenia Celso, e A mulatinha enjeitada, da sra. Miris de Mello, ambos deste ano. O livro da sra. Maria Eugenia Celso pode ser considerado como uma espécie de confissão psicológica. Este é, realmente, o seu aspecto mais con sideravel : o de constituir a revelação de uma alma auten ticamente feminina. Ao contrário da sra. Dinah Silveira de Queiroz, sente-se que a .sra. Maria Eugenia Celso está identificada como a sua Ana Lúcia. Qua.se que me arris co a dizer que ela mesma é que é Ana Lúcia, pelo menos no seu traço mais característico : o sofrimento, ora re- 192 A l v a r o L i n s signado, ora revoltado, em face de certos desencontros com a vida ; de certos desencontros entre um ideal fe minino e uma realidade sem sexo. A personagem re presenta a história ( ou a confissão) de uma mulher que não pôde ser ela mesma, de uma mulher a quem o des· tino reservou uma existência diferente daquela a que aspirava o que havia de mais profundo na sua persona lidade. Esta é a história de uma perspnalidade que fica esmagada, escondida, irrevelada. O sofrimento que se adivinha e se sente neste desencontro é o sentimento maia comovente da figura de Ana Lúcia. Daí a sua vocação para o diário ; o diário é uma vocação : a daqueles que não se realizam dentro da vida, daqueles que não se sen· tem compreendidos pelos seus semelhantes. Todo o diá rio de Ana Lucia se concentra neste tema que ela mesma coloca : "Não lhe disse nada, tolhida como semprê pelo receio da interpretação errônea, e deste invencível pudor de ser eu mesma que me tem f_eito na vida tão diferente de mim." A outra parte do livro, em que as reflexões se concentram no abstrato ou na fantasia - esta me parece hem mais inferior. Não tem a espontaneidade e a fir meza das páginas mais simples e mais humanas, umas do diário, outras das cartas, nas quais Ana Lúcia vai se re velando, concretamente, a si mesma. A propósito, estou quase tentando a afirmar que a sra. Maria Eugenia Celso encontra no gênero epistolar o plano literário onde se mo vimenta mai� à vontade. Revela uma vocação à Madame Sévigné que se poderá aquí desenvolver com os resultados mais felizes. Porque um romance, propriamente, não é o Diário de Ana Lúcia; é um enaaio de interpretação psi cológica de carater feminino, embora muito perturbado por certas expressões estilísticas antiquadas ou de mau gosto, .por certos lugares-comuns e pelo uso de certas pa lavras que causam horror a qualquer leitor inteligente. Não é assim o Diário df1 Ana Lúcia um livro importante, J o r n a l d e C r í t i c a 193 mas apenas um livro sóbrio, literariamente elevado, reve lando uma honestidade intelectual que merece ser ressal tada e respeitada. Do livro da sra. Maria Eugenia Celso para o livro da sra. Miris de Mello a passagem é extremamente brusca e violenta. Esta eu creio que não é leitora do sr. Stefan Zweig, pois esse escritor deve estar alto de mais para o seu gôsto, ou para a sua absoluta ausência de qualquer senso da arte literária. Naturalmente o seu ideal se con centra em autores como Pérez Escrich ou Delly. Mas sem apresentar, está claro, o talento d�ses autores : o talento da banalidade e do pieguismo. O seu romance, A mula tinha enjeitada, é piegas e é banal, mas sem ialento de qualquer natureza. Aliás ele não necessita de comentá rios, pois se explica todo ne�te "estilo" de dona de casa : "Era um patrão exigente, mas muito bom para os empre gados. Atendia a todos e a todos ajudava. Por isso, era estimadíssimo, coisa que não sucedia com D. Cândida a quem tratavam bem somente em respeito ao patrão. o orgulho excessivo que a dominava e o seu porte a�rogante tornavam-na antipática. Costumava fazer caridade, mais por ostentação que por amor ao próximo. Esse tempe ramento ela o herdara de sua inãe, uma ilustre senhora descendente de antigos fidalgos do nosso passado império . Devo dizer, porem, que a senhora Cândida Barroso de Andrade nunca fizera mal a ninguem. Apenas deixara de fazer o hem quando o podia ter feito." 4 de outubro de 1941 . CAPíTULO XVII E N S A I O S L ONGE de qualquer conhecimento do sr. SergioMilliet, que não seja o puramente literário, vou . lendo no entanto o seu último livro de ensaios (O sal da heresia, São Paulo, 1941 ) como se me achasse muito perto da sua figura pessoal, como se estivéssemos lado a lado, falando e discutindo como dois companheiros que dificilmente ajustam sa suas opiniões, mas que acabam se entendendo em certas situações fundamentais ; ou acabam concordando em face de sentimentos comuns de tolerância, de displi cência, de dúvida quanto à eficácia das controvérsias. En éontro nos seus ensaios algumas das idéias e sensações ar· tisticas que mais estimo e venho sustentando ; encontro igualmente afirmações que se acham no extremo oposto aos meus pontos de vista. Falando de Péguy, depois de dizer que êle tinha "o ideal do hem, do certo, do i"'Ylto, do belo", o sr. Sergio Milliet acrescenta : "E é nisso que nos encontramos todos, gregos e troianos, todos que ainda não jogaram fora, coino uma pele incômoda, essa intenção humana de pureza, todos os que não transformaram ainda em "terra de ninguem" a �ua alma moderna." Dir-se-á que este representa um plano demasiado vago de enten· dimento e no qual todos os homens se esforçam por se colocar de acordo. Talvez que o acordo com o sr. Sergio Milliet termine por se situar num plano exclusivamente de inteligência. O que caracteriza realmente este ensaísta 6 uma permanente atitude de homem inteligente ; não é D brilho, não é a força criadora, não. é o impulso sentimen- J o r n a l d e C r í t i c a 195 ' I talista. Ele parece tudo querer reduzir a critérios de visão puramente intelectual. Nas suas opiniões, nas suas teses, no seu estilo, em tudo que escreve - é sempre a inteligência que ocupa o primeiro lugar. Por isso mesmo constitue uma tarefa agradavel a leitura da sua obra, em bora fragmentária .e talvez pouco consistente como O sal da heresia, coletânea de páginas de ocasiões diversas e apressadas, nas quais um autor nunca pode se realizar completamente ; e infelizmente são dessa espécie todas as páginas que tenho podido ler do sr. Sergio Milliet. De qualquer maneira, na sucessão de tantos livros de leitura obrigatória, muitos deles se afirmando exatamente pela falta de inteligência, tenho que ficar ainda agradecido aos autores como o sr. Sergio Milliet, que não aumentam (mais ainda : que fazem esquecer) o meu suplício de pro- fissional . . . " Acompanhei, assim, todas as páginas de O sal da he resia como quem estabelece uma longa conversação sobre assuntos conhecidos e sugestivos. O ensaio tem exatamente esse direito, ou esse dever, de se tornar um exercício de comunicação muito direta e muito pessoal. Do gênero ensaio ao gênero epistolar a distância é muito curta e quase imperceptível. Os antigos ensaístas dirigiani-s di retamente ao leitor como criaturas que estivessem pes soalmente ao seu lado. Dessa maneira é que o sr. Sergio Milliet desdobra as suas páginas de ensaísta ; e não será sem interesse saber que inscreveu êste seu livro no signo de Montaigne, invocado e citado logo nas primeiras pá ginas explicativas. Apesar disso, o sr. Sergio Milliet começa por difinir que "o pensamento é o resultado de uma febre". Essa definição nasce da circunstância de confundir o ensaísta os valores do instinto e os valores da razão. O que quer dizer tamhem que ele dá ao pensamento um conceito exa tamente oposto ao que vai revelar pessoalmente com os 196 A l v a r o L i n s seus exercicios literários. Nada no sr. Sergio Milliet in dica que o pensamento seja uma "febre", que "o estado normal do homem seja o de paixão". E' certo que mais adiante, citando Alain, vamos verificar que o sr. Sergio Milliet está circulando numa confu�ão injustificavel de têrmos entre "homem" e "massa humana . . . " Mas quem sabe se não estamos apenas diante de uma daquelas con- trad�ções que o próprio ensaista louva como um atestado de que a inteligência está viva, de que tem força dialé tica, de que apresenta capacidade de renovação ? E não esqueçamos que será mais !acil procurar a linha domi nante destes ensaios, não nos seus desenvolvimentos ló gicos e consequentes, mas nos seus a-propósitos, nas suas digressões, nas suas anotações à margem dos assuntos. O sr. Sergio Milliet divaga em torno dos seus temas, passeia displicentemente através das suas próprias idéias. De re pente lembra-se de que 'le acha muito longe, escreve um "isso nada tem que ver com" - e regressa ao· seu ponto de partida. Devo dizer aliás que o ensaista escreve nestas ocasiões as suas páginas mais consideraveis e mais inteli gentes. Nem sempre o encontramos no mesmo nivel, porem, quando está fazendó crítica direta e imediata sobre autore� e livros. As expressões, por exemplo, com que estuda Francis J ammes foram se desdobrando numa forma de crítica que já se tornou bast11nte convencional. O es� tudo sobre André Gide, embora admiravel como expressãc, constitue, ao meu ver, como interpretação crítica, uma maravilha de incompreensão. Em certo momento, define Gide e Rousseau dizendo "que são pouco franceses os dois, porque isentos de malícia no amor e despidos de es· pírito gaulês". O que positivamente significa não haver dito nada. Tambem em ocasiões semelhantes é que o sr. Sergio Milliet perde mais de uma vez a segurança da expressão estilística, aquela sobriedade e aquele bom -gosto que tanto o distinguem. Espantei-me ao constatar J o r n a l d e C r í t i c a 197 que ele chama Charles Péguy "um polemista de grande fôlego", que fala de "espíritos esfuziantes", que se refere a poetas "do mais belo estofo". Surpresa ainda maior representa a sua invocação da "fulgurante carreira" do sr. Stefan Zweig . . . Das suas páginas sobre assuntos brasileiros, algumas são de uma agudeza e de uma argúcia que bastariam para impor o nome do sr. Sergio Milliet como um en saísta de classe. Distingo, entre todos, os ensaios finais sôbre teorias e técnicas de arte, aplicadas mais direta mente à pintura. Aliás, como se sabe, o sr. Sergio Milliet é um dos nossos raros críticos de pintura, entidades que se vão tornando no entanto tão necessá:rias néste mo mento de renovação artística. Mais do 1qile nunca os pintores precisam hoje no Brasil de ip.térpretes que esta beleçam comunicações e entendimentos entre eles e um público ainda oscilante na indecisão ou na ignorância. Um quadro sempre necessita muito mais de um critico do que a obra de arte literária. Mas não falo só de en saios dessa espécie em O sal da heresia ; falo tambem dos que se formaram �õbre assuntos mais gerais, como "Futebolia" e "Dicionários". "Futebolia" é uma sátira de muito espírito sõbre a linguagem dos cronistas esportivos, mediante uma documentação que logo provoca o riso mais espontâneo e mais alegre ; "Dicionários" representa uma oportunidade para que o sr. Sergio Milliet examine com bastante erudição e sagacidade certas relações entre a nossa língua e a arte literária, sob a proposição de que "após quatro séculos de simples educação profissional, ressen te-se a nossa língua da carência de uma terminologia científica e artística adequada". O ensaio sobre António de Alcântara Machado, a propósito da publicação do seu livro póstumo Cavaquinho e saxofone, parece-me igualmente importante, porque através das suas páginas o sr. Sergio Milliet mostra-se 198 A l v a r o L i n s disposto a sustentar algumas idéias e algumas colocações históricas que lhe são particularmente interessantes. Alem de António de Alcântara Machado, procura defender o papel da sua geração, ao mesmo tempo que o aconteci mento literário, no qual participaram ambos como figuras salientes : o chamado movimento modernista. Por isso, talvez, é que o sr. Sergio Milliet superstima o valor da obra literária de Antônio de Alcântara Machado, chegan do a se referir ao seu "pensamento filosófico'\ o que me dá idéia de um generoso exagero. Ainda outro exagero generoso, estou certo que é o do papel que atribueà Semana de Arte Moderna de · l922, ao dizer : "1922 é um marco da nossa história literária." E' certo que o movi mento modernista representa um marco da nossa história, mas não o movimento que o sr. Sergio Milliet restringe a uma só manifestação e a um só espírito. A renovação das letras brasileiras nos últimos 'vinte anos apresenta um carater muito mais generalizado, muito mais complexo, muito mais dividido. Houve vários movimentos simul tâneos, mas não uniformes, dentro do modelo da Semana de Arte Moderna. A história irá verificar e examinar depois os pequenos núcleos renovadores e até as figuras isoladas que contribuíram para o surgimento e o desenvol· vimento da nova literatura brasileira. E talvez que se venha chegar à conclusão de que o movimento mais fe cundo não tenha sido o da Semana de Arte Moderna. O que não quer dizer, por outro lado, que se possa negar a esse movimento uma contribuição de primeira ordem, so bretudo na faAe iconoclasta, na fase da destruição de va lores envelhecidos e caducos que pareciam pretender a perpetuidade através do mais estúpido convencionalismo. Contudo, dificilmente se poderá falar de "erro" a propósito do §!. Sergio Milliet. E' que êle tudo coloca - o erro e a verdade, o hem e o mal - num plano de relatividade e de oscilações. Defende para si mesmo, e J o r n a l d e C r í t i c a 199 num sentido geral, os direitos da dúvida, do cepticismo, da contradição. Seria, pois, "desleal" argumentar fortemente contra um autor que logo nos previne de que duvida de todas as coisas, de que se contradiz indiferentemente porque o próprio pensamento tem uma realidade contra ditória, de que raciocina "de acordo com o momento e sob a influência imediata das ocorrências". Estamos assim diante de um temperamento cartesiano, exacerbado pelas contradições e descontinuidades de um mundo em revo lução ; estamos diante de um temepramento que pode chegar até a suprema negação, até um niilismo sem mis ticismo. O que não quer dizer que seja exatamente esta a presente atitude �e espírito do sr. Sergio Milllet. Mas o que é certo é que a atitude de cepticismo do sr. Sergio Milliet se levanta como uma reação contra o excessiV'o dogmatismo doe nossos dias, o que o deixa estonteado, ao ponto de falar, sem qualquer justificativa, do "espírito demasiado metafísico do século XIX". Aceito, no entanto, a dúvida e o cepticismo que o sr. Sergio Milliet defende e sustenta com uma seriedade que logo o resguarda do diletantismo ou da falsa originalidade. Aceito o cepticismo como a única disposição inteligente em face do mundo natural ; e a dúvida como o único instrumento para se atingir concientemente ,qualquer categoria de fé. Penso que só se pode verdadeiramente afirmar e acreditar quando muito se duvidou. Quando muito ainda se duvida. Pelo "sal da heresia" é que se atinge a ortodoxia. Mas o "sal da heresia" pode tambem se de'!dobrar: indefinidamente, agindo apenas Mbre si mesmo, o que representa o caso do sr. Sergio Milliet. Até onde o levará a dúvida pela dú vida ? * Tanto tem o sr. Sergio Milliet de céptico e de con traditório quanto o sr. Antonio de Queiroz Filho ( Cami- 200 A l v a r o L i :ri s nhos humanos, São Paulo, 1941 ) de afirmativo e de uni forme. A sua idade intelectual ainda não é a da dúvida. Não sei, aliás, qual seja a idade verdadeira desse jovem ensaísta que venho acompanhando através dos jornais paulistas, com sentimento de interesse e de simpatia. Qualquer que seja, porem, a verdade é que estamos li terariamente diante de um estreante. V áfios aspectos dos ensaios do sr. Queiroz Filho revelam esta circunstânci a : a sua coragem, como que esportiva, de se atirar �obre os temas mais difíceis (escreve sobre Goethe, Nietzsche, Spengler, etc. ) , pouco se importando com as consequências de empresas tão temerárias ; a terminologia abundante, vaga e imprecisa ; o arrojo um tanto ingênuo de concluir, com um ar de quem traz a última palavra para assuntos universalmente debatidos, como os conceitos de "cultura" e "civilização". O que resulta de tudo isso é que o sr. Queiroz Filho ora mutila, ora simplifica ao extremo as figuras e os temas sobre os quais se manifesta. Para ele, os homens e as idéias se apresentam com uma face única ou um só aspecto. Uma vez ou outra, porem, esse pro cesso o leva a um caminho certo, como na sua visão de Claudel por intermédio da infância, de acordo, aliás, com a interpretação de J acques Madaule. Estou certo de que a conquista sistemática e con ciente de uma atitude de dúvida, de prudência, de cep ticismo - não faria mal nenhum ao temperamento afir mativo e exuberante do sr. Queiroz Filho. E' o que iria salvar não só o seu pensamento mas a sua maneira de escrever do seu defeito mais grave : a incontinência verbal. E quando se entenderá, afinal, que não é com o tumulto das palavras, com o jôgo das frases gordas, com a abun· dância dos adjetivos - que um escritor encontra o seu estilo, que um estilo se impõe e permanece na literatura? O sr. Antonio de Queiroz Filho, por exemplo, torna-se mais uma vitima de uma das tendências da literatura brasileira : aquela que procura palavras mais cheias e mais J o r n a l d e C r í t i c a 201 gordas do que as idéias mesmas que vão exprimir. Tudo isso como se não fosse necessária uma absoluta corres pondência entre a idéia e a palavra ; como se a palavra não fosse uma consequência, um instrumento da idéia. As vezes sucede, como em algumas páginas deste Cami nhos humanos, que as idéias se perdem dentro das pa lavras ; ou as palavras aparecem, se ostentando num luxo _ despropositado. O que adianta, por exemplo, dizer de Machado e Euclydes que são duas "soberbas figuras" ? O que adianta dizer de Claudel que é "um fabricante de jóias espirituais" ; do livro de Madaule que é "um pre cioso trabalho" com "belissimas páginas de critica e amor" ? O que significa afirmar que "no estudo da his tória, Chesterton separava o jc;)io do trigo ? " O que me leva a estas indicações é a impressão que sustento a propósito do sr. Antonio qe Queiroz Filho ; a certeza de que nele mésmo se encontram os recursos para atingir uma ordem de pensamento e uma forma mais lite rárias e menos retóricas. Por isso comecei afirmando a minha simpatia .e o meu interesse por essa nova carreira de escritor que se abriu há pouco tempo, ao que me pa rece. Espero, pois, que o sr. Queiroz Filho - e espero através de certas qualidades que encontro desde já : a sua seriedade intelectual, o seu gosto pelo debate das idéias, a sua orientação em face de assuntos e autores que sempre escolhe com muita segurança, exceção do capítulo sobre Alexis Carrel - venha a se tornar mais tarde um verda deiro ensaísta, superando essa categoria de simples co mentador que transmite suas impressões do primeiro mo mento. 6 de setembro de 1941. REGIONALISMO E UNIVERSALISMO I D URANTE bastante tempo um escritor somente do Recife, com uma repercussão limitada <1õbre pequenos grupos de várias outras cidades, o sr. Gilberto Freyre, tornou-s·e, depois de Casa-grande & Senzala, um nome que não só se eleva de mais nos nossos dias como se antecipa historicamente numa colocação natural ao lado de certas figuras isoladas do nosso passado como Joaquim Nabuco e Euclydes da Cunha. A obra do sr. Gilberto Freyre é realmente daquelas que perturbam os contemporâneos. Muito raro o esc�:itor que se destinando a uma permanên cia dentro do tempo tenha sido tambem lucidamente com preendido e justamente avaliado pelos seus companheiros de época. Não preciso invocar os erros e os equívocos dos grandes críticos a propósito dos seus contemporâneos. Todos são muito conhecidos. Talvez sem o sentir, quase sempre sustentam a tendência de ampliar os valores mé dios e de reduzir os grandes valores. Habitualmente es tamos dominados pelo invencível acanhamento de reco nhec�r que num homem que caminha ao nosso lado se encontra um autênticogrande homem do futuro. Esta mos muito próximos e esta proximidade perturba um julgamento de isenção e de estabilidade, um julgamento que só poderá se chamar histórico. A felicidade e a des graça da glória é que ela há-de ser sempre uma realidade póstuma. Eu creio que nenhum contemporâneo mais do que o sr. Gilberto Freyre se encontra nesta perspectiva de uma existência definida mais fortemente no futuro do J o r n a l d e C r í t i c a 203 que no presente. Poderão me lembrar. o êxito do seus livros, a extensão da sua influência, o prestígio do seu nome. Tudo i.sso, porem, se ampliará e se engrandecerá mais tarde, quando esta obra atravessar um processo rigoro so de análise, de exegese, de decomposição. A verdade é que este processo não se encontra sequer iniciado e prova· velmente haveremos de esperar por ele durante muito tem po. O que se escreveu e o que se está escrevendo sobre o sr. Gilberto Freyre tem um carater não só provisório, mas 6U perficial e incompleto. Este escritor tem conquistado mui· tos comentadores, mas não encontrou ainda o crítico que espera. Um crítico tanto no sentido de interpretação como de julgamento. Os seus críticos de hoje só têm feito acumu lar subsídios e materiais - alguns hem pobres de inte ligência e de perspectiva - para os seus críticos de ama nhã. Reinvindicarei mais tarde o privilégio de estar prevendo agora o verdadeiro sentido em que se realizará o desenvolvimento histórico da personalidade do sr. Gil berto Freyre. Mas devo lembrar que a dificuldade de crítica neste caso decorre em grande parte dos seus �.studos especiali zados, das suas aquisições científicas, dos seus processos e métodos até então desconhecidos entre nós. Decorre igual mente da sua obra em si mesma, do que hã de original e de irredutível na sua personalidade. Talvez um tanto desesperado pela ausência de crítica, o sr. Gilberto Freyre resolV'eu se tornar o crítico de si mesmo, o que está muito de acordo com a sua tendência para a introspecção e o auto exame. Não propriamente uma crítica de julga· mento, mas de interpretação, é a que ele vem realizando em seus prefácios, em suas notas explicativas, em alguns dos seus artigos no Correio da Manhã. Uma interpreta ção dessa espécie vamos encontrar na introdução do mais recente de seus livros (Região e tradição, Rio, 1941 ) . E este não será na bibliografia do sr. Gilberto Freyre um livro como qualquer outro. Aquí está uma espécie de 204 A l v a r o L i n s miniatura da sua obra, como em Casa-grande & Senzala está a sua base fundamental. A obra do sr. Gilberto Freyre representa uma espécie de árvore em crescimento, mas já definida e caracterizada na sua natureza e na sua qualidade. Em Casa-grande & Senzala estão o tronco e as raizes. Todos os outros livros, a partir de Sobrados e mucambos, constituem complementos e desdobramen tos, constituem os galhos da grande árvore. Trata-se assim de uma obra que_ tem uma unidade e uma harmonia. Ela cresce e desdobra os seus aspectos, mas se conservando sempre fiel a si mesma e às suas origens. Não sei se está vinculada a um plano objetivo e ostensivo ; o plano a que me refiro é de carater interior e intrínseco. E que já se encontra todo como um esboço ou uma mini a tura em Região e tradição. Este livro contem páginas tanto literárias como científicas, tanto regionais como universais, tanto da mocidade como de hoje. Aqui está o seu discurso de orador da turma do Colégio Americano Gilreath, do Recife, em , 1917, a sua conferência da Pa raíba do Norte sobre Psicari e Bourne, o seu estudo sobre cem anos de vida social no Nordeste, no número come morativo do centenário do Diário de Pernambuco, a pe quena obra-prima que é o discurso "Regresso à Província", pronunciado em 1936 no Recife, e também algumas das suas últimas páginas, alguns dos seus artigos para o Correio da Manhã. Estamos, pois, diante de um livro que sugere a tentativa de fixação de alguns aspectos da his tória literária e cultural do sr. Gilberto Freyre. Esta história começa no Recife, onde tambem acabará com certeza. O Recife é um microcosmo para o sr. Gil berto Freyre. O escritor e a sua cidade se fundem numa mesma unidade orgânica. E já aos dez�sseis anos, o seu discurso no Colégio Americano representa um documento das suas tendências de adolescente. Não se tratava de um menino env'elhecido, de um daqueles meninos hrasi- J o r-n a I d e C r í t i c a 205 leiros vestidos de preto e dos quais êle escreveu depois qUe pareciam "de luto da própria meninice". O seu caso era ó de uma simples antecipação, pois a adolescência permanece ainda hoje o traço mais vivo do seu carater. O "espírito" do seu "Adeus ao Colégio" é o mesmo que anima as suas páginas mais recenteB. Somente o estilo e as idéias ainda se apresentavam vacilantes e indecisas na procura da sua forma e dos seus conceitos. Nêste die curso dirá alguma coisa de que nunca mais se esquecerá : "O tempo que corre é turvo, e não quer a oratória oca c rom�tica à moda dos Lamartines nem os devaneios fi losóficos." E mais adiante, refletindo os efeitos da pri· meira Grande Guerra sobre a mocidade do seu tempo, pro nunciava estas palavras que os adolescentes de hoje poderiam repetir : "Tremendo enigma a decifrar na ver· dade o dessa esfinge que caminha para nós - como a da lenda para Édipo no caminho que vai a Tehas - o desse amanhã terrível que se avizinha, o desse mundn social cavado nas entranhas do subsolo europeu, e a re- 1lentar formidavel, rude, novo, virgem . . . ( . . . ) Nós, os moços de agora, seremos os primeiros a fazer face ao novo mundo social que se levanta das labaredas da Eu ropa com 013 seus mil e um problemas originais. Se custa enfrentar um novo mundo físico, imaginai um novo mundo social, todo sulcado de veias e nervos humanos." Logo depois desse discurso seguia para a América do Norte, onde cursou universidade.:; e frequentou alguns am bientes literários e estéticos dos mais característicos. Nas universidades americanas ele realizou os seus estudoa de ciências sociais e as suas leituras de autores que seriam para sempre os da sua predileção. De muitos déles foi o introdutor e o apresentador no Brasil. Vê-se que já nesse tempo procurava salvar-se dos prejuízos de uma especialização exclusivista. O que costuma louvar no p_ortuguês - um duplo plano de rotina e de aventura - parece ser igualmente um aspecto definidor do seu cara- 206 A l v a r o L i n s ter. Os rigores dos cursos científicos - pesquisas ob jetivas, metodi�ação de processos, disciplina de estudos - não o impediam de frequentar os "loucos" das artes e das literaturas, os "loucos" de todas as categorias, dos quais fará mais tarde o elogio através do seu "Regresso à Província". Frequenta a Universidade de Columbia, mas tambem convive · com os artistas de Greenwich V illage, uma espécie de Quartier Latin americano ; convive com os padres dominicanos e beneditinos da Universidade Cató lica, como o romancista russo Leon Kobrin, antigo compa nheiro de Trotski no jornalismo, com Amy Lowell, de quem foi hóspede na sua casa de Brooklyn, com sábio.s, com professores, com artistas, com políticos, com vaga bundos, com toda a gente que pudesse apresentar um in tecesse humano ou simpleswente intelectual. Esta moci dade nos Estados-Unidos constituiu realmente para o sr. Gilberto Freyre a sua principal experiência de vida. De volta ao Recife não trazia nenhum diploma para uma carreira rendosa e prática. Trazia, porem, o poten cial de uma obra que se tornou uma revolução cultural. A sua figura iria se tornar tambem uma espantosa con tradição em diversos sentidos. Uma contradição que será sempre o segredo da sua personalidade ; o observador co mum ficará desconcertado na contemplação do que há de duplo ou de múltiplo na figura do sr. Gilberto Freyrc : o gentleman de salão ou o companheiro dos cafés, pare cendo o mais sociavel, o mais expansivo, o mais extro vertido,e o trapista, o solitário que se fecha com os seus livros, tornando-se' invisível durante muitos dias ; o mís tico que se sustenta de uma fé ainda não definida e o céptico que parece tudo decompor com uma análise des dobrada em dúvidas e hesitações ; o poeta que se permite os mais amplos devaneis e o cientista preciso e exato em lógica e documentação ; o regionalista que fez da cidade do Recife uma condição da sua vida pessoal e do Brasil uma condição da sua vida intelectual, e o universalista J o r n a l d e C r í ti- c a 207 que ama as viagens e as nações estrangeiras, que compre ende e sente os autores e os artistas de todas as pátrias ; o objetivo e o introspectivo : o lírico e · O ascético ; o tra dicionalista e o revolucionário. Por isso, talvez, é que o sr. Gilberto Freyre tanto se sente fascinado pela com plexidade dos Franciscanos, na mesma proporção em que se Bente afastado da rígida simplicidade dos jesuítas. Tenho a impressão de que estes versos de Racine hão-de repercutir profundamente no seu espírito : " Mon Di eu ! Quelle guerre cruelle ! Je trouve deux hommes en moi ! " Era natural que há vinte anos esta figura se tornasse inaceitavel para Ob conservadores e burgueses, para os li teratos acadêmicos, para os políticos verbosos e vazios. Não eram só as suas roupas americanas, o seu chapéu coco, o sseus hábitos anticonvencionais de vida que es· candalizavam os homens pacatos e estabilizados. Eram tamh�m as suas idéias, o �eu estilo, a sua linguagem. Os acadêmicos e os intelectuais da velha guarda pressentiam que através daquele jovem de vinte _e poucos anos vinha qualquer coisa de original e de revolucionário que os ul trapassaria para sempre. E desde os seus primeiros ar tigos no Brasil começou a se afirmar o que seria a prin cipal contradição aparente do sr. Gilberto Freyre : um autor que viveu a sua mocidade no estrangeiro, ao con tacto de professores, companheiros e livros norte-ameri canos, ingleses, franceses, russos, e que vem se tornar o mais nacional e o mais regional de todos os nossos escri tores. Tudo o que aprendeu, observou e assimilou no exterior convergiu para um sentimento da · terra e da his tória �o seus país. O seu conhecimento das nações es· trangeiras ofereceu-lhe alem de tudo um método que se tornou imprescindível nos estudos sociológicos : o compa rativo. Através dele é que chegou, por exemplo, a esta belecer uma comparação extremamente feliz e exata entre 208 A l v a r o L i n s o Brasil e a Rússia do século X.ü( e dos princípios do século XX. Acho assim das mais importantes e defini doras esta circuru;tância da obra do sr. Gilberto Freyre : uma formação cultural no estrangeiro aplicada a estudos rigorosamente brasileiros. De certo modo repetiu sim bolicamente o mesmo caminho do português do século XVI : a utilização de instrumentos e processos estrangeiros para a descoberta e fecundação da terra americana. Por que a obra sociológica do sr. Gilberto Freyre me parece verdadeiramente colonizadora na sua novidade, no .seu arrojo, na sua capacidade de se transmitir em herança e de se continuar nas novas gerações. E as novas gera ções foram as primeiras que se aproximaram do sr. Gil berto Freyre como são ainda hoje as que se acham mais perto do seu espírito de inalterado adolescente. Os seutl primeiros artigos do Diário de Pernambuco, nos anos de 1922-1925, representavam um pouco aquele mesmo papel das crônicas de Ramalho Ortigão nas Farpas : 1,1m papel pedagógico no melhor sentido. O sr. Gilberto Freyre pro curava ensinar os brasileiros a vestir, a comer, a ler, a construir as suas casas e os seus jardins, a viver, afinal, dentro das condições de seu clima e das suas 0idades. Tambem numa das suas crônicas daquele tempo já ex primia rapidamente um conceito de história que iria ser o dominante em toda a sua obra futura : . a história social. Contudo não seria somente um estudioso e um intérprete da história brasileira, mas tambem uma voz da sua ge ração, uma figura representativa e expressiva do seu tempo. A sua condição de historiador não significa um recurso contra o presente, como o seu nacionalismo não consti tue uma prisão contra o mundo. Estuda a hi stória como um ser vivo, da mesma maneira que ama o seu país mantendo alerta o espírito de crítica e de análise. E esta condição de vida e de atualidade faz do sr. Gilberto Freyre um intérprete da sua geração. A idéia de geração, aliás, ele próprio atribue uma especial significação, como o definiu J o r n a l d e C r í t i c a 209 na sua conferência Apologia pro generatione sua, de 1924 : vê uma geração continuando a outra, a mais nova sempre sentindo a necessidade de realizar retificações e compensações sobre os legados das que a precederam. A sua obra será uma expres.são dessa sua idéia ; apresentará, ao lado de uma força cria dora de car.tter independente, uma capacidade critica p ara retificar e compensar al gumas das figuras mais consideraveis , da nossa história literária. Talvez por isso foi que os homens da sua ge· ração começaram de.sde logo a se aproximar do sr. Gil berto Freyre. Uns mais velhos e outros mais novos ; todos ligados por um mesmo espírito, capaz de centralizar ten dências diversas e personalidades diferentes. Começa desde então a sua poderosa influência sobre escritores e artistas brasileiros e até estrangeiros. Uma influência cujas proporções no Brasil lembram a de André Gide na Françi. Neste sentido o prefácio do sr. José Lins do Rêgo em Região e tradição - uma página admiravel não só pela expressão literária mas pela sinceridade das suas confissões, lembrando os melhores momentos do ensaísta que antecedeu o romancista no autor do Ciclo da Cana de Açucar - constitue uma espécie de documento sim· bólico. Um depoimento que muitos outros poderiam subs crever. Do Recife, a influência do sr. Gilberto Freyre se estendeu a alguns dos seus amigos do Rio e de São Paulo, tornados depois figuras representativas - poetas, ro mancistas, ensaístas - da literatura brasileira de hoje . Ainda consideravel se tornou a sua influência sobre pin tores, ar./uitetos, engenheiros. Todas no sentido de rea· lizações mais humanas e mais brasileiras, mais verdadei ras e menos enfáticas, mais naturais e menos retóricas. Mas depois de Casa-grande & senzala a influência deixou de se realizar numa esfera limitada de amigos e de grupos para se tornar, com o conhecimento da sua obra, um fe nômeno geral tão amplificado que se tornou de diHci] detertpinação. Ae suas idéias, os seus processos, a 8Ua 210 A l v a r o L i n s linguagem, o seu estilo estão marcando há oito anos as letras brasileiras. O que era sua propriedade particular se tornando um pouco arbitrariamente propriedade de todo o mundo. Uma tamanha influência só pode se explicar pela ori ginalidade da sua obra. E esta originalidade parece-me defiiJ.Ída em dois sentidos que convergem e se unificam numa mesma direção : os seus estudos de ciência social sohre a vida brasileira e o seu estilo literário. Através do desenvolvimento da casa-grande e da senzala recons tituiu todo um sistema político, econômico e social que foi o dominante na sociedade brasileira e que ainda hoje se prolonga em algumas de suas manifestações. O ,;eu livro Casa-grande & senzala representa, assim, uma es pécie de descoberta do Brasil, como Os sertões, de Eu clyde!! da Cunha. O que Euclydes realizou num sentido antropogeográfico, o sr. Gilberto Freyre realizou com um processo novo o •histórico-social num sentido histórico e sociológico. Mas não só o sr. Gilberto Freyre utiliza um processo novo, mas tambem uma nova concep ção sociológica e histórica. E e.sta nova concepção se de senvolve num movimento de profundidade que procura as próprias fontes originárias da vida e não apenas a sua superestrutura. Não procura nos homens somente os seus gestos, as suas palavras, os seus atos, mas sobretudo o estado conciente e suhconcienteque os determina ; não procura na sociedade somente as suas formas estabiliza· das, mas o caminho que ela seguiu até a sua constituição num sistema organizado. Atribue aos fatores econôm.i cos a sua verdadeira influência, ao lado das causas psicoló gicas. Estuda a alimentação ao lado do clima ; as raças ao lado das classes ; os fatos espetaculares ao lado dos pequenos episódios de todos os dias. Parte sempre do particular para o geral, do ohjeto para o conceito, da idéia para a forma. Daí o seu interesse pela minúcia, pelo detalhe, pelo aparentemente insignificante, pelos J o r n a l d e C r í t i c a 211 anúncios de jornal, pelos diários íntimos, pelas cartas, pelos livros dos viajantes. Daí tambem a sua ausência de ênfase, de dogmatismo, de tom doutoral. A principal acusação talvez por isso que se faz ao sr. Gilberto Freyre é a de ser um sociólogo que não conclue. Acredito, ao contrário, que nesta acusação se encontra o seu principal elogio. Não é verdade, aliás, que ele se negue a con cluir. Encontro conclusõ�s por toda parte nos seus livros. A penas são as conclusões naturais e lógicas da sua obra e não conclusões arbitrárias de fórmulas, de receitas, de sistemas, de camisas de força ideológicas. As suas apre sentam um carater prudente de sugestões. E os que con cluem de outra maneira, -os que concluem dogmatica mente, correm sempre o perigo de um esquecimento ou de uma retificação daqueles que vierem depois. O sr. Gilberto Freyre poderia i�screver como legenda da sua obra esta verdade que An{lré Gide exprimiu em Jnciden· ces : "11 re.ste, dane ses livres, de la question sane ré pouse et c'est ce qu'on y trouve de meilleur. Malheurs aux livres qt.!i concluent ; ce sont ceux qui d'abord satis font le plus fe public ; mais au bout de vingt ans la con clusion é crase le livre." O estilo do sr. Gilberto Freyre é uma con.,equência do que há de original e de pessoal nas suas i déias e na sua obra. A um pensamento novo corresponde sempre um estilo igualmente novo. Porque o estilo não é o ins trumento de uma obra, mas a própria forma desta obra. E é tambem o seu elemento de duração e de perpetui dade. Nele encontraremos sempre os três atos da velh a e insubstituivel definição de Buffon : "Bien écrire, c'est bien penser, bien sentir et bien rendre." Diz Pirandello que todos os seres morrem porque têm forma, enquanto que é precisamente pela forma que subsiste a obra de arte. O sr. Gilberto Freyre criou um estilo de arte li terária para exprimir uma obra de ciência. Este fato sig nifica uma dupla vitória para a ciência e para a litel'a- 212 A l v a r o L i n s tura. Realmente o seu estilo apresenta-se, ao mesmo templo, geométrico e poético : geométrico pela sua pre cisão, poético pela sua música interior. Aparentemente o seu estilo mo.stra-se difícil, e é possível lfiesmo que irrite o leitor no primeiro encontro. As frases se que bram constantemente em parênteses, em suspensões vi� guladas, em traços explicativos. O hábito, a convivência resultará depois num verdadeiro prazer para os olhos e os ouvidoa. O estilo do sr. Gilberto Freyre lembra neste sentido o estilo de Mareei Proust. Ambos se afastam da linha dos estilos tradicionais das suas línguas. Ambos estão determinados pela introapecção e pela busca do "tempo perdido", um no homem, o outro na sociedade, Ambos estão sustentados por uma unidade interior que contrasta com a desconexão exterior. Ambos se destinam a exprimir nuanças e detalhes em literaturas dominadas pelaa idéias gerais. Ambos apresentam um "fio de Ariad· na" no meio de construções às vezes verdadeirãmente labi rínticas. Atribuo por isso ao estilo literário do sr. Gil berto Freyre aquela mesma significação que ninguem nega aos seus estudos históricos e sociológicos. Na revo lução cultural que ele desencadeou é o seu estilo que comanda. li O que se pode dizer do estilo do sr. Gilberto Freyre vai ter aplicação ao caso da sua linguagem. Ainda aquí encontramos uma ostensiva convergência de regionalismo e de univeraali smo, os dois caminhos que se cruzam e se unem em toda a obra do autor de Casa-grande & sen zala. Torna-se visível a presença de anglicismo, de fran· cesismo, não tanto no emprego das palavras estrangeiras mas sobretudo no ritmo, no som, no gosto que imprime às suas conatruções e inovações de linguagem e de estilo. Sobretudo a sua linguagem haveria de íicar marcada pelo J o r n a l d e C r í t i c a 213 que subsiste da sua permanência no estrangeiro, do seu conhecimento intimo da língua inglesa, da sua convivên cia de todos os dias com idiomas diferentes do português. Mas ainda uma vez a sua individualidade brasileira con segue se defender do que se poderia ter tornado uma ti rania ou uma absorção. A língua inglesa constituirá uma influência na sua obra, mas de maneira nenhuma representará uma força dominante ou sequer caracteri zadora. A linguagem brasileira é que será esta força de caracterização e de domínio. Na sua linguagem, como na sua obra, o sr. Gilberto Freyre consegue conciliar e har· monizar o nacional e o estrangeiro, o antigo e o moderno, o aristocrático e o popular. Reálmente, tendo atingido uma construção estilística de carater aristocrático, o Br. Gilberto Freyre utiliza-se da língua do povo, de ' uma língua mais falada do que escrita. Deve-se notar, po· rem, que esta utilização não é arbitrária, mas subordinada ao conhecimento da língua portuguesa, inclusive dos seus clásGicos que não se mumificaram. Todas as suas inovações, mesmo as que parecem mais lihertárias, SCJ apoiam sobre uma lógica idiomática que pode não coin· cidir com a dos gramáticos, mas que coincide com o mais verdadeiro espírito da língua portuguesa. O que carac teriza a sua linguagem é um certo dom de transmitir dall coisas e da sua realidade uma sensação como que de ca rater físico e direto. A sua linguagem tem capacidade descritiva, sendo antes de intenção sugestiva ou simples mente definidora. Por isso, talvez, utiliza tantas palavra� novas, e aproveita tambem outras que pareciam mortas ou esquecidas. E somente mais tarde, como é do destino dos renovadores, será possível saber se fez bem ou mal na sua decisão de encher um livro da altura de Casa ·-grande & senzala com certos termos que .se pensam e se dizem, mas que não se escreviam até então. Mesmo que venha a ser condenada, porem, há-de ser tomada como 214 A l v a r o L i n s um· processo.. de luta, talvez exagerado mas necessano, contra um absurdo convencionali-smo de linguagem que vinha dominando as nossas letras. Apesar disso, o seu vocabulário é numericamente pobre, o qüe tem sido uma condição de todos os grandes escritores, inclusive de al guns daqueles que mais se preocuparam com o estilo, como Flaubert e Eça de Queiroz. O que caracteriza antes de tudo, com efeito, a linguagem do sr. Gilberto Freyre não é a abundância, mas a vida interior ; é a precisão, é � plasticidade, é o poder sugestivo, é a construção geomé· trica e poética ao mesmo tempo. E com esta linguagem e este estilio de renovador que se apoia na tradição ·o sr. Gilberto Freyre contribue para um enriquecimento da língua, no sentido que lhe acrescenta uma nota de mais naturalidade, de mais valorização de elementos populares, de maior poder interpretativo e descritivo dos fenômenos não só literários mas científicos. Sem que seja um vulgarizador, o sr. Gilberto Frt>yre realiza uma obra científica utilizando um instrumento de expressão' perfeitamente acessível. Ele retirou da ciência todo o seu ar de mistério, de cahalismo, de seita maçoniCa. Tornou-a mais natural, mais ' humana, mais viva. A ciência das terminologias exóticas e dos siste· mas fechados envolve sempre uma pedanteria inutil ou uma mistificação conciente. Ou um ·sentimento de osten tação ou de, fraqueza. Muitas vezes o que se esconde por detrás de uma forma pomposa ou enfática é o mais fra gil e o mais puerH de todos os pensamentos.Desde os meus dias de colegial o que mais me espantou nos com pêndios chamados de ciência foi esfla preocupação de tor· nar complicada uma coisa que deve ser simples por sua especw mesma. Nunca pude compreender que se reves tisse de uma fôrmula deshumana uma realidade tão hu mana como a da ciência ; a ciência que significa a pró pria história da vitória do homem sobre a natureza. UI- J o r n a l d e C r í t i c a 215 timamente a invasão prussiana dos técnicos ainda veio tornar mais irrespiravel e estreito o ambiente científico. No Brasil, uma contribuição importante do sr. Gilberto Freyre é esta de estar realizando obra de ciência sem o abuso das terminologias cabalísticas e sem a rigidez dos sistemas autoritários. E nem por isso a sua ciência se torna menos positiva, menos séria ou menos exata. Ao contrário. �Que se observem, por exemplo, as palavras simples, as palavras de todos os dias com que estuda pro blemas e fenômenos de ciência social, de medicina, de ar quitetura, de higiene, de alimentação, de história, de geo· grafia, de arte. É possível que sofra com isso um pre juízo de aparência, mas estou certo que as aparências lhe são inteiramente indiferentes. Não lhe importa eaber que um pouco menos de sabedoria e um pouco mais ' de arrogância implicaria para o seu nome uma consagração oficial e petrificada. Com efeito, a ausência de ênfase e de rigidez transmite muitas ve.zes uma impressão dimi nuída a re�peito da profundidade, da extensão e da se riedade dos seus conhecimentos científicos. Mas vencida esta impressão superficial, o que verificamos é que pou cos liV'I'os terão como os seus - sobretudo como Casa -grande & senzala e Sobrados e mucambos -- um mate rial científico tão abundante e tão consistente. Em N ar deste este carater científico ainda se -torna mais discreto diante da substância poética que o absorve todo e que se torna a própria vida do livro. Todo o livro, aliás, tem o espírito de um poema : do açucar, das águas, da terra, dos animais, do homem. Parece sem dúvida que o sr. Gilberto Freyre desde· nha aquela "torre de marfim" onde se recolheram tan tos cientistas com a pretensão de torná-la :muito mais inacessível do que a outra, a dos poetas simbolistas da fase nefelibática. E acredito que se salv·ou da torre de marfim não só por efeito da sua lucidez intelectual, maa 216 A l v a r o L i n s tamLcm como uma fidelidade a certo cepticismo que é fundamental no seu temperamento. A ciência organi zada em sistema rígido, em princípios imutaveis, em fór mulas matemática.s - esta cu creio que nunca o tentou. Na verdade, somente o que tem categoria sobrenatural, a religião, pode se exprimir e se revelar em dogmas . O que somente tem categoria natural, a ciência, há-de su· portar sempre uma revelação instavel, provisória, subs tituivel. Este é um ensinamento que nos vem não só da razão como da própria história da ciência. As teorias científicas e os seus sistemas se substituem todos os dias. O que permanece é o conhecimento desinteressado, é a pesquisa objetiva, é o esforço puro de comunicação do homem com a natureza. :ítste é exatamente o plano onde se movimenta o sr. Gilberto F'reyre. Não o encontramos prisioneiro de nenhum sistema científico. O seu cepti, cismo o impede de se lançar em definições categóricas : nem as formula nem as aceita. Procura conservar-se livre para identificar a verdade onde quer que ela se encontre. Deve-se compreender que no mundo não exis te só uma Verdade, mas muitas verdades parciais , as pe quenas verdades da vida física, natural e social. Infe lizmente o sr. Gilberto Freyre não atingiu o conhecimento da Verdade, mas tambem não - pretendeu erigir em Ver da_de nenhuma das verdades parciais do mundo natural. Poder-se-ia dizer que estou fazendo, através do sr. Gil berto Freyre, um elogio do ecletismo, que já se acha en· velhecido e desmoralizado. Creio que farei realmente um dia este elogio do ecletismo e do cepticismo num sentido especial que constitue uma das minhaa mais íntimas ten tações intelectuais. Mas desde já gostaria que ninguem confundisse o verdadeiro ecletismo com um movimento que sob esse nome teve o seu momento de vitória e de brilho no século passado . Esse foi precisamente o que envelheceu e se desmoralizou porque se constituiu, ele, J o r n a l d e C r í t i c a 217 mesmo, num sistema e numa escola, quando o verdadei· ro ecletismo significa uma transcendência de escolas e de sistemas. Não tento, portanto, um paradoxo ou a res· .surreição de uma velharia, ao afir-mar as excelências e as virtudes do ecletismo. O que vejo no ecletismo é a sua possibilidade de unir as verdades parciais que se acham espalhadas e distantes, é o privilégio de não se escravizar ideologicamente, é a disposição de poder ver e sent.ir unanimemente. Uma desgraça dos homens do sé· culo XX vem do seu desdem por todo cepticismo e por todo ecletismo. E antes que me recordem a minha con· dição de católico, quero dizer que exatamente da Igreja é que me veio a melhor sugestão para o ecletismo. Da Igreja, que aceita todas as verdades parciais, que aceita todas as verdades, as mais diversas, da política, da ciên· cia, das artes, de todos os fenômenos de ordem natural que não pretendam a mistificação de substituir os fenô· menos de ordem sobrenatural. O ecletismo do sr. Gil berto Freyre é este de ordem natural que se concilia muito hem com a inteligência do homem e com a reali· dade da natureza. E esta atitude de espírito é que lhe permitiu, por exemplo, um aproveitamento do materia· lismo histórico e da psicanálise, embora repelindo em ambos o que contêm de sistema filosófico e de concep�ão geral da vida. Aproveitou de ambos o que neles existe de exata observação histórica ou de pesquisa objetiva sobre o homem e a sociedade, orientando-se pelo princí pio que ensina a ver o aspecto de verdade que sempre se acha dentro de todos os erros. Ou, como diz Chesterton : todos os erros são verdades violentadas ou enlouquecidas. Ao estudar a sociedade brasileira verificou o sr. Gilberto Freyre que algumas das idéias de Marx se lhe aplicavam para uma definição do seu carater e do seu desenvolvi mento. Utilizou-as sem que se constituísse um partidá rio do marxismo. Ao estudar o comportamento indivi- 218 A t v a r o L i n s dual e social dos homens, notou que muitos dos seus ges tos e dos seus atos se explicavam por intermédio de ob servações e verificações de Freud. Utilizou-as sem que se tornasse um psicanalista sistemático. E.sta mesma dis ponibilidade explicará a sua posição diante da Igreja. E esta é uma posição que se acha coberta de preconceitos e ' de mal-entendidos. Todos sabem que o sr. Gilberto Frey re não é um homem da Igreja, mas tambem será neces sario dizer que não é um seu inimigo. Em toda a sua obra, ao que pude examinar, só uma vez - em Uma cul tura amt;açada, como tive ocàsião de acentuar em uma destas crônicas - encontrei- uma afirmação que me pa receu errada e contrária à doutrina da Igreja : quando afirma uma maior amplitud� do plano sociológico so bre o plano teológico. Antes de tudo deve-se notar que a obra do sr. Gilberto Freyre não é uma obra d! filosofia ou _de doutrina religiosa. Em geral, ele nunca se en contra diante das chamadas que.stões fechadas da Igreja. O que debate e examina é a ação missionária, que se con funde com a colonizadora, de p adres e ordens religiosas no Brasil. Trata-se da ação temporal da Igreja, de todo o amplo domínio em que as controvérsias e as discussõeB se tornam possíveis e até necessárias entre os próprios católicos. AsclÍm, o que um católico pode fazer contra o sr. Gilberto Freyre é uma contestação de carater histó rico ou sociológico, mas não de carater religioso. Quanto a mim, não posso deixar de assinalar a sua simpatia para com a Igreja, da qual já estev'e tão aproximado, como ve rificamos através destas páginas de Região e tradição. Mais ainda : noto emtoda esta obra em disponibilidade uma espécie de presença de Deus que não me engana a respeito da tormentosa vida interior que o sr. Gilberto Freyre esconde sob aspectos de indiferença e de sereni· dade. Protestantismo, jansenismo, Pascal : é todo um ca minho de inquietação, de dúvida, de procura, de nostal- J o r n a l d e C r í t i c a 2 19 gia de Deus, que encontro marcando a vida do sr. Gilber t - o Freyre. Diante mesmo da ciência de sua especialização - a sociologia - conservou o sr. Gilberto Freyre uma com pleta liberdade de movimentos e de idéias. Ele avança nas suas ' pesquisas não como quem se destina a um fim estabelecido, mas como quem realiza uma aventura da personalidade. À maneira de outras ciências, a sociolo gia desdobrara logo os seus quadros em limites absorven tes. A sua principal pretensão foi a de erigir a socie dade na categoria de realidade onipotente da vida. Em Dukheim essa obsessão do social acima de tudo atingiu o grau máximo de uma sistematização. A sociologia ten dia, pois, para uma verdadeira deshumanização, para uma eliminação do homem como ceníro do mundo natu- 1·al, para uma reação, . embora nem· sempre conciente, con tra o humanismo tanto teocêntrico como antropocêntrico. Hoje, porem, já se vai estabelecendo uma nova tendência sociológica que visa a valorização da personalidade hu mana, que visa um equilíbrio e uma harmonia de valo res entre o ser pessoal e o ser social. O sr. Gilberto Frcy re se acha dentro desta tendência, que corresponde bem à sua formação e às suas idéias individuais. Nada na sua obra de sociólogo indica u� propósito de fazer da so· ciedade um· mito ou uma entidade independente. O que nela o interessa, ao contrário, é a sua condição de aglo merado humano, permanecendo, por isso, móvel, hetero gênea, plural. O seu processo de estudo apresenta-se mui to definido nessa direção desde os primeiros ensaios que se encontram agora em Regüí.o e tradição. É a reali dade do homem, em primeiro lugar, que procura compre ender e difinir. Daí o seu regionalismo que constitue a fase inicial d{)s três ciclos sociais do homem : o regional, o nacionall, o universal. Ou como ele próprio afirma em todos os seus livros, e em Uma cultura ameaçada nesta 220 A l v a r o L i n s síntese magistral : "universalismo combinado com regi o· naliBmo - combinação que se apresenta, cada vez mais, ·j como a solução dos problemas de ajustamento dos ho· · meus entre si e de todos aos recursos regionais de natu reza : récursos vegetais, animais, minerais". Uma com· preeDBão de ordem contrária significaria a concepção de uma sociedade abstrata e apenas teoricamente definida. Por isso o sr. Gilberto Freyre investiga antes de tudo a s condições de vida que estão mais perto do homem e que o explicam mais profundamente : as regionais. As ' Condi ções da sua casa, da sua cidade, das suas ruas, da sua classe, da sua profissão, dos seus hábitos, da sua cozinha. Depois, as de organização política, de nação, de raça, de cultura. Ficamos, assim, em face de um desdobramento completo do ser pessoal dentro do ser social, partindo do mais particular e do mais íntimo para o mais geral e o mais simplificado. Atinge desse modo o estudo do ho mem brasileiro através de dois caminhos : o das suas con· dições particulares de vida e o daB suas condições uni· versais de expressão de três raças. Por isso merecem uma igual atenção na sua obra a cozinha nordestina e o processo de formação histórica e étnica dos portugueses, dos africanos e dos indígenas. O seu regionalismo não se impõe como um fim, mas como um princípio. E este regionalismo é que determina por sua vez o seu amor à Tradição e à Província, duas fôrças que vivem uma da outra. O seu conceito de nação é o de uma unidade com plexa, ou mais exatamente : o da div�rsidade dentro da unidade. A nação brasileira, principalmente, não supor ta outro conceito diferente deste. Estamos, em todos os sentidos, caracterizados pelas diferenciações e particula ridades regionais ; estamos marcados pelo destino de uma vida provinciana que encontra no regionalismo e na tra dição as suas fontes mais vivas e mais saudaveis de orga· nização nacional. E como lembrou certa vez o sr. Ma· nuel Bandeira, "o Brasil todo é ainda 'província". J o .r n � l d e C r í t i c a 221 " Esta vida provinciana e regional se explica, aliás, ,�la própria formação histórica do Braodl, como a situou 6 sr. Gilberto Freyre em alguns destes ensaios de RegiJ.o e tradição, desenvolvidos depois em Casa-grande & Sen· zala, Sobrados e mucambos, Nordeste e numerosas outi·as lfublicações. Explica-se pelo patriarcalismo, pela organi , zação escravocrata e híbrida que definiu a · nossa paisa· gem humana e social. E a sua atitude diante das três raças que formaram a nossa soeiedade e que fixaram aíl suas condições vitais - deve-se notar gue é mais de com preensão -do que de aceitação. Quero dizer : a aceitação resulta da compreensão. Parece-me realmente divertido que se tenha hoje saudade de uma coisa que �ão se rea lizou no passado e que se tornou impossível para sempre : saudade de uma colonização holandesa, francesa, ingle sa ou alemã. No entanto, a atitude do sr, Gilberto Freyre diante desta colonização portuguesa ( como diante dos Estados-Unidos, ma.s esta representa toda uma outra ques· tão) não é de maneira nenhuma apologética. É uma atitude que se afirmou pela inteligência e pelos estudos históricos e não através de qualquer impulso sentimenta lista. Acho que se podem resumir assim as suas conclu sões neste .sentido : que o português, mais do que qual quer outro povo, se achava destinado a realizar uma co lonização nos trópicos ; que o cara ter desta colonização exigia a colaboração do negro e do escravo ; que a vitória, na formação brasileira, do afri,cano sobre o indígena, de· correu da circunstância de haver o negro se apresentado em condições de cultura mais elevadas e mais caracterÍB· ti v as do que as do índio (v. Casa-grande & senzala e O mundo que o português criou) , Além disso, pela sua constituição histórica e étnica o portugtiês estaV'a numa situação privilegiada para promover a fusão das trê.s ra ças, para realizar uma completa miscegenação. E já agora que formamos um poV'o nesta linha de coloniza- 222 A l v a r o L i n s ção portuguesa, nada importa senão defender, desdobrar e completar esta mesma linha histórica e étnica que .fe colonial passou a ser nacional. E muitos doa que a con denam partem de um ponto de vista simplista e falso : o que eles deploram é a ausência de um grande progresso material, das máquinas, dos arranha-céus, da febre do� negocws. eira, este é um ponto de vista falso porque; sabe-se, a organização industrial e técnica de um país constitue um enriquecimento de civilização, m a s não a civilizaÇão em si mesma, no seu sentido essencial. O en riquecimento será mais facil de criar e de conquistar do que a base de uma civilização -'-- esta de carater espiritual, moral e religioso. A excelência da colonização portu guesa vem da firmeza com que assentou para sempre esta base. Uma base tão firme que é ainda hoje para ela que apelamos nos nossos momentos mais críticos de con fusão, perplexidade e dúvida. Com todos os seus de feitos e com todas as suas deficiências - toda coloniza ção implica vioiencia e destruição - é esta no entanto a lição que nos transmite o legado do BraGil colonial. Esta é igualmente uma lição que decorre da obra histórica e sociológica do sr. Gilberto Freyre, com as suas raizes plantadas nas proprias raizes do Brasil. 5 e 12 de julho de 1941. CAPíTULO XIX tJM ENSAISTA DA FILOSOFIA N . . UNCA s� explicar� c�ni suficiente exati.dão ? _que de.:. termma a ausenc1a de um verdadeuo filosofo no Bra.sil. Podemos recorrer aos argumentos dá nóssá ju ventude cultural, da nossa êivilização incipiente, do auto didatismo dos nossos estudos, da falta, até há pouco, de cursosuniversitários e sistemáticos - mas são causas to das estas que uma personalidade verdadeiramente filosó fica poderia vencer e ultrapassar. O que Farias Brito realizou, como dehatedor de problemas e sistemas filosó ficos, contra todas as contingências do seu tempo e do seu meio provinciano, ele o teria igualmente réalizado, como filósofo, se a sua constituição intelectual lhe hou vesse reservado esse destino. Um filósofo, como um poe ta, encontrará sempre em si mesmo os recursos necessá rios para a sua expressão, a despeito de quaisquer limi tações locais ou temporais. A história da filosofia apre senta mais de um exemplo nêste sentido. Por outro lado, vemos que também Portugal não apresenta um só filó sofo. O único português que parecia portador de um_a autêntica vocação filosófica acabou se exprimindo apenas poeticamente : Anthero - de Quental. O que existe de pensamento filosófico, na sua obra, acha-se disperso ou condensado na substância e na forma poética. Talvez que se possa encontrar, assim, na herança portuguesa, a causa da ausência de um filósofo no Brasil. As faculda des especulativas e críticas, a capacidade de ·tratar os pro blemas abstratamente, o dom do estudo paciente, desin teressado e introspectivo - não parecem , muito habituais nos homens luso-brasileiros. Mas não lamentemos de mais 224 A l v a r o L i n s essa herança vazia (uma simples hipótese, aliás ) quando recebemos de Portugal tantas outras que enriquecem e valorizam um patrimônio literário ou intelectual. O dom de uma visão poética da vida, por exemplo. A poesia e a filosofia são dois caminhos que se destinam igualmente a um conhecimento da vida, a uma penetração interior na realidade do mundo. Na ausência dos filósofos, con tentemo-nos, pois, com a presença dos poetas. Una e ou· tros são videntes. Os nossos cantores líricos substituem os filósofos que nunca tivemos. E talvez que não SCJ !l uma heresia afirmar a superioridade, a pureza e a gr::m deza da visão dos poetas. Em geral, eles atingem sempre uma posição que ultrapassa a mais audaciosa conquista dos filósofos. Por isso, com certeza, os filósofos procuram hoje se aproximar de um conhecimento da vida que é mais poético do que filosófico. Poeta volta a ser, como nas suas origens, "um criador". A poesia se encontra no centro da filosofia moderna, sobretudo do movimento filosófico (o existencialismo) que está sugerindo estes comentários. A êsse respeito, quase que poderíamos fa lar de uma identidade de linguagem, de símbolos, de pro· cedimentos, de fins. Estamos, aliás, no itinerário dos grandes filósofos de qualquer tempo, como Platão ou Nietzsche, nos quais dificilmente se poderá precisar onde acaba a elaboração poética e onde começa a elaboração filosófica. Toda a história da filosofia, aliás, está mar cada por esta dúvida : o conhecimento que a filosofia transmite é de cara ter científico ou poético ? O seu mé todo é a experimentação positiva ou a intuição ? A sua estrutura é o logicismo ou a iluminação transcendente? O seu fim é uma proposição de regras para a existência ou o simples conhecimento da existência, a especulação e a expressão puras nos domínios do pensamento ? Este é o diálogo que os sistemas filosóficos estão sustentando através dos séculos, J o r n a l d e C r í t i c a 225 No Brasil, muitos destes sistemas têm encontrado adeptos, comentadores e exegetas. Se a nosaa história não apresenta filósofos, revela, no entanto, numerosos historiadores ou comentadores de sistemas filosóficos : e alguns deles com uma significação que não será possível desdenhar. E não esqueçamos que se dedicam a uma tarefa que exige um máximo de sacrifícios, inclusive os dae condições do nosso meio, onde nunca encontrarão toda a correspondência e todo o êxito que merecem. Eles têm sido, no entanto, os instrumentos de comunicação entre o Brasil e as grandes correntes universais de idéias. Quan· tos sistemas filosóficos teriam ficado inteiramente desco nhecidos, entre nós, sem a obra dos seus exegetas e co mentadores brasileiros? Quase que estaríamos às cegas nesse domínio intelectual, sem a obra de um Farias Brito, de um Tobias Barreto, de um Sylvio Romero, de um Tei· xeira Mendes, para só citar alguns mortos ilustres, como ex em pios. V á rios desBes sistemas filosóficos puderam mesmo encontrar no Brasil uma interpretação particular, dentro do feitio, da formaÇão e das disposições intelectuais dos seus comentadores. E essa interpretação pesBoal ( tor nada nacional, no seu conjunto) de sistemas e correntes filosóficas, é a unica contribuição que até agora temos podido oferecer aos estudoB de f.ilosofia. Mesmo assini; o número dos que são capazes desse empreendimento não pode ser grande. O estudo da filosofia apresenta difi culdades e exigências t_ão penosas e tão ásperas que aca ba por se tornar o privilégio de um pequeno número. Nessa categoria, exatamente, é que se encontra o sr. Euryalo Cannabrava, dedicado com seu livro de estréia (Seis temas do espírito moderno, Rio, 1941 ) ao estudo da filosofia e de certos problemas fundamentais da nossa época. Este livro, aliás, só é de estréia num sentido con vencional ; todas as suas páginas foram antes publicadas ;na imprensa, onde o sr. Euryalo Cannabrava aparece se- 226 A l v a r o L i n s manalmente como nm de seus colaboradores mais ilus• tres. Estamos, pois, diante dé um autor já suficiente mente conhecido e sobre o qual todos os seus colegas já fizdam o devido julgamento. Não creio, porém, que o sr. Cannabrava seja igualmente conhecido e estimado no seio do grande público. Muitos devem ser os que aban donilram para sempre os seus ensaios depois de uma pri meira tentativa de leitura. O que ele escreve não é facil nem agradavel para o leitor ; e logo na introdução deste volume previne que enfrenta diretamente os aspectos mais dificeis dos problemas "sem preocupação alguma de agra dar o leitor, ou de lhe poupar as asperezas de uma dura escalada". Trata-se de uma circunstância que resulta ao mesmo tempo do assunto' e do autor. O assunto é a fi losofia, e todos sabemos as dificuldades que aí se encon tram para quem se acha fora desses estudos especializ"ados. Dificuldades essenciais, de pensamento, umas ; outras, ·de terminologia, de técnica, de forma. O autor, por sua vez, escreve num estilo que nada tem de artístico, ou de atraen te, ou de agradavel. A densidade das suas idéias vai provocar a · densidade correspondente na expressão for mal. E o estilo será o único meio capaz de impor um filósofo ao interesse do grande público. Bergson não . é facü, mas é o seu estilo que nos transmite essa impres são de facilidade que nos arrasta a todos para a sua lei tura. Aí se encontra um instrumento valiosíssimo do êxito extensivo de seus livros e dos seus cursos, sendo que as suas conferências da sala número 8 do College de France chegaram a constituir, em certa época, um espe· tacular acontecimenta mundano. Falava-se mesmo em Paris de uma legenda irônica para Bergson : "filósofo das senhoras elegantes". Na Inglaterra e na Alemanha, ele era, por isso; desdenhado ou rudemente censurado ; e o que é certo é que existe um grande perigo de desvirtua mento e de falsa interpretação nessa entrega de uma obra filosófica !lO grande público, Desse perigo parece Q. sr. J o r n a l d e C r í t i c a 227 Euryalo Cannabrava querer defender não só o seu pen· sarnento, mas o dos filósofos e autores que comenta e in· terpreta. Por isso não se mostra disposto a fazer qual quer concessão para simplificar as idéias ou tornar mais transparente e', lúcida a sua revelação formal. O sr. Eu ryalo Cannabrava apresenta-se mais reflexivo do que ex plicativo ; e nota-se que ele conhece sempre dos seus as suntos muito mais do que exprime. Uma grande parte do seu pensamento só será encontrada nas nuanças, nas sugestões, nas entrelinhas. Dificilmente poderão acom panhá-lo aqueles que desconhecem