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JORNAL 
DE 
CRÍTICA 
DO MESMO AUTOR : 
HISTóRIA LITERARIA DE EÇA DE QUEIROZ 
-
'
Livraria José Olympio Editora, 1939. 
ALGUNS ASPECTOS DA DECADgNCIA DO IM· 
PÉRlO - Empresa Diário da Manhã S. A., Re· 
cife, 1939. 
JORNAL DE CRITICA, 1 .a Serie - Livraria José 
Olympio Editora, 1941. 
ALVARO LINS 
JORNAL 
DE 
, 
CRITIC.A 
2.0 Série 
CAPA DE SANTA ROSA 
1943 
LIVRARIA JOSE OL YMP!O EDITORA 
RUA DO OUVIDOR, l I O - RIO DE JANEIRO 
Deste livro foram tirados, fora de 
comércio, dez exemplares em papel vergê, 
assinados _pelo autor. 
OS CAPiTULOS DESTE LIVRO FORAM PUBLICA· 
DOS COMO FOLHETINS SEMANAIS DE CRiTICA 
LITERÁRIA DO CORREIO DA MANHÃ, AO QUAL 
O AUTOR E O EDITOR AGRADECEM O DIREITO 
DE PUBLICAÇÃO EM VOLUME. 
Dedico esta segunda serie do Jornal de á_itic,• a 
Dario de Almeida Magalhães 
José Olympio 
Osorio Borba 
e Barreto Leite Fillw 
- pelos gestos de confiança com que animaram, ha três ou quatro 
anos, e sob aspectos diferentes, o estado •de espírito de nm critico 
provinciano e ainda incerto no seu destino literário. 
INIHCE 
CAPs. 
I - Balanço de 1941 
Il � Poesia e forma 
III - Justificação de um poeta 
IV - Problemas e figuras de poesia moderna 
V- Versos 
VI � Vidas sêcas 
VII - Memória e imaginação 
VIII - Processo- da burguesia 
IX - Entre os ex'tremos 
11 
2� 
43 
54 
64 
74 
84 
95 
105 
X - Romances de concurso 115 
XI - Literatura e religião 125 
XII - Dois naturaiistas: Aluizio Azevedo e Julio :jlibeiro 135" 
XIII -' Contos 156 
XIV - Uma experiência de teatro 
XV - Shakespeare e o Brasil 
XVI - Letras femininas 
XVII - Ensaios 
XVIII - Regionalismo e universalismo 
XIX - Um ensaísta da filosofia 
XX - Posição de Farias Brito 
XXI - �tualidade do romantismo 
XXII - Sinais da nova geração 
XXIII - Literatura industrial 
XXIV - Lógicos e ilógicos 
XXV - Impres8ionismo e erudição 
XXVI - Um novo com�anheiro 
XXVII - Centenário de Anthero de Quental 
L'\:VIU - A propósito de Rosamond Lehmann 
XXIX - Sugestões para a leitura de Charles Morgan 
XXX - 50 anos de literatura 
167 
176 
136 
195 
203' 
224 
234 
245 
2Ó2 
272 
280 
235 
295 
304 
314 
323 
333 
CAPíTULO I 
BALANÇO DE 1941 
E scREVO esta crônica precisamente no último dia do · ano. Nenhuma impressão .forte me traz a cons­
tatação desse fim convencional e arbitrário. Não duvido 
que vou me acostumando, cada vez mais, a desdenhar 
toda convenção e todo artifício. Mas vejo, afinal, -que 
ninguem poderá ficar inteiramente indiferente à tirania 
do calendário e dos costumes sociais. Torna-se neces­
sário, então, que seja percebido o desaparecimento de 
um ano e o aparecimento de outro. Mais um ano, por­
tanto, que se aêha contado e recolhido para a nossa his· 
tória literária. O que significa um ano dé existência para 
a história literária que se levanta num movi�ento para­
lelo à história geral de todo um povo ? Um quase nada. Esta 
é a lição um pouco triste que o mistério do tempo sempre 
nos transmite. O que vale muito para os contemporáneos se 
reduz de proporção para a posteridade ; vai se reduzindo e 
desaparecendo cada vez mais através dos tempos. Repare-se 
na extensão que certos acontecimentos ocupam num volume 
de história e no interesse dos seus leitores. Um episódio 
que encheu cem páginas, hoje ocupa cinquenta, � ocupa­
rá vinte dentro de alguns anos, tendendo, com o desdo­
brar do futuro, para uma simples referência ou para um 
possível eaquecimento. Os acontecimentos literários, igual· 
mente. De todos os livros que aparecem e fazem su­
cesso, quantos ,se encontrarão mais tarde na história da 
literatura? Um número muito pequeno, como se sabe. 
E o que mais me transmite a "melancolia da crítica" é a 
comparação do julgamento dos críticos sobre os seus con­
temporâneos com o julgamento que sobre eles o tempo 
14 A l v a r o Li n s 
sobre um livro significa indiferença ou desprezo. Às 
vezes este silêncio significa uma homenagem, quando quer 
dizer que o crítico não se acha no completo domínio do 
assunto que o determinou. Pois o primeiro dever do crf• 
tico é o de somente julgar nos planos em que se possa 
·movimentar com uma segurança ou um conhecimento 
pelo menos à altura da sua conciência profissional. 
De um modo geral, porem, a conclusão que se impõe 
não é das mais favoraveis ao ano literário de 1941. Sem 
dúvida que ele apresentou alguns livros excelentes, mas 
nenhum desses livros que marcam uma época e fixam 
uma etapa na vida literária. Bem sei que pode se tratar 
de um simples ac.aso, e dentro em pouco é poesivel que 
surjam obras notaveis que se achavam em realização ·du­
rante o período de tempo que agora termina. l)oze me­
ses não significam nada numa vida literária, quando antes 
e depois se podem recolher acontecimentos consideraveis 
e realizações felizes. De qualquer forma, no entanto, 
1941 apresentou uma atividade menos intensa e menos 
fecunda do que a de 1940, que por sua vez já fora inferior 
à de 1939, o que talvez se explique em face dos aconteci­
mentos da guerra que concentram as atenções e os interes­
ses. Aquele ano de 1939 terá, aliás, um lugar especial na. 
vinte anos, não sei de outro que apresentasse quantidade 
tão elevada de livros de valor e número tão considéravel 
de estréias importantes. No ano p assado ainda assisti­
moa a estréias como a do sr. Oswaldo Alves, no roman­
.ce, a do sr. Edgard Cavalheiro, na biografia, a dos srs. 
Alphonsus Guimaraens Filho e Manuel Cavalcanti, na 
poesia. Em 1941, não houve nenhuma estréia- que fosse 
uma surpresa, como qualquer uma destas de 1940, ou 
ainda menos como algumas estréias espetaculares de 1939. 
Autores que apareceram em livro pela primeira vez, como 
o sr. Euryalo Cannabrava, já eram nomes· conhecidos do 
J o r n a l d e Crítica 15 
público através dos seus artigoa de jornal. E deve-se no­
tar que bem poucos volumes de estudos foram publica­
'dos durante o ano. Apareceu somente um pequeno nú­
mero de ensaios e estudos críticos. Quaae todos, porem, 
sem que fossem inéditos, quase todos se formando de co­
leções de material já divulgado em jornais e revistas. 
Entre todos, destaco o Região e tradição, por constituir 
uma síntese da vida de escritor do sr. Gilberto Freyre, 
com os seus' trabalhos das épocas mais diversas, desde a 
adolescência até os dias de hoje. Na vasta bibliografia 
do sr. Gilberto Freyre, este volume ocupa um espaço 
muito grande· e especialíssimo. Numa coleção de en­
saios, organizada por uma editora de Minaa Gerais, o sr. 
Tristão de Athayde publicou um pequeno volume sobre 
Machado de Assis, formado de três rodapés de 1939 (Trê$ 
ensaios sobre Machado de Assis), e o sr. Oscar Mendes 
reuniu vários dos seus artigos sobre autores estrangeiros 
(Papini, Pirandelo ,e· outros). O volume do ,sr. Tristão 
de Athayde, alem d� seu valor intrínseco, apresenta o 
interesse de ·revelar o seu ·pensamento sobre Machado de 
Assis, o que nun·ca fizera em vinte anos de crítica, como 
ele mesmo explica e justifica nestas páginas de síntese. 
Ainda livros publicados antes na imprensa, em carater 
fragmentário, são o do Br. Sergio Milliet (Sal da here· 
sia) , sem nada perder, no entanto, da sua agudeza e da 
sua força de ensaísta ; o do sr. Mario de Andrade (Mú· 
sim do Brasil) , debatendo certos aapectos de um assunto 
em que se to.rnou um verdadeiro especialista ; o do sr. An­
tonio de Queiroz Filho (Caminhos humanos), no qual 
.se reflete muito bem o estado de espírito das· novas ge­
rações, levadas 'muito cedo para as cogitações e os pro­
blemas da vida espiritual. Nesse número tambem se de­
verá incluir o livro admiravel do sr. Lindolfo Collor sobre 
a Europa de 1939, a única obra escrita por um brasileiro, 
neste gênero, hoje tão explorado, da interpretação dos 
16 Alvaro Lins 
acontecimentos europeus e das .causas da nova Grande 
Guerra. E nestas coleções de artigos e estudos em volu­
me, um lugar de destaque deve;_.á ser reservado para o sr. 
Osorio Borba, com o seu livro A comédia literária. Con­
sidero das mais oportunas, das maisnecessárias e das 
mais uteis esta espécie .de crítica a que se dedicou o sr.­
Osorio Borb a : a de protestar contra as injustiças e as 
confusões da vida literária, contra as glórias inexplica­
veis e acacianas, contra todos os ridículos e misérias da­
queles que pretendem fazer da literatura um salão de 
festas ou um negócio rendoso. 
Ensaios de grande proporção somente dois aparece­
ram em livro com carater inédito, sem que antes houves­
sem surgido na imprensa : o do sr. Sylvio Rabello a res­
peito de Farias Brito (Farias Brito ou itma aventura do 
espírito) e o do padre Leonel Franca S. J. sobre proble­
mas espirituais e políticos do mundo moderno (A crise 
do mundo moderno) . Ainda uma vez chamo a atenção 
para estes dois ensaios, muito diferentes nas suas orienta­
ções e nas suas finalidades, mas ambos respeitaveis pelo 
esforço que representam no sentido da •interpretação de 
problemas ou debate de idéias, quaisquer que sejam 
as nossas divergências e as nossas discordâncias, algumas 
delas por mim mesmo assinaladas. E por falar em esfor­
ço dentro da vida cultúral, não quero esquecer o do sr. 
Levy Carneiro na presidência da Academia Brasileira, não 
no sentido da criaçãõ de obras literárias, o que não é do 
alcance. das associações de qualqUer espécie, mas no sen­
tido que lhe cabe de animar e estimular o ambiente e o 
mundo das letras : o esforço que restaurou a Revista Brasi­
leira e a série de conferências (uma ou outra, no entanto, 
a cargo de conferencistas destituídos de suficiente autori­
dade) sobre os movimentos contemporâneos de diversas 
literaturas estrangeiras. Outra forma de esforço e de tra­
balho que merece ser ressaltada foi a do sr. Auizio Napo-
Jorna l de Crítica 17 
leão, cujas pesquisas - nos preciosos, mas quase virgens 
arquivos do ltamaratí - deram em re.sulta�o a publica­
ção de dois trabalhos históricos, nos quais se destaca a 
documentação de primeira ordem : um sobre Rio Branco 
(O segundo Rio Branco) e o outro sobre Santos Dumont 
(Santos Dumont e a conquista do ar). Ainda dessa nova 
geração de servidores do ltamaratí - geração que estou 
conhecendo de perto, sobretudo no seu propósito de con­
tinuar uma tradição da Casa que manda não desdenhar, 
mas a�tes valorizar, os problemas de literatura e de estu• 
dos desinteressados - é o sr. Sergio Corrêa da Costa, 
que revelou o seu gosto e' a sua vocação para as investi· 
gações históricas através do livro As quatro coroas de D. 
Pedro I. 
Numericamente, a contribuição maior continuou a 
ser a ·dos livros de versos. Mais de vinte volumes passa­
ram por estas crônicas no decorrer do ano. Quase todos 
de autoria de rl'mes desconhecidos, de jovens poet�s que 
apareciam pela primeira vez.- Continua a se repetir o 
fenômeno muitas vezes assinalado nas épocas mais di­
versas: o de rapazes que atiram na rua os seus livros de 
versos e nunca mais voltam a repetir a empresa : ou desa­
parecem da literatura ou se dedicam a outros gêneros li­
terários. Em geral, estes livros nada revelam de uma 
personalidade �e poeta, exibindo apenas o virtuosismo de 
exercícios literários ou uma exaltação de sentimentos ado­
lescentes. Es�amos cansados desses livros de versos e des­
ses autores sem personalidade. E daí a frieza e o cepti­
cismo com que costumo recebê-los. Das coleções de poe­
mas deste ano, não houve ti.m só que �e fosse possivel 
elogiar de uma maneira completa. Sem dúvida, o livro 
mais .apreciavel fali. o da sra. Iienriqueta Lisboa (Prisio­
neira da noite) , trazendo alguns poemas de uma forte 
h�spiração e de alguma riqueza temática, sem que se possa 
dizer, no entanto, que estamos diante de uma grande 
18 A I v a r· o L i n s 
obra. Dos estreantes, pude destacar a sra. Ana Osorio e 
o sr. Carlos Eduardo, pela simplicidade e pela sincerida­
de das suas mensagens, ambas ainda timidas e vacilantes, 
no entanto. Um autor de cujos versos não gostei foi o 
sr. Aluisio Medeiros, mas sem que esteja impedido de jul­
gá-lo uma verdadeira vocação literária e um joV'em escri­
tor que poderá reaparecer com um êxito mais definido. 
Lembro, porem, que não quero .condena,r esta abundante 
produção poética de segunda ordem, nem reagir contra o 
ambiente que a provoca e a determina. Ela faz parte da 
vida literária, sabendo-se da necessidade da existência de 
muitos poetas menores para que apareçam alguns poetas 
maiores. Esta é uma· necessidade, porem, da vida literá­
ria, mas não da arte literária. A única consideração 
para um julgamento estético deve ser a da obra em si 
mesma. E obra de arte poética, ou é uma grande obra, 
ou não é nada. Este é o meu critério de julgamento para 
os poetas ; e acho que valorizo a poesia não a identifiçan­
do com qualquer vagido sentimental ou com qualquer im­
puiso instintivo. Acredito, aliás, que a poesia se encon­
tra hoje numa situação de expectativa, quero dizer : no 
momento de uma renovação, de um novo caminho. Este 
caminho será o de um encontro com o povo, o de um 
encontro das forças poéticas com os apelos dramáticos da 
vida exterior. Pois hoje mais do que nunca o povo 
precisa de poetas que o comovam e de poetas que expri­
mam. os seus sentimentos. E aí está igualmente um ca­
minho para o romance. �as o romance, de uma niariei­
ra geral, apresentou-se em 1941 com as mesmas caracte­
rísticas dos livros de versos : falta de originalidade, me­
diocridade na realização artística, primarismo ou false;t­
mento de processos. Somente uma ou outra exceção se 
poderia fazer neste sentido. Uma delas para o romance 
do sr. Gilberto Amado (Inocentes .e culpados), que tem 
d�f�;itos �normes mas não exatamente ��t�i! «:!� primaris-
J o r n a l de Crítica 19 
mo e mediocridade. Aliás, a estréia do sr. Gilberto Ama­
do no romance constituiu um verdadeiro acontecimento. 
Ao seu livro chamei um "romance de duas fases", que­
rendo significar o que havia nele de desigualdade, de du­
plicidade, de altos e baixos. Uma obra inacabada e em 
tumulto, mas indicativa de um temperamento trágico 
para o qual o romance pode representar a mais adequa­
da forma de expressão. Dos estreantes, dois merecem ser 
lembrados: o sr. Dalcidio Jurandir (Chove nos campos de 
Cachoeira) e o sr. Josué Montello (Janelas fechadas) . O 
sr. Dalcidio Jurandir revelando uma autêntica força de 
romancista, emhora ·ainda informe e bárbara ; o sr. Josué 
Montelo revelando menos um romancista do que um escri­
tor, que talvez se possa afirmar mais definitivamente em 
ensaios e estudos críticos. E será quase uma- iropia dizer 
que o único romance até agora realmente grande e no­
tavel de 1941 se\acha numa reedição: na nova edição de 
Angústia, do sr . . Graciliano Ramos. Teve, porem, o ro­
mance brasileiro uma obra comemorativa de vulto, no 
número que lhe dedicou a Revista do Brasil. 
De um modo relativo, em face de certas propor­
ções, o conto se destacou mais do que o romance, levando 
em conta .os que foram publicados em jornais e revistas. 
Bastaria lembrar,. neste sentido, o nome da sra. Cacy 
Cordovil. E acho que esta autora quase desconhecida e 
o seu livro (Ronda de fogo) não deverão cair no esqueci­
mento, embora seja verdade que apresenta antes paginas 
!iterarias do ·que propriamente contos. Mas a sua ca­
pacidade descritiva e o seu estilo são realmente admira· 
veis. E realizou assim uma espécie de fragmentos de 
uma epopéia. Quem sabe se a sra. Cacy Cordovil não 
será capaz de realizar o "romance do interior", uma outra 
forma complementar do "romance nordestino"? De qual­
quer forma, é uma escritora que me deixa numa posição 
20 A l v a r o L i n s 
de expectativa, embora já situando Ronda de Fogo como 
um dos livros mais significativos deste ano. 
Não esqueço,_ porem, que a atividade literária não é 
�õoniente a que se revela em volumes. Talvez que a pro­
dução literária de qualidade mais segura de 1941 esteja 
perdida nos jornais e revistas. Lembro os poemas, os con­
tos, os ensaios que talvez mais tarde apa:rec.erão em livro. 
Os suplementos dos jornais, por exemplo, constituem pa­
trimônios de literatura,apesar do seu carater heterogêneo 
e desigual, o que se explica em face do gosto e das exi­
gências do grande público. Lembro, a propósito, a con­
tribuição para a história litedria que o sr. Mucio Leão 
está realizando no ,;uplemento sob a sua direção. Lembro 
os ensaios de uma categoria tão elevada e tão rara que 
Otto Maria Carpeaux vem publicando no suplemento do 
Correio da Manhã. Aliás, o· suplemento de jornal vai se 
constituindo um gênero intermediário que participa, ao 
mesmo tempo, do jornalismo e da arte literária. IDti­
mamente, os srs. Osorio :eorba e Genolino Amado ha­
viam .Se tornado as duas figuras prinçipais. desse gênero 
literário, alcançando um êxito e um renome que não são 
comuns nas nossas letras. Agora, um novo escritor acaba 
de se revelar através do suplemento de jornal : o sr. José 
Cesar Borba. E este é um nome que espero irá ser fixado 
nas nossas letras de maneira excepcional. Parece-me uma 
das figuras 1mais representativas e mais características 
da sua geração, como uma força de criação e uma voca­
ção literária que logo percebí quàndo ele era ainda um 
menino. E o sr. José Cesar Borba se apresentará sobre­
tudo como um autêntico poeta, o que se verá quando 
for publicado o seu livro de poemas que tenho comigo 
agora mesmo. 
Outra atividade que não se deve esquecer é a da vida 
literária das províncias, das cidades distantes em que es" 
critores e leitores se entregam à literatura com uma co-
Jorna l de Crítica .21 
movente seriedade. Muitos dos livros publicados ultima­
mente são de autores provincianos, e ninguem poderá falar 
mais hoje no isolámento ou na inercia das províncias. 
Conheço hem esta atividade e este ambiente. Conheço os 
seus escritores que trabalham desinteressadamente, sem 
nenhuma ambição de dinheiro ou de sucesso imediato. 
Conheço os seus leitores que procuram nos livros um apoio 
para o sentimento da vida e o conhecimento do mundo. 
Eu os conheço., todos, porque confesso que sou um crítico da Província, e é na minha província do Recife que estou 
pensando ao escrever esta última crõnica do ano. 
-3 de Janeiro de 1942. 
\ 
CAPíTULO li 
POESIA E FORMA 
I 
N Ão sei bem se falar do suprarealismo ainda constitue hoje uma novidade ou já representa uma atitude 
envelhecida. Nenhuma das dua!' hipóteses me importa 
muito, pois tenho a coragem de ser indiferente ao que é 
moderno e ao que é antigo, pl"ocurando somente a -verdade 
- o que me parece a verdade, pelo menos - sem ligação 
com as suas circunstâncias de espaço e de tempo. .Mas 
pelo que tenho lido não me é difícil verificar que o suprar­
realismo continua o seu caminho fora do movimento fran­
cês que o tornou universalmente conhecido. Ele não era, 
sem dúvida, uma pequena propriedade de certas figuras 
de uma determinada escola, mas um estado de espírito em 
correspondência com a vida mesma da nossa época. O 
que se chamou o movimento suprarealista teve no des­
tino deste estado de espírito dupla influência : uma que o 
favoreceu e outra que o p�judicóu. Favoreceu-o com al­
gumas obras explicativas, com um vasto debate crítico e 
interpretativo, com a sua iniciativa de o colocar para sempre 
dentro da literatura ; prejudicou·o com a sua esquemati­
zação dentro de um sistema, com o seu exagero de pre­
tender tudo reduzir a uma expressão suprarrealista, com 
o erro de excluir a razão - um erro igual ao de excluir 
a superrazão - da atividade psíquica. O que se sabe, 
porem, é que o suprarrealismo venceu por si mesmo as li­
mitações e os excessos da escola suprarrealista. E que per­
manecerá sempre por isso como uma aquisição, como uma 
J o r n a l d e C rít i c a 23 
contribuição da nossa época para os estudos científicos 
e literários ao me<!mo tempo. 
Apesar de toda a sua bi�liografia, acredito que o prin­
cipal docu"mento teórico do suprarrealismo continua a ser 
o famoso manifesto de André Breton. 'E' nele que se sente 
com mais evidência e mais dialética o que representa a ex­
periência do suprarrealismo. E na verdade deve ser apro­
veitado mais como uma experiência (o que lhe dá o seu 
verdadeiro carater de incessante pesquisa, de permanente 
renovação) do que como um sistema (o que lhe daria, com 
-O decorrer do tempo, um carater de petrificação, uma qua­
lidade de obra concluída e encerrada). No seu Manifeste 
du surréalisme, André Breton interpretou a experiência 
e lançou o sistema, O que nos resta é desprezàr o sistema 
e aproveitar a experiência. Mas esta experiência - o que 
ela significa, o que dela resulta, onde nos poderá levar? 
Significa o suprarrealismo o aproveitamento para a lite· 
r atura de todo um potencial mais escondido de vida: o do 
subconciente, o do irracional, o do instintivo. De um 
mundo interior mais profundo e mais puro. Dir-se-á que 
em todos os tempos esta vida misteriosa esteve presente na 
criação artística. E' certo que sim, mas somente com o 
suprarrealiemo é que obteve a importância de um reconhe­
cimento mais geral e a confissão de seu poder mais atuante. 
Obteve um definido lugar ao sol. Onde erraram os suprar­
realistas foi no seu propósito de fazer da vida artística um 
exclusivo produto do automatiemo psíquico, como se fosse 
possível reduzir a arte a ·uma operação espontaânea, sem os 
recursos da razão e da lógica (v. definição de André Bre­
ton em Manifeste du surréalisme, pág. 42). Mas bem 
se sabe que uma �oisa não exclue a outra: que a vida 
subconciente não exclue a vida conciente, que o ilogieismo 
completa o logicismo sem o anular, que a intuição é uma 
faculdade que pode exi8tir ao lado. da inteligência. As 
grandes obras se fizeram dessa harmonia, e porque não a 
reconheceu, o suprarrealismo Qrtodoxo não criou nenhuma 
24 A lv a r o L i n s 
grande obra, nenhuma obra completa e perfeita. Haviam 
criado estas obras, porem, aqueles que já se utilizavam do 
suprarrealismo sem o definirt um Baudelaire ou um Rim­
baud, alguns poeta3 românticos, quase todas as grandes fi­
guras das literaturas ingleaa e russa. Mas de qualquer 
forma o que resultou do suprarrealismo foi uma disposição 
revolucionária que não deve ser esquecida e, que deve ser 
continuada : uma revolução contra o espírito de imitação 
e de rotina, contra o falso realismo que excluía o trans­
cendental, contra a arte petrificada nos formulários, 
contra a conciência lógica que não tinha a coragem de se 
voltar para dentro de si mesma. O suprarrealismo tornou­
·se, assim, um movimento em profun.didade, e· lembremos 
que a sua direção é a mesma em que se encontram os dois 
filósofos que nos nossos dias mais lucidamente explicaram 
os fenômenos estéticos : um Bergson e um Croce. Deste modo 
é que se constituiu muito nítida uma linha de ligação entre 
os filósofos da intuição e os poetas do suprarrealismo. Uma 
tão completa conjugação de forças - a da poesia, a da fi­
losofia, a da ciência - levou a vida cultural a essa conclu­
são : a impossibilidade de precindir da experiência suprar­
realítica. E vejo a poesia dos nossos dias como a realização 
de um desdobramento do processo suprarrealista. E' uma 
poesia que procura resolver o princípio de contradição do 
suprarrealismo : o da idéia com a forma. Uma poesia que 
procura a sua forma de expressão : eis uma legenda para a 
poesia moderna. E aasim muito se explica do seu dina­
mismo, do seu desespero convulsivo e do seu estado de 
tensão e desvario. 
* 
Em nenhum poeta moderno mais do que no sr. Mario 
de Andrade se poderá sentir esta contradição que é própria 
da poesia moderna : a de um pensamento que procura a 
sua forma. Ninguem entenderá a sua obra sem levar em 
J o r n a l de C r ít i c a 25 
conta· esta circunstância. E dá-nos agora o sr. Mario de 
Andrade uma oportunidade para a compreensão e o jul­
gamento da sua obra poética em conjunto, publicando um 
volume (Poesias, São Paulo, 1941) que contem, ao lado 
dos seus poemas mais recentes, os seus_ livros j"á puhlica­
dos, desde Paulicéia Desvairada até Remate de Males. Poe­
mas em que as datas acusam um longo desdobramento que 
vai de1920 a 1940, e tambem que o sr. Mario de Andrade 
chega aos cinquenta anos conservando o fogo e o inconfor· 
mismo da mocidade. Vinte anos, como se vê, de atividade 
poética, num dos períodos mais importantes e mais sig­
nificativos das nossas letras : o que se conta do último mo­
viment9 moderno até 001 nossos dias. E não se trata de 
uma simples coincidência de datàs, pois o sr. Mario tle 
Andrade aparece como uma das figuras mais caracterís­
ticas e mais representativas do seu tempo. Representativa 
sobretudo do chamado movimento modernista, no qual· 
atuou como um chefe de fila, como um pregador, como 
um teórico e como um realizador. Poucas obras como a 
sua refletem o espírito de um movimento coletívo : com 
as suas inquietações, com as suas verdades, com os seus 
erros, com os seus problemas, com as suas esperanças, com 
os seus desencantos. Na sua obra se poderão encontrar a 
imagem de um homem e a imaginação de um movimento 
literário ; e simboliza o sr. Mario de Andrade o que nesse 
movimento existe de mais positivo e de mais negativo, ao 
me.smo tempo. Já .é histórico, aliás, o movimento mo­
dernista, quando até há pouco era ainda uma novidade. 
Envelhecer depressa vai se tornando uma contingência do 
nosso vertiginoso mundo nioderno. E uma tarefa da 
minha geração é exatamente esta de fazer o processo das 
inoV'ações que ae anteriores lançaram, uma vez que ainda 
não chegou o momento da nossa revolução. Por enquanto, 
estamos somente numa posição de defesa. E defesa da 
vida mesma. A minha geração ultrapassou, porem, o cha­
mado movimento modernista, e de tal modo que muitas 
26 Al v a r o Li n s 
das suas novidades já nos parecem hoje sem qualquer 
sentido. O que não significa, porem, que neguemos a sua 
importância nas nossas letras, nem que estejamos impê­
didos de compreender e admirar as suas figuras realmente 
vivas. Uma destas figuras é o sr. Mario de Andrade, em 
quem encontramos ao mesmo tempo uma personalidade 
conciente do seu destino e um autor conciente da sua obra. 
Devo, porem, acrescentar: mais umà personalidade do que 
Um autor, pelo menos no dominio da poesia. E somente 
do poeta é que tenho hoje de me ocupar, o que constitue 
uma liJ.Utilação para quem se exercitou em tantos gêneros 
literários, devendo acrescentar que não é a- personalidade 
do poeta, mas a do ensaista e do pesquisador, a que pre­
firo no sr. Mario de Andrade. Mas, de uma- certa ma­
neira, se a poesia do sr. Mario de Andrade não é sufi­
ciente para transmitir uma idéia de todo o seu valor e de 
toda a sua importância na nossa vida: literária, ela nos 
transmite, no seu conjunto, uma imagem da sua personali­
dade, um reflexo da sua história literária, um esboço do 
seu pensamento, da sua técnica e da sua figura de artista. 
E o que esta obra poética logo nos revela é o dualismo 
a que já me referi: o de uma essência poética em procura 
da sua forma de expressão. E é uma pena que esta pro­
cura t�nha se orientado mais para o mundo transitório e 
acidental, o que privou esta poesia de uma maior pro­
fundidad�t, 
O que se deve notar em primeiro lugar no sr. Mario 
de Andrade é a sua originalidade. Ele criou o seu próprio 
espaço, a sua própria maneira, de um modo inconfundivel 
Ao lado dessa originalidade intrínseca, existe porem uma 
outra menos apreciavel: a que ele procura criar com a sua 
técnica. E assim se explica que um poeta de tanta per­
sonalidade seja tambem um poeta de muitos artifícios. 
As suas realizações mais felizes são aquelas que obtem 
entregando-se naturalmente à sua obra ; as suas pagmas 
mais frageis ou mais falsas são aquelas em que se com-
J o r n a l d e C r ít i c a 27 
plica em busca de uma expressão original. Duas ordens 
de preocupações, duas espécies de motivos revelam-se como 
dominantes no sr� Mario de Andrade : o sentimento da 
sua terra e o seu sentimento mais íntimo de homem. Nos 
seus livros de poemas alternam-se os dois, com a predo­
minância ora de um, ora de outro : nos primeiros, a do 
sentimento da terra ; nos últimos, a do sentimento íntimo. 
Em Remate de Males percebemos uma mais intensa con­
fluência das duas correntes. Mas este sentimento em face 
da sua terra não é unânime e igual em todos os seus as­
pectos. E' um sentimento de amor em face da vida natu­
ral, mas um sentimento de revolta em face da vida social. 
Não se poderia desejar para um artista uma posição ·mais 
simpática e mais legítima. E o sentimento de revolta 
nascia-lhe espontaneamente de três foníes : a do seu tem­
peramento, a da sua mocidade e a do movimento literário· 
do momento. E ele o externou com uma coragem, com 
uma pureza de artista e uma desenvoltura - realmente 
exemplares. Sacrificou muito a sua obra poética, na mes­
ma proporção em que afirmava uma atitude diante da 
vida. Este sentimento de 1·evolta dirigiu-se contra as de­
sigualdades sociais, contra toda a organização burguesa. 
O longo poema "As enfibraturas do Ipiranga" - do qual, 
aliás, não gosto muito como poema em si mesmo - repre­
senta um documento da batalha que sustentou em favor 
dos "novos" contra os "velhos". Outros poemas típicos dessa 
sua atitude mais intransigentemente inconformista são a 
"Ode ao burguês'\ "O rebanho" e tantos outros, em quase 
todos sendo de lamentar, porem, que não tenha con­
seguido uma realização mais sutil e mais de acordo com a 
arte poética. Uma peça como "Ode ao burguês" mais 
parece um manifesto e um panfleto do que Úm poema. 
Tambem é certo que o sr. Mario de Andrade nem sempre 
impõe ao seu espírito satírico os limites sem os quais 
perde muitos dos seus efeitos. A sátira lhe tem dado 
muitos achados felizes, mas taml>em lhe tem muito es• 
28 A l v a r o Lins 
tragado a emoção poética. Às vezes nem se trata de sá­
tira : trata-se de simples pilhéria. Não sei como um autor 
tão inteligente - e que se encóntra tão poderosamente 
no domínio da sua arte - condescende com um falso 
espírito, com um falso humour, com uma falsa veia sa­
tírica. Esta intervenção abusiva é que me incompatibiliza 
bastante com muit_os dos seus poe:p1as, mesmo com uma 
parte dos seus poenias mais famosos, como "Noturno de 
Belo Horizonte", "Carnaval carioca", e quase todos os 
intencionais - os intencionais esteticamente e social­
mente. Como extrair poesia, por exemplo, daquela boa 
pilhéria dos dois versos finais de "Tabatinguera"? Outro 
recurso que me parece usado de mais na obra do sr. Ma­
rio de Andrade, e com uma insistência que se alastra por 
quase todos os poemas - é o do pitoresco -a· todo custo : 
o pitoresco no pensamento e o pitoresco na expressão. 
Nesta altura, estamos já em face de outro aspecto do seu 
sentimento da terra : o do seu amor pela vida natural, 
pela vida espontânea que é a da natureza e a do povo. 
Dessa categoria é o poema "Carnaval carioca" - no qual 
se sente, aliás, todo o seu sensualismó, inclusive o que 
nasce do simples jogo das palavras - como tantos ou­
tros destas Poesias, sobretudo os dos primeiros livros. 
Percebe-se mesmo que o· poeta teve a intenção de reali­
zar uma arte brasileira, uma arte nacional, refletida ao 
mesmo tempo nos seus asauntos e no seu vocabulário. 
Mas surge aquí a velha questão já resolvida da impotên­
cia dos assuntos e dos vocabulários, em si mesmos, para 
a criaÇão de uma literatura nacional. O brasileirismo de 
muitos poemas do sr. Mario de Andrade apresenta o mes­
mo resultado do brasileirismo do movimento modernis­
ta : uma exterioridade que hoje soa falso, que está enve­
lhecida, que se tornou inaceitavel pela sua intencionali­
dade, pela sua ausência de força íntima, pelo muito que 
revela de cerebralismo em vez de sentimento. É o caso 
de poemas como "O poeta come amendoim", nos quais 
J o r n a l d e C r ít i c a 29 
há versos em que tudo está perdido, inclusive o bom­
·gosto das palavras e das suas construções estilísticas. 
Podemós dizer que em geral os seus poemas intencional­
mente. brasileiros não atingiram os seus fins e os seus 
efeitos. Somente deles ficou a sugestão, a atitude, o iti­
nerário indicativo.E o que os matou foi exatamente a 
intencionalidade, a ausência de naturalidade. Dos seus 
poemas intencionalmente brasileiros, somente um se deB­
taca e se impõe sem restrições : é o "Acalanto do serin­
gueiro", no qual se unem uma inspiração autenticamen­
te brasileira, um espontâneo sentimento de revolta hu­
mana e uma arte social colocada acima de qualquer pro­
paganda. Mas sendo realmente um braBilciro, o sr. Ma­
rio de Andra·de consegue realizar alguns poemas corres­
pondentemente brasileiros. O que acontece é que os 
seus poemas mais brasileiros -são aqueles em que não 
houve intenção deliherada de um destino nacionalista. 
P-0emas da espécie de "Rondó pra você" e "Maria" -
ao lado das reconstituições de lendas como a do "Toada 
do pai do mato" e a de Rola-Moça no "Noturno de 
Belo Horizonte" - são daqueles em que mais se sente· 
o poeta em comunicação com a sua terra : pela lin· 
guagem, pelo sentimento, pela realização. E muitos des­
tes poemas desinteressados, que me parecem mais brasi­
leiros do que aqueles que procuram sê-lo intencional­
mente, pertencem à fonte que chamei o seu. sentimento 
íntimo de homem. No sr. Mario de Andrade é o poeta 
lírico o que me parece mais fortemente realizado ; e lí­
ricos são os seus poemas que mais me agradaram neste 
volume de Poesias. Deste gênero é o poema "Improviso 
do rapaz morto", revelando a sua capacidade de se elevar 
a um plano acima de todo o transitório, de todo o pito­
resco, de todo o satírico. Não esquecerei nunca este poe­
ma, sobretudo o seguinte verso : "Minhas lágrimas caem 
sobre ti e. és como um sol quebrado". Insisto ainda em 
lembrar o soneto "Quarenta anos", com um final que 
30 A l v a r o Lins 
sugere a recordação do desencanto poético de Alvares de 
Azevedo : 
"O' sono, vem! ... que eu quero amar a morte 
Com o mesmo engano com que amei a vida." 
Alguns poemas líricos do sr. Mario de Andrade 
os que revelam o seu sentimento mais íntimo de homem 
- me transmitem afinal a certeza de que ele insistiu de 
mais em certos temas e em certas atitudes, em certos ca­
minhos que não lhe eram os mais propícios. Tenho a 
impressão de que a sua posição mais propícia seria a do 
poeta solitário que canta o amor impossível, o amor ir­
realizado, o amor em si mesmo. E difícil será fazer a 
critica destas Poesias, pois eu gostaria de fazer a criti­
ca de cada poema, isoladamente. Encontro aquí alguns 
poemas que muito me sugerem, sendo que haveria mui­
tos outros a destacar com um vasto elogio. Poemas, ou 
tambem certos versos isolados. 
' 
Volto a dizer, porem, que o drama principal do sr. 
Mario de Andrade não se acha na sua temática, mas na 
sua forma de expressão. Sendo uma personalidade com­
plexa, o poeta procura a sua unidade através da forma. 
Uma situação que se complica ainda mais porque o pro­
blema pessoal do poeta se conjuga com o problema geral 
da poesia moderna. O sr. Mario de Andrade é um poeta 
que muito se aproxima do suprarrealismo. Alem, disso, 
procurou criar um estilo pessoal e uma linguàgem parti­
cularíssima, t�mto em poesia como em prosa. Admiro o 
que há de original nesta linguagem e neste estilo, mas 
sem esquecer o que em ambos exiBte de falsa originali­
dade. O seu estilo apresenta_ realmente certas caracterís· 
ticas admiraveis : um forte sensualismo de vocábulos e de 
construções, uma agilidade e uma graça pouco co�uns 
na nossa língua, uma influência musical que lhe impri· 
me um máximo de subjetividade. Mas, ao lado uestas 
qualidades, em ligação com elas, estão as suas fraquezas: 
J o r nal d e C r ít i c a 31 
um brasileirismo arbitrário e de gosto duvidoso, um ex­
cesso de !pitoresco, um .certo arrevesamento, um 1certo 
tom rebuscado, ou melhor : uma preocupação de moder­
nismo que muitas vezes parece mais um preciosismo de 
roupas novas. Esta é a impressão que decorre da sua 
leitura, inclusive da leitura de seus poema.s. Atinge mui­
tas vezes o puro delírio verbal, pensando que está a criar 
um mundo de imagens e de sugestões, quando nestas oca.:. 
siões estamos apenas diante de uma féerie. De uma 
féerie criada pelas palavras desenvoltas, pelos seus 
sons estridente, pelas ret-icêucias insistentes e gritautes. 
Inclino-me mais, ao contrário, para os seus poemas de 
uma maior tranquilidade, e nos quais se mostra mais 
domil:lador das suas palavras : os da espécie de "Louva­
ção da emboaba tordilha", por exemplo. Ou da espécie 
de "Cabo Machado", um dos seus raros poemas em que 
forma e poesia se ajustam com uma maior naturalidade, 
e que por isso pode ser sentido numa impressão mais 
complexa, de olhos- e de ouvidos. E esta procura da 
própria forma não é instintiva no sr. Mario de Andrade, 
pois estamos diante de um artista que conhece o seu ofi­
cio, que se acha no domínio da sua técnica. Direi mes­
mo que se assiste até demais à sua técnica. A técnica 
que está procurando a sua forma e o seu espírito. Ele 
nunca está satisfeito com a forma e o estilo já atingidos. 
E o que procura através de ambos é encontrar-se a si 
mesmo, é dar uma expressão ao seu eu não eucontrado. 
No mais explicativo, no mais "biográfico" dos seus poe· 
mas, o sr. Mario de Andrade escreveu estes versos : 
"Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta 
Mas um dia afinàl me encontrarei comigo • • . " 
Parece-me que nestes dois versos se encontra um� 
imagem da figura do sr. Mario de Andrade. Neles se 
encontra, pelo menos, .a sua história : a de um homem 
multiplicado que procura se encontrar a, si mesmo. E 
32 Al v a r o .L in s 
assim se · explicam as suas numerosas experiências em to­
das as direções, dando por isso a impressão de um ser 
anárquico e contraditório. Dentro da poesia, as expe­
riências de forma. Dentro da prosa, as experiências de 
gêneros. Nestas suas Poesias encontramos todas as for­
mas e todos os ritmos, o que nos transmite eeta idéia de 
desvario e de completa anarquia espiritual, ao lado de 
uma impressão de rigorismo lógico e de domínio da in­
teligência. Mas tudo misturado, tudo marcado por uma 
fatal desigualdade que nos faz ora aplaudir com entu­
siasmo, ora repelir sem qualquer hesitação. Na sua pro­
Ba, encontramos o ficcionista, o ensàista, o musicista, o 
folclorista, um mundo de preocupações e atividades, tor-; 
nando-o respeitavel pelo seu trabalho de cultura e esti-
mado pelos mais jovens, aos quais ele muito sugere . e 
muito ensina. Mas tudo igualmente misturado, tudo 
igualmente marcado por uma fatal desigualdade. No en­
tanto, o que não se deve eaquecer, sobretudo, aci,ma mes­
mo do possível destino nunca sabido da sua obra no fu­
turo, é esta imagem que a sua literatura nos transmite: 
a imagem grave e atormentada de um homem que EC 
procura a si mesmo. A sua figura é uma das mais no­
taveis da nossa literatura. Ele trouxe para o nosso tem­
po uma contribuição, em inteligência e em cultura, que 
tornar:J. sempre lembrados o seu nome e a sua obra. O 
sr. M4rio de Andrade é um artista autêntico, ,com a 
consciência e a dignidade da sua arte. 
li 
De um poeta moderno cujo nome não estou auto-
rizado a revelar - recebí uma carta em que se mostrava 
mais ou menos alarmado com a minha preocupação de 
ligar a poesia a um problema de forma, e não escondia 
o seu receio de que eu estivesse numa posição quase que 
reacionária. Vencendo um pouco o constrangimento que 
J o rn al d e C rít i c a 33 
sempre me traz a idéia de uma explicação forçada, não 
tenho dúvida nenhuma em desdobrar a minha afirmação 
neste sentido, embora repetindo mais uma vez que não 
escrevo para servir qualquer grupo literário de vanguar­
da ou de retaguarda, qué não estarei disposto nunca a 
fazer uma crítica de soutien, que não me deixarei domi­
nar por qualquer circunstância fora da literatura. Mas 
direi desde logo que se fosse obrigado a escolher entre a 
poesia antiga e a_ moderna - era exatamente a poesia 
mod,erna que eu escolheria. Bem sei que a poesia é uma 
só, mas a sua expressão moderna encontra em mim uma 
maior correspondência ; e o que poderia chamar as mi­
nhas poéticas "afinidadeseletivas" são todas com -os poe­
tlliS 'modernos. Explico, ·.porem, que Jestou restringindo 
o problema à vida literária do Brasil, onde acho que a 
poesia se encontra nestes últhnos anos num momento de 
plenitude. E não só a poesia, mas toda a literatura bra­
sileira está realizando um movimento de evolução. Esta­
mos hoje ultrapassando o passado em várias direções, 
sem que tenhamos a necessidade de desdenhar as gran­
des figuras deste mesmo passado. Afasto assim a inquie­
tação do poeta que me escreveu. Sou um escritor que 
estima o passado mas sem qualquer saudosismo reacioná­
rio, que se sente muito bem na sua época e com os seus 
contemporâneos, que compreende e valoriza a literatura 
do seu tempo mais do que qualquer outra. Fora de to­
do o propósito seria julgar que a minha exigência de uma 
forma para a poesia moderna representa qualquer ten­
dência de uma volta ao soneto ou ao v-erso metrificado. 
Estou certo, ao contrário, de que através do verso livre 
a poesia moderna pode encontrar a sua forma de expres­
são. E não se trata somente de uma substituição esté­
tica, mas sobretudo de uma nova conquista, de uma ex­
traordinária liberdade. O soneto, o verso metrificado, 
todas as medidas e formulários poéti�os - constituem 
·P�struJl1entos �ue limitam ou escravizam a poesia, a nãC? 
34 A lvaro Li_ns 
ser nos casos em que o poeta tenha uma verdadeira- voca· 
ção para essas formas. Poder-se-á lembrar que muitos 
poetas construíram as suas grandes obras dentro destas 
fórmulas, mas lembrarei ao. mesmo tempo a possibili­
dade de uma grandezá ainda maior para essas obras se 
houvessem sido colocadas num processo de realização 
fora de quaisquer limites. 
· 
Deve-se entender, portanto, que a poesia moderna 
violentou tantas fronteiras e penetrou em regwes tão 
misteriosas e tão profundas que não mais pode suportar 
qualquer limitação vocabular. Através do verso livre é 
que m�lhor poderá se exprimir e révelar. Mas será que o 
verso livre exclue .ã forma ou toma mais facil a sua 
aquisição? Penso o contrário: que o verso livre torna 
mais complexo o problema da forma, que torna a forma 
mais necessária e mais em conexão com a poesia. As 
fórmulas antigas de construção poética exigiam muito 
menos de individualidade e expressão pessoal. A poe­
sia já se revelava para _uma determinada forma que a 
iria conter. A dificuldade toda se· encontrava na técni­
ca, que é de ordem mais geral, não se confundindo com o 
esforço de uma expressão individual. O verso livre, ao 
contrário, tudo exige do poeta. Ele terá que criar ao 
mesmo tempo a poesia e a sua forma. E nem sequer 
poderá recorrer a uma técnica de ordem geral. Cada 
poeta há-de ter a sua própria técnica, com a qual, por 
sua vez, deverá criar a sua própria forma. A poética 
moderna abriu estranhas perspectivas e desmedidas pos­
sibilidades para a poesia em si mesma, mas deixou o pro­
blema da forma entregue a cada poeta em particular. E 
eis porque coloco o problema da forma no centro da 
poesia moderna. É um problema dramático que apre­
senta uma Bingular importância. Uns o resolvem pro­
curando esquecer a form
·
a, com a idéia de que um po' 
tencial poético de grande intensidade pode dispensar tu­
do o mais ; outros, procurando a construção de uma for-
J o r n al d e C r í t i c a 35 
ma que não seja uma consequência da sua poesia, mas 
de uma elaboração intelectual. Um caso especial é o 
do sr. Mario de Andrade, que procura na forma não só 
uma expresaão para a sua poesia, mas uma expressão 
para a sua própria personalidade. Uma pesquisa que 
engrandece a sua obra, somente a diminuindo quando o 
poeta se encontra num falso caminho. E raros os poe­
tas modernos que têm conseguido encontrar a sua pró­
pria forma. Não quero dizer, aliás, que o desencontro 
com a forma, esta luta inacabada pela conquista da for­
ma, signifique sempre uma fraqueza do poeta ou da 
poesia. Ao contrário, esta luta pode constituir um ele­
mento de grandeza e de dramaticidade. Mas se a ausência 
dê uma forma não impossibilita a grandeza da poesia, im­
possibilita s�m dúvida a perfeição de uma obra poética. E 
neste ponto .chegamos diante de uma distinção que não 
deve ser esquecida : a distinção entre poesia e obra poéti­
ca, entre uma inspiração de poesia
· 
e um poema realizado, 
entre a essência da poesia, que é toda subjetiva e imaterial, 
e a sua realização concreta, que tambem participa da ma­
terialidade das palavras. A poesia não é privilégio de nin­
guem : ela se acha em toda parte e no interior de todos os 
homens. O que é privilégio do poeta é a obra poética rea­
lizada, esteticamente construída. E não se deve esque­
cer que a obra poética representa uma obra de arte, ·exi­
gindo nesse carater um instrumento de expressão, uma 
forma literária, portanto. Não havendo forma t!_ão exis­
te, pois, uma obra poética, não existe um poema. Pode 
existir apenas a poesia, mas sem a capacidade de se ex­
primir, sem a capacidade de se comunicar. E comuni­
car-se representa uma missão da poesia, representa uma 
missão do poeta. Ou, como escreveu Henri Bremond : "On 
pourrait dire d'un mot : le propre de l'experience poé­
tique est d'être comunicable." Um excessivo hermetis­
mo .pode asaim constituir . um obstáculo fatal, não digo 
36 A l v a r o L i n s 
para a poesia em si mesma, mas para a obra poética, que 
deve necessariamente se comunicar. Um poeta que não 
se comunica é um prisioneiro da sua própria · poesia. 
Existe, porem, outro aspecto da questão : o de que nem 
sempre ,cabe ao poeta a responsabilidade da não 
transmissão da sua· ·experiência poética. A responsabili­
dade pode se encontrar no leitor, no seu prosaismo, nos 
seus preconceitos, nas suas exigência,s de uma clareza den­
tro da lógica comum. A poesia moderna, porem, se acha 
colocada muito alem �essa lógica comum. Poesia que se 
transmite nem sempre quer dizer, por isso, uma poesia 
que é. clara no seu sentido e no seu desenvolvimento. 
Sabemos que algumas obras têm o destino de conservar 
um estado de mistério, de se 
·
concentrar dentro de uma 
especiC não comum de obscuridade. No entanto, para 
estas obras mais difíceis a forma se torna ainda mais ne­
cessana. Por exemplo : o que seria de Mallarmé· sem a 
sua forma? Pois somente uma forma poética contem a 
capacidade de justificar ou explicar uma poesia obscura. 
Podemos não entender o poema, pois nem toda poesia se 
mostra reconhecível sob os critérios da inteligência, mas 
teremos que o sentir por intermédio de outros caminhos 
de comunicação, o que somente se verifica através do 
poder sensível das palavras, através do ritmo interior, da 
música e dás sugestõe� que se acham contidas na forma. 
Parece-me que nunca um problema se encontrou co­
locado em termos de maior certeza e de mais positiva 
evidência. Um problema não só do nosso tempo, mas 
de todos os tempos. Lembro, a pro·pósito, o debate que 
ainda hoje se prolonga em torno da poesia de Edgard 
Poe nas letras de língua inglesa : um debate em torno 
da sua forma. Foi a · tradução francesa de B audelaire, 
como se sabe, que tornou Poe um nome universal. 
Depois, as letras de língua inglesa se dividiram a este 
propósito. Uns aceitam e confirmam essa consagração, 
enquanto outros continuam a negar a sua legitimidade, 
J o r n a l d e C r ít i c a 37 
E para os que não a aceitam, o argumento é a forma 
de Edgar Poe. Num doa seus ensaios, por exemplo, 
Huxley afirma que Poe poderá ser um grande poeta em 
tradução francesa, mas nunca o será na língua inglesa, 
explicando-se : "A substância poética de Poe é aristocrá­
tica, enquanto que a sua forma é vulgar." Este caso de 
Poe - que estou apenas expondo, sem qualquer propó­
sito de oferecer uma opinião - se - coloca como um exem­
plo do perigo a que a forma submete um autor. Além 
disso, gostaria de lembrar que somente na forma poderá 
ser encontrada a sensação do verdadeiro tra�alho inte­
lectual, o sentimento da dignidade do oficio literário. 
Pretender que o poeta seja um simples medium para 
a inspiração - oque parece de acordó com o pensa­
mento teórico de certos poetas q'ue querem fazer da poe­
sia um. exótico "espiritismo", uma seita para iniciados 
sonâmbulos - seria diminuir a sua posição, seria torná· 
-lo um simples e pobre autômato. Acho, ao contrário, 
que o trabalho e o esforço são criadores, que devem estar 
na base de toda obra literária, como uma afirmação da 
personalidade no sentido desta proposição de Bergson : 
"L'effort est penible, mais il est aussi précieux, plus pré­
cieux encore que l'reuvre ou il aboutit, parce que, grâce 
à lui, on a tiré de soi _ plus qu'il n'y avait, ou . s'est haussé 
au-dessus de soi-même." 
* 
Não tenho, pois, outro propósito aenão o de cola­
borar com os poetas modernos qilando lhes estou suge­
rindo a importância da forma para a segurança e a resis­
tência de uina obra poética. E outro poeta moderno, 
diante de quem logo somos tentados a situar o problema 
da forma, é o sr. Murilo Mep.des, de uma maneira po­
rem que hão se confunde com a do sr. Mario de .Andra­
de, embora fosse possível eseabelecer entre ambos cer­
t<ls linhas de a11roximação1 sobretudo as que vieram do 
38 A lvar o L i n s 
suprarrealismo para a poesia moderna. Publicou o sr. 
Murilo Mendes, em 1938 o seu livro principal, ao mesmo 
tempo que uma das obras mais con.sideraveis da nossa 
poesia contemporânea : A poesia em pânico, um volume 
em que recolheu os seus poemas de 1936 e 1937. O livro 
que agora publica (O visionário, Rio, 1941 ) está for­
mado de poemas anteriores aos de A Poesia em Pânico ; 
poemas de 1930 a 1933, servindo antes de tudo como do­
cumentos da sua trajetória e como depoimentos da sua 
inquietação e da sua mobilidade. E nessa categoria de 
documentos está o principal mérito de O visionário. Na 
categoria de obra poética parece-me abaixo de outros 
livros -do sr. Murilo Mendes. Abaixo tanto de Poemas 
( 1930) como de A poesia em pânico ou Tempo e eterni­
dade. Percebo em O visionário um intenso potencial 
poético, mas que ainda se acha aprisionado, que ainda 
não encontrou a sua forma de expressão. Mas como o 
sr. Murilo Mendes se coloca em face do problema da for­
ma ? Ele me transmite a idéia de alguem que não se 
preocupa muito com este problema. Contudo em A poe­
sia em pânico atingiu uma forma adequada e precisa de 
expressão para quase todos os poemas ; atingiu algumas 
vezes a unidade orgânica de poesia e de forma, e de um 
modo tão seguro que poderia lembrar aquela aspiração 
de Valéry : "La pensée doit être cachée dans le vers com­
me la vertu nutritive dans un fruit." Um resultado, porém, 
em que não deve ter havido senão um milagre da pró­
pria poesia, pois a verdade é que uma forma tanto pode 
ser obtida laboriosamente oomo espontaneamente. Te­
nho a impressão de que a forma de A poesia em pânico 
nasceu Ja com a sua própria poesia. Nasceu com aque­
la sombria densidade, com aquele canto desesperado de 
amor, com aquele lirismo metafísico. Foi realmente 
este livro o momento mais alto da vida poética do sr. 
Murilo Mendes, 
J o r n a l d e C r í t i c a 39 
Não se preocupando com o problema da forma, o sr. 
Murilo Mendes está vivendo quase sempre no domínio 
exclusivo da poesia em si mesma. É verdade que em 
todos os seus livros existem alguns poemas realizados 
integralmente, poemas em que se ajustam a forma e a 
p oe.sia ; o que é mais constante, porem, é o sentimento 
exclusivo da poesia, sem a sua correspondente expressão 
formal. Representa o sr. Murilo Mendes um dos nossos 
mais poderosos "portadores" de poesia, sem que tenha 
um igual poder de transmissão. O seu clima mais natu­
ral seria o da poesia pura, o de uma poesia que fosse 
indiferente às palavras. Talvez que essa sua tendência 
venha das suas profundas afinidades com a música. E 
a música se caracteriza, como acentuou Hegel, pela sua 
capacidade de exprimir "a vida do espírito em seu mo­
vimento essencial". Uma característica muito semelhan­
te vamos encontrar no sr. Murilo Mendes : a sua ânsia 
de penetrar na essência mesma das coisas, colocando a 
sua poesia no plano do que é essencial, do que é impon­
deravel, do que é metafísico. O mundo físico não existe 
poeticamente para o sr. Murilo Mende�. Mesmo quan­
do fala dos seus objetos a voz do poeta se dirige para a 
possível existência desses mesmos objetos num mundo 
metafísico. Não vê coisa alguma com os olhos do mun­
do natural, pois toda a sua visão está voltada p ara a so­
brenatÚralidade. Afirma-se sobretudo como um poeta 
católico nesse plano de transfiguração de todos os obje­
tos terrestres. Daí o que existe de deformador na sua 
visão poética. Ele t:udo vê sob formas antinaturais, ex­
cêntricas, absurdas. Quando descreve uma mulher, uma 
paisagem, um acontecimento - todos estes seres e obje­
tos se tornam quase irreconheciveis. O poeta lhes atri­
buiu uma nova configuração, a configuração do seu estra­
nho poder imaginativo. Ele seria de qualquer modo um 
poeta suprarrealista, mesmo que não houvesse existido o 
movimento do suprarrealismo. O sr. Murilo Mendes 
40 A l v a r o L i n s 
tornou-se por isso o menos inteligível, o mais hermético 
dos nossos poetas modernos. Dificilmente a sua poesia 
se transmite, e a responsabilidade desse desencontro cabe 
em muitos casos ao leitor, mas em muitos outros ao 
próprio poeta. 
Na verdade, o sr. Murilo Mendes se sente na terra 
como, _ um "noVÍSBimo Prometeu". Sente-se acorrentado 
violentado, debatendo-se num tumulto de aspirações im­
possíveis. Procura se evadir do mundo natural por in­
termédio de dois caminhos : o seu frio espírito crítico e 
a sua ardente alucinação poética. Dois caminhos apa­
rentemente contraditórios que se juntam neste poeta, em­
bora com a finalidade de torná-lo ainda mais dividido e 
complexo. O espírito crítico leva-o à realização de poe­
mas satíricos, epigramáticos, caricaturais, sendo que uns 
atingem o efeito mais feliz, enquanto outros nos parecem 
simples jogos de excentricidade. E deve-se assinalar o 
que há de inteligência, de agudeza, de poder de com­
preensão na parte propriamente crítica da obra do sr. 
Murilo Mendes. E' um caso realmente curioso o desse 
poeta que parece um alucinado da poesia, mas que tem 
ao mesmo tempo uma força de inteligência e de .conhe­
cimento literário. Dá-nos a impressão, porem, de que 
tudo esquece naquelas ocasiões em que se acha pos­
suído de alucinação poética. Estamos agora diante do 
outro aspecto - o aspecto principal, na minha opinião, 
- da sua figura poética : aquele que se poderia chamar 
o .seu lirismo metafísico. A 1sua poesia perue, então, 
todo o seu possível equilíbrio : o equiHbrio de espaço e 
de tempo. O espaço se desdobra para alem de todos os 
horizontes visíveis ; o tempo está recuado para o passa­
do ou projetado para o futuro, fora · de qualquer con­
trôle de calendário. Nestas regiões desconhecidas e nes­
tes tempos misteriosos, assistimos à luta dramática do 
poeta : a luta entre o Bem e o Mal, entre o Espírito e o 
Corpo, entre Deus e o Diabo. E nesta luta é �e se en,-
J o r n a l d e C r.í t i c a 41 
contra toda a essência da poesia do sr. Murilo Mendes. 
Pode-se imaginar, por isso, a que altura chega o seu de­
lírio de imaginação. Delírio de imaginação que se torna 
responsavel peJa força e pela fraqueza da sua poesia, ao 
me.smo tempo. Direi assim, sem nenhuma hesitação, que 
o sr. Murilo Mendes é um poeta que não se pode a�eitar 
integralménte. Logo se vê que ele não sabe manter um 
contrôle eficiente sobre a sua obra, de modo que a g�:an­
de poesia e a nenhuma poesia se alternam nos seus li­
l'ros com a maior naturalidade. Logo se verifica como 
ele se repete a si mesmo, nas suas imagens, nos seus sen­
timentos, nas suas idéias, chegando a provocar constan­
temente uma sensação de monotonia. Logo se percebe 
o seu gosto exagerado pela excentricidade, pelo "épater 
le bourgeois", pelo efeito desconcertante das imagens es­
quisitas. E penso que toda essa parte mais inaceitavel 
do sr. Murilo Mendes prove1n: da sua insistência em tudo 
extrair das suas faculdadessuprarrealistas. Mas o suprar­
realismo não suporta apelos excessivos, nem violências 
contra a sua espontaneidade. A faculdade suprarrealista 
tem qualquer coisa de uma criança : quando se pede na 
vista de gente que realize os prodigios que costuma fazer 
tão naturalmente, ela se atrapalha toda e mata os pais 
de vergonha pelo fiasco. Alem disso, esse automatismo 
suprarrealista vai repercutir na sua forma, tornando-a 
demasiadamente fria, simplificada e esquemática. Uma 
forma em muitas ocasiões quase que telegráfica, quando 
a poesia exige sempre uma forma igualmente poética. 
Não digo uma forma pomposa, mas uma forma simples­
mente poética, o que pode significar sobriedade; preci­
são e domínio rigoroso das palavras. 
Tudo o que estou escrevendo agora sobre o sr. Mu­
rilo Mendes me foi sendo sugerido exclusivamente pela 
leitura de O visionário, mas .como era natural com a 
associação de impressões que me transmitiram muitos 
outros poemas de livros diferentes. Quero I'epetir, po-
42 A l v a r o L i n s 
rem, que O visionário nada de novo acrescenta ao sen­
tido de sua obra, devendo ser fixado mais como uma re­
presentação documentária do seu espírito, o que procurei 
fazer nesta crônica. Trata-se, aliás, de um livro que re· 
vela mais ostensivamente os seus �efeitos do que as suas 
qualidades ; um livro em que se sente mais a presença de 
uma figura de poeta e de uma espécie de poesia do que 
propriamente a realização de uma obra poética. O que 
não quer dizer que não haja, nas suas páginas, um ou 
oútro poema admiravel, sobretudo que não haja nas suas 
páginas uma !Série de imagens que muito sugerem como 
visão poética e como representação lírica da vida. 
21 e 28 de Março de 1942. 
CAPíTULO lli 
JUSTIFICAÇÃO .DE UM POETA 
D E vez em quando acontece que a um livro não seja atribuído o seu devido lugar por ocasião do seu 
aparecimento. Ainda existe outra siituação mais peno­
-sa : que um escritor ou artista suporte durante a vida 
toda os rigores de uma sorte contrária ; que suporte o 
silêncio ou a reprovação de uma forma injusta. Quase 
nunca coincidem, em , literatura, o julgamento contempo­
râneo e o julgamento do futuro. É o que está !\empre 
indicando aquela experiência que se levanta do conheci­
mento da história literária. 
. 
Muitos são os livros e os 
autores que se glorificam hoje com o desgraçado destino 
de um completo esquecimento para as próximas gerações. 
Outros, porem, carregam um destino exatamente oposto : 
o de um reconhecimento do futuro como uma espécie de 
vingança contra os contemporâneos que não os souberam 
entender. Nem sempre esse desencontro se verifica com 
a
· exatidão de uma fatalidade. Contudo, ele se verifica 
com mais frequência do que esperamos. A esse propósi.., 
to é que venho falar de um poeta da minha cidade e da 
minha geração, o sr. Odorico Tavares, que não encontrou 
ainda a repercussão e a categoria literária que me pare­
cem à altura da sua obra. Acredito, antes de tudo, que 
se trata de uma injustiça não voluntária. O sr. Odorico 
Tavares não foi devidamente julgado porque ainda não 
se acha suficientemente conhecido. Mas como se .expli­
ca que não seja conhecido quando já se deu inteiramen­
te a conhecer? Estamos diante de um desencontro . lite­
rário ; estamos diante de um desajustamento que se pode 
constatar sem que se possa igualmente explicar. 
44 A l v a r o L i n s 
Há alguns anos, o sr. Odorico Tavares, ainda estu­
dante, publicava uma coletânea de versos com o título de 
26 Poemas. Destes versos podemos hoje dizer que nada 
mais eram do que uma tentativa, do que um ensaio, fe­
cundo na categoria de promessa, mas desprezível ,em si 
mesmo, como obra literária. Representavam realmente 
uma simples coletânea de estudante, os primeiros im­
pulsos e os primeiros entusiasmos de um poeta que pro­
curava o seu próprio caminho. Anunciav'am apenas o 
poeta que seria depois, o poeta que é hoje o sr. Odorico 
Tavares. Apesar dessa circunstância, a coletânea dos 
26 Poemas, embora editada no Recife, obteve no Rio e 
'em outros centros literários de importância um sucesso 
fora do comum. Saudava-se essa estréia como uma re­
velação, e de toda parte surgiam artigos e pal�vras de 
apoio. Lembro-me que o artigo mais entusiástico foi o 
do sr. Mario de Andrade, que falou do jovem poeta e do 
seu livro como de entidades que traziam uma contribui­
ção nova para a literatura brasileira. Infelizmente, po­
rem, todo esee sucesso era indevido ; e mais forte do que 
ele era a fraqueza dos 26 Poemas. Esse sucesso quem o 
iria merecer era A sombra do mundo, o novo livro que 
o sr. Odorico Tavares publicou há dois anos, exatamente 
em setembro de 1939. Mas o que aconteceu foi o ne­
nhum sucesso de A sombra do mundo. Um silêncio in­
justo caiu e ainda hoje está pesando sôhre esse livro. 
Do êxito de 26 Poemas quase ninguem se recorda mais : 
eis uma consequência natural. Do valor de A sombra do 
mundo ninguem se lembra de falar : eis uma consequên­
cia inesperada. Devo dizer, aliás, que não resultou eete 
silêncio de nenhuma circunstância acidental : o livro foi 
lançado no Rio de J aneiro, por uma editora do mais só­
lido conceito ; a apresentação gráfica do volume é de pri­
meira ordem ; não havia contra o poeta qualquer propó­
sito deliberado de oposição. O livro chegou mesmo a 
obter um simpático noticiário de imprensa e algumas crô-
J o r n a l d e C r í t i c a 45 
nicas de elogio vago e inexpressivo. Mas fazendo excepção 
para o artigo do sr. Valdemar Cavalcanti, não sei de nin­
guem que lhe houvesse dedicado um estudo crítico ou 
uma atenção demwada. Nem mesmo o sr. Mario de An­
drade, tão entusiástico para os 26 Poemas, se . lembrou de 
dar uma palavra sequer para o novo livro, que vinha 
encontrá-lo, aliás, como crítico profissional de um suple­
mento literário. Somente no Recife é que os poemas de 
A sombra do mundo puderam ser lidos e julgados devida­
mente. Lidos e juJgados por um Gilberto Freyre, por 
um Olívio Montenegro, por um Luís Delgado, por um 
Annibal Fernandes. Mas esses julgamentos não atraves­
saram os limitea da vida provinciana, não se continua­
ram em outras cidades e em outros ambientes. No Rio, 
somente alguM escritores e poetas conhecem o sr. Odorico 
Tavares ; e são ainda mais raros os que atribuem aos seus 
poemas a categoria que eles merecem e exigem. Eis 
porque me disponho agora a falar de um livro que conta 
dois anos de aparecimento, mas que ainda se conserva 
numa aituação de quase i�editismo. Acabei concluindo 
que não devia tomar como obstáculos as relações pessoais 
e sentimentais que me colocam tão perto do poeta de 
A sombra do mundo. Tenho vários amigos de cujos livros 
não gosto, e diante dos quais venho suatentando opiniões 
contrárias com _uma invariavel franqueza. Destas mesmas 
colunas tenho lançado contra amigos ou companheiros de 
idéias algumas das palavras mais duras e amargas que a 
crítica pode utilizar, ao mesmo tempo em que me tenho 
empenhado na tarefa de fazer justiça àB obras e pessoas 
dos inimigos e adversários. Mas como não oferecer a um 
amigo a mesma justiça que se oferece até aos inimigos ? 
Ao me referir, portanto, ao sr. Odorico Tavares, não será 
o amigo ou companheiro de geração quem estará falando. 
Será crítico que joga sempre nas suas afirmações toda a 
responsabilidade do seu ofício e do seu nome. Esta é, 
aliás, uma explicação que não se restringe ao sr. Odorico 
46 A l v a r o L i n s 
Tavares ; é uma explicação de ordem geral que ape,nas 
encontrou no desenvolvimento desta crônica uma oportu­
nidade mais adequada para se exprimir • 
•. 
Em "Caminho", dos 26 Poemas, o sr. Odorico Tavares 
escreveu· estes versos que continham uma davertência ao 
próprio poeta que os lançava : 
' 'Vê bem, poeta, que ·este não é o ritmo do teu verso 
Vê bem, poeta, que esta não é a tua poesia ." 
Realmente, não era. A verdadeira poesia do sr. Odo­
ri«?? Tavares é aquela que vamos encontrar em A sombra 
do mundo. No entanto, não. contem este livro toda a sua 
poesia.Uma contingência dos poetas de hoje é a ex­
pressão em pequenos poemas, em assuntos limitados, em 
inspirações que se esgotam todas em alguns versos. As­
sistimos, assim, a uma espécie de fragmentação das perso· 
nalidades poéticas. Elas só se vão revelando pouco a pou­
co, de poema para poema, de livro para livro. Como 
todos os poetas 1modernos, tambem o sr. Odorico Ta­
vares se encontra limitado por essa .contingência. Ain­
da se deverá levar em conta a mocidade do poeta e o 
seu temperamento, que não é daqueles que se confes­
sam e se projetam de uma só vez. Ele pertence à raça 
dos que necessitam de muitos anos e de muitos livros para 
uma completa realização da personalidade. Assim hem 
se pode afirmar que não é toda a poesia do sr. Odorico 
Tavares que será encontrada no livro A sombra do mun-. 
do. Tanto a essência poética como a forma de expressão 
ainda se encontram num caminho de desdobramento; de 
continuidade e de evolução. Tudo indica que não esta­
mos diante de um poeta perfeito ou completo. Mas ao 
mesmo tempo tudo indica que estamos diante de um au-
J o r n a l d e C r ít i c a 47 
têntico poeta. A revelação dessa autenticidade será a lei­
tura e a compreensão de A sombra do mundo. E qual 
a significação desse livro dentro da nova literatura brasi­
leira ? Acho que poderemos defini-lo em dois aspectos : 
1 °) é um livro moderno pela forma e pela expressão 
·estilística com que renova velhos temas ; 2° ) é um livro 
antigo pela essência poética e · pelo gosto com que se co­
loca dentro do passado. Parece que o sr. Odorico Ta­
vares se instala, assim, dentro da mais forte e mais sau­
davel tendência da poesia brasileira dos nossos dias. O 
seu movimento é o mesmo que estão· realizando alguns dos 
nossos principais poetas : a unidade entre uma essência 
poética antiga - o que quer dizer : eterna - e uma for­
ma rigorosamente mod�rna. Nin�em seria mais hoje ca­
paz de fazer profissão ,de "moderno". Atingimos uma 
arte moderna pela superação do "modernismo". O ho­
mem moderno procura
' 
hoje reatar ·e continuar uma tra ... 
dição poética que se encontra toda no lirismo brasileiro 
- uma herança do lirismo português que se tornou inde­
pendente e autônoma. Esta poética que já se poderá 
chamar brasileira é a que se iniciou .com os líricos da 
Escola Mineira, a que se afirmou com os românticos do 
século XIX, a que conseguiu vencer a "impassibilidade" 
parnasiana, sobretudo com Raymundo Correia, a que se 
corporificou em simbolistas como Alphonsus de Guimarães 
e Cruz e Sousa, a que se encontra hoje em. plenitude atra­
vés de alguns dos nossos poetas modernos. Existe uma 
luz interior, uma inspiração local e uma realidade verbal 
que vêm marcando a poesia brasileira através das ·escolas 
sucessivas e temporárias. Uma espécie de linha que se 
quebra e se reata constantemente. E acredito que nunca 
apareceu mais fortemente sustentada do que nos nossos 
dias. Vê-se que a poesia de hoje está tentando esta sín­
tese entre a forma moderna e a substância antiga, entre 
sentimentos universais e expressões de carater nacional, 
entre a 1'saudade" do passado· e a "vontade" do futuro. 
48 A l v a r o L i n s 
É uma t�ndência que já assinalei ao falar do sr. Carlos 
Drummond de Andrade. É uma tendência que tamhem se 
poderá assinalar na· poesia do .sr. Odorico Tavares, que 
pertence exatamente à família poética onde se encontram 
instalados, como patriarcas, os srs. Manuel Bandeira e 
Carlos Drummond de Andrade. Esta família se distingue 
pela sua ânsia de realizar aquilo que, em filooofia da 
arte, Wischer e Lotze chamaram a "einfühlung", isto é : 
o propósito de fazer d a beleza estética uma imagem da 
própria vida, uma realidade onde identificamos a pró­
pria vida. Uma espécie de fusão, quase sempre ideal, 
entre o "sentimento da natureza" e o "sentimento esté­
tico". 
O sr. Odorico Tavares coloca-se sob o signo dessa 
fusão em todos os poemas de A sombra do mundo. Al­
ternam-se os poemas que apresentam uma caract�rização 
mais local e os que oferecem uma participação m�'larga 
nos sentimentos universais. É um livro o seu muito da 
sua terra e do seu tempo. Do seu tempo, antes · de tudo 
pelo que rcpre.senta de ressonância dos acontecimentos 
desencadeados pela - guerra. A voz do poeta se ergue num 
momento de guerra quando ela é uma voz que clama pela 
p az. Pode-se dizer que ela chegou no instante 'mesmo 
em que se consumava um rumoroso fracasso dos intelec­
tuais: De 1918 até hoje, as atividades dos homens de le­
tras mais separados, dos que vinham de todos os cantos 
dos horizontes políticos, tinham todas o mesmo denomi· 
nador : a paz. Esta palavra não exprimiu, no caso dos 
intelectuais, apenas um sentimento : representou tambem 
uma espécie de ética, um ideal de luta, um destino de 
combate. Mas o que resultou foi .uma enorme sensação 
de inutilidade. O mundo o que ele prefere é a voz da 
guerra à voz da paz. No entanto, essa luta pela paz ain­
da é sustentada por homens que acreditam na poesia e 
nos poetas. Eles podem repetir com Georges Bernanos : 
"Si ce monde pouvait être sauvé, il le serait par ses poe-
J o r n a 1 d e C r í t i c· a 49 
tes". Alguns dos poemas mais significativos de A sombra 
do mundo éoncentram-se 'nos motivos dramáticos da guer­
ra da paz. Uma espécie de diálogo entre o lirismo do 
poeta e as forças destruidoras das máquinas. E vale a 
pena acentua:t: o tratamento novo e o sentido pessoal com 
que o sr. Odorico Tavares se movimenta dentro de temas 
tão difíceis e tão possíveis do tom-banalidade. Não se 
encontram nos seus poemas lugares-comuns, versos va­
zios, sentimentos fal�;os. Ele teve o heroismo de muito 
sacrificar a quantidade da sua obra, de destruir muitos 
dos poemas que eu poderia agora indicar como indignos 
de um livro ; as suas exigências consigo mesmo determi­
naram A sombra do mundo como um volume que não 
tem mais ,de setenta páginas. Entre os seus poemas, des­
taco "Mo"tietone Ne:ws" : a visão de uma Espanha que um 
dia :aal_· 1 :1:\scerá ; "Paz" : .a imagem simbólica �e uma, crian­ça �colher "a poesia toda do mundo para solta-la no 
espaço contra os gases asfixiantes" ; "Guerra" : uma espé­
cie de síntese daquelee sentimentos de ansiedade, de an­
gúsita, de inquietação que se desdobram até as interroga· 
ções com que fecha A sombra do múndo : 
" Quando os céus serão limpos, a terra então lavrada ? 
Quando o amor volverá eterno, quando os caminhos povoados? " 
Porque ninguem responderá a perguntas dessa espécie, 
o poeta deixa tantas vezee este mundo fugindo dele ; fu­
gindo e esquecendo-o. Para salvá-lo, apresenta-se um ou­
tro mundo muito mais sugestivo : o da sua imaginação. 
"A poesia é quase um alívio ; faço versos para viver". Leio 
estas palavras e me lembro de Flauhert, o exemplo de 
vida mais típico para todos. os artistas, exatamente na sua 
solidão do Croisset : "La vi e est une chose tellement 
odieu,se que le seul moyeil de la supporter, c'est de l'évi· 
ter". Evitar a vida e .criar outra vida - não será este o 
um co caminho possível para um artfsta ? Através da 
poesia do sr. Odorico Tavares sente-se que ele ama a sua 
50 A l v a r o L i n s 
.arte como qualquer coisa de mais essencial que a própda 
vida - amor que se exprime, por exemplo, nestes versos 
da "V e lha canção" : 
" Mortos meus pais, morta a infância 
- E da vida que foi que eu fiz ? 
O corpo gasto a o s vinte anos . • • 
Mas se a poesia está vivendo, 
Ainda posso ser feliz. " 
É uma confissão de que a sua felicidade está na poe­
sia, ou mais exatamente : na eua capacidade de viver 
poeticamente. Quando a vida não lhe permite este esta­
do que é uma espécie de bem-aventu-rança, o poeta utiliza 
um recurso salvador : a_ fug'a no tempo, o retorno ao pas­
sado, a renovação da infância, a sua visão de menino em 
Timbauba - a cidade que inspirou o "Bonde de burro 
da minha terra". E pode então divagar livremente, dis­
tante de todos os espectros e fantasmas : "Bonde de bur­
ro, onde me levas ?" O bonde de burro, o poético bondede burro leva-o à infância na pequena cidade que o sr. 
Odorico Tavares torna inesquecível nestes versos : 
" Bonde de burro, não passes, não, 
Naquela casa daquela rua, 
Onde um homem sempre escrevendo 
Deixava tudo para me abraçar 
Quando eu reinava pela idade, 
Rei do hodoque, sujo e descalço. 
Quando eu era este menino 
Que vai comigo, sempre ao meu lado ." 
Este poema "Bonde de burro da minha terra" per­
maneée ainda hoje a principal realização poética do sr. 
Odorico Tavares. É um poema que a tudo tem resis­
tido, inclusive ao repouso das antologias. Não sendo pro­
priamente um poema descritivo, transmite no entanto uma 
sensação quase física da paisagem exterior. A mesma 
sensação que iremos encontrar no poema "Viagem no 
trem noturno", Em ambos, a poesia da terra se im-põe 
J o r n a l d e C r í t i c a 51 
como uma sugestão, na linha do conceito poético de Brad­
ley. A paisagem exterior não aparece objetivamente ; a 
sua re�lidade física transporta-se para dentro do poeta ; 
a paisagem e o poeta tornam-se uma só unidade. Mas 
não só as paisagens locais se destacam dos versos do sr. 
O do rico Tavares. Outras paisagens estão aqui sugeridas : 
as que ficam distantes, as que o poeta nunca viu, as que 
constituem objeto de sonhos e devaneios. Todas elas en� 
contram uma espécie de síntese no poema de evasão que 
é a "Canção da emigrante". Quero lembrar ainda a po­
sição do sr. Odorico Tavares em face do tema _ poético in� 
fância, que representa o próprio fundamento da sua poe� 
sia. O seu itinerário poético é aquele pensamento _ de 
Rainer Maria Rilke : o que situa na lembrança da infân­
cia, em solidão, o supremo recurso da inspiração _poética. 
Mas a infância não penetra na poesia _do sr. Odorico Tava­
re� como um fato do passado, como um conjunto de remi� 
niscências, como uma coisa morta que se faz -reviver pe� 
los artifícios da arte. A infância está presente no poeta 
como se ele a estivesse vivendo agora mesmo. O seu 
êxito neste domínio poético tão complexo surge justa­
mente de haver podido reter os sentimentos e impressões 
da infância num estado de absoluta pureza. A expres� 
são é do homem, mas o sentimento é o da infância, a úni­
ca idade que é poética de uma maneira absoluta. Aliás, 
os que conhecem o sr. Odorico Tavares logo o identüi­
cam como uma criança de 11;rande estatura. Ele se apre­
senta p�ssoalmente tão poético qUanto a sua poesia. Eu 
o revejo, agora, com a sua fisionomia ingênua, com a 
sua inocência de menino ; com os olhos míopes de criança 
assustada ; com as suas palavras de surpresa diante das 
velhas �nas ou das velhas idéias, que percorríamos juntos ; 
com o seu corpo ma!!r�simo de quem esteve muito perto 
da morte, de qUem enfrentou a tuberculose com um h u� 
mour desesperado, como o sr. Manuel Bandeira. A minha 
lembrança pessoal se confunde com a outra le�brança que 
52 A I v _a r o L i n s 
ele nos deixa por intermédio do poema "Volta à casa 
paterna" : 
" Por isso, limpem o espelho, 
Porque, apesar de todos os disfarces, 
A imagem da criança que se foi há muito tempo e hoje voltou 
Se refletirá nítida e forte com a pureza e o . encanto dos seus pri· 
[meiros sorrisos. " 
Não tenho dúvida nenhuma de que A sombra do 
mundo, pelos seus sentimentos poéticos, pela forma de 
expressão, pela realidade artística que contem, represen­
ta um documento literário de primeira ordem. Estamos 
diante de um poeta mais visual do que auditivo, mais 
sugestivo do que descritivo, mais artístico do que elo­
quente. As suas palavras são sóbrias : são palavras den­
sas e essenciais. A sua experiência da vida tem um cara· 
ter mais pessoal do que livresco ; o seu conhecimento do 
mundo não é o da ciência, mas o da intuição poética e 
artíatica. Revela-se, por isso, humano e fraternal, sem que 
seja sentimentalista ou piedoso. É u'm lírico que se tor­
nou dramático pela sua necessidade de se exprimir em diá­
logos ; e não poderia encontrar outra forma de expressão 
para harmonizar o seu lirismo de poeta com sensações 
diversas - estas mais intelectuais - de amargura e de pes­
simismo. Há cem anos passados, o sr. Odorico Tavares se· 
ria uma figura representativa do romantismo. Hoje, é 
um poeta moderno que se poderá classificar como neo· 
-romântico. E porque todos os homens têm os seus poe­
tas prediletos, com- indiferença quanto ao seu valor e 
classificação nas literaturas, confesso que um ' dos poetas 
da minha preferência é o sr. Odorico Tavares. A mim 
me comove este artista que fez da poesia um instrumento 
da sua personalidade e do seu carater. Que fez da poe· 
sia uma afirmação de sentimentos humanos e de nobreza 
intelectual. 
13 de setembro de 1941. 
CAPíTULO IV 
PROBLEMAS E FIGURAS DA 
POESIA MODERNA 
T ODOS os movimentos poéticos se representam histo­ricamente em certas figuras e em certos temas que 
mais fielmente se ligaram ao seu desenvolvimento. Tal­
vez que haja muito prejuízo nessa redução, mas se trata, 
de qualquer modo, de um processo histórico invariavel ; 
a história sempre apresenta, pelo seu próprio carater, uma 
certa tendência para a simplificação e para a síntese. 
Podemos definir um movimento literário através das 
suas causas e consequências de ordem mais geral e mais 
profunda. Esta é uma obra de pensamento e de inter­
pretação que se coloca diante de nós como um desafio. 
Contudo, há uma definição mais direta, mais simples 
e menos passível de erros e controvérsias : a que se rea­
liza através de figuras representativas e de temas expres·· 
sivos. Quando dizemos "amor e sentido da morte", esta 
fórmula significa : romantismo. Quando dizemos "forma 
e esforço de despersonalização", a fórmula significa : par· 
nasianismo. Quando dizemos "reação de espiritualidade 
e representação simbólica", a nova fórmula quer dizer : 
simbolismo. Todos esses movimentos apresentam outras 
faces consideraveis, mas duas ou três palavras especiais se­
rão suficientes para uma revelação quase completa das 
suas fisionomias. Tambem podemos sugerir a realidade 
desses movimentos pela citação de alguns nomes culmi­
nantes e característicos. Eles se tornaram símbolos das 
suas correntes literárias. Romantismo : Gonçalves Dias, 
Alvares de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, 
Fagundes Varella e Castro Alves. Parnasianismo : Ray­
mundo Correia, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira. 
54 A l v a r o L i n s 
Simbolismo : Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Sousa. 
Atrás desses nomes, numa segunda linha, encontram-se oe 
di amados poetas menores ; os que tiveram o êxito numa 
determinada época, mas que não traziam os elementos de 
resistência para uma continuidade : de tempos em tem­
pos, em cada revisão histórica, mais aparecem dimiÚuidos 
e mais próximos se acham do desaparecimento. 
Do modernismo brasileiro talvez não se possa dizer 
nunca que tenha sido uma escola ou mesmo um movi­
mento tão regular e tão uniforme quanto o foram o roman­
tiamo ou o parnasianismo. O seu próprio carater deu­
-lhe uma constituição diferente. Ele se formou como uma 
revolução mais generalizada e mais radical do que qual­
quer outra. Enquanto o simbolismo reagiu contra o par­
nasianismo, na mesma linha em que o parnasianismo rea­
gira contra o romantismo - dava o modernismo uma 
orientação mais completa ao seu espírito de luta : volta-
· 
va·se contra todas as escolas e sistemas do passado. De­
ve-se explicar que não era um a revolta contra a "poesia" 
do passado, mas contra as limitações que oprimiam essa 
mesma poesia ou contra os E'imples formulários dos imi­
tadores da retaguarda. Tanto aSI3im que os nossos poetas 
modernos são hoje os que mais sentem e melhor compre­
endem as figuras principais do romantismo, do parnasia­
nismo e do simbolismo. Devo ainda explicar que ao falar 
desse movimento moderno da poesia não me limito às 
atividades de poetas ou de grupo8 de poetas num deter· 
minado momento ou para determinado· fim. Essas ativi­
dades têm a sua importância, mas elas já significam ex­
pressões do movimento geral a que estou me referindo :um movimento de renovação que há vinte anos se levan­
tou no Brasil, assumindo aspectos di�ersos e provocando 
resultados diferentes. Divet·sos e diferentes, mas conver­
gentes. O que nesse movimento havia de atividade dire­
ta e, digamos, prática, já desapareceu. E desapareceu 
como era do seu destino, por efeito da vitóri� que obte· 
J o r n a l d e Cr í t i ca 55 
ve : a da realização desse movimento em obras. Podemos 
dizer que há vários anos o modernismo morreu. Mas 
estamos diante de uma morte heróica e fecunda. Ela signi­
ficou a substituição de urii movimento de combate por um 
movimento de realização literária. 
O Brasil conta hoje com uma poesia rigorosamente 
moderna, que não teria sido possível sem os agitacionis­
tas destes últimos vinte anos. A nossa poeaia moderna 
ocupa toda a vida .poética do presente. Os que estão fora 
do seu espírito só podem ser estimados ou admirados co­
mo homens do paasado. Nunca uma situação literária se 
apresentou mais clara ou mais definida do que a da poe­
sia moderna. Desse modo é que já podemos fixar os 
seus temas e as suas figuras principais, com · uma exatidão 
que não se diferencia muito daquela que mamos em re­
lação ao romantismo ou ao parnasianismo. Talvez não 
seja bastante exato falar de temas a propósito da poesia 
moderna, pois o que a caracteriza é precisamente uma 
vasta e desordenada utilização de todos os temas. A poe­
sia moderna se afirmou através de dois movimentos apa­
rentemente contrários : I 0) uma destruição de tudo que 
havia de formalístico e de convencional nas antigas es­
colas literárias ; 2°) um aproveitamento - como um im­
pulso para a continuidade - de tudo que nelas havia de 
mais propriamente vivo, artístico e poético. A poesia mo­
derna desdobra assim muitas das fontes de vida que já se 
achavam nos movimentoa poéticos do passado, no roman­
tismo e no simbolismo, principalmente. Não se tenha dú­
vida, aliás, a propósito desta afirmação : o· verdadeiro sim­
bolismo se encontra mais integralmente realizado nos poe· 
tas modernos do que nos poetas que conatituiram a escola 
correspondente a esse título. O fundamento expressional 
:t.!!ais_profundo da _poesia moderii.� � o_ símbolo, Do roman­
tismo, por sua vez, a poesia moderna herdou o poder d{di­
llútação, colocando-o, no entanto, numa esfera muito mais 
farga e iimiio :m;Íia ampla. Uma caniêterisíica da poesia 
56 A l v a r o L i n s 
moderna é a ausência de limites, é a ausência de fronteiras. 
Enganam-se oB que vêem no repúdio da métrica e da rima 
a principal revolução da poética dos nossos dias.. Essa 
revolução formal representa uma simples superestrutura. 
Ou mais exatamente : um simples acidente. E' no próprio 
espírito que a poesia moderna coloca aa suas fundas raizes 
de renovação. O poeta moderno está empreendendo uma 
grande aventura, uma espécie de exploração no tempo e 
no espaço. Em que sentido, com que fim, com que des­
tino, ele avança ? Ninguem o sabe ainda. O que. sentimos 
é que estamos em vésperas de uma grande descoberta 
poética. Os poetas modernos continuam a caminh ar e case 
caminho levará a um destino. Suponhamos, porem, que 
a nada mais conduza alem do que já se acha conhecido. 
Mesmo assim, a poesia moderna subsistirá pelo que já 
realizou em obras, continuando-se no tempo pela heran-;a 
q.ue transmitirá às geraçÕcB futuras. O que mais n o s far.­
cina na poesia moderna é justamente o que ela contem de 
imperfeito e de inacabado. Não se detem satisfeita na con­
templação de si mesma. Está sempre numa disposição de 
procura, de pesquisa, de experiência. O seu estado de es­
pírito é a inquietação ; o seu método é o da tentativa per­
manente de renovação. 
Não se deve esquecer, porem, o perigo dessa poesia : a 
possibilidade de se desviar para o que é simplesmente so-­
noro, para o vago, para o vazio jogo vocahulàr. Não eão 
somente os adolescentes, os principiantes, os imitadores, que 
se perdem nesses desvios e nessas curvas. Alguns poetas 
que muito importantes BC julgam aí se encontram per­
didos para sempre. Os poetas que se salvaram são justa­
mente hoje os que podemos citar como figuras represen­
tativas da poesia moderna. Por todos os motivos, o 
primeiro nome de que nos lembramos é o do sr. Manuel 
Bandeira. Não existe na sua obra apenas um valor poé­
tico mas tamhem um valor histórico. E não me cansarei 
nunca de chamar a atenção para esse valor histórico que 
J o r n a l d e C r í t i c a 57 
considero fundamental na nossa literatura. Mais tarde, 
quando se fizer a história da poesia dos nos.sos dias, não 
se deverá esquecer que no seu eentro se encontra a fi­
gura do sr. Manuel Bandeira. Alem disso, não sei de outro 
poeta que influência mais profunda tenha exercido nesses 
últimos vinte anos. Uma influência de duplo cara ter : a 
que vem da sua obra de poeta e a que vem do exemplo 
da sua vida de homem. Ao lado do sr. Manuel Bandeira, 
vamos encontrar nos poetas mais novos a influência cons­
tante de outros poetas modernos mais antigos como os srs. 
Mario de Andrade, Augusto Frederico Schmidt e Carlos 
Drummond de Andrade. De todos os poetas modernos, o 
sr. Frederico �chmidt é o que se encontra mais próximo 
do grande público, o que se apresenta com um poder mais 
forte de entendimento e de comunicação. O que tem mais 
vocação para intérprete e para profeta. D� todos, porem, 
o mais "moderno" · - no que esta palavra contem de mais 
representativo e de mais simbólico - é o sr. Carlos Drum­
mond de Andrade, um poeta que define o nosso ·tempo e 
a nossa época. A sua poesia é aquela que todo homem da 
sua geração gostaria de realizar se fosse poeta. O sr. Carlos 
Drummond de Andrade se movimenta, assim, num plano 
de permanente inquietação e de permanente experiência. 
Que se observe, por exemplo, o sentido novo dos poemas 
de Sentimento do mundo. Ele revela um poeta em ascen­
são. Estou informado, aliás, de que o sr. Carlos Drum­
mond de Andrade está se preparando para colocar a sua 
poesia em outro plano de renovação. Um novo plano que 
não terá repercussão, apenas, em função da sua obra, mas 
que poderá ser o indicio d.é um novo caminho na poesia 
brasileira. E este projeto vai se encontrar com as novas 
e corajosas experiências do sr. Augusto Frederico Sehmidt, 
não tanto as de um aproveitamento das formas clássicas, 
mas as de uma nova forma dentro da sua própria ma­
neira. Não quero esquecer outras figuras que encontro 
influenciando intensamente os mais novos poetas brasilei-
sa A l v a r o L i n s 
ros : as dos srs. Murilo Mendes, Jorge de Lima e Vinicius de 
Moraes. Ou da sra. Adalgisa Nery. Os srs. Murilo Mendes 
e Jorge de Lima, depois de experiências diversas e desen­
contradas, se fixaram numa poesia de carater religtoso. 
Ambos encontram discípulos e imitadores por toda parte, 
Tambem a juventude do sr. Vinicius de Moraes não impede 
que ele seja hoje uma figura de primeira categoria na 
poesia brasileira, nem que os seus poemas encontrem eco 
na inspiração de outros poetas menores. 
Outras figuras consideraveis da poesia moderna -
duas ou três mais - ainda poderiam ser citadas. Mas 
não estou fazendo uma história, nem sequer uma nomen­
clatura. A invocação que fiz de alguns poetas modernos 
tem um outro fim. Somente pretendo fixar a atenção no 
seguinte aspecto da nossa poesia moderna : quase todos 
os livros de versos que estão sendo publicados ultimamente 
constituem uma espécie de repetição de alguns poetas mo­
dernos já consagrados. Isto não representa uma nota de 
pessimismo, mas uma constatação objetiva : os poetas mais 
novos se acham inteiramente dominados pelos poetas mo­
dernos já conhagrados. Ultimamente raros os poetas 
novos e raros os livros de poemas que apresentaram 
uma personalidade e uma realidade poética como os srs. 
Odorico Tavares e Alphonsus de Guimaraens Filho, com 
A sombra do mundo e Lume de estrelas. O que se v'em 
tornando habitual - pelo menos, nos livros de versos que 
tenho recebido -=-- é a repetição, é a cópia, é a ausência de 
personalidade. Não estamosapenas diante de poetas me­
nores, entidades que existem e são mesmo necessárias em 
todos os "movimentos literários ; estamos diante de poetas 
que repetem outros poetas e nada oferecem da sua própria 
personalidade. Dos poetas modernos, os srs. Manuel Ban­
deira, Augusto Frederico Schmidt, Carlos Drummond de 
Andrade, Mario de Andrade, Vinicius de Moraes, Murilo 
Mendes e Jorge de Lima são os que mais contribuem para 
J o r n a l d e C r í t i c a 59 
o aproveitamento dos poetas mais novos. Contribuem com 
a sua maneirà pessoal, com a sua inspiração, com os seus 
temas, com os seus ritmos, com os seus símbolos, com o 
seu vocabulário. Os livros de versos que estou lendo agora 
se acham todos marcados pela influência absorvente de 
alguns desses poetas modernos, que já fixaram a fisionomia 
da sua obra e já têm força para se projetar sobre os que 
vão chegando. 
Logo no primeiro poema do livro mais recente da sra. 
Henriqueta Lisboa (Prisioneira da noite, São Paulo, 1941 ) , 
quando ela exclama : 
" Quero os caminhos da madrugada e estou presa, 
Quero fugir aos braços da noite e estou perdida." 
logo sentimos quanto a poetisa está sugestionada pela 
obra do sr. Augusto Frederico Schmidt. Não somente os 
seus temas prediletos - a noite, ó mar, a morte - -são 
todos schmidtianos; mas tamhem a maneira de os desen­
volver e o ritmo da realização poética. Os seus melhores 
poemas são os sentimentais, sucedendo o contrârio com 
todos aqueles em que pretende exprimir uma idéia, um 
conceito, uma reflexão intelectualista. A sra. Henriqueta 
Lisboa revela, no entanto, uma capacidade poética que nos 
permite esperar dela uma obra afirmativa e pessoal ; ainda 
acrescento que este seu livro se encontra num nível hem 
mais alto do que o comum nos últimos livros de versos 
aparecidos entre nós. Alguns poemas desse Prisioneira 
da noite - como, por exemplo, o "Pastor", com os seus 
ritmos largos e sonoros · - deixam uma agradavel e sim­
pática impressão. Mas há certos versos verdadeiramente 
detestaveis comô este "Por desesperação de salvação" ou 
como estes que são quase inacreditaveis : 
" E ao peso das estalactites negras 
o coração 
derreou. " 
60 A l v a r o L i n s 
Da mesma espécie é o poema "Noturno", enquanto 
"Doce momento" e "Desterro" representam um simples 
jogo de palavras. Para que não se tenha uma esperança 
exceasiva quanto a esta poetisa, devo acrescentar que Pri­
sioneira da noite não é um livro de estréia. 
No sr. Aluisio Medeiros, do Ceará, encontramos uma 
mistura de várias influências superpostas e nem sequer 
fundidas profundamente no poeta. Os primeiros poemas 
do seu livro (')'rágico" amanhecer, Fortaleza, 1941 ) cons­
tituem uma imitação da sra. Adalgisa Nery e do sr. Muril«l. 
Mendes, sobretudo no vocabulário. Leia-se o poemà "In­
vocação" e não se saberá . dizer se ele é realmente do sr. 
Aluisio Medeiros. Outra parte do livro se acha toda do­
minada pelo espírito do sr. Carlos Drummond de An· 
drade, principalmente pela sua angústia diante de certos 
problemas do· nosso tempo. A abundância de imagens 
desordenadas e de símbolos transcendentes não chega a 
dar a este Trágico amanhecer uma elevada categoria poé­
tica. 
Do sr. Helio Simões (Mar e outros poemas, Baía, 
1941 ) não se poderá dizer que está influenciado por 
qualquer poeta moderno, porque nada e:r,co.ntro no seu 
livro senão palavras sem qualquer sentido. Apresenta-se 
como uma figura típica de anti-poeta, parecendo-me que 
nem sequer pode ser considerado como um homem dentro 
da literatura.. Eis alguns versos que não foram escolhi-­
dos de propósito, mas que representam o tom geral do 
liv-ro : 
" Este oiro do sol que se espalha na areia 
é o oiro da vida. 
Ao sol, ao sol, amigos, ao sol. 
Não deixemos se p!lrCa este oiro do sol, 
Que é o oiro da vida. 
Ao sol, amigos, ao sol. 
Todô o oiro da terra amoedado 
Não vale para a vida uma centelha 
J o r n a l d e C r í t i c a 61 
Um raio só 
Desse oiro do sol. 
Vamos ao sol, amigos, acumular tesouros. " 
Eis um poema completo do sr. Helio Simões, que as· 
seguro não é o pior do seu livro. O que este autor pre­
tendeu foi se aproveitar da aparente facilidade de 'forma 
da poesia moderna para fazer figura de poeta. Mas, como 
se vê, a sua pretensão resultou num absoluto insucesso. 
Tambem se aproveitando do que há de mais falso ,e 
de mais convencional no modernismo, entrou o sr. Vicente 
do Rego Monteiro no caminho de uma tentativa poética 
(Poemas de bolso, Recife, 1941 ) . Dizem-me que o sr. 
Rego Monteiro é um pintor de categoria, embora eu não 
conheça pessoalmente os seus quadros. Mas a sua arte 
na pintura não se transportou para a pocaia. O seu mo­
dernismo poético está velho de vinte anos, pelo menos, 
parecendo, no entanto, de uma velhice centenária. Estou 
acostumado a sentir e compreender as realizações mais 
perturbadoras da poesia moderna . Mas tambem estou 
certo que esse não é o caso dos versos do sr. Rego Mon­
teiro. Tomo os seus poemas como uma brincadeira. Tanto 
pior, se ele os leva realmente a sério. 
Os srs. Eduardo Martins ( Integração, Paraíba do 
Norte, 1941 ) e Benilde Dantas ( Canto do canavial, Rio, 
1941 ) nada apresentam de consideravel ou de original. 
O sr. Benilde Dantas volta-se para certos temas ligados 
à terra, mas nunca EC eleva daquele velho convenciona­
lismo que fez' o fracasso de unia certa ala do movimento 
modernista. O sr. Eduardo Martins, por sua vez, oscila 
entre o sr. Jorge de Lima e os srs. Augusto Frederico 
Schmidt e Vinicius de Moraes. 
Dos poetas menores, aos quais estou me referindo, o 
sr. Carlos Eduardo (Presença, Baia, 1941 ) se distingue 
por vanos motivos. Há nos seua versos um sentido de 
humildade, que não decorre só da influência de uma 
62 A l v a r o L i n s 
atitude schmidtiana, mas de um traço do seu próprio 
espuito. Este poeta eomeça procurando ser fiel a si mes­
mo, enquanto outros querem violentamente se impor 
pelo aproveitamento da experiência dos poetas consagra­
dos. Por isso a sua voz ainda não se eleva muito alto 
nem se exprime em gritos que não são os seus. Entre 
tantos imitadores, o sr. Carlos Eduardo se distingue por­
que preferiu a simplicidade que vem de si mesmo à ri­
queza dos outros que poderia ter absorvido. 
15 de nov embro de 194:1. 
CAPíTULO V 
V E R S O S 
N ÊSTE primeiro .semestre de 1941, que está terminan� 
do tão pobre para as letras brasileiras, somente os 
poetas se apresentam para reduzir este vazio, ao menos 
num sentido quantitativo. Eles estão sempre prontos 
para esta tarefa. Em todos os tempos são os poetas os 
mais constantes e os mais fiéis nesta obra de confecção 
bibliográfica. Os livros de- v'ersos eontinuam a encher 
as nossas mesas. Apresentam os aspectos mais diferen· 
tes, desde as edições de luxo até as edições miseraveis 
das tipografias de terceira ordem. As suas origens tam­
hem variam muito ; chegam autores de todas as catego­
rias e de todas as idades, de todas as cidades e de todas 
as províncias. Por intermédio de um deles venho a to­
mar conhecimento de que mesmo no Território do Acre 
existe uma Academia de Letras, com as suas quarenta 
respeitaveis cadeiras . . . Estes nomes de poetas se reno· 
vam constantemente. Raramente um nome aparece mais 
de uma vez ; em geral, ficam num primeiro livro. É que 
a maioria entra na literatura como num jogo de azar ; o 
insucesso traz o esquecimento ou o vício : ou o jogo se re­
nova mecanicamente ou é abandonado para sempre, Li­
teratura de . poetas, literatura de falsos poetas. E en· 
quanto se multiplicam os livros de versos aumenta entre 
o público e a poesia toda uma longa série de mal-enten· 
didos e de incompreensões. Muitos dêstes livros não pas­
sam sequer pelas livrarias, e os seus autores permanece­
rão para sempre ignorados. 
64 A l v a r o L i n s 
Dos numerosos volumes de versos que incluo nesta 
crônica., somente um merece classificação de ordem espe­
cial : o do sr. Lucio Cardo.oo (Poesias, Rio, 1941 ) . Mas 
que ninguem se espante, porque estaclassificação eto­
pecial não corresponde a um louvor tambem especial, 
como seria facil e justo se eu estivesse diante de um dos 
seus últimos romances. Li estas poesias mais de uma 
vez, procurando o que nelas poderia haver �e essencial 
tanto nos seus termos ostensivos como nas suas projeções 
subjetivas. Encontrei uma obra literária que está defi­
nida com certos característicos sempre muito vivos no sr. 
Lucio Cardoso : uma ardente seriedade de temas e de pro­
ceasos, uma força consideravel de imagens e de símbolos, 
uma vida interior marcada pelo destino estético. O que 
não pude encontrar Joi um verdadeiro poeta, no sentido 
que explicarei mais adiante. Ao fechar o seu livro tudo 
que ele continha e transmitia não deixa mais nenhuma 
impress1ão. Tudo desapareceu ;momentaneamente, a fi­
sionomia dos seus ver.sos vai se esbatendo até que se trans­
forma numa sombra . indefinida. Ficamos espantados de 
que um autor que nada tem de superficial transmita com a 
sua poesia uma emoção artística que é estritamente de 
superfície. Ela não atinge as regiões profundas do nosso 
ser ; os seus efeitos se partem e recuam lo
.
go aepois do 
primeiro encontro. 
No entanto, para o leitor desprevenido, o livro de 
poesias do sr. Lucio Cardoso poderá constituir uma obra 
que realizou aparentemente todas as exigências do seu gê­
nero. As suas deficiências não são propriamente poéticas, 
num certo sentido, ou rigorosamente estéticas, em outro 
sentido. Há tantas imagens, tantos símbolos, tantos sen­
timentos - e todos de uma qualidade tão superior e re­
velados numa maneira tão poderosa - que Poesias não 
deixará de ser considerado como um documento de relà­
tiva importância na história literária do sr. Lucio Cardoso. 
J o r n a l d e C r í t i c a 65 
Há certas confissões nestes versos que muito servua<;� para 
um conhecimento mais exato do romancieta. Assim, por 
exemplo, quando diz, em Poemas do colégio interno, que 
" .. . . sofria dessa dor sem nome de sentir a vida 
muito mais cêdo do que os outros sentem" 
ou então quando afirma que 
"é a face desolada desta infância que estat·á presente, 
como o remorso no perisainento dos agonisantes " . 
Em outra ocasião fala do ")llundo exterior sufocado 
ao jugo desta música interior". E' a música interior dos 
seus romances. Será igualmente a dOB seus versos ? Estou 
certo que não : a dos seus versos é mais uma música de 
palavras do que uma música interior. E' verdade que em 
certos poemas ela se afirma .completamente como em "A 
um amigo morto" - no qual as imagens de evocação atin­
gem uma grande beleza - e "Os simuladores", mas verifi­
camos logo que, nos dois casos, estamos diante de duas ad­
miraveia páginas em prosa, em que os poemas concorrem 
apenas com uma estrutura exterior: Aliás, através de uma 
curiosa contradição, a página que mais se aproxima de 
uma poesia - como inspiração e como realização formal 
- é aquela que me parece menos caracterizadora da per­
sonalidade do sr. Lucio Cardoso : "Rosa vermelha", na qual 
o poeta transfigura com um sentimento novo uma compa­
ração demasiado velha. 
Apesar de tudo, no meio de sensações diferentes e 
até contraditórias, o livro de verso.s do sr. Lucio Cardoso 
deixa-nos a impressão . de que lhe falta algum elemento de 
categoria essencial. Estive tentado, por isso, a negar 
num sentido absoluto a qualidade de poeta para o sr. 
Lucio Cardoso e de poesia para o seu livro. Uma medi­
tação mais demorada, no entanto, logo afastará esta hipó­
tCl3e sumária. E' que, tendo-se revelado um autêntico 
66 A l v a r o L i n s 
criador nos seus romances, o sr. Lucio Cardoso deve ser 
acreditado consequentemente como um poeta. Não se 
pode imaginar um artista criador - um romancista, so· 
bretudo - com a ausência da poesia. Toda criação é uma 
obra poética. Poeta, num sentido original, representa um 
sinônimo de criador. Torna-se evidente, portanto, que o 
sr. Lucio Cardoso é um poeta e que há uma poesia na sua 
obra. O que lhe falta, porem, é ainda essencial : é o ins­
trumento de comunicação poética, é a capacidade de trans­
mitir a poesia com uma personalidade pura de poeta. A 
sua pQesia é uma poesia de romancista e de escritor, 
e não uma poesia de poeta; E por isso é- que a sua per­
sonalidade se desdobra toda num romance, enquanto per­
manece hesitante, inacabada e irrealizada num livro de 
versos. Por isso é que estas Poesias constituem um vo· 
lume inferior a qualquer dos seus romances. Mais ainda : 
estas Poesias valem muito pouco na sua forma atual, quan­
do talV'ez pudessem valer muito se os sentimentos e as 
idéias que as animam fossem reduzidos e dissolvidos 
dentro da estrutura de um romance. 
* 
Aos outros poetas, de cujos livros falarei tão rapida­
mente como merecem, eu gostaria de sugerir, antes de 
tudo, a leitura das Lettres ,a un jeune poete, de Rainer­
Maria Rilke, tanto nos trechos contra os crítico!} como 
nos outros que definem a realização de uma obra poética. 
Rilke aconselha o poeta a levantar dentro de si mesmo 
as seguintes perguntas : estarei realmente obrigado a es­
creV'er? eu morreria se me visse impedido de escrever? 
Estás duas perguntas tambem seriam muito oportunas para 
os poetas brasileiros antes de escreverem tantoe livros de 
versos inuteis e destituídos de qualquer significação. A 
existência de livros ·dessa espécie já ,se vai tornando mesmo 
J o r n a l d e C r í t i c a 67 
um hábito detestavel e ridículo. Um livro de versos não 
é nem um instrumento prático_ de ganhar a vida, nem um 
processo de construir fortuna. Porque, então, insistem 
nessa- falsa literatura de versos sem poesia aqueles que 
R.em sentem vocação artística nem se sentem verdadeira­
mente chamados a escrever? As facilidades do gênero -
e mais a certeza dos elogios nos noticiários d_os jornais, 
as gentilezas e amabilidades dos "confrades", a adjetiva­
ção melíflua dos prefácios idiotas - transmitem ao vate 
ingênuo ou grotesco a ilusão de que se acha dentro da li­
teratura. Esquecem que uma facilidade aparente só se 
explica por uma dificuldade real ; e que sendo íacC'lis e 
abundantes os versos nada existe de mais difícil e de 
ma.j.s raro' do que a ·presença da poesia dentro de um ho­
mem. Temos hoje no Brasil alguns poetas de grande ca­
tegoria, mas para este número tão reduzido temos tambem 
centénas de versejadores que tentam fazer da poesia um 
artifício ou uma..mistificação. Uns se revelam logo no seu 
primarismo ou na sua infantilidade. Outroa, porem, apre­
sentam talento, habilidade, sentimentalismo, eloquência, 
toda uma série de atributos que não substituem a poesia 
mas que oferecem uma aparência poética. 
Desta espécie são exatamente todos os livros de versos 
que recebi nestes últimos meses. Eles ilustram e do­
cumentam um aspecto curioso da sub-literatura brasileira : 
a abundância de V'ersos sem poesia. Pertencem �os qua­
dros mais diver,sos : antiquados e modernistrui ; orienta­
listas e regionalistas ; sentimentais e eloquentes ; . fabrica­
dores de sonetos, de versos livres, de trovas, de hai-kai. 
Apesar disso todos se assemelham ; todo� procuram a ori­
ginalidade e acabam na banalidade ; todos são "velhos", 
ou envelhecidos, o que é muito pior. Envelhecido, por 
exemplo, é o sr. Salomão Jorge (Arabe.scos, Rio, 1941 ) , 
cuja obra é uma espécie de mistura de orientalismo e 
parnasianismo. Na verdade, é um contemporâneo de 
68 A l v a r o L i n s 
Olavo Bilac, de maneira particular no soneto intitulado 
"Deserto". Pertence à categoria dos que têm habilidade e 
talento literário, mas ainda assim não será nada mais do 
que um poeta secundário. Há nos seus ver.sos uma certa 
vivacidade de ritmos e de sons mas que nasce de artifícios 
vocahulares ou de sentimentos superficiais. A superficia­
lidade é -mesmo uma das .suas características, o que o tor­
nará um sucesso espetacular em qualquer recitativo de 
.salão. Apresenta alguns versos felizes como aquele "Incon� 
solavel por te haver perdido mas orgulhoso por me haver 
achado", ao mesmo tempo que outrosde insuportavel pre­
ciocismo como estes dois tercetos finais de um soneto dedi­
cado a Raul de Leoni : 
" Conversador sutil, artista jônico, 
Amante da escultórica pureza, 
Conviva do festim decamcrônico, 
És semeador da plástica harmonia, 
Amável esgrimista da beleza, 
último joalheiro da ironia . . . " 
De qualquer forma, porem, o sr. Salomão Jorge é 
um artífice dos versos. Ele conhece oa processos poéticos, 
a sua técnica, os seus recursos. Mas de qu� valem tantos 
conhecimentos formaia sem a substância poética para ani­
má-los de vida e de realidade? O sr. Oliveira Ribeiro 
Neto (Canções das sete cores, Rio, 1941 ) representa um 
caso diferente : o seu livro nem tem substância poética, nem 
a técnica formal. Fico surpreendido que se possa publicar 
um livro tão insignificante, em que �ada existe que poasa 
ser transmitido, que possa comover ou que possa sequer 
interessar. O sr. Ribeiro Neto nem é um poeta nem é 
sequer um literato. Não encontro no seu livro um deta­
lhe, uma frase, uma palavra que me leve a �Iterar esta 
penosa constatação. A nota dominante doa seus versos é 
a infantilidade1 sem <J.Ue neles apareça q;ual<J.Uer cQisa da 
J o r n a l d e C r í t i c a 69 
poesia da infância. S
'
ão versos infantís dentro de um ins­
trumento prosaico de adulto. Espanto-me ainda ao veri­
ficar que o sr. Ribeiro Neto é um autor de vários volumes 
e um membro da Academia Paulista de Letras. Pois se 
me apresentassem sem assinatura estas Canções das sete 
cores eu diria sem hesitação : o autor é um menino de dez 
anos de idade. E aquí está um pequeno exemplo nestes 
versos definidores que formam uma "·canção" : 
" Nuvem roxa, nuvem densa, 
Num dia de claridade 
Não tem tristeza nenhuma. 
Toda dor, por mais intensa, 
Em face da Eternidade, 
É como um sonho de espuma. " 
O sr. Ribeiro Neto e a Poesia são duas entidades abso­
lutamente desencontradas. Igualmente desencontrado com 
a poesia é o sr. Oldegar Vieira (Folhas de chá, São Paulo, 
1941 ) , que escolheu. o hai-kai como a sua forma de ex­
pressão. Apresenta-se assim com uns ares de japonês, 
mas é de fato um baiano, um autêntico literato baiano. 
Escreve um longo prefácio para justificar o hai-kai, o que 
não é difícil ; o que julgo impossível é a justificação da 
falsa poesia do sr. Oldegar Vieira. Aliás os hai-kai que 
tenho lido de autores brasileiros são geralmente umas 
pobres e simplórias extravagâncias de snobs botocudos. 
Não creio que tenhamos neceE.sidade de qualquer influên­
cia japonesa ou que haja entre o Brasil e o J apão qualquer 
identidade que, justifique esta influência. Ao contrário. 
Mas os hai-kai do sr, Oldegar Vieira nem são japoneses 
nem brasileiros. Verdadeiramente, não são nada. T�dos 
se apresentam muito inténcionaie, muito procurados, muito 
sofisticados. Abusa alem disso de toda aquela originali­
dade de superfície que o movimento modernista esgotou e 
desmoralizou. O sr, Vieira ,parece não se aperceber da 
70 A l v a r o L i n s 
transformação e fabrica hai-kai a propósito de todos os 
assuntos, inclusive diante da "Paisagem numa lata de man­
teiga" ( sic) . Os resultados cmTespondem bem aos prin­
cípios e aos meios : 
" A boca da noite 
avançou na lua cheia : 
um quarto minguante. " 
O sr. Vasco de Castro Lima (Inquietude; Belo Hori­
zonte, 1941 ) abre o seu livro com uma epígrafe bastante 
tola do sr. Alvaro Moreyra e fazendo trovas mOBtra-se um 
discípulo fiel do nosso antepassado sr. Adelmar Tavares. 
Os seus versos estão cheios de imagens pomposas e de 
simbolismo vazio. Ainda recorre às palavras em maiús­
cula como um recurso literário de efeito. Apresenta uma 
ou outra página mais simples como aquela intitulada 
"Noivinha", na qual lamentamos que certos sentimentos tão 
delicados e tão íntimos sejam assim expostos numa lite­
ratura de terceira ordem Em geral, porem, o tom de 
seus versos é uniformemente o desta incrível invocação a 
Belo Horizonte, com epígrafe de Julio Dantas : 
" Belo Horizonte das manhãs sonoras, 
Miradouro do céu, berço de auroras, 
Namorada de todos os mineiros ! 
Terra em que a lua e o sol não têm declínio, 
Tuas noites têm brilho de alumínio, 
Teus dias têm o sangue dos brasileiros. " 
Quanto ao sr. Leonidas Castello da Costa (Sonhos 
d'argila, Rio, 1941 ) só temos a dizer que os seus versos se 
colocam na altura de quaisquer exercícios colegiais. Po­
derá se tornar talvez mais tarde um versejador ou um 
poeta razoavel, mas neste livro os seus versos têm a con­
sistência da mais fragil argila . . . Igualmente frageis e 
inconsistentes são os versos do sr. Passos de Mello (No­
lurnos, Rio, 1941 ) . Apenas são mais audaciosos do que 
J o r n a l d e C r í t i c a 71 
os do sr. Castello da Costa. E talvez por isso mesmo de 
uma qualidade ainda mais inferior. 
De 'outro gênero são os versos dos srs. Paulo Bentes 
(Porongo, Rio, 1940) e Martins Napoleão (Poemas da 
terra selvagem, Rio, 1940) . Ambos são regionalistas, mas 
de um regionalismo convencional e verboso que nenhuma 
significação apresenta mais hoje. Um sentimento embe­
vecido e extático pela terra determina todos os versos da 
primeira à última página. Este sentimento poderá ser, 
acredito que seja, muito nobre e muito cheio de saude, 
mas não poderemos dizer o mesmo da arte, que os ex­
prime, nestes dois vates, com um instrumento de comu­
nicação poétic1;1 absolutamente nulo. Ainda menos mo­
desto é o sr. Marti:ps de Oliveira (A Retirada da Laguna, 
Mina.s Gerais, 1941 ) , que acaba de publicar nada menos do 
que uma epopéia Robre um episódio da guerra do Para­
guai, em cânticos largos e numerosíssimos . Admiro o 
fôlego e a coragem deste autor que não se intimida sequer 
d'iante de uma epopéia. Mas de pé ficam somente a sua 
intenção e o seu sacrifício. A sua epopéia é a mais pro· 
saica das descrições da Retirada da Laguna. E prosa por 
prosa, continuo a preferir a do velho Taunay. O sr. 
Martins de Oliveira tambem se candidatou duas vezes, em 
cartas rimadas e metrificadas, a uma cadeira na Academia 
Brasileira de Letras. Eu desejo que a Academia acabe 
recebendo o sr. Martins de Oliveira no seu seio, fazendo 
assim justiça a si mesma e ao poeta, que lá encontrará ex· 
relentes companheiros. 
Os versos femininos não são de uma categoria muito 
mais elevada, embora se encontrem neles certas tendência1 
e certas antecipações que os livros masculinos, acima ci­
tados, se encontram longe de atingir. E' verdade que os 
versos da sra. Elora Possola Chaoul (Mal divino, Rio, 
1941 ) se acham simplesmente abaixo da crítica, como 
tambem. QS da sra. Maria Camargo (f!:xtase, Rio, 1941 ) . 
72 A l v a r o L i n s 
Ambas confundem eloquência sentimental com poesia. A 
sra. Maria Duarte (Cântico dos sentidos, Rio, 1941 ) revela 
porem um certo equilíbrio e uma certa sensibilidade que 
nos levam a guardar o seu nome como o de alguem que 
se mostra capaz de tentar mais tarde uma obra literária 
que não seja apenas uma expre�são de sentimentalismo ou 
de exaltação amorosa. Por enquanto, está ainda neste 
.éaso a sra. Maria Duarte, que se contenta em revelar senti· 
mentos femininos comuns numa forma tamhem demasiado 
comum. Faço uma exceção, . pela sua personalidade dife­
rente, para a sra. Ana Osorio ( Voz do silêncio, Minas 
Gerais, 1940) . , Os seus versos significam talvez pouco li· 
terariamente, mas estão animados de uma verdadeira, em­
bora fragil, inspiração poética. E' apenas um fio de voz 
muito delicada e muito tímida, revelando uma vida de 
solidão e desencanto. A mim me comoveu esta voz hu­
milde e quase apagada que está �e erguendo numa pequena 
cidade do interior de Min-as Gerais. 
28 de junho de 1941. 
.. 
CAPíTULO VI 
VIDAS SECAS 
O SR. GRACILIANO RAMOS, autor de quatro romances muito discutidos, um dos quais - o principal, ao 
que penso, vindo logo .. após São Bernardo - aparece agora 
em segunda edição (Angústia, Rio, 1941 ) , representa um 
caso de estudo crítico muito difícil para os seus contem­
porâneos. Logo, os seus romances nos tentam a confundir, 
em análisesconvergentes, a sua figura de escritor e a sua 
figura de homem. Existem homens que explicam as suas 
obras, como -há obras que explicam os seus autores. No 
caso do sr. Graciliano Ramos, é a obra que explica o ho­
mem. Quero dizer : o homem interior, o homem psicoló­
gico. Estamos diante de um caso semelhante ao de Ma­
chado de Assis, no passado ; igual ao do sr. Otavio de 
Faria, no presente. A maneira de Machado de Assis, o sr. 
Graciliano Ramos, nas aparências, nas exterioridades, nada 
revela que o possa distinguir de um homem comum. Tudo 
o que ele tem de especial, de anormal, de misterioso, fica 
reservado para a sua literatura e não para a sua vida. A 
obra de Machado de Assis esclareceu o "mistério" Ma­
chado de Assis. Os romancea do sr. Graciliano Ramos es­
clarecerão mais tarde o "mistério" Graciliano Ramos. Mas 
onde se encontra, pois, a dificuldade para essa análise 
esclarecedora ? Encontra-se na circunstância de ser o sr. 
Graciliano Ramos um autor contemporâneo, uma figura 
que encontramos nas ruas todos os dias. Essa proximi­
dade determina a existência de obstáculos invencíveis. 
Outros obstáculos decorrem do respeito com que o crítico 
está sempre obrigado a tratar a figura pessoal de um autor 
74 A l v a r o L i n s 
vivo, pois somente a morte confere o direito de um julga­
mento definitivo, de uma interpretação minuciosa e pro­
funda. Acho que seria uma violência projetar sobre um 
autor ainda vivo todos os elementos de análise que a sua 
obra oferece. Não tanto pelo autor em si mesmo, com 
uma conciência literária capaz de aceitar todos os exer­
cícios da crítica, mas pelos -rigores da vida ordinária. 
Imagine-se um ministro da Viação que suspeitasse da 
psicologia de Machado de Assis todo o conhecimento que 
a sua obra hoje revela com uma categoria de certeza . . . 
Deixemos, pois, para os dias de amanhã o que pode surgir 
de mais sugestivo num estudo crítico sobre o sr. Graciliano 
Ramos : a. interpretação da sua figura psicológica atrav-és 
dos seus romances. O que nos fica permitido hoje, neste 
sentido, é uma análise de superfície. Um estudo que .s.e 
detem mais sobre o romance do que sobre o romancista. 
A respeito do sr. Graciliano Ramos ainda não me foi 
dado ler outra página mais explicativa do que o capítulo 
que lhe dedicou o sr. Osorio Borba em A comédia lite­
rana. Trata-se de um golpe de vista muito agudo que 
se desdobra em diversos aspectos, todos cohsideraveis. 
Nessa página encontro sugeridas as duas linhas conver­
gentes da personalidade do sr. Graciliano Ramos : um 
homem do seu meio flsico e social, ao mesmo tempo que 
um romancista voltado para a introspecção, a análise, os 
motivos psicológicos. Mas o meio físico - o que seria, no 
romance, a paisagem exterior - não aparece muito obje· 
tivamente no rofi!.ance do sr. Graciliano Ramos. Ele ex­
prime o ambiente com uma perfeita fidelidade, mas so­
mente em função de seus pers�nagens. O ambiente é um 
acidente ; o personagem é que é a vida romanesca. A 
paisagem exterior torna-se uma projeção do homem. O 
romance São Bernardo desenvolve-se todo dentro de uma 
fazenda ; Paulo Honório coloca a sua ambição no domínio 
da terra. Contudo, a fazenda e a terra não são as rea· 
J o r n a l d e C r í t i c a 75 
lidades fundamentais de São Bernardo. A realidade fun­
damental do romance é a figura de Paulo Honório, com 
o seu egoísmo, com a sua maldade, com o seu ciume, com 
a sua deshumanidade. Em Angústia, - a abstração do ex­
terior ainda será mais completa. Encontramos certas 
visões do Rio, de Maceió, de cidades dQ interior. Todas 
elas, porem, constituem menos uma literatura p aisagística 
do que a localização explicativa do perso11agem Luiz da 
Silva. Daí a superposição de planos que encontramos na 
obra do sr. Graciliano Ramos ; o plano regional que se 
revela nos seus personagens marcados pelo meio físico e 
social,_ na linguagem dos diálogos, todos muito fiéis à 
}íngua falada, nos ambientes onde se desenvolvem as fi­
guras e os enredos dos seus livros ; o plano universal que 
se revela nos dramas dos seus romances, nos sentimentos 
complexos dos seus personagens, na linguagem muito rigo­
rosa e pura - pode-se dizer : clássica - do romancista. 
Dois planos, portanto, que chegam a espantar o leitor : o 
prosaismo - mais ainda : uma espécie de vulgaridade -
da vida ordinária dos personagens e a alucinação da sua 
vida psicológica ; a linguagem comum dos diálogos e a 
linguagem literária do autor propriamente ; figuras de apa­
rência simples e rústica - o ,caso de Paulo Honório, por 
exemplo - agitadas por sentimentos complexos e sensações 
fora do comum. Mas em qualquer desses aspectos per­
manece uma preocupação dominante : a de revelar o cara­
ter humano. Não só o romancista está dominado por esse 
desejo de conhecer o's seus semelhantes, mas esta aspira­
ção é tambem dos seus personagens. Vivem todos voltados 
para dentro, com olhos que se inutilizaram quase p'ara 
os quadros exteriores da vida. Faz uma confissão neste _ 
sentido o personagem principal de Angústia : "Nunca presto 
atenção às coisas, não sei para que diabo quero olhos. 
Trancado num quarto, sapecando as pestanas em cima de 
um livro, como sou vaidoso, como sou besta ! Cami'nhei 
76 A l v a r o L i n s 
tanto e o que fiz foi mastigar papel impresso. Idiota. 
Podia estar ali a distrair-me com a fita, Depois, finda a 
projeção, instruir-me vendo as caras. Sou uma besta. 
Quando a realidade me entra pelos olhos, o meu pequeno 
mundo desaba". 
Esta preocupação de fixar e exibir o carater humano 
poderia significar que o sr. Graciliano Ramos estima os 
seus semelhantes e está interessado pela sua sorte. Mas, 
não. Verifica-se .o contrário : o seu julgamento dos ho­
mens é o ·mais pessimista e frio que se possa imaginar : o 
seu sentimento em face deles é de ódio ou de desprezo. 
Numa certa ocasião, o personagem de Angústia diz que tem 
pena de Marina, que tem pena de D. Adélia, que merecem 
compaixão todas as criaturas que são instrumentos. Con­
tudo, embora todas as criaturas sejam instrumentos do 
destino ou dos seus instintos, nos romances do sr. Graci­
liano Ramos, não encontramos em parte nenhuma aquele 
sentimento de piedade que Luiz da Silva sugere. Com 
uma fria impassibilidade, o romancista contempla a misé­
ria humana de seus personagens. Não lhes concede a mí­
nima piedade. Ao contrário : o romancista chega a estar 
animado de um certo prazer sádico nessa contemplação da 
miséria humana. Podemos falar, sem exagero, de uma 
crueldade do criador diante da sua criação. Trata-se de 
um caso semelhante ao de Machado de Assis. Aliás, são 
muitas as linhas de aproximação que se poderiam esta­
beleéer entre Machado de Assis e o sr. Graciliano Ramos. 
J á houve mesmo quem falasse de influência, e o sr. Gra­
ciliano Ramos se defendeu com um argumento fulminante : 
que nunca havia lido antes Machado de Assis . . . O pro­
blema dessa influência será mais tarde esclarecido pela 
história literária ; o que interessa agora é um problema de 
aproximação e semelhança, que não nasce só da influên­
cia direta de um autor sobre outro, mas de · uma certa 
identidade de sentimentos em face da vida e da litera-
J o r n a l d e C r í t i c a / 77 
tura. O que aproxima o sr. Graciliano Ramos de Máchado 
de Assis é a mesma concepção da vida, o mesmo julga­
mento dos homens, ao lado de uma semelhante estrutura 
temperamental. Mas o sr. Graciliano Ramos parece-me 
muito mais feroz e cruel na sua criaç�o romanesca. O 
sentimento de Machado de Assis era o de indiferença e 
cepticismo, o seu humour era destruidor, mas serç:no ; o 
do sr. Graciliano Ramos é o ódio ou o desprezo, seo.do o 
seu humour - muito raro, aliás - de um. cara ter sombrio 
c áspero. Em conjunto, a sua obra constitue uma li'átira 
violenta e um panfleto furioso contra a humanidade. O 
que a torna, nesse sentido, menos ostensiva e mais arejada, 
é a circunstânda de ser o sr. Graciliano Ramos um ver­
dadeiro artista, um escritor da mai� alta càtegoria. 
Dos seus romances,acho São Bernardo o que mais 
explica a idéia que o sr. Graciliano Ramos sustenta a res· 
peito dos 'homens. Será impossível não estender um pouco 
ao romancista esta conclusão de Paulo Honório : "Bichos. 
As criaturas que me serviram durante anos eram bichos. 
Havia bichos domésticos, como Padilha, bichos do mato, 
como Casiihiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do 
campo, bois mansos. Os currais que se escoram uns nos 
outros, lá em baixo, tinham lâmpadas elétricas. E os 
,hezerrinhos mais taludos soletravam _ a ca1·tilha e apren­
diam de cór os mandamentos da lei de Deus". E não é 
que Paulo Honório esteja muito acima dos outros seres 
que julga tão friamente. A princípio, uma desmedida 
ambição deu-lhe essa impressão de superioridade. Depois, 
a sua impressão desaba no momento mesmo em que al­
cança os seus fins. Desaba sob o peso do egoi�mo e do 
ciume que devoram Paulo Honório. Ele próprio se julga 
então nestas palavras : "Ô que estou ,é velho. Cinquenta 
anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a mal­
tratar-me e a maltratar os outros". Em Angústia, Luiz 
da Silva representa uma figura de fracassado ; não existe 
78 A l v a r o L i n s 
uma ambição frenética para determiná-lo, como a de Paulo 
Honório. O seu egoísmo não é o do conquistador, mas o 
do vencido. Num certo sentido, representa o outro lado 
de Paulo Honrório. Luiz da Silva não tem a ambição, não 
tem a vontade, não tem nenhum sentimento forte. Paulo 
Honório é a vida instintiva que se afirma ; Luiz da Silva, 
a vid3 instintiva que se dissolve. Eles são opostos, mas se 
encontram na sequência final dessas vidas instintivas e 
materialistas ; encontram-se na con,clu.são de que a vida 
não tem sentido nem finalidade. Estamos diante da fi­
losofia do nada - a da absoluta negação ou a da abso­
luta destruição - que o sr. Graciliano Ramos cultiva para 
os seus personagens. A ascemão de Paulo Honório ou a 
decadência de 
. 
Luiz da Silva representam caminhos dife­
rentes para o mesmo niilismo. Os demais personagens 
não se afastam desse fim melancólico. Todos se acham 
�entro da vida, como que perdidos e abandonados, st'!m 
nada saber da sua origem nem do seu destino. Os seus 
atos se originam e se justificam por si mesmos, fora de 
qualquer preocupação moral e transcendente. E' um 
mundo romanesco, o do sr. Graciliano Ramos( que nunca 
se afasta da dimensão naturalística. Representa o sr. 
Graciliano Ramos o estranho fenômeno 'de um roman­
cista introspectivo, interiorista, analítico, sem que leve 
em conta no homem outra condição que não seja .a mate­
rialística. Um romancista da alma humana, tendo uma 
concepção materialista dos homens e da vida. E o mate­
rialismo dos personagens é que os leva logicamente ao 
relativismo moral. Eles nem praticam a bondade, nem 
acreditam sequer na sua existência. Por det1·ás de todos 
os gestos surge o interesse egoísta, uma segunda e secreta 
intenção. Em Angústia, conta Luiz da Silva a propósito 
da morte do avô : "Iam levando o cadaver de Camilo Pe­
reira da Silva. Corri para a sala, chorando. Na verdade, 
chorava por causa da xícara de café de Rosenda, mas 
J o r n a l d e C r í t i c a 79 
conseguí enganar-me e evitei remorsos". E mais adiante 
o seu relativismo moral chega a um momento supremo 
nesta reflexão : "Um crime, p:ma ação boa, dá tudo no 
mesmo. Afinal já nem sabemos o que é bom e o que é 
ruim, tão embotados vivemos". Tambem Paulo Honório, 
em São Bernardo, conclue sem qualquer hesitação : "A 
verdade é que nunca soube quais foram os meus atos 
bonil e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me 
trouxeram prejuízo ; fiz coisas ruins que me deram lucro". 
Esse relativismo moral implica outro relativismo 
de ordem mais geral, o qual se constituiu uma espécie de 
ambiência para o sr,. Graciliano Ramos, como romancista. 
Totta a sua obra guarda um certo carater de vertigem, 
de oscilação, de ambivalência. E' o relativismo do tempo, 
o qual, como se sabe, representa uma 'contingêncià muito 
importante no de.senvolviemnto romanesco. Tendo uma 
concepção materialista da vida, o sr. Graciliano Ramos ' não 
poderia se utilizar do recurso do tempo' metafísico. Por 
outro . lado, para um romancista psicológico, o tempo con­
vencional e naturalista seria um obstáculo. O sr. Graci­
liano Ramos deliberou, então, utilizar um recurso interme­
diário : a abstração do tempo. Em Angústia encontramos 
esta ob,cervação reveladora : "Mas no tempo não havia 
horas". Em São Bernardo aparece um relógio, mas que 
"tinha parado". O tempo torna-se assim um elemento 
indeterminado. e arbitrário. Nunca se sabe exatamente 
quando a narrativa corresponde, em tempo e ação, aos 
fatos e atos que a produzem. Assim, a história de Luiz 
da Silva pode estar contida em de3 meses ou em dez anos, 
indiferentemente, desde que "no tempo não havia hora8". 
A ausência do tempo vai determinar, por 1 sua vez, a au· 
sência de "ação" direta no romance. A ação de An�ústia 
é uma ação reflexiva ; An[!Ústia é uma "história", é uma 
narração do passado , é uma vida da memória. De um 
certo modo, isto mesmo acontéce com todos os romances ; 
80 A l v a r o L i n s 
todOB os romances são episódios já passados e por isso é 
que podem ser .contados, mas o romancista lhes dá uma 
ilusão de vida presente, através de um jogo malaharistico 
com o tempo. O sr. Graciliano Ramos desdenha esta 
ilusão. Angústia é certamente um romance, mas, de uma 
maneira formal, dir-se-ia um livro de memórias, um diá­
rio, um inventário, um testamento. O me.smo que su­
cede com São Bernardo, em que Paulo Honório confessa 
que nada mais pretende do que fixar a experiência da 
sua vida. Contudo, São Bernardo ainda contem uma 
ordem narrativa, uma regular disposição romanesca. 
Angústia, porem, está realizada sob o signo da mais os­
tensiva desordem. E confesso que essa desordem me agra­
da porque tem uma correspondência no espírito mesmo 
do romance. O espírito do romance e a sua forma se 
ajustam harmonicamenlte na desordem. Essa desordem 
vem de Luiz da Silva, que determina Angústia, como 
Paulo Honório determina São Bernardo. Os outros per· 
eonagens são projeções do personagem principal. Julião 
Tavares e Marina só existem para que Luiz da Silva se 
atormente e cometa o seu crime. Tudo vem ao encontro 
do personagem principal - inclmive o instrumento do 
.crime - para que · ele realize o seu destino. Representa 
esta circunstância uma outra forma de egoísmo, desde que 
o egoísmo é o sentimento dominante nos personagens mais 
característicos do sr. Graciliano Ramos. Na forma do ro­
mance Angústia, o egoísmo do personagem principal se 
afirma por intermédio da concentração do romance na 
sua própria pessoa. Luiz da Silva é todo o romance An­
gústia. Contando a sua história, Luiz da Silva absorve-a 
toda em si mesmo. O romance toma, por isso, a forma e 
as dimensões do seu espírito. Torna-se um diário que o 
p ersonagem escreve posteriormente. A sua memória se 
desdobra em ziguezague e a narração romanesca acompanha 
fielmente esse ziguezague da memória de Luiz da Silva. O 
J o r n a l d e C r í t i c a 81 
seu método é o da confissão psicanalítica : uma palavra 
que explica outra, um pensamento que esclarece outro. 
E taníhem o da asso'ciação das idéias : uma idéia que atrai 
outra idéia, uma lembrança que sugere outra lembrança. 
Luiz da Silva não vive senão da sua memória e da sua 
imaginação. Mas a sua própria imaginação, no romance, 
constitue um resultado da memória. Luiz da Silva conta 
o que imaginou anteriormente ; a sua imaginação já se 
tornou um fato do passado, um patrimônio da memória. 
Verifica-se, por isso, que a realidade do romance do 
sr. Graciliano Ramos é uma realidade estática e não di· 
nâmica. Dinâmica, por exemplo, é a realidade romanesca 
de Dotoievsky. A do sr. Graciliano Ramos, porem, nun­
ca será desta categoria, porque ele é um racionalista, um 
analista, um frio experimentador. A sua raça é a de 
Stendhal, e nunca a de um Dostoievsky. Por isso é que 
do seu romance se depreendemais a "história" de uma 
angústia do que a "angústia" em si mesma. Uma angús­
tia racionalizada e histórica, e não uma angústia natural 
e presente. O estado de delírio, de exaltação, de demo­
niamo, o estado dionisíaco capaz de exprimir a angústia 
- este não será nunca o do sr. Graciliano Ramos. O seu 
estado pode-se definir como o do historiador da angústia. 
Um estado de razão, de lucidez, de sobriedade. O crité­
rio que preside a sua obra é um critério de inteligência; 
a sua realidade é cerebral e abstrata. Não sei, por isso, 
que misteriosa intuição para se definir levou o sr. Gra­
ciliano Ramos a colocar o título de V idas secas em um 
de seus romances. Sem dúvida todos os seus personage.n8 
são realmente "vidas secas". Os seus personagens e este 
estilo em que se exprime o romancista. Parece-me admi­
ravel este estilo de concisão, de unidade entre as palavras 
e os seus sentidos, de rígido ascetismo tanto na narração 
como nos seus diálogos, todos rápidos, exatos, precisos. 
Diálogos e narração que fazem do sr. Graciliano Ramos 
82 A l v a r o L i n s 
um mestre do seu ofício de romancista. Um mestre da 
arte de escrever, acrescento, sem nenhum medo de estar 
errando. E essa categoria, ele a conquistou com as "vidas 
secas" que povoam o seu mundo romanesco. O seu mundo 
romanesco é um mundo sem amor. A sua concepção da 
vida eatá toda limitada de um lado pelos instintos huma­
nos e do outro por um destino cego e fatalista. Mas não 
esqueço o que essa visão do mundo significa de sofrimento 
e de tormentos íntimos na figura do seu criador. Por 
isso, a circunstância_ de se aceitar ou não toda a concepção 
da vida, que ressalta dos romances do sr. Graciliano 
Ramos, não deve impedir ninguem de admirar o artista 
que a sustenta ; o artista que transforma este mundo árido 
e sombrio numa verdadeira categoria de arte. Alem disso, 
quem sabe, esses romances podem constituir mais do que 
uma obra de arte, isto é : a libertação de u,m homem que 
se · evade de um mundo que detesta, embora carregando 
o destino de somente criar mundos semelhantes. E aquí 
está uma lição : a de que nem sempre a imaginação dispõe 
de recursos para dominar a vida. 
18 de · outubro de 1941. 
CAPíTULO VII 
MEMÓRIA E IMAGINAÇÃO 
A TENDÊNCIA universal de valorização social - e, por consequência, artktica - do povo V'em se encontrar 
entre nós com a évolução mesma da literatura brasileira. 
O que determina a existência de uma literatura é, em 
princípio, a sensação de alguem que tem a conciência da 
sua própria terra. Quero dizer : a literatura de um povo 
somente começa quando os seus homens se "sentem" na 
sua terra e na sua gente. Pela seDBação da terra, pois, 
é que a conciência literária se define e se afirma. Esta­
mos agora -no Brasil vivendo esse período que é o do 
homem que já se sente no domínio da nature:>:a. A lite· 
ratura encontrará, então, nessa natureza, nesse povo, e no 
encontro .dos dois, algun.s dos seus mais substanciai!' e 
mais· sólidos elementos de construção. Ao romance, cer­
tamente - sobretudo pela sua capacidade de incorporar 
as forças poéticas de aprofundamento e exaltação da vida 
- caberá hoje o papel principal nessa tarefa de inter­
pretação e conhecimento do povo por intermédio da lite­
ratura. E deve-se lembrar que a palavra "povo" está em­
pregada aqui num sentido de realidade, e não com� figura 
abstrata de oratória e retórica, não como um vago sim­
bolismo sem consistência. Povo querendo dizer a vida 
humana que se ligou com uma determinada terra ; uma 
fusão de pessoas e de coisas, numa mesnia existência. E 
essa existência coletiva já estamos sentindo na obra de 
vários romancistas modernos. Estamos sentindo sobre­
tudo no sr. José Lins Rego, cuja obra tem exatamente 
84 A l v a r o L i n s 
esta finalidade de uma ligação mais profunda e menos 
convencional com a terra. Os seus personagens, os seus 
enredos, o seu ambiente social, a sua memória, a sua ima­
ginação - toda a sua vida é a de um homem que sente a 
sua terra e tem o destino de exprimí-la literariamente. 
Vejo que neste objetivo ultrapassa o regionalismo. Pois 
o seu regionaliRmo nada tem de uma limitação ou de um 
círculo fechado. Através do plano regional conseg�e 
abrir caminho para o plano nacional e para o plano uni­
versal. Por isso é que muito erraram os que o julgavam 
prisioneiro de um assunto e de uma região. Ele não é 
somente o romancista do Ciclo da cana de açucar, embora 
esteja nestes volumes a sua obra principal, o que se ex­
plica pela circunstância de ser uma figura de engenho e 
do engenho ter trazido o que há ainda hoje de mais ca­
racterístico na sua personalidade de homem e de escritor. 
Mas do engenho havia já se evadido para outras reali­
zações literárias · em Pureza, Pedra Bonita, e Riacho Doce. 
Agora realiza uma outra evasão com o seu novo romance 
(Agua-mãe, Rio, 1941 ) , apresentando a novidade de um 
ambiente que não é mais o do Norte. Trabalhou agora 
com um ambiente do Sul, o de Cabo Frio, que o romancieta 
conheceu através de algumas estadias obrigatórias de fun­
cionário público. E não será sem interesse assinalar o re­
sultado especial que alcança essa união : a de uni escritor 
essencialmente nortista - uma personalidade marcada em 
todos os sentidos pelo espírito do Norte - com o ambiente 
social e a natureza física do Sul. O sr. José Lins do Rego, 
aliás, não recuou diante de nenhuma dessas duas possíveis 
dificuldades : colocou em planos ostensivos tanto o am­
biente social como a natureza física. Obteve nesse novo 
ambiente um completo êxito literário, o que se admira 
ainda mais porque se trata do nono romance de um es­
critor que vive niais da inspiração do que da técnica e 
do trabalho, mais do que é esponta�eamente pessoal do 
que da arte literária. Nove romances em dez anos signi-
J o r n a l d e C r í tic a 85 
ficam um perigo do qual se salvar chega a constituir um 
milagre. E salvar-se nesse caso quer dizer a capacidade 
de permanecer ao menos no mesmo plano, de não se de­
gradar pela repetição ou pela vulgaridade. Pode-se dizer 
que o sr. José Lins do Rego se repete mais do que seria 
natural, que ·entre os seus romances permanece uma certa 
construção e uma certa inspiração que os tornam seme­
lhantes, mas nunca a ponto de ser lícito ou justo falar 
em esgotamento. Do sr. José Lins do Rego podemos dízer 
que ele compõe romances como um acrobata que se equi­
: í Lra numa corda : semp:t:e da mesma maneira, mas sempre 
com o mesmo êxito. Somente encontramos uma pequena 
queda no romance de 1939 : Riacho Doce. Mas como pres­
sentindo o perigo, através desse dom de adivinhação, que 
é muito própri? dos instintivos e dos apaixoandos da vida, 
o sr. José Lins do Rego se levanta com um máximo de 
agilidade e de força nesse Agua-mãe, romance que su­
porta comparação com qualquer um dos seus livros mais 
antigos e de maior sucesso. Esta comparação, aliás, nem 
vou fazê-Ia, nem seria possivel agora, pelo que exigiria de 
leitura demorada e especial através de toda a sua obra 
em conjunto. 
Embora nascido no interior da Paraíba, o sr. Jose 
Lins do Rego pode ser considerado como um escritor do 
Recife, onde se formou em todos os sentidos, não só na 
Faculdade de Direito, mas sobretudo literariamente, na 
companhia dos srs. Gilberto Freyre e Olívio Montenegro, 
com os quais se iniciou na leitura de romancistas fran­
ceses e ingleses. E como se sabe, o que caracteriza a vida 
cultural do Recife é o seu espírito crítico. A crítica do 
Brasil nasceu no Recife, e o Recife permanece fiel a essa 
tradição. Este fato explica, talvez, que até os trinta anos 
o sr. José Lins do Rego não houvesse dado nenhum sinal 
de romancista, enquanto ia fazendo sucesso com os seus 
ensaios de c.ritica. Era talvez o espírito crítico do Recife 
86 A l v a r o L i n s 
que retardava a eclosão da sua verdadeira personalidade : 
a do romancista. Ao se dedicar ao romance, dir-se-ia, 
porem, que o sr. José Lins do Rego desdenhou todo o 
espírito crítico, no que ele si-gnifica dedomínio da razão, 
da composição artística, da ordem dentro da criação. Real· 
mente, nos seus -romances a intervenção do espírito crí­
tico parece-me mínima ou talvez inexistente. O seu es· 
tado de criação é o instintivo, o de quem avança no 
escuro, o da absoluta e desordena.da liberdade. A sua 
criação romanesca encontra-se sob o signo exclusivo de 
dois elementos, ambos muito ligados aos nervos, sabendo­
-se que -toda a sua obra apresenta essa origem nervosa : a 
memona e a imaginação. E tanto a memória como a 
imaginação constituem elementos desgovernados, consti· 
tuem forças que se bastam a si mesmas. O erro estaria 
em julgá-las antagônicas ou impossíveis de juxtaposição, 
o que já tem acontecido em relação me�mo ao sr. José 
Lins do Rego. O que se 
-��be, ao contrário, é que me­
mória e imaginação representam duas faculdades que se 
relacionam muito de perto, no seu sentido mais rigoroso, 
que é o filosófico. Num sentido mais geral - no sentido 
literário, neste caso - ainda se apresentam mais unidas 
e mais identificadas. Poderemos dizer que se apresentam 
sempre juntas e inseparaveis. A imaginação é da memó· 
ria mesma que nasce e se desenvolve. Não sei de nin­
guem que possa ter imaginação sem ter memória, lem­
brando a propósito que o ser mais dotado de capacidade 
imaginativa - o profeta - tambem se acha possuído de 
um dom espantoso de retenção do passado. Pois quanto 
maior for o poder de conservar o passado maior será o 
poder divinatório de uma projeção sobre o futuro. Em 
literatura, pelo menos, nenhuma obra existe sem que tenha 
se constituido de memória e de imaginação. Mesmo a 
que parece ter somente imaginação, como a literatura fan­
tástica dos contos de Poe ; mesmo a que parece ter so-
J o r na l d e C rít i ca 87 
mente memória, como a obra dos naturalistas. No caso 
do sr. José Lins do Rego encontramos sem esforço uma 
memória muito aguda e uma imaginação muito poética 
que operam juntas e se desenvolvem em harmonia. No 
entanto, ele dá a impressão, no primeiro momento, de que 
se acha inteiramente dominado pela memória: Uma sim­
ples impressão, porem, que se levanta por efeito de duas 
circunstâncias : a da sua técnica de romancista, sempre 
reduzindo todo o romance a uma narração de aconteci­
mentos como que realmente vividos e já tornados histó· 
ricos ; a de partir sempre de um fato real que somente 
depois passa a ser alterado e ultrapassado. Esta situação 
se encontra em Agua-mãe, como em qualquer outro dos 
seus livros. O romance aparece como a história de vidas 
e acontecimentos existentes, mas na verdade esta consta­
tação vem mais da ma,neira do romancista do que da 
realidade do romance. Mas, na verdade, Agua-mãe é ro­
mance e não história. Por outro lado, quase tudo que 
nele existe foi a princípio história, isto é : a sua origem se 
acha na existênci� real. Mas o romancista ultrapassou ou 
mutilou esta existência real, c de maneira tão im­
prevista · que não se confundem mais nem se aju.stam a 
existência real e a existência do romance. A memória e 
a imaginação estão ligadas em Agua-mãe, e duvido que 
alguem veja onde se encontram as suas fronteiras. Não 
ha dúvida que as fronteiras se tornaram realmente invi-
síveis. 1 
De.ssa presença de memória e de imaginação decorre 
para Agua-mãe o privilégio de se apresentar ao mesmo 
tempo como um docu�ento social e como obra de lite­
ratura. Todo verdadeiro romance, aliás, participa desse 
-privilégio, pois a obra literária representa simultaneamente 
uma expressão do seu meio ( documentação social ) e uma 
expressão artística ( documentação da personalidade do 
artista) . Toda a obra do sr. José Lins do Rego cons-
88 A l v a r o L i ns 
titue, por isso, uma importante documentação aocial para 
utilização posterior dos sociólogos e dos historiadores. 
Uma característica do romance moderno é que ele nem 
pretende se colocar nas nuvens, nem pretende se apoiar 
numa sociedade convencional de artifício. Assim, nenhum 
hiatoriador do futuro poderá prescindir, para o estudo da 
nossa época, da obra do sr. José Lins do Rego, como tam­
bem de alguns outros romancistas aparecidos nestes úl­
timos quinze anos. Nos romances modernos é que se en­
contrará a história social do nosso tempo. Será impos· 
sivel, por exemplo, levantar a história do engenho - do 
engenho e da sua decadência, por efeito da voracidade, da 
cobiça e do assalto das usinas - sem o conhecimento do 
Ciclo da cana de açucar. E agora o romance Agua-mae 
vem se constituir como uma outra documentação de novos 
aspectos da vida social brasileira. Deve-se acrescentar, 
aliás, que de todos os romances do sr. José Lins do Rego 
este Agua-mãe é o que apresenta um plano social mais 
amplo c mais extenso. O que abrange maior número de 
aspectos e situações sociais. Agua-mãe apresenta uma his­
tória de três famílias, sendo ao mesmo tempo uma repre· 
.sentação da existência de três camadas sociais diferentes : 
a família rica, a família média e a família pobre. De 
uma certa maneira, encontramos personagens representa· 
tivos de toda a nossa sociedade. E o romancista caracte­
riza muito bem a sociedade brasileira na qual as classes 
existem realmente, mas sem que haja muita definição nas 
suas diferenciações, tornando-se possível e até muito co­
mum a ascensão de membros das classes mais baixas para 
as mais altas. Desde o momento em que a fa�ília rica 
se instala na "Casa Azul" - a sua fortuna e o seu brilho 
mundano começam a fascinar as figuras mais ambiciosas 
das outras duas famílias. Agua-mãe poderia se definir 
como a história de criaturas que de.sejam fugir das suas 
condições naturais, que procuram se desligar dos seus cír· 
J o r n a l d e C r í t i c a 89 
cul9s sociais. E' o escritor Paulo Mafra, que quer salvar 
o seu país através de uma doutrina política. E' Lúcia, 
que deseja uma vida mundana mais intensa e mais bri· 
lhante. E' ]oca, que encontra num sucesso momentâneo 
uma ascensão artificial. Mas no fim todos fracassam e 
todas as ilusões se desmoronam. Parece-me que o Destino 
é que é o gJ:ande personagem deste romance. Todos os 
seus seres estão marcados pela fatalidade ; todos estão mar­
cados por um desajustamento entre os seus sonhos e a rea­
lidade. Paira sobre todo o livro uma atmosfera de irre­
paravel desgraça. Até mesmo . os que encontraram uma 
finalidade para a vida - como é o caso de Marta e Luiz 
- acabam paralisados pela morte. Com exceção de algu­
mas figuras mais apáticas e envolvidas por um lento e 
silencioso sofrimento, todo o romance se desenvolve sob 
esta sensação : a de personagens que lutam .contra a rea­
lidade que conhecem, ou contra o destino que apenas pres­
sentem. Para dar e:x;emplos, destaco dois personagens, 
cujos tipos em romance se apresentam com um carate:r 
de novidade, um de novidade relativa e o outro de abso· 
luta : o intelectual e o jogador de futebol. Acho que não 
é nada facil colocar um escritor como personagem de 
romance, e são raríssimos os que o fizeram em toda a 
literatura universal. O sr. José Lins do Rego atirou-se 
a essa empresa com a sua natural desenvoltura, embo­
ra no personagem Paulo Mafra. se destaque mais ;um 
drama da inteligência do que propriamente uma figura 
de escritor. Esse drama - cujo desdobramento em ro· 
mance me agrada de maneira especial pelo muito que 
se ajusta às minhas idéias - é o do fracasso do escritor 
sempre que o seu pensamento vai ser levado para a rea· 
lidade. O das idéias que sempre se alteram e se corrom­
pem no momento da realização. Este é o drama de Paulo 
Mafra : o de ver as suas idéias violentadas e .corrom­
pidas dentro da política militante, o de ver o seu livro 
rebaixado a um instrumento de propaganda política. Bem 
90 A l v a r o L i n s 
diferente é o caso de Joca, o jogador de futebol, entidade 
hoJe tão popular que entra agora para a li teratura por in­
termédio do sr. j o sé Lins do Rego. O estado de eilpÍ­
rito de uma sociedade que de.l.ira diante dos jogos ae 
iütebol determinou o seu êxi to ; nm êxito de habilidadesdas quais o próprio Joca não tinha conciência. O seu 
suces .. o, como o de todos os inconCientes, náo tem au­
ração, porem. Tudo se extingue na sua vida, aos primeiros 
sinais aa uoença e da 1ncapac1Uade lÍi>Ica. .t'u1anuo etc 
um extremo para o outro, diremos que tanto o intelectual 
como o jogador de futebol se acham muito hem carac­
terizados em Agua-mãe, onde talvez tenha sido excessivo 
o gosto do romancista em descrev-er doia jogos com uma 
precisão e um conhecimento de cronista esportivo . . . 
Outro personagem dramático, em que o drama da vida, 
no entanto, avulta mais do que o personagem, como no 
caso de Paulo Mafra - é Luizinha, a menina aleijada, 
_simbolizando o desejo impossível de amar e o ódio impo­
tente contra o mundo. Direi, porem, que o episódio de 
_ ,uizinha com as suas cartas de amor - através do qual 
parece o romancista haver pretendido uma altura dP. 
grande emoção - deu-me uma impressão de cena ex­
cessiva e pouco convincente. E vejo, afinal, que se 
torna impossível qualquer referência especial aos outros 
personagens, em face do seu número e dos seus destinos 
particularizadoa. Todos, porem, apresentam uma deter­
minada capacidade de interessar o leitor, embora os per­
sonagem de Agua-mãe sejam sobretudo as três famílias. 
Mais as famílias do que os seus membros individualmente. 
Mas o que chamo a documentação social do sr. José 
Lins do Rego não se ajusta exatamente â realidade. A 
imaginação do romancista tudo transfigura e tudo trans­
forma. E esta imaginação é que faz do sr. j o sé Lins do 
Rego um romancista, e que faz de Agua-mãe uma obra 
de -literatura. Ele anima os seres humanos, como as coisas 
da natureza, de uma poderosa substância poética, de uma 
J o r n a l d e C r í t i c a 91 
v1sao lirica que representa a nota mais dominante do seu 
temperamento. Vemos que é o lirismo que se encontra 
na origem dos seus impulsos de criação. Eu definiria o 
temperamento do sr. José Lins do Rego com estes quatro 
elementos de caracterização : lirico, sensual, dionisíaco, 
romântico. Estas forças íntimas determinam a sua ânsia 
de comunicação com a natureza física e humana. Pois 
não são somente os homens que interessam eete roman­
cista, mas tambem a terra, as águas, as casas, as árvores, 
os animais, todos os elementos da· natureza. Agua-mãe se 
desdobra por toda parte e se anima de preocupações de 
todas as espécies. Lembro especialmente as páginas que 
descrevem a "Casa Azul", e as paisagens que a envolvem, 
sobretudo a da lagoa. A "Casa Azul'; centraliza o romance, 
é do seu mistério é que partem os caminhos de todos os 
destinos pessoa:is do romance. E o mistério da "Casa Azul" 
não se apresenta apenas como uma sugestão · ou como uma 
atmoGfera. O romancista desenvolve-o em vários aspectos, 
e com uma paixão que se transmite ao leitor com a maior 
naturalidade. Utiliza a ocasião para o aproveitamento de 
lendas, de superstições, de mal-assombrados, de fa1,1tasmas. 
De todo um longo e escondido potencial d� vida popular. 
As literaturas latinas, aliás, são bastante pobres em ma­
téria de literatura fantástica, um gênero em que anglo­
-saxões e russos conseguem realizar verdadeiras obras-pri­
mas. A propósito, Edmond J aloux perguntava certa 
vez o que determinava a literatura fantástica na Ingla­
terra : se eram os fantasmas que criavam as casas mal-as· 
sombradas, ou se eram as casas mal-assombradas que cria­
vam os fantasmas. O sr. José Lins do Rego, em Agua-mãe, 
realizou uma coisa e outra : criou fantasmas e criou uma 
casa mal-assombrada, atingindo situações de forte inten­
sidade. E creio que teria obtido um efeito ainda maior 
se não lhes desse um carater de história inverossímil, se 
houvesse dado a impressão de que tambem o romancista 
acreditava na casa mal-assombrada e nos seus fantasmas. 
A l v a r o L i n s 
Mas ainda nestas páginas se encontra um sinal da sua 
simpatia pelo povo - pelo povo que "já não mandava 
nas terras, mandava nas águas". O romancista encontra 
no povo uma correspondência para a sua exuberância de 
vida, para a sua â�sia de viver e de se continuar na sua 
obra. 
Vejo-me tentado a isolar certos trechos de Agua-mãe, 
ou par..a dar exemplos, ou p ara document(lr afirmações. 
Mas íne detenho neste propósito, porque qualquer isola­
mento de fras�s, ou mesmo de capítulos, constitue uma 
mutilação para um romance do sr. José Lins do Rego. 
Trata-se de um autor que só pode ser lido por inteiro. 
E acho que essa circunstância provem da sua técnica, que 
ele supre com a sua maneira péssoal de ser romancista. 
E•wrevendo em 1937 sobre Pureza, acentuei que o sr. -José 
Lins do Rego era sobretudo um narrador, um contador de 
histórias. Um narrador no sentido mais natural e mais 
primitivo da expressão - o de narrador oral da idade 
média, por exemplo. E vi com agrado que essa opinião 
veio a coincidir com outras que se exprimiram depois, com 
a de críticos tão agudos e tão compreensivos como oa srs. 
Olívio Montenegro e Pedro Dantas. No sr. José Lins do 
Rego, o estilo - um estilo de raro sabor e de indiscutível 
originalidade, com a capacidade de influir na renovação 
de toda uma língua - tem carater mais oral do que lite­
rário. A sua técnic·a é a do narrador que empreende a 
aventura de uma história sem qualquer consideração pela 
composição ou pela ordem do romance. Torna-se ·descon­
certante a sua volubilidade de pensamento, constante­
mente, e mais de uma vez, saltando, numa mesma página, 
de , um tema para outro, desdobrando-se arbitrariamente 
entre os extremos, numa mesma ocasião, com a maior in· 
diferença pela atenção do leitor ou pelo seu desejo de 
lógica. Quando ao seu estilo, creio ainda que significa 
uma tentativa de adaptação ao assunto. Uma maneira 
de exprimir a vida do povo na sua própria língua. Acho, 
J o r n a l d e C r í t i c a 93 
por isso, que faria bem ao romancista aumentar o número 
dos diálogos, o que daria aos personagens uma mais direta 
sensação de vida. 'l'ambem sugiro a necessidade de umas 
certas variações no de.senvolvimento da narrativa. O sr. 
Jooê Lins do Rego apresenta-se sempre muito uniforme na 
sua técnica, lançando personagens e cenas sempre de uma 
mesma maneira. Por outro lado, a chamada técnica de 
repetição, em que se tornou um virtuose, quase sempre tem 
um efeito feliz, mas às vezes se torna cansativa e inutil, 
o que está exigindo o contrôle e a vigilância do romancista. 
Mas estas virtudes da razão e da vigilância, que geram a 
composição e a técnica, não são as virtudes do sr. José 
Lins do Rego. .No entanto, acredito que os dons de pa· 
ciência, de concentração, de composição técnica - repre­
sentam virtudes que só poderiam valorizar e engrandecer 
ainda mais a sua obra. Somente elas têm o dom de levar 
à perfeição, devendo-se acrescentar que a composição li­
terária em nada altera ou ' corrompe a força de criação. 
E esta força de criação, no seu carater original, é o que 
não falta ao sr. José Lins do Rego. A sua obra é uma 
confissão de personalidade. Não sei de outra em que se 
projetem com tanta espontaneidade e com tanto ardor de 
vida um temperamento e uma natureza de homem. 
17 de janeiro de 1942. 
CAPíTULO VIII 
PROCESSO DA BURG-UESIA 
DIANTE dos romances do sr. Otavio. de Faria fico sempre imaginando se as suas idéias - as suas idéias de 
ordem geral, e não as suas idéias mais imediata.s de ordem 
política - nascem dos seus sentimentos, ou se os seus. 
sentimentos é que são provocados pelas suas idéias. In· 
decisão que me vem da impossibilidade de definir certos 
limiteE<, da certeza de que eles se juntaram numa região 
humana de difícil , penetração. Idéia�; e sentimentos se 
ligam como um só corpo nos volumes da Tragédia bur· 
guesa, uma obra, diga-se logo, que não encontra seme­
lhança com nenhuma outra na literatura hrasilP-ira. Não 
está a inda realizada, e por isso torna impossível um jul­
gamento definitivo ou uma interpretação completa. Tra­
ta-se de um grande "roman-fleuve" projetado em quase 
vinte livros, sendo que alguns deles com maisde um vo­
lume. E como aconteceu com a obra de Mareei Proust, 
ao terminar o sr. Otavio de Faria a sua tarefa, teremos 
que consideràr a Tragédia burguesa .como um só livro em 
muitos volumes. Estou certo, aliás, de que a finalidade 
do au tor se acha exatamente nesta direção. Pode-se con­
cluir assim em face dos três livros já publicados. Logo 
se obFerva que o sr. Otavio de Faria está trabalhando sob 
o efei to de- uma já determinada visão romanesca do mundo, 
que está construindo a sua obra dentro de um plano que 
tem já definidas e colocadas as suas linhas gerais. Este 
plano, está claro, há-de ser, de vez em quando, alterado 
·ou modificado - e sob uma dupla ordem de circunstân-
J o r n a l d e C r í t i c a 95 
.:.as : a que ;;urge da própna eiaboração da obra e a que 
surge ua expenenc1a àb 1·omanc1sta sempre se ampllanuo 
ou se moutucanuo na proporçao em que vai avançando 
uentro aa VIUa - mas com certeza se mantenuo tlel a 
certos sentimentos e a certas iue1as que aeternunarani a 
sua concepçao romanesca do mundo. lJma obra, como se 
vê, que traz o desfmo de consumir a vida inteira de um 
escritor. Hoje sei que a Tragédia burguesa foi imaginada 
;.nnua na auu1escênc1a ao seu autor, que a sua iué1a ante­
cedeu, ao _que estou informado, os seus ensaios potitícoa. 
com os quais me encontro, aliás, em absoluta divergência • 
.E acho que deve ser aestacada essa circun.,tância para que 
se possa observar melhor o processo de construção dessa 
�>érie de romances. Parece-me que a Tragédia burguesa 
só poderá ser realizada integralmente se o seu autor con· 
tinuar disposto a fazer dela a sua própria vida, a viver 
mais nos seus romances do que dentro do mundo. Já se 
disse a propó!!ito da Comédie humaine que Balzac não a 
teria escrito se a houvesse vivido. De Mareei Proust 
sabe-se que já estava morto para o mundo ao começar A 
la recherche du temps perdu. Alguma coisa de seme­
lhante há de se passar com o sr. Otavio de Faria afim de 
que o seu "roman-fleuve" seja realmente um corpo íntegro 
e completo, e não apenas um conjunto de romances frag­
mentários. Ele idealizou e está realizando a sua obra 
ainda na mocidade ; a sua vida e a Tragédia burguesa vão 
se levantando quase juntas, apenas com a diferença indis­
pensavel de alguns anos. São duus entidades quase con· 
temporâneas, e sente-se que estes romances já publicados 
não teriam sido possíveis se o sr. Otavio de Faria não 
houvesse se resolvido - ou não se sentisse obrigado - a 
fazer a renúncia da su' vida natural em favor da vida 
literária da Tragédia burguesa. E daí esta ligação íntima 
de sentimentos e ideais através de todas as suas páginas. 
Muito se enganará, pois, quem julgar que a Tragédia bur­
guesa visa apenas um efeito artístico ou literário ; ela visa, 
96 A l v a r o L i n s 
ao contrário, aquele plano dé representação humana da 
literatura em que a arte p assa a ser uma realidade tão 
independente como. a vida mesma. 
Chama-se O lodo das ruas, publicado este ano, o ter­
ceiro romance da Tragédia burguesa (O lodo das ruas, 2 
vol�. Rio, 1942) . Apesar da sua independência como ro­
mance, apesar de poder ser lido ieoladamente, este nov·o 
livro melhor será compreendido em ligação com os dois 
que o antecedel,"am (Mun4os mortos e Os caminhos da 
vida) e com os outros que já se acham anunciados. Es­
tamos diante do espetáculo de um desdobramento da vida 
burguesa; contendo no seu seio os destinos individuais ele 
var10s .personagens. Destinos, porem, ainda não inteira­
mente definidos ; destinos que se podem modificar de ro­
mance para romance, em face do que existe de imprevisão 
c de liberdade nos atos humanos. Quase todos os perso­
nagens do sr. Otavio de Faria acham-se ainda na adoles­
cência, acham-se ainda nos princípios de um caminho que 
não sabemos hem aonde os levará. Podemos, porem, apre­
ender a significação geral de O lodo das ruas e de certos 
personagens da Tragédia burguesa na situação em que se 
encontram nos três romances já publicados. Vê-se que 
a Tragédia burguesa está se realizando em dois planos : 
um plano moral e um plano social, sem que o seu autor 
seja propriamente um moralista ou um romancista de cos­
tumes.' Há entre os dois planos a mesma relação de de­
pendência que se deve estabelecer entre a vida moral e 
a vida social. Exatamente o que corrompeu e arruinou 
a burguesia foi a sua tentativa hipócrita de ajustar os 
princípios morais aos seus interesses sociais. A tragédia 
da burguesia acha-se hoje localizada nesse desajustamento 
que somente leva à morte ou à degradação. O sr. Otavio 
de Faria surpreendeu_ assim o mundo moderno no seu mo­
vimento essencial : a Tragédia burguesa representa a his­
tória de algumas .figuras que se dirigem para a morte ou 
para a degradação, ao lado de outras que se colocaram 
J o r n a l d e C r í t i c a 97 
violentamente fora da burguesia procurando lutar para a 
salvação do que possa subsistir desse espantoso naufrágio. 
No centro dessa hi�tória da burguesia coloca o romancista 
ü problema do Bem e do Mal. Essa diviaão, no entanto, 
não aparece_ assim muito rígida no desenvolvimento dos 
personagens e do enredo, o que os tornaria bastante con· 
vencionais, esquemáticos e deshumanos. Não se pode con­
ceber um personagem que se encarne inteiramente no Bem 
c outro que se encarne inteiramente no Mal. Este dua­
lismo imovel resultaria num enjoado primarismo mora­
lizante. O sr. Otavio de F11-ria distingue com muita lucidez 
o que é do plano dos princípios morais e o que é do plano 
das ações humanas. Por isso, uma complexidade da sua 
obra romanesca se encontra nesse reconhecimento de 
muitoa graus de existência entre o Bem e o Mal. As 
fronteiras que dividem uma zona da outra estão demar­
cadas na sua concepção pessoal do mundo, mas estão flu� 
tuantes, moveis e quase irreconheciveis em certas ações e 
em certos personagens do romance. Há no entanto os 
que el3tão de um lado e do outro, os que estão se aproxi­
mando do Bem e os que estão se dirigindo para o Mal. 
A Tragédia burguesa já se acha hem caracterizada nesse 
seu propósito de apresentar dois mundos diferentes : o 
mundo de Branco e o mundo de Pedro Borges. Aliás, eu 
preferiria dizer : um mundo de duas faces, pois continuo 
a sentir uma misteriosa ligação entre a realidade de Branco 
e a realidade de Pedro Borges. Estes dois mundos se 
definem desde Mundos mortos, sobretudo naquela simhó· · 
lica cena 'final da porta do ce�itério no dia da morte de 
Carlos Eduardo. Depois d-a luta entre Branco e Pedro 
Borges os rapazes se dividem. Um grupo segue para um 
lado e o outro para o lado oposto. Ver-se-á ainda mais 
claramente esta divisão em Os caminhos da vida, no qual 
se colocam em posição de combate as duas forças opostas 
e contrárias. Entre as duas, porem, levantam-se várias 
outras que nãQ são propriamente concilia�ões ou acom9-
98 A l v a r o L i n s 
dações, mas forças novas em acordo com a complexi dade 
e a variedade da vida .humana, todas girando, no �ntanto, 
umas e outras em torno de B ranco e Pedro B orges. O 
romance O lodo das ruas conta a história de um mundo 
que não é o de Branco ; um m undo que mais se aproxima 
de Pedro Borgea do que de Branco, embora se sinta por 
toda p arte a sombra de um e de outro. E' a h istória de 
uma família - a família Paiva - sendo ao me�mo tempo 
a história de um personagem : Armando, Fundem-se na 
� eAma história o plano moral e o plano social, desde que 
os Paiva simbolizam, sob certos aspectos, uma família, uma 
dasre e uma face da própria humanidade. 
Armando repre<;enta um caso de desajustamento com 
a sua família e com a própria vi da, e somente no sni <'idio, 
nortanto, poderi a enrontrar .uma 8olução. A educacão 
burgue.oa da sua família e o amhiente SQci al da sua classe 
Fufocaram o que h avi a de melh or na sua natur�?:a huma­
na. Enqu anto a forma<;ão d e Arm :1 n flo aproximava-o 
�o mundo de, Perlro Boro-eq_ a ona m 'li � ínt1ma n a tu re .c>a 
de homem colocava-o .m ais perto de Bra n ro. Vem os, 
contu do, qu e Brancoe A rm11nflo nnnen r'h e .o:aram a i"e 
entender, amhos il!ualmente re�ponoavei� nor e�"a ausên­
cia de uma tiio poo�ivel anrox1ma<'iio. Colo,.ado� um de­
fronte do outro. I'Cpi! ravam � e denoi � ca rl a ve� maiA e�tra­
nh o�. F.ot:>P"'"· neotn nlh,ra. iH nnt�> do nu e me n arece 
<er a i .léi a fun d am ent::�l flo sr. Otavio de Fari a romo ro­
m anci .,ta : a imno�oihili fl n rl e rle enten rlimento entre . os 
'homen o Pffi fa<'e d a auoP,nc1a do !!Pntimento .-le 11m or, 
Porque o verdadeiro amor é um a rariclarle, o enten f!;_ 
mento entre oo hPmens se torna Í !!u alm ente ''"' " r<tri fl :t­
de. A Tragédia burguesa está cheia de caminhos que 
nem flempre �e repdem ; que às vezeo oe rn� " " ffi - m a s 
;;em que @e encontrem nunca . Eota i flpi " f,,� .l �-m -r .. • � 1 rloo 
n•mances do sr. Otavio de Fari a fora lanea da fleode Mun­
d�s mprtos, qu ando escreveu : 1'A comunicaçção entre oe 
J o r n a l d e C r í t i c a 99 
homens é que falta a todos os momentos, o silêncio train­
do, as palavras traindo, o mundo inteiro traindo sempre 
que duas criaturas precisam realmente se entender." 
Este desentendimento entre os homens c11nstitue 
igualmente o tema de O lodo das ruas. A família Pai· 
va está marcada por uma força subterrânea que separa 
todas as suas figuras. Todos substituem o sentimento do 
amor pela exacerbação do sexo, uma <mbstituiQão que se 
espalha por Jtodo o romance e ex;plica o désarroi da 
família Paiva. A distância .que se estabelece entre o 
coronel Paiva e D. Laura passa para os filhos como um 
legado. Cada um vive o seu próprio destino parti cular, 
sem qualquer comunicação com os outros, meamo naque­
las ocasiões em que todos se reunem obrigatoriamente. 
Um destes destinos isolados, um destino correndo para 
a morte sem que
. 
ningueni o perceba é o de Armando, 
intetrol!ando aos vinte anoi!l : "!feria enlouquecido ou 
era um fantal'lma, um morto em trânsito pela vida dos ou­
tros ? " Tudo na natureza humana de Armando indi�a a 
possibilidade de um entendimento com Branco, de uma 
salvação para o mundo de Branco. Contudo, este en­
tendimento fracassa sempre. Toda a h i c.tli,_; , r! f' <\ ,., • • , 
do tem a propriedade de i nr1i rar com o um rr�oto flf' ' N­
dadeiro amor entre os homens poderia unir as duas '{a. 
ccs do mundo, as duas faces que são vistas como irremt'­
diavelmente opostas. Escreveu George Moore que "o 
dom de eontat: a mesma história sob uma dupla forma 
revela o verdadeiro arti�ta". E.ota qualidade de artista !'C 
encontra no sr. Otavio de Faria como romancista. A 
Tragédia burguesa está constituída de uma mesma histó· 
ri a que parece desdobrada em duas porque se acha obser­
vada e narrada sob dois ângulo!'! diferentes. Podemos ver 
aesim as duas facea de um mesmo mundo, ao mesmo tem­
po que os gestos, as palavras e os atos que se acham de 
um lado e do outro. E em momento nenhum o sr. Ota-
100 A l v a r o L i n s 
vio de Faria se comporta como um simples espectador. 
Não olha nunca o mundo como um espetáculo do qual 
se sentisse um observador distante. Esta é a razão com 
certeza por que se coloca sempre na região da tragédia. 
Não exiete na sua obra nenhum vestígio de humour, ne­
nhum vestígio daquele humour que é próprio dos seres 
que sabem ver de longe. Nenhum dos seus personagens 
se torna propriamente ridículo, por mais que a sua con_di­
ção esteja exigindo este resultado. Aqueles que mais se 
rebaixam permanecem apenas desgraçados e miseraveis. 
Veja-se o personagem Raul, por exemplo, sendo suficien­
te compará-lo com o personagem Charlus, de Mareei 
Proust. É que o temperamento do sr. Otavio de Faria 
se revela essencialmente trágico, o 1 que· decorre da sua 
certeza de que sobre os gestos mais simples ou sohre os 
atos mais inferiores está pairando a misteriosa sombra de 
Deus. Por isso, o romancista ·não se coloca numa atitude 
farisaica em face do que ele próprio chama "a imensa­
tristeza que é a natureza humana". Ele tudo procura 
compreender, identificando-se com a miséria da natureza 
humana como alguem que sabe estarmos todos compro· 
metidos numa responsabilidade que é contemporânea do 
nascimento do homem. Não se aproxima dos homens 
nem com displicência nem com humour, mas com um 
duplo e às vezes desencontrado sentimento de solidarie­
dade e de revolta. O seu pessimismo, a sua visão noturna 
da vida, tem origens mais profundas que as da inteligên­
cia. Aproxima-se dos homens como Pascal, de quem re­
tirou esta proposição que serve de .epígrafe à Tragédia 
burguesa : "Je blâme également, et ceux qui prennent 
parti de louer l'homme, et ceux qui le prennent de se 
divertir ; et je ne puis approuver que ceux qui cherchcnt 
en gémissant." Lembro mais uma vez o nome de Mareei 
Proust, mas para marcar uma diferenciação. Tambem 
Proust tornou-se um reveladcir da miséria da natureza hu-
J Q r n a l d e C r í t i c a 101 
mana. Na sua obra, porem, não existe qualquer preocu­
pação de ordem moral, toda ela .se concentrando mais 
sobre a memona do que sobre a conciência. A con­
ciêncía, ao contrário, constitue um elemento dramático 
sempre presente na obra do sr. Otavio de Faria. Atra­
vés dela é que se explica o seu conhecimento da natureza 
humana. Na verdade, o que se admira em primeiro lu­
gar durante a leitura da Tragédia burguesa é a capaci­
dade com que o romancista sabe- ver o que há de mais 
profundo na vida interior dos seres humanos. Um co­
nhecimimto que não se aprende em parte nenhuma, que 
não �:�e conquista nem mesmo com a observação minuciosa 
de uma vida inteira. Ele conetitue um privilégio da in­
tuiç�o artísticà, a iluminaçãço de um carater de roman­
cista. O sr. Otavio de Fari� movimenta todos os seus 
personagens com uma segurança e um domínio que logo 
o caracterizam como um 1·omancista de poderes e recur­
sos excepcionais. Passando da angelitude até a animali­
dade, o autor vai revelando a conciência que se debate 
em atos e pensamentos. Parece-me impossível, por i sso, 
realizar qualquer operação no terreno das exemplifica­
ções. Nem sequer se poderá resumir para o leitor o que 
seja o drama da famHia Paiva ou da situação romanesca 
que a representa. É que O lodo das ruas está construido 
de! maneira que .impossibilita qualquer síntese ou 
qualquer propósito de transmitir detalhes. Das suas mil 
páginas não existe uma única cena, um único persona­
gem, uma única palavra - que não seja de necessidade 
obrigatória para a compreensão e o sentimento da obra 
em conjunto. 
Estamos agora diante de um aspecto muito discutido 
de!'ta obra : o da sua técnica e o do seu estilo. Bem sei 
que o sr. Otavio de Faria apresenta certos defeitos de 
técnica e de estilo, mas não .creio que eles sejam o s que 
ee indicam mais geralmente, ou que possam ser julgados 
102 A I v 'a r o L i n s 
sob critérios comuns. Não acredito, por exemplo, que 
seja um prejuízo a extensão dos seus romances, nem' que 
obteriam mais resultados se fos.sem mais concentrados. 
Ao contrário : o seu resultado mais eficiente, como técm· 
ca, decorre da sua extensão, da lentidão da na-rrativa, da 
conjunção de minúcias e detalhes. Estou certo de que 
para atingir todos os seus efeitos O lodo das ruas tinha 
realmente necessidade das suas mil páginas. Eram ne­
cessários todos os seus episódios miudos, todos os seus 
diálogos, todas as suas repetições de detalhes e de pala­
vras - para que tivéssemos a revelação em conjunto do 
carater de Armando e do ambiente social da família 
Paiva. "Eles revelam o que há de, essencialmente dramá­
tico nas realidades banais de todos os dias" - escreveu 
H. L. Mencken a propósito de Balzac e Thomas Hardy. 
Podemos dizer que uma finalidade semelhante é a que 
visa alcançar a Tragédia burguesa, sobretudo num livro 
como O lodo das ruas. Ao estilo do sr. Otavio de Faria 
raberá outra observação. Diz-se por toda parte, como 
lugar-comum, que o sr. Otavio de Faria escreve mal, que 
tem uma forma deteetavcl. Ainda neste ponto sinto a 
necessidade de fazer uma distinção. Pode-se admitir quea sua forma de expressão não se reveste de uma conven­
cionada beleza artística, nem se apresenta agradavel para 
um primeiro encontro. Na verdade, é sempre com difi­
culdade que se faz a leitura das primeiras páginae dos 
seus livrQs. Não creio, porem, que esta verdade signifi­
que uma deficiência, sendo antes uma virtude da sua 
personalidade que não �e oferece senão aos que estão 
em condiçõeB de a compreender. Uma dificuldade e 
uma virtude proustianas, como se sabe. Depois as difj­
culdades todas desa-parecem na proporção em que se 
avança na leitura. Não se deve esquecer, alem -disso, que 
o románce tem o seu prónrio estilo, ou mais ainda : que 
todo romance e� particular tem o seu estilo em acordo 
J o r n a l d e C r í t i c a 103 
com a realidade que está exprimindo. Um personal!em 
terá que. falar nos seus diálogos e se exprimir nos seus 
p·ensamentos em acordo com as suas próprias condições e 
o seu próprio carater. Parece-me, assim, que há uma 
harmonia entre o estilo do sr. Otavio de Faria e a reali­
dade humana e literária da Tragédia burguesa. E não 
devemos condenar, como mau ou inexistente, aquilo que 
apenas tem um carater diferente, aquilo que apenas está 
fora do nosso gosto de hábito e de rotina. Da técni ca 
sem contrôle e do estilo sem gramática do sr. Otavio de 
Faria julgo exatamente assim : que não .são condenaVf�is, 
mas diferentes.- O que se pode provar com a verifica­
ção de que nem a '!Ua técnica nem o seu estilo imped1:I11 
a revelação da realidade humana e literária que �e en­
contra na Tragédia burguesa, o que aconteceria inevita­
velmente no çaso contrário. Lembro alem disso aquelas 
páginas em que o romancistà suspende a narração para 
se dehru�ar mais diretamente, mais pessoalmente sobre o 
r1estino de' seus personagen�. Por exemplo : a sua viRao 
antecipada do destino de Silvinha, as reflexõe.� sohre a in­
compreen�ão de Branco e Armando, as meditações com 
ITlle encerra o romance. Páginas todas que revelam um 
e�tiJo não só de romanci�ta, mas de verdadeiro escrit�r. 
Confes@o, aliás, que após a leitura de O lodo das · ruas 
senti alguma coisa mai.s do que o movimento de admi­
ração que sempre provoca um livro de qualidades acim u 
do comum ; confesso que me sentí comovido diante de!'te 
quadro que se poderia chamar "a miséria da natureza 
humana" e que se acha levantado numa construção ro­
mane?ca que desafia o tempo. 
11 de abril de 1942. 
CAPiTULO IX 
, 
ENTRE OS EXTREMOS 
A principal renovação que a literatura operou ulti­mamente encontra-se na possibilidade de utilizar nas 
suas realizações as novas conquistas científicas da psicolo­
gia e da sociologia. De uma maneira p articular, ao ro· 
mance haveria de caber uma situação de primeira ordem 
nesta onda de descobertas espirituais. De descobertas, 
talvez só seja verdadeiro num sentido muito limitado ; de 
utilizações técnicas, talvez seja mais exato. É certo que 
investigando bem chegaremos à conclusão de que, ne8se 
movimento, a literatura antecedeu à ciência tanto psicoló­
gica como sociológic a. Na sua procura do que há de 
mais fundo e de mais real na alma humana, os cientistas 
modernos não estavam senão seguindo um longo caminho 
que Dostoieswsky percorrera 'sozinho, com os exclusivos 
1:ecursos da sua genial intuição artística. Aliás, desde os 
tempos mais antigos, estamos assistindo êste processo de 
um mesmo desenvolvimento : ·na origem de toda descober­
ta científica encontra-se uma intuição de artista. Assim, 
ao atribuir à intuição um papel fundamental para o su: 
jeito e o objeto do conhecimento, Berg01on não estava se­
não definindo uma realidade secular e historicamente ve­
rificada. Contudo, tornam-�e necessárias, em cada des­
coberta de artista, num domínio que não seja puramente 
artístico, a verificação posterior e a vulgarização -da ciên­
cia. A verificação e o desdobramento que irão lhe per­
mitir uma maior autenticidade e uma �l:liQr -qnivers�i-
J o r n a l d e C r í t i c a 105 
dade. Neste sentido é que o progresso da c1encia tanto 
psicológica como sociológica veio trazer uma grande con­
tribuição para a literatura moderna, sobretudo para o 
romance. Uma contribuição que se define principalmen­
te pelo seu cara ter de' profundidade : o aproveitamento de 
elementos ilógicos, a utilização artística da vida subcon­
eiente, a possibilidade de uma atmosfera mai? metafísica 
do que naturalística. Sobre os personagens, sobre og se­
res nos quais o artista imprime uma sensação de huma-· 
nidade, incidiram principalmente estas novas possibili­
dades e estas novas realizações ; dos personagens se estcn-· 
deram, num movimento natural, até a ação e o ambiente, 
as duãs condições rop1anescas que estão determinadas
- pe­
las figuras de representação .humana. l É verdade que o 
romance chamado naturalista . - e emprego essa designa­
ção num sentido muito mais geral do que o de uma sim­
ples escola literária, historicamente considerada - con­
?-eguiu realizar não só muitas obras consideraveis mas al­
gumas obras-primas. No entanto, trazia, em si me.omo, a 
contingência de um rápido esgotamento. O seu recurso 
principal consistia em operar uma cisão no espaço, o que 
significa que teria de se desenvolver num movimento de 
extensão. Era descrição de uma vida humana - com 
seus acessórios de ação, amhiente e comparsas - nor-· 
malmente desdobrada dentro do conceito artistotélico de 
perfeição - tomado neste caso num formulário exterior 
incompleto --'- que ensina a ver em todas as coisas um 
principiO, um meio e um fim. Algumas obras-primas 
foram suficientes para esgotar as possibilidades desse mo­
vimento de espaço em,.-extensão. Recolhendo a herança 
naturalista, o romance moderno decidiu-se a operar uma 
cisão no tempo, o que significa que está se desenvolvendo 
num movimento de profundidade� Aí estão realmente as 
suas oposições mais características : espaço e tempo, ex­
tensão e profundidade. Poderíamos acrescentar algumas 
106 A l v a r o L i n s 
' 
outras : lógica e ilógismo, inteligência e intuição, natu-
ralismo e magia poética. Verificando a impossibilidade 
de tornar romanesca a vida toda, o romance restringiu a 
sua extensão para ampliar a sua profundidade. Por isso 
é que J ames J oyce se deteve sobre um único t:lia de vida 
dos seus personagens em Ulysses. Pôde conhlcê-los mui­
to mais profundamente do que se os tivesse de acompa­
nhar através de toda uma existência. Não se julgue, po­
rem, que um romance moderno constitue sempre e neces­
sariamente uma oposição ao romance naturalista. Não : 
mais propriamente constitue um complemento, uma con­
tinuaçào, uma nova fase. Um romance pode ser natura­
lista e moderno, o que é ainda uma situação para a qual 
o Ulysses se apresenta como um magnífico exemplo. No 
sistema natural de evolução e transiormação dos gêneros 
literários, o romance moderno veio completar e continuar 
o que o romance naturalista continha de incompleto e de 
limitado. O romance naturalista representará sempre nu 
entanto uma espécie de base ou de alicerce para qual­
quer construção romanesca. Mas quando o edifício já se 
vai elevando tão alto será incompreensível que se fique 
apenas nos alicerces. 
De qualquer forma, porem, nenhum romance poderá 
subsistir sem que contenha um carater realista, tanto na 
sua estrutura íntima como na sua visão exterior. E ainda 
aquí devo explicar que não empre.go a palavra realismo 
num sentido restrito e histórico de escola, mas no seu 
amplo e verdadeiro sentido filosófico. Nesta acepção é 
que a obra de Mareei Proust se apre,>enta muito mais 
realista do que a de Zola ou a de Flauhert. Nesta acep· 
ção, aliás, é que toda obra de arte perfeitamente realizada 
- quero dizer : com espírito .e com técnica formal -
constitue uma obra realista. E uma característica feliz 
do romance moderno é esta sua disposição de se colocar 
dentro de um realismo mais completo e ma�s verdadeiro. 
J o r n a l d e C r í t i c a 107 
ne um realismo que não seja só uma cópia da vida exte­
rior, um reconhecimento danatureza física, uma interpre· 
tação dos aspectos materiais dos seres ou simplesmente 
animais dos homens ; que seja tudo isto e mais o realismo 
da alma humana, da vida interior, das situações metafísi­
cas. Apresentando-se, assim, muito mais dificil e mais 
amplo do que .o seu antecessor, o romance moderno car­
rega por isso mesmo maiores possibilidades de ser des­
virtuado ; o romancist_a de segunda orde� fará dele um 
simples jogo mental, uma mistificação intelectualista, uma 
fanta.sia inconsistente e equívoca . Para qualquer tendên­
cia literária, aliás, sempre existirá este perigo de incom­
preensão, de desvirtuamento, de deturpação por parte da­
queles que não são criadores mas simples imitadores, 
daqueles que podemos chamar os autores de segunda 
classe. Estes autares são os mais . numerosos e os que mo­
vimentam a vida literária quotidiana. No romance natu­
ralistá, os livros de segunda classe se reconhecem pela 
falta de imaginação, pela fidelidade medíocre com que 
procuram copiar a vida exterior, pela unifo·rmidade de 
um mesmo estilo descritivo e monótono. No romance 
moderno, definem-se pela falsa originalidade, por um 
falso simbolismo poético, pelo estilo cabalístico e defor• 
mador. E ao falar destes livros de segunda classe não 
me acho animado contra eles de nenhum sentimento de 
desdem ou de repulsa, 'o pensar como são raros os de 
uma categoria absolutamente superior, aqueles que a his­
tória recolherá mais tarde como patrimônio de uma I� 
teratura. Diante de livros dessa segunda classe é que to­
dos os críticos se .encontram quase toda� a� semana�o. Des­
sa· mesma espécie são os romances diante dos quais me 
encontro agora ; dois deles de autores novos e que se 
acham no limiar da vida literária : os srs. J osué Montcllo 
(]an�las fe�hadas, -Rio 1941 ) e Nelio Reis (O rio corre 
para o mar, Rio, 1941 ) ; & outro de um autor já consagra-
108 A l v a r o L i n s 
do pelo sucesso - inclusive neste livro agora em segun· 
da edição - e com um nom� dos mais conhecidos e da 
maior evidência em nossas letras : o sr. Jorge de Lima (O 
Anjo, Rio, 1941 ) . 
De início, _o que há de mais curioso a assinalar entre 
o sr. Josué Montello e o sr. Nelio Reis é a semelhança dos 
seus dois romances, publicados simultaneamente. E' que 
ambos se acham dentro de fórmulas e modelos demasia­
damente conhecidos : os do romance naturalista. Ambos 
escolheram como ambiente as suas regiões do Norte ; am­
bos se encontram líniitados e adstritos a um naturalismo 
exterior e convencional ; ambos se voltam para os mesmos 
recursos e os mesmos desenvolvimentos romanescos, E 
não fica nestes aspectos a aproximação possível entre os 
dois jovens romancistas. Encontro em ambos os livros o 
mesmo enredo : a história de uma moça que o amor sem 
casamento coloca fora das convenções sociais e que se vê 
por isso expulsa do mundo e da própria vida ; encontro, 
n um e noutro, o mesmo desenvolvimento para este enre­
do : as mesmas situações de um pequeno meio social, os 
mesmos sofrimentos da personagem principal, os mesmos 
preBsentimentos e reflexões diante da gravidez que 
denuncia o novo estado, os mesmos raciocínios e revoltas 
diante do abandono e do isolamento; encontro ainda uma 
semelhante paisagem física e humana, personagens se�p.e­
lh'antes, conversas semelhantes, uma só atmosfera roma­
nesca. E não resta dúvida que · todos essas semelhanças 
se explicam através de um defeito fundamental e co· 
mum aos dois livros : a visão dos autores encontra-se to�a 
voltada para o exterior dos personagens e da sociedade. 
O que lhes falta não é só uma maior densidade, uma 
maior .concentração de vida e de arte ; é tamhem llJ1la 
projeção maia definida da personalidade do �omancista. 
Ambos se preocuparam de mais em observar e fixar o que 
estava ao alcance direto da visão puramente objetiva e 
J o r n a l d e C r í t i c a 109 
d0:crcveram a8'lÍm uma realidade que, embora fiel, não 
ultrapassa a superfície. E esta arte simplesmente de ob­
servação, -de fidelidade ao visível, de descritividade oh je­
t:iva - representa sem dúvida uma arte que tem: o seu 
valor, mas que será sempre primária. 
Fixando uma interpretação individual, direi que o 
er. Nelio Reis me parece mai.s romancista, na mesma pro· 
porção em que o sr. J osué Montello me parece mais escri­
tor. É um simples indício, porem, pois o sr. Nelio Reis 
fBcreve páginas tão desfavoraveis à sua categoria de ro­
mancista que serão suficíéntes para desesperar qualquer 
leitor mesmo indulgente. Todo o seu romance gira em 
torno do amor de Oceanira (personagem principal) , o 
que se _transmite literariamente por intermédio de uma 
senBação bastante vaga e superficial. Todos os sentimen­
tos e paixões dos personagens aparecem mais descritos 
p elo rom:mcista do que vividos por eles mesmos, o que 
cons titue uma característica de O rio corre para o mar 
como tamhem de ]anelas fechadas. Ainda contra a ca­
tegoria de roman cista do sr. Nelio Reis se levantam o 
artificiali.smo dos seus diálogos, a sua preocupação de 
uma linguagem "modernista" por feito de uma gíria em­
pregada sem nenhum gosto e sem nenhum senso da lín­
gua, a fraqueza ou a puerilidade de certos episódios que 
nada explicam e em nada contribuem para a intensidade 
do romance. Tambem o seu estilo, embora agradavel e 
simples em algumas ocasiões, apresenta-se constantemente 
muito frouxo e desagregado, sem falar das numerosas ex­
pressões de mau-gosto que vamos encontrando em todo o 
decorrer da leitura. Imagine-se, na impoBBibilidade de 
citar outros exemplos, que o sr. Nelio Reis ainda utiliza 
aquela imagem matusaleniana de uma "natureza choran· 
do" em correspondência com os sentimentos humanos, 
como se vê nesta frase : "A natureza parecia que adivi· 
nhara que Buzuquinha embarcara' na véspera e Oceanira 
llO A l v a r o L i n s 
estava triste. ChQYera a noite toda." Contudo não quero 
esquecer que há uma ou outra página para revelar no sr. 
Nelio Reis um certo talento de romancista - ou uma inspi­
ração de momento, sendo muito dificil distinguir exata­
mente, neste caso, uma coisa da outra - e indico como 
exemplo a página final do suicídio de Oceanira, que me 
parece a mais consideravel de todo o romance. O sr. 
j osué Montello, por sua vez, apresenta-se mais homogêneo, 
mais equilibrado, m�is igual através de todas as suas pá­
ginas. Será difícil, como no caso do sr. Nelio Reis, indi­
car trechos que se sobressaiam pelo mau-gosto ou pela 
absoluta desconexão entre o assunto e a sua expressão li­
terária. Nada disso encontramos na obra do sr. J osué 
Montello. Mas tambem não encontraremos indícios de ori· 
[dualidade ou de força criado.ra que nos levem a çonside­
rar o seu romance como uma estréia de grande importim· 
cia. V erificamoi! que são dos mais reduzidos os seus re­
cursos de imaginação ; ele se mostra mais um espírito cri­
tico do que um espírito romanesco ; e as qualidades li te· 
rárias que pude sentir em ]anelas fechadas são menos par­
til'ularmente de romancista do que de um escritor de or­
dem geral. E ei!sas qualidades são daquelaa que não se 
esquecem, sobretudo as do seu estilo, que me deixou as 
melhores impressões. 
Mas enquanto uma contingência de idade (a juventu­
de não é a época mais propícia para os romancistas ) ex­
plica romances como O rio corre para o mar e ]anelas l 
fechadas, o que poderá explicar um romance como O 
Anjo na autoria do sr. Jorge de Lima '? Eu tinha, aliás, 
a impressão de que êle se sentia hoje muito acanhado e 
arrependido de haver um dia escrito este livro tão inutil 
e tão vazio de qualquer atributo literário ou artístico. 
Mas não : aí está uma segunda edição mostrando que o 
sr. Jorge de Lima se orgulha deste seu livro e acha o 
mesmo digno de se continuar através das gerações. Ah, ·os 
equívocos e as cegueiras dos autores paternais ! Há cer-
J o r n a l d e C r í t i c a 111 
tas ilusões e certas mistificações, porem, que não devem 
permanecer de pé, afim de que nao se julgue que toda a 
nossa vida literária se desenvolvena base de amizades 
pessoais ou de considerações estranhas à literatura. Por· 
que não dizer então a respeito de O Anjo o que ele real­
mente vale e o desprestígio que significa para um autor 
subscrever um livro dessa categoria l J á hz, em mais de 
uma ocasião, a justiça devida ·ao talento e às qualidad� 
intelectuais do sr. J orge de Lima. No entanto, por maior 
que- seja a nossa consideração pela sua figura literária, 
a verdade é que será impossível a aceitação ue uma grande 
parte da sua obra, da qual, aliás, este O Anjo constitue 
um volume representativo. Diante dele, ainda _hoje fico 
às vezes nesta dúvida : o sr. Jorge de Lima tentou uma 
pilhéria de mau espírito ou escreveu seriamente este vo­
lume? A hipóte!!_e da pilhéria, no entanto, logo será afas­
tada quando se pensa que não ieria graça nenhuma para 
nm autor tão festejado sob outros aspectoa. O que se 
conclue, ao contrário, é que embora o livro não tenha a 
menor seriedade, o sr. Jorge de Lima, ao escrevê-lo, se 
achava animado de um sentimento que acredito até mes· 
mo austero e grave E aí está um episódio pirandelliano : 
um autor que se aplica com seriedade e uma obra que 
resulta mais ou menos engraçada, a despeito dos seus pro­
pósitos. Na verdade, O Anjo nada tem de um livro cô­
mico ; no entanto, provoca o riso pelo avesso, o riso invo­
luntário de certas situações que divertem exatamente pela 
�ua absoluta falta de graça. 
Vê-se que o sr. J orge de Lima pretendeu a realização 
de um romance de carater suprarrealista e metafísico. 
Um romance inteiramente de.;;ligado de qualquer modelo 
naturalista. Mas tentando fugir de um convencionalismo 
acabou caindo no convencionalismo oposto. O seu ro­
mance transmite por isso uma impressão contrária àque­
la que esteve na intenção do seu autor. Sendo um livro 
de furor modernista apresenta uma fisionomia de livro que 
1 1 2 A l v a r o r_ i n s 
nasceu morto ; extremando-se no gosto da novidãde só con­
segue exibir uma falsa originalidade ; tentando exprimir o 
que há de mais natural no homem perde-se nos devaneios 
do mais vago artificialismo. O romance não tem propria­
mente nem enredo nem sentido O que se percebe é que o 
autor quis apresentar o estado de vida subconciente e as vi · , 
eões suprarrealistas de dois personagens, simbolizando tal­
vez dois gênios incompreendidos de artistas, ao lado ·de uma 
longínqua iil.tenção de cristianismo. Alternam-se as páginas 
de episódios habituais e de sonhos alucinados. As pri­
meiras, em geral, se afogam na banalidade ; as outras são 
incompreensivéis e fora não só de qualquer percepção 
intelectual mas de toda sensação artística. E aquí se en­
contra o ponto central da questão. fà arte pode se apre­
sentar hermética, obscura, ilógica, quando julgada sob 
um critério estritamente intelectual. Mas estando, embora, 
alem da lógica comum ou científica, toda obra de arte 
apresenta uma lógica de si mesma, uma unidade e uma 
integridade particulares, uma visão e uma compreensão pu· 
ramente estéticas. Estes atributos não se encontram, porem, 
e:rp. O Anjo ; ele nem se enquadra na lógica comum do 
romance naturalista, nem na lógica simplesmente artís­
tica do romance moderno. A ' única maneira de o com· 
prender será julgá-lo como um jogo literário de diletante, 
com'o uma fantasia inconsequente, como um divertimento 
de escritor inteligente e inquieto. A sua categoria é a 
daqueles livros que são lidos num dia e esquécidos no dia 
seguinte. Estou certo no entanto de que O Anjo repre7 
senta um dos estados de espírito que mais definem as ati­
vidades intelectuais do sr. Jorge de Lima : a sua curiosi­
dade, a sua mobilidade, a sua volubilidade. O sr. J orge 
de Lima parece ansio.so para realizar todas as expenencias 
e esgotar todas as possibilidades. Passeia inquieto através 
de todos os gêneros, de todas as teorias, de todas as pro­
babilidades. Admiro realmente a sua multiplicidade, mas 
J o r n a l d e C r ít i c a 113 
nem sempre essa admiração significa u m sentimento favo­
ravel ao sr. Jorge de Lima. 
Estamos, como se vê, entre os extremos d<) ·J.uas fór­
mulas de ro�ance. Os srs. Nelio Reis e Josué Montello 
permanecem limitadoa pelos estreitos horizontes do ro.­
mance naturalista. O sr. J orge de Lima esgota-se numa 
falsa originalidade de falhado efeito suprarrealista. De 
um lado e do outro, creio que perm anece inatingido aquele 
verdadeiro "realismo" - o "realismo mágico", d_a expr�s­
Bão de E dmond J aloux - que deve ser toda a "ãimóstera 
a:e--Üm romance mo(Íerno. 
26 de julho de 1941. 
CAPíTULO X 
ROMANCES DE CONCURSO 
DEPOIS de um concurso mais ou menos rumoroso, o jornal literário Dom Casmurro e o editor V ecchi 
ofereceram, no ano paBsado, dois prêmios de romances. 
Um deles, o primeiro, recaiu sobre a pessoa de um autor 
do Pará que era, até �ntão, inteiramente desconhecido. 
Antes mesmo do conhecimen,to dos romances, o resultado 
do concurso se apresentava muito simpá�ico por essa cir­
cunstância de haver dado o primeiro prêmio a um autor 
desfavorecido, a um autor �;:em influências literáriás e sem 
qualquer outro "recurso que não fos�c o Rcu próprio livro. 
Conclue-se, portanto, que nCBse primeiro prêmio pode ter 
h avido um erro intelectual, mas nunca um erro moral. 
Quero dizer : houve um julgamento desinteressado e com 
a intenção de exprimir um critério de justiça literária. 
Acredito que o mesmo espírito tenha determinado o juri 
n a escolha do segundo prêmio, que recaiu em autor que 
não era igualmente desconhecido (no concumo, aliás, todos 
deviam ser desconhecidos . . . ) , que tem uma posição lite· 
rária como secretário de unia revista onde o seu nome 
aparece habitualmente. Agora, um ano depois do resul­
tado do concurso, a publicação dos dois romances (Chove 
nos campos de Cachoeira, do sr. Dalcidio Jurandir, e Ci­
randa, do sr. Clovis Ramalhete) vem nos dar a oportu­
nidade de colocar o nosso julgamento ao lado do julga­
mento oficial do juri que decidiu o resultado final. Aliás, 
não me cabe confirmar ou contestar o julgamento do juri, 
no que logo estaria impedido pela circunstância de me 
J o r n a l d e C r í t i c a 115 
serem desconhecidos os demais romances que disputaram 
os prêmios ao lado dos vitorioEos. Tambem ignoro qual 
dos dois critérios (ambos lícitos) o juri seguiu : se o de 
premiar os melhores romances, ou se o· de premiar os 
menos ruins dos que .se apresentaram . . . Contudo, levo 
muito em conta a circunstância .do concurso que veio dar 
aos dois romancistas uma publicidade em grande estilo e 
uma evidência que se calcula pelo noticiário e anúncios 
dos jornais, pelos comentários dos meios literários e até 
pelas vitrinas enfeitadas das livrarias. E essa circunstân­
cia do concurso é que me leva a dar aos doi;< romances 
uma atenção mais demorada do que estariam a merecer 
em condiçõe� normais de aparecimento. 
O que se pode logo sentir tanto em Chove nos campos 
da Cachoeira como em Ciranda é o carater de literatura 
efêmera, transitória, acidental, que os domina de m a­
neira ostensiva. V em os logo que nem chegarão a ter a 
duração de uma moda porque não apresentam a originali­
dade que faz da moda um elemento transitório no tempo 
que passa, mas permanente no tempo que se imobiliza. 
E nenhuma moda verdadeira será inteiramente efêmera. 
Lembro-me de que nesse ponto mesmo é que se concentrou 
a principal teoria estética da obra de crítico de Baudé­
laire. O poeta se impressionou com uma constante da his­
tória literária que veio a ser uma espécie de exercício 
para a sua argúcia de. crítico. A qualquer de nós, 
aliás, logo impressionará que no meio de várias obras 
que parecem vitoriosas e estabilizadas, numa determinada 
época, umas se prolonguem pelo futuro � se continuem 
para sempre, enquanto outras não suportam sequer al­
guns anos de existência. Partindo desta impressão, Bau­
delaire concluiu que há em todas as obras uma série de 
elementos puramente do seu te�po. Elementos exteriores, 
acidentais, efêmeros. Trata-se de uma contribuição ine-1 16 A l v a r o L fn s 
vitavel à moda. As grandes obras, porem, trazem outros 
elementos que tranEcendem o tempo. Elementos espiri· 
tuais, estéticos, permanentes. Trata-se da segurança de 
toda grande obra artística. Imposaivel imaginar, assegura 
Baudelaire, um só quadro, ou um só livro, que tenha se 
afirmado sem o concurso e sem a conjunção desses ele­
mentos aparentemente contrários. Só t�oricamente pode­
remos imaginar uma obra de arte composta apenas de 
elementos eternos e extratemporais. Pode constituir um 
sonho de artista, mas nunca uma realidade, pois a pre­
sença do artista dentro do mundo já implica a existência 
de atributos acidentais e exteriores, aos quais nunca po­
derá fugir inteiramente. Qualquer obra-prima da litera· 
tura contem um elemento de "moda" que envelheceu, 
m as que está valorizado pela força do outro elemento de 
permanência que a completa. De maneira nenhuma, a 
obra de Shakespeare será vista e sentida pelo inglês de 
hoje como o fôra pelo inglês da sua época. O romance, 
então, mais do que qualquer outro gênero, está dcstinaJo, 
pela sua categoria de expressão social, a conter o maior 
número possível de elementos efêmeros. E' o gênero que 
mais dificilmente se salva da tirania da moda ; e tambem 
o que mais dificilmente se salva do esquecimento e da 
morte. Em qualquer romance de Balzac, por exemplo, 
vários páginas já morreram ou apresentam hoje um inte­
resse simplesmente histórico . Contudo, _o elemento "moda" 
torna-se imprescindível para que se verifique a presença 
dos outros elementos qu� o sustentam fora- do tempo. Por­
que, ao contrário dos elementos eternos, os elementos 
efêmeros podem se movimentar sozinhos para a formação 
de uma obra que não será de arte, mas que poderá simular 
êste carater durante um período relativamente longo . A 
vida literária está cheia de livros desta cs pécie ; livros 
que até alcançam sucesso e dão prestígio social aos seus 
autores. A história literária é qu·e os ignorará para 
J o r n a l d e C r í t i c a 117 
sempre. Mais uma vez .J>oderemos repetir que são muitos os chamados e poucos os escolhidos. Entre a vida literá­
ria e a história literária, a proporção numérica, num cál­
culo otimista, é de um para cem. Cada vez se torna mais 
dificil aquela harmonia entre elementos eternos e de­
mentos efêmeros que garante a perpetuidade da obra de 
arte, pela vitória dos primeiros contra os segundos. Cada 
vez se torna mais facil a exclusividade do elemento efê­
mero que faz do livro um objeto que se usa num dia e 
se ésquece para sempre no dia séguinte. 
Estas reflexões me acompanharam durante toda a 
leitura dos romances Chpve nos campos de Cachoeira e 
Ciranda. Não pude dominar a impressão de que me 
achava diante de dois livros que não são propriamente 
da :p1oda, pol."que todos os grandes livros o são igualmente�· 
naquele sentido da interpretação de Baudelaire. Que são, 
porem, de um momento que passa, de uma moda isolada 
do elemento de duração que a completa. No sr. :Palcidio 
Jurandir, a moda é a de um estilo de romance ; no sr. 
Clovis Ramalhete, a do 1·omance em si mesmo. No sr. 
Dalcidio Jurandir, não será dificil sentir um romancista 
que ainda não se realizou ; no sr. Clovis Ramalhete, ao 
contrário, logo sentiremos uma absoluta dissociação entre 
o autor e o gênero literáiio- em que está trabalhando. O 
que falta ao livro do sr. Dalcidio Jurandir é a realização 
literária, é o dominio do material romanesco, é a con­
ciência mesma da 6Ua obra. Não sendo um romance de 
valor, sobretudo de valor litei·ário, Chove nos campos de 
Cachoeira revela os indícios de um romancista. Bem di­
ferente é a situação do sr. Clovis Ramalhete. Ele conhece, 
pelo menos superficialmente, as formas de romance, os 
>cus arranjamentos, os seus truques. Usou tudo isso com 
uma certa habilidade manual e dessa combinação surgiu 
o "romance" Ciranda. Mas não são suficientes, embora 
necessários, o conhecimentn racionalista e a habilidade 
ll8 A l v a r o L ins 
manual para a criação de urq. romance. E por isso é que 
Ciranda, da primeira à última página, constitue uma con­
fiSõão de incapacidade para o romance, na mesma propor· 
ção em que Chove nos campos de Cachoeira exibe um 
romancista na mais absoluta inconciência literária, na 
maia absoluta ignorância da sua arte. 
Parece-me que foi uma crueldade desnecessária juntar 
ao volume a entrevista que o sr. Dalcidio Jurandir enviou 
para o jornal Dom Casmurro logo depois do resultado do 
concurso. Não sei de documento mais antiliterário e 
mais insensato do que esse em que um autor vem contar 
as suoo intimidades pessoais numa linguagem terra-a-terra. 
Estaria tentado a falar em ridículo se não estivesse certo 
de que ingenuidade vem a ser a palavra mais exata para 
explicar uma confissão daquela natureza. Essa entrevista, 
agora ligada ao volume, poderá justificar o gesto de um 
leitor irritado atirando o romance para um depósito de 
inutilidades. Ma.s a verdade é que a entrevista não repre­
senta o romance do sr. Dalcidio Juran dir, emhora explique 
os sem'! defeitos mais consideraveis. Explica realmente um 
autor mais ou- menos ingênuo, quase infantil em vários 
aspectos, provinciano em todos os eentidos ( no bom e no 
mau sentido) , muito sincero, muito espontâneo, muito 
natural. A idéia que me dá · O sr. Dalcidio Jurandir é a 
de um escritor ainda primário, todo instintivo, um orador 
às avessas do romance. Contudo, o seu livro revela uma 
espécie de força espiritual que deve ser devidamente con­
siderada. Uma força ainda bárbara e caótica mas que 
poderá um dia apresentar resultados surpreendentes. Al­
guma coisa de essencial que atravessa subterraneamente 
·o seu livro está a me indicar que certas condições de am­
biente ou de idade ou de exercício literário serão capazes 
de fazer do sr. Dalcidio J uraridir um romancista de alta 
categoria. Mas tambem é possivel que o romance nada 
mais seja do que o impulso isolado de um entusiasmo li-
J o r n a l d e C r í t i c a ll9 
terário de mocidade. Qualquer profecia seria arbitrária. 
O que sei é que certas páginas de Chove nos campos de 
·cachoeira me surpreenderam agradavelmente, embora o 
conjunto me haja causado uma certa sensação de desen· 
canto. Isto porque o romance vai transmitindo sempre 
uma espécie de expectativa. Até o último instante de lei­
tura vamos esperando alguma coisa que afinal não se en­
contra. 
De uma maneira geral, o romance começa bem ; co­
meça de um modo que deixa o leitor na esperan·ça de uma 
ohra de podero�o desenvolvimento, As primeiras páginall 
são firmes, afirmativas, densas, ianto nas palavra� como 
no seu sentido interior. Logo adiante ,porem, assistimos a 
uma queda impetuosa como de um décimo andar ao Bolo. 
Até o fim, estas quedas vão se repetir com uma pontuali­
dade irritante. Parece até que o sr. Dalcirlio Jurandir se 
acha empenhado no propósito de ostentar repetidamente 
os aspectos mais frageis da sua personalidade, que em 
outras ocasiões se apresenta muito inteligente e muito 
exuberante. O mau-go8to da expressão é um destes as­
pectos mais constantes, poÍ.q o l"r. Dslcidio Jurandir insiste 
num recurso que nunca domina inteiramente : a utili ­
zação da linguagem popular. Este é um dos maia difíceis 
e delicados recursos da arte literária, emBora à primeira 
vista se mostre tão facil e sedutor. Raros os nossos ro· 
mancistas modernos que conse�uem vencer essa sedução 
e essa facilidade ; que conseguem essa ciência sutil e muito 
pesaoal de faz_er com que a linguagem popular se ajuste 
à linguagem literária. O que muitos pretendem é a trans­
posição para a literatára de toda e qualquer gíria, sem 
nenhum exame, sem nenhuma seleção, sem nenhum dis­
cernimento. Confundem a linguag�m popular que tem um 
carater de vitaliqade com outra que nada significa 
dentro de um livro. •Nesta confusão é que se debate cons­
tantemente o sr. Dalcidio J ur�ndir. _ Ele não conseguiu 
120 A l v a r o L i ns 
apreender a verdadeira mobilidade de uma língua, as ino� 
vações naturais.e necessárias que uma 1inguagem livresca 
pode suportar por efeito da linguagem falada habitual� 
n �cnte. Aliás, todo o romance Chove nos campos de Ca­
choeira revela uma espécie de anarquia espiritual que 
pode conduzir a uma grande criação literária, mas que 
tamhem pode a nada conduzir, extinguindo-se nos próprios 
extertores. Esta anarquia resulta, por sua vez, de uma 
espécie de tirania do meio sobre a personalidade do autor. 
Uma tirania que se exerce em todas as direções : na lin­
guagem, no assunto, na: realização romanesca. O ambiente 
exterior é um círculo fechado dentro do qual o roman· 
cista se movimenta sem a capacidade ou sem a intenção 
de ultrapassá-lo. Trata�se de uma limitação que é a do 
personagem principal, mas que acab a por - incidir sobre 
o próprio romancista. Por isso, uma nota dominante 
deste romance é a monotonia. Repetem-se c;cmpre - e 
não se trata de uma técnica conciente de repetição, da 
qual seria possível extrair os melhores resultados - os 
mesmos motivos, as mesmas cenas, a;; mesmas situações. 
O que provoca, no entanto, um efeito mais consideravel 
não é essa descritividade, esse inventário de costumes de 
uma pequena cidade, situação na qual o sr. Dalcidio Ju­
randir inBiste com um empenho absorvente. Talvez que 
os seus recursos mais, positivos estejam no monólogo, na 
introspec�ão, na análise psicológica. A essa hipótese me 
levaram algumas páginas isoladas sobre o personagem prin� 
cipal. E o que o sr. Dalcidio Jurandir mais necessita, para 
se realizar nessa direção, é o entendimt;nto da oportuni­
dade e do valor do "silêncio" numa obra de arte. Ele 
parece dominado pela ambição de tudo contar, de tudo 
narrar, de tudo reduzir às letras. Esta ambição pode ser 
fecunda para um cientista, mas não propriamente para 
um artista. Em literatura, então, será preciso sempre 
lembrar que nem tudo que se vê e se sente merece ser 
J o r n a l d e C r í t i c a 121 
transmitido. Existe uma arte do "silêncio" mais fina e 
mais penetrante do que qualquer outra. Por seu inter­
médio é que se atinge a capacidade de sugerir mais do 
que definir - o que é - o segredo mesmo da obra de arte. 
Pois o destino de tranaformar as realidades do mundo em 
conceitos, é o da ciência ; o da arte, é o de transformar 
essas mesmas realidades em percepções. 
Absolutamente diferente do Chove nos campos de 
Cachoeira é o romance Ciranda, do sr. Clovis Ramalhete. 
Romance ? Acho que só a etiqueta da casa editora será 
capaz de sustentar esta referência. Bem sei que houve 
uma tão ampla revolução no conceito desse gênero lite­
rário que será sempre prudente hesitar antes de se negar 
a uma obra o título de romance. Mas no caso do sr. 
Clovis Ramalhete, estou certo de �e nenhuma dúvida se 
levantará : o livro Ciranda não é romance e o seu 
autor não é romancista. E nam mesmo apresenta qual­
quer po€sibilidade a indi�ar que o possa ser algum 
dia. Em Cirandct não ené'é:mtraremos qualquer elemen­
to que indique a presença de um romance : nem epi­
sódios, nem personagens, nem estrutura, como no romance 
tradicional ; nem tambem aquela sensação de vida, aquele 
tumulto interior, aquelas forças subterrâneas e desorde­
nadas que podem constituir um romance contra as aparên­
cias de fórmulas e de conceitos já antigos e estabelecidos. 
O que se pode afirmar do sr. Clovis Ramalhete é que é 
um cronista ; e um croniata de segunda categoria. Todo 
o seu livro é um conjunto de pequenas crônicas sobre as 
pensões do Catete. Veja-se este tema : a vida da pequena 
burguesia das pensões. Como está velho, esbatido, sur­
rado ! Ele tem quase que a mesma idade da literatura 
brasileira. Voltar a um assunto dessa espécie só se ex­
plica pela capacidade de renová-lo inteiramente, de dar-, 
-lhe uma nova fisionomia e uma nova realidade, de apre­
sentá-lo com novas e excitantes condições de vida. O sr. 
122 A l_ v a r o L i n s 
Clovis Ramalhete, porem, só faz repetir o que antes cen­
tenas de cronistas cariocas já observaram e fixaram nas 
mais diversas ocasiões. Atravessam o seu livro aB mesmas 
figuraa de estudantes e de mocinhas, os mesmos namoros, 
as mesmas pequenas complicações, os mesmos insignifi­
cantes sentimentos. Nem sequer existe uma certa conti­
nuidade de narração e uma certa ligação entre os perso­
nagens que foseem capazes de criar para o livro um 
cara ter de integridade. Ao contrário : todas as P.áginas 
são crônicas espars�s e ligadas artificialmente. A impres­
ôsão de um capítulo (fiz a experiência ) será a mesma em 
leitura isolada ou no conjunto do volume. E esta é uma 
prova que nenhum verdadeiro romance suportará. Al­
guns capítulos, aliás, parece que não têm outra finali­
dade senão a de ajudar a composição gráfica do volume. 
Exemplo : o que se intitula "Presença de Deus!'. Nada 
significa. Outro exemplo está no "lntermezzo ao luar", 
um arranjo de palavras pretendendo um efeito poético. 
Mas um efeito poético que não se afirma porque fica 
inteiramente abafado pelo jogo sentimentalista e simples­
mente vocabular de uma falsa literatura. 
O sr. Clovis Ramalhete entregou-se de corpo e alma ao 
mais vago sentimentalismo. E estou certo de que o sen­
timentalismo constitue obstáculo contra a literatura. 
O sentimento é uma força da obra de arte, mas o senti­
mentalismo, não. O Bentimentalismo é a deturpação do 
seJ)timento ; é a sua corrupção, a sua doença, a sua cari­
catura. O sentimentalismo é a morte de uma obra de 
arte ; é o veneno que faz nascer morta uma: sonhada obra 
de arte. Todas as páginas de Ciranda revelam esse sen­
t imentalismo fatal. E talvez que o sr. Clovis Ramalhete 
não o tenha procurado dominar j;>Orque o confundiu com 
a capacidade de �Sentir poeticamente. Mas esta significa 
toda uma outra coisa. O sentimento poético não desce 
nunca para o pieguismo, para a banalidade, para as frases 
J o r n a l d e C r í t i c a 123 
melosas. Algumas frases que assinalei em Ciranda mos­
tram exatamente o que chamo o 8entimentalismo do sr. 
CloVii;; Ramalhete. Hepare-se nessa pequena descrição : 
"Um sol louro ( ! ) , de manhã de junho, entra pela janela, 
u rifha nas folhas das árvores, que têm um verde tenro 
apontando no alto da copa." Afim de fazer uma perso­
nagem dizer "Sou eu", o sr. Clovis Ramalhete prepara a 
frase com essa advertência : "Di tinha convoca. para a la­
ringe uma meiguice de oferta." MaiB adiante esta ima­
gem de um gato : "Arqueia o dorso e boceja sob o grande 
sol". Ainda esta frase sobre uma outra personagem : 
"havia um nimbo imaterial em seus cabelos iluminados da 
cor de mel." Outros elementos indicativos : "Mesmo a 
sua cabeça adorada de ventoinha, tudo que vem . dela é 
como um fluido morno e bom, a remexer folhas mortas 
insuspeitadas no peito de Peixoto" ( . . . ) "As figuras que 
caminham ao lado de Sílvio deslizam trêmulas - como 
letras deformando-se sob um pingo d'água.'' 
Estou certo de que nada existe de comum entre o sr. 
Clovis Ramalhete e uma figura de romancista. A sua 
estréia neste gênero foi um equívoco. Uma simples se­
dução da moda (o romance é o gênero da moda) que ele 
não quis ou não soube vencer. A sua habilidade e o seu 
gosto pela literatura encontrarão, talvez, mais tarde, uma 
melhor aplicação e um caminho mais de acordo com as 
suas tendências. Talvez que venha a se revelar proxima­
mente como um ensaísta, sobretudo se - conseguir vencer 
o s·entimentalismo que o coloca _ nas portas da sub-litera­
tura. Lembro-me mesmo que um seu estudo sobre Eça 
de Queiroz me deixou uma impressão muito favoravel das 
suas po.ssibilidades de escritor. Prefiro, pois, o ensaísta 
de Eça de Queiroz ao pretendido e malogrado roman­
cista de Ciranda. Do en.saio sobre Eça de Queiroz ainda 
hoje me le'mbro. Do "romance" Ciranda estou certo de 
qÚe não me lembrarei mais nunca, ao fechar, como o faço 
agora, a sua última página. 27 de setembro de 1941. 
CAPíTULO XI 
LITERATURA E RELIGIÃO 
T ODOS os grandes livros religiosos . �ão tambem grandes livros de literatura. Para nós, homens do Ocidente, 
é a Bíblia quelogo se apresenta com esse duplo carater 
de · livro religioso e literário. As duas correntes mais 
fortes da moderna literatura universal - -a russa e a in­
glesa - carregam no seu desenvolvimento a presença de 
assuntos e inspirações bíblicae. No exílio da Sibéria., a 
Bíblia tornou-se a leitura exclusiva de Dostoiewsky ; a 
leitura exclusiva e a leitura que determinou o sentido 
e o conteudó da sua obra. Nenhum poeta .ou roman­
cista russo - lembremos Tolstoi, como um novo exem­
plo - deixou de sentir a literatura por intermédio da 
religião. Nos países propriamente ocidentais, porem, a 
Bíblia não tem exercido uma influência tão extensa e ti.'io 
profunda como essa que se identifica c o m a vida mesma 
do povo russo. Das grandes literaturas ecidentais1 so­
mente a inglesa apresenta esta fusão de eRpírito religioso 
e espírito literário, essa influência da Bíblia com uma 
realidade fundamental da vida artística. E talvez --por 
isso é que a poesia inglesa se tornou a mais poderosa do 
mundo ; que os seus romancistas chegaram a ultrapassar 
os franceses num gênero em que estes pareciam os mestres 
supremos e inexcedíveis. Mas não se deve confundir essa 
literatura que tem a presença e a influência da Bíblia 
com uma literatura especificamente religiosa. Uma lite· 
ratura religiosa exige vocação especial, integração abso· 
luta dentro da religião, perfeita fidelidade a certos prin-
J o r n a 1 d e t: r i t i c a 125 
cípios e a certos fins que transcendem a prÓpria . �rte�, 
Uma literatura dessa espécie não pode ser exigida -d�� 
ninguem ; nem sequer pode ser ·sugerida. Mas a litera� 
tura mais ampla e mais geral que a Bíblia sugestiona 
e prov9ca - esta não é particularmente religiosa. E' 
Uma literatura, apenas, com os seus princípios e os seus 
fins na própria arte literária. Assim, não será preciso 
que um escritor seja pessoalmente religioso para que possa 
encontrar na Bíblia um� fonte de criação artística. A 
Bíblia não constitue somente uma leitura edificante, pie­
dosa e moralista. Ela constitue uma síntese de vida, um 
resumo de todas -as coisas e de todos os homens. Nada 
existe no mundo que não se possa encontrar nas suas pá­
ginas, sob uma sugestão direta ou indireta. Pois a Bíblia 
tudo - contem e tudo exprime : o Bem c o Mal, a V erdad·e 
e o Erro, Deus e o Diabo. Eis porque todos os artistas 
podem sentir a Bíblia e fazer desse misterioso volume o 
seu livro predileto. Ela revela argumentos e assuntos para 
todo.s os homens, mesmo para os partidários do Diabo. 
André Gide não abandona a Bíblia, a Bíblia não sai das 
suas mãos, o que não impede que esteja sempre mais 
perto do Diabo do que de Deus. A Bíblia não limita, 
.como se vê, a liberdade do artista. Ao contrário : ex­
cita esta liberdade em todas as direções, as divinas como 
as diabólicas. Num plano propriamente literário, o que 
ela representa é um .potencial de vida artística, de 
sugestão criadora, de impulso para a imaginação. Pode­
mos dizer que todos os gêneros de poesia se ençontram na 
Bíplia, o que talvez não impressione muito por se tratar 
de um livro essencialmente poético. Impressiona muito 
mais a constatação de que tambem contem todas as formas 
de romance. Nas suas páginas e nos seus episódios serão 
encontrados o romance regionalista, o naturalista, o psi­
cológico, o introspectivo, o ideológico. Ela não é só um 
126 A l v a r o L i n s 
grande poema, mas um conjunto variadíssimo de gran­
des romances. 
_ 
Em todos os paises que não possuem uma tradição 
bíblica, o gosto e o costume da leitura da Bíblia, a lite­
ratura religiosa revela-se fragil, e a literatura de ordem 
geral apresenta certa.s deficiências e limitações. Este é o 
caso da �iteratura francesa, na qual o logicismo e o racio­
nalismo substituem o espírito poético de aventura e 
sonho, tão característico dos povos influenciados pelo es­
pírito bíblico. Os momentos culminantes de literatura 
religiosa na França - ou maia exatamente : de obras li­
terárias sugeridas pela religiã'o - são excepcionais e se 
encontram em figuras isoladas, como um Pascal, um Bloy, 
um Bernanos. Mais uma vez, ainda neste caso, é da lite­
ratura francesa que se poderá aproximar a literatura hra· 
eileira. Raroa são os nossos escritores que conhecem a 
Bíblia, a1guns deles mantendo o preconceito de que essa 
leitura implicará compromisso com a religião. Os pró­
prios católicos, em geral, só a conhec_em superficialmen­
. te ; a Bíblia nada lhes sugere de particular, no sentido 
de constituir uma força para a sua vida literária. O re­
lmltado é que aão muito frageis, quase inexistentes, entre 
nós, as relações capazes de ligar a literatura e a religião. 
Ou encontramos o preconceito de uma incompreensão, ou 
encontrall)os uma ligação em bases falsas, gerando uma 
literatice de beatos e de devotos. O mau-gosto artístico, 
o 
·
sentimentalismo piegas, o primarismo intelectual, cons­
tiutem os sinais mais caracte:rísticos da literatura religiosa 
no Brasil. E' certo que desde tempos mais antigos -
o caso de Cayrú, por exemplo - apareceram, entre nós, 
alguns pensadores, críticos e jornalistas que salvaram o 
prestígio das letras religiosas. Alguns escritores têm se 
constituido mesmo as figuras mais inteligentes e maia re­
presentativas da doutrina católica no Brasil. O vazio de 
uma união entre a literatura e a religião, como estou co-
J o rna l d e C r í t i c a 127 
mentando, vai se situar no caso dos gêneros de ficção, no 
caso da poesia e do romance. Tanto em um como _em 
outro, nenhuma obra consideravel havia se construido, 
até há pouco, dentro do espírito religioso. Somente al­
gumas páginas isoladas que não serv�m como argumento 
em contrário ; que somente servem como indicação da 
existência de um novo caminho. 
Mas será preciso lembrar que a literatura de ins­
piração religiosa não deve ser intencionalmente procurada, 
porque, então, seriam todos negativos os seus resultados. 
Particularizando o problema para o plano de. cristianis­
mo, o que se deve fazer, logo de início; é a sua colocação 
nestes termos : a impossibilidade de esquecer - ou de 
mistificar - o que é uma arte ctistã. Este tema ocupa 
todo um capítulo especial no volume Art e scolastique, 
do fisósofo J acques Maritain. O que significa, pois, uma 
arte cristã? O que se exige de um artista nessa espécie 
de arte ? Duas condições em harmonia, explica Maritain : 
que seja um artista e que !l.eja um cristão. Um artista 
cristão realizará naturalmente, sem qualquer esforço, uma 
arte cristã. E lembra Maritain a simplicidade e a com· 
plexidade, ao mesmo tempo, dessa misteriosa harmonia 
de condições. O que se torna mais frequente, no entanto, 
é o desencontro : o artista que não é cristão e o cristão 
que não é artista. E qualquer esforço para uma ligação 
artificial conduz sempre a um resultado negativo. O obs­
táculo mais habitual é o do cristão que não é artista e 
que tenta realizar 11 ma obra de arte. O objeto que cons­
trói, no impulso desse equívoco, nem será cristão nem 
será artístico. Um católico, principalmente, nunca deverá 
tentar uma empresa dessa ordem, a empresa de uma arte . 
cristã, sem que se sinta verdadeiramente um artista. Nada 
deve tentar dentro da arte com finalidades de apostolado 
ou de propaganda. Pois a arte não serve nem para uma 
coisa nem para a outra ; e o que se_ verifica, alem disso, 
128 A 1 v a r ·o L i n .s 
é que Ira constituir um argumento de contra-propaganda 
e de contra-apostolado. A história das letras católicas no 
Brasil está cheia deSI'le equívoco doloroso. Nos nossos 
dias, no entanto, já se notará uma compreensão mais ver­
dadeira e , uma sensibilidade mais alerta nesse plano em 
que se podem unir o espírito literário e o espírito reli­
gioso. Eis porque acho da maior importância uma certa 
tendência da literatura moderna que se concentra na ina­
piração religiosa, buscando diretamente a Bíblia e os 
grandes temas poéticos da Igreja. Assim é que alguns poe­
tas modernos - como os srs. Augusto Frederico Schmi.dt, 
Murilo Mendese Jorge de Lima - estão realizando eEaa 
harmonia do espírito religioso com o espírito literário 
que vai criar a obra de arte cristã. A poesia I'estaurada 
em Christo - na fórmula que se tornou famosa dos srs. 
Jorge de Lima e Murilo Mendes - não representa só um 
acontecimento religioso, mas tambem literário. Alcançou 
uma repercussão que não será possível desprezar, meBmo 
fora de qualquer cogitação religiosa ou à margem de um 
julgamento sobre o seu valor intrínseco ; e determinou ura 
sentido novo, um sentido grave e solene na maneira de 
olhar e .sentir certos temas poéticos. Em todas as regiões 
brasileiras surgem hoje alguns novos poetas que se colo­
cam dentro dessa inspiração bíblica e cristã. Para muitos 
será uma moda como qualquer outra ; uma fórmula de 
imitação que a nada conduzirá. Para outros, porem, será 
um instrumento de realização artíêtica, um caminho para 
expansão da personalidade. Estou certo que este é o 
caw do sr. Wilson Woodrow Rodrigues, cujos versos (A 
sombra de Deus, Rio, 1941 ) impressionam muito o leitor, 
menos pelo que revelam como poesia e mais pelo que 
indicam a respeito da personalidade do poeta. Todo o 
livro - nos seus temas, nas suas invocações, no seu .sen­
timento - revela-se como a expressão de um encontro 
dramático : o encontro do adolescente com a religião e 
J o r n a l d e C r í t i c a 129 
com Deus. O livro torna-se, assim, o depoimento de um 
estado de eapírito que é hoje muito representativo das 
novas gerações. Nota-se porem, que não atingem a mesma 
altura o sentimento religioso e o sentimento artístico. A 
sombra de Deus representa mais uma oração, uma atitude 
humana, do que uma obra de arte. Verifica-se que o 
autor - por ser, talvez, ainda muito jovem - não con­
seguiu transmitir o seu eentimento religioso dentro de uma 
forma estética, que lhe fosse correspondente em força, vi­
bração e beleza. Por isso, guardo A sombra de Deus, mas 
;;obretudo para esperar o desenvolvimento da personali­
dade do sr. Wilson Rodrigues, cujo nome retenho lambem 
na expectativa desse futuro encontro. Esse jovem poeta 
apresenta uma certa capacidade filosófica e uma certa . in­
teligência em profundidade que me levam a esperar dele 
uma obra qualquer de significação e importância, embora 
esteja inclinado a conjeturar que não há-de ser no plano 
da poesia. · ' 
Quando teremos no romance o influxo de uma grande 
corrente religiosa como está sucedendo com a poesia mo­
derna ? Por enquanto o que estamos vendo é uma vaga 
utilização de frases, de títulos alegóricos, sem uma 
realização correspondente. Este é um indício, no en­
tanto, que merece ser devidamente assinalado. Vários 
rümances modernos, de fontes e valores desiguais - estou 
me lembrando, ao acaso, de alguns livros dos srs. Otavio 
de Faria, Marques Rebelo e Erico Verissimo - apresentam 
no seu frontespício frases bíblicas que se relacionam com 
os seus autores ou com os seus personagens. E màis de 
cidido ainda nesse caminho mostra-se o sr. Tasso da Sil­
veira, ao estrear agora como romancista (Só tu voltaste?, 
Porto Alegre, 1941 ) . 
O sr. Tasso da Silveira, como se sabe, é um autor que 
já publicou vários livros de versos e de ensaios, exercendo, 
há muito anos, uma atividade literária entusiástica c va� 
130 A l v a r o L i n s 
riada. Uma atividade que ee tem desenvolvido, bem ou 
mal, sob o signo do cristianismo. Ele tem afirmado 
vária!' vezes a catolicidade do seu espírito e a sua fideli· 
dade, em arte, aos princípios e aos temas inspiradores da 
Igreja. Mas não se deve confundir um sentimento reli­
gioso, que pode ser de ordem pessoal ou de ordem esté­
tica, com uma expressão artística, que, por sua vez, pode 
ser religiosa ou agnóstica, indiferentemente. O sr. Tasso 
da Silveira se apresenta como um exemplo típico para 
essa diferenciação. Ele se acha animado de um senti­
mento religioso mas que se desmorona todo p'orque não 
encontra uma correepondente expressão artística. Como 
professor de catecismo, por exemplo, o sr. Tasso da Silveira 
poderia conseguir resultados para a Igreja e para a sal­
vação das almas ; como escritor, porem, a sua obra nem 
ee apresenta artística nem cristã, sendo ainda possível 
que ele encontre dificuldades no Reino dos Céus, ao 
prestar contas do seu eqtúvoco entre literatura e religião, 
do exemplo em que se constituiu como um escritor sem 
vocação, usando e abusando do privilégio de falar do alto 
dos temas da Igreja . . . 
Alem do seu título, com muito esforço ligado a um 
episódio especialmente preparado para esse fim, o ro­
mance Só tú voltaste? nada apresenta de bíblico nem de 
religioso. E não nego ·o carater religioso do livro porque 
os personagens ·estejam colocados num sistema de vida ma­
terialista ou agnóstica. Aó contrário : uma situação dessa 
ordem, nas mãos de um romancista da categoria de Mau­
riac, por exemplo, iria determinar um conflito moral e 
psicológico que seria a característica católica do romance. 
Nas mãos do sr. Tasso da Silveira, porém, a situação não 
transcende nunca o carater episódico. Toda ela se de­
senvolve num plano pueril e primário de narração. lma· 
gino no entanto o que deve ter sido a intenção do sr. 
Tas1:1o da Silveira : a fixação de algumas desgraçadàs vidas 
J o r n a l d e C r í t i c a 131 
humanas que se cruzam diante de um homem católico que 
vai salvá-las, ou que, pelo menos, vai tentar essa empresa. 
Esse homem é o personagem ·José Maria, diret�r de um 
instituto de artes gráficas ; as vidas humanas são os outro.s 
personagens, os operários desse instituto. Mas nem Joeé 
Maria existe, nem existem os operários. Quero dizer : oe 
personagens do sr. Tasso da Silveira nada mais são do que 
simples nomes, sem qualquer realidade literária. Acom­
panha-sé o romance, página por página, dentro da mesma 
monotonia : nenhuma vida humana, nenhuma situaçlo 
forte, nenhuma cena original. José Maria fica numa ati· 
tude de espectador, parecendo esperar que os outros per­
sonagens provoquem a sua ação ; os personagens, por sua 
vez, parecem aguardar a ação de José Maria. O que acon­
tece, no romance, çresenta um carater tão artificial e 
tão faho que se torna inacreditavel. Num sentido rigo­
rosamente literário e romanesco, não acontece nada. E' 
que o romance, na verdade, não existe nem existiu nunca, 
fora da intenção do autor e da sua vontade de escrevê-lo. 
Querem ver as duas situações que logo destroem, que logo 
devoram o sr. Tasso da Silveira como romancista ? Não 
sabe fazer viver os personagens ; não sabe conduzir 01 
acontecimentoP romanescos. Lança os personagens numa 
determinada po�ição ; e eles permanecem imoveis atravéa 
.-le duzentas páginas, com uma simples aparência de mo­
vimento. Os a contecimentos, por sua vez, apresentam-se 
tão destituídos de força íntima que acabam por trana­
mitir uma impressão de inexistência. 
A expressão literária, como sempre, acha-se à altura 
do contendo que está revelando. Pois o estilo não é s6 
o homem, mas, sobretudo, o assunto que vai exprimir. 
Que expressão literária, que expressão estilística se pode­
ria esperar de um romance como Só tu voltaste? A 
expressão que se lhe ajusta como uma luva. Em geral, 
�sta expressão é � mais çonve�ci()nalística �e s� possa Ími!J• 
132 A l v a r o L i n s 
gínar ; um estilo de todo o mundo que só atrai a atenção"' 
depois de muito tempo, pela força do cansaço e da mo- · 
notonia. Prefiro, contudo, esae conV'encionalismo aos en.-, 
saios de originalidade que. o alvoroçam de vez em quando . . 
Nestas ocasiões, o sr. Tasso da Silveira ora se inclina parat 
a vulgaridade, quando pretende ser simples e natural, ora· 
se inclina para o preciosismo, quando pretende ser eru­
dito ou brilhante. Em ambos os casos, inclina-Be para o 
mau·gosto literário. Imagine-se que o· sr. Tasso da Silveira 
ainda fala de uma "ígnea ,cascata coruscando na sombra" 
( página 16) e de um "filão secreto de simpatia incoer­
cível" (p . 27) . Vou ainda transcrever, sem qualquer .co­
mentário, dois trechos que· definem para sempreum autor 
e o seu estilo. Lidos no texto do romance a surpresa do 
leitor ainda seria mais forte, porque se acham em páginas 
e situações que não os explicam nem os justificam. José 
Maria está examinando o trabalho de um operário, quando 
o romancista lhe atribue essa impressão : "Era uma rea­
lização. Ao mesmo tempo, a mais lúcida pureza e a mais 
extrema riqueza de linhas. Os florões, as · folhas, as hastes 
estilizadas entrelaçavam-se em coleios ageis, em curvas 
inesperada,., num barroco tropicalíssimo, porem delicadq, 
e leV'e como uma renda. Era algo que continha, em su­
gestões fugitivas, o gótic-o puro e o manuelino, mas para 
ultrapassá-los, para mergulhar outra vez no oceano das· 
formas inumeraveis, num primeiro movimento de retorno 
do espírito às fontes da natureza." ( p. 43 ) . E :mais adian­
te, -sob o pretexto da música de Beethoven, é o mesmo 
desembestado verbalismo que se afirma : "E vieram os 
coros. As vozes humanas - claras, líquidas, frescas -
ou prQfundas, antigas, nasceram como um milagre. Nas­
ceram subitamente, do fermento sonoro das vozes dos ins­
trumentos, como de u�limbo genesíaco. Mas o espírito 
já os adivinhava nesse liinho. Já os sentia pulsar nesse 
limbo, em dor de hTealização, em �nsiedade ele existir, E 
J o r n a l d e C r í t i c a 133 
quando elas, enfim, libertas, alaram-se triunfalmente no 
cântico à alegria, a iluminação subitânea fez ressaltar, 
pelo contraste, na lembrança, o longo apelo interior dos 
instrumentos : o longo apelo doloroso em que essas vozes 
já se continham e de que haviam nascido por um prodí­
gio de transubstanciação." ( p. 60-61 ) . 
Mas devo acrescentar, para ser justo, que o romance 
Só tu voltaste? se acha perfeitamente de acordo com toda 
a obra anterior do sr. Tasso da Silveira. Nem os sews 
versos nem os seus ensaios são superiores a estas páginas 
que pretenderam uma categoria de romance. Toda a sua 
obra se desenvolve dentro de um mesmo espírito que eu 
cliamaria vago e nebuloso. Muitas palavras, muitas in­
tenções simpáticas, uma permanente boa-vontade. Mas 
infelizmente a literatura não se faz com · boa-vontade 
e intenções simpáticas. E daí a desproporção, no sr. Tasso 
da Silveira, entre a sua vida literária e a sua obra lite­
rana. Qualquer ·confusão nesse sentido será um equívoco 
lamentavel. Mas é o que tem sucedido no caso do sr. 
Tasso da Silveira. A sua vida literária está cheia de en­
tusiasmos, de iniciativas, de realizações ; a sua obra lite­
rária, porem, não tem bastante importância e bastante 
significação dentro da literatura. A sua vida literária 
pode ser estimada e admirada pelos seus amigos e corre­
ligionários ; a sua obra, no entanto, é um quase nada que 
logo se apaga na nossa lembrança. 
6 de dezembro de 1941. 
CAPITULO XII 
DOIS NATURALISTAS : ALUIZIO AZEVEDO 
E JULIO RIBEIRO 
C REJO que foi Amiel quem explicou com mais precisão o mecanismo dos movimentos literários que a nossa 
necessidade de síntese e de compreensão subordina ao ti· 
tulo de escolas. O ponto de vista de Amiel é o da for­
mação das escolas através de movimentos que se repetem 
e se continuam, com ampli açõe11 e novos aspectos. Quais­
quer que sejam as suas nuanças e a.s suas dcnominaçõc�;�, 
e!'tes movimentos são apenas dois : idealismo e naturalismo . 
O que quer dizer : uma literatura i dealista, ou uma li­
teratura naturalista. Desde as primeiras manifet'taçõcs 
artísticas que estas duas tendências se realizam, se alter­
nam, se interrompem, se reatam e se continuam. E' certo 
que não com uma simplicidade esquemática, mas com 
aquela complexidade que é a caracteríetica de todos os fe­
nômenos humanos. E tambem é certo que não !le pro­
cessam arbitrariamente, mas, de um modo geral, em har· 
monia com ideais políticos, sociais, culturais� ao lado dos 
quais seguem, paralelamente, os ideais literários e artís­
ticos. Quando a literatura parece em choque �om o estado 
de vida de uma determinada época, é que esta época já 
e.e acha em falência : a literatura está anunciando um novo 
momento, do qual se apresenta sempre como uma espécie 
de imagem. Jean J acques Rousseau é bem uma imagem 
antecipada da democracia no século XIX, como Nietz�che 
é uma imagem antecipada dos fascismos do século XX. 
J o r n a l d e C r í t i c a 135 
O romantismo e o naturalk.mo do século pas�a.do do­
cumentam, com mais evidência do que quaisquer outros 
movimentos, esta linha de considerações que estamos des­
dobrando. O romantismo se formou em harmonia com 
uma revolução política e social que da França se estendeu 
pela Europa e por todo o mundo ocidental. O que a 
R evolução Francesa significou contra a tirania política do 
E.stado, o romantismo significou contra a tirania literária 
do classicismo. · Em ambos os casos é sob o signo da liber­
dade que os fatos e as obras se levantam. Como é o 
signo d a liberdade que a literatura hoje reivindica, anun­
ciando o advento de um estado de libertação contra a 
tirania e o absolutismo doa sistemas fascistas. O que houve 
de idealístico, nos fins do século XVIII e no prinCÍpio do 
século XIX, foi um traço comum - tanto da vida política 
como da vida literária. E basta lembrar a enorme in­
fluência de Napoleão - um romântico em luta contra 
o realismo inglês - sobre a literatura que se seguiu ime­
diatamente ao seu exílio. E' uma influência que não 
está ainda suficientemente estudada e definida mas que 
pode Ber observada, sobretudo, nos dois maiores roman­
cista_€ dessa época. Porque não é só a obra de Stendhal 
que está cheia do nome e da revolução de Bonaparte. A 
de Balzac, tambem. Cheia, embora, menos do nome do 
que do espírito de Napoleão, cuja ambição universill foi 
a mesma que animou o criador da Comédie humaine. 
Mas a revolução vitoriosa atingiu depois uma situação 
de estabilidade e· de paz. Sobre as destruições dos an­
tigos regimes construiu-se um regime novo, já pronto para 
esperar as futuras forças revolucionárias que iriam se 
atirar conrta ele. A desordem romântica viu-se substi­
tuída por um sistema de ordem. E o romantismo lite­
rário perdeu, substancialmente, o seu sentido e a sua re­
percussão. O naturalismo veio, então, substituí-lo como 
uma expressão da nova sociedade. Com efeito, o natura-
136 A l v a r o L i n s 
lismo estético e literário é a expressão correspondente ao 
sistema de vida que a Revolução Francesa transfórmara 
de um sonho em uma realidade aproximada. O sonho 
fo:r,a o romantismo, e a realidade vinha a ser o natura­
liE<mo. 
Uma impressão geral que o naturalismo transmite é 
precisamente esta de segurança, de estahilidade, de sufi­
ciência, de euforia, de satisfação. Os mesmos sentimentos 
que foram oa dominantes na segunda metade do .século 
XIX. O mundo, na verdade, parecia tão tranquilo, que 
as inquietações religiosas, filosóficas ou lüerárias p assaram 
a constituir uma impertinênCia. Tudo se poderia resumir 
neste lema que as inteligências se impunham como li­
mites intransponíveis : nada alem do -que é visível e do 
que é sensível. E nenhum lugar exis tia mais p ara a me­
tafísica, a religião e o romantismo. O po.sitivismo torna­
-se a ú�Iica palavra definidora � explicativa. Positivismo 
filosófico, positivismo político, positivismo estético. Menos 
do que um criador, Augusto CÕmte foi so)netudo um in­
térprete de certas fórmulas já vitoriosas e dominantes. A 
sua filosofia é a sistematização destas fórmulas. Era na­
tural, pois, que a ciência positiva adquirisse um prestígio 
absorvente e totalizante. A literatura não escapou aos seus 
tentáculos. Tornou-se uma outra fórmula do positivismo 
do século. Tanto Flaubert como Zola - quaisquer que 
sejam as diferenças ideológicas e artísticas que os separam 
- se achavam empolgados pelo ideal de fazer do ro· 
mance uma obra tão exata e tão poeitiva quanto a ciência. 
Claude Bernard pairava sobre os livros de literatura como 
um mestre e um modelo. E' preciso notar, porem, que 
item sempre se correspondem e se ajustam ,--- nos natu­
ralistas - o ideal que sustentavam e as obrasque reali­
zaram� Nos melhores deles o temperamento artístico ui-
J o r n a l d e C r í t i c a 137 
trapassaV'a os limites contidos nas fórmulas puramente 
cerebrais. Salvavam-se com essa aparente traição. )(_ 
No Brasil os fenômenos literários apresentam-se com 
maior simplicidade. E não será preciso acrescentar 
que temos seguido fielmente os processos e os modelos 
europeus. Coincidiu que atingíssemos - através de algu­
mas figuras isoladas, as mesmas figuras isoladas que ainda 
hoje são as que determinam os acontecimentos da nossa 
história, em todos os setores - uma certa maturidade li­
terária, precisamente quando o _romantismo se encontrava 
numa fase de plenitude. Todos os nossos historiadores são 
unânimes em afirmar que a nossa emancipação literária 
começou pelo romantismo. Colocando certas dúvidas -
que esta ocasião não é a mais própria para desenvolver -
sobre a palavra "emancipação", não coloco, no entanto, 
nenhuma dúvida sobre a coincidência feliz que representa, 
para a nossa literatura, este começo por intermédio dos 
ideais românticos. E' que nenhum outro movimento de 
idéias se identifica mais exatamente com a nossa reali­
dade. Sobretudo a nossa poesia - que nunca se poderá 
desprender desse lirismo · que é, tanto para Portugal como 
para o Brasil, mais uma raiz do que propriamente uma 
aquisição literária - encontra no romantismo os seus 
maiores recursos de realização. E, como se sabe, o ro­
mantismo foi no Brasil um movimento mais de poesia do 
que de qualquer outro gênero. Um movimento quase que 
exclusivamente poético, poderíamos acrescentar. No en­
tanto, as necessidades e os desenvolvimentos da nossa lite­
ratura no sentido da prosa vieram coincidir com a vitória 
do naturalismo na Europa. E o naturalismo baixou tambem 
sobre as nossas letras na segunda metade do século XIX. 
Sucedeu, porem, que muitos dos nossos naturalistas se 
138 A l v a r o L i n s 
conservaram, ou por -temperamento ou por formação, bas­
tante ligados ao romantismo. Talvez que seja possível 
dizer que o nos.so naturalismo é um romantismo pelo 
avesso. Romântico da filosofia, .um Tobias Barreto. Ro­
mântico da crítica, um Sylvio Romero. Romântico da po­
lítica, um Ruy Barbosa. E outro que em momento ne­
nhum perdeu as suaa características românticas foi Aluizio 
Azevedo, sem que deixasse, ao mesmo tempo, de ser o 
representante mais típico e mais importante do natura­
lismo brasileiro. 
I - ALUIZIO AZEVEDO 
Aluizio Azevedo nasceu no Maranhão em 14 . de abril 
de 1857 (José Verissimo · data o seu nascimento de 1858 ) , 
em São Luiz, no seio de uma gorda família de comer­
ciante português. Durante toda a vida sustentou diante 
da sua província um sentimento bastante complexo : uma 
grande ternura e uma grande raiva. Não era propria­
mente ódio. Era raiva, e parece que nascida de um des­
peito que o roeu para sempre : o de não ter obtido no 
Maranhão o sucesso e os aplausos que desejava mais do 
que de qualquer outra parte. MU:ito do seu sentimento 
em face do Maranhão, Aluizio o· exprimiu através de Rai­
mundo, o personagem de O mulato. Raimundo encon­
trou, em São Luíz, múitos motivos amaveis de viver, in· 
clusive o amor. A sociedade de São Luiz, porem, repeliu-o. 
E esta repulsa transformou o seu sentimento de amor num 
sentimento de raiva. O mulato ( que sob outros aspectos 
nada tem de autobiográfico ) é a história do sentimento 
de Aluizio Azevedo em face da sua província. Num pre­
fácio para a t�rceira edição deste livro, o romancista 
apresenta a sua amargura sem nenhuma cerimônia. Depois 
de falar, com muita ênfase, do sucesso do livro, da ra­
pidez com que se vendiam os seus exemplares, da crítica 
J o r n a l d e C r í t i c a 139 
entusiáotica de um Capistrano de Abreu ou de um Tobias· 
Barreto, não se esquece de juntar, a tantos nomes famosos, 
a opinião de um pobre joinalista maranhense que o ata­
cara, aconselhando-o a deixar a literatura pela lavoura. 
"A lavoura, meu estúpido ! à lavo�ra ! Precisamos de 
braços e não de prosas em romances ! Isto sim é real. 
A agricultura felicita os mdivíduos e enriquece os povos ! 
A foice ! E à enxada ! Res non verbal" - eis um pe­
queno exemplar dos inofensivos ataques com que um vago 
jornalista se atirava contra Aluizio. Mas Aluizio sofria 
de"medidamente nestes ataques, porque vinham do Ma­
ranhão, para onde se volvia a su;:t maior ambição de glória. 
A 'verdade, porem, é que o romancista não operou 
nenhuma transigência, nem intelectual nem moral, para 
se conciliar com a sua província. Sempre se· ,colocou 
diante dela, dos seus costumes, dos seus preconceitÓs, numa 
atitude de combate. Uma atitude que tudo estimulava : 
o seu temperamento, a sua formação romântica da moci· 
dade, a sua educação li terária no naturali smo. Uma ati­
tude ·que o meio social ainda mais exacerbava com a indi­
ferença ou com a reação. 
Como em todos os naturalistas, o espírito crítico ocu· 
pa na obra de Aluizio Azevedo um papel fundamental. 
Começou desde a mocidade seu destino de inconformista. 
O seu primeiro gesto nesta direção é o de rebelar-se con­
tra a carreira comercial que o pai estava lhe preparando. 
i'az, por isso, a sua primeira viagem ao Rio, onde se de­
mora um ano ( 1876-1877 ) como ilustrador de revistas. 
A maneira de Raimundo, em O mulato, volta depois ao 
Maranhão para recolher a herança de seu pai. Informa 
o sr. Nogueira da Silva que nesse tempo Aluizio era uin 
dandy. "Tinha, então, vinte anos : era delgado, elegante, 
lindo. Vestia-�e bem. Nas ruas, na eociedade, nos bai­
les, seu convívio era disputado com interesse pelas suas 
140 A l v a r o L i n s 
formosas patrícias." O retrato exterior, neste ponto, cô'' 
mo em tantos outros, se assemelha muito com o de o;eú 
personagem Raimundo. Mas o dandismo não haveria de 
ser a nota dominante de Aluizio Azevedo. As suas ativi­
dades se ampliam no domínio da literatura e das idéias. 
Em 1879 publica o seu primeiro romance - Uma lágri­
de mulher - na pior maneira romântica, .como notou 
José V erissimo, e inteiramente destituído de valor e de 
importância. Exercita, ao me.smo tempo, o seu espíri to 
crítico em debates políticos e religiosos, através de A 
Pacotilha e O Pensador. Lutas ferozes contra o clero e o 
governo, cuja repercuesão e escândalo se podem imaginar, 
pensando no que seriam numa cidade provinciaJia de 
1880. Esta data tambem representa na vida de Aluizio 
o seu primeiro grande episódio : O mulato - cuja pri­
meira edição é de 1881 - o mesmo ano em que animado 
por um sucesso rara1nente repetido nas nossas letras veio 
se fixar no Rio de J aneiro. E começa, então, para Alui­
zio Azevedo uma intensa atividade literária, que se inter­
rompeu para sempre, em 1894, com a sua entrada para os 
serviços diplomáticos. Escreveu todos os seus livros- na 
mocidade, dos vint� aos trinta e sete anos. Até esta ida­
de foi exclusivamente um homem de letras, sem qual­
quer emprêgo ou ocupação diferente, circunstância que 
sempre fazia questão de alegar com nm sentimento de 
orgulho. Parece-me realmente que representa, no nosso 
meio, o primeiro caso de um escritor vivendo do seu 
ofício. O sr. Rodrigo Octavio, que o conheceu, conta nas 
suas Memórias como Aluizio trabalhava nas sU:as salas de 
um velho edifício perto do Campo de Santana, com a 
mesa cheia de bonecos que desenhava para ter uma sen­
sação física e direta dos seus personagens. Estava pos­
suído do gosto e do respeito da sua arte, dentro da qual 
levantara o plano de uma obra romanesca que visava toda: 
a vida nacional, nos seus aspectos mais diversos. O que 
J o r n a l d e C r í t i c a 141 
haviam realizado Balzac e Zola ia-se tornando um sonho 
de todos os naturalistas. No caso de Aluizio - um pou­
co por deficiência do romancista e um pouco por defi­
·ci ência ao meio social - o sonho ficou muito acima de 
tudo o que ele pôde fazer. Tambem as atividades de 
Aluizio Azevedo - atividades exclusivamente literárias, e 
portanto excessivas e apressad�s - impediam que rea­
lizasse uma obra deacordo com o seu plano. Não se 
tratava nem de leviandade, nem de improbidade. Alui­
zio tinha a conciência da verdadeira literatura e sofria 
desesperadamente por senti-la fora das suas mãos e das 
suas possibilidades. Os seus a:1i:tigos referem a angústia 
com que se via obrigado a escrever, desmedidamente, li­
v-ros sobre livros, sem que estivesse fiel à vocação ou aos 
deveres essenciais do seu ofício. Quase todos os seus ro­
mances foram e:critos para os folhetins de imprensa, obe­
decendo a uma necessidade toda ligada à sua profissão 
jornalíatica. Muitos deles, por isso, sãô hoje indignos 
de leitura. Mesmo os melhores revelam os prejuízos de 
uma composição tumultuária e de prazo fixo. E talvez 
que da insatisfação e da revolta com as quais escreveu os 
seus livros é que tenl�a nascido em Aluizio Azevedo o 
rompimento .com a literatura e o seu de�dem pelo antigo 
ofício, depois da sua nomeação para os consulados no 
estrangeiro. O sr. Rodrigo Octavio, que o visitou na Itá­
lia, diz que o romancista ainda se achava animado de cer­
tos planos d:e trabalho literário para a sua volta ao 
Brasil. O que se sabe, porem, é que, de passagem pelo 
Rio, quando ia assumir o consulado brasileiro em Bue­
nos Aires, Aluizio Azevedo pediu aos seus amigos que 
não lhe falassem sequer de literatura, atividade que ha­
via riscado para sempre da sua vida. E durante vinte 
anos de diplomacia - com exeção do ainda inédito ]a­
pão, livro de notas de viagens - nada resta para mostrar 
que não era sincera esta sua disposição. 
142 A í v a r o L i n s 
Contudo, bastarão três dos seus livros - O mulato, 
Casa de pensão e O cortiço - para as#egurar uma pre­
sença inalteravel de Aluizio Azevedo na literatura brasi· 
}eira. Escrito no Maranhão, O mulato representa uma 
espécie de crônica da vida provinciana, nos seus aspectos 
morais e sociais mais característicos. Diante das paisa• 
gene, das festas populares, dos lugares pitorescos, Afuizio 
Azevedo se coloca numa atitude de aceitação e de amor. 
Mas diante dos homens, em geral, a sua atitude é de crí­
tica e de combate. De qualquer forma, este seu romance 
de mocidade - como todos os outros posteriores - con­
serva um valor documental ·de primeira ordem. Estou 
certo de que nenhum outro romancista, como .Aluizio Aze­
vedo� se presta tanto .como documento pa.ra os sociólogos 
e os historiadores que venham a estudar e definir a so­
ciedade provinciana e metropolitana do Segundo Império. 
Na sua época, ninguem descreveu melhor do que Alui­
zio os serões familiares, as suas conversas, as suas preo­
cupações. Ninguém o ultrapassou na capacidade descri­
tiva de certos grupos sociais, de certas paisagens, de cer­
tas festas pQpulares. A sua página de O mulato sobre 
uma noite de São João provinciana é uma pequena obrá-
• prima. E' �do uma documentário da vida provinciana 
que varia das preocupações religiosas e políticas até as 
situações e objetos mais insignificantes. Ficamos sabendo 
os detallies mais pitorescos e característicos a respeito dos 
casamentos, das doenças, dos remédios, dos hábitos, dos 
tiques, dos preconceitos da vida pl"ovinciana. O olho de 
Aluizio Azevedo parece conter a ambição de tudo ver, 
de tudo fixar. O que faz, no entanto, o centro deste ro­
mance é um problema humano e social : o da adaptação 
do mulato na sociedade brasileira. Aluizio Azev·edo ele­
vou o episódio romântico de um namoro entre um mulato 
e uma menina branca para o plano genérico das cogi­
tações sociais. Realmente, o caso de Raimundo repetia-
J o r n a l d e C r í t i c a 143 
-se por toda p arte, no Brasil. O caso do mulato que Ja 
não é da raça negra e que ainda não pode ser da raça 
branca ; que permanece indefinido numa sociedade hesi· 
tante entre preconceitos raciais e o fato concreto da com­
pleta mis�egenação. A sua inteligência, a sua educação, 
a sua elegância encontram obstáculos muito firmes nos 
grupos sociais que se sustentam de uma falsa tradição de 
pureza étnica. 
Era uma oportunidade tambem para que Aluizio se 
voltasse para o problema da escravidão, que nesse tempo 
começava a ser objeto de uma propaganda em grande 
estilo. Os abolicionistas · encontravam nos literatos os 
eeus melhores aliados. As peças literárias de Castro Al­
ves continham um poder de comoção à altura dos discur­
sis de Joaquiin Nabuco. Um poder de comoção nada des­
prezível traziam tamhem os livros de Aluizio Azevedo. 
Em todos eles - não esquecendo, principalmente, a fi­
gura e a história de Bertoleza em O cortiço - encontra· 
mos um sentimento de protesto e de revolta contra o sis· 
tema escravocrata. O que deveria representar um ele­
mento de muito êxito e de muito sucesso, numa socieda­
de que reagia, em face da literatura, quase que exclusiva­
mente pela sensibilidade. Em O mulato, a melancólica 
existência da mãe de Raimundo constitue um instrumento 
de propaganda contra a escravidão. O excessivo senti­
mentalismo destas páginas representa hoje uma fraqueza 
do romance, mae deve ter representado uma força podro­
sa por ocasião do seu aparecimento. Aliás, logo nas pri· 
meiras páginas de O mulato, a velha Maria Barbosa é 
um pretexto para que se tenha a impressão do tratamen· 
to dos escravos nas mãos de uma viuva e nervosa e estú­
pida. Num mesmo trecho o romancista define um cara­
ter pessoal e um comportamento social : - "Era uma 
fúria ! Uma víbora ! Dava nos escravos por hábito e por 
gosto ; só falava a gritar e, quando se punha a ralhar, in· 
144 A l v a r o L i n s 
comodava toda a vizinhança. lnsuportavel ! Maria Bar­
bosa tinha ·o verdadeiro tipo das velhas maranhenses 
criadas na fazenda. Tratava muito dos avós/quase todos 
portugueses ; muito orgulhosa ; muito cheia de escrúpulos 
de sangue. Quando falava nos pretos dizia os sujos e, 
quando se referia a um mulato, dizia o cabra." 
O estudo do mulato propriamente apresenta-se, neste 
romance, com muito mais firmeza e com muito mais 
objetividade. Antes de tudo, Aluizio soube compreender 
que a posição do mulato, naquele momento, era uma cri:­
se e nada tinha de definitiva. Uma sociedade em forma­
ção não poderia 'por muito tempo impedir a ascensão e 
a integração de um tipo étnico tão animado de vitalidade 
e de potencial renovador. E o romance de Aluizio já 
prevê por que meio o mulato penetrará na sociedade dos 
brancos ; já prevê que será por intermédio da mulher 
branca. O mulato passou a representar, para a mulher 
branca, a mesma ·sedução que a mulher negra represen­
tara p ara o português. Uma transposição muito lógica, 
que vinha no próprio sangue. Este trecho de O mulato 
é, por isso, um trecho histórico por antecipação : "Não 
lhe chegava às mãoB um só convite para baile ou para 
simples sarau ; cortavam muita vez a conversação quando 
ele se aproximava ; tinham escrúpulo em falar na sua pre­
sença de assunto.s aliás inocentes e comuns ; enfim - iso­
lavam-no, e o infeliz, convencido de que era gratuita­
merÍte antipatizado .por toda a província, sepultou-se no 
seu quarto e só saía para fazer exercícios, ir a uma re­
união pública, ou então quando algum dos seus negócio>� 
o chamava à rua. Todavia, uma circunstância o intriga­
va, e era que, se os chefes de família lhe fechavam a casa, 
as moças não lhe fechavam o coração ; em sociedade o 
repeliam todas, mas em particular o chamavam para a 
alcova. Raimundo via-se provocado 1por várias damas, 
solteiras, casadas e viuvas, cuja leviandade chegava ao 
J o r n a l d e C r í t i c a 145 
ponto de mandarem-lhe flores e recados, que ele fingia 
não receber, porque, no seu carater educado, achava a 
<:oisa ridícula e tola." 
Raimundo e Ana Rosa, figuras representativas nunt 
plano de simbolismo social, são, no entanto, bastante in­
características no plano propriamente literário dos per­
sonagens de romance. O mulato, aliás, não é o livro em 
que Aluizio Azevedo mais se afirma como criador de 
figuras e de tipos, apesar dos excelentes perfis - simples 
perfis, porem - de figuras da sociedade marauhense. 
Aqui se encontram apenas os esboçose os traços que se 
fixarão com maior firmeza nos personagens de Casa de 
pensão. Alem disso, o sentimento de revolta e o espí­
rito excessivamente cr.íticô, com os quais se sustentou da 
primeira à ultima página, não formavam um complexo 
interior muito propício para aquela objetividade que to­
do personagem exige no seu carater de . verossimilhança e 
realidade. Estou penaando, por exemplo, no que há de 
absurdo e fantástico - ·pela exagerada preocupação do 
caricatura! - em certos personagens como o conêgo Dio­
go. Ou então - por motivos opostos de desmedido ro­
mantismo - no que há de vago e flutuante em persona­
gens da espécie de Raimundo e Ana Rosa, ,cujas relà­
ções e devaneios se processam em algm;nas páginas im­
possíveis de pieguismo e de falsa literatura, como todas 
aquelaa que descrevem os episódios finais da troca de cartas 
e do rapto. 
Casa de pensão, ao contrário, é o mais romance de 
todos os romances de Aluizio Azevedo. E este resultado 
parece alcanllfldo pelo equilíbrio que realizou entre o que 
é pessoal e o que é social. Os seus personagens adqui­
rem todos, nestas páginas, uma individualidade mais fir­
me e mais definida. E' certo que não teve o talento do 
seu mestre Eça de Queiroz para a criação de tipos que 
passam a ter uma existência independente, uma vida que 
146 A l v a r o L i n s 
ultrapassa os limites da literatura, Não criou nenhum 
Acácio, nenhum Pacheco, nenhuma Juliana. Mas perso­
nagens da categoria de João Coqueiro, Amâ,ncio, Ma da­
me Brizard, Hortênsia - não são muito comuns no ro­
mànce brasileiro. E todos estes personagens se �do­
bram no plano social, que foi sempre, ao que p arece, a 
preocupação fundamental de Aluizio Azevedo. Com a 
diferença de que a sociedade que está revelando nestes 
últimos romances não é mais a provinciana ; é a do Rio 
de J aneiro, muito ínais extensa e complexa. E em dois 
aspectos, pelo menos, o romancista conseguiu fixá-la : o 
da casa de pensão e o do cortiço. Dois problemas de ha­
bitação que se apresentam, aliás, do maior interesse para 
os sociólogos e os historiadores. Tambem o problema da 
educação dos jovens brasileiros, transportados da pro� 
víncia para a metrópole, acha-se colocado da maneira 
maia sugestiva em Casa de pensão, através da vida falha· 
da de Amândio, 
Todo este romance, aliás, é uma longa série de suges­
tões sobre os pr�?blemas educacionais da juventude. Alui� 
zio .Azevedo, para atingir suas conclusões, emprega o 
"método experimental" que Zola indicava como sendo um 
direitq e um dever do romance naturalista. Apenas, esta 
experimentação não poderia apresentar o mesmo cara· 
ter de uma experiência científica. Com efeito, todo o 
equívoco do romance experimental foi o de confundir 
literatura com ciência. O de confundir uma experiên­
cia de romance - realizada na imaginação - com uma 
experiência científica - realizada através de provas po� 
sitivas. Uma mesa .de escritor não é certamente um la­
boratório de cobaias. Pouco importam, porem, as teo­
rias literáriaa. Mesmo num romance ex:perimental, é 
possível que a uma conclusão menos científica corres­
panda uma conclusão verdadeiramente artística. Em O 
hçmtem� numa tentativa destas, AluiziQ {:r;.tça,esªrã intei-
J o r n a l d e C r í t i c a 147 
ramente. Nem realizou um livro de ciência, nem reali­
zou um livro de literatura. Casa de pensão, porem, tem 
uma significação completamente diferente. O romancis­
ta não se encontra mais diante de um tema de ciência po� 
sitiva ; a experiência do seu personagem é psicológica e 
não fisiológica, como em O homem. Poderá desenvol­
ver a sua imaginação sem trair a experiência, e a sua 
experiência sem trair a imaginação. Amâncio, sendo, em­
hora, de um certo modo, uma cobaia de experimentação, 
não deixa de ser um personagem. E todas as outras figu­
ras do romance suportam hem uma idêntica afirmação. 
A casa de · pen�>ão, -com seus hóspedes característicos, com 
seus costumes próprios, com seus escândalos habituais, 
representa toda uma experiência social. A pensão, no 
romance de Aluizio, tem o mesmo papel que o ;internato 
em O Atheneu: é uma vi4;la à parte, um mundo' fechado, 
como um navio de longas viagens. Perde-se o contacto 
com a terra, com o exterior. 
Neste mundo fechado desenvolve-se a experiência de 
Amàncio ; a experiência de duas educações que se cho­
cam e se :repelem, com as mais perturbadoras consequên­
cias. Aluizio sugere, assim, um problema que me parece 
da maior importância na formação moral e cultural dos 
brasileiros : a ausência de harmonia entre a educação fa­
miliar e a educação pública, E notando.-se, na própria 
educação familiar, uma outra desharmonia : a excessiva 
suavidade das mães em contraste com a excessiva austeri­
dade dos pais. A situação alterou-se hoje nos centros 
mais adiantados ; no interior, porem, a educação de Amân­
cio continua a se repetir. E se repetem igualmente aque­
la instabilidade e aquela insegurança de carater que uma 
educação pública ainda hesitante e anárquica só fará agra­
var. 
A este propósito, deve-se notar que todos os livros de 
Aluizio Azevedo são rigorosamente brasileiros : nos seus 
148 A l v a r o L i n s 
assuntos, nas suas idéias, no seu e.stilo. E O cortiço apre­
senta este carater num grau mais acentuado do que qual­
quer outro. Dá a idéia de alguem - como é o caso de 
Aluizio Azevedo - despedindo-se do seu pais, por in­
termédio do último dos seus livros consideraveis. E re­
vela tambem O cortiço que a arte de· Aluizio Azevedo se 
achava num caminho ascendente, que se destinava a uma 
concretização muito mais perfeita, se ele não houvesse 
interrompido sua carreira literária. Neste romance, Alui­
zio fez recuar os perso�agens, pessoalmente, para um 
plano quase que secundário ; o que se encontra no pri· 
meiro plano é uma dualidade de existências coletivas e 
simbólicas : o sobrado patriarcal e a habitação dos cortiços. 
Não são os personagens que determinam a ação ; é a ação, 
resultante do ambiente, que vai criando e movimentando 
os personagens. E esta inovação é que lhe deu oportuni­
dade para se revelar numa habilidade extremamente di­
fícil : a de movimentar grupos . e massas de homens. Mas 
movimentá-los num todo, numa unidade orgânica, fazen­
do de um agrupamento social um verdadeiro personagem. 
Na verdade, o principal personagem neste romance nem 
é João R o mão, nem Bertolesa, nem Miranda, nem Rita. 
O principal personageiL é o cortiço, que aparece, docu­
mentariamente, em toda a sua história : nos seús prin­
cípios, na sua plenitude e na sua decadência. 
Volta Aluizio Azevedo ao problema da escravidão 
por intermédió de Bertolesa. Todo o enredo do roman­
ce nesse sentido vai constituir um novo protesto contra a 
escravidão. Torna muito ostensiva. e muito cruel a misé­
ria de Bertolesa para fazê-la mais convincente e mais sen­
timental. Teria o romancista pensado em representar 
João Romã o e Bertoleza como personagens simbólicos? 
De qualquer forma, devemos notar que se desenvolve en­
tre ambos aquela mesma situação que a propaganda abo­
licionista apontava, por toda parte, como uma justifica-
J o r n a l d e C r í t i c a 149 
ção dos seus fins. O português que constrói a fortuna e 
o sucesso sobre o trabalho do negro impossibilitado de 
qualquer ascensão - eis uma realidade que é romanesca 
e histórica, ao mesmo tempo. Dois destinos diferentes 
erguidos sobre dois estados psicológicos tambem dife· 
rentes : a ambição do homem branco e a passividade do 
homem negro. 
Mas não só neste ponto O cortiço constitue um livro 
representativo do Segundo Império brasileiro. Ao lado 
da cia&se popular dos cortiços Aluizio Azevedo representa 
a classe burguesa dos sobrados. A simpatia com que 
descreve a gente dos cortiços e a antipatia com que ex· 
põe a gente dos sobrados - revelam o romancista de es­
pírito popular an'imado de prevenções contra a burgueaia. 
Sobre o comerciante Miranda e a sua família faz pesar, 
por exemplo, as situações mais detestaveis e tristes : o 
egoísmo, o impudor, ainfelicidade. E' uma família de 
doentes maiores dentro do conforto da burguesia, em con­
traste com a saude moral dos pobres-diabos do cortiço 
dentro das condições miseraveis de uma absoluta pobreza. 
Ao lado dos dois ambientes, sentem-se o espírito e o 
corpo de uma cidade inteira. Não de uma cidade para­
da. mas de uma cidade que cresce, que se modifica, que 
se transforma. A parte que me parece mais resistente 
neste romance é realmente esta sua capacidade de trans­
mitir a sensação do crescimento interior e exterior de 
uma cidade. Aluizio nunca pôde manter uma atitude 
psicológica em face do homem isolado, mas soube, com 
uma eficiência surpreendente, penetrar no interior do� 
agrupamentos humanos. Em O mulato, é a vida da pro­
víncia ; em Casa de pensão, é a habitação coletiva ; O 
cortiço, é muito mais : é· a cidade do Rio de J aneiro 
numa das fases mais particulares e mais caractel'Ísticas da 
sua .J!ormaçã'o histórica. Com O oortiço, Aluizio Aze­
vedo constituiu-se um romancista da cidade que poderá 
150 A l v a r o L i n s 
ser colocado ao lado de Manuel Antonio de Almeida e 
Lima Barreto. Não digo ao lado de Machado de Assis 
porque esta comparação seria demasiado violenta para 
Aluizio Azevedo. 
* 
Escrevi que Aluizio Azevedo é um romancista de� 
sigual. E muito mais desigual, aliás, do que se possa 
imaginar sem a leitura da sua obra. E' um autor que 
merecia uma edição de "obras escolhidas" e nunca de 
"obras completas". Através das "obras completas" Alui· 
zio aparece terrivelmente contraditório, pela diferença ab� 
surda entre uns livros e outros que parecem extremos de 
uma cadeia literária, pela diversidade de gosto e de mau� 
·gosto que se juntam e se repelem, pela coexistência de 
situações artísticas fundamentalmente opostas. A única 
contradição de Aluizio Azevedo é realmente esta : a de ser 
assim contraditório sendo um escritor da raça dos sim< 
plee. Não falo só de obras como A condessa V esper ou 
Girândola de amores, que são dignas do mais absoluto 
esquecimento. Incluo nesta mesma categoria outras obras 
mais consideradas, como
. O coruja, O homem e Livro de 
uma sogra. São três tentativas de evasão que resultam 
inteiramente falhadas. O coruja é uma tentativa de ro­
mance psicológico, muito cheio de .símbolos, de metáforas. 
de diálogos banais e cansativos. Uma psicologia superfi­
cial e mundana ao gosto dos apreciadores de A · Dama das 
Camélias, com o qual se parece em muitae das suas pá­
ginas. O homem é uma tentativa de romance científico, 
uma monografia parecendo de estudante de medicina no 
entusiasmo primário dos seus primeiros contactos com a 
carreira profissional ; e vale a pena repetir que nem re­
presenta uma obra de ciência nem uma obra de arte. 
Um volume híbrido e inútil. O Livro de uma sogra ê 
uma tentativa de romance moralista ; e, como todas as 
J o r n a l d e C r í t i c a 151 
outras tentativas anteriores, significa um fracasso formal 
e inapelavel. 
A desigualdade de Aluizio Azevedo, porem, não se 
revela somente desta maneira, de uns livros para outros. 
Revela-se em qualquer deles isoladamente. Mesmo nos 
seus melhores romances - O mulato, Casa de pensão, O 
cortiço - encontramos muitos trechos insuportaveis, so­
betrudo pela linguagem e pelo estilo. Uns são trechos 
em que Aluizio abusa dos elementos patéticos e senti­
mentais. Outros são trechos em que se debate dentro da 
vulgaridade mais mesquinha. Mas todos estea trechos, 
nos três romances citados, surgem com um carater aci­
dental que não atinge o conjunto global, , enquanto que, 
nos demais romances, os trecho's se repetem e se acumu� 
lam, tanto no espírito como na expressão, de um modo 
tão geral que se constituem o tom dominante e absorvente 
da obra toda. E será preciso ainda não esquecer certos 
defeitos fundamentais de Aluizio Azevedo, um realista 
que nunca deixou de ser romântico : a excessiva e exclusi· 
va exteriorização dos seus personagens, os aspectos pan­
fletários e tumultuosos de t'antas das suas páginas, as suas 
constantes' variações dos planos mais vulgarmente reais 
aos planos mais absurdamente fantásticos. Aluizio su­
portaria muito bem esta proposição do velho Guyau : 
"Mais, si l'on trouve maint exemple de réalisme ridicule 
dans le romantisme, on trouve maint exemple de roman· 
Úsme manqué chez nos réalistes contemporains." 
O que se conclue, porem, é que, apesar do seu cara­
ter de romancista "primário", Aluizio Azevedo ocupa um 
lugar importante na literatura brasileira. Ocupa-o ex­
dusivamente por intermédio dos três romances - O 
mulato, Casa de pensão, O cortiço - que a critica, o 
tempo e os leitores selecionaram como a parte duradoura 
da sua obra. E mais do que uma significação literária, 
estes livros carregam uma signuificação histórica. Aluizio 
152 A l v a r o L i n s 
Azevedo vem de uma época que poderá ser considerada a 
infância do nosso romance. Quando se fizer, por isso, 
uma história rigorosa do verdadeiro romance brasileiro, 
ao lado de Manuel Antonio de Almeida e Machado de 
Assis -· num plano simplesmente histórico, repito - ele 
figurará como um dos seus iniciadores. Como uma fi. 
gnra das primeiras horas. 
li - JULIO RIBEIRO 
Ao lado de Aluizio_ Azevedo costuma-se colocar Ju· 
lio Ribeiro como um outro autor representativo do -natu· 
ralismo brasileiro. Não sei de equivoco maior do que 
este. Julio Ribeiro não chegou sequer a ser um mau 
romancista. Na verdade, não foi um romancista de espé­
cie nenhuma. Acredito, por isso, que não merece ser con­
siderado ou estudado em qualquer publicação que tenha 
um carater estritamente literário. E se me ocupo, agora, 
deste falso romancista, é pela obrigação de uma referên­
cia dentro de um assunto que me foi proposto ( l ) . Espe­
ro, aliás, que não me repetirei, a propósito deste autor, 
em nenhuma outra ocasião. 
Insisto na afirmação de que o caso . de Julio Ribeiro 
é o de um simples equivoco que o · sucesso público veio 
tornar um pouco complicado. Dizem que foi um exce­
lente gramático. Dizem que foi um excelente homem d� 
hem. Os seus estudos filológicos são geralmente conside­
rados muito inteligentes e muito esclarecidos para a sua 
época. As suas atitudes de homem são ainda hoje admi­
radas na independência e na honestidade das suas mani­
festações. Não creio, porem, que tanto o gramático como 
( 1 ) Este estudo foi escrito para um número especial da Revista 
do Brasil dedicado ao romance brasileiro. 
J o r n a l d e C r í t i c a 153 
o homem tenh am se eleV'ado muito acima daquela zona 
de mediocridade intelectual que foi sempre a atmosfera 
de Julio Ribeiro. Não ultrapassavam a mediocridade 
nem mesmo a sua impulsividade, a sua combatividade, o 
seu temperamento apaixonado e delirante. Todas as ve­
zes que deixava de ser medíocre, Julio Ribeiro se tor­
nava, apenas, ridículo. E' o cru;o do seu famoso romance 
A carne. E o sucesso de Julio Ribeiro nasceu todo deste 
"romance" ; raros sã. o o s que conhecem os estudos do gra­
mático e as atitudes do homem. 
No entanto, A carne representa precisamente um 
conjunto de penosas variações entre a banalidade mais 
comum e o ridículo mais delirante. Quero explicar que 
ne.m de leve estou me referindo aos aspectos morais do 
livro, que não interessam, senão incidentemente, à críti­
ca literária. A ética, sabe-se, é uma disciplina ' bem dife­
rente da estética. Tanto nos seus meios como nos seus 
fnis. E uma obra so será imoral se não for uma obra 
de arte. A carne, contudo, representa um caso à parte 
de qualquer classificação, pois nem sugere interpreta­
ções estéticas nem interpretações éticas. Tudo neste livro 
é tão absolutamente bête que não há nele o menor lugar 
para a imoralidade. Não há lugar para sentimento ne­
nhum, pois toda a sua leitura provoca uma invencivel 
repulsa de ordem inteletual. Somente para os adolescen­
tes e os imhecís A carne poderá ser um "excitante';. Li­
terariamente, é um livro que só nos deixa indiferença ou 
aborrecimento. Ou mais exatamente : para a literatura, 
estelivro não existe. 
Eu gostaria de citar alguns trechos do "romance" 
para transmitir uma impressão mais objetiva do que 
estou afirmando. Mas seria necessar10, então, citar o 
livro todo, que é de uma comovente uniformidade, na sua 
insignificância ou no seu ridículo. Em todos os aspectos : 
no enredo, nos personagens, no estilo. Alem disso, este 
154 A l v a r o L i n s 
estudo a fazer significaria uma homenagem que a obrá 
de Julio Ribeiro não merece. Na verdade, seria absurda 
ou contraditória a realização do estudo de um romance 
que não chega a ser romance. De um romance que não 
atingiu o plano da literatura. E parece-me que esfe foi 
realmente o único erro de José Verissimo em face de J u­
lio Ribeiro. E' certo que José Verissimo soube ver a 
fragilidade do livro, mas tratou-o como obr3 mal reali­
zada e não, o que serfa exato, como obra inexistente na 
literatura. Por isso, o que importa, agora, é a proposição 
de um desenvolvimento lógiço para a crítica de José Ve­
riSSimo. Falando, poi.s, de Julio Ribeiro, como rOlil3n­
cista, não tenho outro fim senão o de propor que -nin-. 
guém o faça mais nunca. A presença de Julio Ribeiro 
na história do romance brasileiro é um equívoco. Julio 
Ribeiro é um autor fora da literatura. 
Março de 1941, 
CAPiTULO XIII 
C O N T O S 
A NDO no'stálgico - e estou certo que os leitores tam· bem andam - na expectativa de um livro de con� 
tos que me agrade de uma maneira completa. Lembro­
-me que podemos estabelecer uma certa continuidade e 
um certo espírito de evolução a propósito da nossa poesia 
como do nosso romance ; a propósito do conto, porem, 
essa continuidade e essa evolução já não apresentam o 
mesmo desenvolvimento em linhas certas e firmes ; o seu 
desenvolvimento se opera num sistema irregular de on� 
das. Temos épocas mais favoraveis ao conto ; temos au­
t;;res que se realizam com felicidade nesse discutido gê� 
nero literário. Nestes últimos dez anos - não esquec�n­
do os srs. Monteiro Lobato e Annibal Machado, que são 
mais antigos - surgiram vários contistas brasileiros que 
deram ao gênero uma animação e um sucesso dos mais 
significativos para as nossas letras. Nenhum desses con� 
tistas, no entanto, apareceu em livro desde o momento em 
que esta secção de critica se iniciou. No ano passado, 
seis livros de contos me foram enviados, sem que nenhum 
deles representasse um acontecimento literário ou artísti­
co. Neste ano somente quatro volumes chegaram ao meu 
conhecimento ; e embora sejam alguns deles de uma cate­
goria bem superior à do ano anterior, não encontro ainda 
motivo nem ocasião para um comentário entusiástico e 
sem reserva. Somente um deles se apresenta excepcional, 
mas ver-se-á porque no fim desta cromca. E não incluo 
nesse número o conto "A sereia verde", d�!_ sra. Dinah 
156 A l v a r o L i n s 
Silveira de Queiroz, que verdadeiramente .me agradou 
muito, porque se trata de uma reedição em volume, da­
tando de 1938 a sua primeira publicação. 
Os contistas não gostam, em geral, que seja o conto 
classificado como um gênero menor. Não desejo discutir 
agora o
.
s dois lados dessa classificação, sobretudo por jul-]
.
' 
gar que o prestígio e a grandeza de uma obra somente1 
dependem do escritor que a realiza. Mas tudo indica que 
aos próprios contistas cabe a responsabilidade de não ha· 
ver para o conto um lugar mais extenso nos estudos crí­
ticos e nas histórias literárias. Nnenhum contista se con­
centra exclusivamente nesse gênero de literatura. Nem 
mesmo estão fora desse caso as suas duas figuras mais 
famosas : Edgar Poe, que foi um poeta, e Guy de Mau­
passant, que foi um romancista. De uma man�ira ge­
ral, todos os contistas são tambem poetas ou são tambem 
romancistas. E por isso é que nos melhores historiado­
res de uma história literária tão variada e tão abundante 
como a francesa o conto nem sequer tem a honra de um 
capítulo independente ; é no capítulo do romance natu­
ralista que sempre aparece o estudo da ohra de Guy de 
Maupassant. Nos Estados-Unidos, no entanto, onde �e 
apresenta mais valorizada a tradição de Poe, é onde o 
conto ocupa um lugar mais consideravel, enchendo um 
enorme espaço literário. F; não será difícil perceber o 
esforço que alguns autores modernos, em várias literatu­
ras, inclusive na brasileira, realizaram ultimamente com 
o propósito de fazer do conto um gênero independente de 
modo absoluto. Uma independência contra o romance, 
sobretudo. Estou, no entanto, no número dos que não 
acreditam que o cami
-
nho da independência do conto seja 
uma reação contra o romance. No que acredito é numa 
ligação íntima entre o romance e o conto, numa partici­
pação de ambos em elementos comuns e não susceptíveis 
de dissociação. Todos os gêneros literários, aliás, se ligam e 
J o r n a l d e C r í t i c a 157 
se comunicam muito mais do que se possa julgar através 
de uma contemplação exterior e formal. Quanto ao con· 
to e ao romance, a ligação apresenta-se muito mais pro­
funda : uma ligação de família, uma ligação pelo sangue. 
O que não quer dizer que pocsam ser negadas as caracte­
rísticas particulares e essenciais do conto ; e peta inten­
sidade e aperfeiçoamento delas é que se tornará indepen­
dente, sem p1·ejuizo dos seus outros atributos que tam­
hem pertencem ao romance. Tanto assim que na sua 
marcha de diferenciação a todo custo o conto chegou a 
um resultado verdadeiramente contraditório. Pretendeu-. 
do desligar-se das característicllê do romance, acabou se 
desligando das suas próprias caractet1sticas, das caracte·· 
rísticas do que é conto. Tenho certeza de que não se 
trata só de uma evplução, como a do romance e a da poe­
úa, mas tambem de uma mutilação. O conto mo·dCI·no é 
uma reação contra alguma coisa de essencial e caracterís· 
tica que não pode deixar de exi-stir no conto. E em que 
sentido se distanciou tanto o conto moderno da antiga 
forma de conto ? Parece-me que mais no assunto do que 
propriamente · na técnica. O seu centro era antigamente 
o enredo. No romantismo, este enredo encontrou nos ele· 
mentos fantásticos alguns dos Geus melhores temas, sendo 
que os contos
. ingleses, de preferência, estavam cheios de 
fantasmas e de mistérios. Esta forma resistiu ao próprio 
naturalismo, dentro do qual Maupassant es<'reveu vários 
contos dessa espécie fantástica. Não haveria de resistir, 
porem, aos contistas modernos, que se voltaram espe­
cialmente para o quotidiano, para o concreto, para o 
natural, para o visível. Tudo o que é fantástico, mis­
terioso, sobrenatural - constitue hoje um material 
desdenhado pelos contistas. Não digo que o conto 
esteja ligado obrigatoriamente a esses elementos, mas 
o desligar-se deles implica, pela sua própria natureza, 
uma dificuldade que lhe pesará mais do que ao ro· 
158 A l v a r o L i n s 
mance. Os recursos de subEtituição serão mais raros e . 
mais penosos. É que todo conto para ser integralmente 
realizado exige a aprésentação de um "caso". O que quer 
dizer : de uma história, de um enredo. Reconheço que 
há outras maneiras, além da oh jetiva, de afirmar a exis­
tência deste elemento de elaboração e de realização. O 
aprofundamento psicológico, por exemplo, permite que o 
enredo seja mais sugerido do que descrito� e esta é uma 
técnica muito empregada, com êxito, pelos contistas mo-­
dernos. Mas logo se observará, em muitos contos mo­
dernos, a inexistência absoluta de um enredo, de uma hie­
tória, de um "cllBo". E diante deles é que nos vem 
a impressão de obra mutilada. Que o contista des­
denhe o "caso" fantástico é um direito muito seu, mas 
tambem um dever muito seu .será a criação de outros 
"casos", 'em outras bases, o que se torna ma'is difícil, sem 
que o leitor tenha nada que ver com essa dificuldll'de. 
Dir-se-á no entanto que o conto fantástico é o que apre­
senta mais dificuldade por exigir uma maior força de ima· 
ginação. Mas, não : a imaginação é um dom de artista, 
enquanto a arte objetiva constitqe uma ·conquista de 
aperfeiçoamento e de técnica. 
Os livros de contospublicados durante este ano apre­
sentam todos - uns mais, outros menos - esta mutila­
ção que vem de uma excessiva valorizaçã� do que é ex­
clusivamente natural, quotidiano, concreto, oh jetivo. Es­
tes livroe são Histórias do Irmão Sol, do sr. Telmo Verga­
ra, Donana Sofredora, do sr. Mario Neme, Os grilos não 
cantam mais, do sr. Fernando Tavares Sabino, Ronda 
de fogo, da sra. Cacy Cordovil ; autores do Rio Grande do 
Sul, de São Paulo, de Minas - da sra. Cacy Cordovil não 
tenho indicação nenhuma, nem sabendo mesmo se estou· 
diante de um nome ou de um pseudônimo - sendo dois 
deles estreantes, segundo suponho : os srs. Mario Neme e 
Fernando Tavares Sabino. Ao contrário, o sr. Telmo 
J o r n a l d e C r í t i c a 159 
Vergara é um autor de vários volum�s, sendo muito con­
ceituado no gênero literário a que se dedicou de maneira 
especial. E ninguem dirá que esse conceito seja de 
todo injusto, embora se torne impossível considerá-lo co­
mo um contista. perfeito ou completo. Ainda agora nes­
tas Histórias do Irmão Sol o Autor revela tanto as suas 
poBsibilidades como as suas · deficiências. O que logo se 
o1Jserva é a sua capacidade técnica, o seu conhecimento da 
arte do conto. O sr. Telmo Vergara não se atirou à lite­
ratura como quem deseja realizar uma brincadeira para 
si mesmo e para os outros, mas procurou, ao contrário, o 
sentimento e o conhecimento da sua arte. Que o conheci­
mento seja Ínaior do que o sentimento - esta é uma cir­
cunstância que prejudica a sua obra, sem que seja sua a 
respolli!abilidade desse desequilíbrio. Agrada-me assim, 
em primeiro lugar, a seriedade com que se .situa dentro 
da s11.a arte, o esforço com que ·procura oferecer o melhor 
de si mesmo, a constância do seu trabalho e da sua téc­
nica. Daí a boi! construção dos seus contoll, pois con­
segue expor e movimentar com segurança todos os 
elementos ao seu alcance. Não se dirá de nenhum deles 
que seja uma improvisação ou um arremedo. Ao lado 
dessa técnica, porem, logo se verá que ele não dispõe 
de uma substância humana que lhe seja inteiramente cor­
respondente. O sr. Telmo Vergara é um autor mais formal 
do que suhtltancial ; os seus contos são mais construidos do 
que realizados. Constituem mais uma obra de "compo­
sição" do que de "estilo" ( estilo no amplo sentido de 
realização artística e literária ) . Acredito que é na ima­
ginação mesma. que se encontrará a sua maior limitação. 
A sua imaginação colabora muito pouco nos seus contos. 
As situações, Oll personagens, os acidentes - são todos 
de carater objetivo e concreto. A sua especialidade está 
na descrição de quadros da vida de subúrbio, de cenas pro­
vincianas, de costumes da pequena burguesia. Destaco 
160 A l v a r o L i n s 
nesse sentido todo o capítulo H do conto "O envelope sob 
a porta", uma excelente cena apresentando o encontro 
de uma moça carioca com duas velhas provincianas. O 
enredo, por sua vez, não ocupa um lugar importante na 
obra do sr. Telmo Vergara, somente aparecendo como um 
acidente de segunda ordem. E estas duas contingências 
é que tornam os seus contos bastante secos, frios e esque­
máticos. Falta-lhes força íntima, dramaticidade, senti­
mento poético, imaginação. Somente o último conto deste 
volume parece orientar-se nessa direção, mas de maneira 
ainda não inteiramente decidida. O sr. Telmo Vergara 
tem a técnica do conto sem dúvida. Resta que esta téc· 
nica seja animada mais intensamente pela imaginação, 
sem o que a: sua obra ficará nessa situação de meio ca· 
minho, nessa média posição que não .pode representar 
um ideal para qualquer verdadeiro escritor. 
Em Donana Sofredora, o sr. Mario Neme conta pe­
quenos episódios, algum deles revelando uma certa ori­
ginalidade e uma positiva capacidade para a sátira e a 
fixação social. Um problema inicial, no entanto, me im­
pede de comentar estes contos como um livro de litera­
tura. Esse problema é o da linguagem e do estilo. O 
sr. Mario Neme - levando a todo� os exageros a reno­
vação linguística tentada pelo sr. Mario de Andrade, com 
um fim literário, no entanto, que a salva de uma idêntica 
desclassificação, quaisquer . que sejam as nossas discor­
dâncias - pretende realizar os seu.s contos com uma lin­
guagem que seja rigorosamente a falada. Ora, eu· so\1 
daqueles que acreditam que a literatura é uma arle e 
não uma conversa ; que é uma realização escrita e não 
oral. Que ninguem vá pensar, porem, que estou falando 
aquí em nome da gramática ou de uma língua petrifi­
cada ; nem mesmo em nome da moral. O que procuro é 
falar em nome da literatura. Estou certo que um, escritor 
tem o direito de violar as regras gramaticais da sua língua 
J o r n a l d e C r í t i c a 161 
para a criação de um c.stilo pessoal. Este é um direito 
legítimo, com o qual as literaturas se enriquecem e as gra­
máticas tambem. Mas será preciso, num ·caso dessa espé­
cie, ter o instinto da língua, a intuição da literatura, o 
senso da vida artística. , Acho que o sr. Mario Neme, ao 
contrário, utilizou as palavraa e as construções da língua 
oral de uma maneira demasiado arbitrária, colocando-se 
em luta com a literatura. Eis um trecho, escolhido ao 
aca.so : "Merenciano muito menos. O pobre dele me olhou 
aterrado, mas eu estava olhando pro céu, tão claro, branco 
de azul, tão lindo ! Então ele tambem olhou pro céu, 
qual o quê ! que o céu não falava nada pra ele, nem dava 
um sinal !" Tudo isso pode ter a sua graça, o seu gosto, 
o seu encanto, mas . . . não é literatura. E eis porque 
c.stou impedido de falar mais diretamente sobre os contos 
do sr. Mario Neme. Aliás, a propósito mesmo da sua lin­
guagem, gostaria de lembrar que nem sempre representa 
esta realidade viva, natural, espontânea, que parece ter 
sido , a sua ambição. Estou certo que expressões como 
"aquilo já nem não era vida", "pra" e "pondo ela" não 
são hoje a.s mais naturais e as mais empregadas na lin­
guaf?:em oral. Alem disso, essa buaca intencional da natu­
ralidade acaba por se constituir uma outra forma de arti­
fício. E querendo ser uma reação contra a retórica, tam­
bem acaba por se tornar igualmente retórica. Pois o 
que é a retórica - neste sentido menos literário - senão 
a palavra que se antecipa à idéia, a fórmula que se ante­
cipa à realidade? Bem sei, no entanto, que e.ssa lingua­
gem empregada pelo sr. Mario Neme nasce de uma deli­
beração concient11 e não de uma inconciência de igno­
rante. E por isso bem se poderá esperar que seja uma 
atitude de momento ou o exagero de um direito de reno­
vação, que então procurará depois a sua fórmula de equi· 
líbrio. 
162 A l v a r o L i n s 
O que se pode chamar ·uma autêntica vocação de 
contista é .a do sr. Fernando Tavares Sahino, logo se reve­
lando com Os grilos não cantam mais. E' verdade que os 
seus contos ainda se ressentem da falta daquela intensi­
dade e concentração interior que são especialmente pró­
prias do gênero ; é verdade tamhem que o seu estilo ainda 
se ressente de uma certa indecisão e de uma certa palidez. 
Mas tanto os contos, na sua construção, como o estilo que 
os exprime - ambos os elementos já indicam a presença 
de um escritor que deve ser levado a sério. Ainda está, 
no entanto, muito limitado quanto à imaginação e quanto 
à técnica. Os temas prediletos do sr. Tavares Sabino são 
aqueles que se concentram em cenas domésticas, em am­
bientes familiares, em pequenos conflitos sentimentais. 
Dessa espécie são os melhores contos do seu livro : os que 
se intitulam "Festim em família" e "As rosas iam mur­
char". E não incluo nesse nú.tp.ero "O telefone" porque 
se acha prejudicado pela insistência �onótona com que 
apela sempre para o me�mo recunso como efeito. Outros 
éontos, porem, são muitos convencionais ou nem chegam 
a ser contos, como "Fita em série" e "Alucinação". Todos 
elea, de qualquer forma, apresentam a constante de uma 
capacidade narrativa e de uma maneira agradavel de ex­
pressão. 
Deixei para o último lugar o livro Ronda de fogo 
porque desejo afirmar que se trata de um livro diferentede todos os outros três. Livro de uma escritora que é uma 
verdadeira revelação, de uma autora que se apresenta com 
um domínio da língua verdadeiramente notavel. A sra. 
Cacy Cordovil merece certamente um lugar especial nesta 
crônica de hoje. E explico que estas referências se diri­
gem mais para a escritora do que para a contista, não 
sendo difícil situar o· motivo dessa diferenciação. Muitos 
são os elementos que faltam para que os contos de Ronda 
de fogo possam ser apresentados como obras perfeitas no 
J o r n a l d e C r í t i c a 163 
seu·· gênero. Os enredos em geral não apresentam ongr 
nalidade ou sequer um desenvolvimento original, vários 
deles /caindo mesmo no convencionalismo ; os personagens 
não têm todo o relevo e toda a projeção das grandes fi· 
guras literárias ; a técnica da construção nem sempre se 
apoia em bases firmes e sólidas. Mas a capacidade de 
descrever a natureza, como os costumes, e o poder do es­
tilo, logo se colocam no primeiro plano, de forma que 
chegamos a esquecer que estamos diante de um livro de 
contos, sendo certo no entanto que todos eles têm o seu 
valor dentro da sua própria categoria. Talvez que o gê­
nero mais propício ao talento da sra. Cordovil seja uma 
epopéia em prosa na forma de Os sertões, o que seria 
�Sensacional para uma mulher. 
A sra. Cacy Cordovil mostra que conhece de muito 
perto os costumes do interior e as paixões ·que movimen­
tam os seus homens. Ela retoma, por isso, a tradição 
regionalista que parecia se haver interrompido em Affonso 
Arinos. Esta repre.senta outra significação deste livro que 
não deverá ser esquecida. , As suas páginas sobre os "Tro­
peiros" e um conto como ''O ferrador" constituem uma re­
presentação intensa c admiravel de certos aspectos da 
vida do interior. Mas todo eScSe material - que a autora 
transmite não como uma descrição de colegial, mas como 
uma obra realmente sentida e transfigurada pela sua per· 
sonalidade - nada seria sem o estilo adequado para o 
exprimir. E o que há de mais importante no livro da 
sra. Cacy Cordovil é esta harmonia entre o seu estilo e 
os seus temas. Tanto assim que não quero deixar de copiar 
um pequeno trecho, afim de que o leitor possa ter uma 
idéia direta do que estou afirmando : 
"Outrora eram os/ monarcas. Tinham no garbo a con· 
vicção da �ua força. A cabeça arguta do índio, sob o cha­
pelão de barbicha, se erguia, dominadora. Do ombro, 
exuberando cores� a pala listada. A boca das botas curtas 
164 A l v a r o L i n s 
colhia a bombacha ; dentre o fofo emergia o cabo cinze­
lado da faca de prata. Uravam seda. Os arreios tilin­
tavam, chapeadoa de metal cimilante. ' Nômades; inquie­
tos, romanescos. Lá se iam, cortando o pampa ao sahor 
do acaso, começando em cada pouso um enredo que ficava 
inacabado . . . Lá se iam, envoltos num prestígio de lenda . . . 
Ei-los, que chegam. 
Andaram, retalhando o pampa. Atravessaram cida· 
des e fugiram de novo para o silêncio do campo. Dor­
miram, de poncho estendido ao chão, sob o faiscar lon­
gínquo das e.strelas. Alí estão, remanescentes de uma 
velha raça. Perderam o fausto. Não são mais monarcas : 
simplesmente, tropeiros.;' 
Como se vê, estamos diante de alguem que se acha 
no domínio completo da língua em que se exprime. Devo 
dizer, aliás, que o estilo da sra. Cacy Corclovil não se 
acha dentro da espécie eatilística que eu mais estimo pes­
soalmente. Ele não tem a graça, a finura, a plasticidade 
e tantas outras qualidades "femininas" que estimo acima 
de tudo em qualquer estilo. E o que chamo, por exemplo, 
um estilo "feminino�' é o de Machado de Assis ; o que 
chamo um estilo "masculino" é o de Euclydes da Cunha. 
E é o estilo de Machado o que prefiro ao. de Euclydes. 
Uma preferência, contudo, que não me impede lle ad­
mirar e louvar o que se acha do lado oposto. Embora 
sendo uma mulher, é na família do estilo "masculino" 
que se acha colocada a sra. Cacy Cordovil, a lembrar o 
próprio Euclyde.s, como na página que citei, alem de muitas 
outras que o leitor poderá idep.tifi.car. Todo o seu livro, 
aliás, em todos os sentidos, representa mais uma obra de 
homem do que de mulher, mais de escritor do que de 
escritora. E bastaria lembrar o seu insucesso dentro de 
temas sentimentais e mais ádequados a um temperamento 
feminino como os dos contos intitulados "Mulher", "A 
mulher que· virou homem" e "O sétimo". O seu êxito 
J o r n a l d e C r í t i c a 165 
maior se encontra na representação de cenas ásperas e 
virís, na sua expressão através de um estilo às vezes mo­
nótono pela regularidade das construções, mas sempre afir­
mativo pela sua precisão vocahular e pelo seu poder de 
narração. AfirmatiV'o pela sua riqueza e pela sua força. 
13 de dezembro de 1941. 
CAPíTULO XIV 
\· A / I UMA EXPERIÊNCIA DO T.EATRO 
A cONDIÇÃo de um gênero literário será sempre a de todos os objetos vivos, isto é : a possibilidade de se 
transformar e se enriquecer nas direções mais diV'ersas, 
sem perder a sua unidade interior. Mantendo-se fiel ao 
que é essencial na sua existência. De Balzac até Virgínia 
W oolf, o romance atravessou um longo processo de ope­
rações formais e conceituais mas permaneceu sempre como 
uma síntese de vida no plano da imaginação, o que tem 
sido a sua característica fundamental. Creio que uma 
mesma constatação poderemos exigir .em face da arte tea­
tral. O que explica realmente a existência e a n�cessi­
dade de uma arte é sua irredutibilidade ; quero dizer : a 
impossibilidade de ser substituída por qualquer outra. O 
fim de todas as artes é um só, ma!l a este fim podem chegar 
através de meios diferentes e inconfundíveis. Exatamente 
a pluralidade de meios é que explica a pluralidade de 
artes. E' certo, portanto, que deve haver no teatro algum 
elemento insubstituivel, uma razão permanente de exis­
tência, um requisito a torná-lo particular no meio das 
outras artes. Este elemento próprio e exclusivo do teatro 
está definido com o nome de "tensão dionisíaca" por 
todos os que se ocuparam das suaso�igens _e_ dâ ' '8uâ reali­
dade, desde Aristóteles até os críticos mais modernos como 
Pierre-Aimée Touchard e Edmond Sée. Tensão dionisiaca 
pode-se definir como a emoção especial que o teatro trans­
mite ao seu espectador, inteiramente diferente, em espé­
cie, daquela que um leitor sentirá diante de um poema 
J o r n a l d e C r í t i c a 167 
ou de um romance. Para atingí-la a arte dramática mo­
vimenta três elenientos : os personagens, a ação, a mise­
en"sâme. Estes trêa elementos articulados é que formam 
a atmosfera teatral capaz de provocar no espectador a 
tensão dionisíaca. Neste sentido, é preciso, como se vê, 
contar com o espectador, como um elemento atuante e 
participante. Em qualquer verdadeiro teatro, o especta­
dor representa uma parte integrante do espetáculo. · De­
vemoa, por isso, desconfiar das peças que se dizem apenas 
para leitura, sob a alegação de que constituem um teatro 
de suprema aristocracia literária. Trata-se evidentemente 
de uma desvirtuação ou de um equívoco : estas peças não 
são de teatro. Pode-se lembrar que Byron, Merimée e 
Musset escreveram· peças que não se destinavam a repre­
�entaçã&, mas tambem é certo que,. nestas condições, po­
deriam estar fazendo obras-primas de literatura pu:t;a, mas 
'nenhuma obra de teatro. Porque o que é essencial do 
espetáculo teatral é a 11bsoluta identificação entre os per­
sonagens e o espectador. E este é um resultado que se 
obtem naturalmente quando o sentimento dominante é o 
da exaltação, o da "purgação", o da "ivresse". Dificil­
mente será alcançado, de maneira completa, numa peça 
que pretenda realizar uma reprodução fiel da vida quoti­
diana. O que empolga o espectador é uma atmosfera que 
ultrapassa a vida comum, a realidade de atos que pode­
ríamos ter praticado mas que estamos impedidos de 
praticar, a visão de personagens que representam uma 
revelação da nossa vida secreta e não socialmente con­
cretizada. Nem mesmo no teatro histórico a cópia se jus­
tifica como um recurso dramático.A figura histórica 
será utilizada mais como um mito do que prcftJriamente 
como um ser individual, o que está muito de acordo com 
os fundamentos espirituais e transcendentes do heroismo. 
E esta categoria de mito da figura histórica é que dá ao 
artista a possibilidade de renová-la indefinidamente. Quan-
168 A l v a r o L i n s 
do Giraudoux renovou uma lenda tcbana em A mphytrion 
38, já sugeria, com o título, que trinta e sete vezes o 
mesmo tema havia sido fecundado em outras direções. 
Com Pigmalião, Bernard Shaw tornou ainda maia evidente 
como um tema histórico e eterno se pode alterar num 
sentido de modernidade sem nada perder de si mesmo. 
No próprio teatro clássico encontramos o personagem 
se 'transformando . do particular para o geral. Quando 
Corneille , fez o Cid, o que resultou .. na cena foi muito mais 
o homem heróico do que propriamente o herói nacional 
da Espanha. 
Não quero exigir, no entanto, que toda peça ou toda 
representação seja dominada por uma atmosfera trágica. 
Esta exigência implicaria uma visão unilateral, excluindo 
a comédia, que contem recursos para uma teatralização 
tão completa quanto a da tragédia. Nas grandes épocas 
da arte dramática - o teatro grego, o teatro clássico fran· 
cês, o teatro elisabetiano, o teatro espanhol - a tragédia 
e a comédia se completaram como duas faces de uma mes· 
ma fisionomia. Em ambas encontramos um mesmo ele-
mento dominante : a vida imaginada que se coloca por 
cima da vida habitual, a intensidade e · a 1Jnidade interior 
da obra que provocam a "ivresse", a capacidade de identi­
ficação do espectador com o espetáculo, determinando o 
fenômeno da "tensão dionisíaca". E' verdade, porem, que 
o resultado se exprime diferentemente num caso e noutro : 
a tragédia, pelo sofrimento ; a comédia, pelo riso. O que 
é muito facil de compreender quando se observa que a 
tragédia desenvolve situações que estão acima das nossas 
possibiliqades de homens comuns, enquanto a comédia 
desenvolve situações que julgamos, real ou aparentemen· 
te. abaixo de nós. Quando choramos, é que o motivo das 
nossas lágrimas se encontra numa ordem superior à nossa 
própria pessoa. O riso, ao contrário, surge da constatação 
de que nos sentimos superiores a alguem ou a alguma coi�a. 
J o r n a l d e C r í t i c a 169 
Sofremos com os nossos heróis ·porque os achamos trans· 
cendentes em face dos nossos próprios atos ; rimos de u m 
homem ridículo porque estamos certos de que se encontra 
abaixo do nosso .senso comum. E' uma colocação exclusi­
vamente do espectador, não importando saber, como na 
vida real, se esta aparência de ridículo ou de heroismo 
sustenta uma verdade ou um erro. 
Confirmando o que comecei dizendo sobre a evolução 
dos gêneros literários, observamos hoje a tragédia e a co· 
média se transformando e adquirindo formas modernas 
de estilo não só literário mas teatral. As exigências par­
ticulares da nossa época explicam, de certa maneira, 
o carater destas novas transformações. Pois se há nã lite­
ratura uma parte pessoal_ e eterna que se mantem inva­
riavel como o homem, hã tambem umà parte social e efê­
mera que se modifica com a sociedade. O que explica que 
ainda hoje possamos assistir �ou ler as peças de Shakes­
peare ou Corneille é o que nelas existe de puramente lm· 
mano, mas não tenhamos dúvidas de que - pelo desapa­
recimento do que contêm de social - alcançam sôhre nós 
um efeito muito menor do que sobre os seus contempo· 
râneos. O mesmo se poderá dizer de um autor dos nossos 
dias : em um leitor do próximo século Mareei Proust 
não obtel'á a mesma impressão que hoje a sua leitura 
determina. Eis até que ponto a tragédia c a comédia do 
passado se modificaram no sentido das modificações so· 
c1a1s. Racine ou Moliere estão, de qualquer modo, li­
gados a uma época em que a Classe socialmente dominante 
era a aristocracia. O domínio posterior da burguesia 
sobre a aristocracia implicou a criação de um teatro que 
pudesse representar as condições e as consequência
·
s desta 
dominação. O teatro dos nossos dias é uma expressão 
de sociedades burguesas, como o teatro antigo fora uma 
expressão.. de sociedades aristocráticas. 
170 A l v a r o L j n s 
A realidade teatral dos últimos cem a.nos - o pre­
domínio da comédia sôbre a tragédia - documenta que 
a burguesia é muito mais ridícula do que heróica. E 
autores que continuam, atualmente, a tradição da tragé­
dia cláSilica - um Paul Claudel ou um Jean Giraudoux -
vão procurar os seus temas e os seus per.sonagens fora 
da burguesia. Ao contrário, Henri Bernstein - figura 
expressiva da comédia moderna ou do drama burguês, 
como quiserem - encontra os seus na própria clas.se so· 
cialmente dominante. Bernstein, porem, preio que já se 
encontra hoje ultrapassado. O seu teatro é uma expres­
são do domínio burguês ; hoje, com a falência evidente da 
burguesia, um novo teatro surgiu como forma represen­
tativa dessa decadência. Estou certo que uma significa­
ção importante do teatro de um Lenormand, de um Pi­
randello, de um Bernard Shaw, encontra-.se na revelação 
da decomposição e do ocaso do homem -burguês, antes 
mesmo de se to.rnarem um fato constatado. Exemplifico, 
particularmente, com Pirandello, que me parece a figura 
mais repre.sentativa deste teatro moderno. Porque não foi 
só a técnica teatral que Pirandello revolucionou ; o seu 
maior poder revolucionário está na união que realizou 
entre o que é trágico e o que é cômico. E' certo que 
esta união já poderia ser observada em muitos autores 
antigos e modernos. Em várias peças do teatro clássico 
- e Shakespeare usava constantemente e.ste recur;o -
surgem situações cômicas nas tragédias, e situações trá­
gicas nas comédias. Mas tanto umas como outras não 
chegavam a quebrar a linha dominante da peça. Tambem 
o que chamamos drama - penso especialmente na obra 
de Bernstein - realiza constantemente essa mistura de 
elementos �ômico.s e trágicos. Mas resultando um novo 
gênero - este mesmo drama - porque a burguesia, na 
sua época de domínio, não se prestava exatamente nem 
para a tragédia pura nem para a comédia pura. A húr· 
J o r n a l d e C r í t i c a 171 
guesia da decadência, porem, esta é trágica e é cômica, 
ao mesmo tempo. Ei.s porque a tragédia e a comédia são 
hoje novamente possíveis. A estranha qriginalidade de 
Pirandello é que uniu as duas de uma maneira . até então 
desconhecida. · Se fosse burguês Pirandello teria escrito a 
tragédia da sua classe. Não sendo burguês, Pirandello 
escreveu a sua comédia. Não pôde nem quis impedir 
que a burguesia se apresentasse num estado de tragédia. 
Pirandello, como autor, assume Úma posição de comédia ; 
o homem burguês, como personagem, apresenta-se trá­
gico. E' o "drama" ultrapassado na fó'rmula "tragédia­
-comédia". A posição do autor sendo a da comédia, a 
posição dos personagens sendo a da tragédia. O espetá­
culo resulta, simultaneamente, t:t:ágico e comico. Esta é 
a situação principal de SeiS personagens em busca de um 
autor. E a própria realidade da: peça - seis figuras em 
procura desesperada de um intérprete que não encontram 
- não será um símbolo profundo de toda a obra de Pi­
randello, da terrível descontinuidade entre um autor cô­
mico e personagens trágicos ? E' certo que sim, e Piran­
dello tinha conciência deste desencontro que é o centro 
da sua arte. De qualquer forma, Pirandello ficará como 
um intérprete, no teatro ,do homem burguês dos nossos 
dias : do homem burguês da decadência e da desompo­
sição. 
A estréia do sr. Marques Rebello como autor teatral 
(Rua Alegre, 12, Curitiba, 1940 ) vem colocar diante de 
nós este problema da representação da sociedade burguesa 
através da arte dramática. Não propriamente a alta bur­
guesia, como nos dramas de Henri Bernstein, e sim esta 
pequena burguesia de sentimentos mornos e existência 
medíocre. Sabe-se, ·aliás, que o sr. Marques Rebelo tor­
nou-se, no sseus contos, uma espécie de intérprete desta 
172 A l v a r o -L i n s 
sociedade de suburbios, de pensões e deruas humildes e 
esquecidas. Nesta orientação, é um continuador da obra 
de Manuel Antonio de Almeida e Lima Barreto. Em A 
Estrêla sobe, no entanto, abrira um novo caminho : o 
da análise de caracteres. Leniza - personagem de A 
estrela sobe - está muito alem desta indistinção social 
e moral que parece ser a nota dominante da pequena bta·· 
guezia. Foi atirada no romance com uma complexidade 
e uma intensidade capazes de documentar no sr. Marques 
Rebelo um artista apto para a expressão dos misterios da 
alma humana. Creio que este caminho novo que Ge abrira 
com A estrêla sobe era muito mais propício à sua expe­
riência teatral - como caracterização de personagens 
'
e 
como atmosfera dramática - do que este que seguiu em 
Rua Alegre, 12. 
No entanto, devemos asainalar que o sr. Marques Re­
belo conseguiu' realizar uma obra realmente de teatro, o 
que julgo importante por se tratar da estréia, neste gê­
nero, de um escritor vindo da poesia , do conto e do ro­
mance. Estou certo de que a sua peça poderá ser inte­
gralmente representada, com exceção de algum1 detalhes 
de mise-en-scene e de diálogos, facilmente modificaveis. 
Noto, de maneira especial, a naturalidade e a vivacidade 
dos diálogos, a harmonia dos c�:tracteres dos personagens 
em face dos fins para os quais estão dispostos, movimen­
tação de cenas e de fig11;ras em conformidade com todo 
o enredo. Tendo em vista o assunto e a finalidade dentro 
dos quais se desenvolve, podemos dizer Rua Alegre, 12 
sustenta do principio ao fim uma unidade tanto interior 
como exterior. 
Mas num se�tido geral e absoluto da arte dramática, 
o que se conclue é que Rua Alegre, 12 representa mais 
uma experiência do que uma realização. Tudo o que 
a peça contem, encontra-se ,disposto de maneira correta e 
lógica ; mas para alem dos seus elementos existem outros 
J o r n a l d e C r í t i c a 173 
absolutamente necessários. E tudo o que falta em Rua 
Alegre, 12 decorre mais do tema da peça do que propria­
mente do sr. Marques Rebelo. Esta sociedade de pequena 
burguesia apresenta dificuldadee enormes para sua fixa· 
ção em obra teatral. Muitos dos recursos, por exemplo, 
tle variedade e de movimento, que o autor podia dispor 
nos seus contos, acham-lle fechados pelas limitações da 
cena teatral. O conto pode se estender em continuidade ; 
o teatro terá que se comprimir em intensidade. E inten­
sidade quer dizer ação, paixões, lutas dramáticas de carac­
teres. O drama burguês - o drama da alta burguesia 
- afirma-se precisamente na densidade de certas paixões, 
como o ainor e o dinheiro. Em Rua Alegre, 12, ao con­
trário, nenhum personagem aparece impulsionado no 
sentido de uma paixão forte e definida. Dir·se-á que as 
paixões dessa espécie não · são muito comuns nos homens 
da pequena burguesia. Concordo que sim, e eis porque 
afirmei- a quase iinpossihilidad� (não digo impos,sihili· 
dade absoluta porque esta contingência não existe em li­
teratura) de teatralizar os seus temas e sentimentos. Esta 
impossibilidade é que tornou Rua Ale15re 12, uma peça 
destituída de ação, o que, como se sabe, não é a mesma 
cosa que enredo. De ação, que tambem significa, em 
certas obras, poesia e mistério. E o que acabamos notando 
é uma desproporção entre a forma da peça e o seu con­
tendo. Todos os rigores de uma técnica não só correta 
mas avançada, para uma história e um desenvolvimento 
demasiado simples. 
" Esta técnica revela que o ·sr. Marquee Rebelo conhece 
muito hem a sua nova arte e sobretudo o teatro moderno. 
O conhecimento de Pirandello e de Lenormand é o que 
se torna mais ostensivo. À maneira de Pirandello, pre­
tendeu unir um cômico de autor e um trágico de pen�o­
nagem, mas o que resultou foi uma fórmula inversa : o 
autor em busca de seus pemonagens . . . De Lenormand, 
174 A l v a r o L i n s 
com certeza, foi a sugestão de revelar o personagem num 
duplo estado de conciência e de subconciência. Utilizan­
do-a, Rua Alegre, 12 trouxe par!! o teatro brasileiro a 
contribuição de uma técnica que permite um desdobra­
mento de planos na arte dramática. No caso que estamos 
comentando, a peça se desenvolve em dois planos para­
lelos : um, no cenário ; o outro, em cortina descida. No 
·primeiro, representam-se os personagens, na sua vida ha­
bitual, em estado conciente ; no segundo, representam-se 
os seus pensamentos mais íntimos, uma espécie de vida 
3ubconciente, em contradição com a da vida comum. 
Mas estes doia planos aparecem dispostos num carater 
normal de dualidade que simplifica um efeito que de­
veria ser necessariamente mais complexo. Obteriam, na 
verdade, uin efeito muito mais impressionante se o sr. 
Marques Rebelo - seguindo o teatro de Lenormand nas 
suas últimas consequências - houvesse colocado o con­
dente e o subconciente num estado intensivo de combate 
dramático. Além do que, em Rua Alegre, 1 2 os pensamen­
tos íntimos do subconciente apresentam-se bastante super­
ficiais e destituídos daqueles mistérios remotos que exp1i­
cam a personalidade humana. 
15 de março de i941. 
CAPiTULO XV 
SHAKESPEARE E O BRASIL 
O UE ninguem se assuste com o título desta crônica. Ele não promete um estudo crítico sobre Sh�kes­
peare, o que seria, para um crítico brasileiro, uma im­
prudência ou . uma gaffe. Não cometerei nem a imp�-: 
dência nem a gaffe de escrever sobre um, gênio da litera­
tura sem que nada tenha de novo para reV'�lar . como 
contribuição pessoal. Esta invocação do nome de Shakes­
peare visa a apresentação de alguns elementos de litera­
tura comparada, com a tentativa de verificar a possibili­
dade de uma aplicação ao Brasil. Os estudos de literatura 
comparada não são muito antigos na Europa ; entre nós, 
podemos dizer que ainda não existem, Desconfio mesmo 
que irão encontrar aqui um ambiente de prevenção e hos­
tilidade, o que se explica pela nossa p'osição em face de 
literaturas mais velhas e mais fortes. Pois um problema 
que logo se levanta na literatura comparada é o das in­
fluências, ou mais exatamente : o das comunicações e apro­
ximações entre autore�, entre livros, entre literaturas. 
Na Inglaterra ou na França, por exemplo, um estudo dessa 
espécie apresenta duas faces : a influência estrangeira que 
cada um deles recebeu e a influência que por su a vez 
transmitiU. No Brasil, um estudo idêntico terá, por en­
quanto, uma só face : a das influências que recebemos. 
O que é certo é que nenhuma obra da nossa literaturll 
conseguiu ainda projetar-se em outro país com o carater 
de fecundação de novas obras. Essa. diferença é que ex­
plicará a desconfiança com que será recebida, segundo su-
176 A l v a r o L i n s 
ponho, qualquer tentativa de implantação, entre nóa, doa­
estudos sistemáticos e ordenados de literatura comparada. 
Mas essa desconfiança logo desaparece quando consegui­
mos fixar o problema como um fenômeno natural, como 
um acontecimento, e não como um crime. A fixação deve 
partir deste princípio : ninguem apareceu na vida literári� 
com uma força original e exclusiva. Nenhuma literatura, 
nenhum autor. A vida literária é como a própria vida : 
ela começa e se levanta por intermédio da imitação. Toda 
infância é imitativa, afim de que sobre a imitação venha 
a se erguer uma peraonalidade autônoma de homem. A 
imitação inicial não anula uma futura originalidade. Ao_ 
contrário : os que partiram da imitação são os que con­
seguem atingir a originalidade com mais conciência. Não 
tenhamos medo, portanto, de qualquer revelação que nos 
possa trazer a literatura comparada, no capítulo das in­
fluências. E' que as influências literárias sempre consti­
tuem um elemento de renovação c de vida. Pasaado o 
período de imitação, elas vão indicar os caminhos cria­
dores e originais que uma literatura e um povo podem 
percorrer dentro do seu destino e do seu espírito. 
Venho hoje sugerir o estabelecimento de uma cor­
rente de influências para o nosso teatro. Conhecemos 
mais ou menos, nos seus aspectos gerais e informativos, 
as correntes de influências que fecundaram a nossa poesia,o nosso romance, os nossos estudos sociais. Neste sen­
tido, como em todos os outros, o teat�·o brasileiro perma­
nece como um gênero solitário. Ele não apresenta a mais 
ligeira harmonia com a evolução de qualquer outro dos 
nossos gêneros literários. Transmite a impressão de uma 
vida que se fechou num círculo de ferro e que dentro dele 
se debate inutilmente. Algumas tentativas isoladas nada 
conseguem contra uma situação de ordem geral. Ainda 
há alguns dias, tive oportunidade de ler uma entrevista do 
sr. R. Magalhães Junior, na q�al este autor afirma a 
J o r n a l d e C r í t i c a 177 
sua desilusão a respeito do teatro braBileiro e o seu pro­
pósito de nada mais tentar neste sentido. Contudo, sur­
gem, de toda parte, sugestões e alvitres com o fim de 
colocar o nosso teatro num outro plano que não seja este 
em que se acha : um plano negativo e vazio. Eetando o 
sr. Gustavo Capanema - que tem dado ao seu Ministério 
a feliz extensão de um carater administrativo para um 
carater cultural - tão interessado no destino da nossa li­
teratura teatral, dirijo-me diretamente ao ministro da Edu­
cação, com o propósito de sugerir tambem uma fórmula 
de salvação. Talvez que seja julgada, no primeiro mo­
mento, como uma atitude extravagante ou esnobieta. As­
seguro, porem, que
· 
se reveste da maior seriedade, acom­
panhada de uma quase certeza do seu êxito. O que pro­
ponho é a execução desta iniciativa : que o Ministério da 
Educação faça traduzir e representar a obra completa de 
Shakespeare. Uma proppsta desta natureza deve ser ex­
plicada : eis o fim desta crônica. O que se pode eeperar 
de uma tradução, de uma 1·epresentação de Shakespeare 
no Brasil ? Antes de uma respoata, prefiro apresentar 
alguns elementos de literatura comparada em torno da 
obra de Shakespeare. Através deles a conclusão se tor­
nará mais facil e mais evidente. Trata-se de uma do­
cumentação que impressiona no seu conjunto, embora seja 
quase monótona pela repetição. 
Podemos dividir os estudos !'hakespearianos em três 
ordens diferentes ; 1.0) o éstudo da obra em si mesma ; 
2.0) a história da obra ; 3 .0 a história da influêncià que 
a obra tem exercido. 
Sobre a obra em si mesma nenhuma discussão se 
torna mais possível. A seu respeito um crítico falou em 
"floresta encantada". Deve-ee dizer antes um mundo com­
pleto ; e só uma enumeração de títulos seria suficiente 
para impressionar profundamente : os dramas históricos, 
de King John a The Life and Death of King Richard lll, 
178 A l v a r o L i n s 
resumo impressionante de uma história nacional, como 
nenhum outro povo conseguiu realizar ; as cinco mais po­
deroaas tragédias da literatura universal (Hamlet, Prince 
of Denmark, The Tragedy of Macbeth, The King Lear, 
Othello, the moor o f V enice, The tragedy o f Romeo and 
]uliet ) ; as três grande;;; reconstruções da Antiguidade (Co· 
riolanus, ]ulius Caesar, Anthony and Cleopatra) ; as co· 
médias fantásticas (As you like it, A midsummernight's, 
dream) ; as comédias amargas (The merchant o f V enice, 
Measure for measure) ; as "peças de sonho" ( The Winter' s 
Tale, Cymbelitre, The Tempest ) . A enumeração poderia 
ser desdobrada para todas as trinte. e sete peças - sem 
falar dos sonetos e das obras propriamente líricas - com 
os seus personage� inconfundíveis, com os seus sentimen­
tos simbólicos, com as suas ações dramáticas, com o seu 
lirimo, com a sua filosofia, com a sua vida particular que 
não envelhece nunca apesar dos trêa séculos que a acom­
panham. Destas trinta e sete peças, cada uma bastaria 
para tornar um poeta imortal. Talvez que possamos con­
siderar exagerados os julgamentos ingleses, inspirados 
numa possivel vaidade nacionalista. Vejamos, então, um 
julgamento francês que exprime, neste caso, um julga­
mento universal : "La littérature de langue anglaise, une 
des littératures les plus riches en beanté originale est la 
plus grande que le monde ait jamais vue." ( . . . ) "Si riche 
que cette littérature soit en écrivains admirables, elle n'a 
plus produit aucune autre pour toucher, même de loin, 
à la . place, d'ou la lumiere de Shake.speate rayonne sur 
tout le monde." · (Emile Legouis e Louis Cazamian, em 
Histoire de la littérature Anglaise) . 
Segue-se, então, uma bibliografia riquíssima, na qual 
<'Stão colaborando os representantes de todas as literaturas. 
É a vida póstuma de Shakespeare, toda uma história li­
terária da sua obra, constituindo-.se como uma realidade 
que se tornou independente do próprio Shakespeare. 
J o r n a l d e C r í t i c a 179 
Uma história, porem, que apresenta os seus acidentes ca­
racterísticos. Depois de 1660, o gosto classicista vindo da 
França domina por toda parte ; e Shakespeare se torna um 
motivo de desprezo e de injúria. Foi preciso, no século 
XVIII, que três figuras diferentes realizassem uma espé­
cie de descoberta de Shakespeare : o poeta Alexandre Pope, 
o crítico Samuel J ohnson e o ator David Garrick. Algu­
mas resistências ainda se opõem nesse caminho, mas o prer­
romantismo opera contra essas forças contrárias, colocando 
Shakespeare na posição singular, onde ainda hoje se con­
serva ap·esar de todas as transform a ções do gosto literário. 
Fixou-se desde então a influência extraordinária dessa 
obra. Mas, nesta altura, torna-se necessário distinguir a 
influência literária e a. influência teatral. Uma distinção 
entre a vida teatral e a vida literária. A influência lite­
rária de Shakespeare foi durante muito tempo rigorosa­
mente_ destrutiva, como sucedeu com os artifícios da tra­
gédia clássica. Na Inglaterra o ressurgimento shakespeari­
ano, no séculó XVIII, não renovou a produção dramática ; 
no século XIX, a única obra dramática de grande pro­
porção - à Beatrice Cenci, de Shelley - é de inspiração 
shakespeariana, mas permanece solitária ; por sua vez, o 
grande teatro inglês do século XX não pôde · escolher 
os caminhos de Sh akespeare. Na França, essa influência, 
nos princípios ào século XIX, destruiu os restos da tra­
gédia clássica ; e será preciso notar que as únicas pro­
duções dramáticas deste século francês que se desenvol­
vem numa atmosfera de verdadeira poesia - as comédias 
fantásticas de Musset - são de uma visível fonte shakes­
peariana. Depois, porem, o teatro francês não mais co­
nheceu essa influência ; nem sequer sobreviveu a tragédia 
ehakespeariana de Vigny e Victor Hugo. Na Itália, o 
mesnio resultado negativo, com o fracasso das peças de 
Alfieri (Saul) e de Manzoni ( Carmagnola e Adelchi) . O 
crítico Lessing, na Alemanha, serve-se de Shakespeare 
180 A l v a r o L i n s 
como um instrumento de combate contra a tragédia fran­
cesa, mas as suas próprias peças não se harmonizam intei· 
ramente com esta atitude. Goethe e Schiller logo aban­
donaram o grande modelo, enquanto o teatro dos român­
ticos fracassava inteiramente, porque, depois de imitar 
Shakespeare, ficou se debatendo na impossibilidade de ul­
trapassar essa imitação. Na segunda metade do século 
XIX, a influência propriamente literária de Shakespeare 
vai se 1·eduzindo cada vez mais. 
No entanto, o que vale para a literatura dramática 
não tem uma igual significação para o teatro em si mesmo, 
para a vida teatral como uma realidade independente. 
Somente três vezes, como se sabe, a Europa conheceu um 
teatro verdadeiramente nacional e espontâneo : o teatro 
inglês elizabetiano, o teatro espanhol, o teatro clássico 
francês. Desde então, todo o teatro europeu vem sendo 
uma consequência de trabalhos e de planos collBtante­
mente ameaçados e até destruidos. E dentro dessa his­
tória do teatro uma tese pode ser _estabelecida : é sempre 
a influência de Shakespeare que tem oferecido uma vida 
nova para o teatro. Mais ainda : em pequenos paises ou 
em literaturas menores a influência de Shakespeare apre­
senta como resultado a criação de um teatro nacional e 
autônomo. Eis o 
' 
aspecto fundamental desse problema 
shakespeareano que estou sugerindo e que vou desdobrar 
através de alguns exemplos significativos. Nocentro
--de 
uma certa renascença do teatro inglês, no século XVIII, 
encontra-se Shakespeare. Os preconceitos das classes pu­
ritanas haviam desacreditado o teatro, cabendo ao ator 
David Garrick uma vitória contra estes mesmos precon­
ceitos, através da representação de peças de Shakespeare 
(Shakespeare festival, 1769 ) . Seguem-se algumas alter­
nativas : sempre o teatro inglês se vê ameaçado e sempre 
se salva por intermédio de Shakespeare. Em 1820, são 
os atores Kean e Kemble que o fazem voltar ao cartaz ; 
J o r n a l d e C r í t i c a .181 
em 1860, Macready, Booth e Phelps ; e m 1900, lrving e 
Ellen Terry ; em 1920, o "Old Vice Theatre", que repre­
senta exclusivamente Shakespeare, constituindo-se, depois 
de três séculos, o primeiro teatro estavel da Inglaterra. 
Mas, dir-se·á, o caso inglês não prova suficientemente uma 
tese universal, porque afinal ShakeBpeare é um inglês. 
Acrescente-se, antes de qualquer outro, o caso norte-ame­
ricano : o teatro da Broadway, em Nova-Iorque, que era 
antigamente tão inferior e tão escandaloso, foi purificado 
e elevado por uma renascença shakespeariana, em 1920, 
o que tornou possível o aparecimento de um Eugene 
O'Neill. Fixemos, pois, a nossa tese neBte sentido : a re· 
presentação de Shakespeare em qualquer país pode abrir 
o caminho para uma produção de carater nacional. Este 
é o caso, sobretudo, dos países de pequena literatura ou 
de literatura em formação. Na Dinamarca, por exemplo, 
o teatrp de Holberg, no século XVIII, não apresentava 
.sequer um sucessor ; em 1830, o diretor do teatro real, 
J ohan Ludwg Heiberg, introduz Shakespeare, que se torna 
um ídolo desse povo ; e depois surge uma produção dra­
mática que é completamente independente de Shakespeare. 
Na Noruega, cuja literatura nacional não existia antes de 
1800, o "Teatro Dinamarquês", em Oslo, começa a repre· 
sentar Shakespeare, em 1850 ; e logo aparecem Ibsen e 
Bjõrnson. Na Suécia, Shakespeare preparou o ambiente 
para AuguBto Strindberg. Na Holanda - que se achava 
sem literatura dramática desde Vondel, no século XVII 
- surgiu uma abundante produção teatràl, logo depois 
de um renaBcimento shakespeariano, em 1900. Na Rússia, 
onde foi introduzido por Pouchkine, as representações de 
Shakespeare - sempre presentes nos teatros mais mo­
dernos, de Stanislwski até Meyerhold - excitaram várias 
expenencias nacionais. Na Polônia, o milagre de um novo 
teatro "classicista" ( Stanislaw Wyspansky) tornou-se pos­
sível através de uma tradição shakespeariana. Entre os 
182 A l v a r o L i n s 
checos . ·e os húrrgaros, dois diretores,Kvapil e Hevesi, 
fizeram de Shake.speare o autor . mais representado dosr 
seus teatros nacionais ; e em ambo� os países surgiu depois 
uma produção dramática independente. 
Muito oportuno, por outro lado, é o caso de litera­
turas latinas. Não houve nunca na Itália um teatro de 
grande importância ; apenas, bons atores com;eguem 
salvar, de vez em quando, a sua reputação. Pois bem : 
atores como Ristori, Rossi, Zacconi, Duse, Irma Gramma­
tica, têm sido intérp�etes de papéis shakespearianos, res­
guardando assim o teatro italiano da banalidade das peças 
de tese.s e da "comédia de sociedade". Na França, a tra· 
dição nacional constitue um obstáculo, sobretudo com o 
perigo de sua petrificação na oficial Comédie Française. 
No entanto, Shakespea,;re· subjuga às vezes a própria Co­
médie Française, que conheceu, depois de 1 920, todo um 
repertório shakesperiano. Lembremos a Eepanha, mais 
antishakespeariana ainda pela própria natureza de suas 
condições artísticas. O teatro romântico espanhol (Hart­
zenbusch, Rivas, Martínez de la Rosa) e o teatro moderno 
de Benaventes se ergueram dentro do espírito e da con,­
ciência artística de Shakespeare. Por sua vez, o caso da 
Alemanha apresenta um interesse especial, porque esse 
poV'o teórico veio contribuir com uma teoria para a his­
tória literária de Shakespeare. Desde os princípios da 
sua literatura moderna, o teatro nacional constitue a aspi­
ração maj.s ardente dos alemães. A imitação dos franceses 
não apresentou resultado nenhum. Lessing afasta estes 
modelos, mas fracassà na criação de uni novo teatro. Uma 
palavra de Goethe vai servir como um indício. Em seu 
romance Os- anos de aprendizagem de Wilhem Meister, 
Goethe descreveu a iniciação de um ator de teatro ; e todo 
o romance se desenvolve em torno de uma representação 
de Hamlet. O modelo era o ator Schroder, que, na ci· 
dade de Hamburgo, em 17i6, lançou a primeira repre-
J o r n a l d e C r í t i c a 183 
sentação de Shakespeare com um sucesso fora do comum. 
Shakespeare torna-se, desde então, não só o autor mais 
representado na Alemanha, mas tambem o responsavel 
pela teoria teatral alemã, segundo a qual o teatro é um 
"templo das musas", um púlpito leigo, uma realidade 
espiritual da maior seriedade. E quando Max Reinhardt 
i'unda o "teatro alemão"; em Berlim, o seu neo-roínan­
tismo vai dever a sua vitória a uma série de mises-en­
scimes shakesperianas. Assim, a Alemanha deveu a 
Shakespeare a existência de um teatro estavel, de um 
teatro que podia se defender das exigências comerciais, 
para se manter, dentro de considerações exclusivamente 
artísticas. 
Naturalmente, em toda parte, o teatro permanecerá 
ameaçado pelo falso gosto de um público que nada mais 
deseja alem de uma diversão facil, pela condescendência 
dos diretores e pela vaidade dos atores. Shakespeare se 
levanta, então, como o grande antídoto contra a falsi­
ficação ou a decadência da vida teatral. Onde ele surge 
a vida do teatro aparece ou ressuscita com a sua categoria 
verdadeira de "instituição estética e social". Eis porque 
se pode sugerir para o Brasil unia tradução e uma repre­
sentação da obra completa de Shakespeare. Logo se dirá, 
talvez, que a tradução é difícil e a representação quase 
impossivel no nosso meio artístico. Pressinto, por exem­
plo, esta pergunta irônica : quais os atores que irão inter­
pretar os personagens de Shakespeare ? Responderei que 
não se trata propriamente de uma representação perfeita 
de Shakespeare ( lembrando, no entanto, para os primeiros 
mom�p.tos, os estudantes e os amadores ) , mas de colocar, 
de qualquer maneira, esta obra genial dentro da nossa 
literatura, para que tenha um efeito de criação sobre a 
nossa vida de teatro. . Shakespeare operará, então, como 
um excitante, como um criador da vida teatral, o que ficou 
in�icado pel� çitação de exemplos de todas as espécies. 
184 A l v a r o L i n s 
Alem disso, os elementos do teatro se cruzam e se comu· 
nicam : se Shakespeare - mesmo imperfeitamente repre­
sentado - provocar o nascimento de uma verdadeira vida 
teatral, sucederá, como consequência, que essa vida tea· 
trai há-de provocar o aparecimento de atores que serão 
capazes de uma representação mais perfeita de Shakes­
peare. O resultado fi�al, como em outros países, poderá 
ser o advento de um teatro brasileiro. Está claro que 
ninguem poderá garantir que tudo se desenvolva até essa 
consequência esperada ; é uma experiência, no entanto, 
que nada imp�de que seja tentada. E está ao alcance do 
Ministério da Educação determinar uma providência como 
eeta, na qual se jogará para sempre o destino do teatro 
brasileiro. 
29 de novembro de 1941. 
CAPíTULO XVI 
LETRAS FEMININAS 
A IDÉIA de uma literatura feminina logo nos sugere uma idéia de fragilidade. Ou mais exa tamente : 
uma idéia de delicadeza, de suavidade, de transparência. 
E' uma idéia simplista, já se vê ; simplista e unilateral. 
Outra idéia de um sentido oposto é a de imaginar a es­
critora como uma espécie de monstro sem sexo, como 
um ser que !!C indeterminou no plano biológico como no 
plano intelectual. Uma idéia muito ajudada pela lem­
brança da figura famosa de George Sand. Mas não es­
queçamos que sexo em literatura deixa de apresentar um 
carater rigorosamente biológico. Nem sempre se ajustam 
e se correspondem a categoria de um sexo e os sentimentos 
que lhe sejam normalmente ·atribuídos. Muitas ohras 
masculinas- caracterizadas pelo vigor, pela segurança, 
pelo realismo - são obras de mulheres. Muitas obras 
femininas - caracterizadas pela fragilidade, pela fanta­
sia, pelo eufemismo - são obras de homens. Na litera­
tura moderna, a mais feminina de todas as obras não está 
assinada por um nome de mulher, mM de homem. E' a 
obra de Mareei Proust. Outras, porem, umas de homens, 
outras de mulheres, àpresentam uma espécie de equilíbrio 
e de harmonia entre sentimentos femininos e sentimentos 
masculinos. Diante delas é que Virgínia W oolf - ela 
mesma representando urna figura característica e sirnbó· 
lica - pôde concluir que em toda grande figura de ar­
tista existe . um temperamento dividido de homem e mu­
lher, existe um ser andrógino. Mas será preciso repetir 
186 A l v a r o L i n s 
que não se trata de uma condição de ordem biológica, mas 
de ordem intelectual. 
Acredito que seja importante lembrar essa comple­
xidade artística, no momento em que se vão tornando 
notaveis alguns nomes femininos, entr,.nós, adquirindo uma 
posição nas nossas letras que se poderá dizer normal, em 
contraposição ao que havia de excepcional, antigamente, na 
presença de uma mulher na vida literária brasileira. Alguns 
dos sucessos literários mais ostensivos e rumorosos destes 
últimos anos se dirigiram para nomes femininos, tiveram 
o fim de exaltar livros femininos de todos os gêneros : os 
de poesia, os de romance, os de ensaio. Um destes êxitos, 
um dos maiores, foi o da ' sra. Dinah Silveira de Queiroz, 
em 1939, com o seu romance Floradas na serra. Ele co· 
locou Uma nova escritora no cartaz, dando-lhe - ao me�J)lO 
tempo as vantagens e as responsabilidades de um tão po­
sitivo sucesso. O livro que a sra. Dinah Silveira de Quei· 
roz acaba . de publicar (A sereia verde, Rio 1941 ) é an­
terior, no entanto, ao romance que a tornou tão conhecida 
e que já obteve, �egundo se anuncia, quatro edições. Os 
contos que formam o presente volume são as primeiras 
composições publicadas pela autora em revistas e jornais. 
O mais importante deles, o mais longo, o que dá o nome 
ao volume, é o conto "A sereia verde" que apareceu em 
1938 na Revista do Brasil. Foi com ele que a sra. Dinah 
Silveira de Queiroz atraiu a atenção dos meios literários 
para o .seu nome : era nma estréia afirmativa, impunha a 
presença de um temperamento, revelava uma escritora, 
que se mostrava mais cheia de possibilidades do que de 
realização. Lembro-me no entanto que li "A sereia V'erde" 
com uma impressão muito mais favoravel do que est .. 
que me deixa agora a sua nova leitura em volume. Talvez 
porque há três anos eu estivesse diante de uma estreante 
e de uma desconhecida, _ e a impressão se misturasse com 
a surpresa da revelação. Talvez porque não tivesse como 
· J o r n a l d e C r í t i c a 187 
agora a obrigação de falar a seu respeito. Talvez ainda 
por esse desencontro fatal que se opera sempre entre as 
impressões de duas leituras de uma mesma obra que não 
é uma obra-prima. Não sei, afinal. O que sei é que "A 
sereia verde" deste volume não alcançou sobre mim a 
mesma repercussão que "A sereia v·erde" da Revista do 
Brasil. Contudo, o conto é o mesmo e nada se modificou ; 
nem mesmo me parecem alteradas aa qualidades melhores 
que pude encontrar e ainda encontro nesse conto, ou no­
vela, da sra. Dinah Silveira de Queiroz. Somente no 
conjunto mesmo da obra poderei localizar o que se p artiu 
e diminuiu na minha impressão. 
Todos os contos de A sereia verde pretendem situar 
figuras de mulheres, 'fixar iemperamentos femininos. E 
nesta direção· catá realmente o principal talento da sra. 
Dinah Silveira de Queiroz. Em Floradas na serra o per� 
sonagem mais significativo é uma mulher : Lucília ; e a 
página mais vigorosa é a que descreve a morte de Belinha. 
As mulheres, sobretudo as mulheres adolescentes,- parecem 
concentrar toda a ambição literária da sra . Dinah Silveira 
de Queiroz. Nos contos de A sereia verde tambem são 
femininas as figuras que determinam os enredos e os de­
senvolvimentos da ficção : Júlia, Marilda, Marta, Babinha. 
A escritora poderá, assim, mais facilmente, ser fiel a si 
mesma, sem se colocar diretamente, peasoalmente, na sua 
obra. Essa capacidade - às vezes feliz, às vezes infeliz -
de se abstrair da própria obra constitue uma caracterís­
tica da sra. Dinah Silveira de Queiroz. A sua emoção 
criadora nunca a conduz a uma dessas confissões totais 
de personalidade que ·comovem e arrebatam o leitor. A 
sua literatura é sempre agradavel. Receio mesmo que a 
sua consistência não suporte uma maior duração. Ela 
narra as suas histórias a distância, como que tem receio 
de se contaminar. Logo se sente que a sua figura pes­
soal está pairando numa situação de paz, de tranquilidade 
188 A l v a r o L i n s 
espiritual, de contentamento de si mesma e da própria 
vida. E' certo que nem sempre - ou quase nunca, para 
ser mais exato - os seus personagens apresentam uma 
situação idêntica. Os seus personagens não são muito ri­
gorosamente os seus espelhos. Eles têm os seus problemas 
e as suas inquietações, os seuB ímpetos de evasão, os seus 
conflitos com a vida. Nunca, porem, essas realidades se 
levantam muito vivas e poderosas porque a sua autora 
está a distância, está impossibilitada de se confundir com 
elas, mesmo subjetivamente, e exprimí-las através de si 
mesma. 
De ordem psicológica é o desenvolvimento do conto 
"A sereia verde". Todo ele se processa numa atmosfera 
de sugestão, de meio-tom, de pensamentos e ações que se 
suspendem no momento da definição. Ele é a apresenta­
ção de um sentimento que se levanta, que toma forma, 
mas que se esvai no momento de se transformar em ato. 
O amor de Júlia a Leonardo fica assim numa esfera de 
exclusiva tentação. E o que há de mais interessante no 
conto é justamente a sucessão de sensações que Júlia vai 
experimentando até a sua resolução final de não se en· 
tregar a Leonardo, como já havia deliberado e combinado 
com ele. No meio do conto, uma página que se pode 
destacar é aquela que descreve a impressão de Júlia, ainda 
adolescente, ao contémplar, pela primeira vez, o espetá­
culo do amor, através de Marilda e do seu namorado. 
Por outro lado, porem, o conto apresenta alguns defeitos 
que igualmente se destacam. Um deles - já que não 
posso transmitir minuciosamente todas as minhas anota­
ções - é a falta de continuidade, não digo propriamente 
da narração no sentido exterior, mas do espírito mesmo 
que sustenta interiormente o conto. Certas situações nar­
rativas ou psicológicas sé intercalam ou se suspendem de 
uma forma que mostra muito bem como a autora não 
está ainda no conhecimento e no domínio de toda a arte 
J o r n a l d e C r í t i c a 189 
literária. A página final, por exemplo, tem uní' carater 
afirmativo extremamente arbitrário. Portanto, de ordem 
contrária ao espÍrito da literatura. A sra. Dinah Silveira 
de Queiroz deveria ter criado em Júlia um estado de es­
pírito necessariamente mais convincente para explicar a 
sua resolução que vai encerrar todo o conto, pela sur-
, presa com que se coloca contra o seu desenvolvimento. 
�A solução foi um achado feliz, mas a sua apresentação 
literária não logrou o mesmo efeito. Ela foi lançada de 
uma maneira demasiado abrupta. Mas em literatura, em 1 
ficção, não basta dizer ou querer ; o easencial é o desen­
volvimento num plano de verossimilhança artística. E 
onde falta toda verossimilhança artística de uma maneira 
ainda mais osrensiva é no conto intitulado "Pecado" A 
questão se levanta nesta _pergunta que o leitor se sente 
levàdo à fazer : como pôde a autora "conhecer" a história 
do conio ? Como está disposto, eese "conhecimento" ' seria 
impossível, mesmo no plano da fantasia ou da imaginação. 
A contista poderia "saber" da morte de Gina ; nas condi­
ções em que apresenta os personagens e as situações, não 
poderia, no entanto, "saber" quem a matou e como foi 
morta. Eetou falando de uma verossimilhança - o que 
é uma norma de toda a minha crítica em face da lite­ratura de ficção - exigida pela arte, em si meama, e não 
pela arte em correspondência com a vida ordinária. Com 
a sra. Dinah Silv'eira de Queiroz, nesse conto, se operou o 
desencanto que teríamos diante de um mágico que des­
cobrisse o segredo de suas transformações. Sabemos que 
é uma "ilueão" a realidade criada pelos mágicos, mas 
não nos lembramos dessa circunstância quando o seu tra­
balho tem integridade e perfeição. Temos a idéia de todo 
um mundo que desaba, porem, quando descobrimos o ar­
tifício da mágica. Pois bem : o romancsita, o escritor de 
ficção é um magiCo, é um ilmionista. A perfeição · do 
seu trabalho está na capacidade de fazer com que se 
190 A l v a r o L i n s 
aceite a sua representação sem nada perguntar. Quando 
se pergunta, estamos diante de um erro de técnica. Todos 
os outros contos da sra. Dinah Silveira de Queiroz apre­
sentam outros defeitos equivalentes, ao lado das suas po­
sitivas qualidades de composição e de imaginação. Em 
"Bandeirita", & o convencionalismo das situações políti­
cas, com as quais, logo se vê, a autora não está habituada 
a tratar ; em "Raimundo, Babinha e Eunice", é a ausên- · 
cia de um mais forte desenvolvimento, pelo que permanece 
um simples quadro, embora bastante sugestivo ; em "A 
fileira das sombras", é o excessivo sentimentalismo. Deste 
volume, o conto que mais se afirma e mais interessa é 
realmente "A sereia verde". Os outros são como que en­
saio.s e esboç9s. 
Ainda quero me referir ao estilo da sra. Dinah Sil­
veira de Queiroz pára ressaltar o que há de agradavel na 
sua prosa, embora se erguendo sobre uma estrutura muito 
fragil, que às vezes se torna mesmo fraqueza. Do tom 
muito leve do seu estilo decorre, talvez, o abuso com que 
insiste em certos recursos de pontuação. O abuso das 
reticências e dos pontos de exclamação. Essas pontuações 
podem constituir recursos muito favoraveis, mas podem 
significar tambem, quando utilizadas de mais, uma certa 
fraqueza de palavras, ou de idéias, ou de pensamento, ou 
de imaginação. Tambem gostaria de chamar a atenção da 
sra. Dinah Silveira de Queiroz para a ausência de verbos 
ou de complementos em alguns períodos do seu livro. 
Em pedodos que não continuam os anteriores, que não 
participam dos verbos dos perío-dos que os antecedem. 
Neste, por exemplo : "Essa gente toda, e nós três, a ju­
ventude - que por um capricho da sorte andávamos nos 
dezesseis anos - eu ia fazê-los, Marilda já os tinha e 
Lia ia para os dezessete." 
De tudo se conclue que o ialento literário da era. 
Dinah Silveira de Queiroz, que existe realmente, está ne-
J o r n a l d e C r í t i c a 191 
cessitando de uma maior concentração artística, de um 
maior contingente de esforço pessoal e de técnica, de uma 
vida, portanto, mais intensa e mais interiorizada. Em­
hora correndo o risco de me tornar conselheiral, sugiro 
à sra. Dinah Silveira de Queiroz a necessidade de des­
denhar o sucesso momentâneo, todos os elogios faceis, 
que só podem perturbar a sua carreira e a sua vocação 
de V'erdadeira escritora. Somente assim, ouvindo os que 
têm a coragem de 
o
lhe dizer a verdade, fazendo-lhe justi­
ça, conseguirá vencer uma certa fragilidade que se en­
contra na sua obra. Uma fragilidade que não vem só da 
sua condição feminina, mas que é de uma condição mais 
geral e mais ampla. E o que indica que, . na vida artís­
tica, a sra. Dinah Silveira de Queiroz terá a coragem de 
seguir o caminho mais difícil e mais fecundo '--- o da 
porta estreita - é a constatação da superioridade do seu 
segundo livro - Floradas na serra - sobre o primeiro que 
agora publica, sob o título de A sereia verde, emborà não 
seja ainda o seu admiravel romance a obra-prima que mui­
tos identificaram com evidente exagero. 
* 
Depois de um livro de contos, aquí estão dois ro­
mances femininos : o Diário de Ana Lúcia, da ara. Maria 
Eugenia Celso, e A mulatinha enjeitada, da sra. Miris de 
Mello, ambos deste ano. O livro da sra. Maria Eugenia 
Celso pode ser considerado como uma espécie de confissão 
psicológica. Este é, realmente, o seu aspecto mais con­
sideravel : o de constituir a revelação de uma alma auten­
ticamente feminina. Ao contrário da sra. Dinah Silveira 
de Queiroz, sente-se que a .sra. Maria Eugenia Celso está 
identificada como a sua Ana Lúcia. Qua.se que me arris­
co a dizer que ela mesma é que é Ana Lúcia, pelo menos 
no seu traço mais característico : o sofrimento, ora re-
192 A l v a r o L i n s 
signado, ora revoltado, em face de certos desencontros 
com a vida ; de certos desencontros entre um ideal fe­
minino e uma realidade sem sexo. A personagem re­
presenta a história ( ou a confissão) de uma mulher que 
não pôde ser ela mesma, de uma mulher a quem o des· 
tino reservou uma existência diferente daquela a que 
aspirava o que havia de mais profundo na sua persona­
lidade. Esta é a história de uma perspnalidade que fica 
esmagada, escondida, irrevelada. O sofrimento que se 
adivinha e se sente neste desencontro é o sentimento maia 
comovente da figura de Ana Lúcia. Daí a sua vocação 
para o diário ; o diário é uma vocação : a daqueles que 
não se realizam dentro da vida, daqueles que não se sen· 
tem compreendidos pelos seus semelhantes. Todo o diá­
rio de Ana Lucia se concentra neste tema que ela mesma 
coloca : "Não lhe disse nada, tolhida como semprê pelo 
receio da interpretação errônea, e deste invencível pudor 
de ser eu mesma que me tem f_eito na vida tão diferente 
de mim." A outra parte do livro, em que as reflexões se 
concentram no abstrato ou na fantasia - esta me parece 
hem mais inferior. Não tem a espontaneidade e a fir­
meza das páginas mais simples e mais humanas, umas do 
diário, outras das cartas, nas quais Ana Lúcia vai se re­
velando, concretamente, a si mesma. A propósito, estou 
quase tentando a afirmar que a sra. Maria Eugenia Celso 
encontra no gênero epistolar o plano literário onde se mo­
vimenta mai� à vontade. Revela uma vocação à Madame 
Sévigné que se poderá aquí desenvolver com os resultados 
mais felizes. Porque um romance, propriamente, não é 
o Diário de Ana Lúcia; é um enaaio de interpretação psi­
cológica de carater feminino, embora muito perturbado 
por certas expressões estilísticas antiquadas ou de mau 
gosto, .por certos lugares-comuns e pelo uso de certas pa­
lavras que causam horror a qualquer leitor inteligente. 
Não é assim o Diário df1 Ana Lúcia um livro importante, 
J o r n a l d e C r í t i c a 193 
mas apenas um livro sóbrio, literariamente elevado, reve­
lando uma honestidade intelectual que merece ser ressal­
tada e respeitada. 
Do livro da sra. Maria Eugenia Celso para o livro 
da sra. Miris de Mello a passagem é extremamente brusca 
e violenta. Esta eu creio que não é leitora do sr. Stefan 
Zweig, pois esse escritor deve estar alto de mais para o 
seu gôsto, ou para a sua absoluta ausência de qualquer 
senso da arte literária. Naturalmente o seu ideal se con­
centra em autores como Pérez Escrich ou Delly. Mas sem 
apresentar, está claro, o talento d�ses autores : o talento 
da banalidade e do pieguismo. O seu romance, A mula­
tinha enjeitada, é piegas e é banal, mas sem ialento de 
qualquer natureza. Aliás ele não necessita de comentá­
rios, pois se explica todo ne�te "estilo" de dona de casa : 
"Era um patrão exigente, mas muito bom para os empre­
gados. Atendia a todos e a todos ajudava. Por isso, era 
estimadíssimo, coisa que não sucedia com D. Cândida a 
quem tratavam bem somente em respeito ao patrão. o 
orgulho excessivo que a dominava e o seu porte a�rogante 
tornavam-na antipática. Costumava fazer caridade, mais 
por ostentação que por amor ao próximo. Esse tempe­
ramento ela o herdara de sua inãe, uma ilustre senhora 
descendente de antigos fidalgos do nosso passado império . 
Devo dizer, porem, que a senhora Cândida Barroso de 
Andrade nunca fizera mal a ninguem. Apenas deixara de 
fazer o hem quando o podia ter feito." 
4 de outubro de 1941 . 
CAPíTULO XVII 
E N S A I O S 
L ONGE de qualquer conhecimento do sr. SergioMilliet, que não seja o puramente literário, vou . lendo no 
entanto o seu último livro de ensaios (O sal da heresia, 
São Paulo, 1941 ) como se me achasse muito perto da sua 
figura pessoal, como se estivéssemos lado a lado, falando 
e discutindo como dois companheiros que dificilmente 
ajustam sa suas opiniões, mas que acabam se entendendo 
em certas situações fundamentais ; ou acabam concordando 
em face de sentimentos comuns de tolerância, de displi­
cência, de dúvida quanto à eficácia das controvérsias. En­
éontro nos seus ensaios algumas das idéias e sensações ar· 
tisticas que mais estimo e venho sustentando ; encontro 
igualmente afirmações que se acham no extremo oposto 
aos meus pontos de vista. Falando de Péguy, depois de 
dizer que êle tinha "o ideal do hem, do certo, do i"'Ylto, 
do belo", o sr. Sergio Milliet acrescenta : "E é nisso que 
nos encontramos todos, gregos e troianos, todos que ainda 
não jogaram fora, coino uma pele incômoda, essa intenção 
humana de pureza, todos os que não transformaram ainda 
em "terra de ninguem" a �ua alma moderna." Dir-se-á 
que este representa um plano demasiado vago de enten· 
dimento e no qual todos os homens se esforçam por se 
colocar de acordo. Talvez que o acordo com o sr. Sergio 
Milliet termine por se situar num plano exclusivamente 
de inteligência. O que caracteriza realmente este ensaísta 
6 uma permanente atitude de homem inteligente ; não é D 
brilho, não é a força criadora, não. é o impulso sentimen-
J o r n a l d e C r í t i c a 195 
' 
I 
talista. Ele parece tudo querer reduzir a critérios de 
visão puramente intelectual. Nas suas opiniões, nas suas 
teses, no seu estilo, em tudo que escreve - é sempre a 
inteligência que ocupa o primeiro lugar. Por isso mesmo 
constitue uma tarefa agradavel a leitura da sua obra, em­
bora fragmentária .e talvez pouco consistente como O sal 
da heresia, coletânea de páginas de ocasiões diversas e 
apressadas, nas quais um autor nunca pode se realizar 
completamente ; e infelizmente são dessa espécie todas as 
páginas que tenho podido ler do sr. Sergio Milliet. De 
qualquer maneira, na sucessão de tantos livros de leitura 
obrigatória, muitos deles se afirmando exatamente pela 
falta de inteligência, tenho que ficar ainda agradecido 
aos autores como o sr. Sergio Milliet, que não aumentam 
(mais ainda : que fazem esquecer) o meu suplício de pro-
fissional . . . " 
Acompanhei, assim, todas as páginas de O sal da he­
resia como quem estabelece uma longa conversação sobre 
assuntos conhecidos e sugestivos. O ensaio tem exatamente 
esse direito, ou esse dever, de se tornar um exercício de 
comunicação muito direta e muito pessoal. Do gênero 
ensaio ao gênero epistolar a distância é muito curta e 
quase imperceptível. Os antigos ensaístas dirigiani-s di­
retamente ao leitor como criaturas que estivessem pes­
soalmente ao seu lado. Dessa maneira é que o sr. Sergio 
Milliet desdobra as suas páginas de ensaísta ; e não será 
sem interesse saber que inscreveu êste seu livro no signo 
de Montaigne, invocado e citado logo nas primeiras pá­
ginas explicativas. 
Apesar disso, o sr. Sergio Milliet começa por difinir 
que "o pensamento é o resultado de uma febre". Essa 
definição nasce da circunstância de confundir o ensaísta 
os valores do instinto e os valores da razão. O que quer 
dizer tamhem que ele dá ao pensamento um conceito exa­
tamente oposto ao que vai revelar pessoalmente com os 
196 A l v a r o L i n s 
seus exercicios literários. Nada no sr. Sergio Milliet in­
dica que o pensamento seja uma "febre", que "o estado 
normal do homem seja o de paixão". E' certo que mais 
adiante, citando Alain, vamos verificar que o sr. Sergio 
Milliet está circulando numa confu�ão injustificavel de 
têrmos entre "homem" e "massa humana . . . " Mas quem 
sabe se não estamos apenas diante de uma daquelas con- ­
trad�ções que o próprio ensaista louva como um atestado 
de que a inteligência está viva, de que tem força dialé­
tica, de que apresenta capacidade de renovação ? E não 
esqueçamos que será mais !acil procurar a linha domi­
nante destes ensaios, não nos seus desenvolvimentos ló­
gicos e consequentes, mas nos seus a-propósitos, nas suas 
digressões, nas suas anotações à margem dos assuntos. O 
sr. Sergio Milliet divaga em torno dos seus temas, passeia 
displicentemente através das suas próprias idéias. De re­
pente lembra-se de que 'le acha muito longe, escreve um 
"isso nada tem que ver com" - e regressa ao· seu ponto 
de partida. Devo dizer aliás que o ensaista escreve nestas 
ocasiões as suas páginas mais consideraveis e mais inteli­
gentes. Nem sempre o encontramos no mesmo nivel, 
porem, quando está fazendó crítica direta e imediata sobre 
autore� e livros. As expressões, por exemplo, com que 
estuda Francis J ammes foram se desdobrando numa forma 
de crítica que já se tornou bast11nte convencional. O es� 
tudo sobre André Gide, embora admiravel como expressãc, 
constitue, ao meu ver, como interpretação crítica, uma 
maravilha de incompreensão. Em certo momento, define 
Gide e Rousseau dizendo "que são pouco franceses os 
dois, porque isentos de malícia no amor e despidos de es· 
pírito gaulês". O que positivamente significa não haver 
dito nada. Tambem em ocasiões semelhantes é que o 
sr. Sergio Milliet perde mais de uma vez a segurança da 
expressão estilística, aquela sobriedade e aquele bom­
-gosto que tanto o distinguem. Espantei-me ao constatar 
J o r n a l d e C r í t i c a 197 
que ele chama Charles Péguy "um polemista de grande 
fôlego", que fala de "espíritos esfuziantes", que se refere 
a poetas "do mais belo estofo". Surpresa ainda maior 
representa a sua invocação da "fulgurante carreira" do 
sr. Stefan Zweig . . . 
Das suas páginas sobre assuntos brasileiros, algumas 
são de uma agudeza e de uma argúcia que bastariam 
para impor o nome do sr. Sergio Milliet como um en­
saísta de classe. Distingo, entre todos, os ensaios finais 
sôbre teorias e técnicas de arte, aplicadas mais direta­
mente à pintura. Aliás, como se sabe, o sr. Sergio Milliet 
é um dos nossos raros críticos de pintura, entidades que 
se vão tornando no entanto tão necessá:rias néste mo­
mento de renovação artística. Mais do 1qile nunca os 
pintores precisam hoje no Brasil de ip.térpretes que esta­
beleçam comunicações e entendimentos entre eles e um 
público ainda oscilante na indecisão ou na ignorância. 
Um quadro sempre necessita muito mais de um critico 
do que a obra de arte literária. Mas não falo só de en­
saios dessa espécie em O sal da heresia ; falo tambem 
dos que se formaram �õbre assuntos mais gerais, como 
"Futebolia" e "Dicionários". "Futebolia" é uma sátira de 
muito espírito sõbre a linguagem dos cronistas esportivos, 
mediante uma documentação que logo provoca o riso mais 
espontâneo e mais alegre ; "Dicionários" representa uma 
oportunidade para que o sr. Sergio Milliet examine com 
bastante erudição e sagacidade certas relações entre a nossa 
língua e a arte literária, sob a proposição de que "após 
quatro séculos de simples educação profissional, ressen­
te-se a nossa língua da carência de uma terminologia 
científica e artística adequada". 
O ensaio sobre António de Alcântara Machado, a 
propósito da publicação do seu livro póstumo Cavaquinho 
e saxofone, parece-me igualmente importante, porque 
através das suas páginas o sr. Sergio Milliet mostra-se 
198 A l v a r o L i n s 
disposto a sustentar algumas idéias e algumas colocações 
históricas que lhe são particularmente interessantes. Alem 
de António de Alcântara Machado, procura defender o 
papel da sua geração, ao mesmo tempo que o aconteci­
mento literário, no qual participaram ambos como figuras 
salientes : o chamado movimento modernista. Por isso, 
talvez, é que o sr. Sergio Milliet superstima o valor da 
obra literária de Antônio de Alcântara Machado, chegan­
do a se referir ao seu "pensamento filosófico'\ o que me 
dá idéia de um generoso exagero. Ainda outro exagero 
generoso, estou certo que é o do papel que atribueà 
Semana de Arte Moderna de · l922, ao dizer : "1922 é um 
marco da nossa história literária." E' certo que o movi­
mento modernista representa um marco da nossa história, 
mas não o movimento que o sr. Sergio Milliet restringe 
a uma só manifestação e a um só espírito. A renovação 
das letras brasileiras nos últimos 'vinte anos apresenta um 
carater muito mais generalizado, muito mais complexo, 
muito mais dividido. Houve vários movimentos simul­
tâneos, mas não uniformes, dentro do modelo da Semana 
de Arte Moderna. A história irá verificar e examinar 
depois os pequenos núcleos renovadores e até as figuras 
isoladas que contribuíram para o surgimento e o desenvol· 
vimento da nova literatura brasileira. E talvez que se 
venha chegar à conclusão de que o movimento mais fe­
cundo não tenha sido o da Semana de Arte Moderna. O 
que não quer dizer, por outro lado, que se possa negar a 
esse movimento uma contribuição de primeira ordem, so­
bretudo na faAe iconoclasta, na fase da destruição de va­
lores envelhecidos e caducos que pareciam pretender a 
perpetuidade através do mais estúpido convencionalismo. 
Contudo, dificilmente se poderá falar de "erro" a 
propósito do §!. Sergio Milliet. E' que êle tudo coloca 
- o erro e a verdade, o hem e o mal - num plano de 
relatividade e de oscilações. Defende para si mesmo, e 
J o r n a l d e C r í t i c a 199 
num sentido geral, os direitos da dúvida, do cepticismo, da 
contradição. Seria, pois, "desleal" argumentar fortemente 
contra um autor que logo nos previne de que duvida 
de todas as coisas, de que se contradiz indiferentemente 
porque o próprio pensamento tem uma realidade contra­
ditória, de que raciocina "de acordo com o momento e 
sob a influência imediata das ocorrências". Estamos assim 
diante de um temperamento cartesiano, exacerbado pelas 
contradições e descontinuidades de um mundo em revo­
lução ; estamos diante de um temepramento que pode 
chegar até a suprema negação, até um niilismo sem mis­
ticismo. O que não quer dizer que seja exatamente esta a 
presente atitude �e espírito do sr. Sergio Milllet. Mas o 
que é certo é que a atitude de cepticismo do sr. Sergio 
Milliet se levanta como uma reação contra o excessiV'o 
dogmatismo doe nossos dias, o que o deixa estonteado, ao 
ponto de falar, sem qualquer justificativa, do "espírito 
demasiado metafísico do século XIX". Aceito, no entanto, 
a dúvida e o cepticismo que o sr. Sergio Milliet defende 
e sustenta com uma seriedade que logo o resguarda do 
diletantismo ou da falsa originalidade. Aceito o cepticismo 
como a única disposição inteligente em face do mundo 
natural ; e a dúvida como o único instrumento para se 
atingir concientemente ,qualquer categoria de fé. Penso 
que só se pode verdadeiramente afirmar e acreditar quando 
muito se duvidou. Quando muito ainda se duvida. Pelo 
"sal da heresia" é que se atinge a ortodoxia. Mas o "sal 
da heresia" pode tambem se de'!dobrar: indefinidamente, 
agindo apenas Mbre si mesmo, o que representa o caso do 
sr. Sergio Milliet. Até onde o levará a dúvida pela dú­
vida ? 
* 
Tanto tem o sr. Sergio Milliet de céptico e de con­
traditório quanto o sr. Antonio de Queiroz Filho ( Cami-
200 A l v a r o L i :ri s 
nhos humanos, São Paulo, 1941 ) de afirmativo e de uni­
forme. A sua idade intelectual ainda não é a da dúvida. 
Não sei, aliás, qual seja a idade verdadeira desse jovem 
ensaísta que venho acompanhando através dos jornais 
paulistas, com sentimento de interesse e de simpatia. 
Qualquer que seja, porem, a verdade é que estamos li­
terariamente diante de um estreante. V áfios aspectos dos 
ensaios do sr. Queiroz Filho revelam esta circunstânci a : 
a sua coragem, como que esportiva, de se atirar �obre 
os temas mais difíceis (escreve sobre Goethe, Nietzsche, 
Spengler, etc. ) , pouco se importando com as consequências 
de empresas tão temerárias ; a terminologia abundante, 
vaga e imprecisa ; o arrojo um tanto ingênuo de concluir, 
com um ar de quem traz a última palavra para assuntos 
universalmente debatidos, como os conceitos de "cultura" e 
"civilização". O que resulta de tudo isso é que o sr. 
Queiroz Filho ora mutila, ora simplifica ao extremo as 
figuras e os temas sobre os quais se manifesta. Para ele, 
os homens e as idéias se apresentam com uma face única 
ou um só aspecto. Uma vez ou outra, porem, esse pro­
cesso o leva a um caminho certo, como na sua visão de 
Claudel por intermédio da infância, de acordo, aliás, com 
a interpretação de J acques Madaule. 
Estou certo de que a conquista sistemática e con­
ciente de uma atitude de dúvida, de prudência, de cep­
ticismo - não faria mal nenhum ao temperamento afir­
mativo e exuberante do sr. Queiroz Filho. E' o que iria 
salvar não só o seu pensamento mas a sua maneira de 
escrever do seu defeito mais grave : a incontinência verbal. 
E quando se entenderá, afinal, que não é com o tumulto 
das palavras, com o jôgo das frases gordas, com a abun· 
dância dos adjetivos - que um escritor encontra o seu 
estilo, que um estilo se impõe e permanece na literatura? 
O sr. Antonio de Queiroz Filho, por exemplo, torna-se 
mais uma vitima de uma das tendências da literatura 
brasileira : aquela que procura palavras mais cheias e mais 
J o r n a l d e C r í t i c a 201 
gordas do que as idéias mesmas que vão exprimir. Tudo 
isso como se não fosse necessária uma absoluta corres­
pondência entre a idéia e a palavra ; como se a palavra 
não fosse uma consequência, um instrumento da idéia. 
As vezes sucede, como em algumas páginas deste Cami­
nhos humanos, que as idéias se perdem dentro das pa­
lavras ; ou as palavras aparecem, se ostentando num luxo 
_ despropositado. O que adianta, por exemplo, dizer de 
Machado e Euclydes que são duas "soberbas figuras" ? O 
que adianta dizer de Claudel que é "um fabricante de 
jóias espirituais" ; do livro de Madaule que é "um pre­
cioso trabalho" com "belissimas páginas de critica e 
amor" ? O que significa afirmar que "no estudo da his­
tória, Chesterton separava o jc;)io do trigo ? " 
O que me leva a estas indicações é a impressão que 
sustento a propósito do sr. Antonio qe Queiroz Filho ; a 
certeza de que nele mésmo se encontram os recursos para 
atingir uma ordem de pensamento e uma forma mais lite­
rárias e menos retóricas. Por isso comecei afirmando a 
minha simpatia .e o meu interesse por essa nova carreira 
de escritor que se abriu há pouco tempo, ao que me pa­
rece. Espero, pois, que o sr. Queiroz Filho - e espero 
através de certas qualidades que encontro desde já : a sua 
seriedade intelectual, o seu gosto pelo debate das idéias, 
a sua orientação em face de assuntos e autores que sempre 
escolhe com muita segurança, exceção do capítulo sobre 
Alexis Carrel - venha a se tornar mais tarde um verda­
deiro ensaísta, superando essa categoria de simples co­
mentador que transmite suas impressões do primeiro mo­
mento. 
6 de setembro de 1941. 
REGIONALISMO E UNIVERSALISMO 
I 
D URANTE bastante tempo um escritor somente do Re­cife, com uma repercussão limitada <1õbre pequenos 
grupos de várias outras cidades, o sr. Gilberto Freyre, 
tornou-s·e, depois de Casa-grande & Senzala, um nome que 
não só se eleva de mais nos nossos dias como se antecipa 
historicamente numa colocação natural ao lado de certas 
figuras isoladas do nosso passado como Joaquim Nabuco 
e Euclydes da Cunha. A obra do sr. Gilberto Freyre é 
realmente daquelas que perturbam os contemporâneos. 
Muito raro o esc�:itor que se destinando a uma permanên­
cia dentro do tempo tenha sido tambem lucidamente com­
preendido e justamente avaliado pelos seus companheiros 
de época. Não preciso invocar os erros e os equívocos dos 
grandes críticos a propósito dos seus contemporâneos. 
Todos são muito conhecidos. Talvez sem o sentir, quase 
sempre sustentam a tendência de ampliar os valores mé­
dios e de reduzir os grandes valores. Habitualmente es­
tamos dominados pelo invencível acanhamento de reco­
nhec�r que num homem que caminha ao nosso lado se 
encontra um autênticogrande homem do futuro. Esta­
mos muito próximos e esta proximidade perturba um 
julgamento de isenção e de estabilidade, um julgamento 
que só poderá se chamar histórico. A felicidade e a des­
graça da glória é que ela há-de ser sempre uma realidade 
póstuma. Eu creio que nenhum contemporâneo mais do 
que o sr. Gilberto Freyre se encontra nesta perspectiva 
de uma existência definida mais fortemente no futuro do 
J o r n a l d e C r í t i c a 203 
que no presente. Poderão me lembrar. o êxito do seus 
livros, a extensão da sua influência, o prestígio do seu 
nome. Tudo i.sso, porem, se ampliará e se engrandecerá 
mais tarde, quando esta obra atravessar um processo rigoro­
so de análise, de exegese, de decomposição. A verdade é 
que este processo não se encontra sequer iniciado e prova· 
velmente haveremos de esperar por ele durante muito tem­
po. O que se escreveu e o que se está escrevendo sobre o sr. 
Gilberto Freyre tem um carater não só provisório, mas 6U­
perficial e incompleto. Este escritor tem conquistado mui· 
tos comentadores, mas não encontrou ainda o crítico que 
espera. Um crítico tanto no sentido de interpretação como 
de julgamento. Os seus críticos de hoje só têm feito acumu­
lar subsídios e materiais - alguns hem pobres de inte­
ligência e de perspectiva - para os seus críticos de ama­
nhã. Reinvindicarei mais tarde o privilégio de estar 
prevendo agora o verdadeiro sentido em que se realizará 
o desenvolvimento histórico da personalidade do sr. Gil­
berto Freyre. 
Mas devo lembrar que a dificuldade de crítica neste 
caso decorre em grande parte dos seus �.studos especiali­
zados, das suas aquisições científicas, dos seus processos e 
métodos até então desconhecidos entre nós. Decorre igual­
mente da sua obra em si mesma, do que hã de original 
e de irredutível na sua personalidade. Talvez um tanto 
desesperado pela ausência de crítica, o sr. Gilberto Freyre 
resolV'eu se tornar o crítico de si mesmo, o que está muito 
de acordo com a sua tendência para a introspecção e o 
auto exame. Não propriamente uma crítica de julga· 
mento, mas de interpretação, é a que ele vem realizando 
em seus prefácios, em suas notas explicativas, em alguns 
dos seus artigos no Correio da Manhã. Uma interpreta­
ção dessa espécie vamos encontrar na introdução do mais 
recente de seus livros (Região e tradição, Rio, 1941 ) . E 
este não será na bibliografia do sr. Gilberto Freyre um 
livro como qualquer outro. Aquí está uma espécie de 
204 A l v a r o L i n s 
miniatura da sua obra, como em Casa-grande & Senzala 
está a sua base fundamental. A obra do sr. Gilberto 
Freyre representa uma espécie de árvore em crescimento, 
mas já definida e caracterizada na sua natureza e na sua 
qualidade. Em Casa-grande & Senzala estão o tronco e 
as raizes. Todos os outros livros, a partir de Sobrados 
e mucambos, constituem complementos e desdobramen­
tos, constituem os galhos da grande árvore. Trata-se assim 
de uma obra que_ tem uma unidade e uma harmonia. Ela 
cresce e desdobra os seus aspectos, mas se conservando 
sempre fiel a si mesma e às suas origens. Não sei se 
está vinculada a um plano objetivo e ostensivo ; o plano 
a que me refiro é de carater interior e intrínseco. E 
que já se encontra todo como um esboço ou uma mini a­
tura em Região e tradição. Este livro contem páginas 
tanto literárias como científicas, tanto regionais como 
universais, tanto da mocidade como de hoje. Aqui está 
o seu discurso de orador da turma do Colégio Americano 
Gilreath, do Recife, em , 1917, a sua conferência da Pa­
raíba do Norte sobre Psicari e Bourne, o seu estudo sobre 
cem anos de vida social no Nordeste, no número come­
morativo do centenário do Diário de Pernambuco, a pe­
quena obra-prima que é o discurso "Regresso à Província", 
pronunciado em 1936 no Recife, e também algumas das 
suas últimas páginas, alguns dos seus artigos para o 
Correio da Manhã. Estamos, pois, diante de um livro que 
sugere a tentativa de fixação de alguns aspectos da his­
tória literária e cultural do sr. Gilberto Freyre. 
Esta história começa no Recife, onde tambem acabará 
com certeza. O Recife é um microcosmo para o sr. Gil­
berto Freyre. O escritor e a sua cidade se fundem numa 
mesma unidade orgânica. E já aos dez�sseis anos, o seu 
discurso no Colégio Americano representa um documento 
das suas tendências de adolescente. Não se tratava de 
um menino env'elhecido, de um daqueles meninos hrasi-
J o r-n a I d e C r í t i c a 205 
leiros vestidos de preto e dos quais êle escreveu depois 
qUe pareciam "de luto da própria meninice". O seu caso 
era ó de uma simples antecipação, pois a adolescência 
permanece ainda hoje o traço mais vivo do seu carater. 
O "espírito" do seu "Adeus ao Colégio" é o mesmo que 
anima as suas páginas mais recenteB. Somente o estilo 
e as idéias ainda se apresentavam vacilantes e indecisas 
na procura da sua forma e dos seus conceitos. Nêste die­
curso dirá alguma coisa de que nunca mais se esquecerá : 
"O tempo que corre é turvo, e não quer a oratória oca 
c rom�tica à moda dos Lamartines nem os devaneios fi­
losóficos." E mais adiante, refletindo os efeitos da pri· 
meira Grande Guerra sobre a mocidade do seu tempo, pro­
nunciava estas palavras que os adolescentes de hoje 
poderiam repetir : "Tremendo enigma a decifrar na ver· 
dade o dessa esfinge que caminha para nós - como a 
da lenda para Édipo no caminho que vai a Tehas - o 
desse amanhã terrível que se avizinha, o desse mundn 
social cavado nas entranhas do subsolo europeu, e a re-
1lentar formidavel, rude, novo, virgem . . . ( . . . ) Nós, 
os moços de agora, seremos os primeiros a fazer face ao 
novo mundo social que se levanta das labaredas da Eu­
ropa com 013 seus mil e um problemas originais. Se custa 
enfrentar um novo mundo físico, imaginai um novo mundo 
social, todo sulcado de veias e nervos humanos." 
Logo depois desse discurso seguia para a América do 
Norte, onde cursou universidade.:; e frequentou alguns am­
bientes literários e estéticos dos mais característicos. Nas 
universidades americanas ele realizou os seus estudoa de 
ciências sociais e as suas leituras de autores que seriam 
para sempre os da sua predileção. De muitos déles foi 
o introdutor e o apresentador no Brasil. Vê-se que já 
nesse tempo procurava salvar-se dos prejuízos de uma 
especialização exclusivista. O que costuma louvar no 
p_ortuguês - um duplo plano de rotina e de aventura -
parece ser igualmente um aspecto definidor do seu cara-
206 A l v a r o L i n s 
ter. Os rigores dos cursos científicos - pesquisas ob­
jetivas, metodi�ação de processos, disciplina de estudos 
- não o impediam de frequentar os "loucos" das artes 
e das literaturas, os "loucos" de todas as categorias, dos 
quais fará mais tarde o elogio através do seu "Regresso à 
Província". Frequenta a Universidade de Columbia, mas 
tambem convive · com os artistas de Greenwich V illage, 
uma espécie de Quartier Latin americano ; convive com os 
padres dominicanos e beneditinos da Universidade Cató­
lica, como o romancista russo Leon Kobrin, antigo compa­
nheiro de Trotski no jornalismo, com Amy Lowell, de 
quem foi hóspede na sua casa de Brooklyn, com sábio.s, 
com professores, com artistas, com políticos, com vaga­
bundos, com toda a gente que pudesse apresentar um in­
tecesse humano ou simpleswente intelectual. Esta moci­
dade nos Estados-Unidos constituiu realmente para o sr. 
Gilberto Freyre a sua principal experiência de vida. 
De volta ao Recife não trazia nenhum diploma para 
uma carreira rendosa e prática. Trazia, porem, o poten­
cial de uma obra que se tornou uma revolução cultural. 
A sua figura iria se tornar tambem uma espantosa con­
tradição em diversos sentidos. Uma contradição que será 
sempre o segredo da sua personalidade ; o observador co­
mum ficará desconcertado na contemplação do que há de 
duplo ou de múltiplo na figura do sr. Gilberto Freyrc : 
o gentleman de salão ou o companheiro dos cafés, pare­
cendo o mais sociavel, o mais expansivo, o mais extro­
vertido,e o trapista, o solitário que se fecha com os seus 
livros, tornando-se' invisível durante muitos dias ; o mís­
tico que se sustenta de uma fé ainda não definida e o 
céptico que parece tudo decompor com uma análise des­
dobrada em dúvidas e hesitações ; o poeta que se permite 
os mais amplos devaneis e o cientista preciso e exato em 
lógica e documentação ; o regionalista que fez da cidade 
do Recife uma condição da sua vida pessoal e do Brasil 
uma condição da sua vida intelectual, e o universalista 
J o r n a l d e C r í ti- c a 207 
que ama as viagens e as nações estrangeiras, que compre­
ende e sente os autores e os artistas de todas as pátrias ; 
o objetivo e o introspectivo : o lírico e · O ascético ; o tra­
dicionalista e o revolucionário. Por isso, talvez, é que 
o sr. Gilberto Freyre tanto se sente fascinado pela com­
plexidade dos Franciscanos, na mesma proporção em que 
se Bente afastado da rígida simplicidade dos jesuítas. 
Tenho a impressão de que estes versos de Racine hão-de 
repercutir profundamente no seu espírito : 
" Mon Di eu ! Quelle guerre cruelle ! 
Je trouve deux hommes en moi ! " 
Era natural que há vinte anos esta figura se tornasse 
inaceitavel para Ob conservadores e burgueses, para os li­
teratos acadêmicos, para os políticos verbosos e vazios. 
Não eram só as suas roupas americanas, o seu chapéu 
coco, o sseus hábitos anticonvencionais de vida que es· 
candalizavam os homens pacatos e estabilizados. Eram 
tamh�m as suas idéias, o �eu estilo, a sua linguagem. Os 
acadêmicos e os intelectuais da velha guarda pressentiam 
que através daquele jovem de vinte _e poucos anos vinha 
qualquer coisa de original e de revolucionário que os ul­
trapassaria para sempre. E desde os seus primeiros ar­
tigos no Brasil começou a se afirmar o que seria a prin­
cipal contradição aparente do sr. Gilberto Freyre : um 
autor que viveu a sua mocidade no estrangeiro, ao con­
tacto de professores, companheiros e livros norte-ameri­
canos, ingleses, franceses, russos, e que vem se tornar o 
mais nacional e o mais regional de todos os nossos escri­
tores. Tudo o que aprendeu, observou e assimilou no 
exterior convergiu para um sentimento da
· 
terra e da his­
tória �o seus país. O seu conhecimento das nações es· 
trangeiras ofereceu-lhe alem de tudo um método que se 
tornou imprescindível nos estudos sociológicos : o compa­
rativo. Através dele é que chegou, por exemplo, a esta­
belecer uma comparação extremamente feliz e exata entre 
208 A l v a r o L i n s 
o Brasil e a Rússia do século X.ü( e dos princípios do 
século XX. Acho assim das mais importantes e defini­
doras esta circuru;tância da obra do sr. Gilberto Freyre : 
uma formação cultural no estrangeiro aplicada a estudos 
rigorosamente brasileiros. De certo modo repetiu sim­
bolicamente o mesmo caminho do português do século 
XVI : a utilização de instrumentos e processos estrangeiros 
para a descoberta e fecundação da terra americana. Por­
que a obra sociológica do sr. Gilberto Freyre me parece 
verdadeiramente colonizadora na sua novidade, no .seu 
arrojo, na sua capacidade de se transmitir em herança 
e de se continuar nas novas gerações. E as novas gera­
ções foram as primeiras que se aproximaram do sr. Gil­
berto Freyre como são ainda hoje as que se acham mais 
perto do seu espírito de inalterado adolescente. Os seutl 
primeiros artigos do Diário de Pernambuco, nos anos de 
1922-1925, representavam um pouco aquele mesmo papel 
das crônicas de Ramalho Ortigão nas Farpas : 1,1m papel 
pedagógico no melhor sentido. O sr. Gilberto Freyre pro­
curava ensinar os brasileiros a vestir, a comer, a ler, a 
construir as suas casas e os seus jardins, a viver, afinal, 
dentro das condições de seu clima e das suas 0idades. 
Tambem numa das suas crônicas daquele tempo já ex­
primia rapidamente um conceito de história que iria ser 
o dominante em toda a sua obra futura :
. 
a história social. 
Contudo não seria somente um estudioso e um intérprete 
da história brasileira, mas tambem uma voz da sua ge­
ração, uma figura representativa e expressiva do seu tempo. 
A sua condição de historiador não significa um recurso 
contra o presente, como o seu nacionalismo não consti tue 
uma prisão contra o mundo. Estuda a hi stória como um 
ser vivo, da mesma maneira que ama o seu país mantendo 
alerta o espírito de crítica e de análise. E esta condição 
de vida e de atualidade faz do sr. Gilberto Freyre um 
intérprete da sua geração. A idéia de geração, aliás, ele 
próprio atribue uma especial significação, como o definiu 
J o r n a l d e C r í t i c a 209 
na sua conferência Apologia pro generatione sua, de 1924 : 
vê uma geração continuando a outra, a mais nova 
sempre sentindo a necessidade de realizar retificações e 
compensações sobre os legados das que a precederam. A 
sua obra será uma expres.são dessa sua idéia ; apresentará, 
ao lado de uma força cria dora de car.tter independente, 
uma capacidade critica p ara retificar e compensar al­
gumas das figuras mais consideraveis , da nossa história 
literária. Talvez por isso foi que os homens da sua ge· 
ração começaram de.sde logo a se aproximar do sr. Gil­
berto Freyre. Uns mais velhos e outros mais novos ; todos 
ligados por um mesmo espírito, capaz de centralizar ten­
dências diversas e personalidades diferentes. Começa 
desde então a sua poderosa influência sobre escritores e 
artistas brasileiros e até estrangeiros. Uma influência 
cujas proporções no Brasil lembram a de André Gide na 
Françi. Neste sentido o prefácio do sr. José Lins do 
Rêgo em Região e tradição - uma página admiravel não 
só pela expressão literária mas pela sinceridade das suas 
confissões, lembrando os melhores momentos do ensaísta 
que antecedeu o romancista no autor do Ciclo da Cana 
de Açucar - constitue uma espécie de documento sim· 
bólico. Um depoimento que muitos outros poderiam subs­
crever. Do Recife, a influência do sr. Gilberto Freyre 
se estendeu a alguns dos seus amigos do Rio e de São 
Paulo, tornados depois figuras representativas - poetas, ro­
mancistas, ensaístas - da literatura brasileira de hoje . 
Ainda consideravel se tornou a sua influência sobre pin­
tores, ar./uitetos, engenheiros. Todas no sentido de rea· 
lizações mais humanas e mais brasileiras, mais verdadei­
ras e menos enfáticas, mais naturais e menos retóricas. 
Mas depois de Casa-grande & senzala a influência deixou 
de se realizar numa esfera limitada de amigos e de grupos 
para se tornar, com o conhecimento da sua obra, um fe­
nômeno geral tão amplificado que se tornou de diHci] 
detertpinação. Ae suas idéias, os seus processos, a 8Ua 
210 A l v a r o L i n s 
linguagem, o seu estilo estão marcando há oito anos as 
letras brasileiras. O que era sua propriedade particular 
se tornando um pouco arbitrariamente propriedade 
de todo o mundo. 
Uma tamanha influência só pode se explicar pela ori­
ginalidade da sua obra. E esta originalidade parece-me 
defiiJ.Ída em dois sentidos que convergem e se unificam 
numa mesma direção : os seus estudos de ciência social 
sohre a vida brasileira e o seu estilo literário. Através 
do desenvolvimento da casa-grande e da senzala recons­
tituiu todo um sistema político, econômico e social que 
foi o dominante na sociedade brasileira e que ainda hoje 
se prolonga em algumas de suas manifestações. O ,;eu 
livro Casa-grande & senzala representa, assim, uma es­
pécie de descoberta do Brasil, como Os sertões, de Eu­
clyde!! da Cunha. O que Euclydes realizou num sentido 
antropogeográfico, o sr. Gilberto Freyre realizou com um 
processo novo o •histórico-social num sentido 
histórico e sociológico. Mas não só o sr. Gilberto Freyre 
utiliza um processo novo, mas tambem uma nova concep­
ção sociológica e histórica. E e.sta nova concepção se de­
senvolve num movimento de profundidade que procura 
as próprias fontes originárias da vida e não apenas a sua 
superestrutura. Não procura nos homens somente os 
seus gestos, as suas palavras, os seus atos, mas sobretudo 
o estado conciente e suhconcienteque os determina ; não 
procura na sociedade somente as suas formas estabiliza· 
das, mas o caminho que ela seguiu até a sua constituição 
num sistema organizado. Atribue aos fatores econôm.i cos 
a sua verdadeira influência, ao lado das causas psicoló­
gicas. Estuda a alimentação ao lado do clima ; as raças 
ao lado das classes ; os fatos espetaculares ao lado dos 
pequenos episódios de todos os dias. Parte sempre do 
particular para o geral, do ohjeto para o conceito, da 
idéia para a forma. Daí o seu interesse pela minúcia, 
pelo detalhe, pelo aparentemente insignificante, pelos 
J o r n a l d e C r í t i c a 211 
anúncios de jornal, pelos diários íntimos, pelas cartas, 
pelos livros dos viajantes. Daí tambem a sua ausência 
de ênfase, de dogmatismo, de tom doutoral. A principal 
acusação talvez por isso que se faz ao sr. Gilberto Freyre 
é a de ser um sociólogo que não conclue. Acredito, ao 
contrário, que nesta acusação se encontra o seu principal 
elogio. Não é verdade, aliás, que ele se negue a con­
cluir. Encontro conclusõ�s por toda parte nos seus livros. 
A penas são as conclusões naturais e lógicas da sua obra 
e não conclusões arbitrárias de fórmulas, de receitas, de 
sistemas, de camisas de força ideológicas. As suas apre­
sentam um carater prudente de sugestões. E os que con­
cluem de outra maneira, -os que concluem dogmatica­
mente, correm sempre o perigo de um esquecimento ou 
de uma retificação daqueles que vierem depois. O sr. 
Gilberto Freyre poderia i�screver como legenda da sua 
obra esta verdade que An{lré Gide exprimiu em Jnciden· 
ces : "11 re.ste, dane ses livres, de la question sane ré­
pouse et c'est ce qu'on y trouve de meilleur. Malheurs 
aux livres qt.!i concluent ; ce sont ceux qui d'abord satis­
font le plus fe public ; mais au bout de vingt ans la con­
clusion é crase le livre." 
O estilo do sr. Gilberto Freyre é uma con.,equência 
do que há de original e de pessoal nas suas i déias e na 
sua obra. A um pensamento novo corresponde sempre 
um estilo igualmente novo. Porque o estilo não é o ins­
trumento de uma obra, mas a própria forma desta obra. 
E é tambem o seu elemento de duração e de perpetui­
dade. Nele encontraremos sempre os três atos da velh a 
e insubstituivel definição de Buffon : "Bien écrire, c'est 
bien penser, bien sentir et bien rendre." Diz Pirandello 
que todos os seres morrem porque têm forma, enquanto 
que é precisamente pela forma que subsiste a obra de 
arte. O sr. Gilberto Freyre criou um estilo de arte li­
terária para exprimir uma obra de ciência. Este fato sig­
nifica uma dupla vitória para a ciência e para a litel'a-
212 A l v a r o L i n s 
tura. Realmente o seu estilo apresenta-se, ao mesmo 
templo, geométrico e poético : geométrico pela sua pre­
cisão, poético pela sua música interior. Aparentemente 
o seu estilo mo.stra-se difícil, e é possível lfiesmo que 
irrite o leitor no primeiro encontro. As frases se que­
bram constantemente em parênteses, em suspensões vi�­
guladas, em traços explicativos. O hábito, a convivência 
resultará depois num verdadeiro prazer para os olhos e 
os ouvidoa. O estilo do sr. Gilberto Freyre lembra neste 
sentido o estilo de Mareei Proust. Ambos se afastam da 
linha dos estilos tradicionais das suas línguas. Ambos 
estão determinados pela introapecção e pela busca do 
"tempo perdido", um no homem, o outro na sociedade, 
Ambos estão sustentados por uma unidade interior que 
contrasta com a desconexão exterior. Ambos se destinam 
a exprimir nuanças e detalhes em literaturas dominadas 
pelaa idéias gerais. Ambos apresentam um "fio de Ariad· 
na" no meio de construções às vezes verdadeirãmente labi­
rínticas. Atribuo por isso ao estilo literário do sr. Gil­
berto Freyre aquela mesma significação que ninguem 
nega aos seus estudos históricos e sociológicos. Na revo­
lução cultural que ele desencadeou é o seu estilo que 
comanda. 
li 
O que se pode dizer do estilo do sr. Gilberto Freyre 
vai ter aplicação ao caso da sua linguagem. Ainda aquí 
encontramos uma ostensiva convergência de regionalismo 
e de univeraali smo, os dois caminhos que se cruzam e se 
unem em toda a obra do autor de Casa-grande & sen­
zala. Torna-se visível a presença de anglicismo, de fran· 
cesismo, não tanto no emprego das palavras estrangeiras 
mas sobretudo no ritmo, no som, no gosto que imprime 
às suas conatruções e inovações de linguagem e de estilo. 
Sobretudo a sua linguagem haveria de íicar marcada pelo 
J o r n a l d e C r í t i c a 213 
que subsiste da sua permanência no estrangeiro, do seu 
conhecimento intimo da língua inglesa, da sua convivên­
cia de todos os dias com idiomas diferentes do português. 
Mas ainda uma vez a sua individualidade brasileira con­
segue se defender do que se poderia ter tornado uma ti­
rania ou uma absorção. A língua inglesa constituirá 
uma influência na sua obra, mas de maneira nenhuma 
representará uma força dominante ou sequer caracteri­
zadora. A linguagem brasileira é que será esta força de 
caracterização e de domínio. Na sua linguagem, como na 
sua obra, o sr. Gilberto Freyre consegue conciliar e har· 
monizar o nacional e o estrangeiro, o antigo e o moderno, 
o aristocrático e o popular. Reálmente, tendo atingido 
uma construção estilística de carater aristocrático, o Br. 
Gilberto Freyre utiliza-se da língua do povo, de 
'
uma 
língua mais falada do que escrita. Deve-se notar, po· 
rem, que esta utilização não é arbitrária, mas subordinada 
ao conhecimento da língua portuguesa, inclusive dos 
seus clásGicos que não se mumificaram. Todas as suas 
inovações, mesmo as que parecem mais lihertárias, SCJ 
apoiam sobre uma lógica idiomática que pode não coin· 
cidir com a dos gramáticos, mas que coincide com o mais 
verdadeiro espírito da língua portuguesa. O que carac­
teriza a sua linguagem é um certo dom de transmitir dall 
coisas e da sua realidade uma sensação como que de ca­
rater físico e direto. A sua linguagem tem capacidade 
descritiva, sendo antes de intenção sugestiva ou simples­
mente definidora. Por isso, talvez, utiliza tantas palavra� 
novas, e aproveita tambem outras que pareciam mortas 
ou esquecidas. E somente mais tarde, como é do destino 
dos renovadores, será possível saber se fez bem ou mal 
na sua decisão de encher um livro da altura de Casa 
·-grande & senzala com certos termos que .se pensam e se 
dizem, mas que não se escreviam até então. Mesmo que 
venha a ser condenada, porem, há-de ser tomada como 
214 A l v a r o L i n s 
um· processo.. de luta, talvez exagerado mas necessano, 
contra um absurdo convencionali-smo de linguagem que 
vinha dominando as nossas letras. Apesar disso, o seu 
vocabulário é numericamente pobre, o qüe tem sido uma 
condição de todos os grandes escritores, inclusive de al­
guns daqueles que mais se preocuparam com o estilo, como 
Flaubert e Eça de Queiroz. O que caracteriza antes de 
tudo, com efeito, a linguagem do sr. Gilberto Freyre não 
é a abundância, mas a vida interior ; é a precisão, é � 
plasticidade, é o poder sugestivo, é a construção geomé· 
trica e poética ao mesmo tempo. E com esta linguagem 
e este estilio de renovador que se apoia na tradição ·o sr. 
Gilberto Freyre contribue para um enriquecimento da 
língua, no sentido que lhe acrescenta uma nota de mais 
naturalidade, de mais valorização de elementos populares, 
de maior poder interpretativo e descritivo dos fenômenos 
não só literários mas científicos. 
Sem que seja um vulgarizador, o sr. Gilberto Frt>yre 
realiza uma obra científica utilizando um instrumento 
de expressão' perfeitamente acessível. Ele retirou da 
ciência todo o seu ar de mistério, de cahalismo, de seita 
maçoniCa. Tornou-a mais natural, mais ' humana, mais 
viva. A ciência das terminologias exóticas e dos siste· 
mas fechados envolve sempre uma pedanteria inutil ou 
uma mistificação conciente. Ou um ·sentimento de osten­
tação ou de, fraqueza. Muitas vezes o que se esconde por 
detrás de uma forma pomposa ou enfática é o mais fra­
gil e o mais puerH de todos os pensamentos.Desde os 
meus dias de colegial o que mais me espantou nos com­
pêndios chamados de ciência foi esfla preocupação de tor· 
nar complicada uma coisa que deve ser simples por sua 
especw mesma. Nunca pude compreender que se reves­
tisse de uma fôrmula deshumana uma realidade tão hu­
mana como a da ciência ; a ciência que significa a pró­
pria história da vitória do homem sobre a natureza. UI-
J o r n a l d e C r í t i c a 215 
timamente a invasão prussiana dos técnicos ainda veio 
tornar mais irrespiravel e estreito o ambiente científico. 
No Brasil, uma contribuição importante do sr. Gilberto 
Freyre é esta de estar realizando obra de ciência sem 
o abuso das terminologias cabalísticas e sem a rigidez 
dos sistemas autoritários. E nem por isso a sua ciência 
se torna menos positiva, menos séria ou menos exata. Ao 
contrário. �Que se observem, por exemplo, as palavras 
simples, as palavras de todos os dias com que estuda pro­
blemas e fenômenos de ciência social, de medicina, de ar­
quitetura, de higiene, de alimentação, de história, de geo· 
grafia, de arte. É possível que sofra com isso um pre­
juízo de aparência, mas estou certo que as aparências lhe 
são inteiramente indiferentes. Não lhe importa eaber 
que um pouco menos de sabedoria e um pouco mais ' de 
arrogância implicaria para o seu nome uma consagração 
oficial e petrificada. Com efeito, a ausência de ênfase e 
de rigidez transmite muitas ve.zes uma impressão dimi­
nuída a re�peito da profundidade, da extensão e da se­
riedade dos seus conhecimentos científicos. Mas vencida 
esta impressão superficial, o que verificamos é que pou­
cos liV'I'os terão como os seus - sobretudo como Casa­
-grande & senzala e Sobrados e mucambos -- um mate­
rial científico tão abundante e tão consistente. Em N ar­
deste este carater científico ainda se -torna mais discreto 
diante da substância poética que o absorve todo e que 
se torna a própria vida do livro. Todo o livro, aliás, tem 
o espírito de um poema : do açucar, das águas, da terra, 
dos animais, do homem. 
Parece sem dúvida que o sr. Gilberto Freyre desde· 
nha aquela "torre de marfim" onde se recolheram tan­
tos cientistas com a pretensão de torná-la :muito mais 
inacessível do que a outra, a dos poetas simbolistas da 
fase nefelibática. E acredito que se salv·ou da torre de 
marfim não só por efeito da sua lucidez intelectual, maa 
216 A l v a r o L i n s 
tamLcm como uma fidelidade a certo cepticismo que 
é fundamental no seu temperamento. A ciência organi­
zada em sistema rígido, em princípios imutaveis, em fór­
mulas matemática.s - esta cu creio que nunca o tentou. 
Na verdade, somente o que tem categoria sobrenatural, 
a religião, pode se exprimir e se revelar em dogmas . O 
que somente tem categoria natural, a ciência, há-de su· 
portar sempre uma revelação instavel, provisória, subs­
tituivel. Este é um ensinamento que nos vem não só da 
razão como da própria história da ciência. As teorias 
científicas e os seus sistemas se substituem todos os dias. 
O que permanece é o conhecimento desinteressado, é a 
pesquisa objetiva, é o esforço puro de comunicação do 
homem com a natureza. :ítste é exatamente o plano onde 
se movimenta o sr. Gilberto F'reyre. Não o encontramos 
prisioneiro de nenhum sistema científico. O seu cepti, 
cismo o impede de se lançar em definições categóricas : 
nem as formula nem as aceita. Procura conservar-se 
livre para identificar a verdade onde quer que ela se 
encontre. Deve-se compreender que no mundo não exis­
te só uma Verdade, mas muitas verdades parciais , as pe­
quenas verdades da vida física, natural e social. Infe­
lizmente o sr. Gilberto Freyre não atingiu o conhecimento 
da Verdade, mas tambem não - pretendeu erigir em Ver­
da_de nenhuma das verdades parciais do mundo natural. 
Poder-se-ia dizer que estou fazendo, através do sr. Gil­
berto Freyre, um elogio do ecletismo, que já se acha en· 
velhecido e desmoralizado. Creio que farei realmente um 
dia este elogio do ecletismo e do cepticismo num sentido 
especial que constitue uma das minhaa mais íntimas ten­
tações intelectuais. Mas desde já gostaria que ninguem 
confundisse o verdadeiro ecletismo com um movimento 
que sob esse nome teve o seu momento de vitória e de 
brilho no século passado . Esse foi precisamente o que 
envelheceu e se desmoralizou porque se constituiu, ele, 
J o r n a l d e C r í t i c a 217 
mesmo, num sistema e numa escola, quando o verdadei· 
ro ecletismo significa uma transcendência de escolas e de 
sistemas. Não tento, portanto, um paradoxo ou a res· 
.surreição de uma velharia, ao afir-mar as excelências e 
as virtudes do ecletismo. O que vejo no ecletismo é a 
sua possibilidade de unir as verdades parciais que se 
acham espalhadas e distantes, é o privilégio de não se 
escravizar ideologicamente, é a disposição de poder ver e 
sent.ir unanimemente. Uma desgraça dos homens do sé· 
culo XX vem do seu desdem por todo cepticismo e por 
todo ecletismo. E antes que me recordem a minha con· 
dição de católico, quero dizer que exatamente da Igreja 
é que me veio a melhor sugestão para o ecletismo. Da 
Igreja, que aceita todas as verdades parciais, que aceita 
todas as verdades, as mais diversas, da política, da ciên· 
cia, das artes, de todos os fenômenos de ordem natural 
que não pretendam a mistificação de substituir os fenô· 
menos de ordem sobrenatural. O ecletismo do sr. Gil­
berto Freyre é este de ordem natural que se concilia 
muito hem com a inteligência do homem e com a reali· 
dade da natureza. E esta atitude de espírito é que lhe 
permitiu, por exemplo, um aproveitamento do materia· 
lismo histórico e da psicanálise, embora repelindo em 
ambos o que contêm de sistema filosófico e de concep�ão 
geral da vida. Aproveitou de ambos o que neles existe 
de exata observação histórica ou de pesquisa objetiva 
sobre o homem e a sociedade, orientando-se pelo princí­
pio que ensina a ver o aspecto de verdade que sempre se 
acha dentro de todos os erros. Ou, como diz Chesterton : 
todos os erros são verdades violentadas ou enlouquecidas. 
Ao estudar a sociedade brasileira verificou o sr. Gilberto 
Freyre que algumas das idéias de Marx se lhe aplicavam 
para uma definição do seu carater e do seu desenvolvi­
mento. Utilizou-as sem que se constituísse um partidá­
rio do marxismo. Ao estudar o comportamento indivi-
218 A t v a r o L i n s 
dual e social dos homens, notou que muitos dos seus ges­
tos e dos seus atos se explicavam por intermédio de ob­
servações e verificações de Freud. Utilizou-as sem que 
se tornasse um psicanalista sistemático. E.sta mesma dis­
ponibilidade explicará a sua posição diante da Igreja. E 
esta é uma posição que se acha coberta de preconceitos e ' 
de mal-entendidos. Todos sabem que o sr. Gilberto Frey­
re não é um homem da Igreja, mas tambem será neces­
sario dizer que não é um seu inimigo. Em toda a sua 
obra, ao que pude examinar, só uma vez - em Uma cul­
tura amt;açada, como tive ocàsião de acentuar em uma 
destas crônicas - encontrei- uma afirmação que me pa­
receu errada e contrária à doutrina da Igreja : quando 
afirma uma maior amplitud� do plano sociológico so­
bre o plano teológico. Antes de tudo deve-se notar que a 
obra do sr. Gilberto Freyre não é uma obra d! filosofia 
ou _de doutrina religiosa. Em geral, ele nunca se en­
contra diante das chamadas que.stões fechadas da Igreja. 
O que debate e examina é a ação missionária, que se con­
funde com a colonizadora, de p adres e ordens religiosas 
no Brasil. Trata-se da ação temporal da Igreja, de todo 
o amplo domínio em que as controvérsias e as discussõeB 
se tornam possíveis e até necessárias entre os próprios 
católicos. AsclÍm, o que um católico pode fazer contra o 
sr. Gilberto Freyre é uma contestação de carater histó­
rico ou sociológico, mas não de carater religioso. Quanto 
a mim, não posso deixar de assinalar a sua simpatia para 
com a Igreja, da qual já estev'e tão aproximado, como ve­
rificamos através destas páginas de Região e tradição. 
Mais ainda : noto emtoda esta obra em disponibilidade 
uma espécie de presença de Deus que não me engana a 
respeito da tormentosa vida interior que o sr. Gilberto 
Freyre esconde sob aspectos de indiferença e de sereni· 
dade. Protestantismo, jansenismo, Pascal : é todo um ca­
minho de inquietação, de dúvida, de procura, de nostal-
J o r n a l d e C r í t i c a 2 19 
gia de Deus, que encontro marcando a vida do sr. Gilber­
t
-
o Freyre. 
Diante mesmo da ciência de sua especialização - a 
sociologia - conservou o sr. Gilberto Freyre uma com­
pleta liberdade de movimentos e de idéias. Ele avança 
nas suas
' 
pesquisas não como quem se destina a um fim 
estabelecido, mas como quem realiza uma aventura da 
personalidade. À maneira de outras ciências, a sociolo­
gia desdobrara logo os seus quadros em limites absorven­
tes. A sua principal pretensão foi a de erigir a socie­
dade na categoria de realidade onipotente da vida. Em 
Dukheim essa obsessão do social acima de tudo atingiu 
o grau máximo de uma sistematização. A sociologia ten­
dia, pois, para uma verdadeira deshumanização, para 
uma eliminação do homem como ceníro do mundo natu-
1·al, para uma reação, . embora nem· sempre conciente, con­
tra o humanismo tanto teocêntrico como antropocêntrico. 
Hoje, porem, já se vai estabelecendo uma nova tendência 
sociológica que visa a valorização da personalidade hu­
mana, que visa um equilíbrio e uma harmonia de valo­
res entre o ser pessoal e o ser social. O sr. Gilberto Frcy­
re se acha dentro desta tendência, que corresponde bem à 
sua formação e às suas idéias individuais. Nada na sua 
obra de sociólogo indica u� propósito de fazer da so· 
ciedade um· mito ou uma entidade independente. O que 
nela o interessa, ao contrário, é a sua condição de aglo­
merado humano, permanecendo, por isso, móvel, hetero­
gênea, plural. O seu processo de estudo apresenta-se mui­
to definido nessa direção desde os primeiros ensaios que 
se encontram agora em Regüí.o e tradição. É a reali­
dade do homem, em primeiro lugar, que procura compre­
ender e difinir. Daí o seu regionalismo que constitue a 
fase inicial d{)s três ciclos sociais do homem : o regional, 
o nacionall, o universal. Ou como ele próprio afirma em 
todos os seus livros, e em Uma cultura ameaçada nesta 
220 A l v a r o L i n s 
síntese magistral : "universalismo combinado com regi o· 
naliBmo - combinação que se apresenta, cada vez mais, ·j 
como a solução dos problemas de ajustamento dos ho· · 
meus entre si e de todos aos recursos regionais de natu­
reza : récursos vegetais, animais, minerais". Uma com· 
preeDBão de ordem contrária significaria a concepção de 
uma sociedade abstrata e apenas teoricamente definida. 
Por isso o sr. Gilberto Freyre investiga antes de tudo a s 
condições de vida que estão mais perto do homem e que 
o explicam mais profundamente : as regionais. As ' Condi­
ções da sua casa, da sua cidade, das suas ruas, da sua 
classe, da sua profissão, dos seus hábitos, da sua cozinha. 
Depois, as de organização política, de nação, de raça, de 
cultura. Ficamos, assim, em face de um desdobramento 
completo do ser pessoal dentro do ser social, partindo do 
mais particular e do mais íntimo para o mais geral e o 
mais simplificado. Atinge desse modo o estudo do ho­
mem brasileiro através de dois caminhos : o das suas con· 
dições particulares de vida e o daB suas condições uni· 
versais de expressão de três raças. Por isso merecem 
uma igual atenção na sua obra a cozinha nordestina e o 
processo de formação histórica e étnica dos portugueses, 
dos africanos e dos indígenas. O seu regionalismo não 
se impõe como um fim, mas como um princípio. E este 
regionalismo é que determina por sua vez o seu amor 
à Tradição e à Província, duas fôrças que vivem uma da 
outra. O seu conceito de nação é o de uma unidade com­
plexa, ou mais exatamente : o da div�rsidade dentro da 
unidade. A nação brasileira, principalmente, não supor­
ta outro conceito diferente deste. Estamos, em todos os 
sentidos, caracterizados pelas diferenciações e particula­
ridades regionais ; estamos marcados pelo destino de uma 
vida provinciana que encontra no regionalismo e na tra­
dição as suas fontes mais vivas e mais saudaveis de orga· 
nização nacional. E como lembrou certa vez o sr. Ma· 
nuel Bandeira, "o Brasil todo é ainda 'província". 
J o .r n � l d e C r í t i c a 221 
" Esta vida provinciana e regional se explica, aliás, 
,�la própria formação histórica do Braodl, como a situou 
6 sr. Gilberto Freyre em alguns destes ensaios de RegiJ.o 
e tradição, desenvolvidos depois em Casa-grande & Sen· 
zala, Sobrados e mucambos, Nordeste e numerosas outi·as 
lfublicações. Explica-se pelo patriarcalismo, pela organi­
, zação escravocrata e híbrida que definiu a · nossa paisa· 
gem humana e social. E a sua atitude diante das três 
raças que formaram a nossa soeiedade e que fixaram aíl 
suas condições vitais - deve-se notar gue é mais de com­
preensão -do que de aceitação. Quero dizer : a aceitação 
resulta da compreensão. Parece-me realmente divertido 
que se tenha hoje saudade de uma coisa que �ão se rea­
lizou no passado e que se tornou impossível para sempre : 
saudade de uma colonização holandesa, francesa, ingle­
sa ou alemã. No entanto, a atitude do sr, Gilberto Freyre 
diante desta colonização portuguesa ( como diante dos 
Estados-Unidos, ma.s esta representa toda uma outra ques· 
tão) não é de maneira nenhuma apologética. É uma 
atitude que se afirmou pela inteligência e pelos estudos 
históricos e não através de qualquer impulso sentimenta­
lista. Acho que se podem resumir assim as suas conclu­
sões neste .sentido : que o português, mais do que qual­
quer outro povo, se achava destinado a realizar uma co­
lonização nos trópicos ; que o cara ter desta colonização 
exigia a colaboração do negro e do escravo ; que a vitória, 
na formação brasileira, do afri,cano sobre o indígena, de· 
correu da circunstância de haver o negro se apresentado 
em condições de cultura mais elevadas e mais caracterÍB· 
ti v as do que as do índio (v. Casa-grande & senzala e O 
mundo que o português criou) , Além disso, pela sua 
constituição histórica e étnica o portugtiês estaV'a numa 
situação privilegiada para promover a fusão das trê.s ra­
ças, para realizar uma completa miscegenação. E já 
agora que formamos um poV'o nesta linha de coloniza-
222 A l v a r o L i n s 
ção portuguesa, nada importa senão defender, desdobrar 
e completar esta mesma linha histórica e étnica que .fe 
colonial passou a ser nacional. E muitos doa que a con­
denam partem de um ponto de vista simplista e falso : o 
que eles deploram é a ausência de um grande progresso­
material, das máquinas, dos arranha-céus, da febre do� 
negocws. eira, este é um ponto de vista falso porque; 
sabe-se, a organização industrial e técnica de um país 
constitue um enriquecimento de civilização, m a s não a 
civilizaÇão em si mesma, no seu sentido essencial. O en­
riquecimento será mais facil de criar e de conquistar do 
que a base de uma civilização -'-- esta de carater espiritual, 
moral e religioso. A excelência da colonização portu­
guesa vem da firmeza com que assentou para sempre esta 
base. Uma base tão firme que é ainda hoje para ela 
que apelamos nos nossos momentos mais críticos de con­
fusão, perplexidade e dúvida. Com todos os seus de­
feitos e com todas as suas deficiências - toda coloniza­
ção implica vioiencia e destruição - é esta no entanto a 
lição que nos transmite o legado do BraGil colonial. Esta 
é igualmente uma lição que decorre da obra histórica e 
sociológica do sr. Gilberto Freyre, com as suas raizes 
plantadas nas proprias raizes do Brasil. 
5 e 12 de julho de 1941. 
CAPíTULO XIX 
tJM ENSAISTA DA FILOSOFIA 
N . . UNCA s� explicar� c�ni suficiente exati.dão ? _que de.:. termma a ausenc1a de um verdadeuo filosofo no 
Bra.sil. Podemos recorrer aos argumentos dá nóssá ju­
ventude cultural, da nossa êivilização incipiente, do auto­
didatismo dos nossos estudos, da falta, até há pouco, de 
cursosuniversitários e sistemáticos - mas são causas to­
das estas que uma personalidade verdadeiramente filosó­
fica poderia vencer e ultrapassar. O que Farias Brito 
realizou, como dehatedor de problemas e sistemas filosó­
ficos, contra todas as contingências do seu tempo e do 
seu meio provinciano, ele o teria igualmente réalizado, 
como filósofo, se a sua constituição intelectual lhe hou­
vesse reservado esse destino. Um filósofo, como um poe­
ta, encontrará sempre em si mesmo os recursos necessá­
rios para a sua expressão, a despeito de quaisquer limi­
tações locais ou temporais. A história da filosofia apre­
senta mais de um exemplo nêste sentido. Por outro lado, 
vemos que também Portugal não apresenta um só filó­
sofo. O único português que parecia portador de um_a 
autêntica vocação filosófica acabou se exprimindo apenas 
poeticamente : Anthero - de Quental. O que existe de 
pensamento filosófico, na sua obra, acha-se disperso ou 
condensado na substância e na forma poética. Talvez 
que se possa encontrar, assim, na herança portuguesa, a 
causa da ausência de um filósofo no Brasil. As faculda­
des especulativas e críticas, a capacidade de ·tratar os pro­
blemas abstratamente, o dom do estudo paciente, desin­
teressado e introspectivo - não parecem , muito habituais 
nos homens luso-brasileiros. Mas não lamentemos de mais 
224 A l v a r o L i n s 
essa herança vazia (uma simples hipótese, aliás ) quando 
recebemos de Portugal tantas outras que enriquecem e 
valorizam um patrimônio literário ou intelectual. O dom 
de uma visão poética da vida, por exemplo. A poesia e 
a filosofia são dois caminhos que se destinam igualmente 
a um conhecimento da vida, a uma penetração interior 
na realidade do mundo. Na ausência dos filósofos, con­
tentemo-nos, pois, com a presença dos poetas. Una e ou· 
tros são videntes. Os nossos cantores líricos substituem 
os filósofos que nunca tivemos. E talvez que não SCJ !l 
uma heresia afirmar a superioridade, a pureza e a gr::m ­
deza da visão dos poetas. Em geral, eles atingem sempre 
uma posição que ultrapassa a mais audaciosa conquista 
dos filósofos. Por isso, com certeza, os filósofos procuram 
hoje se aproximar de um conhecimento da vida que é 
mais poético do que filosófico. Poeta volta a ser, como 
nas suas origens, "um criador". A poesia se encontra no 
centro da filosofia moderna, sobretudo do movimento 
filosófico (o existencialismo) que está sugerindo estes 
comentários. A êsse respeito, quase que poderíamos fa­
lar de uma identidade de linguagem, de símbolos, de pro· 
cedimentos, de fins. Estamos, aliás, no itinerário dos 
grandes filósofos de qualquer tempo, como Platão ou 
Nietzsche, nos quais dificilmente se poderá precisar onde 
acaba a elaboração poética e onde começa a elaboração 
filosófica. Toda a história da filosofia, aliás, está mar­
cada por esta dúvida : o conhecimento que a filosofia 
transmite é de cara ter científico ou poético ? O seu mé­
todo é a experimentação positiva ou a intuição ? A sua 
estrutura é o logicismo ou a iluminação transcendente? 
O seu fim é uma proposição de regras para a existência 
ou o simples conhecimento da existência, a especulação e 
a expressão puras nos domínios do pensamento ? Este é 
o diálogo que os sistemas filosóficos estão sustentando 
através dos séculos, 
J o r n a l d e C r í t i c a 225 
No Brasil, muitos destes sistemas têm encontrado 
adeptos, comentadores e exegetas. Se a nosaa história 
não apresenta filósofos, revela, no entanto, numerosos 
historiadores ou comentadores de sistemas filosóficos : e 
alguns deles com uma significação que não será possível 
desdenhar. E não esqueçamos que se dedicam a uma 
tarefa que exige um máximo de sacrifícios, inclusive os dae 
condições do nosso meio, onde nunca encontrarão toda a 
correspondência e todo o êxito que merecem. Eles têm 
sido, no entanto, os instrumentos de comunicação entre o 
Brasil e as grandes correntes universais de idéias. Quan· 
tos sistemas filosóficos teriam ficado inteiramente desco­
nhecidos, entre nós, sem a obra dos seus exegetas e co­
mentadores brasileiros? Quase que estaríamos às cegas 
nesse domínio intelectual, sem a obra de um Farias Brito, 
de um Tobias Barreto, de um Sylvio Romero, de um Tei· 
xeira Mendes, para só citar alguns mortos ilustres, como 
ex em pios. V á rios desBes sistemas filosóficos puderam 
mesmo encontrar no Brasil uma interpretação particular, 
dentro do feitio, da formaÇão e das disposições intelectuais 
dos seus comentadores. E essa interpretação pesBoal ( tor­
nada nacional, no seu conjunto) de sistemas e correntes 
filosóficas, é a unica contribuição que até agora temos 
podido oferecer aos estudoB de f.ilosofia. Mesmo assini; 
o número dos que são capazes desse empreendimento não 
pode ser grande. O estudo da filosofia apresenta difi­
culdades e exigências t_ão penosas e tão ásperas que aca­
ba por se tornar o privilégio de um pequeno número. 
Nessa categoria, exatamente, é que se encontra o sr. 
Euryalo Cannabrava, dedicado com seu livro de estréia 
(Seis temas do espírito moderno, Rio, 1941 ) ao estudo 
da filosofia e de certos problemas fundamentais da nossa 
época. Este livro, aliás, só é de estréia num sentido con­
vencional ; todas as suas páginas foram antes publicadas 
;na imprensa, onde o sr. Euryalo Cannabrava aparece se-
226 A l v a r o L i n s 
manalmente como nm de seus colaboradores mais ilus• 
tres. Estamos, pois, diante dé um autor já suficiente­
mente conhecido e sobre o qual todos os seus colegas já 
fizdam o devido julgamento. Não creio, porém, que o 
sr. Cannabrava seja igualmente conhecido e estimado no 
seio do grande público. Muitos devem ser os que aban­
donilram para sempre os seus ensaios depois de uma pri­
meira tentativa de leitura. O que ele escreve não é facil 
nem agradavel para o leitor ; e logo na introdução deste 
volume previne que enfrenta diretamente os aspectos mais 
dificeis dos problemas "sem preocupação alguma de agra­
dar o leitor, ou de lhe poupar as asperezas de uma dura 
escalada". Trata-se de uma circunstância que resulta ao 
mesmo tempo do assunto' e do autor. O assunto é a fi­
losofia, e todos sabemos as dificuldades que aí se encon­
tram para quem se acha fora desses estudos especializ"ados. 
Dificuldades essenciais, de pensamento, umas ; outras, ·de 
terminologia, de técnica, de forma. O autor, por sua vez, 
escreve num estilo que nada tem de artístico, ou de atraen­
te, ou de agradavel. A densidade das suas idéias vai 
provocar a 
·
densidade correspondente na expressão for­
mal. E o estilo será o único meio capaz de impor um 
filósofo ao interesse do grande público. Bergson não
. 
é 
facü, mas é o seu estilo que nos transmite essa impres­
são de facilidade que nos arrasta a todos para a sua lei­
tura. Aí se encontra um instrumento valiosíssimo do 
êxito extensivo de seus livros e dos seus cursos, sendo que 
as suas conferências da sala número 8 do College de 
France chegaram a constituir, em certa época, um espe· 
tacular acontecimenta mundano. Falava-se mesmo em 
Paris de uma legenda irônica para Bergson : "filósofo das 
senhoras elegantes". Na Inglaterra e na Alemanha, ele 
era, por isso; desdenhado ou rudemente censurado ; e o 
que é certo é que existe um grande perigo de desvirtua­
mento e de falsa interpretação nessa entrega de uma obra 
filosófica !lO grande público, Desse perigo parece Q. sr. 
J o r n a l d e C r í t i c a 227 
Euryalo Cannabrava querer defender não só o seu pen· 
sarnento, mas o dos filósofos e autores que comenta e in· 
terpreta. Por isso não se mostra disposto a fazer qual­
quer concessão para simplificar as idéias ou tornar mais 
transparente e', lúcida a sua revelação formal. O sr. Eu­
ryalo Cannabrava apresenta-se mais reflexivo do que ex­
plicativo ; e nota-se que ele conhece sempre dos seus as­
suntos muito mais do que exprime. Uma grande parte 
do seu pensamento só será encontrada nas nuanças, nas 
sugestões, nas entrelinhas. Dificilmente poderão acom­
panhá-lo aqueles que desconhecem

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