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Alvaro Lins - Jornal de Crítica (2a Série) (1)

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JORNAL 
DE 
CRÍTICA 
DO MESMO AUTOR : 
HISTóRIA LITERARIA DE EÇA DE QUEIROZ 
-
'
Livraria José Olympio Editora, 1939. 
ALGUNS ASPECTOS DA DECADgNCIA DO IM· 
PÉRlO - Empresa Diário da Manhã S. A., Re· 
cife, 1939. 
JORNAL DE CRITICA, 1 .a Serie - Livraria José 
Olympio Editora, 1941. 
ALVARO LINS 
JORNAL 
DE 
, 
CRITIC.A 
2.0 Série 
CAPA DE SANTA ROSA 
1943 
LIVRARIA JOSE OL YMP!O EDITORA 
RUA DO OUVIDOR, l I O - RIO DE JANEIRO 
Deste livro foram tirados, fora de 
comércio, dez exemplares em papel vergê, 
assinados _pelo autor. 
OS CAPiTULOS DESTE LIVRO FORAM PUBLICA· 
DOS COMO FOLHETINS SEMANAIS DE CRiTICA 
LITERÁRIA DO CORREIO DA MANHÃ, AO QUAL 
O AUTOR E O EDITOR AGRADECEM O DIREITO 
DE PUBLICAÇÃO EM VOLUME. 
Dedico esta segunda serie do Jornal de á_itic,• a 
Dario de Almeida Magalhães 
José Olympio 
Osorio Borba 
e Barreto Leite Fillw 
- pelos gestos de confiança com que animaram, ha três ou quatro 
anos, e sob aspectos diferentes, o estado •de espírito de nm critico 
provinciano e ainda incerto no seu destino literário. 
INIHCE 
CAPs. 
I - Balanço de 1941 
Il � Poesia e forma 
III - Justificação de um poeta 
IV - Problemas e figuras de poesia moderna 
V- Versos 
VI � Vidas sêcas 
VII - Memória e imaginação 
VIII - Processo- da burguesia 
IX - Entre os ex'tremos 
11 
2� 
43 
54 
64 
74 
84 
95 
105 
X - Romances de concurso 115 
XI - Literatura e religião 125 
XII - Dois naturaiistas: Aluizio Azevedo e Julio :jlibeiro 135" 
XIII -' Contos 156 
XIV - Uma experiência de teatro 
XV - Shakespeare e o Brasil 
XVI - Letras femininas 
XVII - Ensaios 
XVIII - Regionalismo e universalismo 
XIX - Um ensaísta da filosofia 
XX - Posição de Farias Brito 
XXI - �tualidade do romantismo 
XXII - Sinais da nova geração 
XXIII - Literatura industrial 
XXIV - Lógicos e ilógicos 
XXV - Impres8ionismo e erudição 
XXVI - Um novo com�anheiro 
XXVII - Centenário de Anthero de Quental 
L'\:VIU - A propósito de Rosamond Lehmann 
XXIX - Sugestões para a leitura de Charles Morgan 
XXX - 50 anos de literatura 
167 
176 
136 
195 
203' 
224 
234 
245 
2Ó2 
272 
280 
235 
295 
304 
314 
323 
333 
CAPíTULO I 
BALANÇO DE 1941 
E scREVO esta crônica precisamente no último dia do · ano. Nenhuma impressão .forte me traz a cons­
tatação desse fim convencional e arbitrário. Não duvido 
que vou me acostumando, cada vez mais, a desdenhar 
toda convenção e todo artifício. Mas vejo, afinal, -que 
ninguem poderá ficar inteiramente indiferente à tirania 
do calendário e dos costumes sociais. Torna-se neces­
sário, então, que seja percebido o desaparecimento de 
um ano e o aparecimento de outro. Mais um ano, por­
tanto, que se aêha contado e recolhido para a nossa his· 
tória literária. O que significa um ano dé existência para 
a história literária que se levanta num movi�ento para­
lelo à história geral de todo um povo ? Um quase nada. Esta 
é a lição um pouco triste que o mistério do tempo sempre 
nos transmite. O que vale muito para os contemporáneos se 
reduz de proporção para a posteridade ; vai se reduzindo e 
desaparecendo cada vez mais através dos tempos. Repare-se 
na extensão que certos acontecimentos ocupam num volume 
de história e no interesse dos seus leitores. Um episódio 
que encheu cem páginas, hoje ocupa cinquenta, � ocupa­
rá vinte dentro de alguns anos, tendendo, com o desdo­
brar do futuro, para uma simples referência ou para um 
possível eaquecimento. Os acontecimentos literários, igual· 
mente. De todos os livros que aparecem e fazem su­
cesso, quantos ,se encontrarão mais tarde na história da 
literatura? Um número muito pequeno, como se sabe. 
E o que mais me transmite a "melancolia da crítica" é a 
comparação do julgamento dos críticos sobre os seus con­
temporâneos com o julgamento que sobre eles o tempo 
14 A l v a r o Li n s 
sobre um livro significa indiferença ou desprezo. Às 
vezes este silêncio significa uma homenagem, quando quer 
dizer que o crítico não se acha no completo domínio do 
assunto que o determinou. Pois o primeiro dever do crf• 
tico é o de somente julgar nos planos em que se possa 
·movimentar com uma segurança ou um conhecimento 
pelo menos à altura da sua conciência profissional. 
De um modo geral, porem, a conclusão que se impõe 
não é das mais favoraveis ao ano literário de 1941. Sem 
dúvida que ele apresentou alguns livros excelentes, mas 
nenhum desses livros que marcam uma época e fixam 
uma etapa na vida literária. Bem sei que pode se tratar 
de um simples ac.aso, e dentro em pouco é poesivel que 
surjam obras notaveis que se achavam em realização ·du­
rante o período de tempo que agora termina. l)oze me­
ses não significam nada numa vida literária, quando antes 
e depois se podem recolher acontecimentos consideraveis 
e realizações felizes. De qualquer forma, no entanto, 
1941 apresentou uma atividade menos intensa e menos 
fecunda do que a de 1940, que por sua vez já fora inferior 
à de 1939, o que talvez se explique em face dos aconteci­
mentos da guerra que concentram as atenções e os interes­
ses. Aquele ano de 1939 terá, aliás, um lugar especial na. 
vinte anos, não sei de outro que apresentasse quantidade 
tão elevada de livros de valor e número tão considéravel 
de estréias importantes. No ano p assado ainda assisti­
moa a estréias como a do sr. Oswaldo Alves, no roman­
.ce, a do sr. Edgard Cavalheiro, na biografia, a dos srs. 
Alphonsus Guimaraens Filho e Manuel Cavalcanti, na 
poesia. Em 1941, não houve nenhuma estréia- que fosse 
uma surpresa, como qualquer uma destas de 1940, ou 
ainda menos como algumas estréias espetaculares de 1939. 
Autores que apareceram em livro pela primeira vez, como 
o sr. Euryalo Cannabrava, já eram nomes· conhecidos do 
J o r n a l d e Crítica 15 
público através dos seus artigoa de jornal. E deve-se no­
tar que bem poucos volumes de estudos foram publica­
'dos durante o ano. Apareceu somente um pequeno nú­
mero de ensaios e estudos críticos. Quaae todos, porem, 
sem que fossem inéditos, quase todos se formando de co­
leções de material já divulgado em jornais e revistas. 
Entre todos, destaco o Região e tradição, por constituir 
uma síntese da vida de escritor do sr. Gilberto Freyre, 
com os seus' trabalhos das épocas mais diversas, desde a 
adolescência até os dias de hoje. Na vasta bibliografia 
do sr. Gilberto Freyre, este volume ocupa um espaço 
muito grande· e especialíssimo. Numa coleção de en­
saios, organizada por uma editora de Minaa Gerais, o sr. 
Tristão de Athayde publicou um pequeno volume sobre 
Machado de Assis, formado de três rodapés de 1939 (Trê$ 
ensaios sobre Machado de Assis), e o sr. Oscar Mendes 
reuniu vários dos seus artigos sobre autores estrangeiros 
(Papini, Pirandelo ,e· outros). O volume do ,sr. Tristão 
de Athayde, alem d� seu valor intrínseco, apresenta o 
interesse de ·revelar o seu ·pensamento sobre Machado de 
Assis, o que nun·ca fizera em vinte anos de crítica, como 
ele mesmo explica e justifica nestas páginas de síntese. 
Ainda livros publicados antes na imprensa, em carater 
fragmentário, são o do Br. Sergio Milliet (Sal da here· 
sia) , sem nada perder, no entanto, da sua agudeza e da 
sua força de ensaísta ; o do sr. Mario de Andrade (Mú· 
sim do Brasil) , debatendo certos aapectos de um assunto 
em que se to.rnou um verdadeiro especialista ; o do sr. An­
tonio de Queiroz Filho (Caminhos humanos), no qual 
.se reflete muito bem o estado de espírito das· novas ge­
rações, levadas 'muito cedo para as cogitações e os pro­
blemas da vida espiritual. Nesse número tambem se de­
verá incluir o livro admiravel do sr. Lindolfo Collor sobre 
a Europa de 1939, a única obra escrita por um brasileiro, 
neste gênero, hoje tão explorado, da interpretação dos 
16 Alvaro Lins 
acontecimentos europeus e das .causas da nova Grande 
Guerra. E nestas coleções de artigos e estudos em volu­
me, um lugar de destaque deve;_.á ser reservado para o sr. 
Osorio Borba, com o seu livro A comédia literária. Con­
sidero das mais oportunas, das maisnecessárias e das 
mais uteis esta espécie .de crítica a que se dedicou o sr.­
Osorio Borb a : a de protestar contra as injustiças e as 
confusões da vida literária, contra as glórias inexplica­
veis e acacianas, contra todos os ridículos e misérias da­
queles que pretendem fazer da literatura um salão de 
festas ou um negócio rendoso. 
Ensaios de grande proporção somente dois aparece­
ram em livro com carater inédito, sem que antes houves­
sem surgido na imprensa : o do sr. Sylvio Rabello a res­
peito de Farias Brito (Farias Brito ou itma aventura do 
espírito) e o do padre Leonel Franca S. J. sobre proble­
mas espirituais e políticos do mundo moderno (A crise 
do mundo moderno) . Ainda uma vez chamo a atenção 
para estes dois ensaios, muito diferentes nas suas orienta­
ções e nas suas finalidades, mas ambos respeitaveis pelo 
esforço que representam no sentido da •interpretação de 
problemas ou debate de idéias, quaisquer que sejam 
as nossas divergências e as nossas discordâncias, algumas 
delas por mim mesmo assinaladas. E por falar em esfor­
ço dentro da vida cultúral, não quero esquecer o do sr. 
Levy Carneiro na presidência da Academia Brasileira, não 
no sentido da criaçãõ de obras literárias, o que não é do 
alcance. das associações de qualqUer espécie, mas no sen­
tido que lhe cabe de animar e estimular o ambiente e o 
mundo das letras : o esforço que restaurou a Revista Brasi­
leira e a série de conferências (uma ou outra, no entanto, 
a cargo de conferencistas destituídos de suficiente autori­
dade) sobre os movimentos contemporâneos de diversas 
literaturas estrangeiras. Outra forma de esforço e de tra­
balho que merece ser ressaltada foi a do sr. Auizio Napo-
Jorna l de Crítica 17 
leão, cujas pesquisas - nos preciosos, mas quase virgens 
arquivos do ltamaratí - deram em re.sulta�o a publica­
ção de dois trabalhos históricos, nos quais se destaca a 
documentação de primeira ordem : um sobre Rio Branco 
(O segundo Rio Branco) e o outro sobre Santos Dumont 
(Santos Dumont e a conquista do ar). Ainda dessa nova 
geração de servidores do ltamaratí - geração que estou 
conhecendo de perto, sobretudo no seu propósito de con­
tinuar uma tradição da Casa que manda não desdenhar, 
mas a�tes valorizar, os problemas de literatura e de estu• 
dos desinteressados - é o sr. Sergio Corrêa da Costa, 
que revelou o seu gosto e' a sua vocação para as investi· 
gações históricas através do livro As quatro coroas de D. 
Pedro I. 
Numericamente, a contribuição maior continuou a 
ser a ·dos livros de versos. Mais de vinte volumes passa­
ram por estas crônicas no decorrer do ano. Quase todos 
de autoria de rl'mes desconhecidos, de jovens poet�s que 
apareciam pela primeira vez.- Continua a se repetir o 
fenômeno muitas vezes assinalado nas épocas mais di­
versas: o de rapazes que atiram na rua os seus livros de 
versos e nunca mais voltam a repetir a empresa : ou desa­
parecem da literatura ou se dedicam a outros gêneros li­
terários. Em geral, estes livros nada revelam de uma 
personalidade �e poeta, exibindo apenas o virtuosismo de 
exercícios literários ou uma exaltação de sentimentos ado­
lescentes. Es�amos cansados desses livros de versos e des­
ses autores sem personalidade. E daí a frieza e o cepti­
cismo com que costumo recebê-los. Das coleções de poe­
mas deste ano, não houve ti.m só que �e fosse possivel 
elogiar de uma maneira completa. Sem dúvida, o livro 
mais .apreciavel fali. o da sra. Iienriqueta Lisboa (Prisio­
neira da noite) , trazendo alguns poemas de uma forte 
h�spiração e de alguma riqueza temática, sem que se possa 
dizer, no entanto, que estamos diante de uma grande 
18 A I v a r· o L i n s 
obra. Dos estreantes, pude destacar a sra. Ana Osorio e 
o sr. Carlos Eduardo, pela simplicidade e pela sincerida­
de das suas mensagens, ambas ainda timidas e vacilantes, 
no entanto. Um autor de cujos versos não gostei foi o 
sr. Aluisio Medeiros, mas sem que esteja impedido de jul­
gá-lo uma verdadeira vocação literária e um joV'em escri­
tor que poderá reaparecer com um êxito mais definido. 
Lembro, porem, que não quero .condena,r esta abundante 
produção poética de segunda ordem, nem reagir contra o 
ambiente que a provoca e a determina. Ela faz parte da 
vida literária, sabendo-se da necessidade da existência de 
muitos poetas menores para que apareçam alguns poetas 
maiores. Esta é uma· necessidade, porem, da vida literá­
ria, mas não da arte literária. A única consideração 
para um julgamento estético deve ser a da obra em si 
mesma. E obra de arte poética, ou é uma grande obra, 
ou não é nada. Este é o meu critério de julgamento para 
os poetas ; e acho que valorizo a poesia não a identifiçan­
do com qualquer vagido sentimental ou com qualquer im­
puiso instintivo. Acredito, aliás, que a poesia se encon­
tra hoje numa situação de expectativa, quero dizer : no 
momento de uma renovação, de um novo caminho. Este 
caminho será o de um encontro com o povo, o de um 
encontro das forças poéticas com os apelos dramáticos da 
vida exterior. Pois hoje mais do que nunca o povo 
precisa de poetas que o comovam e de poetas que expri­
mam. os seus sentimentos. E aí está igualmente um ca­
minho para o romance. �as o romance, de uma niariei­
ra geral, apresentou-se em 1941 com as mesmas caracte­
rísticas dos livros de versos : falta de originalidade, me­
diocridade na realização artística, primarismo ou false;t­
mento de processos. Somente uma ou outra exceção se 
poderia fazer neste sentido. Uma delas para o romance 
do sr. Gilberto Amado (Inocentes .e culpados), que tem 
d�f�;itos �normes mas não exatamente ��t�i! «:!� primaris-
J o r n a l de Crítica 19 
mo e mediocridade. Aliás, a estréia do sr. Gilberto Ama­
do no romance constituiu um verdadeiro acontecimento. 
Ao seu livro chamei um "romance de duas fases", que­
rendo significar o que havia nele de desigualdade, de du­
plicidade, de altos e baixos. Uma obra inacabada e em 
tumulto, mas indicativa de um temperamento trágico 
para o qual o romance pode representar a mais adequa­
da forma de expressão. Dos estreantes, dois merecem ser 
lembrados: o sr. Dalcidio Jurandir (Chove nos campos de 
Cachoeira) e o sr. Josué Montello (Janelas fechadas) . O 
sr. Dalcidio Jurandir revelando uma autêntica força de 
romancista, emhora ·ainda informe e bárbara ; o sr. Josué 
Montelo revelando menos um romancista do que um escri­
tor, que talvez se possa afirmar mais definitivamente em 
ensaios e estudos críticos. E será quase uma- iropia dizer 
que o único romance até agora realmente grande e no­
tavel de 1941 se\acha numa reedição: na nova edição de 
Angústia, do sr . . Graciliano Ramos. Teve, porem, o ro­
mance brasileiro uma obra comemorativa de vulto, no 
número que lhe dedicou a Revista do Brasil. 
De um modo relativo, em face de certas propor­
ções, o conto se destacou mais do que o romance, levando 
em conta .os que foram publicados em jornais e revistas. 
Bastaria lembrar,. neste sentido, o nome da sra. Cacy 
Cordovil. E acho que esta autora quase desconhecida e 
o seu livro (Ronda de fogo) não deverão cair no esqueci­
mento, embora seja verdade que apresenta antes paginas 
!iterarias do ·que propriamente contos. Mas a sua ca­
pacidade descritiva e o seu estilo são realmente admira· 
veis. E realizou assim uma espécie de fragmentos de 
uma epopéia. Quem sabe se a sra. Cacy Cordovil não 
será capaz de realizar o "romance do interior", uma outra 
forma complementar do "romance nordestino"? De qual­
quer forma, é uma escritora que me deixa numa posição 
20 A l v a r o L i n s 
de expectativa, embora já situando Ronda de Fogo como 
um dos livros mais significativos deste ano. 
Não esqueço,_ porem, que a atividade literária não é 
�õoniente a que se revela em volumes. Talvez que a pro­
dução literária de qualidade mais segura de 1941 esteja 
perdida nos jornais e revistas. Lembro os poemas, os con­
tos, os ensaios que talvez mais tarde apa:rec.erão em livro. 
Os suplementos dos jornais, por exemplo, constituem pa­
trimônios de literatura,apesar do seu carater heterogêneo 
e desigual, o que se explica em face do gosto e das exi­
gências do grande público. Lembro, a propósito, a con­
tribuição para a história litedria que o sr. Mucio Leão 
está realizando no ,;uplemento sob a sua direção. Lembro 
os ensaios de uma categoria tão elevada e tão rara que 
Otto Maria Carpeaux vem publicando no suplemento do 
Correio da Manhã. Aliás, o· suplemento de jornal vai se 
constituindo um gênero intermediário que participa, ao 
mesmo tempo, do jornalismo e da arte literária. IDti­
mamente, os srs. Osorio :eorba e Genolino Amado ha­
viam .Se tornado as duas figuras prinçipais. desse gênero 
literário, alcançando um êxito e um renome que não são 
comuns nas nossas letras. Agora, um novo escritor acaba 
de se revelar através do suplemento de jornal : o sr. José 
Cesar Borba. E este é um nome que espero irá ser fixado 
nas nossas letras de maneira excepcional. Parece-me uma 
das figuras 1mais representativas e mais características 
da sua geração, como uma força de criação e uma voca­
ção literária que logo percebí quàndo ele era ainda um 
menino. E o sr. José Cesar Borba se apresentará sobre­
tudo como um autêntico poeta, o que se verá quando 
for publicado o seu livro de poemas que tenho comigo 
agora mesmo. 
Outra atividade que não se deve esquecer é a da vida 
literária das províncias, das cidades distantes em que es" 
critores e leitores se entregam à literatura com uma co-
Jorna l de Crítica .21 
movente seriedade. Muitos dos livros publicados ultima­
mente são de autores provincianos, e ninguem poderá falar 
mais hoje no isolámento ou na inercia das províncias. 
Conheço hem esta atividade e este ambiente. Conheço os 
seus escritores que trabalham desinteressadamente, sem 
nenhuma ambição de dinheiro ou de sucesso imediato. 
Conheço os seus leitores que procuram nos livros um apoio 
para o sentimento da vida e o conhecimento do mundo. 
Eu os conheço., todos, porque confesso que sou um crítico da Província, e é na minha província do Recife que estou 
pensando ao escrever esta última crõnica do ano. 
-3 de Janeiro de 1942. 
\ 
CAPíTULO li 
POESIA E FORMA 
I 
N Ão sei bem se falar do suprarealismo ainda constitue hoje uma novidade ou já representa uma atitude 
envelhecida. Nenhuma das dua!' hipóteses me importa 
muito, pois tenho a coragem de ser indiferente ao que é 
moderno e ao que é antigo, pl"ocurando somente a -verdade 
- o que me parece a verdade, pelo menos - sem ligação 
com as suas circunstâncias de espaço e de tempo. .Mas 
pelo que tenho lido não me é difícil verificar que o suprar­
realismo continua o seu caminho fora do movimento fran­
cês que o tornou universalmente conhecido. Ele não era, 
sem dúvida, uma pequena propriedade de certas figuras 
de uma determinada escola, mas um estado de espírito em 
correspondência com a vida mesma da nossa época. O 
que se chamou o movimento suprarealista teve no des­
tino deste estado de espírito dupla influência : uma que o 
favoreceu e outra que o p�judicóu. Favoreceu-o com al­
gumas obras explicativas, com um vasto debate crítico e 
interpretativo, com a sua iniciativa de o colocar para sempre 
dentro da literatura ; prejudicou·o com a sua esquemati­
zação dentro de um sistema, com o seu exagero de pre­
tender tudo reduzir a uma expressão suprarrealista, com 
o erro de excluir a razão - um erro igual ao de excluir 
a superrazão - da atividade psíquica. O que se sabe, 
porem, é que o suprarrealismo venceu por si mesmo as li­
mitações e os excessos da escola suprarrealista. E que per­
manecerá sempre por isso como uma aquisição, como uma 
J o r n a l d e C rít i c a 23 
contribuição da nossa época para os estudos científicos 
e literários ao me<!mo tempo. 
Apesar de toda a sua bi�liografia, acredito que o prin­
cipal docu"mento teórico do suprarrealismo continua a ser 
o famoso manifesto de André Breton. 'E' nele que se sente 
com mais evidência e mais dialética o que representa a ex­
periência do suprarrealismo. E na verdade deve ser apro­
veitado mais como uma experiência (o que lhe dá o seu 
verdadeiro carater de incessante pesquisa, de permanente 
renovação) do que como um sistema (o que lhe daria, com 
-O decorrer do tempo, um carater de petrificação, uma qua­
lidade de obra concluída e encerrada). No seu Manifeste 
du surréalisme, André Breton interpretou a experiência 
e lançou o sistema, O que nos resta é desprezàr o sistema 
e aproveitar a experiência. Mas esta experiência - o que 
ela significa, o que dela resulta, onde nos poderá levar? 
Significa o suprarrealismo o aproveitamento para a lite· 
r atura de todo um potencial mais escondido de vida: o do 
subconciente, o do irracional, o do instintivo. De um 
mundo interior mais profundo e mais puro. Dir-se-á que 
em todos os tempos esta vida misteriosa esteve presente na 
criação artística. E' certo que sim, mas somente com o 
suprarrealiemo é que obteve a importância de um reconhe­
cimento mais geral e a confissão de seu poder mais atuante. 
Obteve um definido lugar ao sol. Onde erraram os suprar­
realistas foi no seu propósito de fazer da vida artística um 
exclusivo produto do automatiemo psíquico, como se fosse 
possível reduzir a arte a ·uma operação espontaânea, sem os 
recursos da razão e da lógica (v. definição de André Bre­
ton em Manifeste du surréalisme, pág. 42). Mas bem 
se sabe que uma �oisa não exclue a outra: que a vida 
subconciente não exclue a vida conciente, que o ilogieismo 
completa o logicismo sem o anular, que a intuição é uma 
faculdade que pode exi8tir ao lado. da inteligência. As 
grandes obras se fizeram dessa harmonia, e porque não a 
reconheceu, o suprarrealismo Qrtodoxo não criou nenhuma 
24 A lv a r o L i n s 
grande obra, nenhuma obra completa e perfeita. Haviam 
criado estas obras, porem, aqueles que já se utilizavam do 
suprarrealismo sem o definirt um Baudelaire ou um Rim­
baud, alguns poeta3 românticos, quase todas as grandes fi­
guras das literaturas ingleaa e russa. Mas de qualquer 
forma o que resultou do suprarrealismo foi uma disposição 
revolucionária que não deve ser esquecida e, que deve ser 
continuada : uma revolução contra o espírito de imitação 
e de rotina, contra o falso realismo que excluía o trans­
cendental, contra a arte petrificada nos formulários, 
contra a conciência lógica que não tinha a coragem de se 
voltar para dentro de si mesma. O suprarrealismo tornou­
·se, assim, um movimento em profun.didade, e· lembremos 
que a sua direção é a mesma em que se encontram os dois 
filósofos que nos nossos dias mais lucidamente explicaram 
os fenômenos estéticos : um Bergson e um Croce. Deste modo 
é que se constituiu muito nítida uma linha de ligação entre 
os filósofos da intuição e os poetas do suprarrealismo. Uma 
tão completa conjugação de forças - a da poesia, a da fi­
losofia, a da ciência - levou a vida cultural a essa conclu­
são : a impossibilidade de precindir da experiência suprar­
realítica. E vejo a poesia dos nossos dias como a realização 
de um desdobramento do processo suprarrealista. E' uma 
poesia que procura resolver o princípio de contradição do 
suprarrealismo : o da idéia com a forma. Uma poesia que 
procura a sua forma de expressão : eis uma legenda para a 
poesia moderna. E aasim muito se explica do seu dina­
mismo, do seu desespero convulsivo e do seu estado de 
tensão e desvario. 
* 
Em nenhum poeta moderno mais do que no sr. Mario 
de Andrade se poderá sentir esta contradição que é própria 
da poesia moderna : a de um pensamento que procura a 
sua forma. Ninguem entenderá a sua obra sem levar em 
J o r n a l de C r ít i c a 25 
conta· esta circunstância. E dá-nos agora o sr. Mario de 
Andrade uma oportunidade para a compreensão e o jul­
gamento da sua obra poética em conjunto, publicando um 
volume (Poesias, São Paulo, 1941) que contem, ao lado 
dos seus poemas mais recentes, os seus_ livros j"á puhlica­
dos, desde Paulicéia Desvairada até Remate de Males. Poe­
mas em que as datas acusam um longo desdobramento que 
vai de1920 a 1940, e tambem que o sr. Mario de Andrade 
chega aos cinquenta anos conservando o fogo e o inconfor· 
mismo da mocidade. Vinte anos, como se vê, de atividade 
poética, num dos períodos mais importantes e mais sig­
nificativos das nossas letras : o que se conta do último mo­
viment9 moderno até 001 nossos dias. E não se trata de 
uma simples coincidência de datàs, pois o sr. Mario tle 
Andrade aparece como uma das figuras mais caracterís­
ticas e mais representativas do seu tempo. Representativa 
sobretudo do chamado movimento modernista, no qual· 
atuou como um chefe de fila, como um pregador, como 
um teórico e como um realizador. Poucas obras como a 
sua refletem o espírito de um movimento coletívo : com 
as suas inquietações, com as suas verdades, com os seus 
erros, com os seus problemas, com as suas esperanças, com 
os seus desencantos. Na sua obra se poderão encontrar a 
imagem de um homem e a imaginação de um movimento 
literário ; e simboliza o sr. Mario de Andrade o que nesse 
movimento existe de mais positivo e de mais negativo, ao 
me.smo tempo. Já .é histórico, aliás, o movimento mo­
dernista, quando até há pouco era ainda uma novidade. 
Envelhecer depressa vai se tornando uma contingência do 
nosso vertiginoso mundo nioderno. E uma tarefa da 
minha geração é exatamente esta de fazer o processo das 
inoV'ações que ae anteriores lançaram, uma vez que ainda 
não chegou o momento da nossa revolução. Por enquanto, 
estamos somente numa posição de defesa. E defesa da 
vida mesma. A minha geração ultrapassou, porem, o cha­
mado movimento modernista, e de tal modo que muitas 
26 Al v a r o Li n s 
das suas novidades já nos parecem hoje sem qualquer 
sentido. O que não significa, porem, que neguemos a sua 
importância nas nossas letras, nem que estejamos impê­
didos de compreender e admirar as suas figuras realmente 
vivas. Uma destas figuras é o sr. Mario de Andrade, em 
quem encontramos ao mesmo tempo uma personalidade 
conciente do seu destino e um autor conciente da sua obra. 
Devo, porem, acrescentar: mais umà personalidade do que 
Um autor, pelo menos no dominio da poesia. E somente 
do poeta é que tenho hoje de me ocupar, o que constitue 
uma liJ.Utilação para quem se exercitou em tantos gêneros 
literários, devendo acrescentar que não é a- personalidade 
do poeta, mas a do ensaista e do pesquisador, a que pre­
firo no sr. Mario de Andrade. Mas, de uma- certa ma­
neira, se a poesia do sr. Mario de Andrade não é sufi­
ciente para transmitir uma idéia de todo o seu valor e de 
toda a sua importância na nossa vida: literária, ela nos 
transmite, no seu conjunto, uma imagem da sua personali­
dade, um reflexo da sua história literária, um esboço do 
seu pensamento, da sua técnica e da sua figura de artista. 
E o que esta obra poética logo nos revela é o dualismo 
a que já me referi: o de uma essência poética em procura 
da sua forma de expressão. E é uma pena que esta pro­
cura t�nha se orientado mais para o mundo transitório e 
acidental, o que privou esta poesia de uma maior pro­
fundidad�t, 
O que se deve notar em primeiro lugar no sr. Mario 
de Andrade é a sua originalidade. Ele criou o seu próprio 
espaço, a sua própria maneira, de um modo inconfundivel 
Ao lado dessa originalidade intrínseca, existe porem uma 
outra menos apreciavel: a que ele procura criar com a sua 
técnica. E assim se explica que um poeta de tanta per­
sonalidade seja tambem um poeta de muitos artifícios. 
As suas realizações mais felizes são aquelas que obtem 
entregando-se naturalmente à sua obra ; as suas pagmas 
mais frageis ou mais falsas são aquelas em que se com-
J o r n a l d e C r ít i c a 27 
plica em busca de uma expressão original. Duas ordens 
de preocupações, duas espécies de motivos revelam-se como 
dominantes no sr� Mario de Andrade : o sentimento da 
sua terra e o seu sentimento mais íntimo de homem. Nos 
seus livros de poemas alternam-se os dois, com a predo­
minância ora de um, ora de outro : nos primeiros, a do 
sentimento da terra ; nos últimos, a do sentimento íntimo. 
Em Remate de Males percebemos uma mais intensa con­
fluência das duas correntes. Mas este sentimento em face 
da sua terra não é unânime e igual em todos os seus as­
pectos. E' um sentimento de amor em face da vida natu­
ral, mas um sentimento de revolta em face da vida social. 
Não se poderia desejar para um artista uma posição ·mais 
simpática e mais legítima. E o sentimento de revolta 
nascia-lhe espontaneamente de três foníes : a do seu tem­
peramento, a da sua mocidade e a do movimento literário· 
do momento. E ele o externou com uma coragem, com 
uma pureza de artista e uma desenvoltura - realmente 
exemplares. Sacrificou muito a sua obra poética, na mes­
ma proporção em que afirmava uma atitude diante da 
vida. Este sentimento de 1·evolta dirigiu-se contra as de­
sigualdades sociais, contra toda a organização burguesa. 
O longo poema "As enfibraturas do Ipiranga" - do qual, 
aliás, não gosto muito como poema em si mesmo - repre­
senta um documento da batalha que sustentou em favor 
dos "novos" contra os "velhos". Outros poemas típicos dessa 
sua atitude mais intransigentemente inconformista são a 
"Ode ao burguês'\ "O rebanho" e tantos outros, em quase 
todos sendo de lamentar, porem, que não tenha con­
seguido uma realização mais sutil e mais de acordo com a 
arte poética. Uma peça como "Ode ao burguês" mais 
parece um manifesto e um panfleto do que Úm poema. 
Tambem é certo que o sr. Mario de Andrade nem sempre 
impõe ao seu espírito satírico os limites sem os quais 
perde muitos dos seus efeitos. A sátira lhe tem dado 
muitos achados felizes, mas taml>em lhe tem muito es• 
28 A l v a r o Lins 
tragado a emoção poética. Às vezes nem se trata de sá­
tira : trata-se de simples pilhéria. Não sei como um autor 
tão inteligente - e que se encóntra tão poderosamente 
no domínio da sua arte - condescende com um falso 
espírito, com um falso humour, com uma falsa veia sa­
tírica. Esta intervenção abusiva é que me incompatibiliza 
bastante com muit_os dos seus poe:p1as, mesmo com uma 
parte dos seus poenias mais famosos, como "Noturno de 
Belo Horizonte", "Carnaval carioca", e quase todos os 
intencionais - os intencionais esteticamente e social­
mente. Como extrair poesia, por exemplo, daquela boa 
pilhéria dos dois versos finais de "Tabatinguera"? Outro 
recurso que me parece usado de mais na obra do sr. Ma­
rio de Andrade, e com uma insistência que se alastra por 
quase todos os poemas - é o do pitoresco -a· todo custo : 
o pitoresco no pensamento e o pitoresco na expressão. 
Nesta altura, estamos já em face de outro aspecto do seu 
sentimento da terra : o do seu amor pela vida natural, 
pela vida espontânea que é a da natureza e a do povo. 
Dessa categoria é o poema "Carnaval carioca" - no qual 
se sente, aliás, todo o seu sensualismó, inclusive o que 
nasce do simples jogo das palavras - como tantos ou­
tros destas Poesias, sobretudo os dos primeiros livros. 
Percebe-se mesmo que o· poeta teve a intenção de reali­
zar uma arte brasileira, uma arte nacional, refletida ao 
mesmo tempo nos seus asauntos e no seu vocabulário. 
Mas surge aquí a velha questão já resolvida da impotên­
cia dos assuntos e dos vocabulários, em si mesmos, para 
a criaÇão de uma literatura nacional. O brasileirismo de 
muitos poemas do sr. Mario de Andrade apresenta o mes­
mo resultado do brasileirismo do movimento modernis­
ta : uma exterioridade que hoje soa falso, que está enve­
lhecida, que se tornou inaceitavel pela sua intencionali­
dade, pela sua ausência de força íntima, pelo muito que 
revela de cerebralismo em vez de sentimento. É o caso 
de poemas como "O poeta come amendoim", nos quais 
J o r n a l d e C r ít i c a 29 
há versos em que tudo está perdido, inclusive o bom­
·gosto das palavras e das suas construções estilísticas. 
Podemós dizer que em geral os seus poemas intencional­
mente. brasileiros não atingiram os seus fins e os seus 
efeitos. Somente deles ficou a sugestão, a atitude, o iti­
nerário indicativo.E o que os matou foi exatamente a 
intencionalidade, a ausência de naturalidade. Dos seus 
poemas intencionalmente brasileiros, somente um se deB­
taca e se impõe sem restrições : é o "Acalanto do serin­
gueiro", no qual se unem uma inspiração autenticamen­
te brasileira, um espontâneo sentimento de revolta hu­
mana e uma arte social colocada acima de qualquer pro­
paganda. Mas sendo realmente um braBilciro, o sr. Ma­
rio de Andra·de consegue realizar alguns poemas corres­
pondentemente brasileiros. O que acontece é que os 
seus poemas mais brasileiros -são aqueles em que não 
houve intenção deliherada de um destino nacionalista. 
P-0emas da espécie de "Rondó pra você" e "Maria" -
ao lado das reconstituições de lendas como a do "Toada 
do pai do mato" e a de Rola-Moça no "Noturno de 
Belo Horizonte" - são daqueles em que mais se sente· 
o poeta em comunicação com a sua terra : pela lin· 
guagem, pelo sentimento, pela realização. E muitos des­
tes poemas desinteressados, que me parecem mais brasi­
leiros do que aqueles que procuram sê-lo intencional­
mente, pertencem à fonte que chamei o seu. sentimento 
íntimo de homem. No sr. Mario de Andrade é o poeta 
lírico o que me parece mais fortemente realizado ; e lí­
ricos são os seus poemas que mais me agradaram neste 
volume de Poesias. Deste gênero é o poema "Improviso 
do rapaz morto", revelando a sua capacidade de se elevar 
a um plano acima de todo o transitório, de todo o pito­
resco, de todo o satírico. Não esquecerei nunca este poe­
ma, sobretudo o seguinte verso : "Minhas lágrimas caem 
sobre ti e. és como um sol quebrado". Insisto ainda em 
lembrar o soneto "Quarenta anos", com um final que 
30 A l v a r o Lins 
sugere a recordação do desencanto poético de Alvares de 
Azevedo : 
"O' sono, vem! ... que eu quero amar a morte 
Com o mesmo engano com que amei a vida." 
Alguns poemas líricos do sr. Mario de Andrade 
os que revelam o seu sentimento mais íntimo de homem 
- me transmitem afinal a certeza de que ele insistiu de 
mais em certos temas e em certas atitudes, em certos ca­
minhos que não lhe eram os mais propícios. Tenho a 
impressão de que a sua posição mais propícia seria a do 
poeta solitário que canta o amor impossível, o amor ir­
realizado, o amor em si mesmo. E difícil será fazer a 
critica destas Poesias, pois eu gostaria de fazer a criti­
ca de cada poema, isoladamente. Encontro aquí alguns 
poemas que muito me sugerem, sendo que haveria mui­
tos outros a destacar com um vasto elogio. Poemas, ou 
tambem certos versos isolados. 
' 
Volto a dizer, porem, que o drama principal do sr. 
Mario de Andrade não se acha na sua temática, mas na 
sua forma de expressão. Sendo uma personalidade com­
plexa, o poeta procura a sua unidade através da forma. 
Uma situação que se complica ainda mais porque o pro­
blema pessoal do poeta se conjuga com o problema geral 
da poesia moderna. O sr. Mario de Andrade é um poeta 
que muito se aproxima do suprarrealismo. Alem, disso, 
procurou criar um estilo pessoal e uma linguàgem parti­
cularíssima, t�mto em poesia como em prosa. Admiro o 
que há de original nesta linguagem e neste estilo, mas 
sem esquecer o que em ambos exiBte de falsa originali­
dade. O seu estilo apresenta_ realmente certas caracterís· 
ticas admiraveis : um forte sensualismo de vocábulos e de 
construções, uma agilidade e uma graça pouco co�uns 
na nossa língua, uma influência musical que lhe impri· 
me um máximo de subjetividade. Mas, ao lado uestas 
qualidades, em ligação com elas, estão as suas fraquezas: 
J o r nal d e C r ít i c a 31 
um brasileirismo arbitrário e de gosto duvidoso, um ex­
cesso de !pitoresco, um .certo arrevesamento, um 1certo 
tom rebuscado, ou melhor : uma preocupação de moder­
nismo que muitas vezes parece mais um preciosismo de 
roupas novas. Esta é a impressão que decorre da sua 
leitura, inclusive da leitura de seus poema.s. Atinge mui­
tas vezes o puro delírio verbal, pensando que está a criar 
um mundo de imagens e de sugestões, quando nestas oca.:. 
siões estamos apenas diante de uma féerie. De uma 
féerie criada pelas palavras desenvoltas, pelos seus 
sons estridente, pelas ret-icêucias insistentes e gritautes. 
Inclino-me mais, ao contrário, para os seus poemas de 
uma maior tranquilidade, e nos quais se mostra mais 
domil:lador das suas palavras : os da espécie de "Louva­
ção da emboaba tordilha", por exemplo. Ou da espécie 
de "Cabo Machado", um dos seus raros poemas em que 
forma e poesia se ajustam com uma maior naturalidade, 
e que por isso pode ser sentido numa impressão mais 
complexa, de olhos- e de ouvidos. E esta procura da 
própria forma não é instintiva no sr. Mario de Andrade, 
pois estamos diante de um artista que conhece o seu ofi­
cio, que se acha no domínio da sua técnica. Direi mes­
mo que se assiste até demais à sua técnica. A técnica 
que está procurando a sua forma e o seu espírito. Ele 
nunca está satisfeito com a forma e o estilo já atingidos. 
E o que procura através de ambos é encontrar-se a si 
mesmo, é dar uma expressão ao seu eu não eucontrado. 
No mais explicativo, no mais "biográfico" dos seus poe· 
mas, o sr. Mario de Andrade escreveu estes versos : 
"Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta 
Mas um dia afinàl me encontrarei comigo • • . " 
Parece-me que nestes dois versos se encontra um� 
imagem da figura do sr. Mario de Andrade. Neles se 
encontra, pelo menos, .a sua história : a de um homem 
multiplicado que procura se encontrar a, si mesmo. E 
32 Al v a r o .L in s 
assim se · explicam as suas numerosas experiências em to­
das as direções, dando por isso a impressão de um ser 
anárquico e contraditório. Dentro da poesia, as expe­
riências de forma. Dentro da prosa, as experiências de 
gêneros. Nestas suas Poesias encontramos todas as for­
mas e todos os ritmos, o que nos transmite eeta idéia de 
desvario e de completa anarquia espiritual, ao lado de 
uma impressão de rigorismo lógico e de domínio da in­
teligência. Mas tudo misturado, tudo marcado por uma 
fatal desigualdade que nos faz ora aplaudir com entu­
siasmo, ora repelir sem qualquer hesitação. Na sua pro­
Ba, encontramos o ficcionista, o ensàista, o musicista, o 
folclorista, um mundo de preocupações e atividades, tor-; 
nando-o respeitavel pelo seu trabalho de cultura e esti-
mado pelos mais jovens, aos quais ele muito sugere . e 
muito ensina. Mas tudo igualmente misturado, tudo 
igualmente marcado por uma fatal desigualdade. No en­
tanto, o que não se deve eaquecer, sobretudo, aci,ma mes­
mo do possível destino nunca sabido da sua obra no fu­
turo, é esta imagem que a sua literatura nos transmite: 
a imagem grave e atormentada de um homem que EC 
procura a si mesmo. A sua figura é uma das mais no­
taveis da nossa literatura. Ele trouxe para o nosso tem­
po uma contribuição, em inteligência e em cultura, que 
tornar:J. sempre lembrados o seu nome e a sua obra. O 
sr. M4rio de Andrade é um artista autêntico, ,com a 
consciência e a dignidade da sua arte. 
li 
De um poeta moderno cujo nome não estou auto-
rizado a revelar - recebí uma carta em que se mostrava 
mais ou menos alarmado com a minha preocupação de 
ligar a poesia a um problema de forma, e não escondia 
o seu receio de que eu estivesse numa posição quase que 
reacionária. Vencendo um pouco o constrangimento que 
J o rn al d e C rít i c a 33 
sempre me traz a idéia de uma explicação forçada, não 
tenho dúvida nenhuma em desdobrar a minha afirmação 
neste sentido, embora repetindo mais uma vez que não 
escrevo para servir qualquer grupo literário de vanguar­
da ou de retaguarda, qué não estarei disposto nunca a 
fazer uma crítica de soutien, que não me deixarei domi­
nar por qualquer circunstância fora da literatura. Mas 
direi desde logo que se fosse obrigado a escolher entre a 
poesia antiga e a_ moderna - era exatamente a poesia 
mod,erna que eu escolheria. Bem sei que a poesia é uma 
só, mas a sua expressão moderna encontra em mim uma 
maior correspondência ; e o que poderia chamar as mi­
nhas poéticas "afinidadeseletivas" são todas com -os poe­
tlliS 'modernos. Explico, ·.porem, que Jestou restringindo 
o problema à vida literária do Brasil, onde acho que a 
poesia se encontra nestes últhnos anos num momento de 
plenitude. E não só a poesia, mas toda a literatura bra­
sileira está realizando um movimento de evolução. Esta­
mos hoje ultrapassando o passado em várias direções, 
sem que tenhamos a necessidade de desdenhar as gran­
des figuras deste mesmo passado. Afasto assim a inquie­
tação do poeta que me escreveu. Sou um escritor que 
estima o passado mas sem qualquer saudosismo reacioná­
rio, que se sente muito bem na sua época e com os seus 
contemporâneos, que compreende e valoriza a literatura 
do seu tempo mais do que qualquer outra. Fora de to­
do o propósito seria julgar que a minha exigência de uma 
forma para a poesia moderna representa qualquer ten­
dência de uma volta ao soneto ou ao v-erso metrificado. 
Estou certo, ao contrário, de que através do verso livre 
a poesia moderna pode encontrar a sua forma de expres­
são. E não se trata somente de uma substituição esté­
tica, mas sobretudo de uma nova conquista, de uma ex­
traordinária liberdade. O soneto, o verso metrificado, 
todas as medidas e formulários poéti�os - constituem 
·P�struJl1entos �ue limitam ou escravizam a poesia, a nãC? 
34 A lvaro Li_ns 
ser nos casos em que o poeta tenha uma verdadeira- voca· 
ção para essas formas. Poder-se-á lembrar que muitos 
poetas construíram as suas grandes obras dentro destas 
fórmulas, mas lembrarei ao. mesmo tempo a possibili­
dade de uma grandezá ainda maior para essas obras se 
houvessem sido colocadas num processo de realização 
fora de quaisquer limites. 
· 
Deve-se entender, portanto, que a poesia moderna 
violentou tantas fronteiras e penetrou em regwes tão 
misteriosas e tão profundas que não mais pode suportar 
qualquer limitação vocabular. Através do verso livre é 
que m�lhor poderá se exprimir e révelar. Mas será que o 
verso livre exclue .ã forma ou toma mais facil a sua 
aquisição? Penso o contrário: que o verso livre torna 
mais complexo o problema da forma, que torna a forma 
mais necessária e mais em conexão com a poesia. As 
fórmulas antigas de construção poética exigiam muito 
menos de individualidade e expressão pessoal. A poe­
sia já se revelava para _uma determinada forma que a 
iria conter. A dificuldade toda se· encontrava na técni­
ca, que é de ordem mais geral, não se confundindo com o 
esforço de uma expressão individual. O verso livre, ao 
contrário, tudo exige do poeta. Ele terá que criar ao 
mesmo tempo a poesia e a sua forma. E nem sequer 
poderá recorrer a uma técnica de ordem geral. Cada 
poeta há-de ter a sua própria técnica, com a qual, por 
sua vez, deverá criar a sua própria forma. A poética 
moderna abriu estranhas perspectivas e desmedidas pos­
sibilidades para a poesia em si mesma, mas deixou o pro­
blema da forma entregue a cada poeta em particular. E 
eis porque coloco o problema da forma no centro da 
poesia moderna. É um problema dramático que apre­
senta uma Bingular importância. Uns o resolvem pro­
curando esquecer a form
·
a, com a idéia de que um po' 
tencial poético de grande intensidade pode dispensar tu­
do o mais ; outros, procurando a construção de uma for-
J o r n al d e C r í t i c a 35 
ma que não seja uma consequência da sua poesia, mas 
de uma elaboração intelectual. Um caso especial é o 
do sr. Mario de Andrade, que procura na forma não só 
uma expresaão para a sua poesia, mas uma expressão 
para a sua própria personalidade. Uma pesquisa que 
engrandece a sua obra, somente a diminuindo quando o 
poeta se encontra num falso caminho. E raros os poe­
tas modernos que têm conseguido encontrar a sua pró­
pria forma. Não quero dizer, aliás, que o desencontro 
com a forma, esta luta inacabada pela conquista da for­
ma, signifique sempre uma fraqueza do poeta ou da 
poesia. Ao contrário, esta luta pode constituir um ele­
mento de grandeza e de dramaticidade. Mas se a ausência 
dê uma forma não impossibilita a grandeza da poesia, im­
possibilita s�m dúvida a perfeição de uma obra poética. E 
neste ponto .chegamos diante de uma distinção que não 
deve ser esquecida : a distinção entre poesia e obra poéti­
ca, entre uma inspiração de poesia
· 
e um poema realizado, 
entre a essência da poesia, que é toda subjetiva e imaterial, 
e a sua realização concreta, que tambem participa da ma­
terialidade das palavras. A poesia não é privilégio de nin­
guem : ela se acha em toda parte e no interior de todos os 
homens. O que é privilégio do poeta é a obra poética rea­
lizada, esteticamente construída. E não se deve esque­
cer que a obra poética representa uma obra de arte, ·exi­
gindo nesse carater um instrumento de expressão, uma 
forma literária, portanto. Não havendo forma t!_ão exis­
te, pois, uma obra poética, não existe um poema. Pode 
existir apenas a poesia, mas sem a capacidade de se ex­
primir, sem a capacidade de se comunicar. E comuni­
car-se representa uma missão da poesia, representa uma 
missão do poeta. Ou, como escreveu Henri Bremond : "On 
pourrait dire d'un mot : le propre de l'experience poé­
tique est d'être comunicable." Um excessivo hermetis­
mo .pode asaim constituir . um obstáculo fatal, não digo 
36 A l v a r o L i n s 
para a poesia em si mesma, mas para a obra poética, que 
deve necessariamente se comunicar. Um poeta que não 
se comunica é um prisioneiro da sua própria · poesia. 
Existe, porem, outro aspecto da questão : o de que nem 
sempre ,cabe ao poeta a responsabilidade da não 
transmissão da sua· ·experiência poética. A responsabili­
dade pode se encontrar no leitor, no seu prosaismo, nos 
seus preconceitos, nas suas exigência,s de uma clareza den­
tro da lógica comum. A poesia moderna, porem, se acha 
colocada muito alem �essa lógica comum. Poesia que se 
transmite nem sempre quer dizer, por isso, uma poesia 
que é. clara no seu sentido e no seu desenvolvimento. 
Sabemos que algumas obras têm o destino de conservar 
um estado de mistério, de se 
·
concentrar dentro de uma 
especiC não comum de obscuridade. No entanto, para 
estas obras mais difíceis a forma se torna ainda mais ne­
cessana. Por exemplo : o que seria de Mallarmé· sem a 
sua forma? Pois somente uma forma poética contem a 
capacidade de justificar ou explicar uma poesia obscura. 
Podemos não entender o poema, pois nem toda poesia se 
mostra reconhecível sob os critérios da inteligência, mas 
teremos que o sentir por intermédio de outros caminhos 
de comunicação, o que somente se verifica através do 
poder sensível das palavras, através do ritmo interior, da 
música e dás sugestõe� que se acham contidas na forma. 
Parece-me que nunca um problema se encontrou co­
locado em termos de maior certeza e de mais positiva 
evidência. Um problema não só do nosso tempo, mas 
de todos os tempos. Lembro, a pro·pósito, o debate que 
ainda hoje se prolonga em torno da poesia de Edgard 
Poe nas letras de língua inglesa : um debate em torno 
da sua forma. Foi a · tradução francesa de B audelaire, 
como se sabe, que tornou Poe um nome universal. 
Depois, as letras de língua inglesa se dividiram a este 
propósito. Uns aceitam e confirmam essa consagração, 
enquanto outros continuam a negar a sua legitimidade, 
J o r n a l d e C r ít i c a 37 
E para os que não a aceitam, o argumento é a forma 
de Edgar Poe. Num doa seus ensaios, por exemplo, 
Huxley afirma que Poe poderá ser um grande poeta em 
tradução francesa, mas nunca o será na língua inglesa, 
explicando-se : "A substância poética de Poe é aristocrá­
tica, enquanto que a sua forma é vulgar." Este caso de 
Poe - que estou apenas expondo, sem qualquer propó­
sito de oferecer uma opinião - se - coloca como um exem­
plo do perigo a que a forma submete um autor. Além 
disso, gostaria de lembrar que somente na forma poderá 
ser encontrada a sensação do verdadeiro tra�alho inte­
lectual, o sentimento da dignidade do oficio literário. 
Pretender que o poeta seja um simples medium para 
a inspiração - oque parece de acordó com o pensa­
mento teórico de certos poetas q'ue querem fazer da poe­
sia um. exótico "espiritismo", uma seita para iniciados 
sonâmbulos - seria diminuir a sua posição, seria torná· 
-lo um simples e pobre autômato. Acho, ao contrário, 
que o trabalho e o esforço são criadores, que devem estar 
na base de toda obra literária, como uma afirmação da 
personalidade no sentido desta proposição de Bergson : 
"L'effort est penible, mais il est aussi précieux, plus pré­
cieux encore que l'reuvre ou il aboutit, parce que, grâce 
à lui, on a tiré de soi _ plus qu'il n'y avait, ou . s'est haussé 
au-dessus de soi-même." 
* 
Não tenho, pois, outro propósito aenão o de cola­
borar com os poetas modernos qilando lhes estou suge­
rindo a importância da forma para a segurança e a resis­
tência de uina obra poética. E outro poeta moderno, 
diante de quem logo somos tentados a situar o problema 
da forma, é o sr. Murilo Mep.des, de uma maneira po­
rem que hão se confunde com a do sr. Mario de .Andra­
de, embora fosse possível eseabelecer entre ambos cer­
t<ls linhas de a11roximação1 sobretudo as que vieram do 
38 A lvar o L i n s 
suprarrealismo para a poesia moderna. Publicou o sr. 
Murilo Mendes, em 1938 o seu livro principal, ao mesmo 
tempo que uma das obras mais con.sideraveis da nossa 
poesia contemporânea : A poesia em pânico, um volume 
em que recolheu os seus poemas de 1936 e 1937. O livro 
que agora publica (O visionário, Rio, 1941 ) está for­
mado de poemas anteriores aos de A Poesia em Pânico ; 
poemas de 1930 a 1933, servindo antes de tudo como do­
cumentos da sua trajetória e como depoimentos da sua 
inquietação e da sua mobilidade. E nessa categoria de 
documentos está o principal mérito de O visionário. Na 
categoria de obra poética parece-me abaixo de outros 
livros -do sr. Murilo Mendes. Abaixo tanto de Poemas 
( 1930) como de A poesia em pânico ou Tempo e eterni­
dade. Percebo em O visionário um intenso potencial 
poético, mas que ainda se acha aprisionado, que ainda 
não encontrou a sua forma de expressão. Mas como o 
sr. Murilo Mendes se coloca em face do problema da for­
ma ? Ele me transmite a idéia de alguem que não se 
preocupa muito com este problema. Contudo em A poe­
sia em pânico atingiu uma forma adequada e precisa de 
expressão para quase todos os poemas ; atingiu algumas 
vezes a unidade orgânica de poesia e de forma, e de um 
modo tão seguro que poderia lembrar aquela aspiração 
de Valéry : "La pensée doit être cachée dans le vers com­
me la vertu nutritive dans un fruit." Um resultado, porém, 
em que não deve ter havido senão um milagre da pró­
pria poesia, pois a verdade é que uma forma tanto pode 
ser obtida laboriosamente oomo espontaneamente. Te­
nho a impressão de que a forma de A poesia em pânico 
nasceu Ja com a sua própria poesia. Nasceu com aque­
la sombria densidade, com aquele canto desesperado de 
amor, com aquele lirismo metafísico. Foi realmente 
este livro o momento mais alto da vida poética do sr. 
Murilo Mendes, 
J o r n a l d e C r í t i c a 39 
Não se preocupando com o problema da forma, o sr. 
Murilo Mendes está vivendo quase sempre no domínio 
exclusivo da poesia em si mesma. É verdade que em 
todos os seus livros existem alguns poemas realizados 
integralmente, poemas em que se ajustam a forma e a 
p oe.sia ; o que é mais constante, porem, é o sentimento 
exclusivo da poesia, sem a sua correspondente expressão 
formal. Representa o sr. Murilo Mendes um dos nossos 
mais poderosos "portadores" de poesia, sem que tenha 
um igual poder de transmissão. O seu clima mais natu­
ral seria o da poesia pura, o de uma poesia que fosse 
indiferente às palavras. Talvez que essa sua tendência 
venha das suas profundas afinidades com a música. E 
a música se caracteriza, como acentuou Hegel, pela sua 
capacidade de exprimir "a vida do espírito em seu mo­
vimento essencial". Uma característica muito semelhan­
te vamos encontrar no sr. Murilo Mendes : a sua ânsia 
de penetrar na essência mesma das coisas, colocando a 
sua poesia no plano do que é essencial, do que é impon­
deravel, do que é metafísico. O mundo físico não existe 
poeticamente para o sr. Murilo Mende�. Mesmo quan­
do fala dos seus objetos a voz do poeta se dirige para a 
possível existência desses mesmos objetos num mundo 
metafísico. Não vê coisa alguma com os olhos do mun­
do natural, pois toda a sua visão está voltada p ara a so­
brenatÚralidade. Afirma-se sobretudo como um poeta 
católico nesse plano de transfiguração de todos os obje­
tos terrestres. Daí o que existe de deformador na sua 
visão poética. Ele t:udo vê sob formas antinaturais, ex­
cêntricas, absurdas. Quando descreve uma mulher, uma 
paisagem, um acontecimento - todos estes seres e obje­
tos se tornam quase irreconheciveis. O poeta lhes atri­
buiu uma nova configuração, a configuração do seu estra­
nho poder imaginativo. Ele seria de qualquer modo um 
poeta suprarrealista, mesmo que não houvesse existido o 
movimento do suprarrealismo. O sr. Murilo Mendes 
40 A l v a r o L i n s 
tornou-se por isso o menos inteligível, o mais hermético 
dos nossos poetas modernos. Dificilmente a sua poesia 
se transmite, e a responsabilidade desse desencontro cabe 
em muitos casos ao leitor, mas em muitos outros ao 
próprio poeta. 
Na verdade, o sr. Murilo Mendes se sente na terra 
como, _ um "noVÍSBimo Prometeu". Sente-se acorrentado 
violentado, debatendo-se num tumulto de aspirações im­
possíveis. Procura se evadir do mundo natural por in­
termédio de dois caminhos : o seu frio espírito crítico e 
a sua ardente alucinação poética. Dois caminhos apa­
rentemente contraditórios que se juntam neste poeta, em­
bora com a finalidade de torná-lo ainda mais dividido e 
complexo. O espírito crítico leva-o à realização de poe­
mas satíricos, epigramáticos, caricaturais, sendo que uns 
atingem o efeito mais feliz, enquanto outros nos parecem 
simples jogos de excentricidade. E deve-se assinalar o 
que há de inteligência, de agudeza, de poder de com­
preensão na parte propriamente crítica da obra do sr. 
Murilo Mendes. E' um caso realmente curioso o desse 
poeta que parece um alucinado da poesia, mas que tem 
ao mesmo tempo uma força de inteligência e de .conhe­
cimento literário. Dá-nos a impressão, porem, de que 
tudo esquece naquelas ocasiões em que se acha pos­
suído de alucinação poética. Estamos agora diante do 
outro aspecto - o aspecto principal, na minha opinião, 
- da sua figura poética : aquele que se poderia chamar 
o .seu lirismo metafísico. A 1sua poesia perue, então, 
todo o seu possível equilíbrio : o equiHbrio de espaço e 
de tempo. O espaço se desdobra para alem de todos os 
horizontes visíveis ; o tempo está recuado para o passa­
do ou projetado para o futuro, fora · de qualquer con­
trôle de calendário. Nestas regiões desconhecidas e nes­
tes tempos misteriosos, assistimos à luta dramática do 
poeta : a luta entre o Bem e o Mal, entre o Espírito e o 
Corpo, entre Deus e o Diabo. E nesta luta é �e se en,-
J o r n a l d e C r.í t i c a 41 
contra toda a essência da poesia do sr. Murilo Mendes. 
Pode-se imaginar, por isso, a que altura chega o seu de­
lírio de imaginação. Delírio de imaginação que se torna 
responsavel peJa força e pela fraqueza da sua poesia, ao 
me.smo tempo. Direi assim, sem nenhuma hesitação, que 
o sr. Murilo Mendes é um poeta que não se pode a�eitar 
integralménte. Logo se vê que ele não sabe manter um 
contrôle eficiente sobre a sua obra, de modo que a g�:an­
de poesia e a nenhuma poesia se alternam nos seus li­
l'ros com a maior naturalidade. Logo se verifica como 
ele se repete a si mesmo, nas suas imagens, nos seus sen­
timentos, nas suas idéias, chegando a provocar constan­
temente uma sensação de monotonia. Logo se percebe 
o seu gosto exagerado pela excentricidade, pelo "épater 
le bourgeois", pelo efeito desconcertante das imagens es­
quisitas. E penso que toda essa parte mais inaceitavel 
do sr. Murilo Mendes prove1n: da sua insistência em tudo 
extrair das suas faculdadessuprarrealistas. Mas o suprar­
realismo não suporta apelos excessivos, nem violências 
contra a sua espontaneidade. A faculdade suprarrealista 
tem qualquer coisa de uma criança : quando se pede na 
vista de gente que realize os prodigios que costuma fazer 
tão naturalmente, ela se atrapalha toda e mata os pais 
de vergonha pelo fiasco. Alem disso, esse automatismo 
suprarrealista vai repercutir na sua forma, tornando-a 
demasiadamente fria, simplificada e esquemática. Uma 
forma em muitas ocasiões quase que telegráfica, quando 
a poesia exige sempre uma forma igualmente poética. 
Não digo uma forma pomposa, mas uma forma simples­
mente poética, o que pode significar sobriedade; preci­
são e domínio rigoroso das palavras. 
Tudo o que estou escrevendo agora sobre o sr. Mu­
rilo Mendes me foi sendo sugerido exclusivamente pela 
leitura de O visionário, mas .como era natural com a 
associação de impressões que me transmitiram muitos 
outros poemas de livros diferentes. Quero I'epetir, po-
42 A l v a r o L i n s 
rem, que O visionário nada de novo acrescenta ao sen­
tido de sua obra, devendo ser fixado mais como uma re­
presentação documentária do seu espírito, o que procurei 
fazer nesta crônica. Trata-se, aliás, de um livro que re· 
vela mais ostensivamente os seus �efeitos do que as suas 
qualidades ; um livro em que se sente mais a presença de 
uma figura de poeta e de uma espécie de poesia do que 
propriamente a realização de uma obra poética. O que 
não quer dizer que não haja, nas suas páginas, um ou 
oútro poema admiravel, sobretudo que não haja nas suas 
páginas uma !Série de imagens que muito sugerem como 
visão poética e como representação lírica da vida. 
21 e 28 de Março de 1942. 
CAPíTULO lli 
JUSTIFICAÇÃO .DE UM POETA 
D E vez em quando acontece que a um livro não seja atribuído o seu devido lugar por ocasião do seu 
aparecimento. Ainda existe outra siituação mais peno­
-sa : que um escritor ou artista suporte durante a vida 
toda os rigores de uma sorte contrária ; que suporte o 
silêncio ou a reprovação de uma forma injusta. Quase 
nunca coincidem, em , literatura, o julgamento contempo­
râneo e o julgamento do futuro. É o que está !\empre 
indicando aquela experiência que se levanta do conheci­
mento da história literária. 
. 
Muitos são os livros e os 
autores que se glorificam hoje com o desgraçado destino 
de um completo esquecimento para as próximas gerações. 
Outros, porem, carregam um destino exatamente oposto : 
o de um reconhecimento do futuro como uma espécie de 
vingança contra os contemporâneos que não os souberam 
entender. Nem sempre esse desencontro se verifica com 
a
· exatidão de uma fatalidade. Contudo, ele se verifica 
com mais frequência do que esperamos. A esse propósi.., 
to é que venho falar de um poeta da minha cidade e da 
minha geração, o sr. Odorico Tavares, que não encontrou 
ainda a repercussão e a categoria literária que me pare­
cem à altura da sua obra. Acredito, antes de tudo, que 
se trata de uma injustiça não voluntária. O sr. Odorico 
Tavares não foi devidamente julgado porque ainda não 
se acha suficientemente conhecido. Mas como se .expli­
ca que não seja conhecido quando já se deu inteiramen­
te a conhecer? Estamos diante de um desencontro . lite­
rário ; estamos diante de um desajustamento que se pode 
constatar sem que se possa igualmente explicar. 
44 A l v a r o L i n s 
Há alguns anos, o sr. Odorico Tavares, ainda estu­
dante, publicava uma coletânea de versos com o título de 
26 Poemas. Destes versos podemos hoje dizer que nada 
mais eram do que uma tentativa, do que um ensaio, fe­
cundo na categoria de promessa, mas desprezível ,em si 
mesmo, como obra literária. Representavam realmente 
uma simples coletânea de estudante, os primeiros im­
pulsos e os primeiros entusiasmos de um poeta que pro­
curava o seu próprio caminho. Anunciav'am apenas o 
poeta que seria depois, o poeta que é hoje o sr. Odorico 
Tavares. Apesar dessa circunstância, a coletânea dos 
26 Poemas, embora editada no Recife, obteve no Rio e 
'em outros centros literários de importância um sucesso 
fora do comum. Saudava-se essa estréia como uma re­
velação, e de toda parte surgiam artigos e pal�vras de 
apoio. Lembro-me que o artigo mais entusiástico foi o 
do sr. Mario de Andrade, que falou do jovem poeta e do 
seu livro como de entidades que traziam uma contribui­
ção nova para a literatura brasileira. Infelizmente, po­
rem, todo esee sucesso era indevido ; e mais forte do que 
ele era a fraqueza dos 26 Poemas. Esse sucesso quem o 
iria merecer era A sombra do mundo, o novo livro que 
o sr. Odorico Tavares publicou há dois anos, exatamente 
em setembro de 1939. Mas o que aconteceu foi o ne­
nhum sucesso de A sombra do mundo. Um silêncio in­
justo caiu e ainda hoje está pesando sôhre esse livro. 
Do êxito de 26 Poemas quase ninguem se recorda mais : 
eis uma consequência natural. Do valor de A sombra do 
mundo ninguem se lembra de falar : eis uma consequên­
cia inesperada. Devo dizer, aliás, que não resultou eete 
silêncio de nenhuma circunstância acidental : o livro foi 
lançado no Rio de J aneiro, por uma editora do mais só­
lido conceito ; a apresentação gráfica do volume é de pri­
meira ordem ; não havia contra o poeta qualquer propó­
sito deliberado de oposição. O livro chegou mesmo a 
obter um simpático noticiário de imprensa e algumas crô-
J o r n a l d e C r í t i c a 45 
nicas de elogio vago e inexpressivo. Mas fazendo excepção 
para o artigo do sr. Valdemar Cavalcanti, não sei de nin­
guem que lhe houvesse dedicado um estudo crítico ou 
uma atenção demwada. Nem mesmo o sr. Mario de An­
drade, tão entusiástico para os 26 Poemas, se . lembrou de 
dar uma palavra sequer para o novo livro, que vinha 
encontrá-lo, aliás, como crítico profissional de um suple­
mento literário. Somente no Recife é que os poemas de 
A sombra do mundo puderam ser lidos e julgados devida­
mente. Lidos e juJgados por um Gilberto Freyre, por 
um Olívio Montenegro, por um Luís Delgado, por um 
Annibal Fernandes. Mas esses julgamentos não atraves­
saram os limitea da vida provinciana, não se continua­
ram em outras cidades e em outros ambientes. No Rio, 
somente alguM escritores e poetas conhecem o sr. Odorico 
Tavares ; e são ainda mais raros os que atribuem aos seus 
poemas a categoria que eles merecem e exigem. Eis 
porque me disponho agora a falar de um livro que conta 
dois anos de aparecimento, mas que ainda se conserva 
numa aituação de quase i�editismo. Acabei concluindo 
que não devia tomar como obstáculos as relações pessoais 
e sentimentais que me colocam tão perto do poeta de 
A sombra do mundo. Tenho vários amigos de cujos livros 
não gosto, e diante dos quais venho suatentando opiniões 
contrárias com _uma invariavel franqueza. Destas mesmas 
colunas tenho lançado contra amigos ou companheiros de 
idéias algumas das palavras mais duras e amargas que a 
crítica pode utilizar, ao mesmo tempo em que me tenho 
empenhado na tarefa de fazer justiça àB obras e pessoas 
dos inimigos e adversários. Mas como não oferecer a um 
amigo a mesma justiça que se oferece até aos inimigos ? 
Ao me referir, portanto, ao sr. Odorico Tavares, não será 
o amigo ou companheiro de geração quem estará falando. 
Será crítico que joga sempre nas suas afirmações toda a 
responsabilidade do seu ofício e do seu nome. Esta é, 
aliás, uma explicação que não se restringe ao sr. Odorico 
46 A l v a r o L i n s 
Tavares ; é uma explicação de ordem geral que ape,nas 
encontrou no desenvolvimento desta crônica uma oportu­
nidade mais adequada para se exprimir • 
•. 
Em "Caminho", dos 26 Poemas, o sr. Odorico Tavares 
escreveu· estes versos que continham uma davertência ao 
próprio poeta que os lançava : 
' 'Vê bem, poeta, que ·este não é o ritmo do teu verso 
Vê bem, poeta, que esta não é a tua poesia ." 
Realmente, não era. A verdadeira poesia do sr. Odo­
ri«?? Tavares é aquela que vamos encontrar em A sombra 
do mundo. No entanto, não. contem este livro toda a sua 
poesia.Uma contingência dos poetas de hoje é a ex­
pressão em pequenos poemas, em assuntos limitados, em 
inspirações que se esgotam todas em alguns versos. As­
sistimos, assim, a uma espécie de fragmentação das perso· 
nalidades poéticas. Elas só se vão revelando pouco a pou­
co, de poema para poema, de livro para livro. Como 
todos os poetas 1modernos, tambem o sr. Odorico Ta­
vares se encontra limitado por essa .contingência. Ain­
da se deverá levar em conta a mocidade do poeta e o 
seu temperamento, que não é daqueles que se confes­
sam e se projetam de uma só vez. Ele pertence à raça 
dos que necessitam de muitos anos e de muitos livros para 
uma completa realização da personalidade. Assim hem 
se pode afirmar que não é toda a poesia do sr. Odorico 
Tavares que será encontrada no livro A sombra do mun-. 
do. Tanto a essência poética como a forma de expressão 
ainda se encontram num caminho de desdobramento; de 
continuidade e de evolução. Tudo indica que não esta­
mos diante de um poeta perfeito ou completo. Mas ao 
mesmo tempo tudo indica que estamos diante de um au-
J o r n a l d e C r ít i c a 47 
têntico poeta. A revelação dessa autenticidade será a lei­
tura e a compreensão de A sombra do mundo. E qual 
a significação desse livro dentro da nova literatura brasi­
leira ? Acho que poderemos defini-lo em dois aspectos : 
1 °) é um livro moderno pela forma e pela expressão 
·estilística com que renova velhos temas ; 2° ) é um livro 
antigo pela essência poética e · pelo gosto com que se co­
loca dentro do passado. Parece que o sr. Odorico Ta­
vares se instala, assim, dentro da mais forte e mais sau­
davel tendência da poesia brasileira dos nossos dias. O 
seu movimento é o mesmo que estão· realizando alguns dos 
nossos principais poetas : a unidade entre uma essência 
poética antiga - o que quer dizer : eterna - e uma for­
ma rigorosamente mod�rna. Nin�em seria mais hoje ca­
paz de fazer profissão ,de "moderno". Atingimos uma 
arte moderna pela superação do "modernismo". O ho­
mem moderno procura
' 
hoje reatar ·e continuar uma tra ... 
dição poética que se encontra toda no lirismo brasileiro 
- uma herança do lirismo português que se tornou inde­
pendente e autônoma. Esta poética que já se poderá 
chamar brasileira é a que se iniciou .com os líricos da 
Escola Mineira, a que se afirmou com os românticos do 
século XIX, a que conseguiu vencer a "impassibilidade" 
parnasiana, sobretudo com Raymundo Correia, a que se 
corporificou em simbolistas como Alphonsus de Guimarães 
e Cruz e Sousa, a que se encontra hoje em. plenitude atra­
vés de alguns dos nossos poetas modernos. Existe uma 
luz interior, uma inspiração local e uma realidade verbal 
que vêm marcando a poesia brasileira através das ·escolas 
sucessivas e temporárias. Uma espécie de linha que se 
quebra e se reata constantemente. E acredito que nunca 
apareceu mais fortemente sustentada do que nos nossos 
dias. Vê-se que a poesia de hoje está tentando esta sín­
tese entre a forma moderna e a substância antiga, entre 
sentimentos universais e expressões de carater nacional, 
entre a 1'saudade" do passado· e a "vontade" do futuro. 
48 A l v a r o L i n s 
É uma t�ndência que já assinalei ao falar do sr. Carlos 
Drummond de Andrade. É uma tendência que tamhem se 
poderá assinalar na· poesia do .sr. Odorico Tavares, que 
pertence exatamente à família poética onde se encontram 
instalados, como patriarcas, os srs. Manuel Bandeira e 
Carlos Drummond de Andrade. Esta família se distingue 
pela sua ânsia de realizar aquilo que, em filooofia da 
arte, Wischer e Lotze chamaram a "einfühlung", isto é : 
o propósito de fazer d a beleza estética uma imagem da 
própria vida, uma realidade onde identificamos a pró­
pria vida. Uma espécie de fusão, quase sempre ideal, 
entre o "sentimento da natureza" e o "sentimento esté­
tico". 
O sr. Odorico Tavares coloca-se sob o signo dessa 
fusão em todos os poemas de A sombra do mundo. Al­
ternam-se os poemas que apresentam uma caract�rização 
mais local e os que oferecem uma participação m�'larga 
nos sentimentos universais. É um livro o seu muito da 
sua terra e do seu tempo. Do seu tempo, antes · de tudo 
pelo que rcpre.senta de ressonância dos acontecimentos 
desencadeados pela - guerra. A voz do poeta se ergue num 
momento de guerra quando ela é uma voz que clama pela 
p az. Pode-se dizer que ela chegou no instante 'mesmo 
em que se consumava um rumoroso fracasso dos intelec­
tuais: De 1918 até hoje, as atividades dos homens de le­
tras mais separados, dos que vinham de todos os cantos 
dos horizontes políticos, tinham todas o mesmo denomi· 
nador : a paz. Esta palavra não exprimiu, no caso dos 
intelectuais, apenas um sentimento : representou tambem 
uma espécie de ética, um ideal de luta, um destino de 
combate. Mas o que resultou foi .uma enorme sensação 
de inutilidade. O mundo o que ele prefere é a voz da 
guerra à voz da paz. No entanto, essa luta pela paz ain­
da é sustentada por homens que acreditam na poesia e 
nos poetas. Eles podem repetir com Georges Bernanos : 
"Si ce monde pouvait être sauvé, il le serait par ses poe-
J o r n a 1 d e C r í t i c· a 49 
tes". Alguns dos poemas mais significativos de A sombra 
do mundo éoncentram-se 'nos motivos dramáticos da guer­
ra da paz. Uma espécie de diálogo entre o lirismo do 
poeta e as forças destruidoras das máquinas. E vale a 
pena acentua:t: o tratamento novo e o sentido pessoal com 
que o sr. Odorico Tavares se movimenta dentro de temas 
tão difíceis e tão possíveis do tom-banalidade. Não se 
encontram nos seus poemas lugares-comuns, versos va­
zios, sentimentos fal�;os. Ele teve o heroismo de muito 
sacrificar a quantidade da sua obra, de destruir muitos 
dos poemas que eu poderia agora indicar como indignos 
de um livro ; as suas exigências consigo mesmo determi­
naram A sombra do mundo como um volume que não 
tem mais ,de setenta páginas. Entre os seus poemas, des­
taco "Mo"tietone Ne:ws" : a visão de uma Espanha que um 
dia :aal_· 1 :1:\scerá ; "Paz" : .a imagem simbólica �e uma, crian­ça �colher "a poesia toda do mundo para solta-la no 
espaço contra os gases asfixiantes" ; "Guerra" : uma espé­
cie de síntese daquelee sentimentos de ansiedade, de an­
gúsita, de inquietação que se desdobram até as interroga· 
ções com que fecha A sombra do múndo : 
" Quando os céus serão limpos, a terra então lavrada ? 
Quando o amor volverá eterno, quando os caminhos povoados? " 
Porque ninguem responderá a perguntas dessa espécie, 
o poeta deixa tantas vezee este mundo fugindo dele ; fu­
gindo e esquecendo-o. Para salvá-lo, apresenta-se um ou­
tro mundo muito mais sugestivo : o da sua imaginação. 
"A poesia é quase um alívio ; faço versos para viver". Leio 
estas palavras e me lembro de Flauhert, o exemplo de 
vida mais típico para todos. os artistas, exatamente na sua 
solidão do Croisset : "La vi e est une chose tellement 
odieu,se que le seul moyeil de la supporter, c'est de l'évi· 
ter". Evitar a vida e .criar outra vida - não será este o 
um co caminho possível para um artfsta ? Através da 
poesia do sr. Odorico Tavares sente-se que ele ama a sua 
50 A l v a r o L i n s 
.arte como qualquer coisa de mais essencial que a própda 
vida - amor que se exprime, por exemplo, nestes versos 
da "V e lha canção" : 
" Mortos meus pais, morta a infância 
- E da vida que foi que eu fiz ? 
O corpo gasto a o s vinte anos . • • 
Mas se a poesia está vivendo, 
Ainda posso ser feliz. " 
É uma confissão de que a sua felicidade está na poe­
sia, ou mais exatamente : na eua capacidade de viver 
poeticamente. Quando a vida não lhe permite este esta­
do que é uma espécie de bem-aventu-rança, o poeta utiliza 
um recurso salvador : a_ fug'a no tempo, o retorno ao pas­
sado, a renovação da infância, a sua visão de menino em 
Timbauba - a cidade que inspirou o "Bonde de burro 
da minha terra". E pode então divagar livremente, dis­
tante de todos os espectros e fantasmas : "Bonde de bur­
ro, onde me levas ?" O bonde de burro, o poético bondede burro leva-o à infância na pequena cidade que o sr. 
Odorico Tavares torna inesquecível nestes versos : 
" Bonde de burro, não passes, não, 
Naquela casa daquela rua, 
Onde um homem sempre escrevendo 
Deixava tudo para me abraçar 
Quando eu reinava pela idade, 
Rei do hodoque, sujo e descalço. 
Quando eu era este menino 
Que vai comigo, sempre ao meu lado ." 
Este poema "Bonde de burro da minha terra" per­
maneée ainda hoje a principal realização poética do sr. 
Odorico Tavares. É um poema que a tudo tem resis­
tido, inclusive ao repouso das antologias. Não sendo pro­
priamente um poema descritivo, transmite no entanto uma 
sensação quase física da paisagem exterior. A mesma 
sensação que iremos encontrar no poema "Viagem no 
trem noturno", Em ambos, a poesia da terra se im-põe 
J o r n a l d e C r í t i c a 51 
como uma sugestão, na linha do conceito poético de Brad­
ley. A paisagem exterior não aparece objetivamente ; a 
sua re�lidade física transporta-se para dentro do poeta ; 
a paisagem e o poeta tornam-se uma só unidade. Mas 
não só as paisagens locais se destacam dos versos do sr. 
O do rico Tavares. Outras paisagens estão aqui sugeridas : 
as que ficam distantes, as que o poeta nunca viu, as que 
constituem objeto de sonhos e devaneios. Todas elas en� 
contram uma espécie de síntese no poema de evasão que 
é a "Canção da emigrante". Quero lembrar ainda a po­
sição do sr. Odorico Tavares em face do tema _ poético in� 
fância, que representa o próprio fundamento da sua poe� 
sia. O seu itinerário poético é aquele pensamento _ de 
Rainer Maria Rilke : o que situa na lembrança da infân­
cia, em solidão, o supremo recurso da inspiração _poética. 
Mas a infância não penetra na poesia _do sr. Odorico Tava­
re� como um fato do passado, como um conjunto de remi� 
niscências, como uma coisa morta que se faz -reviver pe� 
los artifícios da arte. A infância está presente no poeta 
como se ele a estivesse vivendo agora mesmo. O seu 
êxito neste domínio poético tão complexo surge justa­
mente de haver podido reter os sentimentos e impressões 
da infância num estado de absoluta pureza. A expres� 
são é do homem, mas o sentimento é o da infância, a úni­
ca idade que é poética de uma maneira absoluta. Aliás, 
os que conhecem o sr. Odorico Tavares logo o identüi­
cam como uma criança de 11;rande estatura. Ele se apre­
senta p�ssoalmente tão poético qUanto a sua poesia. Eu 
o revejo, agora, com a sua fisionomia ingênua, com a 
sua inocência de menino ; com os olhos míopes de criança 
assustada ; com as suas palavras de surpresa diante das 
velhas �nas ou das velhas idéias, que percorríamos juntos ; 
com o seu corpo ma!!r�simo de quem esteve muito perto 
da morte, de qUem enfrentou a tuberculose com um h u� 
mour desesperado, como o sr. Manuel Bandeira. A minha 
lembrança pessoal se confunde com a outra le�brança que 
52 A I v _a r o L i n s 
ele nos deixa por intermédio do poema "Volta à casa 
paterna" : 
" Por isso, limpem o espelho, 
Porque, apesar de todos os disfarces, 
A imagem da criança que se foi há muito tempo e hoje voltou 
Se refletirá nítida e forte com a pureza e o . encanto dos seus pri· 
[meiros sorrisos. " 
Não tenho dúvida nenhuma de que A sombra do 
mundo, pelos seus sentimentos poéticos, pela forma de 
expressão, pela realidade artística que contem, represen­
ta um documento literário de primeira ordem. Estamos 
diante de um poeta mais visual do que auditivo, mais 
sugestivo do que descritivo, mais artístico do que elo­
quente. As suas palavras são sóbrias : são palavras den­
sas e essenciais. A sua experiência da vida tem um cara· 
ter mais pessoal do que livresco ; o seu conhecimento do 
mundo não é o da ciência, mas o da intuição poética e 
artíatica. Revela-se, por isso, humano e fraternal, sem que 
seja sentimentalista ou piedoso. É u'm lírico que se tor­
nou dramático pela sua necessidade de se exprimir em diá­
logos ; e não poderia encontrar outra forma de expressão 
para harmonizar o seu lirismo de poeta com sensações 
diversas - estas mais intelectuais - de amargura e de pes­
simismo. Há cem anos passados, o sr. Odorico Tavares se· 
ria uma figura representativa do romantismo. Hoje, é 
um poeta moderno que se poderá classificar como neo· 
-romântico. E porque todos os homens têm os seus poe­
tas prediletos, com- indiferença quanto ao seu valor e 
classificação nas literaturas, confesso que um ' dos poetas 
da minha preferência é o sr. Odorico Tavares. A mim 
me comove este artista que fez da poesia um instrumento 
da sua personalidade e do seu carater. Que fez da poe· 
sia uma afirmação de sentimentos humanos e de nobreza 
intelectual. 
13 de setembro de 1941. 
CAPíTULO IV 
PROBLEMAS E FIGURAS DA 
POESIA MODERNA 
T ODOS os movimentos poéticos se representam histo­ricamente em certas figuras e em certos temas que 
mais fielmente se ligaram ao seu desenvolvimento. Tal­
vez que haja muito prejuízo nessa redução, mas se trata, 
de qualquer modo, de um processo histórico invariavel ; 
a história sempre apresenta, pelo seu próprio carater, uma 
certa tendência para a simplificação e para a síntese. 
Podemos definir um movimento literário através das 
suas causas e consequências de ordem mais geral e mais 
profunda. Esta é uma obra de pensamento e de inter­
pretação que se coloca diante de nós como um desafio. 
Contudo, há uma definição mais direta, mais simples 
e menos passível de erros e controvérsias : a que se rea­
liza através de figuras representativas e de temas expres·· 
sivos. Quando dizemos "amor e sentido da morte", esta 
fórmula significa : romantismo. Quando dizemos "forma 
e esforço de despersonalização", a fórmula significa : par· 
nasianismo. Quando dizemos "reação de espiritualidade 
e representação simbólica", a nova fórmula quer dizer : 
simbolismo. Todos esses movimentos apresentam outras 
faces consideraveis, mas duas ou três palavras especiais se­
rão suficientes para uma revelação quase completa das 
suas fisionomias. Tambem podemos sugerir a realidade 
desses movimentos pela citação de alguns nomes culmi­
nantes e característicos. Eles se tornaram símbolos das 
suas correntes literárias. Romantismo : Gonçalves Dias, 
Alvares de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, 
Fagundes Varella e Castro Alves. Parnasianismo : Ray­
mundo Correia, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira. 
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Simbolismo : Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Sousa. 
Atrás desses nomes, numa segunda linha, encontram-se oe 
di amados poetas menores ; os que tiveram o êxito numa 
determinada época, mas que não traziam os elementos de 
resistência para uma continuidade : de tempos em tem­
pos, em cada revisão histórica, mais aparecem dimiÚuidos 
e mais próximos se acham do desaparecimento. 
Do modernismo brasileiro talvez não se possa dizer 
nunca que tenha sido uma escola ou mesmo um movi­
mento tão regular e tão uniforme quanto o foram o roman­
tiamo ou o parnasianismo. O seu próprio carater deu­
-lhe uma constituição diferente. Ele se formou como uma 
revolução mais generalizada e mais radical do que qual­
quer outra. Enquanto o simbolismo reagiu contra o par­
nasianismo, na mesma linha em que o parnasianismo rea­
gira contra o romantismo - dava o modernismo uma 
orientação mais completa ao seu espírito de luta : volta-
· 
va·se contra todas as escolas e sistemas do passado. De­
ve-se explicar que não era um a revolta contra a "poesia" 
do passado, mas contra as limitações que oprimiam essa 
mesma poesia ou contra os E'imples formulários dos imi­
tadores da retaguarda. Tanto aSI3im que os nossos poetas 
modernos são hoje os que mais sentem e melhor compre­
endem as figuras principais do romantismo, do parnasia­
nismo e do simbolismo. Devo ainda explicar que ao falar 
desse movimento moderno da poesia não me limito às 
atividades de poetas ou de grupo8 de poetas num deter· 
minado momento ou para determinado· fim. Essas ativi­
dades têm a sua importância, mas elas já significam ex­
pressões do movimento geral a que estou me referindo :

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