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JORNAL DE CRÍTICA DO MESMO AUTOR : HISTóRIA LITERARIA DE EÇA DE QUEIROZ - ' Livraria José Olympio Editora, 1939. ALGUNS ASPECTOS DA DECADgNCIA DO IM· PÉRlO - Empresa Diário da Manhã S. A., Re· cife, 1939. JORNAL DE CRITICA, 1 .a Serie - Livraria José Olympio Editora, 1941. ALVARO LINS JORNAL DE , CRITIC.A 2.0 Série CAPA DE SANTA ROSA 1943 LIVRARIA JOSE OL YMP!O EDITORA RUA DO OUVIDOR, l I O - RIO DE JANEIRO Deste livro foram tirados, fora de comércio, dez exemplares em papel vergê, assinados _pelo autor. OS CAPiTULOS DESTE LIVRO FORAM PUBLICA· DOS COMO FOLHETINS SEMANAIS DE CRiTICA LITERÁRIA DO CORREIO DA MANHÃ, AO QUAL O AUTOR E O EDITOR AGRADECEM O DIREITO DE PUBLICAÇÃO EM VOLUME. Dedico esta segunda serie do Jornal de á_itic,• a Dario de Almeida Magalhães José Olympio Osorio Borba e Barreto Leite Fillw - pelos gestos de confiança com que animaram, ha três ou quatro anos, e sob aspectos diferentes, o estado •de espírito de nm critico provinciano e ainda incerto no seu destino literário. INIHCE CAPs. I - Balanço de 1941 Il � Poesia e forma III - Justificação de um poeta IV - Problemas e figuras de poesia moderna V- Versos VI � Vidas sêcas VII - Memória e imaginação VIII - Processo- da burguesia IX - Entre os ex'tremos 11 2� 43 54 64 74 84 95 105 X - Romances de concurso 115 XI - Literatura e religião 125 XII - Dois naturaiistas: Aluizio Azevedo e Julio :jlibeiro 135" XIII -' Contos 156 XIV - Uma experiência de teatro XV - Shakespeare e o Brasil XVI - Letras femininas XVII - Ensaios XVIII - Regionalismo e universalismo XIX - Um ensaísta da filosofia XX - Posição de Farias Brito XXI - �tualidade do romantismo XXII - Sinais da nova geração XXIII - Literatura industrial XXIV - Lógicos e ilógicos XXV - Impres8ionismo e erudição XXVI - Um novo com�anheiro XXVII - Centenário de Anthero de Quental L'\:VIU - A propósito de Rosamond Lehmann XXIX - Sugestões para a leitura de Charles Morgan XXX - 50 anos de literatura 167 176 136 195 203' 224 234 245 2Ó2 272 280 235 295 304 314 323 333 CAPíTULO I BALANÇO DE 1941 E scREVO esta crônica precisamente no último dia do · ano. Nenhuma impressão .forte me traz a cons tatação desse fim convencional e arbitrário. Não duvido que vou me acostumando, cada vez mais, a desdenhar toda convenção e todo artifício. Mas vejo, afinal, -que ninguem poderá ficar inteiramente indiferente à tirania do calendário e dos costumes sociais. Torna-se neces sário, então, que seja percebido o desaparecimento de um ano e o aparecimento de outro. Mais um ano, por tanto, que se aêha contado e recolhido para a nossa his· tória literária. O que significa um ano dé existência para a história literária que se levanta num movi�ento para lelo à história geral de todo um povo ? Um quase nada. Esta é a lição um pouco triste que o mistério do tempo sempre nos transmite. O que vale muito para os contemporáneos se reduz de proporção para a posteridade ; vai se reduzindo e desaparecendo cada vez mais através dos tempos. Repare-se na extensão que certos acontecimentos ocupam num volume de história e no interesse dos seus leitores. Um episódio que encheu cem páginas, hoje ocupa cinquenta, � ocupa rá vinte dentro de alguns anos, tendendo, com o desdo brar do futuro, para uma simples referência ou para um possível eaquecimento. Os acontecimentos literários, igual· mente. De todos os livros que aparecem e fazem su cesso, quantos ,se encontrarão mais tarde na história da literatura? Um número muito pequeno, como se sabe. E o que mais me transmite a "melancolia da crítica" é a comparação do julgamento dos críticos sobre os seus con temporâneos com o julgamento que sobre eles o tempo 14 A l v a r o Li n s sobre um livro significa indiferença ou desprezo. Às vezes este silêncio significa uma homenagem, quando quer dizer que o crítico não se acha no completo domínio do assunto que o determinou. Pois o primeiro dever do crf• tico é o de somente julgar nos planos em que se possa ·movimentar com uma segurança ou um conhecimento pelo menos à altura da sua conciência profissional. De um modo geral, porem, a conclusão que se impõe não é das mais favoraveis ao ano literário de 1941. Sem dúvida que ele apresentou alguns livros excelentes, mas nenhum desses livros que marcam uma época e fixam uma etapa na vida literária. Bem sei que pode se tratar de um simples ac.aso, e dentro em pouco é poesivel que surjam obras notaveis que se achavam em realização ·du rante o período de tempo que agora termina. l)oze me ses não significam nada numa vida literária, quando antes e depois se podem recolher acontecimentos consideraveis e realizações felizes. De qualquer forma, no entanto, 1941 apresentou uma atividade menos intensa e menos fecunda do que a de 1940, que por sua vez já fora inferior à de 1939, o que talvez se explique em face dos aconteci mentos da guerra que concentram as atenções e os interes ses. Aquele ano de 1939 terá, aliás, um lugar especial na. vinte anos, não sei de outro que apresentasse quantidade tão elevada de livros de valor e número tão considéravel de estréias importantes. No ano p assado ainda assisti moa a estréias como a do sr. Oswaldo Alves, no roman .ce, a do sr. Edgard Cavalheiro, na biografia, a dos srs. Alphonsus Guimaraens Filho e Manuel Cavalcanti, na poesia. Em 1941, não houve nenhuma estréia- que fosse uma surpresa, como qualquer uma destas de 1940, ou ainda menos como algumas estréias espetaculares de 1939. Autores que apareceram em livro pela primeira vez, como o sr. Euryalo Cannabrava, já eram nomes· conhecidos do J o r n a l d e Crítica 15 público através dos seus artigoa de jornal. E deve-se no tar que bem poucos volumes de estudos foram publica 'dos durante o ano. Apareceu somente um pequeno nú mero de ensaios e estudos críticos. Quaae todos, porem, sem que fossem inéditos, quase todos se formando de co leções de material já divulgado em jornais e revistas. Entre todos, destaco o Região e tradição, por constituir uma síntese da vida de escritor do sr. Gilberto Freyre, com os seus' trabalhos das épocas mais diversas, desde a adolescência até os dias de hoje. Na vasta bibliografia do sr. Gilberto Freyre, este volume ocupa um espaço muito grande· e especialíssimo. Numa coleção de en saios, organizada por uma editora de Minaa Gerais, o sr. Tristão de Athayde publicou um pequeno volume sobre Machado de Assis, formado de três rodapés de 1939 (Trê$ ensaios sobre Machado de Assis), e o sr. Oscar Mendes reuniu vários dos seus artigos sobre autores estrangeiros (Papini, Pirandelo ,e· outros). O volume do ,sr. Tristão de Athayde, alem d� seu valor intrínseco, apresenta o interesse de ·revelar o seu ·pensamento sobre Machado de Assis, o que nun·ca fizera em vinte anos de crítica, como ele mesmo explica e justifica nestas páginas de síntese. Ainda livros publicados antes na imprensa, em carater fragmentário, são o do Br. Sergio Milliet (Sal da here· sia) , sem nada perder, no entanto, da sua agudeza e da sua força de ensaísta ; o do sr. Mario de Andrade (Mú· sim do Brasil) , debatendo certos aapectos de um assunto em que se to.rnou um verdadeiro especialista ; o do sr. An tonio de Queiroz Filho (Caminhos humanos), no qual .se reflete muito bem o estado de espírito das· novas ge rações, levadas 'muito cedo para as cogitações e os pro blemas da vida espiritual. Nesse número tambem se de verá incluir o livro admiravel do sr. Lindolfo Collor sobre a Europa de 1939, a única obra escrita por um brasileiro, neste gênero, hoje tão explorado, da interpretação dos 16 Alvaro Lins acontecimentos europeus e das .causas da nova Grande Guerra. E nestas coleções de artigos e estudos em volu me, um lugar de destaque deve;_.á ser reservado para o sr. Osorio Borba, com o seu livro A comédia literária. Con sidero das mais oportunas, das maisnecessárias e das mais uteis esta espécie .de crítica a que se dedicou o sr. Osorio Borb a : a de protestar contra as injustiças e as confusões da vida literária, contra as glórias inexplica veis e acacianas, contra todos os ridículos e misérias da queles que pretendem fazer da literatura um salão de festas ou um negócio rendoso. Ensaios de grande proporção somente dois aparece ram em livro com carater inédito, sem que antes houves sem surgido na imprensa : o do sr. Sylvio Rabello a res peito de Farias Brito (Farias Brito ou itma aventura do espírito) e o do padre Leonel Franca S. J. sobre proble mas espirituais e políticos do mundo moderno (A crise do mundo moderno) . Ainda uma vez chamo a atenção para estes dois ensaios, muito diferentes nas suas orienta ções e nas suas finalidades, mas ambos respeitaveis pelo esforço que representam no sentido da •interpretação de problemas ou debate de idéias, quaisquer que sejam as nossas divergências e as nossas discordâncias, algumas delas por mim mesmo assinaladas. E por falar em esfor ço dentro da vida cultúral, não quero esquecer o do sr. Levy Carneiro na presidência da Academia Brasileira, não no sentido da criaçãõ de obras literárias, o que não é do alcance. das associações de qualqUer espécie, mas no sen tido que lhe cabe de animar e estimular o ambiente e o mundo das letras : o esforço que restaurou a Revista Brasi leira e a série de conferências (uma ou outra, no entanto, a cargo de conferencistas destituídos de suficiente autori dade) sobre os movimentos contemporâneos de diversas literaturas estrangeiras. Outra forma de esforço e de tra balho que merece ser ressaltada foi a do sr. Auizio Napo- Jorna l de Crítica 17 leão, cujas pesquisas - nos preciosos, mas quase virgens arquivos do ltamaratí - deram em re.sulta�o a publica ção de dois trabalhos históricos, nos quais se destaca a documentação de primeira ordem : um sobre Rio Branco (O segundo Rio Branco) e o outro sobre Santos Dumont (Santos Dumont e a conquista do ar). Ainda dessa nova geração de servidores do ltamaratí - geração que estou conhecendo de perto, sobretudo no seu propósito de con tinuar uma tradição da Casa que manda não desdenhar, mas a�tes valorizar, os problemas de literatura e de estu• dos desinteressados - é o sr. Sergio Corrêa da Costa, que revelou o seu gosto e' a sua vocação para as investi· gações históricas através do livro As quatro coroas de D. Pedro I. Numericamente, a contribuição maior continuou a ser a ·dos livros de versos. Mais de vinte volumes passa ram por estas crônicas no decorrer do ano. Quase todos de autoria de rl'mes desconhecidos, de jovens poet�s que apareciam pela primeira vez.- Continua a se repetir o fenômeno muitas vezes assinalado nas épocas mais di versas: o de rapazes que atiram na rua os seus livros de versos e nunca mais voltam a repetir a empresa : ou desa parecem da literatura ou se dedicam a outros gêneros li terários. Em geral, estes livros nada revelam de uma personalidade �e poeta, exibindo apenas o virtuosismo de exercícios literários ou uma exaltação de sentimentos ado lescentes. Es�amos cansados desses livros de versos e des ses autores sem personalidade. E daí a frieza e o cepti cismo com que costumo recebê-los. Das coleções de poe mas deste ano, não houve ti.m só que �e fosse possivel elogiar de uma maneira completa. Sem dúvida, o livro mais .apreciavel fali. o da sra. Iienriqueta Lisboa (Prisio neira da noite) , trazendo alguns poemas de uma forte h�spiração e de alguma riqueza temática, sem que se possa dizer, no entanto, que estamos diante de uma grande 18 A I v a r· o L i n s obra. Dos estreantes, pude destacar a sra. Ana Osorio e o sr. Carlos Eduardo, pela simplicidade e pela sincerida de das suas mensagens, ambas ainda timidas e vacilantes, no entanto. Um autor de cujos versos não gostei foi o sr. Aluisio Medeiros, mas sem que esteja impedido de jul gá-lo uma verdadeira vocação literária e um joV'em escri tor que poderá reaparecer com um êxito mais definido. Lembro, porem, que não quero .condena,r esta abundante produção poética de segunda ordem, nem reagir contra o ambiente que a provoca e a determina. Ela faz parte da vida literária, sabendo-se da necessidade da existência de muitos poetas menores para que apareçam alguns poetas maiores. Esta é uma· necessidade, porem, da vida literá ria, mas não da arte literária. A única consideração para um julgamento estético deve ser a da obra em si mesma. E obra de arte poética, ou é uma grande obra, ou não é nada. Este é o meu critério de julgamento para os poetas ; e acho que valorizo a poesia não a identifiçan do com qualquer vagido sentimental ou com qualquer im puiso instintivo. Acredito, aliás, que a poesia se encon tra hoje numa situação de expectativa, quero dizer : no momento de uma renovação, de um novo caminho. Este caminho será o de um encontro com o povo, o de um encontro das forças poéticas com os apelos dramáticos da vida exterior. Pois hoje mais do que nunca o povo precisa de poetas que o comovam e de poetas que expri mam. os seus sentimentos. E aí está igualmente um ca minho para o romance. �as o romance, de uma niariei ra geral, apresentou-se em 1941 com as mesmas caracte rísticas dos livros de versos : falta de originalidade, me diocridade na realização artística, primarismo ou false;t mento de processos. Somente uma ou outra exceção se poderia fazer neste sentido. Uma delas para o romance do sr. Gilberto Amado (Inocentes .e culpados), que tem d�f�;itos �normes mas não exatamente ��t�i! «:!� primaris- J o r n a l de Crítica 19 mo e mediocridade. Aliás, a estréia do sr. Gilberto Ama do no romance constituiu um verdadeiro acontecimento. Ao seu livro chamei um "romance de duas fases", que rendo significar o que havia nele de desigualdade, de du plicidade, de altos e baixos. Uma obra inacabada e em tumulto, mas indicativa de um temperamento trágico para o qual o romance pode representar a mais adequa da forma de expressão. Dos estreantes, dois merecem ser lembrados: o sr. Dalcidio Jurandir (Chove nos campos de Cachoeira) e o sr. Josué Montello (Janelas fechadas) . O sr. Dalcidio Jurandir revelando uma autêntica força de romancista, emhora ·ainda informe e bárbara ; o sr. Josué Montelo revelando menos um romancista do que um escri tor, que talvez se possa afirmar mais definitivamente em ensaios e estudos críticos. E será quase uma- iropia dizer que o único romance até agora realmente grande e no tavel de 1941 se\acha numa reedição: na nova edição de Angústia, do sr . . Graciliano Ramos. Teve, porem, o ro mance brasileiro uma obra comemorativa de vulto, no número que lhe dedicou a Revista do Brasil. De um modo relativo, em face de certas propor ções, o conto se destacou mais do que o romance, levando em conta .os que foram publicados em jornais e revistas. Bastaria lembrar,. neste sentido, o nome da sra. Cacy Cordovil. E acho que esta autora quase desconhecida e o seu livro (Ronda de fogo) não deverão cair no esqueci mento, embora seja verdade que apresenta antes paginas !iterarias do ·que propriamente contos. Mas a sua ca pacidade descritiva e o seu estilo são realmente admira· veis. E realizou assim uma espécie de fragmentos de uma epopéia. Quem sabe se a sra. Cacy Cordovil não será capaz de realizar o "romance do interior", uma outra forma complementar do "romance nordestino"? De qual quer forma, é uma escritora que me deixa numa posição 20 A l v a r o L i n s de expectativa, embora já situando Ronda de Fogo como um dos livros mais significativos deste ano. Não esqueço,_ porem, que a atividade literária não é �õoniente a que se revela em volumes. Talvez que a pro dução literária de qualidade mais segura de 1941 esteja perdida nos jornais e revistas. Lembro os poemas, os con tos, os ensaios que talvez mais tarde apa:rec.erão em livro. Os suplementos dos jornais, por exemplo, constituem pa trimônios de literatura,apesar do seu carater heterogêneo e desigual, o que se explica em face do gosto e das exi gências do grande público. Lembro, a propósito, a con tribuição para a história litedria que o sr. Mucio Leão está realizando no ,;uplemento sob a sua direção. Lembro os ensaios de uma categoria tão elevada e tão rara que Otto Maria Carpeaux vem publicando no suplemento do Correio da Manhã. Aliás, o· suplemento de jornal vai se constituindo um gênero intermediário que participa, ao mesmo tempo, do jornalismo e da arte literária. IDti mamente, os srs. Osorio :eorba e Genolino Amado ha viam .Se tornado as duas figuras prinçipais. desse gênero literário, alcançando um êxito e um renome que não são comuns nas nossas letras. Agora, um novo escritor acaba de se revelar através do suplemento de jornal : o sr. José Cesar Borba. E este é um nome que espero irá ser fixado nas nossas letras de maneira excepcional. Parece-me uma das figuras 1mais representativas e mais características da sua geração, como uma força de criação e uma voca ção literária que logo percebí quàndo ele era ainda um menino. E o sr. José Cesar Borba se apresentará sobre tudo como um autêntico poeta, o que se verá quando for publicado o seu livro de poemas que tenho comigo agora mesmo. Outra atividade que não se deve esquecer é a da vida literária das províncias, das cidades distantes em que es" critores e leitores se entregam à literatura com uma co- Jorna l de Crítica .21 movente seriedade. Muitos dos livros publicados ultima mente são de autores provincianos, e ninguem poderá falar mais hoje no isolámento ou na inercia das províncias. Conheço hem esta atividade e este ambiente. Conheço os seus escritores que trabalham desinteressadamente, sem nenhuma ambição de dinheiro ou de sucesso imediato. Conheço os seus leitores que procuram nos livros um apoio para o sentimento da vida e o conhecimento do mundo. Eu os conheço., todos, porque confesso que sou um crítico da Província, e é na minha província do Recife que estou pensando ao escrever esta última crõnica do ano. -3 de Janeiro de 1942. \ CAPíTULO li POESIA E FORMA I N Ão sei bem se falar do suprarealismo ainda constitue hoje uma novidade ou já representa uma atitude envelhecida. Nenhuma das dua!' hipóteses me importa muito, pois tenho a coragem de ser indiferente ao que é moderno e ao que é antigo, pl"ocurando somente a -verdade - o que me parece a verdade, pelo menos - sem ligação com as suas circunstâncias de espaço e de tempo. .Mas pelo que tenho lido não me é difícil verificar que o suprar realismo continua o seu caminho fora do movimento fran cês que o tornou universalmente conhecido. Ele não era, sem dúvida, uma pequena propriedade de certas figuras de uma determinada escola, mas um estado de espírito em correspondência com a vida mesma da nossa época. O que se chamou o movimento suprarealista teve no des tino deste estado de espírito dupla influência : uma que o favoreceu e outra que o p�judicóu. Favoreceu-o com al gumas obras explicativas, com um vasto debate crítico e interpretativo, com a sua iniciativa de o colocar para sempre dentro da literatura ; prejudicou·o com a sua esquemati zação dentro de um sistema, com o seu exagero de pre tender tudo reduzir a uma expressão suprarrealista, com o erro de excluir a razão - um erro igual ao de excluir a superrazão - da atividade psíquica. O que se sabe, porem, é que o suprarrealismo venceu por si mesmo as li mitações e os excessos da escola suprarrealista. E que per manecerá sempre por isso como uma aquisição, como uma J o r n a l d e C rít i c a 23 contribuição da nossa época para os estudos científicos e literários ao me<!mo tempo. Apesar de toda a sua bi�liografia, acredito que o prin cipal docu"mento teórico do suprarrealismo continua a ser o famoso manifesto de André Breton. 'E' nele que se sente com mais evidência e mais dialética o que representa a ex periência do suprarrealismo. E na verdade deve ser apro veitado mais como uma experiência (o que lhe dá o seu verdadeiro carater de incessante pesquisa, de permanente renovação) do que como um sistema (o que lhe daria, com -O decorrer do tempo, um carater de petrificação, uma qua lidade de obra concluída e encerrada). No seu Manifeste du surréalisme, André Breton interpretou a experiência e lançou o sistema, O que nos resta é desprezàr o sistema e aproveitar a experiência. Mas esta experiência - o que ela significa, o que dela resulta, onde nos poderá levar? Significa o suprarrealismo o aproveitamento para a lite· r atura de todo um potencial mais escondido de vida: o do subconciente, o do irracional, o do instintivo. De um mundo interior mais profundo e mais puro. Dir-se-á que em todos os tempos esta vida misteriosa esteve presente na criação artística. E' certo que sim, mas somente com o suprarrealiemo é que obteve a importância de um reconhe cimento mais geral e a confissão de seu poder mais atuante. Obteve um definido lugar ao sol. Onde erraram os suprar realistas foi no seu propósito de fazer da vida artística um exclusivo produto do automatiemo psíquico, como se fosse possível reduzir a arte a ·uma operação espontaânea, sem os recursos da razão e da lógica (v. definição de André Bre ton em Manifeste du surréalisme, pág. 42). Mas bem se sabe que uma �oisa não exclue a outra: que a vida subconciente não exclue a vida conciente, que o ilogieismo completa o logicismo sem o anular, que a intuição é uma faculdade que pode exi8tir ao lado. da inteligência. As grandes obras se fizeram dessa harmonia, e porque não a reconheceu, o suprarrealismo Qrtodoxo não criou nenhuma 24 A lv a r o L i n s grande obra, nenhuma obra completa e perfeita. Haviam criado estas obras, porem, aqueles que já se utilizavam do suprarrealismo sem o definirt um Baudelaire ou um Rim baud, alguns poeta3 românticos, quase todas as grandes fi guras das literaturas ingleaa e russa. Mas de qualquer forma o que resultou do suprarrealismo foi uma disposição revolucionária que não deve ser esquecida e, que deve ser continuada : uma revolução contra o espírito de imitação e de rotina, contra o falso realismo que excluía o trans cendental, contra a arte petrificada nos formulários, contra a conciência lógica que não tinha a coragem de se voltar para dentro de si mesma. O suprarrealismo tornou ·se, assim, um movimento em profun.didade, e· lembremos que a sua direção é a mesma em que se encontram os dois filósofos que nos nossos dias mais lucidamente explicaram os fenômenos estéticos : um Bergson e um Croce. Deste modo é que se constituiu muito nítida uma linha de ligação entre os filósofos da intuição e os poetas do suprarrealismo. Uma tão completa conjugação de forças - a da poesia, a da fi losofia, a da ciência - levou a vida cultural a essa conclu são : a impossibilidade de precindir da experiência suprar realítica. E vejo a poesia dos nossos dias como a realização de um desdobramento do processo suprarrealista. E' uma poesia que procura resolver o princípio de contradição do suprarrealismo : o da idéia com a forma. Uma poesia que procura a sua forma de expressão : eis uma legenda para a poesia moderna. E aasim muito se explica do seu dina mismo, do seu desespero convulsivo e do seu estado de tensão e desvario. * Em nenhum poeta moderno mais do que no sr. Mario de Andrade se poderá sentir esta contradição que é própria da poesia moderna : a de um pensamento que procura a sua forma. Ninguem entenderá a sua obra sem levar em J o r n a l de C r ít i c a 25 conta· esta circunstância. E dá-nos agora o sr. Mario de Andrade uma oportunidade para a compreensão e o jul gamento da sua obra poética em conjunto, publicando um volume (Poesias, São Paulo, 1941) que contem, ao lado dos seus poemas mais recentes, os seus_ livros j"á puhlica dos, desde Paulicéia Desvairada até Remate de Males. Poe mas em que as datas acusam um longo desdobramento que vai de1920 a 1940, e tambem que o sr. Mario de Andrade chega aos cinquenta anos conservando o fogo e o inconfor· mismo da mocidade. Vinte anos, como se vê, de atividade poética, num dos períodos mais importantes e mais sig nificativos das nossas letras : o que se conta do último mo viment9 moderno até 001 nossos dias. E não se trata de uma simples coincidência de datàs, pois o sr. Mario tle Andrade aparece como uma das figuras mais caracterís ticas e mais representativas do seu tempo. Representativa sobretudo do chamado movimento modernista, no qual· atuou como um chefe de fila, como um pregador, como um teórico e como um realizador. Poucas obras como a sua refletem o espírito de um movimento coletívo : com as suas inquietações, com as suas verdades, com os seus erros, com os seus problemas, com as suas esperanças, com os seus desencantos. Na sua obra se poderão encontrar a imagem de um homem e a imaginação de um movimento literário ; e simboliza o sr. Mario de Andrade o que nesse movimento existe de mais positivo e de mais negativo, ao me.smo tempo. Já .é histórico, aliás, o movimento mo dernista, quando até há pouco era ainda uma novidade. Envelhecer depressa vai se tornando uma contingência do nosso vertiginoso mundo nioderno. E uma tarefa da minha geração é exatamente esta de fazer o processo das inoV'ações que ae anteriores lançaram, uma vez que ainda não chegou o momento da nossa revolução. Por enquanto, estamos somente numa posição de defesa. E defesa da vida mesma. A minha geração ultrapassou, porem, o cha mado movimento modernista, e de tal modo que muitas 26 Al v a r o Li n s das suas novidades já nos parecem hoje sem qualquer sentido. O que não significa, porem, que neguemos a sua importância nas nossas letras, nem que estejamos impê didos de compreender e admirar as suas figuras realmente vivas. Uma destas figuras é o sr. Mario de Andrade, em quem encontramos ao mesmo tempo uma personalidade conciente do seu destino e um autor conciente da sua obra. Devo, porem, acrescentar: mais umà personalidade do que Um autor, pelo menos no dominio da poesia. E somente do poeta é que tenho hoje de me ocupar, o que constitue uma liJ.Utilação para quem se exercitou em tantos gêneros literários, devendo acrescentar que não é a- personalidade do poeta, mas a do ensaista e do pesquisador, a que pre firo no sr. Mario de Andrade. Mas, de uma- certa ma neira, se a poesia do sr. Mario de Andrade não é sufi ciente para transmitir uma idéia de todo o seu valor e de toda a sua importância na nossa vida: literária, ela nos transmite, no seu conjunto, uma imagem da sua personali dade, um reflexo da sua história literária, um esboço do seu pensamento, da sua técnica e da sua figura de artista. E o que esta obra poética logo nos revela é o dualismo a que já me referi: o de uma essência poética em procura da sua forma de expressão. E é uma pena que esta pro cura t�nha se orientado mais para o mundo transitório e acidental, o que privou esta poesia de uma maior pro fundidad�t, O que se deve notar em primeiro lugar no sr. Mario de Andrade é a sua originalidade. Ele criou o seu próprio espaço, a sua própria maneira, de um modo inconfundivel Ao lado dessa originalidade intrínseca, existe porem uma outra menos apreciavel: a que ele procura criar com a sua técnica. E assim se explica que um poeta de tanta per sonalidade seja tambem um poeta de muitos artifícios. As suas realizações mais felizes são aquelas que obtem entregando-se naturalmente à sua obra ; as suas pagmas mais frageis ou mais falsas são aquelas em que se com- J o r n a l d e C r ít i c a 27 plica em busca de uma expressão original. Duas ordens de preocupações, duas espécies de motivos revelam-se como dominantes no sr� Mario de Andrade : o sentimento da sua terra e o seu sentimento mais íntimo de homem. Nos seus livros de poemas alternam-se os dois, com a predo minância ora de um, ora de outro : nos primeiros, a do sentimento da terra ; nos últimos, a do sentimento íntimo. Em Remate de Males percebemos uma mais intensa con fluência das duas correntes. Mas este sentimento em face da sua terra não é unânime e igual em todos os seus as pectos. E' um sentimento de amor em face da vida natu ral, mas um sentimento de revolta em face da vida social. Não se poderia desejar para um artista uma posição ·mais simpática e mais legítima. E o sentimento de revolta nascia-lhe espontaneamente de três foníes : a do seu tem peramento, a da sua mocidade e a do movimento literário· do momento. E ele o externou com uma coragem, com uma pureza de artista e uma desenvoltura - realmente exemplares. Sacrificou muito a sua obra poética, na mes ma proporção em que afirmava uma atitude diante da vida. Este sentimento de 1·evolta dirigiu-se contra as de sigualdades sociais, contra toda a organização burguesa. O longo poema "As enfibraturas do Ipiranga" - do qual, aliás, não gosto muito como poema em si mesmo - repre senta um documento da batalha que sustentou em favor dos "novos" contra os "velhos". Outros poemas típicos dessa sua atitude mais intransigentemente inconformista são a "Ode ao burguês'\ "O rebanho" e tantos outros, em quase todos sendo de lamentar, porem, que não tenha con seguido uma realização mais sutil e mais de acordo com a arte poética. Uma peça como "Ode ao burguês" mais parece um manifesto e um panfleto do que Úm poema. Tambem é certo que o sr. Mario de Andrade nem sempre impõe ao seu espírito satírico os limites sem os quais perde muitos dos seus efeitos. A sátira lhe tem dado muitos achados felizes, mas taml>em lhe tem muito es• 28 A l v a r o Lins tragado a emoção poética. Às vezes nem se trata de sá tira : trata-se de simples pilhéria. Não sei como um autor tão inteligente - e que se encóntra tão poderosamente no domínio da sua arte - condescende com um falso espírito, com um falso humour, com uma falsa veia sa tírica. Esta intervenção abusiva é que me incompatibiliza bastante com muit_os dos seus poe:p1as, mesmo com uma parte dos seus poenias mais famosos, como "Noturno de Belo Horizonte", "Carnaval carioca", e quase todos os intencionais - os intencionais esteticamente e social mente. Como extrair poesia, por exemplo, daquela boa pilhéria dos dois versos finais de "Tabatinguera"? Outro recurso que me parece usado de mais na obra do sr. Ma rio de Andrade, e com uma insistência que se alastra por quase todos os poemas - é o do pitoresco -a· todo custo : o pitoresco no pensamento e o pitoresco na expressão. Nesta altura, estamos já em face de outro aspecto do seu sentimento da terra : o do seu amor pela vida natural, pela vida espontânea que é a da natureza e a do povo. Dessa categoria é o poema "Carnaval carioca" - no qual se sente, aliás, todo o seu sensualismó, inclusive o que nasce do simples jogo das palavras - como tantos ou tros destas Poesias, sobretudo os dos primeiros livros. Percebe-se mesmo que o· poeta teve a intenção de reali zar uma arte brasileira, uma arte nacional, refletida ao mesmo tempo nos seus asauntos e no seu vocabulário. Mas surge aquí a velha questão já resolvida da impotên cia dos assuntos e dos vocabulários, em si mesmos, para a criaÇão de uma literatura nacional. O brasileirismo de muitos poemas do sr. Mario de Andrade apresenta o mes mo resultado do brasileirismo do movimento modernis ta : uma exterioridade que hoje soa falso, que está enve lhecida, que se tornou inaceitavel pela sua intencionali dade, pela sua ausência de força íntima, pelo muito que revela de cerebralismo em vez de sentimento. É o caso de poemas como "O poeta come amendoim", nos quais J o r n a l d e C r ít i c a 29 há versos em que tudo está perdido, inclusive o bom ·gosto das palavras e das suas construções estilísticas. Podemós dizer que em geral os seus poemas intencional mente. brasileiros não atingiram os seus fins e os seus efeitos. Somente deles ficou a sugestão, a atitude, o iti nerário indicativo.E o que os matou foi exatamente a intencionalidade, a ausência de naturalidade. Dos seus poemas intencionalmente brasileiros, somente um se deB taca e se impõe sem restrições : é o "Acalanto do serin gueiro", no qual se unem uma inspiração autenticamen te brasileira, um espontâneo sentimento de revolta hu mana e uma arte social colocada acima de qualquer pro paganda. Mas sendo realmente um braBilciro, o sr. Ma rio de Andra·de consegue realizar alguns poemas corres pondentemente brasileiros. O que acontece é que os seus poemas mais brasileiros -são aqueles em que não houve intenção deliherada de um destino nacionalista. P-0emas da espécie de "Rondó pra você" e "Maria" - ao lado das reconstituições de lendas como a do "Toada do pai do mato" e a de Rola-Moça no "Noturno de Belo Horizonte" - são daqueles em que mais se sente· o poeta em comunicação com a sua terra : pela lin· guagem, pelo sentimento, pela realização. E muitos des tes poemas desinteressados, que me parecem mais brasi leiros do que aqueles que procuram sê-lo intencional mente, pertencem à fonte que chamei o seu. sentimento íntimo de homem. No sr. Mario de Andrade é o poeta lírico o que me parece mais fortemente realizado ; e lí ricos são os seus poemas que mais me agradaram neste volume de Poesias. Deste gênero é o poema "Improviso do rapaz morto", revelando a sua capacidade de se elevar a um plano acima de todo o transitório, de todo o pito resco, de todo o satírico. Não esquecerei nunca este poe ma, sobretudo o seguinte verso : "Minhas lágrimas caem sobre ti e. és como um sol quebrado". Insisto ainda em lembrar o soneto "Quarenta anos", com um final que 30 A l v a r o Lins sugere a recordação do desencanto poético de Alvares de Azevedo : "O' sono, vem! ... que eu quero amar a morte Com o mesmo engano com que amei a vida." Alguns poemas líricos do sr. Mario de Andrade os que revelam o seu sentimento mais íntimo de homem - me transmitem afinal a certeza de que ele insistiu de mais em certos temas e em certas atitudes, em certos ca minhos que não lhe eram os mais propícios. Tenho a impressão de que a sua posição mais propícia seria a do poeta solitário que canta o amor impossível, o amor ir realizado, o amor em si mesmo. E difícil será fazer a critica destas Poesias, pois eu gostaria de fazer a criti ca de cada poema, isoladamente. Encontro aquí alguns poemas que muito me sugerem, sendo que haveria mui tos outros a destacar com um vasto elogio. Poemas, ou tambem certos versos isolados. ' Volto a dizer, porem, que o drama principal do sr. Mario de Andrade não se acha na sua temática, mas na sua forma de expressão. Sendo uma personalidade com plexa, o poeta procura a sua unidade através da forma. Uma situação que se complica ainda mais porque o pro blema pessoal do poeta se conjuga com o problema geral da poesia moderna. O sr. Mario de Andrade é um poeta que muito se aproxima do suprarrealismo. Alem, disso, procurou criar um estilo pessoal e uma linguàgem parti cularíssima, t�mto em poesia como em prosa. Admiro o que há de original nesta linguagem e neste estilo, mas sem esquecer o que em ambos exiBte de falsa originali dade. O seu estilo apresenta_ realmente certas caracterís· ticas admiraveis : um forte sensualismo de vocábulos e de construções, uma agilidade e uma graça pouco co�uns na nossa língua, uma influência musical que lhe impri· me um máximo de subjetividade. Mas, ao lado uestas qualidades, em ligação com elas, estão as suas fraquezas: J o r nal d e C r ít i c a 31 um brasileirismo arbitrário e de gosto duvidoso, um ex cesso de !pitoresco, um .certo arrevesamento, um 1certo tom rebuscado, ou melhor : uma preocupação de moder nismo que muitas vezes parece mais um preciosismo de roupas novas. Esta é a impressão que decorre da sua leitura, inclusive da leitura de seus poema.s. Atinge mui tas vezes o puro delírio verbal, pensando que está a criar um mundo de imagens e de sugestões, quando nestas oca.:. siões estamos apenas diante de uma féerie. De uma féerie criada pelas palavras desenvoltas, pelos seus sons estridente, pelas ret-icêucias insistentes e gritautes. Inclino-me mais, ao contrário, para os seus poemas de uma maior tranquilidade, e nos quais se mostra mais domil:lador das suas palavras : os da espécie de "Louva ção da emboaba tordilha", por exemplo. Ou da espécie de "Cabo Machado", um dos seus raros poemas em que forma e poesia se ajustam com uma maior naturalidade, e que por isso pode ser sentido numa impressão mais complexa, de olhos- e de ouvidos. E esta procura da própria forma não é instintiva no sr. Mario de Andrade, pois estamos diante de um artista que conhece o seu ofi cio, que se acha no domínio da sua técnica. Direi mes mo que se assiste até demais à sua técnica. A técnica que está procurando a sua forma e o seu espírito. Ele nunca está satisfeito com a forma e o estilo já atingidos. E o que procura através de ambos é encontrar-se a si mesmo, é dar uma expressão ao seu eu não eucontrado. No mais explicativo, no mais "biográfico" dos seus poe· mas, o sr. Mario de Andrade escreveu estes versos : "Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta Mas um dia afinàl me encontrarei comigo • • . " Parece-me que nestes dois versos se encontra um� imagem da figura do sr. Mario de Andrade. Neles se encontra, pelo menos, .a sua história : a de um homem multiplicado que procura se encontrar a, si mesmo. E 32 Al v a r o .L in s assim se · explicam as suas numerosas experiências em to das as direções, dando por isso a impressão de um ser anárquico e contraditório. Dentro da poesia, as expe riências de forma. Dentro da prosa, as experiências de gêneros. Nestas suas Poesias encontramos todas as for mas e todos os ritmos, o que nos transmite eeta idéia de desvario e de completa anarquia espiritual, ao lado de uma impressão de rigorismo lógico e de domínio da in teligência. Mas tudo misturado, tudo marcado por uma fatal desigualdade que nos faz ora aplaudir com entu siasmo, ora repelir sem qualquer hesitação. Na sua pro Ba, encontramos o ficcionista, o ensàista, o musicista, o folclorista, um mundo de preocupações e atividades, tor-; nando-o respeitavel pelo seu trabalho de cultura e esti- mado pelos mais jovens, aos quais ele muito sugere . e muito ensina. Mas tudo igualmente misturado, tudo igualmente marcado por uma fatal desigualdade. No en tanto, o que não se deve eaquecer, sobretudo, aci,ma mes mo do possível destino nunca sabido da sua obra no fu turo, é esta imagem que a sua literatura nos transmite: a imagem grave e atormentada de um homem que EC procura a si mesmo. A sua figura é uma das mais no taveis da nossa literatura. Ele trouxe para o nosso tem po uma contribuição, em inteligência e em cultura, que tornar:J. sempre lembrados o seu nome e a sua obra. O sr. M4rio de Andrade é um artista autêntico, ,com a consciência e a dignidade da sua arte. li De um poeta moderno cujo nome não estou auto- rizado a revelar - recebí uma carta em que se mostrava mais ou menos alarmado com a minha preocupação de ligar a poesia a um problema de forma, e não escondia o seu receio de que eu estivesse numa posição quase que reacionária. Vencendo um pouco o constrangimento que J o rn al d e C rít i c a 33 sempre me traz a idéia de uma explicação forçada, não tenho dúvida nenhuma em desdobrar a minha afirmação neste sentido, embora repetindo mais uma vez que não escrevo para servir qualquer grupo literário de vanguar da ou de retaguarda, qué não estarei disposto nunca a fazer uma crítica de soutien, que não me deixarei domi nar por qualquer circunstância fora da literatura. Mas direi desde logo que se fosse obrigado a escolher entre a poesia antiga e a_ moderna - era exatamente a poesia mod,erna que eu escolheria. Bem sei que a poesia é uma só, mas a sua expressão moderna encontra em mim uma maior correspondência ; e o que poderia chamar as mi nhas poéticas "afinidadeseletivas" são todas com -os poe tlliS 'modernos. Explico, ·.porem, que Jestou restringindo o problema à vida literária do Brasil, onde acho que a poesia se encontra nestes últhnos anos num momento de plenitude. E não só a poesia, mas toda a literatura bra sileira está realizando um movimento de evolução. Esta mos hoje ultrapassando o passado em várias direções, sem que tenhamos a necessidade de desdenhar as gran des figuras deste mesmo passado. Afasto assim a inquie tação do poeta que me escreveu. Sou um escritor que estima o passado mas sem qualquer saudosismo reacioná rio, que se sente muito bem na sua época e com os seus contemporâneos, que compreende e valoriza a literatura do seu tempo mais do que qualquer outra. Fora de to do o propósito seria julgar que a minha exigência de uma forma para a poesia moderna representa qualquer ten dência de uma volta ao soneto ou ao v-erso metrificado. Estou certo, ao contrário, de que através do verso livre a poesia moderna pode encontrar a sua forma de expres são. E não se trata somente de uma substituição esté tica, mas sobretudo de uma nova conquista, de uma ex traordinária liberdade. O soneto, o verso metrificado, todas as medidas e formulários poéti�os - constituem ·P�struJl1entos �ue limitam ou escravizam a poesia, a nãC? 34 A lvaro Li_ns ser nos casos em que o poeta tenha uma verdadeira- voca· ção para essas formas. Poder-se-á lembrar que muitos poetas construíram as suas grandes obras dentro destas fórmulas, mas lembrarei ao. mesmo tempo a possibili dade de uma grandezá ainda maior para essas obras se houvessem sido colocadas num processo de realização fora de quaisquer limites. · Deve-se entender, portanto, que a poesia moderna violentou tantas fronteiras e penetrou em regwes tão misteriosas e tão profundas que não mais pode suportar qualquer limitação vocabular. Através do verso livre é que m�lhor poderá se exprimir e révelar. Mas será que o verso livre exclue .ã forma ou toma mais facil a sua aquisição? Penso o contrário: que o verso livre torna mais complexo o problema da forma, que torna a forma mais necessária e mais em conexão com a poesia. As fórmulas antigas de construção poética exigiam muito menos de individualidade e expressão pessoal. A poe sia já se revelava para _uma determinada forma que a iria conter. A dificuldade toda se· encontrava na técni ca, que é de ordem mais geral, não se confundindo com o esforço de uma expressão individual. O verso livre, ao contrário, tudo exige do poeta. Ele terá que criar ao mesmo tempo a poesia e a sua forma. E nem sequer poderá recorrer a uma técnica de ordem geral. Cada poeta há-de ter a sua própria técnica, com a qual, por sua vez, deverá criar a sua própria forma. A poética moderna abriu estranhas perspectivas e desmedidas pos sibilidades para a poesia em si mesma, mas deixou o pro blema da forma entregue a cada poeta em particular. E eis porque coloco o problema da forma no centro da poesia moderna. É um problema dramático que apre senta uma Bingular importância. Uns o resolvem pro curando esquecer a form · a, com a idéia de que um po' tencial poético de grande intensidade pode dispensar tu do o mais ; outros, procurando a construção de uma for- J o r n al d e C r í t i c a 35 ma que não seja uma consequência da sua poesia, mas de uma elaboração intelectual. Um caso especial é o do sr. Mario de Andrade, que procura na forma não só uma expresaão para a sua poesia, mas uma expressão para a sua própria personalidade. Uma pesquisa que engrandece a sua obra, somente a diminuindo quando o poeta se encontra num falso caminho. E raros os poe tas modernos que têm conseguido encontrar a sua pró pria forma. Não quero dizer, aliás, que o desencontro com a forma, esta luta inacabada pela conquista da for ma, signifique sempre uma fraqueza do poeta ou da poesia. Ao contrário, esta luta pode constituir um ele mento de grandeza e de dramaticidade. Mas se a ausência dê uma forma não impossibilita a grandeza da poesia, im possibilita s�m dúvida a perfeição de uma obra poética. E neste ponto .chegamos diante de uma distinção que não deve ser esquecida : a distinção entre poesia e obra poéti ca, entre uma inspiração de poesia · e um poema realizado, entre a essência da poesia, que é toda subjetiva e imaterial, e a sua realização concreta, que tambem participa da ma terialidade das palavras. A poesia não é privilégio de nin guem : ela se acha em toda parte e no interior de todos os homens. O que é privilégio do poeta é a obra poética rea lizada, esteticamente construída. E não se deve esque cer que a obra poética representa uma obra de arte, ·exi gindo nesse carater um instrumento de expressão, uma forma literária, portanto. Não havendo forma t!_ão exis te, pois, uma obra poética, não existe um poema. Pode existir apenas a poesia, mas sem a capacidade de se ex primir, sem a capacidade de se comunicar. E comuni car-se representa uma missão da poesia, representa uma missão do poeta. Ou, como escreveu Henri Bremond : "On pourrait dire d'un mot : le propre de l'experience poé tique est d'être comunicable." Um excessivo hermetis mo .pode asaim constituir . um obstáculo fatal, não digo 36 A l v a r o L i n s para a poesia em si mesma, mas para a obra poética, que deve necessariamente se comunicar. Um poeta que não se comunica é um prisioneiro da sua própria · poesia. Existe, porem, outro aspecto da questão : o de que nem sempre ,cabe ao poeta a responsabilidade da não transmissão da sua· ·experiência poética. A responsabili dade pode se encontrar no leitor, no seu prosaismo, nos seus preconceitos, nas suas exigência,s de uma clareza den tro da lógica comum. A poesia moderna, porem, se acha colocada muito alem �essa lógica comum. Poesia que se transmite nem sempre quer dizer, por isso, uma poesia que é. clara no seu sentido e no seu desenvolvimento. Sabemos que algumas obras têm o destino de conservar um estado de mistério, de se · concentrar dentro de uma especiC não comum de obscuridade. No entanto, para estas obras mais difíceis a forma se torna ainda mais ne cessana. Por exemplo : o que seria de Mallarmé· sem a sua forma? Pois somente uma forma poética contem a capacidade de justificar ou explicar uma poesia obscura. Podemos não entender o poema, pois nem toda poesia se mostra reconhecível sob os critérios da inteligência, mas teremos que o sentir por intermédio de outros caminhos de comunicação, o que somente se verifica através do poder sensível das palavras, através do ritmo interior, da música e dás sugestõe� que se acham contidas na forma. Parece-me que nunca um problema se encontrou co locado em termos de maior certeza e de mais positiva evidência. Um problema não só do nosso tempo, mas de todos os tempos. Lembro, a pro·pósito, o debate que ainda hoje se prolonga em torno da poesia de Edgard Poe nas letras de língua inglesa : um debate em torno da sua forma. Foi a · tradução francesa de B audelaire, como se sabe, que tornou Poe um nome universal. Depois, as letras de língua inglesa se dividiram a este propósito. Uns aceitam e confirmam essa consagração, enquanto outros continuam a negar a sua legitimidade, J o r n a l d e C r ít i c a 37 E para os que não a aceitam, o argumento é a forma de Edgar Poe. Num doa seus ensaios, por exemplo, Huxley afirma que Poe poderá ser um grande poeta em tradução francesa, mas nunca o será na língua inglesa, explicando-se : "A substância poética de Poe é aristocrá tica, enquanto que a sua forma é vulgar." Este caso de Poe - que estou apenas expondo, sem qualquer propó sito de oferecer uma opinião - se - coloca como um exem plo do perigo a que a forma submete um autor. Além disso, gostaria de lembrar que somente na forma poderá ser encontrada a sensação do verdadeiro tra�alho inte lectual, o sentimento da dignidade do oficio literário. Pretender que o poeta seja um simples medium para a inspiração - oque parece de acordó com o pensa mento teórico de certos poetas q'ue querem fazer da poe sia um. exótico "espiritismo", uma seita para iniciados sonâmbulos - seria diminuir a sua posição, seria torná· -lo um simples e pobre autômato. Acho, ao contrário, que o trabalho e o esforço são criadores, que devem estar na base de toda obra literária, como uma afirmação da personalidade no sentido desta proposição de Bergson : "L'effort est penible, mais il est aussi précieux, plus pré cieux encore que l'reuvre ou il aboutit, parce que, grâce à lui, on a tiré de soi _ plus qu'il n'y avait, ou . s'est haussé au-dessus de soi-même." * Não tenho, pois, outro propósito aenão o de cola borar com os poetas modernos qilando lhes estou suge rindo a importância da forma para a segurança e a resis tência de uina obra poética. E outro poeta moderno, diante de quem logo somos tentados a situar o problema da forma, é o sr. Murilo Mep.des, de uma maneira po rem que hão se confunde com a do sr. Mario de .Andra de, embora fosse possível eseabelecer entre ambos cer t<ls linhas de a11roximação1 sobretudo as que vieram do 38 A lvar o L i n s suprarrealismo para a poesia moderna. Publicou o sr. Murilo Mendes, em 1938 o seu livro principal, ao mesmo tempo que uma das obras mais con.sideraveis da nossa poesia contemporânea : A poesia em pânico, um volume em que recolheu os seus poemas de 1936 e 1937. O livro que agora publica (O visionário, Rio, 1941 ) está for mado de poemas anteriores aos de A Poesia em Pânico ; poemas de 1930 a 1933, servindo antes de tudo como do cumentos da sua trajetória e como depoimentos da sua inquietação e da sua mobilidade. E nessa categoria de documentos está o principal mérito de O visionário. Na categoria de obra poética parece-me abaixo de outros livros -do sr. Murilo Mendes. Abaixo tanto de Poemas ( 1930) como de A poesia em pânico ou Tempo e eterni dade. Percebo em O visionário um intenso potencial poético, mas que ainda se acha aprisionado, que ainda não encontrou a sua forma de expressão. Mas como o sr. Murilo Mendes se coloca em face do problema da for ma ? Ele me transmite a idéia de alguem que não se preocupa muito com este problema. Contudo em A poe sia em pânico atingiu uma forma adequada e precisa de expressão para quase todos os poemas ; atingiu algumas vezes a unidade orgânica de poesia e de forma, e de um modo tão seguro que poderia lembrar aquela aspiração de Valéry : "La pensée doit être cachée dans le vers com me la vertu nutritive dans un fruit." Um resultado, porém, em que não deve ter havido senão um milagre da pró pria poesia, pois a verdade é que uma forma tanto pode ser obtida laboriosamente oomo espontaneamente. Te nho a impressão de que a forma de A poesia em pânico nasceu Ja com a sua própria poesia. Nasceu com aque la sombria densidade, com aquele canto desesperado de amor, com aquele lirismo metafísico. Foi realmente este livro o momento mais alto da vida poética do sr. Murilo Mendes, J o r n a l d e C r í t i c a 39 Não se preocupando com o problema da forma, o sr. Murilo Mendes está vivendo quase sempre no domínio exclusivo da poesia em si mesma. É verdade que em todos os seus livros existem alguns poemas realizados integralmente, poemas em que se ajustam a forma e a p oe.sia ; o que é mais constante, porem, é o sentimento exclusivo da poesia, sem a sua correspondente expressão formal. Representa o sr. Murilo Mendes um dos nossos mais poderosos "portadores" de poesia, sem que tenha um igual poder de transmissão. O seu clima mais natu ral seria o da poesia pura, o de uma poesia que fosse indiferente às palavras. Talvez que essa sua tendência venha das suas profundas afinidades com a música. E a música se caracteriza, como acentuou Hegel, pela sua capacidade de exprimir "a vida do espírito em seu mo vimento essencial". Uma característica muito semelhan te vamos encontrar no sr. Murilo Mendes : a sua ânsia de penetrar na essência mesma das coisas, colocando a sua poesia no plano do que é essencial, do que é impon deravel, do que é metafísico. O mundo físico não existe poeticamente para o sr. Murilo Mende�. Mesmo quan do fala dos seus objetos a voz do poeta se dirige para a possível existência desses mesmos objetos num mundo metafísico. Não vê coisa alguma com os olhos do mun do natural, pois toda a sua visão está voltada p ara a so brenatÚralidade. Afirma-se sobretudo como um poeta católico nesse plano de transfiguração de todos os obje tos terrestres. Daí o que existe de deformador na sua visão poética. Ele t:udo vê sob formas antinaturais, ex cêntricas, absurdas. Quando descreve uma mulher, uma paisagem, um acontecimento - todos estes seres e obje tos se tornam quase irreconheciveis. O poeta lhes atri buiu uma nova configuração, a configuração do seu estra nho poder imaginativo. Ele seria de qualquer modo um poeta suprarrealista, mesmo que não houvesse existido o movimento do suprarrealismo. O sr. Murilo Mendes 40 A l v a r o L i n s tornou-se por isso o menos inteligível, o mais hermético dos nossos poetas modernos. Dificilmente a sua poesia se transmite, e a responsabilidade desse desencontro cabe em muitos casos ao leitor, mas em muitos outros ao próprio poeta. Na verdade, o sr. Murilo Mendes se sente na terra como, _ um "noVÍSBimo Prometeu". Sente-se acorrentado violentado, debatendo-se num tumulto de aspirações im possíveis. Procura se evadir do mundo natural por in termédio de dois caminhos : o seu frio espírito crítico e a sua ardente alucinação poética. Dois caminhos apa rentemente contraditórios que se juntam neste poeta, em bora com a finalidade de torná-lo ainda mais dividido e complexo. O espírito crítico leva-o à realização de poe mas satíricos, epigramáticos, caricaturais, sendo que uns atingem o efeito mais feliz, enquanto outros nos parecem simples jogos de excentricidade. E deve-se assinalar o que há de inteligência, de agudeza, de poder de com preensão na parte propriamente crítica da obra do sr. Murilo Mendes. E' um caso realmente curioso o desse poeta que parece um alucinado da poesia, mas que tem ao mesmo tempo uma força de inteligência e de .conhe cimento literário. Dá-nos a impressão, porem, de que tudo esquece naquelas ocasiões em que se acha pos suído de alucinação poética. Estamos agora diante do outro aspecto - o aspecto principal, na minha opinião, - da sua figura poética : aquele que se poderia chamar o .seu lirismo metafísico. A 1sua poesia perue, então, todo o seu possível equilíbrio : o equiHbrio de espaço e de tempo. O espaço se desdobra para alem de todos os horizontes visíveis ; o tempo está recuado para o passa do ou projetado para o futuro, fora · de qualquer con trôle de calendário. Nestas regiões desconhecidas e nes tes tempos misteriosos, assistimos à luta dramática do poeta : a luta entre o Bem e o Mal, entre o Espírito e o Corpo, entre Deus e o Diabo. E nesta luta é �e se en,- J o r n a l d e C r.í t i c a 41 contra toda a essência da poesia do sr. Murilo Mendes. Pode-se imaginar, por isso, a que altura chega o seu de lírio de imaginação. Delírio de imaginação que se torna responsavel peJa força e pela fraqueza da sua poesia, ao me.smo tempo. Direi assim, sem nenhuma hesitação, que o sr. Murilo Mendes é um poeta que não se pode a�eitar integralménte. Logo se vê que ele não sabe manter um contrôle eficiente sobre a sua obra, de modo que a g�:an de poesia e a nenhuma poesia se alternam nos seus li l'ros com a maior naturalidade. Logo se verifica como ele se repete a si mesmo, nas suas imagens, nos seus sen timentos, nas suas idéias, chegando a provocar constan temente uma sensação de monotonia. Logo se percebe o seu gosto exagerado pela excentricidade, pelo "épater le bourgeois", pelo efeito desconcertante das imagens es quisitas. E penso que toda essa parte mais inaceitavel do sr. Murilo Mendes prove1n: da sua insistência em tudo extrair das suas faculdadessuprarrealistas. Mas o suprar realismo não suporta apelos excessivos, nem violências contra a sua espontaneidade. A faculdade suprarrealista tem qualquer coisa de uma criança : quando se pede na vista de gente que realize os prodigios que costuma fazer tão naturalmente, ela se atrapalha toda e mata os pais de vergonha pelo fiasco. Alem disso, esse automatismo suprarrealista vai repercutir na sua forma, tornando-a demasiadamente fria, simplificada e esquemática. Uma forma em muitas ocasiões quase que telegráfica, quando a poesia exige sempre uma forma igualmente poética. Não digo uma forma pomposa, mas uma forma simples mente poética, o que pode significar sobriedade; preci são e domínio rigoroso das palavras. Tudo o que estou escrevendo agora sobre o sr. Mu rilo Mendes me foi sendo sugerido exclusivamente pela leitura de O visionário, mas .como era natural com a associação de impressões que me transmitiram muitos outros poemas de livros diferentes. Quero I'epetir, po- 42 A l v a r o L i n s rem, que O visionário nada de novo acrescenta ao sen tido de sua obra, devendo ser fixado mais como uma re presentação documentária do seu espírito, o que procurei fazer nesta crônica. Trata-se, aliás, de um livro que re· vela mais ostensivamente os seus �efeitos do que as suas qualidades ; um livro em que se sente mais a presença de uma figura de poeta e de uma espécie de poesia do que propriamente a realização de uma obra poética. O que não quer dizer que não haja, nas suas páginas, um ou oútro poema admiravel, sobretudo que não haja nas suas páginas uma !Série de imagens que muito sugerem como visão poética e como representação lírica da vida. 21 e 28 de Março de 1942. CAPíTULO lli JUSTIFICAÇÃO .DE UM POETA D E vez em quando acontece que a um livro não seja atribuído o seu devido lugar por ocasião do seu aparecimento. Ainda existe outra siituação mais peno -sa : que um escritor ou artista suporte durante a vida toda os rigores de uma sorte contrária ; que suporte o silêncio ou a reprovação de uma forma injusta. Quase nunca coincidem, em , literatura, o julgamento contempo râneo e o julgamento do futuro. É o que está !\empre indicando aquela experiência que se levanta do conheci mento da história literária. . Muitos são os livros e os autores que se glorificam hoje com o desgraçado destino de um completo esquecimento para as próximas gerações. Outros, porem, carregam um destino exatamente oposto : o de um reconhecimento do futuro como uma espécie de vingança contra os contemporâneos que não os souberam entender. Nem sempre esse desencontro se verifica com a · exatidão de uma fatalidade. Contudo, ele se verifica com mais frequência do que esperamos. A esse propósi.., to é que venho falar de um poeta da minha cidade e da minha geração, o sr. Odorico Tavares, que não encontrou ainda a repercussão e a categoria literária que me pare cem à altura da sua obra. Acredito, antes de tudo, que se trata de uma injustiça não voluntária. O sr. Odorico Tavares não foi devidamente julgado porque ainda não se acha suficientemente conhecido. Mas como se .expli ca que não seja conhecido quando já se deu inteiramen te a conhecer? Estamos diante de um desencontro . lite rário ; estamos diante de um desajustamento que se pode constatar sem que se possa igualmente explicar. 44 A l v a r o L i n s Há alguns anos, o sr. Odorico Tavares, ainda estu dante, publicava uma coletânea de versos com o título de 26 Poemas. Destes versos podemos hoje dizer que nada mais eram do que uma tentativa, do que um ensaio, fe cundo na categoria de promessa, mas desprezível ,em si mesmo, como obra literária. Representavam realmente uma simples coletânea de estudante, os primeiros im pulsos e os primeiros entusiasmos de um poeta que pro curava o seu próprio caminho. Anunciav'am apenas o poeta que seria depois, o poeta que é hoje o sr. Odorico Tavares. Apesar dessa circunstância, a coletânea dos 26 Poemas, embora editada no Recife, obteve no Rio e 'em outros centros literários de importância um sucesso fora do comum. Saudava-se essa estréia como uma re velação, e de toda parte surgiam artigos e pal�vras de apoio. Lembro-me que o artigo mais entusiástico foi o do sr. Mario de Andrade, que falou do jovem poeta e do seu livro como de entidades que traziam uma contribui ção nova para a literatura brasileira. Infelizmente, po rem, todo esee sucesso era indevido ; e mais forte do que ele era a fraqueza dos 26 Poemas. Esse sucesso quem o iria merecer era A sombra do mundo, o novo livro que o sr. Odorico Tavares publicou há dois anos, exatamente em setembro de 1939. Mas o que aconteceu foi o ne nhum sucesso de A sombra do mundo. Um silêncio in justo caiu e ainda hoje está pesando sôhre esse livro. Do êxito de 26 Poemas quase ninguem se recorda mais : eis uma consequência natural. Do valor de A sombra do mundo ninguem se lembra de falar : eis uma consequên cia inesperada. Devo dizer, aliás, que não resultou eete silêncio de nenhuma circunstância acidental : o livro foi lançado no Rio de J aneiro, por uma editora do mais só lido conceito ; a apresentação gráfica do volume é de pri meira ordem ; não havia contra o poeta qualquer propó sito deliberado de oposição. O livro chegou mesmo a obter um simpático noticiário de imprensa e algumas crô- J o r n a l d e C r í t i c a 45 nicas de elogio vago e inexpressivo. Mas fazendo excepção para o artigo do sr. Valdemar Cavalcanti, não sei de nin guem que lhe houvesse dedicado um estudo crítico ou uma atenção demwada. Nem mesmo o sr. Mario de An drade, tão entusiástico para os 26 Poemas, se . lembrou de dar uma palavra sequer para o novo livro, que vinha encontrá-lo, aliás, como crítico profissional de um suple mento literário. Somente no Recife é que os poemas de A sombra do mundo puderam ser lidos e julgados devida mente. Lidos e juJgados por um Gilberto Freyre, por um Olívio Montenegro, por um Luís Delgado, por um Annibal Fernandes. Mas esses julgamentos não atraves saram os limitea da vida provinciana, não se continua ram em outras cidades e em outros ambientes. No Rio, somente alguM escritores e poetas conhecem o sr. Odorico Tavares ; e são ainda mais raros os que atribuem aos seus poemas a categoria que eles merecem e exigem. Eis porque me disponho agora a falar de um livro que conta dois anos de aparecimento, mas que ainda se conserva numa aituação de quase i�editismo. Acabei concluindo que não devia tomar como obstáculos as relações pessoais e sentimentais que me colocam tão perto do poeta de A sombra do mundo. Tenho vários amigos de cujos livros não gosto, e diante dos quais venho suatentando opiniões contrárias com _uma invariavel franqueza. Destas mesmas colunas tenho lançado contra amigos ou companheiros de idéias algumas das palavras mais duras e amargas que a crítica pode utilizar, ao mesmo tempo em que me tenho empenhado na tarefa de fazer justiça àB obras e pessoas dos inimigos e adversários. Mas como não oferecer a um amigo a mesma justiça que se oferece até aos inimigos ? Ao me referir, portanto, ao sr. Odorico Tavares, não será o amigo ou companheiro de geração quem estará falando. Será crítico que joga sempre nas suas afirmações toda a responsabilidade do seu ofício e do seu nome. Esta é, aliás, uma explicação que não se restringe ao sr. Odorico 46 A l v a r o L i n s Tavares ; é uma explicação de ordem geral que ape,nas encontrou no desenvolvimento desta crônica uma oportu nidade mais adequada para se exprimir • •. Em "Caminho", dos 26 Poemas, o sr. Odorico Tavares escreveu· estes versos que continham uma davertência ao próprio poeta que os lançava : ' 'Vê bem, poeta, que ·este não é o ritmo do teu verso Vê bem, poeta, que esta não é a tua poesia ." Realmente, não era. A verdadeira poesia do sr. Odo ri«?? Tavares é aquela que vamos encontrar em A sombra do mundo. No entanto, não. contem este livro toda a sua poesia.Uma contingência dos poetas de hoje é a ex pressão em pequenos poemas, em assuntos limitados, em inspirações que se esgotam todas em alguns versos. As sistimos, assim, a uma espécie de fragmentação das perso· nalidades poéticas. Elas só se vão revelando pouco a pou co, de poema para poema, de livro para livro. Como todos os poetas 1modernos, tambem o sr. Odorico Ta vares se encontra limitado por essa .contingência. Ain da se deverá levar em conta a mocidade do poeta e o seu temperamento, que não é daqueles que se confes sam e se projetam de uma só vez. Ele pertence à raça dos que necessitam de muitos anos e de muitos livros para uma completa realização da personalidade. Assim hem se pode afirmar que não é toda a poesia do sr. Odorico Tavares que será encontrada no livro A sombra do mun-. do. Tanto a essência poética como a forma de expressão ainda se encontram num caminho de desdobramento; de continuidade e de evolução. Tudo indica que não esta mos diante de um poeta perfeito ou completo. Mas ao mesmo tempo tudo indica que estamos diante de um au- J o r n a l d e C r ít i c a 47 têntico poeta. A revelação dessa autenticidade será a lei tura e a compreensão de A sombra do mundo. E qual a significação desse livro dentro da nova literatura brasi leira ? Acho que poderemos defini-lo em dois aspectos : 1 °) é um livro moderno pela forma e pela expressão ·estilística com que renova velhos temas ; 2° ) é um livro antigo pela essência poética e · pelo gosto com que se co loca dentro do passado. Parece que o sr. Odorico Ta vares se instala, assim, dentro da mais forte e mais sau davel tendência da poesia brasileira dos nossos dias. O seu movimento é o mesmo que estão· realizando alguns dos nossos principais poetas : a unidade entre uma essência poética antiga - o que quer dizer : eterna - e uma for ma rigorosamente mod�rna. Nin�em seria mais hoje ca paz de fazer profissão ,de "moderno". Atingimos uma arte moderna pela superação do "modernismo". O ho mem moderno procura ' hoje reatar ·e continuar uma tra ... dição poética que se encontra toda no lirismo brasileiro - uma herança do lirismo português que se tornou inde pendente e autônoma. Esta poética que já se poderá chamar brasileira é a que se iniciou .com os líricos da Escola Mineira, a que se afirmou com os românticos do século XIX, a que conseguiu vencer a "impassibilidade" parnasiana, sobretudo com Raymundo Correia, a que se corporificou em simbolistas como Alphonsus de Guimarães e Cruz e Sousa, a que se encontra hoje em. plenitude atra vés de alguns dos nossos poetas modernos. Existe uma luz interior, uma inspiração local e uma realidade verbal que vêm marcando a poesia brasileira através das ·escolas sucessivas e temporárias. Uma espécie de linha que se quebra e se reata constantemente. E acredito que nunca apareceu mais fortemente sustentada do que nos nossos dias. Vê-se que a poesia de hoje está tentando esta sín tese entre a forma moderna e a substância antiga, entre sentimentos universais e expressões de carater nacional, entre a 1'saudade" do passado· e a "vontade" do futuro. 48 A l v a r o L i n s É uma t�ndência que já assinalei ao falar do sr. Carlos Drummond de Andrade. É uma tendência que tamhem se poderá assinalar na· poesia do .sr. Odorico Tavares, que pertence exatamente à família poética onde se encontram instalados, como patriarcas, os srs. Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Esta família se distingue pela sua ânsia de realizar aquilo que, em filooofia da arte, Wischer e Lotze chamaram a "einfühlung", isto é : o propósito de fazer d a beleza estética uma imagem da própria vida, uma realidade onde identificamos a pró pria vida. Uma espécie de fusão, quase sempre ideal, entre o "sentimento da natureza" e o "sentimento esté tico". O sr. Odorico Tavares coloca-se sob o signo dessa fusão em todos os poemas de A sombra do mundo. Al ternam-se os poemas que apresentam uma caract�rização mais local e os que oferecem uma participação m�'larga nos sentimentos universais. É um livro o seu muito da sua terra e do seu tempo. Do seu tempo, antes · de tudo pelo que rcpre.senta de ressonância dos acontecimentos desencadeados pela - guerra. A voz do poeta se ergue num momento de guerra quando ela é uma voz que clama pela p az. Pode-se dizer que ela chegou no instante 'mesmo em que se consumava um rumoroso fracasso dos intelec tuais: De 1918 até hoje, as atividades dos homens de le tras mais separados, dos que vinham de todos os cantos dos horizontes políticos, tinham todas o mesmo denomi· nador : a paz. Esta palavra não exprimiu, no caso dos intelectuais, apenas um sentimento : representou tambem uma espécie de ética, um ideal de luta, um destino de combate. Mas o que resultou foi .uma enorme sensação de inutilidade. O mundo o que ele prefere é a voz da guerra à voz da paz. No entanto, essa luta pela paz ain da é sustentada por homens que acreditam na poesia e nos poetas. Eles podem repetir com Georges Bernanos : "Si ce monde pouvait être sauvé, il le serait par ses poe- J o r n a 1 d e C r í t i c· a 49 tes". Alguns dos poemas mais significativos de A sombra do mundo éoncentram-se 'nos motivos dramáticos da guer ra da paz. Uma espécie de diálogo entre o lirismo do poeta e as forças destruidoras das máquinas. E vale a pena acentua:t: o tratamento novo e o sentido pessoal com que o sr. Odorico Tavares se movimenta dentro de temas tão difíceis e tão possíveis do tom-banalidade. Não se encontram nos seus poemas lugares-comuns, versos va zios, sentimentos fal�;os. Ele teve o heroismo de muito sacrificar a quantidade da sua obra, de destruir muitos dos poemas que eu poderia agora indicar como indignos de um livro ; as suas exigências consigo mesmo determi naram A sombra do mundo como um volume que não tem mais ,de setenta páginas. Entre os seus poemas, des taco "Mo"tietone Ne:ws" : a visão de uma Espanha que um dia :aal_· 1 :1:\scerá ; "Paz" : .a imagem simbólica �e uma, criança �colher "a poesia toda do mundo para solta-la no espaço contra os gases asfixiantes" ; "Guerra" : uma espé cie de síntese daquelee sentimentos de ansiedade, de an gúsita, de inquietação que se desdobram até as interroga· ções com que fecha A sombra do múndo : " Quando os céus serão limpos, a terra então lavrada ? Quando o amor volverá eterno, quando os caminhos povoados? " Porque ninguem responderá a perguntas dessa espécie, o poeta deixa tantas vezee este mundo fugindo dele ; fu gindo e esquecendo-o. Para salvá-lo, apresenta-se um ou tro mundo muito mais sugestivo : o da sua imaginação. "A poesia é quase um alívio ; faço versos para viver". Leio estas palavras e me lembro de Flauhert, o exemplo de vida mais típico para todos. os artistas, exatamente na sua solidão do Croisset : "La vi e est une chose tellement odieu,se que le seul moyeil de la supporter, c'est de l'évi· ter". Evitar a vida e .criar outra vida - não será este o um co caminho possível para um artfsta ? Através da poesia do sr. Odorico Tavares sente-se que ele ama a sua 50 A l v a r o L i n s .arte como qualquer coisa de mais essencial que a própda vida - amor que se exprime, por exemplo, nestes versos da "V e lha canção" : " Mortos meus pais, morta a infância - E da vida que foi que eu fiz ? O corpo gasto a o s vinte anos . • • Mas se a poesia está vivendo, Ainda posso ser feliz. " É uma confissão de que a sua felicidade está na poe sia, ou mais exatamente : na eua capacidade de viver poeticamente. Quando a vida não lhe permite este esta do que é uma espécie de bem-aventu-rança, o poeta utiliza um recurso salvador : a_ fug'a no tempo, o retorno ao pas sado, a renovação da infância, a sua visão de menino em Timbauba - a cidade que inspirou o "Bonde de burro da minha terra". E pode então divagar livremente, dis tante de todos os espectros e fantasmas : "Bonde de bur ro, onde me levas ?" O bonde de burro, o poético bondede burro leva-o à infância na pequena cidade que o sr. Odorico Tavares torna inesquecível nestes versos : " Bonde de burro, não passes, não, Naquela casa daquela rua, Onde um homem sempre escrevendo Deixava tudo para me abraçar Quando eu reinava pela idade, Rei do hodoque, sujo e descalço. Quando eu era este menino Que vai comigo, sempre ao meu lado ." Este poema "Bonde de burro da minha terra" per maneée ainda hoje a principal realização poética do sr. Odorico Tavares. É um poema que a tudo tem resis tido, inclusive ao repouso das antologias. Não sendo pro priamente um poema descritivo, transmite no entanto uma sensação quase física da paisagem exterior. A mesma sensação que iremos encontrar no poema "Viagem no trem noturno", Em ambos, a poesia da terra se im-põe J o r n a l d e C r í t i c a 51 como uma sugestão, na linha do conceito poético de Brad ley. A paisagem exterior não aparece objetivamente ; a sua re�lidade física transporta-se para dentro do poeta ; a paisagem e o poeta tornam-se uma só unidade. Mas não só as paisagens locais se destacam dos versos do sr. O do rico Tavares. Outras paisagens estão aqui sugeridas : as que ficam distantes, as que o poeta nunca viu, as que constituem objeto de sonhos e devaneios. Todas elas en� contram uma espécie de síntese no poema de evasão que é a "Canção da emigrante". Quero lembrar ainda a po sição do sr. Odorico Tavares em face do tema _ poético in� fância, que representa o próprio fundamento da sua poe� sia. O seu itinerário poético é aquele pensamento _ de Rainer Maria Rilke : o que situa na lembrança da infân cia, em solidão, o supremo recurso da inspiração _poética. Mas a infância não penetra na poesia _do sr. Odorico Tava re� como um fato do passado, como um conjunto de remi� niscências, como uma coisa morta que se faz -reviver pe� los artifícios da arte. A infância está presente no poeta como se ele a estivesse vivendo agora mesmo. O seu êxito neste domínio poético tão complexo surge justa mente de haver podido reter os sentimentos e impressões da infância num estado de absoluta pureza. A expres� são é do homem, mas o sentimento é o da infância, a úni ca idade que é poética de uma maneira absoluta. Aliás, os que conhecem o sr. Odorico Tavares logo o identüi cam como uma criança de 11;rande estatura. Ele se apre senta p�ssoalmente tão poético qUanto a sua poesia. Eu o revejo, agora, com a sua fisionomia ingênua, com a sua inocência de menino ; com os olhos míopes de criança assustada ; com as suas palavras de surpresa diante das velhas �nas ou das velhas idéias, que percorríamos juntos ; com o seu corpo ma!!rÍ�simo de quem esteve muito perto da morte, de qUem enfrentou a tuberculose com um h u� mour desesperado, como o sr. Manuel Bandeira. A minha lembrança pessoal se confunde com a outra le�brança que 52 A I v _a r o L i n s ele nos deixa por intermédio do poema "Volta à casa paterna" : " Por isso, limpem o espelho, Porque, apesar de todos os disfarces, A imagem da criança que se foi há muito tempo e hoje voltou Se refletirá nítida e forte com a pureza e o . encanto dos seus pri· [meiros sorrisos. " Não tenho dúvida nenhuma de que A sombra do mundo, pelos seus sentimentos poéticos, pela forma de expressão, pela realidade artística que contem, represen ta um documento literário de primeira ordem. Estamos diante de um poeta mais visual do que auditivo, mais sugestivo do que descritivo, mais artístico do que elo quente. As suas palavras são sóbrias : são palavras den sas e essenciais. A sua experiência da vida tem um cara· ter mais pessoal do que livresco ; o seu conhecimento do mundo não é o da ciência, mas o da intuição poética e artíatica. Revela-se, por isso, humano e fraternal, sem que seja sentimentalista ou piedoso. É u'm lírico que se tor nou dramático pela sua necessidade de se exprimir em diá logos ; e não poderia encontrar outra forma de expressão para harmonizar o seu lirismo de poeta com sensações diversas - estas mais intelectuais - de amargura e de pes simismo. Há cem anos passados, o sr. Odorico Tavares se· ria uma figura representativa do romantismo. Hoje, é um poeta moderno que se poderá classificar como neo· -romântico. E porque todos os homens têm os seus poe tas prediletos, com- indiferença quanto ao seu valor e classificação nas literaturas, confesso que um ' dos poetas da minha preferência é o sr. Odorico Tavares. A mim me comove este artista que fez da poesia um instrumento da sua personalidade e do seu carater. Que fez da poe· sia uma afirmação de sentimentos humanos e de nobreza intelectual. 13 de setembro de 1941. CAPíTULO IV PROBLEMAS E FIGURAS DA POESIA MODERNA T ODOS os movimentos poéticos se representam historicamente em certas figuras e em certos temas que mais fielmente se ligaram ao seu desenvolvimento. Tal vez que haja muito prejuízo nessa redução, mas se trata, de qualquer modo, de um processo histórico invariavel ; a história sempre apresenta, pelo seu próprio carater, uma certa tendência para a simplificação e para a síntese. Podemos definir um movimento literário através das suas causas e consequências de ordem mais geral e mais profunda. Esta é uma obra de pensamento e de inter pretação que se coloca diante de nós como um desafio. Contudo, há uma definição mais direta, mais simples e menos passível de erros e controvérsias : a que se rea liza através de figuras representativas e de temas expres·· sivos. Quando dizemos "amor e sentido da morte", esta fórmula significa : romantismo. Quando dizemos "forma e esforço de despersonalização", a fórmula significa : par· nasianismo. Quando dizemos "reação de espiritualidade e representação simbólica", a nova fórmula quer dizer : simbolismo. Todos esses movimentos apresentam outras faces consideraveis, mas duas ou três palavras especiais se rão suficientes para uma revelação quase completa das suas fisionomias. Tambem podemos sugerir a realidade desses movimentos pela citação de alguns nomes culmi nantes e característicos. Eles se tornaram símbolos das suas correntes literárias. Romantismo : Gonçalves Dias, Alvares de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, Fagundes Varella e Castro Alves. Parnasianismo : Ray mundo Correia, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira. 54 A l v a r o L i n s Simbolismo : Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Sousa. Atrás desses nomes, numa segunda linha, encontram-se oe di amados poetas menores ; os que tiveram o êxito numa determinada época, mas que não traziam os elementos de resistência para uma continuidade : de tempos em tem pos, em cada revisão histórica, mais aparecem dimiÚuidos e mais próximos se acham do desaparecimento. Do modernismo brasileiro talvez não se possa dizer nunca que tenha sido uma escola ou mesmo um movi mento tão regular e tão uniforme quanto o foram o roman tiamo ou o parnasianismo. O seu próprio carater deu -lhe uma constituição diferente. Ele se formou como uma revolução mais generalizada e mais radical do que qual quer outra. Enquanto o simbolismo reagiu contra o par nasianismo, na mesma linha em que o parnasianismo rea gira contra o romantismo - dava o modernismo uma orientação mais completa ao seu espírito de luta : volta- · va·se contra todas as escolas e sistemas do passado. De ve-se explicar que não era um a revolta contra a "poesia" do passado, mas contra as limitações que oprimiam essa mesma poesia ou contra os E'imples formulários dos imi tadores da retaguarda. Tanto aSI3im que os nossos poetas modernos são hoje os que mais sentem e melhor compre endem as figuras principais do romantismo, do parnasia nismo e do simbolismo. Devo ainda explicar que ao falar desse movimento moderno da poesia não me limito às atividades de poetas ou de grupo8 de poetas num deter· minado momento ou para determinado· fim. Essas ativi dades têm a sua importância, mas elas já significam ex pressões do movimento geral a que estou me referindo :
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