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ORIDES_FONTELA_-_Armadilhas_do_tempo_fio

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Prévia do material em texto

1 
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ 
CENTRO DE HUMANIDADES 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ARMADILHAS DO TEMPO 
[FIOS DE UMA TEIA POÉTICA] 
 
 
 
 
 
 
 
Fátima Maria da Rocha Souza 
 
 
 
 
 
 
Fortaleza 
- Dezembro / 2004 - 
UFC 
 
 2 
Fátima Maria da Rocha Souza 
 
 
 
 
 
Armadilhas do tempo 
[fios de uma teia poética] 
 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada à Coordenação 
do Programa de Pós-Graduação em Letras 
(Mestrado), do Departamento de 
Literatura, do Centro de Humanidades, da 
Universidade Federal do Ceará (UFC), 
como parte dos requisitos para obtenção 
do título de Mestre em Literatura 
Brasileira, sob a orientação do Prof. Dr. 
André Monteiro Guimarães Dias Pires. 
 
 
 
 
 
Fortaleza, 17 de dezembro de 2004 
UFC 
 3 
Armadilhas do tempo 
[fios de uma teia poética] 
 
 
 
 
_________________________________ 
Fátima Maria da Rocha Souza 
 
 
Aprovada em: 17 / 12 / 2004 
 
 
Comissão Examinadora 
 
 
________________________________ 
Prof. Dr. André Monteiro Guimarães Dias Pires 
(Orientador – Presidente da Comissão – UFC) 
 
 
_________________________________ 
Profª. Drª. Odalice de Castro e Silva 
(1ª Examinadora – UFC) 
 
 
_________________________________ 
Prof. Dr. Alexandre Almeida Barbalho 
(2º Examinador – UECE) 
 
 
 4 
Dedicatória 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Aos que alguma vez já desconfiaram que essa vida m orna e tola que nos é 
oferecida e alardeada como a única possível, desejá vel e saudável esconde 
outras tantas. Cuja beleza e reinvenção cabe reinve ntar”. 
(Peter Pal Pélbart, 1993:13) 
 
 
 
 
 
 5 
Agradecimentos 
Ao imenso amor, carinho e dedicação das minhas famílias Rocha, Souza e Dei 
Ricci, garantia de alegria em cada momento da trajetória. 
Meus pais e minha irmã, amores incondicionais e sem distância. 
Maria Eduarda, por todas as lições e todos os gestos. 
Minha família de amigos por afinidades eletivas, afetividade intensa nessa ponte 
Niterói – Fortaleza. 
Tânia Lima e Eduardo Jorge, amigos em rima. 
Leda Freitas e Ticiana Melo, por doçura e traduções. 
Solange Kate e Cibele Bisou, pelas dicas preciosas. 
Rosângela Porto, por me garantir o arco-íris. 
Possidônio Montenegro e Andréa Bardawil, por me ensinarem a “habitar o 
invisível” através de “delicadezas e súbitos chegares”, e a todo o Núcleo de Dança 
do Alpendre com quem aprendi o silêncio. 
Alexandre Veras, pelo raro exemplar de Trevo sem o qual não teria desenvolvido a 
minha pesquisa. 
 
 
 
Cinda Gonda, Sarah Diva Ipiranga e Manoel Ricardo de Lima, 
mestres de literatura e vida. 
Orlando Araújo, 
pelo início da trajetória em “círculo”. 
À Capes pela bolsa de pesquisa. 
Aos amigos e professores do Curso de Graduação e Pós-Graduação em Letras da 
UFC, 
pelo incentivo. 
Adriano Alcides Espínola, 
pela produtiva orientação durante a caminhada. 
Ao meu afetuoso orientador, André Monteiro, 
por aceitar andar de mãos dadas. 
 6 
Resumo 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Armadilhas do tempo é uma travessia lúdica pela obra poética de Orides 
Fontela. As nuances dessa armadilha dividem-se em três movimentos. Laço 
mostra o tempo da escritora através da produção de seus livros. Logro astucioso 
verifica o lugar de embate com a linguagem e o movimento lúdico de construção e 
desconstrução, em que ela propõe despedaçar um mundo para adquiri-lo múltiplo. 
Por fios filosóficos, a armadilha torna-se gozo adquirido através da habilidade em 
enganar. Caímos no alçapão . Esculpir o tempo com Orides nos permite fabricar 
teias no emaranhado de um mundo veloz que nos captura a todo instante e tem a 
capacidade de transmitir, a cada momento, afetos tristes. Contra esse processo, 
pensar o estado de atenção como saída estética, de estilo, para potencializar 
subjetividades de um leitor em ação. 
 
 
 7 
Resumée 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Armadilhas do tempo – ou Les pièges du temps – est une traversée ludique 
à travers l´ouvre poétique d´Orides Fontela. Les nuances de ce piège se divisent 
en trois mouvements. Lien montre le temps de l´écrivain à travers la production de 
ses livres. Tromprerie astucieuse vérifie le lieu du confront avec le langage et le 
mouvement ludique de construction et démolition, dans lequel elle se propose à 
déchirer un monde pour en acquérir un autre, múltiple. Par des fils 
philosophiques, le piège devient une jouissance grâce à l´habilité de tricher. On 
tombe dans la trappe . Sculper le temps avec Orides nous permet de fabriquer des 
toiles dans le reseau d´un monde rapide qui nous capture à tout instant e qui a la 
capacité de nous transmettre, à chaque moment, des affections tristes. Contre ce 
processus, penser l´état d´alerte comme une issue esthétique, pour activer des 
subjectivités chez le lecteur en action. 
 
 
 
 8 
Sumário ou a fazedura da armadilha 
 
1. laço : gestos mínimos 11 
 
 
1.1. primeiro movimento 12 
1.2. segundo movimento 26 
 
 
2. logro astucioso : ludismo 54 
 
 
2.1. mãos 59 
2.2. gestos textuais 67 
2.3. gestos da memória 69 
2.4. memória de esquecer 74 
 
 
3. alçapão : esculpir o tempo 80 
 
 
 3.1. há um tempo... 81 
3.2. tempo da consciência 97 
3.3. tempo da loucura 138 
 
 
4. bibliografia : habitando o tempo 148 
 
 9 
Armadilhas do tempo 
[fios de uma teia poética] 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Roberta Dabdab / Folha Imagem 
 
 
 
 
 
 
Com o espírito da brincadeira, 
uma homenagem à escritora Orides Fontela, 
“que amava os gatos que descansam com os olhos aber tos”. 
(Fernando Nasser) 
 
 10 
Epígrafe 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Tempo1 é criança brincando, jogando; de criança o reinado. 
Heráclito 
Fragmento 52 
 
 
 
 
 
 
 
 
1 No grego Aiôn, um nome próprio, de uma entidade alegórica, filho de Cronos e “Filira”.Por outro 
lado há dois sentidos de aiôn como nome comum: o primeiro é o de “tempo sem idade, 
eternidade”, que posteriormente se associou ao aevum latino: o segundo é o de “medula espinhal, 
substância vital, esperma, suor”. A entidade alegórica pode consistir nos dois sentidos. (Os pré-
socráticos, 1989). 
 11 
1. laço : gestos mínimos 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
INICIAÇÃO 
 
Se vens a uma terra estranha 
curva-te 
 
se este lugar é esquisito 
curva-te 
 
se o dia é todo estranheza 
submete-te 
 
- és infinitamente mais estranho. 
 
 
Orides Fontela 
 
 12 
chegadas... 
 
1.1. primeiro movimento 
 
Armadilha: laço, engenho ou artifício para apanhar qualquer animal. 
 Um caminho. Uma trilha para ele. Uma armadilha por meio da qual 
descobrimos a obra da escritora Orides Fontela. Através da palavra, Orides lança 
o corpo para experimentar o real, trabalhar o instante dos acontecimentos, e 
estabelece, a partir do tempo da poesia, uma busca pela palavra exata que 
traduza o sentimento íntimo humano, a solidão existente entre o sujeito e o 
mundo. Experimentar o real, verdadeiro acontecimento: aquilo que acontece no 
presente, no puro ato, podendo acontecer numa movimentação silenciosa, toque, 
viva sensação. 
 
inútil a ternura pelo leve 
momento a desprender-se do infinito: 
frágil, a construção do tempo é morte 
do que se atualiza. Mais fecundo 
 
é secundar o pássaro buscando 
o momento possível, vôo pleno. 
Mais fecundo é voar. Mas a ternura 
(este pássaro morto abandonado 
 
como forma perdida de nós mesmos) 
nos alimenta em sua sombra. Torna-nos 
em sombras sem alento. E sofremos 
 
como pássaros frágeis: desprendidos 
do vôo pleno nos cristalizamos 
realizando a morte em que vivemos. 
(4-4-67) 
(Fontela, 1988, p. 250) 
 13 
 Orides inquietacomo metal frio e cortante, suas palavras são pura 
crueldade. Os signos explodem em movimentos contrários como nesse soneto de 
1967. A forma rígida, contraposta aos significados velados das palavras, aparece 
recompondo imagens caleidoscópicas como a ternura que passa a ser inútil 
porque torna-se sombra, e como pássaro morto que alimenta sofrimento. 
Enquanto nos contentamos em não voar, vivemos mortos. E assim construímos 
um tempo que é morte do que se atualiza. Então, como giro caleidoscópico que 
propõe, a escritora recorta o tempo e arma com ele suas armadilhas. Lança-nos 
armadilhas e nos arma. Reparar nessas armas é nossa função: leitores. 
 Alguns escritores, como Orides Fontela, são desses que nos alertam, não 
se entregam ao sono; praticam um “estar fora de casa, e contudo sentir-se em 
casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e 
permanecer oculto ao mundo...” (Baudelaire, 1996, p.20) 
Estar no centro pode parecer dizer de Orides assim: nasceu Orides de 
Lourdes Teixeira Fontela2 em 21 de abril de 1940, em São João da Boa Vista. Era 
filha de um operário e uma dona de casa e começou a escrever desde criança, 
sendo que, com o passar dos anos, ganhou fama em sua terra a ponto de adquirir 
aura de poeta municipal. Seu interesse pela filosofia levou-a à USP, onde concluiu 
o curso em 1972. Trabalhou também como bibliotecária da Escola Municipal 
Professora Marisa de Melo, na vila Aricanduva, zona leste de São Paulo. Viveu 
mergulhada entre os livros e aprendeu a extrair deles o silêncio, o que se tece a 
partir desse vazio, dessa transparência, do que se faz invisível e que corta, recorta 
 
2Seus quatro primeiro livros, Transposição (1969), Helianto (1973), Alba (1983), Rosácea (1986), 
foram reunidos no volume Trevo (1988), traduzido para o francês e publicado em dois volumes 
com o título Trèfle. Com as traduções realizou um grande sonho de criança. Dois anos antes de 
morrer, nos presenteou com Teia (1996). Seus livros, há muito esgotados, tem reedição 
programada pela Editora 34. Publicou: Obra poética: Transposição, Instituto de Espanhol da 
Universidade de São Paulo (USP), 1969; Helianto, Duas Cidades, SP, 1973; Alba, Roswitha Kempf 
Editores, SP, 1983 (Prêmio Jabuti); Rosácea, Roswitha Kempf Editores, SP, 1986; Trevo, 1969-
1988, Coleção Claro Enigma, Duas Cidades: SP, 1988 (coletânea dos livros anteriores); Teia: 
poemas, Geração Editorial, 1996 (Prêmio APCA); Uma - despretensiosa – minipoética, na revista 
Cultura Vozes, número 1, janeiro – fevereiro de 1977, ano 91, volume 91. Prosa: Almirantado, no 
Almanaque, número 4 (Cadernos de Literatura e Ensaio), SP, 1977. Colaborou com revista Cultura 
Vozes e com O Estado de S. Paulo. Publicou poema na revista portuguesa Anto, em Amarante, 
Portugal, número 2, 1998. 
Quando da revisão dessa dissertação em julho de 2006, houve a publicação de sua Poesia 
Reunida (1969-1996) São Paulo: Cosac Naify: Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. 
 14 
e preenche o instante. Silêncio fundamental que as palavras, nuas e cruas, 
estabelecem para pensar o ser humano em sua mais profunda densidade. Tudo 
isso transpôs para a sua poesia, através da secura de seus versos, de forma dura 
e densa. Afinal, como ela mesma dizia, "nossa época é terrível, somos poetas em 
tempo de desgraça". Orides viveu sempre em meio a grandes dificuldades. 
Sempre com os nervos à flor da pele, meteu-se em encrencas e provocou 
escândalos com seus melhores amigos. Boêmia e depressiva, várias vezes tentou 
o suicídio, o que resultou no falecimento precoce aos 58 anos. 
Mas há um outro sentido para centro que, pensado círculo, pode adquirir 
um movimento, o da espreita. Pelo Aurélio: centro, círculo; movimento de rotação: 
aquele que um corpo efetua em torno de um ponto situado no seu interior, ou 
ainda, movimento infinito, conceito da física: o de um sistema de partículas em 
que a energia é constante e as coordenadas de uma ou mais partículas podem 
assumir valores infinitos. Prefiro privilegiar a energia, as partículas e os valores 
infinitos. 
O meu contato com Orides se deu foto, capa estranha de Teia, poemas 
folheados, livro aberto em “círculo”. Minhas suspeitas aumentaram com aquela 
capa, esquisito cosmos que cedeu, depois de um tempo, lugar ao caosmos. As 
leituras de Metaformose, de Paulo Leminski me provocaram um passeio pelo 
pensamento grego entre metamorfoses, parricídios e mortes que se atualizam 
numa mesma vida. E lembro que Orides dizia do “círculo” assim: 
 
O círculo 
é astuto: 
enrola-se 
envolve-se 
 
autofagicamente. 
 
Depois 
explode 
- galáxias! - 
 
abre-se 
vivo 
pulsa 
 
multiplica-se 
 
divindadecírculo 
perplexa 
(perversa?) 
 15 
 
o unicírculo 
devorando 
tudo. 
(Fontela, 1996, p. 59) 
 
Guardei bem: dizer de Orides é melhor assim, que nos envolve, ao mesmo 
tempo nos arrebata, nos desloca, nos faz um convite sempre: voltar várias vezes 
ao jogo, atentando para novas dimensões e sentidos que a vida toma a partir das 
possibilidades da linguagem, de seus segredos. Posições em xeque: círculo, 
centro e divindade. Mas divindade que perversa se permite perplexidades e 
devorações, pois autofágica. Dizer dela viva, pulsante, multiplicada, galáxias. Sua 
vida arrebatada, impulsiva, e sua dicção, sua poesia, concisa. Melhor. 
Nesse momento em que consideramos o percurso, o embate com a leitura 
de sua obra, como uma armadilha, preferimos dividir as partes desse enlace 
entendendo a feitura da própria armadilha muitas vezes tida aqui como teia. 
Momento primeiro é o laço, em que ele se faz engenho, cilada ou mesmo 
armadilha para apanhar qualquer animal. Movimentos vibrantes de atenção para 
encontrar uma saída. 
Desse modo, devemos pensar alguns conceitos com minúcias. Trabalhar 
com a palavra “ser” nos faz pensar em seu sentido latino, que vem do verbo 
sedere¸ sentar-se. Preferimos entender o ser não como acomodação que o radical 
em primeira instância pode sugerir. Não a existência tomada num sentido fechado, 
baseada na idéia de uma essência como algo intocável ou inatingível, mas o que 
implica constante mudança, o tornar-se com a acepção de produção de múltiplos 
sentidos, inesperados, próprio daquele que em sua “existência” se lança, arrisca, 
permite achar-se outro. Pode, ainda, tomar um outro sentido mostrado pelo 
dicionário Aurélio que vai de encontro à temática com a qual trabalhamos: 
“empregado sem sujeito, indica o ponto ou o momento do tempo, a estação, a 
época.” Tempo oportuno, movimento de fazimento-desfazimento. 
Própria da leitura que fazemos de sua poesia é essa proposta de 
construção e desconstrução que aparece no poema "Ludismo" onde Orides 
sugere que 
 
 16 
(...) 
quebrar o brinquedo 
é mais divertido. 
As peças são outros jogos: 
construiremos outro segredo. 
(...) 
Mundos frágeis adquiridos 
no despedaçamento de um só 
E o saber do real múltiplo 
e o sabor dos reais possíveis 
(...) 
Quebrar o brinquedo ainda 
é mais brincar. 
(Fontela, 1989, p. 19) 
 
Propondo despedaçar um mundo para adquiri-lo múltiplo, a escritora brinca 
com o sabor e o saber do real possível em sua multiplicidade. A desconstrução 
passa pela ação considerada manifestação de uma força, de uma energia, de um 
agente, propondo um movimento, funcionamento e atitude. Pensando pelo viés da 
filosofia, a ação passa a ser processo que decorre da natureza ou da vontade de 
um ser, o agente, e de que resulta criação ou modificação da realidade. O 
percurso é o curso desse processo; atividade, resultado ou efeito desse processo. 
Sua poesia é calcada na palavra. Essa palavra que é real e nos fere, que 
se reinventa, repelindo o "cantoflorvida", renasce perpétua contra a 
automatização, num "universofluxo" que nos obriga a parar o tempo. Um viver 
denso, de excessiva vivência, sangrado, esculpido, despedaçado, lúcido, ferido, 
marcado, tramadoe nunca desgastado mas multiplicado. Através do jogo, Orides 
nos indaga sempre sobre este mundo e particularmente sobre o nosso, como o 
preenchemos e o elaboramos. E nos mostra várias perspectivas, brincando com a 
palavra tempo em seus poemas. 
O livro Teia traz uma epígrafe de Espinoza: “Todas as grandes coisas são 
difíceis e raras”, ao lado de um verso próprio da escritora “A lucidez alucina”. Ser 
difícil e rara não implica a impossibilidade de conhecer algo, embora tenhamos de 
dar a volta completa por um determinado aspecto que queremos conhecer. Nesse 
ponto de conhecer por completo, lançando-nos na descoberta, corremos o risco 
de lucidamente perder o uso do entendimento e, então, nos alucinarmos. Acordar, 
penetrar e vigiar, estarmos vigilantes, atentos a. O destino não está pronto, tem de 
ser elaborado como solução para que possamos penetrar o tempo, nos inserirmos 
 17 
nele e apreendermos por instante uma habitação. O destino não necessariamente 
pressupõe um futuro distante, mas um novo presente. 
Estar atento pode ser estar pronto para compreender o devir e a 
intensidade ao mesmo tempo. É, por um instante, ser capaz de afetar-se. Sendo o 
nosso tempo baseado na aceleração da vida através de seus supostos projetos 
produtivos, faz-se necessário encontrar uma poética que nos permita alcançar um 
outro tempo, aquele que, descoberto e desvendado por nossa vivência, consiga 
atingir um pensamento em torno da delicadeza, da sensibilidade e da dignidade de 
viver. Reflexão a partir da linguagem, pensamento como exercício de filosofia, vida 
através da poesia. 
Comentando sobre a originalidade do sentimento dado à conjunção “e” 
quando Espinoza relaciona alma e corpo, Deleuze evidencia as relações, variável 
o nível de potência, que os indivíduos mantêm uns com os outros e a capacidade 
de serem afetados por isso: 
 
Os afetos são devires: ora eles nos enfraquecem, quando diminuem 
nossa potência de agir e decompõem nossas relações (tristeza), ora nos 
tornam mais fortes, quando aumentam nossa potência e nos fazem entrar 
em um indivíduo mais vasto ou superior (alegria). Espinoza está sempre se 
surpreendendo com o corpo. Ele não se surpreende de ter um corpo, mas 
com o que o corpo pode. Os corpos não se definem por seu gênero ou sua 
espécie, por seus órgãos e suas funções, mas por aquilo que podem, pelos 
afetos dos quais são capazes, tanto na paixão quanto na ação. Você ainda 
não definiu um animal enquanto não tiver feito a lista de seus afetos. (...) 
sempre se tem os órgãos e as funções que correspondem aos afetos dos 
quais se é capaz. Começar por animais simples, que têm somente um 
pequeno número de afetos, e que não estão em nosso mundo, nem em um 
outro, mas com um mundo associado que souberam talhar, cortar, 
recosturar: a aranha e sua teia, o piolho e o crânio, o carrapato e um canto 
de pele de mamífero, eis os animais filosóficos e não o pássaro de 
Minerva. Chama-se sinal o que desencadeia um afeto, o que vem efetuar 
um poder de ser afetado: a teia se agita, o crânio se dobra, um pouco de 
pele se desnuda. Nada a não ser sinais como estrelas em uma noite negra 
 18 
imensa. Tornar-se aranha, tornar-se piolho, tornar-se carrapato, uma vida 
desconhecida, forte, obscura, obstinada. (Deleuze, 1998, p. 73) 
 
Definir os corpos pelos afetos, privilegiando essa capacidade de ser 
afetado, enquanto conhecer algo implica envolver-se na feitura de uma lista de 
afetos. Na complexidade dos animais simples, minuciosas mas potentes ações: a 
recostura, o corte e o talho. Quase imperceptíveis, provocam um desdobramento 
do olhar em ver e reparar, fazer isso com os impulsos potentes do piolho, da 
aranha e do carrapato, por exemplo. A percepção do afeto é marcada por um sinal 
que desencadeia, desdobra, desmonta o tecido, visto que “a teia se agita, o crânio 
se dobra, um pouco de pele se desnuda”. Sinais como as “estrelas em uma noite 
negra imensa”, ou no dizer provocador de Orides, em “um céu estrelado dentro de 
mim”. 
No poema "Teia" de seu último livro homônimo, há uma ruptura com o 
sentido imediato das coisas, pois interessa uma outra teia que não esperada, além 
da idéia trabalhada de armadilha. Embora o fazimento-desfazimento esteja 
imediatamente associado a um sentido tátil, é o olho que vê despertando o estado 
da atenção através do recorte, do enquadramento que faz. 
Nesse poema a linguagem é condensada, a idéia é espremida em imagens 
simbólicas, aqui cada palavra tem a força da imagem. 
 
A teia, não 
mágica 
mas arma armadilha 
 
a teia, não 
morta 
mas sensitiva, vivente 
 
a teia, não 
arte 
mas trabalho, tensa 
 
a teia, não 
virgem 
mas intensamente 
prenhe: 
 
no 
centro 
a aranha espera. 
(Fontela, 1996, p. 13) 
 19 
Durante nossa vivência com a poesia de Orides, utilizamos todo o material 
que íamos aos poucos encontrando entre artigos de jornais e revistas 
especializadas em literatura da época em que ela produziu sua obra literária, bem 
como dissertações de mestrado, depoimentos e entrevistas concedidos pela 
própria escritora. 
Receber esses dados gerou a idéia de trabalhar sob uma perspectiva 
gestual, aquilo que representando um simples ato de estender a mão ao outro em 
gestos mínimos, nos fala de encontros que vão da escrita à leitura solitária entre 
pesquisadores, leitores e talvez, como queria Orides Fontela, entre amigos. Numa 
entrevista concedida à escritora Marilene Felinto para a revista Marie Claire de 
setembro de 1996, revela sua intenção poética em relação à amizade: “Meu 
círculo de relações está muito pequeno. Uma das coisas que eu pensei que podia 
conseguir com a poesia era ter mais amigos.”3 
Nesse sentido, aparecem como diálogo as influências de leituras, potentes 
influências. Pequenos percursos, passagens obrigatórias a fazer parte de uma 
trajetória. 
Não demorou muito para que a escritora Orides Fontela ganhasse ar de 
poeta municipal e fosse respeitada por isso a ponto de mudar-se rapidamente da 
cidade de São João da Boa Vista para a cidade de São Paulo. Com ajuda e 
orientação de seu conterrâneo Davi Arrigucci Jr., seus planos de seguir a carreira 
de magistério ganharam a dimensão universitária e a certeza de querer cursar 
filosofia. Tempos áureos da década de 70 no curso da USP, em que Orides 
participou mais das conversas e do diálogo que se instaurava entre os estudantes 
do que do combate que também se estabelecia contra os planos do cenário 
político do país. 
 
3 Gostaria de ressaltar a dificuldade de pesquisar em material (revistas e jornais) antigos, 
principalmente os artigos publicados em jornais locais que não circulam nacionalmente. Para 
nossa consulta, buscamos a biblioteca da Associação Brasileira de Imprensa e a Biblioteca 
Nacional – setor de periódicos e microfilme – ambas situadas no centro do Rio de Janeiro. A 
Biblioteca Nacional recebe grande parte desse material mas nem sempre disponibiliza cópias 
microfilmadas, tendo de ser feita consulta local em originais. No nosso caso, por dificuldades de 
pesquisa, muitas vezes não foi possível copiar o número da página referente ao artigo 
mencionado. 
 20 
Dessa forma acabou conhecendo e influenciando-se, como cita em 
depoimento para o livro Artes e ofícios da poesia, pela leitura de mundo de Vilém 
Flusser (1920-1990), durante a moradia dele no Brasil. O período em que 
freqüentou os cursos desse pensador, Orides considerou como passagem da sua 
fase pré-literária para a escrita de seus livros. 
Em artigo para a revista Gesto, de dezembro de 2003, o pesquisador 
Charles Feitosa afirma que poucos conhecem o filósofo de origem tcheca, que 
morou e ensinou, entre 1940 e 1972, em São Paulo e tem uma vasta obra sobre 
literatura, fotografia, tecnologia, mídia, política e cultura. A influência mais 
marcante do filósofo, que lecionou durante três décadas no Brasil, paraOrides 
Fontela, vem do livro Língua e Realidade: 
 
…descobri que, há tempo, não era mais entendida municipalmente. 
O que houvera? Que influências? Creio ter citado todas mas ainda falta 
Vilém Flusser (Língua e realidade). Besteira ou não, que 
deslumbramento ! Desta alimentação aleatória e autodidata, destas 
intuições e vivências “algo” ia nascendo. Falta reconhecer, selecionar, 
assumir. (Massi, 1991, p. 258) 
 
A nosso ver, o deslumbramento ocorre devido a uma afinidade entre 
temáticas e perspectivas trabalhadas. Enquanto estamos lendo Língua e 
realidade, acreditamos, por instantes, estar ouvindo a voz de Orides como pano 
de fundo. Vilém Flusser procurou trazer para o estudo meticuloso o aspecto 
mágico da língua na qual era estrangeiro. Dessa forma, partindo de uma leitura 
ontológica, procura trazer novos recortes e sentidos para a língua que forma e 
governa o pensamento, provocando o pensamento e ampliando a conversação, 
tanto para o conceito de verdade como para o de realidade que a língua forma, 
cria e propaga. 
Segundo o estudioso, em outro livro Gesten, o autor “nos convida a 
reavaliar nossos movimentos corporais, majestosos ou cotidianos, para 
redescobrir seu potencial expressivo.” (Feitosa, 2003, p. 15) 
 21 
Os nossos gestos, tanto os concretos como os abstratos, trazem como 
conseqüência uma gestação de idéias e também dos seres. Nesse sentido, é 
fundamental pensar sobre os nossos gestos cotidianos, as alterações mínimas 
capazes de produzir. Para Charles Feitosa, o livro é exemplo de “filosofia pop”, 
uma vez que “tem como principal característica a recusa de qualquer delimitação 
absoluta entre o que é supostamente filosófico e o que não é (...) sabe descobrir 
profundidade mesmo mantendo-se na superfície”. (idem) Assim chega a 
questionar a existência partindo das gesticulações na superfície da vida cotidiana, 
pois a “existência humana consiste em fazer gestos e ser continuamente “gestada” 
por eles.” (idem) 
Ainda sobre esse livro, Charles Feitosa explica o que viria a ser 
considerado gesto para Flusser. Ou melhor, que categorias ele cria para os 
gestos. Diferenciando-as, chegamos à noção de distintas formas de vida. 
 
Segundo a teoria de Flusser, há quatro categorias principais de 
gestos: os comunicativos (gestos dirigidos aos outros, como o aceno ou a 
continência); os de trabalho (dirigidos a algum material a ser modificado, 
como cozinhar ou consertar um relógio); os ritualísticos (uma 
submodalidade dos gestos de trabalho, só que voltados para uma 
alteração no próprio gesticulador, como o ato de ler ou de viajar); e, enfim, 
os desinteressados (gestos que não se dirigem a nada específico, a não 
ser a sua própria realização, tais como certas brincadeiras de criança – 
pular no mesmo lugar – ou ainda as artes em geral). A classificação 
permite a distinção entre três formas de vida, também esquemática: a vida 
comunicativa , a vida ativa (frente ao mundo ou frente a si mesmo) e a 
vida artística . (Feitosa, 2003, p. 15, grifos meus) 
 
Dividindo os gestos em categorias, Flusser nos diz que essas quatro 
categorias alteram nosso olhar, é a seleção que o olho proporciona, o recorte que 
permite, o enquadramento. Tanto é assim que diz de um novo suporte ou de uma 
atenção voltada a um esquema que monta a partir da seleção feita anteriormente. 
 22 
E nos importa recortar dentro da sua fala essa “vida ativa”, perspectiva que explica 
ser frente ao mundo ou a si mesmo. 
Refletindo mais detidamente sobre os nossos gestos cotidianos, acabamos 
nos surpreendendo com o que intencionamos e com o que realmente praticamos. 
Orides tem um poema que, a nosso ver, nos ajuda a dialogar com a intenção de 
Vilém Flusser. Deixa-nos, ela, uma “notícia”: 
 
não mais sabemos do barco 
mas há sempre um náufrago: 
um que sobrevive 
ao barco e a si mesmo 
para talhar na rocha 
a solidão. 
(Fontela, 1988, p. 41) 
 
Antes de chegar à categoria de “vida artística”, nos gestos desinteressados, 
voltamos à “vida ativa” e aqui queríamos inserir a solidão do náufrago, esse 
sobrevivente a si mesmo. No tempo interno, é sozinho que se coloca em 
gramíneo terreno porque há o trabalho do talho, não é uma solidão 
transcendente, mas um labirinto, um viver individual em rumos, caminhos, 
descobertas e descobertas em silêncio. 
Seguindo o pensamento de Flusser, entendemos que muitos gestos 
despretensiosos não passam de uma intenção de submetê-los à existência 
humana como, por exemplo, o gesto de plantar, pacífico e violento, uma vez que 
“obrigamos a natureza a trabalhar para nós e contra si própria.” (Feitosa, 2003, p. 
15) 
 
[..] Mas, o que seria uma relação mais afirmativa com a natureza? 
[...] Na caçada não se espera, espreita-se. [...] Quem caça se expõe a 
riscos, se submete às leis e mistérios inerentes à natureza, podendo 
eventualmente se tornar uma presa também. 
Trata-se de “reaprender a olhar um gesto tão comum e banal.” 
 23 
A ordem e a disciplina no próprio corpo refletem uma ideologia que 
tenta impor ordem e disciplina no real. 
A observação desse gesto (fazer a barba, por exemplo) serve de 
pretexto para um questionamento acerca de fenômenos emergentes da 
cultura contemporânea, como a ecologia ou o urbanismo. 
Para o autor de Gesten uma das tarefas de uma filosofia no 
cotidiano é investigar se a ecologia e a engenharia social, como têm sido 
praticadas, não permanecem gestos tão cosméticos como o de fazer a 
barba, na medida em que insistem em trabalhar apenas na e para a pele, 
quer dizer, em construir e manter muros divisórios na existência. 
O que há de comum entre dançar e inalar o fumo do tabaco é que 
ambos são gestos cuja única finalidade é não ter fim, gestos que não 
promovem diretamente uma transformação do mundo ou do gesticulador, 
que nada informam ou comunicam; enfim, que se esgotam na sua própria 
realização. (Feitosa, 2003, p.17) 
 
Com gestos desinteressados de uma produção e mais atentos aos 
movimentos, experimentamos a vida, resistimos. A diferença está na atitude, em 
que a intenção não é provocar grandes mudanças no mundo mas senti-lo vibrante, 
pulsante, vivo. Assim descobrem-se e instauram-se novos prazeres repensando 
os gestos úteis, e nos tornamos desejantes. Instaurando novos prazeres, 
alimentamos o desejo, premissa que costuma ser pensada ao contrário, como nos 
impõe a imagem da propaganda: primeiro aciona um desejo no espectador, pois 
promete a ele um prazer que, ao invés disso, acaba sendo substituído por uma 
certa frustração. Nessa inversão, a garantia do viver ao invés de simplesmente 
sobreviver. 
 
O objetivo do rito não é mudar o mundo. Quanto mais um rito é um 
gesto cuja finalidade está em si, mais ele pertence à “vida estética”. O rito 
de fumar cachimbo é, para Flusser, um gesto artístico como o do pintor ou 
do dançarino. Fumamos cachimbo ou dançamos por prazer, ou melhor, 
pelo prazer específico de poder interromper os gestos úteis. Quando 
 24 
fumamos cachimbo ou dançamos, estamos “vivendo a vida” em vez de 
apenas “sobre-viver”. 
Cada vez mais a atividade artística é vista exclusivamente como um 
gesto de trabalho, com o qual se procura instaurar uma obra, realizar uma 
performance, transmitir uma mensagem, expressar uma emoção ou causar 
sensações. O aspecto mais essencial da arte é, segundo Flusser, a 
possibilidade da descoberta de si: “É somente no gesto de tocar um 
instrumento, de pintar, de dançar, que o músico, o pintor e o dançarino 
experimentam quem são e como são.” Então, dançar e fumar cachimbo 
são atos de resistência contra uma vida baseada apenas na utilidade 
racional e duas das muitas formas possíveis de experimentar a “dor e a 
delícia” de tornar-se o que se é. (Feitosa, 2003, p. 23) 
 
Valorizando os gestos mínimos, precisamos pensá-los delicadamente pelo 
viés do movimento. Não se espera do movimento uma performance aparente, mas 
compreende-se, ao contrário,os impulsos capazes de gerá-lo antes mesmo dele 
acontecer. Nesse sentido, busca-se um puro acontecimento que possa remeter às 
potencializações, mínimas que sejam, dos gestos. Sobre a “potência de amar” e o 
“puro acontecimento” reparar num trecho do livro Diálogos, de Deleuze (1998): 
 
À minha vontade abjeta de ser amado, substituirei uma potência de 
amar: não uma vontade absurda de amar qualquer um, qualquer coisa, não 
se identificar com o universo, mas extrair o puro acontecimento que me 
une àqueles que amo, e que não me esperam mais do que eu a eles, já 
que só o acontecimento nos espera. (...) Fazer um acontecimento, por 
menor que seja, a coisa mais delicada do mundo, o contrário de um drama, 
ou de fazer uma história. Amar os que são assim: quando entram em um 
lugar, não são pessoas, caracteres ou sujeitos, é uma variação 
atmosférica, uma mudança de cor, uma molécula imperceptível, uma 
população discreta, uma bruma ou névoa. (Deleuze, 1998, p. 23) 
 
Vontade como potência, acontecimento como delicadezas, geografia, 
mudança, variação. Ato enquanto intensidades. O que nem sempre se dá. Para 
 25 
brincar um pouco com a geografia, entendemos ser preciso brincar também com 
uma montagem, ou seja, para quebrar o brinquedo, antes conhecê-lo, suas 
formas. 
Então fizemos assim: recolhemos artigos escritos pela poeta, alguns 
escritos sobre ela em simples revistas e jornais noticiosos e outros estudados 
minuciosamente e analisados criticamente. Chegamos então às dissertações de 
mestrado e às teses de doutorado que conseguimos encontrar, dentre várias 
dificuldades, que vão das dificuldades da pesquisa ao simples descaso que 
percebemos em relação ao seu trabalho que se dá, geralmente, por mero 
desconhecimento de sua obra. 
Descobertas as pistas, enchemos o percurso de dúvidas e indagações que 
alimentam várias paixões; juntamos tudo que advém dos amores, do convívio, 
tanto teórico quanto prático, tateando um mosaico no campo das inquietações. 
Para depois, então, praticar o ato de selecionar. 
Da paixão pouco se diz hoje. Ou se diz muito e, por isso, pouco. Leminski 
em bonito artigo “Poesia: a paixão da linguagem”, para a série Olhar da 
Companhia das Letras, chega logo de início a uma conclusão de que se a palavra 
paixão está na moda e se estamos valorizando-a demais, é porque, o fundo, ela 
está faltando. 
Podemos lembrar aqui que paixão muitas vezes, conforme ressalta Leminski, 
passada à nossa tradição como herança do radical latino, nos dá uma noção de 
passividade. Prefiro atentar para o radical grego de onde provém como pathos, 
por conter a paixão como impulso. Então a paixão é isso, sinônimo de arriscar-se, 
mover-se. Não necessariamente sair do lugar, as permanecer nele e ao mesmo 
tempo em uma inquietude, podendo dizer de um universo lúdico que, por sua vez, 
pode dizer da criação no movimento de brincar. 
 26 
1.2 segundo movimento 
 
Como referência a uma reconstituição da memória, trouxemos esses 
artigos até aqui para fazer referência aos gestos generosos de lembrar uma 
determinada época, um percurso, uma maneira de andar. 
A generosidade não caberia aqui pensada como nobreza. É necessário 
atentar para o sentido conotativo que ela ganha ao repararmos a entrada do 
dicionário Aurélio para antropônimo. “Generoso: ente fantástico que, segundo a 
crendice popular, entrava nas casas sem ser visto, fazia barulho nos quartos, 
tocava instrumentos musicais, etc.” (Ferreira, 1999, p. 980). Substituímos a 
nobreza pela inquietude, por aquele que, “fazendo barulho” provoca, um bom 
incômodo. E assim, promove encontro, estar com. 
A dificuldade que a contextualização histórica implica foi abordada de 
maneira muito cuidadosa por Alexandre Rodrigues da Costa em sua dissertação 
de mestrado A construção do silêncio: um estudo da obra poética de Orides 
Fontela, de 2001. No capítulo inicial, ele nos diz que 
 
Situar e analisar a obra de qualquer poeta brasileiro nas últimas 
quatro décadas é, antes de tudo, mostrar em que medida valores, poéticas 
e correntes tão diferentes coexistem. Nesse sentido, qualquer tentativa de 
definição nos leva a refletir sobre como os traços individuais de um 
determinado artista convergem naquilo que chamamos de tradição. 
Quando focalizamos nossa atenção sobre períodos nos quais procuramos 
características que possam determinar linhas de força, pontos em comum, 
sempre surge a expectativa de que algum poeta fugirá disso, adotando 
não a postura em voga, mas articulando uma linguagem que envolva um 
pensamento próprio, desvinculado de qualquer compromisso com 
correntes poéticas ou comportamentos predominantes. 
Nesse sentido, falar de Orides Fontela é tocar em nuances que 
possibilitam articular a expressão individual em contraponto ao contexto no 
qual foi produzida sua obra, mostrando até que ponto se diferencia de seus 
semelhantes ou a eles se assemelha e em que medida sua postura frente 
 27 
à tradição da literatura brasileira tem como objetivo alcançar caminhos que 
a levam a um ideal próprio de poesia. (Costa, 2001, p. 12) 
 
Orides Fontela esteve alheia sempre a correntes e modismos. Embora 
tenha bebido em várias fontes, criou nuances originais para uma solução muito 
pessoal de sua poesia. Ela mesma indica que muitas vezes seguia seu método 
intuitivo mesmo que depois pudesse associar algumas características a outro 
escritor. Estava imersa em seu tempo, conseqüentemente, seu pensamento 
também refletia preocupações e produções de outros escritos e escritores. Tinha 
sua perspectiva própria, formada desde seu primeiro livro e dizia não ser 
contaminada pela coexistência de correntes nem pelo cotidiano proletário em que 
viveu. Tudo isso resultou num trabalho que primava pela concisão, pela economia 
de recursos e por uma poesia cheia de densidades. Atestando que sua postura 
não cuidava de “fatos neutros”, ao contrário ela parecia posicionar-se mesmo que 
contraditoriamente. 
Um exercício em vida foram as críticas que escreveu... 
 Dos artigos que escreveu no ano de 1987 enquanto colaboradora do jornal 
O Estado de S. Paulo, Orides foi mostrando aos leitores corriqueiros do jornal a 
que veio seu espírito selvagem. À sua maneira aristocrática, agindo em sua poesia 
com “bom senso”, “bons modos”, contenção, mostrou em seus artigos sua verve 
irreverente, respondendo com frases cortantes aos apelos da classe média bem 
comportada. 
A literatura que produziu junto aos seus artigos era fruto de um trabalho 
árduo e bem refletido, um exercício de vida. Em seus artigos, tecia as 
considerações necessárias para desenvolver um pensamento crítico voltado para 
a literatura e para a elaboração de sua poesia. Laboratório. Antes de ser uma 
intuição de seu espírito (recuperar o sentido indígena do termo que respeitava 
uma integração sensitiva com o universo), significava primeiro um exercício 
político em relação ao seu posicionamento no ofício de escritora e pensadora das 
questões importantes de seu tempo. Além da importância do trabalho com a 
escrita, buscava afinar o espírito, tão abalado por pressões mercadológicas que 
 28 
oprimem o sujeito socialmente a ponto de influenciar na força e fôlego necessários 
para continuar exercendo dignamente valores voltados ao desenvolvimento de um 
estar no mundo. 
 Naquele ano de 1987, foram cinco o total das colaborações na seção Guia 
de Leitura do jornal de domingo, em que escrevia sobre diversos autores, tanto 
desconhecidos do grande público, por serem estreantes, quanto badalados poetas 
como Ivan Junqueira e Ferreira Gullar. Esse arranjo acaba por tornar conhecidas 
as preocupações efetivas de Orides Fontela em relação à ética do fazer literário. 
Sem antes saber dessas considerações em torno da vida e da poesia, sentíamos-
nos afastados do embate travado entre o escritor e seu trabalho. Gostaríamos de 
dividir alguns questionamentos desenvolvidos ao longo desses artigos.No dia 17 de maio quando escrevia “Junqueira e o excesso do verbo” sobre 
O Grifo, de Ivan Junqueira, publicado pela Editora Nova Fronteira, deixava claro 
seu comprometimento com a busca da essência das palavras, procurando tirar o 
excesso dos versos para não anular a poesia. Segundo ela, para um quinto livro 
dele, era cometido pecado demais. “Estamos numa época confusa, mas, pelo 
menos, democrática e acreditamos que toda poesia é válida, desde que seja 
autêntica e forte.” Defendia o exercício da distinção entre o bom e o mau poeta e 
combatia as discussões sobre modismos atuais. Acreditava na maturidade de Ivan 
Junqueira, mas não aceitava algumas más “resoluções sonoras” ainda mais 
quando feitas “numa tentativa de usar formas mais atualizadas”. Nem perdoava a 
exceção previsível dos adjetivos pois estes 
 
fazem perder o mistério eliminando os efeitos de surpresa e impacto 
que os bons poemas devem ter. Sendo os temas eternos temas humanos, 
é preciso uma personalidade poderosa para fazê-los reviver como 
merecem. Ora, a personalidade poética do autor é coerente, mas não 
suficientemente forte e marcante.4 
 
4 Os artigos de Orides Fontela escritos para o jornal O Estado de São Paulo foram colhidos em 
microfilme na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Infelizmente, a versão impressa não traz o 
número da página a que se referem todos os artigos. Portanto, em referência bibliográfica, os que 
tiverem faltando a numeração correta encaixam-se nesse caso. Para maiores detalhes ver 
bibliografia no final deste trabalho. 
 29 
 Sobre a poeta Maria escreveu em 14 de junho um artigo “Maria encontrou a 
poesia”, solidário com sua condição marginal. “A ingenuidade ainda marca o 
verso, mas isso não é nada para quem já foi chamado de louca. Maria Elizabete 
Lima Mota, três filhos, estuprada, prostituída, drogada, favelada, chegou à rima. E, 
quem sabe, à solução.” Nesse artigo defende a poesia como voz, como uma 
postura de indignação que aceita falar ao invés de calar. Essa coragem da fala de 
Maria, Orides não quis levar para sua poesia. Segundo ela, já bastava a vida 
sofrida que levava, então não a coloca de uma maneira explícita, não precisava 
estendê-la aos seus escritos. 
 
Declaro que estou em tormento – poesias da sarjeta, é um 
acontecimento diferente em nosso meio. Não por ser ótima poetisa – é 
bem ingênua, bem espontânea, necessitando de burilamento -, mas porque 
Elisabete é mesmo povo . É a mulher proletária – e mais do que isso: a 
mulher abandonada na sarjeta, expulsa da pátria para a sarjeta, como ela 
diz, a vítima do machismo e até da psiquiatria – que revela fibra e 
humanidade para ainda cantar. Cantar, protestar, sonhar, poetar, viver! 
Neste país, onde pobre não tem voz, Elisabete tem voz para si e, 
infelizmente, para tantas outras pessoas esmagadas. Pois o seu não é 
caso único, como realça bem Marta Suplicy no pungente prefácio. Nem é 
doida, sua única “loucura” é ser mesmo poetisa, é cantar de qualquer 
maneira, apesar de tudo. Seu livro, para principiar, é um incrível 
documento humano. (Fontela, 1987, p. 4) 
 
Neste sentido, a poesia é, na sua expressão, exercício de fé. 
 
O que seria defeito noutros casos, em Declaro que estou em 
tormento, deve ser visto com outros olhos, e o que é qualidade aumenta 
muito, pois já é extraordinário, dadas as condições. Mas será mesmo? 
Acaso todos não têm voz, todos não deveriam ter direito ao canto? Ah, 
mas a vida, a miséria, tantas coisas por aí nos sufocam. É preciso ser 
mesmo poeta e ter não só muita coragem mas até bastante loucura para 
 30 
não se deixar esmagar, para gritar cada vez mais forte, mais lúcido, como 
proclama Elisabete. Precisa selvageria, raça, fé . (Idem) 
 
 No dia 16 de agosto escreveu “Nas rimas da perplexidade” sobre os livros 
Fibra Ótica, de Fernando Bonassi, Nereu Velecico e Marcelo Arbex e Antologia 
Poética, de Luis de Miranda publicados respectivamente pela Massao Ohno e pela 
Editora Mercado Aberto. 
Segundo Orides Fontela, “nosso incrível mundo atual” é desafinado. 
 
Que mundo! Nossa cultura, como é sabido, é uma “sopa Lavoisier” 
– ainda reaproveitamos idéias e valores do século passado e não 
conseguimos criar nada de forte, novo e vivo. Estes são os “tempos de 
desgraça”, segundo Heidegger. E poetas em tempos assim só podem 
clamar, desafinar, falar num deserto. Mas salvam-nos da desgraça total... 
(Fontela, 1987) 
 
Defende a estréia auspiciosa de Fernando Bonassi, brinca com a falta de 
originalidade de Nereu Velecico mas valoriza a influência que ele recebeu da 
leitura de Murilo Mendes. “Será isso um defeito? De qualquer forma, é uma ótima 
genealogia poética, e nosso estreante vai tornar-se talvez surpreendente quando 
evoluir. Espere-se”. 
E defende ainda o que considera o pior de todos, pois ainda em busca de 
uma linguagem própria: Marcelo Arbex. 
 
Ai de todos nós, poetas em tempos de desgraça, filhos de um 
mundo que é mais um lixo que um universo! Se nos realizamos é que 
estamos mortos e ultrapassados, se não o fazemos, como ser bons 
poetas? O problema geral é: como simplesmente ser. (Idem) 
 
 Neste trabalho vamos compondo Orides, praticando uma forma de ver e 
entender, aos poucos, como se dá seu aparecer, escrevendo e lendo, 
reescrevendo outros. Aqui não há uma aplicação metodológica sistemática, mas 
 31 
um aproximar-se aos poucos da linguagem para vê-la. Assim poderíamos dizer 
que essa busca do ser habita o espaço interior, da casa, e que é realmente um 
embate em que precisa “selvageria, raça, fé”. Como no poema “caramujo” que 
podemos ler abaixo: “o fim / limite íntimo / nada é além de si mesmo / ponto 
último”, lugar em si. O ponto último não impõe especulações, mas nos diz que “a 
saída / é a volta.” Vejamos o poema “Caramujo”: 
 
A superfície 
suave convexa 
não revela seu dentro: 
apenas brilha. 
 
A entrada 
estreita abóbada 
e sóbria sombria 
gruta. 
 
A seqüência 
rampa enovelada 
se estreita num pasmo 
labiríntico. 
 
O fim 
limite íntimo 
nada é além de si mesmo 
ponto último. 
 
A saída 
é a volta. 
(Fontela, 1988, p. 40) 
 
Espaço interior como a casa, a concha do molusco envolve o que é dentro 
frágil. Em toda intimidade existe uma sutileza de chegada, e um limite – ponto 
último: “si mesmo”. Voltar é a saída, a facilidade de não permanecer em 
movimento solitário do outro, para não provocar invasões bárbaras. 
Não se surpreende muito com o livro de Luis de Miranda, ainda mais pelo 
fato de ser antologia. Mas ficam os deliciosos e instigantes comentários dela sobre 
a época. “Enfim, dois livros novos e de novo a velha perplexidade de “nossa 
cultura”. Quando acharemos uma barbárie nova?” A escolha dos livros reflete a 
busca por encontrar algo novo se não na expressão, ao menos no modo como se 
diz. 
Tanto é assim que Orides não segue um critério rígido na escolha de títulos 
e escritores, trazendo tanto aqueles renomados e velhos conhecidos, como os 
 32 
estreantes, canônicos, como marginais, de diferentes editoras, com diferentes 
propósitos: lingüísticos ou sociais. O rancor pelo descaso em relação aos 
proletários praticado pelas autoridades, e tudo que eles procuram tirar e dificultar 
na vida dessas pessoas, foi trazido à tona, antes de lutar por um espaço feminino 
em sua poesia. Sublimava esses fatores em detrimento de ter sido posta à 
margem desde o momento que nasceu sob o signo do anonimato a que estão 
submetidos os pobres desse mundo. Em seus comentários sensatos e sagazes, 
deixava a veia amarga da vida à mostra. 
Podemos conferir esta atitude no artigo “Versos e rimas de luz e sombras” 
escrito em 01 de novembro sobre Safadezas, de Neusa Cardoso (Massao Ohno 
Editor) e A noite não pede licença, de Paulo Colina (Roswitha Kempf Editores). 
Segundo Orides, Neusa Cardoso estréia “... sem grandes brilhos nem 
novidades, mas também sem tropeços”. Oequilíbrio faz da autora ótima estreante 
e revela o interesse de Orides Fontela pela estréia, pelo começo, pois é 
impossível termos grandes poetas todos os dias. Nenhuma maravilha mas 
nenhuma desafinação. A autora conhece seu ofício e seus limites, podendo, assim 
oferecer-nos algo humano, agradável e simpático.” 
O interesse por um planejado começo, esboçado projeto, fica claro quando 
cita Paulo Colina falando de uma militância, da importância de se apresentar 
pequena poesia. Aqui, antes de um desabafo pela situação nada heróica da 
poesia, temos palavras de incentivo por meio de uma lúcida orientação. “Claro que 
Colina nem se renova nem renova a poesia pátria, mas não estamos em tempos 
heróicos. Por agora, já é ótimo que possamos saudar livros sérios, legíveis, como 
o que o autor acaba de apresentar”. 
Sobre o autor de Barulhos, Ferreira Gullar, não importa se grande poeta, 
mas se um poeta vivo, atento. Em “Entre o lírico e o social”, artigo escrito em 8 de 
novembro, Orides Fontela reclama a falta de novidades, mas valoriza um escritor 
capaz de gerar sempre questionamentos, trazendo-os para seus poemas, embora 
não tenha resolvido o problema de integrar o lírico ao social. Para ela, Gullar ainda 
persegue uma meta: 
 
 33 
Resposta total? Não, mas meta ideal que Gullar se coloca e que dá 
bem a profundidade de integração buscada entre os pólos da poética do 
autor. No geral, Barulhos são ecos, perguntas, memória. Com sabor, 
cheiro, gosto bastante conhecidos e aprovados, com um certo prosaísmo 
às vezes, com as forças e fraquezas - estas pequenas e bem superáveis – 
de sempre. (Fontela, 1987, p. 5) 
 
 Entre antigos e novos escritores a mesma idéia de embate com a escrita, 
luta travada com um trabalho difícil e árduo, o comprometimento pessoal capaz de 
gerar poesia de boa qualidade. Com isso, falando de poesia, mostrava a 
importância de manter aberto um diálogo em busca da valorização da poesia. 
Além de seus escritos, outros escritos apareceram. E estes escritos 
também devem ser considerados gestos; por isso tentamos montar um inventário. 
Quando alguém escreve artigos sobre algum escritor, esses “gestos” podem 
acabar dizendo muito sobre e compondo os gestos de outros. De qualquer forma, 
ao conhecer um escritor pelas mãos de seus leitores, enveredamos por um 
caminho, construindo uma composição biográfica a partir dos dados levantados e, 
mais interessante ainda, um pensamento sobre o trabalho de Orides, de seu fazer 
poético, a responsabilidade com os escritos, a elaboração de uma vida de algum 
jeito inventado. 
 Quando estamos pesquisando a obra de um escritor que já não vive entre 
nós, encontrar os escritos entendendo-os como pequenos gestos é, na verdade, 
considerá-los presentes que nos dão uma repentina alegria. É estender ao outro, 
em ato de generosidade, as palavras que nos encantam, que suspendem o tempo, 
seguindo de mãos dadas e em diálogo pelas afinidades eletivas. 
 Quem melhor documentou e sistematizou os artigos noticiosos e analíticos 
sobre Orides Fontela foi a escritora Letícia Raimundi Ferreira, que conversou com 
a escritora muitas vezes ao telefone, no apêndice A intitulado Fortuna Crítica, de 
sua dissertação de mestrado A lírica dos símbolos na poesia de Orides Fontela, 
defendida em 1995 na Faculdade de Santa Maria, e transformada posteriormente 
em livro, editado pela Pallotti e pela ASL. Na minuciosa pesquisa, é possível 
encontrar um panorama dos comentários e estudos sobre Orides Fontela que 
 34 
foram publicados em artigos de jornais e revistas, em resenhas de revistas 
especializadas e em livros, tanto em âmbito nacional como no contexto 
internacional. Um leitor menos avisado encontra lá um texto esclarecedor sobre 
poesia, uma direção didática e uma abordagem direta para entrar no universo da 
leitura de Orides Fontela. 
 Do desconhecimento em geral aos pequenos comentários e notícias de 
alguns leitores, passando pelo estudo de considerados críticos literários 
brasileiros, até a produção universitária de dissertações de mestrado e teses de 
doutorado defendidas sobre Orides Fontela, nos confrontamos com um verdadeiro 
exercício de montagem de um quebra-cabeça em que precisamos considerar 
todas as peças encontradas, fossem elas irrelevantes ou essenciais para compor 
o todo. 
 Assim foi nascendo o carinho: cuidado, desvelo; dedicação, vigilância, 
provocação de vigília, pela obra de Orides Fontela, que começou efetivamente a 
partir do artigo do jornalista e escritor paulista Bruno Zeni no caderno “Ilustrada” 
do jornal Folha de S. Paulo. Nele, o que nos chamou a atenção foi a figura serena 
mas selvagem da poeta numa fotografia que tinha como cenário seus escassos 
livros, uma velha estante e um espelho. Esta figura aparece no início deste 
trabalho, reconfigurada por Roberta Dabdab da Folha Imagem para o artigo “A 
surpresa do ser”, de Contador Borges, na revista Cult. 
Naquele momento, depois de ter sido despejada, Orides estava vivendo de 
favor numa República de Estudantes, abrigada por uma amiga, depois de ter 
habitado sob o viaduto Minhocão. 
Mais curioso foi descobrir, depois de muitas leituras, que aqueles eram 
seus últimos livros, considerados relíquias, depois de um incêndio que dizem ter 
sido causado pela própria escritora. Todos sabiam da sua dificuldade em 
sustentar-se com o parco salário de professora pré-primária depois do governo ter 
tirado da grade curricular o ensino de Filosofia. Contam que Orides ficou bom 
tempo vivendo às custas de seus amigos ou admiradores de seu trabalho poético, 
através do qual espelhava seu compromisso com a vida plena que não encontrava 
nos descasos impostos pela sociedade de seu tempo, ou do que em qualquer 
 35 
época é humanamente possível enxergar: os enganos e erros da corrupção 
humana. Talvez por isso, curiosamente, se defendesse o tempo inteiro com o uso 
de um guarda-chuva. A vida proletária ensinou à alma poética de Orides que a sua 
vivência intelectual ficaria comprometida pela sua formação, conforme ela mesma 
informa sobre a diferença de classe social que atrapalhava os seus 
relacionamentos: “É o tipo de formação da gente ou a maneira como eles olham 
(grifo meu)”. Durante um bom tempo ela foi alvo de ataques que massacraram seu 
ser e ajudaram também, contraditoriamente, a divulgar sua poesia em diferentes 
veículos da mídia. A tudo isso reagia com seu inventário selvagem de literatura e 
vida. 
Nossa paixão aumentou quando da possibilidade de leitura de seus 
depoimentos em jornais, revistas e livros, entrevistas concedidas pela autora, 
fotografias tiradas de diferentes ângulos e em diferentes épocas de sua vida, 
poemas distribuídos por ensaios. Além desses escritos, ainda encontramos os 
artigos que ela escreveu para a revista Vozes e os trabalhos, já citados, como 
colaboradora do jornal O Estado de S. Paulo, no exercício de crítica ao longo do 
ano de 1987. 
Em momento algum, Orides era sentimental, derramada ou frouxa em seus 
poemas. Havia neles um tom de amargura lírica e seca, da mesma forma que ela 
lia seus poemas de maneira forte, vigorosa, sincopada tratando sua poesia com 
voz incisiva e decidida. Detinha-se no essencial. Era uma poesia descarnada, sem 
enfeites, de uma dureza óssea e de cunho filosófico. Difere muito da poesia 
minimalista, coloquial e de descrição de paisagens miniaturizadas. Por tudo isso, 
consideramo-la uma obra selvagem. 
Vida e obra selvagens. Através dos artigos que Orides escreveu, dos 
depoimentos e entrevistas que concedeu, é possível compreender sua concepção 
de poesia, sua missão com a literatura, e a interface dessa com a filosofia. Do 
percurso de seu trabalho, acompanhando sua trajetória pessoal, encontramos as 
influências das leituras que fez e de como essas interferências foram elaborando 
seus gestos, o corpo de sua escrita e sua maturação intelectual. Leves 
 36 
movimentos que foram montandosua vivência e sua importância literária. Esse 
pequeno percurso pode ser verificado ao longo dos artigos escritos sobre ela. 
O artigo de Vinícius Dantas sobre o livro Alba (1983), que havia ganhado o 
prêmio Jabuti, nos chama a atenção pelo fato de ser diferente dos outros artigos 
elogiosos, movimento causado por um leve incômodo. Em “A nova poesia 
brasileira e a poesia”, o escritor propõe-se a fazer um “balanço crítico de alguns 
volumes de poesia publicados durante o ano de 1983”, pois a recepção crítica 
deixava muito a desejar, o que também não era diferente do acontecimento 
literário, uma vez que os lançamentos podiam ser considerados mais editoriais. 
Entendendo que o processo de recepção só se completa com o debate e a crítica, 
procurava no verso: “qualidades, deficiências, força e originalidade, buscando 
caracterizar tendências e influências” (Dantas, 1986, p. 42). Em algum sentido, é 
possível encontrar no seu artigo razões coerentes para explicitar uma certa “atonia 
histórico-cultural”: 
 
Entre os fatores desse esvaziamento, estão igualmente as condições 
particulares da vida intelectual brasileira após o impacto da modernização 
que, em matéria da produção crítico-literária, foi devastador: a crítica 
jornalística desapareceu com a implantação em vasta escala da indústria 
cultural; a vida intelectual e literária se especializou, perdendo sua simpatia 
provinciana; e, dado seu caráter vegetativo, a produção universitária no 
caso das Letras (ao contrário de outras áreas) não impôs critérios teóricos 
e críticos nem travou diálogo com a criação literária sua contemporânea, 
de modo a se constituir em alternativa que atenuasse o império dos meios 
de comunicação de massa. Ainda assim, olhada de relance, a criação 
poética guardou, contudo, uma inquietação que não encontramos em 
terreno crítico. (Dantas, 1986, p. 42) 
 
Essa situação universitária tornou-se um pouco problemática na visão de 
Vinícius Dantas quando não abriu frente para travar diálogo com a luta da 
construção poética. Entretanto, a força dos “meios de comunicação de massa” não 
conseguiu suplantar a inquietação da criação poética. 
 37 
O crítico confessa que “gostaria de falar da poesia como uma linguagem de 
expressão maior e com fidelidade a uma relevância que penso subsistir à 
impotência”. E, como vitória da poesia, comentava aqueles em que a inquietação 
sugeria também uma construção original. Portanto escolhe somente cinco poetas. 
E é categoricamente, com um rigor exigido da “poesia pura”, que analisa os livros, 
cometendo equívocos, principalmente porque parece, por conta própria, rebaixar 
essa poesia a categorias que ele mesmo propõe como legítimas. Ao falar em 
antologia, deveria julgar os livros como um todo, mas o que faz é isolar os 
poemas, prejudicando, a nosso ver, uma visão mais co-textualizada de um projeto 
poético. 
Além de Alba, ele comentou ainda Sósia da cópia, de Régis Bonvicino, 
Gigolô de bibelôs, de Waly Salomão, Drops de Abril, de Chacal e Caprichos e 
relaxos, de Paulo Leminski. 
 
Os poetas que vou discutir são mais conhecidos que sua poesia. 
Este é o galardão sacana que a época encontrou para recompensar, em 
meio à fechada falta de perspectivas, que é também política e econômica, 
heróis sem importância, criadores de um produto socialmente irrelevante e 
sem a menor expressão. Eu gostaria de falar da poesia como uma 
linguagem de expressão maior e com fidelidade a uma relevância que 
penso subsistir à impotência. Esta relevância só pode ser reencontrada 
através do argumento judicativo que repõe o criador mais jovem em 
contato com uma comunidade de criadores que se perpetuam ao longo da 
história, a qual não participa dos interesses editoriais e mercadológicos e é 
estranha à forma de resenha praticada atualmente. Quero principalmente 
falar do que me incomoda nessa poesia, por isso escolhi cinco livros, os 
mais significativos entre os que foram publicados em 1983, verdadeiras 
coleções de “poemas reunidos”, para discutir poesia – procurar neles o 
novo e assim rastrear as implicações culturais desta produção. (Dantas, 
1986, p.42) 
 
 A nosso ver, o crítico acaba sendo infeliz e incoerente em alguns pontos de 
seu comentário, conforme aspectos que destacamos: 
 38 
• “para uma poética da palavra, concisa, plena de silêncios e vazios, aprendida com 
a poesia de vanguarda”; 
• “ela crê no lirismo de símbolos intemporais e na autenticidade de uma plenitude 
subjetiva”; 
• “esta redução curiosamente se apresentando sob uma consciência permutacional 
moderníssima, os poemas girando sobre si como um móbile”; 
• “uma inflação de símbolos, simulando um dinamismo que não encontra 
ressonância no demasiado estático da composição”; 
• “este propósito de figurar na página um desenho riscado a palavras de uma busca 
interior, em si, é um anseio legítimo em muita poesia moderna. Cair na magia de 
uma transcendência falsa, parece-me resultado de uma auto-aceitação acrítica e 
demasiado complacente”; 
• “a poeta dedica-se à sua própria magia, sem nenhuma dúvida irônica, e fabrica a 
“atmosfera” por meio de símbolos que subsistem o significado interno ao poema 
pela vaga emoção exterior a ele”; 
• “um esforço notável para evitar facilidades; no entanto, basta querermos lê-la e 
senti-la contemporaneamente para que o seu romantismo, camuflado de 
modernidade, se torne uma mentira estética que simula a superação da perene 
crise da poesia”. (Dantas, 1986, p. 51-53) 
 
Considerar que os símbolos em Orides são reduzidos conscientemente, 
figurando um móbile, ameaça a questão de que “não existe uma reflexão se 
fazendo”. Orides admitiu seu método intuitivo, não teve nenhum contato, ao 
contrário do que se diz, com a poesia concreta. E não deveria ser reduzida à 
pecha de ser premiada em concursos literários. É injusto ao dizer que só resta a 
ela escolher o adjetivo. A subjetividade de Orides, antes de ser puro 
derramamento verbal, encara uma mobilidade entre o movimento do geômetra e 
de uma sensibilidade digna de uma reflexão cuidadosa, podendo ser melhor 
pensada sob o ângulo de uma subjetivação que escolhe uma perspectiva de ação, 
sem precisar ser chamada de “dinamismo demasiado estático da composição”. 
Se o crítico quer entender que isso configura uma “busca interior”, calcada 
numa “magia de transcendência falsa”, poderia reparar melhor na “escolha 
manjada de temas”, em uma sociedade que parece não entender, mesmo a partir 
 39 
da palavra, que colocar a ação em jogo pode ser repensar esse jogar. É bom não 
esquecer que falta à nossa educação o ensinar a aprender e que é além de uma 
perspectiva fenomenológica, pois tem outras nuances mais complexas para a 
contemporaneidade. Melhor, talvez, considerar a construção de Orides como um 
jogo que monta, desmonta, faz e desfaz ao longo de toda a sua obra. O silêncio 
que ele diz não significar nada, antes instaura novos prazeres, adquiridos no 
universo lúdico da brincadeira, por exemplo, para de certa forma falar de novos 
desejos brincantes. Meditar, como ele afirma, configura um lugar para Orides que 
não parece ser o que ela propunha com Alba. 
 
Minha simpatia se dirige mais para o baixo nível da baixa mimese 
de poetas como os quatro anteriores do que para Orides, porque neles há 
busca daqueles elementos de uma verdadeira meditação, recolhida na 
intranqüilidade de seus corpos e de sua época, ainda possível através dos 
materiais os mais degradados, mas que são estes mesmos de que 
dispomos. (Dantas, 1986, p. 53) 
 
 O equívoco também se configura por não perceber intranqüilidade no 
silêncio proposto por Orides. Talvez, Vinicius Dantas precisasse de uma 
experimentação com o corpo, lançando-se a descobertas de si, como propunha 
Ligia Clark com sua obra Estruturação do Self, pois entendendo o aguçamento 
dos sentidos com a experimentação dos “objetos relacionais” que a artista 
elaborava nessa fase, conseguimosapontar novas perspectivas para os símbolos 
que Vinícius Dantas diz serem “já gastos” na palavra poética de Orides. Isso altera 
mudanças que sentimos serem necessárias para uma percepção contemporânea 
na abordagem de sua obra. 
Nessa altura, com o prêmio Jabuti, começa a aparecer em conjunto o 
reconhecimento de sua poesia que será configurado no lançamento, não só do 
seu livro Trevo, como também de outros livros, num total de treze poetas entre 
recentes e reconhecidos, da coleção Claro Enigma. A coleção transformou-se num 
evento que movimentou o debate e a troca de conhecimentos sobre os poetas que 
trabalhavam em diferentes nuances naquele período. Foram colocados em 
 40 
evidência os artigos sobre os poetas da coleção e a importância do papel do editor 
Augusto Massi, preocupado em reunir uma obra de escritores diversificados e 
comprometidos com a realização da poesia. 
 Em maio de 1990, o MASP reuniu poetas, críticos e editores numa semana 
de artes e ofícios da poesia. Esse momento de encontro e celebração acabou 
resultando no livro Artes e ofícios da poesia que pretendia estender o espaço 
crítico para a poesia, para o debate e a reflexão, ampliando uma discussão 
literária permanente, o que era mais pertinente para configurar a produção de 
determinada época. Segundo o organizador Augusto Massi, também editor da 
Claro Enigma, coleção tão importante na divulgação cuidadosa da obra de Orides, 
era necessário abrir espaço para discutir a produção contemporânea gerando um 
espaço de visualização da poesia. 
 
A crítica literária pergunta freqüentemente sobre a existência de 
uma nova poesia. A coleção Claro Enigma, por exemplo, provou que esta 
nova poesia já existe. O problema é que a própria crítica não tem sido 
capaz de criar relações entre as obras ou elaborar uma perspectiva de 
leitura que ordene o conjunto da produção contemporânea. Daí a idéia 
recorrente de crise. Crise de quem? Dos poetas ou da crítica? (Massi, 
1991) 
 
 Depois do projeto da coleção, desenvolvido sob o impulso inovador e 
preocupado com a circulação de poesia, outras editoras voltaram a publicar poesia 
como Dubolso (MG), Iluminuras, Massao Ohno. Da livraria Arte Pau-Brasil saíram 
11 mil exemplares de 13 números entre títulos tradicionais e inéditos. Fora do 
comércio estava sendo lançada uma tiragem especial de 25 exemplares 
encadernados de cada livro, com sobrecapa em papel Canson. Todos os 
exemplares são numerados e assinados pelos autores. Interessante observar que 
num contexto onde o corporativismo dominava a lógica da cultura, “a poesia 
também fez sucesso”, no dizer de Massi. O título da coleção era uma referência a 
Claro Enigma de Carlos Drummond, livro considerado um momento de maturação 
e de ultrapassagem das exaltações modernistas de 1922. Claro se refere ao que é 
 41 
possível retomar da tradição e enigma o que se produz de novo na poesia. Assim 
buscava-se valorizar a produção individual. 
 Sobre o evento e o livro Artes e ofícios da poesia resultante dele, 
precisamos atentar para algumas ponderações do editor Augusto Massi 
 
Finalmente, quero dizer que este livro em outros tempos não seria 
possível. Há dez anos atrás, por exemplo, os poetas se reuniriam para, 
num inventário de queixas, protestar contra a crítica, contra os editores, 
contra a falta de leitores e contra outros poetas. A atitude parece ter 
mudado sensivelmente: ao tomar conhecimento de si mesma, refletindo 
sobre sua situação como arte e como ofício, a poesia contemporânea 
coloca em cheque a situação anterior. Esta, creio, é a melhor maneira de 
avançar. (Massi, 1991, texto da orelha) 
 
Daí perceber a importância desse ciclo de palestras. Segundo Leda Tenório 
da Motta, Diretora do Núcleo de Projetos Literários do Centro Cultural São Paulo, 
o objetivo era comemorar o Primeiro de Maio com a noção de pertencimento e não 
como mantenimento da história. Dessa forma, o debate e a discussão entre os 
artistas mostraria o suor de uma transpiração, o alcance próprio do trabalho dos 
poetas. 
 
(...) Aos convidados pediu-se que fizessem da palestra um 
depoimento justamente, em que entrassem filiações, num recorte pessoal 
do legado das nossas Letras, e de outras, ou numa lição de história 
subjetiva da Literatura, de que extrair uma também pessoal ciência da 
contemporaneidade, e dela um discurso sobre si, sobre a presença e a 
circulação de suas obras, numa intervenção de pertencimento. 
(...) Ou vontade de não abrir mão de um desejo – caro também aos 
inventores da nossa modernidade, de que estamos sempre partindo, como 
revelam os depoentes – de convívio e de confrontação. Enfim, necessidade 
de resgate, a exemplo do que, em registro editorial, acabava então de nos 
oferecer a coleção poética Claro Enigma, da Editora Duas Cidades, cujo 
idealizador, Augusto Massi, poeta ele próprio e professor de Literatura 
 42 
Brasileira na Universidade de São Paulo, uniu-se a nós, a convite, impondo 
ao ciclo a visão de conjunto, o desafio de interpretação e a proposta de 
urdidura que nos parecia a todos faltar, mas que só a sua experiência de 
editor e de estudioso da nova poesia brasileira permitiu equacionar. A 
colaboração de Augusto Massi não apenas aperfeiçoou a curadoria do 
ciclo: ela imprimiu um novo sentido ao funcionamento de nossa área, 
abrindo-a para realizações plenamente partilhadas como nosso melhor 
exterior.5 
 
Paralelamente ao fórum ocorreram homenagens a Ana Cristina Cesar, 
Cacaso e Leminski no mezanino do MASP bem como as mostras de livros, de 
edições raras e de revistas literárias. 
Para compor os depoimentos do livro Artes e ofícios da poesia “foi pedido a 
cada um dos poetas que realizasse, na medida do impossível, o seu Itinerário de 
Pasárgada”(Massi, 1991, texto da orelha). Daí resultou o depoimento “belo, áspero 
e intratável” Nas trilhas do trevo, de Orides Fontela. Pontuamos as suas fases por 
acharmos uma interessante sistematização, e a citação de sua “última influência 
notável”. Vejamos abaixo: 
 
Todo processo poético tem sua gênese própria em que pesem os traços 
comuns de uma época. 
Fases: 
Pré-história: Só que estou procurando a circulação do quadrado; folclore; 
primeiras quadrinhas ingênuas. 
Pré-literária: Ginásio – 16 anos. 
Formação: 16 aos 25 anos. 
E havia a escrita selvagem, sem críticas nem peias, andando sozinha eu lá 
sabia para onde. 
E, para citar a última influência notável, no sentido de realmente formativa, 
cito um psiquiatra, o Dr. Helinho, que freqüentei, em 1961, em Itapira. 
Seguinte: ele decifrou todos os meus símbolos. Assim não dava, era 
 
5 Estes trechos foram retirados do texto de apresentação do livro Artes e ofícios da poesia, feito 
por Leda Tenório da Mota. 
 43 
necessário complicar. O que ele diagnosticou como uma “hipertrofia da 
simbologia”. Exato. Era o necessário para passar do nível ingênuo e 
confessional para algo mais elaborado. E meu inconsciente fez isso, e eu 
progredia com alguns senões. O principal deles é este mesmo: a fuga ao 
confessional, à primeira pessoa, a tudo que pudesse cheirar – até de longe 
– a “poesia feminina”. Eu já era feminista e sabia que minha poesia ia ser 
desvalorizada se parecesse “poesia de mulher”. Daí abstraí, abstraí e 
abstraí. Foi uma força: fui aceita. Mas foi, também, uma armadilha, pois 
assim é que caí na poesia hiper-sublimada, tão própria das mulheres. 
Tentei me salvar disso nos últimos livros, e inda tento. (Massi, 1991, p. 256-
261) 
 
Além do depoimento acima, Orides ainda deixou outro que teve como título 
Sobre poesia e filosofia – um depoimento. Na apresentação do livro Poesia (e) 
Filosofia, publicado pela Editora Sette Letras do Rio de Janeiro em outubro de 
1998, Alberto Pucheu revela sua preocupação em estar atento ao fato de alguns 
poetas terem formação acadêmica em filosofia. Além disso confessa que “quisorganizar um livro em que alguns destes poetas-pensadores tematizassem a 
relação, ou a não-relação, entre poesia e filosofia, o que estes dois termos 
significam para cada um”(Pucheu, 1998, p. 7). Assim, mostra que o livro não 
esgota o elenco de autores que estão presentes. Sabedor da necessidade de 
exclusão que se dá mais por dificuldades de reunir, demonstra que o objetivo 
principal era “demarcar o fato e algumas possibilidades de pensamento”. 
 Do depoimento de Orides extraímos os seguintes trechos: 
 
“Alta agonia é ser, difícil prova” é o primeiro verso de um soneto 
meu, escrito aos 23 anos – um soneto muito importante para mim, pois é 
uma espécie de programa de vida, que não renego nunca e nem jamais 
conseguirei cumprir, porém é minha tarefa tentar. Difícil prova sim, 
impossível, pois isso constitui propriamente o humano. E, claro, todas as 
ferramentas servem, principalmente a religião (sobre o aspecto místico), a 
poesia – intuições básicas e... musicais, que tive de nascença – e a bem 
 44 
mais recente, a filosofia. Deixando a religião de lado (mas fica lá, por 
baixo), falemos só de poesia e filosofia. 
 Arcaica como o verbo é a poesia, velha como o cântico. A poesia, 
como o mito, também pensa e interpreta o ser, só que não é pensamento 
puro, lúcido. Acolhe o irracional, o sonho, inventa e inaugura os campos do 
real, canta. Pode ser lúcida, se pode pensar – é um logos – mas não se 
restringe a isso. Não importa: poesia não é loucura nem ficção, mas sim um 
instrumento altamente válido para apreender o real. Qual a minha posição? 
– ou pelo menos meu ideal de poesia é isso. Depois é que surgem o 
esforço para a objetividade e a lucidez, a filosofia. Fruto da maturidade 
humana, emerge lentamente da poesia e do mito, e inda guarda as marcas 
de co-nascença, as pegadas vitais da intuição poética. Pois ninguém 
chegou a ser cem porcento lúcido e objetivo, nunca. Seria inumano, seria 
loucura e esterilidade. Bem, aí já temos uma diferença básica entre poesia 
e filosofia – a idade, a técnica, não o escopo. Pois a finalidade de entender 
o real é sempre a mesma, é “alta agonia” e “difícil prova” que devemos 
tentar para realizar nossa humanidade. Isso é o que temos a dizer, 
inicialmente, sobre filosofia e poesia.” 
Maus versos, mas intuição válida. Pensar dói mesmo, faz cócegas, 
pode ser tão irreprimível como a curiosidade da aluninha. E de que 
adianta? Bem, o caso é que eu não engolia, nem engulo, respostas já 
prontas, quero ir lá eu mesma, tentar. Tentava pela poesia. Ora, uma 
intuição básica de minha poesia é o “estar aqui” – auto-descoberta de tudo, 
problematizando tudo ao mesmo tempo. Só que este “estar aqui” é, 
também, estar “a um passo” – de meu espírito, do pássaro, de Deus – e 
este um passo é o “impossível” com que luto. É o paradoxo que exprimo 
num poemeto 
Próxima: mais ainda 
estrela 
muito mais estrela 
que próxima.” 
(...) 
Nem dava; faltava base econômica e cultural. Pobre e vindo apenas 
do Normal só consegui terminar o curso. Mas me diverti muito. 
 45 
A poesia foi indo, como deu. Preocupou-se com a forma, a técnica – 
Helianto, do tempo da faculdade – e chegou à meta-poesia – Alba. Depois 
tentei voltar, tornar o papo mais concreto – Rosácea, Teia. Mais próxima ao 
cotidiano, mais sofrida, é como ela está, e eu também. Conseqüências da 
pobreza, do envelhecimento, das mágoas. Lamento ter perdido a passada 
ingenuidade (e imunidade) mas não creio que mudei de pele, não é 
possível. O futuro é propriamente falando o imprevisível – e não sei onde a 
pesquisa poética e o pensamento selvagem me levarão. E inda acrescentei 
à minha salada o zen-budismo – com bons resultados, aliás – e agora 
procuro outros “ingredientes”, se possível. Não estar satisfeita é bem 
humano.” 
Persigo a 
aguda trama 
da meta 
morfose. 
(...) 
...mas poesia como fonte que incita e embriaga. 
Só isso cabe ao poeta: ser fiel à voz interior, sem forçar, sem 
filosofar explicitamente. Deixar que, naturalmente, filosofia e poesia se 
interpenetrem, convivam, colaborem. 
Nasceram juntas, sob a forma de mito, e juntas sempre, sempre 
colaboram para criar e renovar a nossa própria humanidade. (Pucheu, 
1998, p. 13-16) 
 
Essa concepção de poesia, entendemos como exercício. Vozes e sentidos 
que se intercruzam e surpreendem estados novos e configurações internas que se 
criam interagindo com forças interiores e externas. Uma passagem não-linear, 
convida sempre para que áreas distintas do pensamento se “interpenetrem, 
convivam, colaborem”, ganhem textura os estados visíveis e invisíveis. Existe em 
exercício um estado de insatisfação que é humano, pois gerado por situações 
externas ao meio: “conseqüências da pobreza, do envelhecimento e das mágoas”, 
e que é realizado sem nenhuma pretensão. Nesse caso, há um embate corpo a 
corpo que é movido pela curiosidade extrema. E para ela, boa ferramenta é a 
 46 
condição de poeta corpo a corpo com a linguagem. Um jogo em que não 
sobressaem as regras, mas a co-presença de estados visíveis e invisíveis. Então 
a interpretação do ser não é puro pensamento puro mas “pegadas vitais da 
intuição”, “alta agonia” e “difícil prova”. E a humanidade que advém daí é 
subjetivação, sujeito em ação, prova da metamorfose. A textura que se cria, 
própria da consistência subjetiva, faz parte de um processo contínuo de ruptura. 
Entendemos melhor esse processo quando lemos alguns trabalhos da 
psicanalista Suely Rolnik. Vejamos um trecho de “Pensamento, corpo e devir: uma 
perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico”: 
 
No visível há uma relação entre um eu e um ou vários outros (como 
disse, não só humanos), unidades separáveis e independentes; mas no 
invisível, o que há é uma textura (ontológica) que vai se fazendo dos fluxos 
que constituem nossa composição atual, conectando-se com outros fluxos, 
somando-se e esboçando outras composições. Tais composições, a partir 
de um certo limiar, geram em nós estados inéditos, inteiramente estranhos 
em relação àquilo de que é feita a consistência subjetiva de nossa atual 
figura. Rompe-se assim o equilíbrio dessa nossa atual figura, tremem seus 
contornos. Podemos dizer que a cada vez que isto acontece, é uma 
violência vivida por nosso corpo em sua forma atual, pois nos desestabiliza 
e nos coloca a exigência de criarmos um novo corpo – em nossa 
existência, em nosso modo de sentir, de pensar, de agir, etc. – que venha 
encarnar este estado inédito que se fez em nós. E a cada vez que 
respondemos à exigência imposta por um destes estados, nos tornamos 
outros. (Rolnik, 1993, p.7) 
 
Essa relação óbvia é ao mesmo tempo muito delicada, pois situa-se entre 
“um eu e um ou vários outros”. Movimenta um território dividido em esferas 
sensíveis do visível e do invisível, textura, fluxos e estados inéditos, primordiais 
para fazer “tremer” os limites, para obter um corpo novo que participa e influencia 
nossas ações, recuperando o estado inédito da expressividade, com a qual 
podemos sempre nos surpreender. Afinal, nessa mudança é a multiplicidade, a 
multiplicação de possibilidades que nos fazem pensar saídas mesmo que isso 
 47 
pressuponha a volta. Quando Orides diz que “abstraí, abstraí, abstraí”, encontra a 
saída de si, em seu próprio devir. 
Na entrevista que concedeu à escritora Marilene Felinto, para a revista 
Marie Claire em setembro de 1996, temos em mente que um diálogo é 
estabelecido não entre duas escritoras mas entre uma jornalista agregada à 
postura da revista que representa e uma poeta. É notável a veia feminista da 
revista, uma preocupação também em estabelecer uma relação muito óbvia entre 
literatura e vida. Alguns comentários nos chamam atenção como “Nada em Orides 
Fontela (...) lembra o equilíbrio, a beleza e a elegância da poesia que escreve – 
não há aqui uma separação muito forte entre poesia e vida. Se o cotidiano de 
ninguém combina com poesia,

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